Teoria Da Restauração

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    2.3 Teorias e Tecnologia da Restaurao

    As primeiras noes de preservao de edifcios histricos surgem timidamente ainda

    na poca do Renascimento, motivadas pelo grande interesse que, entre os sculos XIV

    e XV, se volta para a antiguidade, e ganham fora no sculo XVIII, aps a Revoluo

    Francesa, quando o reconhecimento da destruio de edifcios medievais faz com que

    a Frana seja o primeiro Estado moderno a tomar medidas oficiais de proteo a esse

    patrimnio. No perodo compreendido entre esses dois acontecimentos, que

    corresponde Idade Moderna, as intervenes em monumentos do passado so

    motivadas pela exigncia de adaptar edifcios s necessidades do momento (KHL,

    2008, p. 15) e buscam apenas completar as partes faltantes com elementos prprios

    da poca da interveno. , ento, apenas no sculo XIX, ainda na Frana, que a

    restaurao toma forma e ganha propores de disciplina cientfica, com o objetivo de

    valorizar e preservar a arquitetura gtica, que vinha sendo desprezada pelo

    academicismo do terico Antoine-Chrysostome Quatremre de Quincy, mas que agora

    era considerada por muitos a manifestao mais genuna da cultura nacional.

    As primeiras iniciativas concretas de salvaguarda do patrimnio histrico se iniciam na

    Frana a partir 1830, quando Ludovic Vitet nomeado como primeiro inspetor geral

    de monumentos histricos, com a funo de regular as intervenes nos edifcios

    medievais, Figura 39 Detalhe do pilar em v que sustenta a rampa da sede social da

    Associao Atltica sendo substitudo em 1835 por Prosper Mrime. Essas duas

    figuras, que a partir de 1837 passam a integrar a Comisso dos Monumentos

    Histricos, sero as responsveis por introduzir o primeiro grande terico da

    restaurao nesse campo de atuao, tendo sobre ele grande influncia.

    O arquiteto Eugne Emmanuel Viollet-le-Duc, ao ser indicado por Mrime e

    selecionado pela Comisso para restaurar a Igreja de Vzelay, inicia em 1840 sua

    trajetria na rea da restaurao, desenvolvendo, a partir das experincias prticas, as

    primeiras formulaes tericas do restauro. Na obra Dictionnaire Raisonn de

    lArchitecture Franaise du XI au XVI Sicle, publicada entre 1854 e 1868, em que

    ratifica a preservao da arquitetura medieval francesa, j reclamada por seus mestres

    Vitet e Mrime, o verbete Restaurao define que restaurar um edifcio no mant-lo, repar-lo ou refaz-lo, restabelec-lo em um estado completo que pode

    no ter existido nunca em um dado momento (VIOLLET-LEDUC, 2006, p. 29).

    Este primeiro momento da restaurao na Frana tido como um restauro estilstico, j que

    Viollet-le-Duc defende a reconstituio dos edifcios dentro de seus estilos originais, ao

    contrrio do que vinha se fazendo at ento. Por meio do estudo aprofundado das

    caractersticas e dos desdobramentos dos estilos arquitetnicos (suas estruturas e

    ornamentaes, por exemplo), seria possvel, portanto, estabelecer parmetros de

    interveno ou modelos ideais correspondentes a cada um dos estilos e aplic-los nos edifcios

    que guardassem tais caractersticas.

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    Esse restauro pretendia, ento, resgatar a unidade estilstica da obra, fazendo reconstituies

    hipotticas sem indcios de seu estado primitivo, apenas com base nos modelos elaborados, e

    corrigindo aquilo que poderia macular o estilo original da obra. Dessa forma, a busca pela

    pureza de estilo fez com que o restauro de Viollet-le-Duc desconsiderasse e desfizesse as

    intervenes extemporneas construo do edifcio que seguiam linguagens arquitetnicas

    posteriores. A exceo quando, em algumas dessas intervenes posteriores, as

    contribuies para o melhor funcionamento e para a durabilidade do edifcio superam

    quaisquer acrscimos de estilo; assim, devem permanecer, pois corrigem as precariedades

    construtivas de alguns sistemas primitivos.

    Viollet-le-Duc um dos primeiros restauradores a recomendar e empreender levantamentos

    minuciosos para conhecer a situao dos edifcios, a sistematizar os 39 procedimentos de

    restauro e ressaltar aspectos essenciais que ainda hoje fazem parte de tais procedimentos. Sua

    teoria indica que a restaurao deve se estender estrutura portante do edifcio, no se

    restringindo aparncia deste, e que o conhecimento dos sistemas construtivos relativos a

    cada estilo arquitetnico imprescindvel para que a supresso de elementos no cause

    desequilbrios estruturais. Ele aponta, ainda, que, no ato da restaurao, a destinao do

    monumento a uma funo til uma das melhores maneiras de conserv-lo naquele estado

    para o futuro. E a propsito da imposio de novas funes, os edifcios podem at ser

    adaptados, mas nunca alterados de maneira irreversvel em seu partido original.

