TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E...

189
i Sara Cecilia Cesca TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E A PRODUÇÃO ARTÍSTICA EM DIFERENTES CONTEXTOS EDUCATIVOS Campinas 2015

Transcript of TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E...

Page 1: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

i

Sara Cecilia Cesca

TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E A PRODUÇÃO ARTÍSTICA EM DIFERENTES CONTEXTOS

EDUCATIVOS

Campinas 2015

Page 2: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

ii

Page 3: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

iii

Universidade Estadual de Campinas

Instituto de Artes

Sara Cecilia Cesca

TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E A PRODUÇÃO ARTÍSTICA EM DIFERENTES CONTEXTOS

EDUCATIVOS

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Mestra em Música, na área de concentração: Música: Teoria, criação e Prática.

Orientador: Jorge Luiz Schroeder

Este exemplar corresponde à versão final de Dissertação defendida pela aluna Sara Cecília Cesca, e orientada pelo Prof. Dr. Jorge Luiz Schroeder. __________________________________

Campinas 2015

Page 4: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

iv

Page 5: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

v

Page 6: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

vi

Page 7: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

vii

RESUMO

A presente dissertação consiste numa proposta reflexiva em torno da invenção e da produção

artística em diferentes contextos educativos mediante a apropriação teórica da estética da

formatividade. Elaborada pelo filósofo Luigi Pareyson, os estudos da teoria da formatividade

desvelam os problemas estéticos que circundam o processo inventivo e realizativo da obra de

arte enquanto matéria formante. Para efetuar essa reflexão, apropriar-me-ei das observações

concretas de L. Pareyson com o intuito de compreender e conceber de forma legítima o

processo de produção artística presente nas práticas educativas musicais.

Palavras-chave. Educação musical. Educação estética. Experiência estética. Estética da

formatividade.

ABSTRACT

This essay consists in a reflexive proposal about the artistic invention and production in

different educational contexts in coherence with the theorical appropriation of formativeness

of aesthetics (teoria della formatività). The studies of the formativeness of aesthetics,

elaborated by philosopher Luigi Pareyson, reveal the aesthetic problems involving the

inventive process of art production in development. To make this reflection, I am going to use

Pareyson’s concrete observations to understand and conceive the process of artistic production

found in music educational practices properly.

Keywords: Musical education. Aesthetic education. Aesthetic experience. Formativeness of

aesthetics.

Page 8: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

viii

Page 9: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

ix

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................................1

CAPÍTULO 1: DA FILOSOFIA PARA A EDUCAÇÃO MUSICAL ........................................... 35

1.1 Estética pareysoniana: experiência artística e filosofia ........................................ 39

1.2 A arte como fazer, como conhecer e como exprimir: considerações de

uma proposta estético-educativa ................................................................................................ 43

1.3 Poética, estética e crítica. Uma reflexão didática dos conceitos ................ 46

CAPÍTULO 2: TEORIA DA FORMATIVIDADE: UM TAL FAZER QUE SE DEFINE

ENQUANTO FAZ ........................................................................................................................................ 55

2.1 Teoria da formatividade: uma estética da invenção ............................................. 58

2.2 Reflexões sobre a formatividade em atividades coletivas ................................. 61

CAPÍTULO 3: CRIAÇÃO MUSICAL: O PROCESSO INVENTIVO DO INSIGHT ATÉ O

COMPLEXO CAMPO DA INTERPRETAÇÃO ................................................................................. 65

3.1 Primeiro cenário: Sinfonia poética .................................................................................. 68

3.1.1 Reflexões a partir do relato de experiência .................................................... 82

3.1.2 O insight .................................................................................................................................. 87

3.1.3 O ato de perguntar: a chave para uma educação estética ................ 90

3.2 Quando nos inspiramos nas respostas... .................................................................. 94

Page 10: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

x

3.3 Segundo cenário: Solo para violino .............................................................................. 104

3.4 Terceiro cenário: construindo um dicionário de música ................................. 110

3.5 Quarto cenário: reflexões sobre a prática ............................................................... 131

3.5.1 Considerações sobre o exercício como atividade imprescindível da

produção.................................................................................................................................... .....................143

CAPÍTULO 4: DIÁLOGOS ENTRE AUTOR E MATÉRIA ........................................................ 147

4. Energia formante e matéria. Diálogos entre autor e matéria ......................... 144

4.1 Da forma a execução: as possibilidades interpretativas dos alunos ...... 155

CAPÍTULO 5: EDUCADOR MUSICAL: UM ESTETA EM SALA DE AULA ................... 161

CONCLUSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 169

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................... 171

Page 11: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

xi

Às minhas alunas e alunos. Meus grandes guias.

Page 12: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

xii

Page 13: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

xiii

AGRADECIMENTOS

À minha mãe Edith pelo amor incondicional e sensibilidade artística.

Ao meu companheiro Lucas Eduardo da Silva Galon pelas leituras e conversas sobre

estética; por todo amor que tem por mim e por tudo que faço.

Ao meu orientador Jorge Luiz Schroeder pelo apoio, pelos diálogos e incentivo aos meus

projetos e reflexões estéticas; minha gratidão, respeito e admiração.

À professora e amiga Sílvia Cordeiro Nassif grande incentivadora da minha jornada

acadêmica.

À professora Maria Flávia Silveira Barbosa pelas orientações e instruções acadêmicas deste

trabalho.

Aos meus queridos professores de violino Jonas Mafra, Elina Suris e Eliane Tokeshi, o meu

apreço e gratidão.

À minha amiga Ana Luiza Gentil, parceira das minhas invenções em sala de aula; sem ela

muitos dos registros que trago aqui não seriam possíveis.

Aos queridos pais dos meus alunos que sempre apoiaram e acreditaram neste trabalho, os

meus sinceros agradecimentos.

Page 14: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

xiv

Page 15: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

xv

LISTA DE FIGURAS

Figura 01.....................................................................................................................72

Figura 02.....................................................................................................................72

Figura 03.....................................................................................................................76

Figura 04.....................................................................................................................76

Figura 05.....................................................................................................................77

Figura 06.....................................................................................................................77

Figura 07.....................................................................................................................78

Figura 08.....................................................................................................................78

Figura 09.....................................................................................................................79

Figura 10.....................................................................................................................80

Figura 11.....................................................................................................................86

Figura 12.....................................................................................................................100

Figura 13.....................................................................................................................101

Figura 14.....................................................................................................................101

Figura 15.....................................................................................................................102

Figura 16.....................................................................................................................102

Figura 17.....................................................................................................................103

Figura 18.....................................................................................................................103

Figura 19.....................................................................................................................107

Figura 20.....................................................................................................................119

Figura 21.....................................................................................................................123

Page 16: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

xvi

Figura 22.....................................................................................................................126

Figura 23.....................................................................................................................127

Figura 24.....................................................................................................................129

Figura 25.....................................................................................................................130

Figura 26.....................................................................................................................135

Figura 27.....................................................................................................................136

Figura 28.....................................................................................................................137

Figura 29.....................................................................................................................138

Figura 30.....................................................................................................................139

Figura 31.....................................................................................................................140

Figura 32.....................................................................................................................141

Figura 33.....................................................................................................................142

Page 17: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

1

INTRODUÇÃO

Page 18: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

2

Page 19: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

3

INTRODUÇÃO

Professora encantadora de alunos,

Para isso nem precisa de violino.

Basta percussionar,

Basta chegar.

Professora encantadora de alunos,

Para isso pode precisar do violino

Basta tocar,

Basta chegar.

Professora encantadora de alunos,

Para isso basta chegar1.

Assim como o processo inventivo e realizativo da produção artística em qualquer

contexto educativo percorre um tal fazer que enquanto faz inventa o por fazer, a elaboração

deste trabalho também se constitui como um feito inventivo e formativo decorrente das minhas

experiências e reflexões profissionais. Estas primeiras linhas consistem num pequeno introito

que desvela a partir de recordações e memórias as raízes que originaram a presente pesquisa.

Apresentarei de maneira sucinta fragmentos significativos que marcaram a trajetória deste

trabalho e que possibilitaram as reflexões e o direcionamento desta pesquisa.