    O que se extrai de mais significativo, porm, que, apesar dessa restaurao, em geral, no

    respeitar os projetos originais, colocando o restaurador no lugar do autor, e suprimir os

    testemunhos histricos da passagem do tempo no edifcio, Viollet-le-Duc, contraditoriamente,

    reconhece que se deve agir de acordo com as circunstncias e com as particularidades de cada

    edifcio e que as restauraes no devem estar submetidas a princpios absolutos, j que em

    vrios casos as benfeitorias posteriores demonstram-se mais importantes para os edifcios do

    que a busca por unidade estilstica.

    Em paralelo atuao de Viollet-le-Duc na Frana, desenvolve-se na Inglaterra uma corrente

    diametralmente oposta ao restauro estilstico: o no intervencionismo pregado por John

    Ruskin, que defende a preservao como alternativa restaurao.

    Assim como a Irmandade Pr-Rafaelita, que resgatava as tcnicas artsticas e ofcios do

    medievo, bem como a individualidade dos artistas, John Ruskin valoriza, nos moldes do

    calvinismo, a percia do trabalho manual e os esforos intelectuais do ser humano naconcepo de objetos e edifcios, condenando a industrializao, que, segundo ele, dispensa a

    participao humana e extirpa o valor sagrado do trabalho dos homens de bem, tementes a

    Deus. Considerando que a importncia da arquitetura est, ento, associada ao trabalho do

    homem que a erigiu, o edifcio jamais deve sofrer intervenes de uma gerao posterior. At

    porque, para Ruskin, as geraes atuais no podem negar s futuras o direito de conhecer as

    obras do passado. Dessa forma, devemos intervir apenas naquilo que ns construmos,

    preservando as obras do passado como um dever moral para com a posteridade.

    Na medida em que as geraes no intervm nas obras do passado e estas permanecem

    preservadas para o futuro, o valor da arquitetura tambm estar condicionado idade doedifcio. Isto porque as marcas da passagem do tempo registram a passagem das geraes,

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    revelando a fragilidade e transitoriedade da vida humana em contraste com a supremacia da

    natureza e com a resistncia daquela arquitetura que feita com esmero, para durar o

    mximo que se possa imaginar, ultrapassar sculos e suscitar a rememorao do seu tempo.

    Os edifcios antigos, envelhecidos e condenados violncia da natureza, porm preservados

    em sua concepo original, ganham, pois, o aspecto pitoresco, que consiste na aproximao da

    sensao de sublimidade, que apenas a beleza pura das coisas naturais, das obras de Deus na

    Terra, pode transmitir ao homem.

    Essa relao entre a arquitetura construda pelo ser humano e a natureza engendrada por

    Deus o que, por si s, justifica o valor das marcas do tempo no edifcio e a prpria

    preservao (PINHEIRO, 2008, p. 26). A atribuio desse valor e a preservao, porm, s

    podem ocorrer se, de fato, os edifcios forem construdos para durar, alcanar vrias geraes

    e transmitir as histrias que presenciaram. Na Lmpada da Memria, parte da obra The Seven

    Lamps of Architecture, publicada em 1849, Ruskin (2008, p. 55) ressalta que a arquitetura

    deve ser feita histrica e preservada como tal. E justamente para que seja feita histrica

    que ela precisa estar carregada de significados, ser o reflexo do seu tempo e, principalmente,

    atingir longevidade insupervel, servindo de memorial para que as geraes futuras conheam

    seu passado.

    Considerando as idias de Ruskin sobre os valores da arquitetura, dos edifcios antigos e da

    preservao, o seu no intervencionismo ser, ento, uma corrente antirestaurao. A obra do

    ser humano deve ser preservada, mas jamais restaurada, porque qualquer acrscimo sua

    materialidade pode destruir a originalidade dos aspectos histricos que traz consigo, sejam

    aspectos relacionados ao valor do trabalho do artista ou quase sublimidade do pitoresco.

    Ela significa a mais total destruio que um edifcio podesofrer: [...] uma destruio acompanhada pela falsa descrio

    da coisa destruda. [...] impossvel, to impossvel quanto

    ressuscitar os mortos, restaurar qualquer coisa que j tenha

    sido grandiosa ou bela em arquitetura. [...] Aquele esprito que

    s pode ser dado pela mo do artfice, no pode ser restitudo

    nunca. (RUSKIN, 2008, p. 79).

    A restaurao seria, portanto, a mentira na arquitetura, pois suprime o original para

    substitu-lo por uma imitao que, pretensiosamente, tenta se passar por verdade.

    Alm disso, se os edifcios, da maneira que Ruskin sugere, forem construdos com

    vistas durabilidade, no ser necessrio restaur-los, mas apenas preserv-los para

    que persistam por sculos antes de sucumbirem.

    Ainda que o pensamento sobre a restaurao tenha amadurecido durante a Idade

    Moderna e tenha se consolidado com as noes de documentao e de metodologia

    cientfica propostas por Viollet-leDuc e at mesmo com os princpios de respeito pela

    matria original e de conservar para no precisar intervir, pregados pela no

    restaurao de Ruskin, apenas no fim do sculo XIX que esses preceitos sero

    compatibilizados para a formulao de diretrizes slidas para as intervenesrestaurativas, tentando, de maneira crtica, amenizar a dicotomia entre a instncia

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    esttica privilegiada pelo restaurador francs e a instncia histrica exaltada pelo

    reacionrio ingls. A restaurao passa a assumir, a partir de ento, uma justificativa

    mais cultural do que pragmtica e funcional (KHL, 2008, p. 16).

    Na Itlia, o arquiteto Camillo Boito preconiza que o sculo XIX o momento certo para

    se delinear os aportes da restaurao, j que uma poca sem estilos artsticos prprios

    a mais capaz de estudar e apreciar as artes de vrios perodos do passado com

    tamanha imparcialidade crtica demandada pela interveno restaurativa, fato

    associado tambm ao desenvolvimento da arqueologia. Assumindo uma posio

    intermediria entre as idias contrrias de Viollet-le-Duc e de Ruskin, consegue

    analis-las e reformul-las criando proposies que so bases da teoria

    contempornea, mesmo que seu discurso parea, por vezes, incoerente.

    Em um primeiro momento, em que elogia as experincias de Viollet-le-Duc no resgate

    da arte gtica, j que a prpria Itlia tambm vive um momento de revalorizao dosestilos medievais com vistas unificao da nao, Boito ratifica a necessidade da

    rigorosa documentao dos edifcios, incluindo levantamentos e at fotografias, para

    que se empreendam obras de restauro. Defende, tambm, a unidade estilstica, que

    deve ser alcanada por meio da recomposio do estado original, porm

    aperfeioando o restauro estilstico e admitindo a interveno desde que esteja

    fundamentada em evidncias concretas desse estado, para no provocar

    interpretaes equivocadas da histria.

    A partir de 1880, Boito incorpora idias prximas s de Ruskin, revelando mais respeitopelas obras e pelo trabalho dos artistas, alm de enfatizar o carter documental dos

    edifcios, base de seu restauro filolgico. Com o amadurecimento de suas experincias,

    entende e expe na conferncia I Restauratori, proferida em 1884, que a conservao

    permanente pode evitar a restaurao e prolongar o tempo de vida dos monumentos,

    defendendo, portanto, o princpio da interveno mnima. Se as intervenes forem

    inevitveis, imprescindveis para a sobrevivncia do monumento, um mal necessrio,

    devem remover e acrescentar o mnimo possvel, para que no se percam as

    caractersticas originais e o aspecto pitoresco adquirido com o tempo, e ser

    distinguveis dos materiais e elementos originais, revelando-se como obras de seuprprio tempo (KHL, 2008, p. 25)para no caracterizar uma falsificao do original.

    Essa corrente filolgica, que contradiz as primeiras iniciativas de Boito, prximas

    busca de Viollet-le-Duc pela artisticidade das obras em detrimento de seu aspecto

    histrico, demanda tal respeito pela histria de um monumento que s aceita a

    liberao de restauros j executados e a remoo de elementos posteriores

    construo do edifcio se estes forem de qualidade muito inferior composio

    original; do contrrio, deve-se aceitar as contribuies de todas as pocas. Apesar de o

    homem oitocentista deter conhecimentos sobre todos os estilos do passado, sendoplenamente capaz de restaur-los nos edifcios, no deve faz-lo. Deve, portanto,

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    apenas livr-los das mculas extemporneas e conserv-los, o que sua obrigao

    para com a posteridade.

    Ainda na Itlia, mas j no incio do sculo XX, o arquiteto e engenheiro Gustavo

    Giovannoni elabora no uma teoria, mas uma caracterizao dos tipos de intervenes

    em monumentos, encaixando-os em categorias de restauro com base nas teorias

    precedentes e indicando a pertinncia de se executar cada um desses tipos de

    interveno. A metodologia que se caracteriza como um restauro cientfico tambm

    abre precedentes para as definies que, mais tarde, em meados do sculo XX, estaro

    contidas nas cartas patrimoniais, documentos que registram as conferncias

    internacionais voltadas para a discusso da salvaguarda do patrimnio cultural.

    Para Giovannoni, os monumentos mortos, que no podem mais ter uma funo por

    estarem muito incompletos ou por serem incompatveis com usos atuais, jamais

    devem ser restaurados e voltar a ser utilizados, pois se tratam, quase sempre, demonumentos da antiguidade, que conservam aspecto pitoresco e que so venerados

    em carter de universalidade. Retomando o respeito pela matria original j pregado

    em 1849 por Ruskin, a excepcionalidade desse tipo de monumento exige que se

    mantenha a ptina e todas as outras marcas do tempo, aceitando o arruinamento do

    edifcio, mas nunca interferindo em sua forma.

    A utilizao e a restaurao so aceitas, portanto, apenas no caso de monumentos

    vivos: aqueles que tm ou podem ter uma funo semelhante quela para a qual

    foram construdos. Apesar de considerar que a destinao til uma das melhoresformas de conservar um monumento, Giovannoni acredita que no se deve destin-lo

    aos usos que exigem transformaes radicais, mas apenas queles que no

    comprometem a materialidade da obra e cujas restauraes e adaptaes no se

    sobrepem s caractersticas do bem. Para esses monumentos vivos existem, ento,

    cinco possibilidades de restauro, que dependem do seu estado de conservao e de

    suas demandas para exercer uma determinada funo: a consolidao, a

    recomposio, a liberao, a complementao e a inovao.