Considero como fonte primária deste estudo os encontros com cada uma das pessoas

que vivenciaram comigo as reflexões que aqui serão apresentadas, cada qual me influenciando

com sua maneira de pensar as coisas e o mundo; são estes: alunos que hoje seguem suas vidas

adultas, mas que durante a infância me ensinaram a olhar a arte, especificamente, a música de

maneira diferente da minha; amigos que através de suas experiências profissionais e

acadêmicas me proporcionaram reflexões a respeito das muitas possibilidades educativas;

profissionais e colegas de trabalho que exerceram diariamente grande influência na temática

que proponho.

1Este poema foi escrito carinhosamente pela professora e escritora Ana Luíza Gentil, grande amiga que estimo e

admiro. Incentivadora e parceira das minhas ideias e pesquisas, Ana e eu trabalhamos juntas durante quatro anos.

Certa vez conversávamos por e-mail sobre as reflexões dos nossos alunos e ao término daquele diálogo fui

presenteada com este lindo poema.

Page 20: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

4

Deixo registrado essas considerações, pois acredito que esta pesquisa resulta de uma

intensa atividade de imaginação e construção que pressupõe uma trajetória socialmente

compartilhada, tornando-se possível devido aos muitos encontros com que fui agraciada até o

presente momento, afinal, “só me torno eu entre outros eus. Mas o sujeito, ainda que se defina

a partir do outro, ao mesmo tempo o define, é o 'outro' do outro: eis o não acabamento

constitutivo do Ser, tão rico de ressonâncias filosóficas, discursivas e outras” (BRAIT, 2013,

p.22). Portanto, dedico esta pequena apresentação acadêmica a todos aqueles que compuseram

o auditório social das minhas reflexões, em especial meu pai e meu irmão (in memoriam),

presentes em cada etapa deste trabalho através de fortes lembranças.

Tomo como ponto de partida meus 16 anos, idade que comecei a dedicar-me ao

ensino de violino para jovens e crianças; tão nova, porém responsável. Com essa idade fui

emancipada legalmente pelos meus pais para efetuar com tranquilidade os trâmites

burocráticos das viagens que realizava para os diversos festivais de música no Brasil, e assim,

com seriedade e responsabilidade conduzia meu trabalho e meus estudos como se fossem

atividades que já realizava há anos. Nessa caminhada de quinze anos pude conviver com uma

incrível variedade de alunos de faixas etárias distintas. Durante esse percurso fui aprendendo

com eles não somente os meios para ensiná-los, mas, sobretudo, admiração, integridade e

respeito mútuo. Crescemos juntos e confesso que aprendi mais do que ensinei.

Ao longo do meu trabalho como educadora musical, pude vivenciar esteticamente ao

lado destes pequenos músicos a beleza existente em cada gesto do fazer musical. Seja

realizando exercícios, compondo, executando ou interpretando, aprendi a apreciar as

grandezas do processo de elaboração artística destes alunos mesmo nas mínimas proporções,

e descobri que são tão belas e valiosas quanto qualquer outra produção artística monumental.

Foi a partir de bons encontros que as reflexões estéticas que trago nesta pesquisa

começaram a surgir e o primeiro deles ocorreu quando ingressei na Universidade aos 20

anos. Dedicada ao estudo do violino e ao trabalho que realizava nas escolas de música da

minha cidade - Ribeirão Preto/SP - entrei na Universidade, ingenuamente, como quem já

fosse um profissional do ensino e foi a partir deste contexto que comecei a compreender em

profundidade o trabalho missionário de um educador musical.

Page 21: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

5

O primeiro impulso da temática desta pesquisa nasceu no decorrer da disciplina de

Estética que cursei no primeiro semestre da graduação em música na Universidade de São

Paulo no ano de 2003. Ministrada pelo musicólogo e pesquisador Régis Duprat a

apresentação dos conceitos do filósofo Luigi Pareyson despertou em mim grande entusiasmo

para buscar em profundidade as possibilidades de um diálogo entre estética e educação

musical, e desde então, esse ímpeto vigora concretizando-se, parcialmente, neste trabalho.

Cada capítulo da obra “Os problemas da estética” escrito por Luigi Pareyson que eu estudava

proporcionava ao meu trabalho como educadora musical inúmeras reflexões acerca dos

problemas que permeiam a atividade de invenção, execução e leitura da obra de arte. Hoje,

quando recordo esse primeiro contato com a filosofia pareysoniana observo que os aspectos

reflexivos mais marcantes das minhas primeiras leituras se voltavam para os problemas de

execução e interpretação instrumental. Essa lembrança desvela o quanto o meu trabalho

estava centrado na prática do instrumento, no entanto, foi dialogando sobre os problemas da

estética com os meus alunos que descobri as possibilidades de um pensamento reflexivo para

além das possibilidades técnico-musicais. Recordo-me da primeira tentativa ao lançar um

questionamento estético a um aluno de violino na época com doze anos. Segurando as

partituras do concerto que estava estudando perguntei a ele se poderíamos considerar aquelas

páginas (referindo-me aos papéis) como música, e rapidamente, respondeu-me que era

preciso tocar para se fazer música. Foi assim que iniciamos um diálogo sobre o processo de

execução e a importância do intérprete como co-autor frente ao trabalho do compositor.

Gosto muito da seguinte frase de José Saramago: “Tudo no mundo está dando respostas, o

que demora é o tempo das perguntas” (1994, p.225).

A partir desses primeiros insights estéticos que ousei experimentar em sala de aula,

pude observar que por mais complexa que uma reflexão pudesse parecer para mim, talvez

não o fosse para os alunos. Tinha a impressão de que alguns problemas de natureza estética

já haviam sido pensados por eles; foi quando percebi que o que faltava na minha prática

docente era uma abordagem mediada por perguntas, pois as respostas já existiam, e nas

palavras de João Wanderley Geraldi pude encontrar as afirmações de que necessitava: “Creio

Page 22: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

6

que o ensino tem dado respostas a alunos que não conhecem as perguntas. Temos aprendido

respostas sem sabermos as perguntas que a elas conduziram” (2010, p.96).

É comum que alunos em diferentes contextos educativos adquiram forte identificação

com determinados professores ou disciplinas mais do que outras, e posso afirmar que, a

temática da disciplina de Estética que cursei durante o período de graduação, bem como as

reflexões levantadas pelo professor Régis Duprat foram responsáveis por despertar em mim a

vontade de ir além como profissional da música. O curso de estética de um semestre foi um

presente para mim.

No decorrer do curso de bacharelado em violino comecei a atuar na Orquestra

Sinfônica de Ribeirão Preto; embora eu ficasse dividida entre os ensaios, a Universidade e o

trabalho que exercia como professora minhas reflexões sobre educação musical e minha

atuação docente se constituíam sempre de maneira visceral. Ao aproximar o término do

curso fiquei em dúvida quanto aos rumos da temática do meu trabalho de conclusão de curso,

pois uma análise reflexiva acerca das peças que comporia o meu recital me interessava,

porém levantar reflexões estéticas em torno do trabalho musical em sala de aula também

consistia num assunto do meu interesse, afinal, eu já vinha observando algumas experiências

de natureza estética e colhendo registros e anotações de campo, mesmo sem ter

conhecimento da importância que estes poderiam proporcionar-me como material de

pesquisa acadêmica. Por fim, optei por um trabalho voltado para a área do ensino baseado no

meu trabalho como educadora, malgrado o meu perfil de bacharelanda. Sob o incentivo e

orientação da professora Dra. Sílvia Cordeiro Nassif, a realização do trabalho de conclusão

de curso intitulado “Abordagem Triangular: uma proposta aplicada ao ensino de violino”

possibilitou-me plantar a certeza dos primeiros passos desse caminho.