    O restauro de consolidao o mais simples e o que menos intervm no monumento,pois consiste apenas em um reforo estrutural que pode salvar o edifcio do

    desmoronamento e da desagregao provocada pela passagem do tempo e pela ao

    gos agentes naturais. Est mais prximo s aes de manuteno e conservao do

    que de restauro propriamente dito, j que no envolve intervenes que removam as

    partes originais do edifcio e acrescentem elementos agregados sua materialidade;

    acrescenta-se apenas a muleta, da qual Ruskin (2008, p. 82) j falava: *...+ apie-o

    com escoras de madeira onde ele desabar; no se importe com a m aparncia dos

    reforos: melhor uma muleta do que um membro perdido *...+.

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    O restauro de recomposio, que mais tarde ser chamado de anastilose na redao

    da Carta de Atenas de 19313, o preenchimento das lacunas com as partes originais

    que se desprenderam com o passar dos anos, mas que se encontram prximas do local

    ao qual pertencem, desde que se saiba, com certeza, que essas peas pertenciam ao

    monumento. Se, para recompor essas partes, faltar algum outro elementointermedirio, devem ser utilizados materiais novos, que se denunciem como tal e que

    tenham composio simples, esquematicamente sugerindo a possvel forma do

    original; se essa recomposio esquemtica vier a prejudicar a harmonia do conjunto,

    se deve fazer uma cpia fiel, mas deixando sempre um indcio de que o elemento

    uma imitao.

    O restauro de liberao, do qual tratar o artigo 11 da Carta de Veneza de 19644,

    consiste em libertar um monumento das intervenes que escondem a sua

    importncia e que

    As cartas de Atenas (1931) e de Veneza (1964) so os documentos oficiais que passam a atentar para o

    fato de que a conservao dos monumentos favorecida pela utilizao por parte da sociedade, desde

    que esse uso no comprometa a originalidade da obra.

    Quando se trata de runas, uma conservao escrupulosa se impe, com a recolocao em seus lugares

    dos elementos originais encontrados (anastilose), cada vez que o caso permita; os materiais novos

    necessrios a esse trabalho devero ser sempre reconhecveis. (CARTA DE ATENAS, 1931).

    Artigo 11 - As contribuies vlidas de todas as pocas para a edificao do monumento devem ser

    respeitadas, visto que a unidade de estilo no a finalidade a alcanar no curso de uma restaurao, a

    exibio de uma etapa subjacente s se justifica em circunstncias excepcionais e quando o que seelimina de pouco interesse e o material que revelado de grande valor histrico, arqueolgico, ou

    esttico, e seu estado de

    no apresentam qualidade artstica; se os acrscimos, contudo, apresentarem essa

    qualidade artstica, deve-se respeitar todos os momentos histricos pelos quais o

    monumento passou e manter as intervenes, contradizendo o restauro estilstico de

    Viollet-le-Duc e ratificando o valor documental defendido por Boito no restauro

    filolgico. Como o julgamento da situao que vai determinar uma das duas diretrizes

    baseado em interpretaes relativas e pessoais, a deciso no deve caber, portanto,

    apenas a um indivduo (restaurador), mas a uma equipe que possa discutir e chegar a

    um consenso.

    Mesmo apontando as situaes cabveis de restaurao, Giovannoni d

    prosseguimento condenao intransigente da restaurao por Ruskin e

    desaprovao muitas vezes flexvel por Boito, revelando que adepto da interveno

    mnima e que acredita na conservao como maneira de evitar ou, pelo menos,

    postergar a restaurao. Sendo assim, os restauros de complementao e de inovao,

    que, assim como o restauro estilstico de Viollet-le-Duc, valorizam a instncia artstica

    da obra em detrimento de seu valor histrico, so admitidos em casos excepcionais.

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    O restauro de complementao visa reconstituio integral do monumento,

    acrescentando o que lhe falta e, para isso, imitando com a mxima preciso possvel (e

    por razes artsticas) os elementos originais. J no restauro de inovao so

    acrescentados elementos bem mais significativos, como a reconstruo de runas e a

    construo de cmodos inteiros necessrios adaptao de um monumento a umnovo uso, ou seja, estados que nunca existiram, assim como nas restauraes de

    Viollet-le-Duc. No primeiro caso, a interveno mnima deve ser respeitada e

    executada com distinguibilidade; no segundo, em que a prpria natureza do restauro

    j contradiz a idia de interveno mnima, a inovao ser admitida desde que

    proporcional s necessidades imperiosas para se atribuir ao monumento vivo uma

    utilizao que contribuir para a sua conservao e funo til sociedade.