Após a conclusão do curso de graduação fui convidada a participar de um grupo de

estudos composto por pedagogos e educadores da área de música. Realizados na Faculdade

de Ciências e Letras da Universidade de São Paulo sob a orientação da professora que havia

me orientado no trabalho de conclusão de curso, os encontros tinham como objetivo

promover estudos dialógicos e reflexivos em torno de teóricos e pensadores referenciais para

a área de educação. Além de ministrar aulas no departamento de música dessa mesma

Page 23: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

7

Universidade, a professora Dra. Sílvia Cordeiro Nassif, também atuava como docente no

departamento de Educação (local onde realizávamos as reuniões). Ao longo de quatro anos

os encontros ocorreram sistematicamente, o que me levaram ao conhecimento de autores,

tais como: Pierre Bourdieu (O amor pela arte, 2003, e Escritos de educação, 2001);

Dermeval Saviani (Escola e democracia, 2007); Mikhail Bakhtin (Estética da criação

verbal,2000, e Marxismo e Filosofia da Linguagem, 2002); Eduardo Seincman (Estética da

comunicação verbal, 2008); Bernard Lahire (Homem plural: os determinantes da ação,

2002); Donald A. Schön (Formar professores como profissionais reflexivos, 1992); Antonio

Zabala (A prática educativa: como ensinar, 1998); Carlos Rodrigues Brandão (Educação,

1987); Luigi Pareyson (Os problemas da estética, 1997); Vigotski (A formação social da

mente, 2009 e Imaginação e criação na infância, 2009); João Wanderley Geraldi (A aula

como acontecimento, 2010); mediante essas leituras tive a oportunidade de refletir

profundamente com meus companheiros de pesquisa sobre metodologias, conceitos e

possibilidades educativas a partir de cada um desses autores. Nesses encontros,

compartilhávamos muitas das nossas experiências positivas e dificuldades encontradas no

dia-a-dia em sala de aula, bem como projetos pessoais e anseios acadêmicos. Foi ao lado

desses amigos e parceiros de pesquisa que meu trabalho ganhou forças e profundidade

acadêmica.

A partir do contexto universitário, entre ensaios e concertos da orquestra, aulas em

projetos sociais, escolas da rede básica de ensino, escolas de curso livre, conservatórios de

música, dentre todos os alunos particulares que chegavam até mim, fui aos poucos

construindo também ao lado de amigos e professores as bases desta pesquisa. Portanto, a

realização deste trabalho é um ato de tentar compartilhar entre os educadores que trabalham

com arte, especificamente educadores musicais, reflexões sobre estética e educação musical

homenageando também meus queridos alunos em todos esses anos de experiências estéticas

compartilhadas; exprimo aqui a minha honra e gratidão aos pais e demais responsáveis que

acompanharam e acreditaram no meu trabalho ao longo dessa jornada.

Page 24: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

8

Problemáticas estéticas

Tomo como ponto de partida as reflexões estéticas levantadas por Gabriel Perissé que

atinam diretamente com a proposta desta dissertação, com destaque para algumas que

impulsionaram a elaboração deste trabalho: “A interpretação de obras de arte contribui para o

nosso aperfeiçoamento ético? Ajuda-nos a repensar nossa maneira de viver e conviver? Pode

nos fazer dimensionar o quanto é perigoso ser livre e saber que o somos? Pode ser, em

resumo uma interpretação educadora?” (PERISSÉ, 2009, p.36). Desde o momento em que

me deparei com indagações dessa natureza enquanto profissional responsável diretamente

pela formação de todos aqueles que chegavam até mim, minhas preocupações pedagógicas se

voltavam para um modelo educativo que pudesse ser transcendente ao processo artístico;

pensava eu: “de que maneira a arte musical pode contribuir de forma significativa aos meus

alunos para além do fazer musical?”. A partir do contato com a produção literária de Luigi

Pareyson pude encontrar um caminho possível para conduzir minhas reflexões tanto como

pesquisadora, como educadora musical.

Outra questão que me fez refletir sobre a necessidade de um pensamento que pudesse

conectar estética e educação musical diz respeito à afirmação da autora Lia Tomás:

no conjunto do ensino da Estética, é muito raro encontrar autores que

examinem os conceitos no campo da música, pois de modo geral é nas Artes

Plásticas que essas investigações são realizadas. A consequência deste fato,

caso senão seja o total desconhecimento sobre o que seja a Estética Musical,

é um conjunto de ideias errôneas ou mesmo a desconfiança de que seja

possível haver alguma discussão estética com relação à Música (TOMAS,

2005, p.7).

Ao levantar questões em torno da estética musical a autora procura revelar certa

incipiência no estudo desta disciplina, principalmente quando a estética da música é

comparada com a das outras artes. De antemão, trago esta observação para elucidar a escolha

do presente tema: se uma estética da música tomada como disciplina que pode proporcionar

uma análise mais geral (em âmbito filosófico) dos fenômenos musicais esbarra nesta

Page 25: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

9

incipiência, que problemas então poderão ser encontrados quando se observa a necessidade de

propostas pedagógicas fundamentadas na estética no âmbito da educação musical, apenas um

dos muitos braços da ciência musical?

Com base nos relatos de experiência em diferentes contextos educativos que se

prestaram a esta pesquisa como objeto de estudo e de verificação in loco, é possível observar

as contribuições que trazem atividades que contemplam a criação musical, a prática de

execução e de interpretação como proposta educativa voltada para o aperfeiçoamento ético,

para a reflexão sobre a dinâmica do viver e do conviver; considerando também os atos de

responsabilidade e respeito entre os pares no convívio em sociedade. Nesse sentido, acredito

que uma proposta estética que se presta a reflexões sobre arte passível também dessas

considerações se constitui como um veículo estético-educativo. Assim como Luigi Pareyson

pôde colher e perscrutar as delicadezas e as complicações que envolvem o ato criador através

de sua convivência com artistas, críticos e apreciadores de arte, penso também que através

dessa mesma abordagem o educador musical possa além de apreciar as belezas que há no

percurso da inventividade, observar também as marcas pessoais que são impressas no fazer de

cada um dos seus alunos.

Isto posto, objetivo com este trabalho examinar e refletir a partir da teoria da

formatividade os problemas estéticos inerentes ao processo de invenção e produção artística

em práticas educativas que vão desde o insight da composição até o complexo campo da

leitura da obra de arte, de modo que se possa através dessas observações e reflexões olhar em

profundidade as grandezas decorrentes desse fazer, desvelando também o humano por trás de

cada ato criativo e realizativo; refletir sobre a diversidade humana por meio de atividades

artísticas com o intuito de instaurar entre os sujeitos respeito e valores pautados numa ética

íntegra e solidária; demonstrar de que forma a teoria da formatividade pode contribuir

enquanto proposta educativa voltada para a formação do ser como um todo; difundir um modo

de operar o pensamento voltado para as práticas educativas, visando à conscientização de

professores e alunos da complexa e operante elaboração do pensar e do fazer enquanto

inventores de arte e de suas próprias vidas.

Page 26: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

10

Com base na revisão bibliográfica2 realizada como etapa inicial desta pesquisa, do

ponto de vista de uma educação estética, especificamente, sob a ótica da teoria da

formatividade, pude constatar que o campo da educação musical carece de uma filosofia

profunda e abrangente em torno dos princípios que substanciam o percurso da produção e da

inventividade artística no contexto escolar. A revisão bibliográfica consiste num procedimento

acadêmico complementar a todo tipo de pesquisa e como etapa imprescindível para a

realização desta dissertação de mestrado o intuito dessa revisão esteve centrado na busca por

propostas pedagógicas estético-educativas à luz da filosofia pareysoniana, especificamente,

ancoradas em sua teoria da formatividade. Justifico, portanto, a importância desta pesquisa

diante da necessidade de modelos educacionais estético-filosóficos que residam no campo da

educação musical, possibilitando um olhar abrangente e significativo voltado para o processo

de invenção e produção artística dos nossos alunos em diferentes contextos educativos.

De acordo com o panorama de publicações consultadas na etapa de revisão

bibliográfica, pude verificar também a pregnância estética oriunda da concepção idealista

crociana como preceito filosófico que há em muitas pesquisas em educação musical,

fomentando como experiência estética apenas uma visão contemplativa, sensitiva e expressiva

da arte. Embora Pareyson considere legitimamente os princípios fundantes desse pensamento,

aponta na concepção estética crociana determinada carência especulativa em torno do percurso

complexo e operantemente humano do fazer artístico. Em vista disso, fazem-se necessárias

intervenções reflexivas sobre estética e educação musical - enquanto processo de invenção e

produção artística - seja em projetos sociais, escolas de nível técnico ou cursos livres de

música, considerando atividades que contemplem o exercício de criação, de execução, de

apreciação, entre outros, tanto no âmbito do ensino individual como no ensino coletivo.