    Os primeiros aportes tericos da restaurao no sculo XX, que serviriam de base para

    as teorias mais contemporneas, vm, porm, no do restauro cientfico, mas dos

    valores pregados pelo historiador de arte austraco Alos Riegl em seu Der Moderne

    Denkmalkultus, publicado em 1903, pouco antes da obra de Giovannoni, de 1912.

    Franoise Choay (2006, p. 14-15), historiadora e crtica de arte que escreve o prefcio

    da edio francesa, aponta que Riegl o primeiro a tomar distncia, analisar

    imparcialmente as implicaes da conservao e

    conservao considerado satisfatrio. O julgamento do valor dos elementos em causa e a deciso

    quanto ao que pode ser eliminado no podem depender somente do autor do projeto. (CARTA DE

    VENEZA, 1964).

    da restaurao e empreender o inventrio dos valores no ditos e das significaes

    no explcitas, subjacentes ao conceito de monumento histrico.

    At ento, fica claro na histria da preservao dos monumentos que existe um dilema

    insupervel entre destruio e conservao postulado pelas obras e teorias dos

    especialistas. Riegl, porm, revela os desdobramentos do culto dos monumentos a

    partir da dicotomia implcita, desde meados do sculo XIX, no combate entre Viollet-le-

    Duc e Ruskin: o artstico e o histrico, dos quais se abrem vastas possibilidades de

    valorao e interveno.

    Para Riegl, histrico tudo que se refere a um momento preciso e nico no decorrer

    da histria ou, em suas prprias palavras, constitui um elo insubstituvel e

    intransfervel de uma cadeia de desenvolvimento (2006, p. 44). Dessa forma, tudo

    que testemunho de um desses momentos apresenta valor histrico. Considerando

    que esses testemunhos dos momentos histricos so primordialmente expressos pela

    arte, todo monumento histrico apresenta, tambm, valor artstico. At porque,

    qualquer obra histrica (arquitetura, escultura, literatura, etc) revela os traos da arte

    do perodo em que foi feita. E mesmo que uma obra de arte seja contempornea, ela

    inevitavelmente agrega um valor histrico, pois um dia ser testemunho da artepraticada hoje.

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    O valor artstico, porm, no se resume ao testemunho de certo perodo na evoluo

    da histria da arte, mas abrange os aspectos puramente estticos de uma obra de

    arte: concepo, forma, cor, etc. Se cada poca e cada indivduo podem apreciar ou

    rejeitar alguns desses aspectos, visto que os cnones clssicos comeam a ser

    superados com o nascimento da arte moderna, o valor de arte ser relativo e,portanto, atual, j que se refere ao gosto esttico das geraes que atribuem esse

    valor. E se esse valor de arte relativo e flutuante (RIEGL, 2006, p. 48), no basta

    para caracterizar uma obra como um monumento. O monumento algo

    essencialmente histrico e que pode carregar, tambm, valor artstico.

    Os monumentos histricos sugerem a rememorao do passado e podem fazer isso de

    maneira intencional, quando so especialmente construdos com o intuito de carregar

    uma lembrana s geraes futuras, ou no intencional, quando as geraes atuais

    atribuem valor histrico por terem conscincia da representatividade da obra em um

    determinado ponto da histria. Nos dois casos, a obra nos interessa em sua forma

    original e intacta, tal qual resultou da mo de seus criadores (RIEGL, 2006, p. 49), j

    que constitui um testemunho histrico. Se a degradao dos materiais e a ao da

    natureza so rejeitadas por contradizer essa finalidade, o monumento deve ser

    conservado com vistas a manter por mais tempo o seu estado original.

    A diferena fundamental entre o valor de rememorao intencional e o valor de

    rememorao no intencional ser a restaurao. O primeiro, que atribudo pelos

    autores e por seus contemporneos quando da construo do monumento, pretende

    imortaliz-lo para sempre manter viva a memria de um acontecimento; para tanto,

    Riegl aponta que a obra deve ser, ento, mantida em seu estado perfeito, da maneira

    que foi concebida e sem qualquer sinal de degradao, o que exige a restaurao. No

    segundo, que consiste em valor documental que testemunha um determinado ponto

    no tempo e no espao, o monumento deve ser mantido to autntico quanto possvel;

    no se deve, portanto, restaur-lo, nem mesmo para reparar a degradao j sofrida

    com o tempo, mas apenas conserv-lo para retardar o seu desaparecimento.

    Existe, ainda, outro valor de rememorao do passado, mas que no pode ser tido

    apenas como histrico. Quando um monumento encontra-se dilapidado de tal maneiraque no consegue transmitir precisamente a que poca da histria pertence, mas

    ainda assim revela sua idade avanada por meio das marcas da passagem do tempo,

    carrega um valor de antiguidade resultante de seu aspecto antigo, deteriorado e

    pitoresco. Se, neste caso, o monumento no pode retomar o seu momento histrico, a

    rememorao est associada a um passado vago e impreciso no tempo cronolgico,

    ilustrado pelo decorrer desse tempo e pelo consequente arruinamento do edifcio. O

    que interessa para o valor de antigidade apresentado por Riegl a tal relao que

    Ruskin j apontava entre a obra construda pelo ser humano e a natureza, portanto

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    jamais se deve interromper a ao desta e intervir nos monumentos que guardam tal

    valor.

    muito mais a percepo, em sua pureza, do ciclo necessrio da

    criao e da destruio que apraz ao homem do sculo XX. Toda obra

    humana assim concebida como organismo natural, nodesenvolvimento do qual ningum tem o direito de intervir; esse

    organismo deve se desenvolver livremente, o homem se

    contentando em preserv-lo de um fim prematuro. [...] Assim, vemos

    o culto do valor de antiguidade trabalhar sua prpria perda. (RIEGL,

    2006, p. 72 e 74).

    Este valor de antiguidade o mais fcil de identificar e, portanto, o mais abrangente,

    pois no exige nenhum conhecimento cientfico e relativo histria da arte, mas

    apenas a sensibilidade de qualquer indivduo leigo para reconhecer a idade avanada e

    a sucumbncia do monumento natureza. Em contrapartida, os valores histricos de

    rememorao so identificados justamente no reconhecimento do momento histrico

    ao qual o monumento se refere, demandando certo conhecimento voltado para a

    degradao dos materiais e para os perodos da histria da arte. Considerando que

    qualquer especialista nesses assuntos capaz de constatar, desde que haja elementos

    suficientes para isso, determinado perodo da histria e estilo artstico correspondente

    em um monumento antigo, mesmo em runas, o valor de antiguidade desse

    monumento estar acompanhado de um valor histrico, relativo ao tempo de sua

    construo. Quando esses valores coexistirem, sero sempre inversamenteproporcionais: medida que o valor de antigidade aumenta, o valor histrico se

    perde juntamente com a materialidade do monumento.

    Embora o valor histrico e o valor de antiguidade apresentem interesses praticamente

    opostos, possvel evitar conflitos no tratamento atribudo ao monumento que

    apresenta, simultaneamente, os dois, desde que se possa estabelecer o mais

    importante ou se consiga equilibr-los, que vem a ser a situao ideal. Da a posio

    imparcial de Riegl: no defende apenas a manuteno da originalidade, calcada em

    interveno mnima, e no prega a restaurao indiscriminada, mas condiciona o

    tratamento dos monumentos aos valores simblicos e prticos que estes podem

    apresentar. Esse equilbrio bem mais difcil de ser alcanado, porm, entre os trs

    valores de rememorao e os valores de contemporaneidade, que so valores de arte

    e de uso.

    Os valores de contemporaneidade so atribudos aos monumentos que apresentam

    uma perfeita integridade, inatacada pela ao destrutiva da natureza (RIEGL, 2006,

    p. 91), ou seja, queles que, mesmo antigos, encontram-se em estados semelhantes

    aos das construes recentes. Os valores artsticos, alm de corresponderem sempre

    ao gosto esttico atual, tornando-se relativos, guardam um valor de novidade que diz

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    respeito ao monumento antigo restaurado, tido como novo; por isso so

    contemporneos. O valor de uso, que se refere utilizao do monumento pelo

    homem em condies de estabilidade estrutural, segurana e respeito pela vida

    humana, por tambm demandar os aspectos de integridade, de novidade e de obra

    restaurada, ser um valor de contemporaneidade.

    a partir daqui que, para Riegl e para a nova teoria da restaurao, os valores e seus

    interesses diferenciam-se com base no primitivo embate entre a integridade esttica

    da obra de arte e a autenticidade histrica do monumento. Contemporaneidade e

    historicidade (especialmente antigidade) no podem jamais coexistir cada uma em

    sua plenitude, pois os tratamentos (ou a falta de) necessrios manuteno desses

    valores so essencialmente contrrios com exceo dos monumentos histricos

    intencionais, que mantm sempre sua aparncia de novos. Quando, por meio do

    julgamento de valor, um for privilegiado, o outro tender a diminuir e, talvez, se

    perder.

    Aps a II Guerra Mundial, a destruio dos monumentos na Itlia e a necessidade de

    restabelec-los provoca uma crise metodolgica nas teorias italianas de at ento e

    estimula uma reviso de princpios, que resultar na elaborao da teoria do restauro

    crtico, em que toda interveno constitui um caso em si, no classificvel em

    categorias (CARBONARA,1997, p. 285). Com embasamento esttico e filosfico e se

    afastando dos restauros filolgico de Boito e cientfico de Giovannoni, o

    amadurecimento desse pensamento ter lugar na obra do historiador e crtico de arte

    italiano Cesare Brandi. No livro Teoria del Restauro, publicado um pouco mais tarde,

    em 1963, o autor ratifica a particularidade de cada caso, afirmando que apenas o juzo

    crtico dos valores da obra de arte poder determinar as diretrizes do restauro; valores

    esses j muito bem definidos no incio do sculo XX por Riegl.