Portanto, é importante ressaltar mais uma vez a necessidade de compartilhar possibilidades

reflexivas em torno dos fenômenos que precedem a arte enquanto matéria formante e formada.

Não pretendo com esta proposta desqualificar qualquer outro modo de apropriação

estética, no entanto, difundir um pensamento conscientizador e reflexivo do complexo e

2Como orientação da presente investigação, tomei como fonte de revisão bibliográfica revistas brasileiras que

contemplam artigos científicos da área de educação musical, são elas: Revista e anais da ABEM e revista OPUS.

Page 27: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

11

aventuroso itinerário pelo qual percorre a obra nas mãos dos nossos alunos antes de ser

matéria formada, apresentando suas contribuições num plano educativo transcendente à

própria produção artística.

Friso também que, o intuito do trabalho, embora dialogue com os pressupostos

canônicos da arte, não consiste em estabelecer definições para obras que sejam ou não arte,

muito menos conferir o título de arte com “A” maiúsculo digno de galerias, museus ou

concertos destinados a salas de espetáculo ao trabalho que é realizado em sala de aula, como

poderiam confrontar os críticos de arte da área3. Aproprio-me do conceito de arte no sentido

de que o ato de formar por formar, pensar, executar ou apreciar aspectos artísticos faz menção

à tradição grega, fortemente sedimentada na nossa cultura ocidental. Segundo o teórico e

musicólogo Roland Candé,

É na Grécia que aparecerão pela primeira vez, no nível de uma consciência

musical, a ambição de criar e o gosto de escutar. Há milênios a música visava

a eficácia; religiosa, mágica, terapêutica, lisonjeira, militar, ele se dirigia aos

deuses e aos reis, às forças invisíveis e visíveis. Entre os gregos, ela se torna

arte, maneira de ser e de pensar, revela sua beleza ao primeiro público

socialmente consciente (CANDÉ, 2001, p.66).

Embora minha pesquisa esteja imersa nos paradigmas oriundos da tradição grega,

tenho como principal objetivo reflexões sobre os fenômenos artísticos que circundam a

processo de invenção a partir de práticas artísticas em diferentes contextos de educação, para

tanto, faço uso de reflexões estéticas com o intuito de compartilhar uma proposta que se

realiza com arte, porém sem a pretensão de se igualar aos moldes canônicos de se fazer arte

com “A” maiúsculo. De acordo com Luigi Pareyson,

3Do ponto de vista do historiador e pesquisador Ernst Gombrich, “nada existe realmente a que se possa dar o

nome de Arte. Existem somente artistas [...] não prejudica ninguém dar o nome de arte a todas essas atividades,

desde que se conserve em mente que tal palavra pode significar coisas muito diversas, em tempos e lugares

diferentes, e que Arte com A maiúsculo não existe. Na verdade, Arte com A maiúsculo passou a ser algo como

um bicho-papão, como um fetiche. Podemos esmagar um artista dizendo-lhe que o que ele acaba de fazer pode

ser excelente ao seu modo, só que não é ‘Arte’. E podemos desconcertar qualquer pessoa que esteja

contemplando com deleite uma tela, declarando que aquilo que ela tanto aprecia não é Arte mas uma coisa muito

diferente” (GOMBRICH, 1999, p.15); ou conforme nos traz o filósofo Dino Formaggio no primeiro parágrafo da

introdução de seus escritos sobre arte e estética, “Arte es todo aquello a que los hombres llaman arte”

(FORMAGGIO, 1976, p.11).

Page 28: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

12

Precisa-se de “arte” para fazer qualquer coisa, e nada se pode fazer bem

sem “arte”: não existe ocupação humana, por humilde, singela e

insignificante que pareça, que não exija, de quem a ela se dedica, alguma

“arte”, ou seja, a capacidade de inventar o modo de fazer fazendo, e de

fazer sabendo fazer, e em nada se obtém um bom resultado se o fazer não se

faz inventivo além de produtivo, tentativa e figurativo, além de executivo e

realizador (PAREYSON, 1993, p.64).

Proponho, portanto, a formatividade pareysoniana como um modus operandi voltado

para a observação da produção e da invenção artística entre os educadores musicais e seus

educandos em diferentes práticas do ensino de música.

Segundo Lauand, autor do prefácio da obra “Estética e Educação” de Gabriel Perissé,

um dos fatores que limitam o educador a pensar a prática educativa sob a ótica da estética,

justifica-se pelo simples fato do próprio professor não contemplar experiências estéticas

significativas. Vejamos nas palavras do escritor:

É que nós, professores, carecemos de experiências estéticas significativas,

pois nossa formação para a beleza, para a arte, para a criação é deficiente.

Daí que, em consequência, seja deficiente, nesse aspecto, nossa prática

educativa. Um dos méritos deste livro, talvez o seu maior mérito, consiste em

acreditar e levar à crença de que refletir e agir esteticamente são formas de

aperfeiçoar-nos como educadores (LAUAND, cf. PERISSÉ, 2009, p.7).

Em se tratando de um trabalho que contempla estética e educação musical, posso

afirmar que foi por meio não só do meu conhecimento musical, mas também da minha prática

artística que pude colher respectivas reflexões cujo objetivo está para além dos manifestos

poéticos, do domínio exclusivamente técnico e dos saberes sobre arte como mero

conhecimento. Através dessa abordagem esteticamente filosófica, compartilho reflexões que

prezem por um ensino que possa contemplar as belezas de um fazer artístico para além da

própria arte - a vida como um todo -, pois “a atenção ao acontecimento é a atenção ao humano

e a sua complexidade” (GERALDI, 2010, p.100). Se eu tivesse que definir a função da arte no

campo ao qual pertenço tomaria as seguintes palavras do escritor e poeta Ferreira Gullar:

Page 29: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

13

no presente como no passado, diria que seu papel mais importante é nos

ajudar a viver, a criar alegria. Parto deste princípio: se a arte existe, é porque

a vida não basta. A arte deve enriquecer nossa vida, e isso não tem a ver com

cubismo, com vídeo ou com instalações. Não me interessa saber que escola

ou tendência uma obra representa, só me importa seu poder de enriquecer

minha existência, de torná-la possível. Imagine dois mendigos conversando

na rua, como vi outro dia na frente da minha casa. Um desses sujeitos sujos e

malvestidos, diz ao outro: “Me respeita!”. E é claro que, debaixo daqueles

trapos sujos, há um ser humano que quer ser respeitado, porque o sentido da

vida quem nos dá é o “outro”, sem ele não existimos. Jean-Paul Sartre dizia

que o inferno são os outros, mas não é verdade, os outros são nossa salvação,

sem eles não somos nada (GULLAR, 2013, p.237[itálico meu]).

O ponto de partida das minhas reflexões e verificações serão fundamentadas

inteiramente na teoria estética da formatividade de Luigi Pareyson, diante disso, reitero: a

proposta deste trabalho consiste em difundir no campo das artes mediante a teoria estética da

formatividade, especificamente na área de educação musical, possibilidades estético-

educativas em torno da produção e da invenção artística - composição, execução,

interpretação, apreciação - em diferentes contextos educativos contribuindo, especialmente,

para vivências educativas transcendentes à própria natureza artística.

Perspectiva Teórica

Elaborada pelo filósofo Luigi Pareyson, a teoria da formatividade resulta de uma

ampla investigação acerca da invenção e da produção humana enquanto processo artístico.

Com ênfase na observação dos problemas filosóficos que permeiam a elaboração da obra em

seu estado formativo o autor desloca o conceito de estética, até então responsável por estudar

os fenômenos sensitivos do belo na arte, instaurando um olhar especulativo às causas artísticas

enquanto matéria formante. Ao invés de se deter aos preceitos estéticos de seu contemporâneo

Benedetto Croce (1866-1952) responsável por exercer grande influência entre artistas e

filósofos do início do século XX na Itália, Luigi Pareyson afirma que “era mais que tempo, na

arte, de pôr ênfase no fazer mais que simplesmente contemplar” (PAREYSON, 1993, p.9). Por

intermédio do conhecimento e dos estudos dessa abordagem filosófica pude encontrar uma

Page 30: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

14

maneira de olhar mais consciente e atenta ao processo de invenção e produção artística dos

meus alunos.

Oriunda de uma tradição filosófica do Ottocento, a concepção estética

tradicionalmente em voga entre os estetas italianos no início do século XX consistia numa

abordagem estruturada apriorísticamente em parâmetros sensitivos e expressivos do belo na

arte. Em detrimento dessa percepção idealista de arte que privilegia a visão, a estética crociana

ignora qualquer reflexão em torno do aspecto fabril da obra, voltando-se apenas para seu

estado macro, isto é, sua concretude acabada. Ao se opor a essa abordagem, Luigi Pareyson

inaugura a estética da arte como forma, concebendo-a como “organismo, fisicidade formada,

dotada de vida autônoma, harmonicamente dimensionada e regida por leis próprias; e a um

conceito de expressão, opõe o de produção, acção [sic.] formante” (ECO, 1972, p.14), no

entanto, não deixa de considerar a arte também como um meio de expressão, se ocupando em

apresentar três definições tradicionais que compõem a sua natureza, são elas: a arte enquanto

fazer, enquanto conhecer e exprimir. Apresentarei essas definições com maiores detalhes no

capítulo seguinte.

Retomando ao aspecto impessoal e sensível determinante na estética crociana, a

teoria estética da formatividade se opõe precisamente por seu caráter pessoalista e dialógico.

O conceito de pessoalidade que remete o autor e a dialogicidade que aqui proponho, dizem

respeito à essência do operar humano que se caracteriza por sua singularidade em confluência

com seu constante desenvolvimento social e cultural. Para exemplificar essa concepção

pessoalista na estética pareysoniana, abaixo nas palavras do próprio autor destaco a seguinte

afirmação:

Na pessoa se podem encontrar dois aspectos: a totalidade e o

desenvolvimento. Por um lado, com efeito, a pessoa é, cada um de seus

instantes, uma totalidade infinita e definida, fixa em uma forma

singularíssima e inconfundível dotada de uma validade concluída e

reconhecível; e, por outro, é um variar contínuo, aberto à possibilidade de

contestações e reelaborações, de revisões e enriquecimentos, de repetições de

velhos motivos e novos atos. De um lado a pessoa é a obra que eu faço de

mim mesmo, concluída e definida e a cada instante, e de outro, é a obra de

desenvolvimento, aberta e exigindo sempre novos atos e novos

desenvolvimentos (PAREYSON, 1993, p.176[itálico meu]).

Page 31: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

15

Discorrerei sobre o conceito de pessoalidade pareysoniano mais adiante, mas, por

hora, é importante compreender que, no bojo desse conceito há de se considerar os fenômenos

sociais que substanciam o fazer daquele que produz a obra, pois de acordo com Luigi

Pareyson,

A obra de arte tem como conteúdo a pessoa do artista, não no sentido de

tomá-la como seu objeto próprio, fazendo dela o seu “tema” ou assunto ou

argumento, mas no sentido de que o “modo” como esta foi tomada é o modo

próprio de quem tem aquela determinada e irrepetível espiritualidade: entre a

espiritualidade do artista e seu modo de formar existe um vínculo tão estreito

e uma correspondência tão precisa, que um dos dois termos não pode

substituir sem o outro, e variar um significa necessariamente variar também o

outro (PAREYSON, 1993, p.31).

Em oposição aos parâmetros crocianos, Pareyson difunde uma filosofia voltada para

o fazer e ressalta dentre vários outros problemas deste aventuroso percurso inventivo a

atividade do sujeito dotado de possibilidades imaginativas e criativas, responsáveis pelo fôlego

do ato de criar, enfatizando, pois, que a pessoalidade na atividade artística não pode ser

ignorada, primeiro porque o caráter pessoalista “é inerente a toda atividade humana em geral”

(PAREYSON, 2001, p.106) e em segundo, porque:

se refere à arte como atividade formativa, isto é, inventiva, original, criadora

e consiste numa presença, ao mesmo tempo tríplice e única, da pessoa na

arte: como energia formante, como modo de formar, como obra formada.

Colocada sob o signo da arte, a pessoa se torna vontade e iniciativa de arte,

assume inteiramente uma direção artística, traz, de per si, uma vocação

formal, torna-se uma carga de energia formante (PAREYSON, 1997,

p.107[itálico do autor]).

Considerados sob a perspectiva de uma estética especulativa e reconhecedora do fazer

artístico, a filosofia pareysoniana lida com o conceito de formatividade também como um

fenômeno presente em toda operosidade humana, para tanto, postula cuidadosamente as

diferenças que caracterizam o fazer artístico de um fazer típico do cotidiano. Umberto Eco em

sua obra “A definição de arte”, reflete sobre a estética da formatividade pareysoniana

Page 32: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

16

descrevendo de maneira objetiva o aspecto essencial que difere a formatividade artística de

qualquer outra atividade “comum”. Vejamos nas palavras do autor:

Dada pois, a presença conjunta de actividades [sic passim] na pessoa que age

inteiramente, o que distingue a arte das outras iniciativas pessoais é o facto

[sic] de naquela todas as actividades da pessoa terem uma intenção

puramente formativa: “Na arte, esta formatividade, que investe toda a vida

espiritual, e torna possível todas as outras actividades específicas, especifica-

se por sua vez, acentua-se numa preponderância que faz depender de si todas

as outras actividades, apresenta uma tendência autônoma... Na arte, a pessoa

forma simplesmente por formar, e pensa e age para formar e poder formar”

(ECO, 1972, p.16, aspas do autor).

Diante da reflexão trazida pelo autor, na arte todo o processo de elaboração constitui-

se como intento de puro êxito; é no diálogo com a matéria que tanto autor como o intérprete

interagem com as leis ditadas por ela e que nascem conforme as necessidades reclamadas por

aqueles que a confrontam, portanto, é na implícita dialogicidade desse processo inventivo que

a formatividade se define num tal fazer que, enquanto faz inventa o modo de fazer. Essa

afirmação, diga-se de passagem, sintetiza a presente teoria estética. Ela também nos convida a

refletir sobre o fazer que se faz no próprio ato do fazer em diferentes situações da vida, por

essa razão, tomo-a como um pensamento estético-educativo passível de ser revisitado no

campo da educação musical, pois conceber as práticas educativas também como

acontecimentos formativos “é eleger o fluxo do movimento como inspiração, rejeitando a

permanência do mesmo e a fixidez mórbida do passado” (GERALDI, 2010, p.100).

Em se tratando da operosidade formativa nas produções do cotidiano (utensílios e

artefatos), é importante ressaltar que ela também se caracteriza por esse tal fazer que se

reinventa fazendo, porém se constitui como trabalho realizado intencionalmente para cumprir

uma função e o resultado já é sabido de antemão. Assim sendo, é possível afirmar que uma

produção não-artística é aquela cujo intento formativo é suprimido. De acordo com Pareyson,

“a arte propriamente dita é a especificação da formatividade, exercida, não mais tendo em

vista outros fins, mas por si mesma” (1997 p.32-33). Propus-me a destacar no gráfico a seguir

algumas considerações relevantes ao leitor quanto a essa problemática. Ao refletir sobre os

Page 33: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

17

aspectos que se assemelham enquanto produção artística e produção do cotidiano, Pareyson

apresenta as seguintes observações:

De acordo com Pareyso

No processo artístico...

fazemos com arte;

há formatividade;

nada se sabe, e só resta esperar o resultado atuando e fazendo (PAREYSON, 1993, p.63).

a obra satisfaz uma legalidade e a uma finalidade instaurada por ela mesma.

o modo como se deve fazer a obra é apenas o único modo em que ela mesma, que tem que ser inventada e ao mesmo tempo feita, se deixe fazer (PAREYSON, 1993, p.67).