    Para Brandi, a noo geral (e leiga) que se tem de restaurao a de uma interveno

    que visa recuperar a funcionalidade de qualquer objeto produzido pela atividade

    humana, restabelecendo sua eficincia. Esses objetos podem ser industrializados,

    manufaturados ou obras de arte. Partindo para uma conceituao mais especfica e

    correta, ele admite que, sim, a interveno de restauro se refere aos produtos doengenho humano, porm, no que tange s obras de arte, a recuperao dessa

    funcionalidade objetivo secundrio, at mesmo quando se tratam de arquitetura e

    de artes aplicadas, obras que sempre apresentam uma funo prtica.

    As obras de arte distinguem-se dentro desse grupo de produtos a partir do momento

    em que elas so reconhecidas como obras de arte pela conscincia do espectador,

    tornando-se produtos especiais da atividade humana e, por isso, no se enquadrando

    em um restabelecimento apenas de suas funes. preciso, primeiro, o

    reconhecimento da obra de arte com tal, j que *...+ at que essa recriao ou reconhecimento ocorra, a obra de arte obra de arte s potencialmente (BRANDI,

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    2008, p. 28), para que, a partir disso, a prpria obra condicione o restauro e os

    objetivos da interveno restaurativa. Estes no devero se restringir a enunciar os

    procedimentos operacionais do ato de restaurar, mas devem buscar seu embasamento

    justificativo nas especificidades e necessidades do objeto.

    Desse reconhecimento deriva o entendimento da obra de arte no s como matria de

    suporte de uma imagem, mas como portadora de uma dplice instncia. J que as

    obras de arte so produtos do engenho humano situados em tempo e lugar

    especficos, sendo testemunhos inigualveis de certo perodo singular da histria, elas

    apresentam as instncias esttica e histrica, que correspondem aos valores de

    contemporaneidade e de rememorao colocados por Riegl e requerem, tal e qual,

    tratamentos especficos e, por vezes, contrrios.

    Essa dicotomia (esttica/histrica) abordada agora por Brandi e antes por Riegl, ,

    pois, a sntese da contraposio radical entre Ruskin e Viollet-le-Duc, em que ahistoricidade requer apenas o ato da conservao e a artisticidade exige a busca pela

    integridade do monumento, alcanada por meio da restaurao. Considerando, ento,

    essas duas faces da obra de arte e a dialtica que existe entre elas, apenas o juzo de

    valor de suas especificidades poder estabelecer alguma prioridade e determinar a

    restaurao, que ser, portanto, ato crtico. Deve-se considerar, porm, que em se

    tratando de uma obra de arte, essa prioridade tende para o lado da instncia esttica,

    pois ela que faz da obra ser o que ; consiste naquilo que, fundamentalmente,

    confere artisticidade obra, j que est ligada intimamente sua materialidade e ao

    seu aspecto, ou seja, a consistncia fsica que transmite a imagem, o contedo.

    J que qualquer coisa relacionada obra de arte depender de seu reconhecimento

    como tal, esse reconhecimento , portanto, essencial ao restauro, pois este ser

    determinado pela busca da funcionalidade no caso de produtos generalizados e pelo

    juzo de artisticidade e historicidade no caso desses objetos excepcionais,

    reconhecidos como obra de arte, influenciando no resultado e na qualidade da

    interveno. Se a restaurao deve ser determinada a partir desse juzo de valor,

    sendo um ato crtico, isso significa que ela condicionada pela particularidade da obra

    de arte e no o contrrio, como no restauro cientfico, em que se tentam encaixar asobras em determinadas classificaes especficas de interveno.

    [...] seja pelo prprio conceito de obra de arte como um unicum, seja

    pela singularidade no repetvel da vicissitude histrica, todo caso de

    restaurao ser um caso parte e no um elemento de uma srie

    paritria [...]. (BRANDI, 2008, p. 63).

    Brandi (2008, p. 30) sugere, portanto, o conceito genrico de que a restaurao

    constitui o momento metodolgico do reconhecimento da obra de arte, na sua

    consistncia fsica e na sua dplice polaridade esttica e histrica, com vistas a suatransmisso para o futuro. Genrico porque, como j mencionado, essa restaurao

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    ser conceituada pelas especificidades da obra de arte, jamais por esquemas pr-

    concebidos. Tendo em vista seus enunciados, Brandi prope dois axiomas que sero os

    fundamentos da teoria da restaurao contempornea.

    A obra de arte comporta imagem (contedo) e materialidade (continente) e,

    justamente pela idia de transmisso do contedo original ao futuro, restaura-se

    somente a matria da obra de arte 5. Se os imperativos da conservao e da

    restaurao se voltam, essencialmente, consistncia material em que se manifesta a

    imagem (BRANDI, 2008, p. 31), preciso ter em vista que esta apresenta aspecto e

    estrutura e que, assim como a instncia esttica prevalece sobre a histrica, o aspecto

    prevalece sobre a estrutura, que est subordinada ao primeiro na medida em que o

    homem a transforma para alcanar o aspecto desejado na matria da obra de arte.

    Dessa forma, a matria que colabora para a figuratividade do aspecto da imagem

    insubstituvel (BRANDI, 2008, p. 48).