Nas demais operosidades humanas...

também podemos realizar com arte;

também pode haver formatividade;

o resultado obtido é sabido de antemão, conforme certas leis e certos fins;

obra satisfaz a uma legalidade e a uma finalidade imposta pela atividade que nela se concretiza.

o único modo em que a obra se deixa fazer é precisamente aquele em que, conforme as leis da atividade exercida, se deve fazê-la (PAREYSON, 1993, p.67).

Page 34: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

18

Vejamos outro excerto a esse respeito:

Entre a arte assim especificada e a arte que se estende a toda atividade do

homem não há um abismo qualitativo ou uma solução de continuidade: há

antes, uma passagem gradual que, dos primeiros esboços oferecidos por

aquele tanto de inventividade que é exigido pela atividade mais regulada e

uniforme, alcança as mais altas e desinteressadas realizações da arte [...] A

arte, verdadeira e propriamente dita, não teria mais lugar se toda a

operosidade humana não tivesse já um caráter “artístico”, que ela prolonga,

aprimora e exalta (PAREYSON, 1997, p.33).

Considerando os aspectos que ao mesmo tempo distinguem e compõem a arte

especificada e a produção artística nas demais atividades humanas, conforme elucida o autor,

lanço minhas observações filosóficas para também refletir sobre a própria formatividade como

um instrumento educativo e conscientizador dos problemas estéticos presentes nas práticas

musicais, fazendo uso também desta observação para instaurar um olhar atento às

possibilidades inventivas do humano para além da arte.

O ato operativo de cada ser humano resulta em diversos tipos de ações e cada uma

dessas ações, abstratas ou concretas, traz consigo marcas que desvelam por alguns instantes o

auditório social do sujeito; por alguns instantes porque o viver de cada um pressupõe um

contínuo e inacabável processo de formação, até que este se finde quando o fôlego da vida é

esvaído, mas enquanto há fôlego, há processo de criação, há formatividade e novas formas de

produção; sua capacidade criadora é o que nutre sua condição histórica e social. De acordo

com o autor:

O operar da pessoa é plasmador de formas. Com efeito, se a pessoa é uma

totalidade infinita mas definida, cada ato seu tende por sua vez a concluir-se

em obras por sua vez também definidas e acabadas, que vivem vida própria e

por sua própria conta podem desenvolver-se e gerar novos desenvolvimentos

e suscitar novos avanços [...] Justamente por ser a pessoa autor-obra, e

portanto forma, justamente por isso as obras que são o resultado do seu

operar são por sua vez formas, acabadas, singulares, exemplares

(PAREYSON, 1993, p.177).

Page 35: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

19

Diante disso, é possível afirmar que, tanto na dimensão artística como nas demais

operosidades do cotidiano, o processo de formatividade consiste numa conditio perene do

sujeito que vive, e é por essa razão que proponho um olhar cuidadoso ao fazer dos nossos

alunos que todos os dias produzem mediante o filtro das nossas lentes como educadores

musicais.

Ao examinar as possibilidades do uso da teoria estética da formatividade como

instrumento filosófico investigativo da produção e invenção artística realizada por jovens e

crianças em diferentes espaços educativos, deparei-me com a necessidade de uma perspectiva

científica histórico-social que pudesse amparar a presente abordagem estética, considerando a

complexa rede historicista que compõe o auditório social de todos aqueles que vivenciam uma

experiência estética, cuja produção emerge de suas bagagens simbólicas. Assim sendo, em se

tratando de uma proposta teórica de cunho fenomenológico tomarei cuidado para não incorrer

numa reflexão teórica apressada e eclética, reservando novos diálogos em torno dessa

abordagem para uma próxima etapa acadêmica, de modo a complementar as reflexões

pareysonianas a outras fontes teóricas de cunho histórico-social; por hora, as considerações

que forem levantadas nesta dissertação e que necessitem de uma epistemologia do ser

enquanto indivíduo social serão mediadas pelas próprias reflexões do autor, entre outros

teóricos cujas propostas apresentem diálogos semelhantes4.

De acordo com a experiência estética vivenciada por Luigi Pareyson a formatividade

consiste num “tal fazer que, enquanto faz, inventa o por fazer e o modo de fazer”

(PAREYSON, 1997, p.26). Segundo a ótica pareysoniana o que alimenta o processo formativo

inventivo e produtivo provém da energia formante do sujeito que a realiza, isto é, da sua

4Aos olhares mais apressados, ou mesmo descuidados, a conexão dessa abordagem aos estudos de cunho social

poderia ser questionada devido à divergência histórico-filosófica que há em torno dos extensos estudos entre

estética e sociologia, porém é importante refletir (mesmo que rapidamente) que a segmentação categórica

comumente que se faz entre arte (cultura) e vida, conteúdo e forma, significação e tema, elaboração teórica e

materialidade concreta, ser no mundo e categorização do mundo, repetibilidade e irrepetibilidade não são

possíveis quando consideramos o autor ou todo aquele que se presta à produção ou à invenção como indivíduo

socialmente constituído. Essas deduções poderão ser aprofundadas e explicitadas num período mais longo de

minha pesquisa, podendo resultar na ampliação desta proposta educacional que tem por objetivo levantar novas

reflexões estéticas para o campo de educação musical.

Page 36: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

20

possibilidade de criar e imaginar, portanto, a presente teoria estética valoriza e reconhece não

só as marcas pessoais que delineiam qualquer tipo de produção, mas a inteireza socialmente

humana implícita na pessoalidade daquele que faz, tanto no processo inventivo quanto

executivo ou apreciativo, pois “este insuprimível caráter pessoal da arte prolonga-se ainda na

característica comunicabilidade da forma, que é universal somente enquanto pessoal e vice-

versa, porque fala a todos, mas fala a cada um no seu modo” (PAREYSON, 1997, p.108);

assim sendo, é possível afirmar que o conceito de pessoalidade trazido pelo esteta pode ser

compreendido aqui como tudo aquilo que consubstancia a natureza vivente daquele que cria

(ou daquele que executa ou aprecia) em sua relação face ao processo inventivo enquanto ser

social. Verifica-se em seus escritos uma preocupação latente do caráter histórico-social que a

estética não deve ignorar, pois, “Eis aí o mistério da arte: a obra de arte se faz por si mesma, e

no entanto é o artista quem a faz” (PAREYSON, 1993, p.78). Diante dessa afirmação, não se

pode descartar experiências outrora vivenciadas socialmente pelo indivíduo em suas

considerações estéticas, pois são esses acontecimentos histórico-sociais que nutrem e

abastecem a invenção e o percurso formativo daquele que faz. De acordo com Eco,

Só uma filosofia da pessoa está à altura de resolver o problema da unidade e

diversidade das actividades [sic passim], pois só ela explica, com base na

indivisibilidade e na iniciativa da pessoa, por que razão todas as operações

solicitam sempre conjuntamente a especificação de uma actividade e a

concentração de todas as outras: se acção [sic passim] fosse do espírito

absoluto, não existiriam diferenças entre as actividades e todas estariam

reduzidas a uma só (PAREYSON, apud ECO, 1972, p.15).

Outro conceito que possibilita uma interpretação de cunho mais sociológico diz

respeito à unitotalidade da pessoa, conceito esse que se volta para a singularidade humana,

por assim dizer, responsável também pelo resultado ímpar da produção artística.

A necessidade da concentração de todas as atividades em uma operação

específica é garantida pela unitotalidade da pessoa, e esta, como autora da

própria operação, coloca-se nela por inteiro, com todas as suas possibilidades

e atitudes próprias. Só uma filosofia da pessoa tem condições para resolver o

problema da unidade e distinção das atividades, por explicar, com base na

Page 37: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

21

indivisibilidade e na iniciativa da pessoa, como é que toda operação exige

sempre simultaneamente a especificação de uma atividade e a concentração

de todas as outras. Se o operar fosse do espírito absoluto, não haveria motivo

para distinção entre as atividades, e todas se reduziriam a uma (PAREYSON,

1993, p.24[itálico meu]).

Em continuidade às reflexões que foram tecidas em torno das considerações sociais

imersas na filosofia pareysoniana, em sua obra "Teoria della formatività" (1993) o autor

declara, além da necessidade de uma estética voltada para a invenção da obra de arte, que sua

teoria não toma como parâmetro uma “definição de arte considerada abstratamente em si

mesma, mas um estudo do homem enquanto autor da arte e no ato de fazer arte” (PAREYSON,

1993, p.11). Faço uso de suas palavras na citação abaixo para ressaltar outra afirmação

significativa em torno dessa temática:

a arte pode ser, ela mesma fundadora de socialidade. Não esqueçamos aqui o

quanto a arte enobrece e eleva o ânimo e os costumes, a ponto de ser

considerada, na sua pura qualidade de arte, como condição indispensável de

civilização e fator importantíssimo da educação [...] Além disso, a arte tem

um caráter eminentemente comunicativo [...] Ainda, a arte realiza o mais

difícil conceito de socialidade, porque ela fala a todos, mas a cada um de seu

modo, e assim assegura uma universalidade através da individualidade e

institui uma comunidade através da singularidade [...] Que a arte é fundadora

de socialidade fica testemunhado pelo fato de que ela não pode passar sem o

público, não tanto no sentido de que dele dependa ou tire sua norma e

conselho, mas antes no sentido de que o prevê e o invoca, o suscita e o arrasta

(PAREYSON, 1997, p.122[itálico do autor]).

Humberto Eco em sua coletânea de ensaios intitulada “A definição de arte” é

responsável por tecer em seus primeiros escritos sobre estética, considerações reflexivas sobre

a filosofia pareysoniana que atinam para uma abertura interpretativa mais sociológica do

fenômeno formativo. Observe:

Assim, aquele que se volta para esta estética para nela encontrar a descrição

dos processos de formação e a interpretação das formas no âmbito da

intersubjetividade humana, encontra-se (por assim dizer) livre do

compromisso metafísico, que o autor assume pessoalmente a um nível

ulterior da sua investigação; e este facto [sic] explica a influência exercida

pela estética de Pareyson, inclusivamente naqueles que apenas estavam

Page 38: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

22

interessados numa teoria das formas vistas como produtos de cultura. Quer

dizer: esta estética que, nos seus limites, põe por conta própria o problema da

fundamentação “natural” de uma experiência “cultural”, funciona também

como guia para quem quiser mover-se simplesmente ao nível das relações

culturais (ECO, 1972, p.27).

O autor ressalta também que,

Perante as mais actualizadas [sic] tendências sociológicas (que consideram o

dado sociológico não como já como categoria de juízo estético, mas como

antecedente útil à análise da obra, inadequado para fundamentar o valor

estético, que é valor da organicidade), a doutrina pareysoniana da

interpretação permite ao crítico que procure concentrar a sua atenção nos

valores socioambientais da obra uma abordagem do âmbito histórico

situacional através da personalidade do formador (e, portanto, através dos

valores orgânicos da obra): e servir-se por outro lado, dos dados sociológicos

para explicar razões, características e resultados da obra, observando sempre

o modo como os dados preliminares se forem tornando constitutivos da obra

através da acção [sic] formativa que os transformou em seus aspectos

internos (ECO, 1972, p.30).

Embora Pareyson apresente a possibilidade de sua teoria ser lida a partir de outras

áreas do conhecimento, o próprio autor salienta que a essência dialógica aberta e especulativa

de sua teoria deve ser conduzida sempre por uma determinada experiência seguida da reflexão

sobre o fenômeno, por essa razão, me envolvi com os estudos filosóficos de Pareyson

considerando tanto a minha experiência artística, quanto a dos meus alunos como objeto de

estudo e de verificação dessa abordagem estético-educativa. Segundo as considerações de Eco:

nesta oscilação contínua entre uma fenomenologia da formatividade humana

e a fundação metafísica desta mesma actividade [sic], o pensamento estético

de Pareyson permite ao leitor apropriações pessoais que não o traem mesmo

quando lhe revelam um único ponto de vista: o que equivale a dizer que

também a doutrina estética aqui proposta é uma forma que se apresenta como

ponto de partida de interpretações complementares e exaustivas ao mesmo

tempo (ECO, 1972,1976, p.27).

Assim sendo, por meio dos relatos de experiência ilustrarei face ao processo de

invenção e produção artística dos alunos, as vicissitudes imagéticas e criadoras do sujeito no

Page 39: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

23

diálogo com a matéria, bem como no diálogo que se prolonga enquanto sujeito que se propõe

ao exercício interpretativo da obra.

As observações pareysonianas sobre a produção da obra enquanto matéria formante

pontuam aspectos operativos que vão desde o insight5 até o complexo campo da interpretação.

A experiência estética obtida pelo autor ao lado de artistas durante anos o levou a refletir sobre

o complexo e singular processo de inventividade que dá origem à obra de arte, através das

mãos de sujeitos dotados de um viver único e repleto de possibilidades criadoras.

Malgrado as constantes apropriações da estética pareysoniana aplicadas ao âmbito de

todas as artes, inclusive da música, principalmente devido à sua originalidade e aplicabilidade

como teoria estética, a minha proposta se concentra na realização de uma apropriação das

reflexões estético-filosóficas intrínsecas ao conceito de formatividade, de modo que, a partir

das distinções e conceitos filosóficos elaborados por Pareyson, se possa propor um olhar mais

cuidadoso e atento voltado para o percurso inventivo da composição, execução e interpretação

que diariamente realizam os nossos alunos como prática educativa. Em outras palavras, trata-

se de uma busca para, a partir da teoria da formatividade, o lançamento de reflexões cujo

alcance se estenda da obra ao sujeito, ou mesmo da obra ao universo circundante da obra, o

que inclui o processo de ensino da arte, mais especificamente da música.

Segundo está previsto na teoria pareysoniana a essência do processo de criação é

composta pela união inseparável entre produção e invenção; é nesse ínterim que precede a

obra acabada que se encontra o fenômeno da formatividade, ou seja, “‘formar’ significa aqui

‘fazer’ inventando ao mesmo tempo ‘o modo de fazer’, ou seja, ‘realizar’ só procedendo por

ensaio em direção ao resultado e produzindo deste modo obras que são ‘formas’”

(PAREYSON, 1993, p.12). Esse tal fazer que se desenvolve fazendo a cada momento do

fazer, se estende a toda operosidade humana; assim sendo, é possível afirmar que além de

tornar visíveis as nuances da produção e da invenção artística tanto na composição como na

execução e na interpretação, o conceito de formatividade reflete também a inexaurível

5 De acordo com a doutrina pareysoniana, o insight se constitui “antes do advento da forma, algo existe que a

anuncia e faz pressagiar, que tende a ela e cria a expectativa em torno dela, que dirige e orienta o artista em sua

produção. E esse é o ‘insight’ no qual a forma, que também só existirá quando o processo terminar, já atua e age

guiando aquele mesmo processo de onde emergirá na sua totalidade” (PAREYSON, 1993, p.73).

Page 40: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

24

capacidade do sujeito de transformar; uma conditio daquele que produz, resultando na

singularidade da atividade artística. De acordo com Pareyson, “a mobilidade indefinida e a

histórica desenvolvibilidade do homem não passam de plasticidade, que tende a plasmar-se em

formas e a plasmar formas: mobilidade que é esforço de formação, ímpeto de plasmação, elã

de figuração” (PAREYSON, 1993, p.177).

A partir da citação acima verifica-se que a estética pareysoniana, especificamente, a

teoria da formatividade aqui proposta, é passível de ser compreendida e associada ao contexto

de práticas educativas, entre educadores do campo das artes; afinal, esse é o espaço onde nós

educadores nos prestamos atentos às realizações didáticas e ao desenvolvimento do humano.

Através da formatividade é possível que o educador observe, além das experiências estéticas

de seus alunos, experiências de diferentes naturezas vivenciadas outrora pelos mesmos.