    J que a obra de arte uma unidade inteira, pois seus elementos, individualmente,

    no significam nada para a unidade pretendida pelo artista, a restaurao deve visar

    ao restabelecimento da unidade potencial da obra de arte, desde que isso seja possvel

    sem cometer um falso artstico ou um falso histrico, e sem cancelar nenhum trao da

    passagem da obra de arte no tempo. O tempo do restauro perante a obra de arte no

    o momento da criao do artista, no qual Viollet-le-Duc tentava se colocar, nem o

    transcurso entre a concluso da obra e o presente, que muitos buscaram anular, mas o

    presente absoluto do qual se observa a obra. A restaurao , portanto, um evento

    histrico do presente, que deve respeitar a passagem do tempo, admitindo a

    manuteno da ptina, intervir em carter de reversibilidade, facilitando intervenes

    futuras, e se colocar visvel como tal, respeitando a distinguibilidade:

    [...] a integrao dever ser sempre facilmente reconhecvel; mas

    sem que por isso se venha a infringir a prpria unidade que se visa a

    reconstruir. Desse modo, a integrao dever ser invisvel distncia

    de que a obra de arte deve ser observada, mas reconhecvel de

    imediato, e sem necessidade de instrumentos especiais, quando se

    chega a uma viso mais aproximada. (BRANDI, 2008, p. 47).

    Em suma, a teoria e os axiomas de Brandi representam para a restaurao um

    compndio de princpios operativos vlidos, traduzveis na mxima de que cada caso

    particular de restaurao dever encontrar sua soluo no juzo de valor, por meio do

    qual possvel alcanar-se a compatibilizao mais adequada entre as instncias

    esttica e histrica.

    Esse embate entre histria e arte superado pela teoria de Brandi veio ocorrendo desde

    o sculo XIX, entre Ruskin e Viollet-le-Duc, mas suas origens remontam, no por acaso,

    transio entre os sculos XIV e XV. Ainda no trecento, os seguidores do primeirointelectual humanista, Francesco Petrarca, descobrem nas obras de arte greco-

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    romanas o testemunho histrico da antiguidade, mas os edifcios e as esculturas

    clssicas ganham ateno apenas por servirem como referncias secundrias, pois

    do uma legitimidade memria literria(CHOAY, 2006, p. 45), vista como principal

    referncia (testemunho) artstica da histria antiga.

    O tratado de Vitrvio j reconhecia o papel da arte como testemunho histrico, mas,

    mesmo no sculo I a.C., tambm j colocava a beleza como componente da

    arquitetura e submetia-a a certos princpios. No quattrocento, os artfices passam,

    ento, a ter na arquitetura e na escultura greco-romanas o deleite esttico provocado

    pelas formas que obedecem s leis matemticas da natureza e a estes princpios

    lgicos de proporo, ritmo e simetria, concedendo um novo valor aos monumentos

    clssicos.

    A contemplao da arte clssica e a redescoberta do compndio de Vitrvio, esquecido

    durante a idade mdia, fez das obras renascentistas fiis seguidoras dos conceitos defirmitas, utilitas e venustas, principal legado do tratado De Architectura. Se a utilitas

    (utilidade) a razo de ser da arquitetura e a venustas (beleza) alcanada por meio

    de proporo, ritmo e simetria, a firmitas (solidez) fica definitivamente submetida

    questo da durabilidade dos materiais e da estabilidade da estrutura.

    Nesse momento em que a arquitetura se voltou para o reconhecimento das obras do

    passado, arquitetos e tratadistas renascentistas iniciam uma espcie de cincia da

    conservao lato sensu (OLIVEIRA, 2006, p. 10) dos materiais e estruturas,

    componentes do edifcio que determinam a longevidade de seu significado etestemunho singular. Filippo Brunelleschi, arquiteto e pai do Renascimento, mas

    tambm construtor que trabalhava diretamente no canteiro de obras, um dos

    primeiros a estudar a forma, sua estrutura e estabilidade, especialmente quando busca

    no Panteo romano as solues para a cpula da Catedral de Santa Maria del Fiore, em

    Florena. Mais tarde, Leon Battista Alberti ressalta a importncia da durabilidade dos

    materiais e estruturas, j que estaro submetidos ao da natureza, e Leonardo da

    Vinci trata sobre o comportamento esttico de estruturas e sobre os tipos de danos

    que eles sofrem.

    A arquitetura concretizada em materiais e estruturas que obedecem s leis fsicas e qumicas

    da natureza. Se, para recuperar um edifcio, restaura-se somente a matria (BRANDI, 2008, p.

    31) e a estrutura resultante da organizao espacial desta, preciso conhecer a cincia da

    conservao e da restaurao. E se, por alguns perodos, a preservao das obras de arte se

    afastou das bases cientficas para obedecer somente aos subjetivismos da vontade artstica,

    hoje, por meio da teoria crtica, do reconhecimento histrico e artstico concedido

    arquitetura e do desenvolvimento de disciplinas como a fsica, a qumica e a geologia aplicadas

    preservao de monumentos, temos que a cincia (e tecnologia) da conservao e da

    restaurao a nica disciplina prtica capaz de manter a integridade dos monumentos e,

    consequentemente, seu contedo e significado histricos, caracterizando um restauroverdadeiramente cientfico.