O mecanismo que possibilita a criação e que orienta todo o percurso da inventividade

artística se configura como uma atividade humanamente possível tanto entre adultos como

crianças. Em vista disso, penso que, o processo investigativo que deu origem a teoria da

formatividade, também possa ser observado entre jovens e crianças, pois o ato de criar não

existe somente entre os grandes mestres da arte ou somente entre adultos, mas em diferentes

espaços educativos composto por jovens ou crianças.

Isto posto, postulo que a consciência do processo formativo - enquanto processo

presente em toda a operosidade humana - além de proporcionar aos profissionais no campo

das artes uma compreensão mais atenta e zelosa às marcas históricas que se desvelam no fazer

artístico dos alunos e de seu próprio, se prestam também a uma observação educativa

integrada aos fenômenos de invenção e de construção da própria vida.

Processos metodológicos

O processo metodológico desta pesquisa implica numa observação filosófica em

torno dos processos de produção e invenção artística. A atividade de observação se deu

mediante a minha prática e atuação como educadora musical em diferentes contextos

educativos. É importante ressaltar que os contextos educativos de onde trago as reflexões não

Page 41: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

25

serão nomeados. As descrições físicas e estruturais de cada cenário se configuram apenas

como pano de fundo para as respectivas atividades que serão apresentadas ao leitor como

exemplo de uma abordagem estética de ensino.

Oriunda das experiências estéticas vivenciadas por Luigi Pareyson a teoria da

formatividade nasceu do seu contato direto com artistas em pleno ato criador. Essa

investigação foi decisiva para que o autor pudesse compreender o itinerário do processo

inventivo caracterizado por um fazer que se reinventa a cada instante em que se faz, por ele

assim definido.

O percurso metodológico dessas observações estéticas baseia-se na própria

abordagem fenomenológica e especulativa do autor, considerando, pois que:

uma estética, tratada a nível puramente especulativo, pretende, antes de mais,

abrir uma possibilidade de justificação para cada tipo de abordagem crítica,

através de uma fenomenologia das estruturas formais e da definição do seu

campo de possibilidades (ECO, 1972, p.32).

Sob a fundamentação dos pressupostos filosóficos acima, minhas considerações

estéticas foram verificadas e extraídas a partir de atividades educacionais que venho

desenvolvendo como educadora musical em diferentes espaços do ensino de música. A coleta

de dados inclui materiais resultantes de produção literária, composição musical, ferramentas

didáticas e reflexões dos próprios alunos. Algumas atividades que contemplam produções

didáticas foram publicadas anteriormente aos escritos desta dissertação com o objetivo não só

da publicação em si, mas também com o intuito de divulgação da presente pesquisa.

Os apontamentos de cada atividade, bem como a catalogação e preservação do

material foram realizados por mim com o apoio e orientação de outros parceiros de trabalho.

Para compor os cenários ilustrativos desta pesquisa selecionei apenas quatro relatos de

experiência que julguei serem fortes exemplos de uma proposta de educação estética. Acredito

que o processo de investigação e observação in loco imbuído das considerações pareysonianas

somados à minha experiência como educadora e musicista, proporcionaram às minhas

indagações e problemáticas acadêmicas não resultados estanques, mas uma maior capacidade

especulativa acerca dos problemas que circundam o processo inventivo e realizativo do fazer

Page 42: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

26

enquanto atividade que se presta a serviço da educação. Penso também que, a todo educador

que lida com o ensino de arte seja possível a apropriação dessa mesma premissa estética como

ferramenta investigativa do processo de invenção e produção que diariamente vivencia em sala

de aula com seus alunos.

Como fundamentação metodológica desta pesquisa, apropriar-me-ei dos conceitos

filosóficos expressivo e revelativo delineados pelo próprio autor em sua obra “Verdade e

interpretação” (2005) que contempla uma coletânea de ensaios escritos periodicamente em

atas entre 1965 e 1970. Conforme os referidos conceitos como ferramenta metodológica e

investigativa deste trabalho, considerei os aspectos descritivos e normativos de espaço e lugar

como elementos históricos e de contextualização, configurando-se como um fator expressivo e

temporal de cada evento. O conceito revelativo sustenta um modus operandi e investigativo

frente às considerações e interpretações que colhi mediante os acontecimentos, ou seja, um

procedimento especulativo imerso na dinâmica e inconclusa rede das relações sociais. É

importante frisar que estes dois modelos de observação, segundo Pareyson, “não se trata de

dois métodos exclusivos que se disputam toda a história da filosofia, mas de dois métodos

coexistentes que têm a mesma tarefa de dividi-la entre si” (PAREYSON, 2005, p.8). A

abordagem metodológica de caráter especulativo deste trabalho compartilha da

inseparabilidade entre revelativo e expressivo, pois “o aspecto revelativo não pode passar sem

o expressivo histórico, porque da verdade não se dá manifestação objetiva, mas trata-se

sempre de colhê-la dentro de uma perspectiva histórica, isto é, de uma interpretação pessoal”

(PAREYSON, 2005, p.12).

Embora os relatos de experiência vivenciados se constituam apenas como fragmentos

ilustrativos de uma proposta de educação estética, almejo que os elementos históricos possam

não embaçar as lentes do leitor para o mais importante deste trabalho que consiste nos

fenômenos revelativos, fazendo menção às observações inventivas e realizativas do processo

artístico em diferentes contextos de aprendizagem; que tais considerações historicistas possam

também ser compreendidas apenas como um cenário para a apresentação dos fenômenos

revelativos do humano face ao processo de invenção, pois conforme apresenta Pareyson,

Page 43: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

27

A situação histórica, longe de ser um obstáculo para o conhecimento da

verdade, como se pudesse deformá-la, historicizando-a e multiplicando-a, é o

único veículo para ela, conquanto se saiba recuperar a sua originária abertura

ontológica (PAREYSON, 2005, p.10).

Creio que pesquisas em educação musical cujo objeto de análise apresente aspectos

práticos (pesquisas de campo) e teóricos, não sejam possíveis sem as duas perspectivas, pois

“o pensamento revelativo sempre é, ao mesmo tempo, expressivo, porque a verdade só se

oferece no interior de cada perspectiva singular” (PAREYSON, 2005, p.10). Considerando,

pois, a prática educativa como um fenômeno socialmente expressivo e revelativo, através dos

relatos destacarei situações que possam revelar a individualidade de cada pensamento e seus

desdobramentos na dialogicidade do trabalho coletivo, pois se “por um lado todos dizem a

mesma coisa”, por outro, “cada um diz uma única coisa [...] do modo que solum é seu”

(PAREYSON, 2005, p.11).

É importante ressaltar também que, embora a pesquisa acadêmico-científica se

proponha a realizar estudos imparciais, qualquer observação especulativa traz à tona as marcas

do olhar daquele que observa. De acordo com as reflexões levantadas por Eduardo Seincman

em sua obra “Estética da Comunicação Musical”,

Não existe neutralidade. Qualquer que seja nosso papel - observador,

analista, crítico, ouvinte, intérprete ou criador -, somos parte integrante do

fenômeno da comunicação musical. Debruçarmo-nos, pois, a posteriori,

sobre os acontecimentos é uma tentativa de trazer à luz um processo

comunicacional que já se deu, de fato, na experiência estética, é efetuar, no

campo da estética, o que Karl Popper, no campo da filosofia, chamou de

reflexão à segunda potência: refletir a reflexão, interpretar a interpretação,

através do que poderemos analiticamente com maior consciência ampliando

nossa capacidade de criar, de efetuar sinapses e de aprofundar nossos

horizontes (SEINCMAN, 2008, p.9).

Assim sendo, do ponto de vista histórico da minha trajetória como educadora

musical, concebo este trabalho como uma produção expressiva, no entanto, mediante as

reflexões estéticas que serão aqui apresentadas, espero que este possa também, apesar do filtro

das minhas lentes, se prestar como um trabalho revelativo a todos os leitores. Em outras

Page 44: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

28

palavras, considero esta dissertação como um trabalho aberto e ao mesmo tempo fechado.

Aberto por suas possibilidades interpretativas passíveis de gerar outras reflexões estéticas em

educação musical e fechado devido à pequena mostra de exemplos que substanciam a proposta

de estética e educação específica deste trabalho.

Através dos elementos históricos trazidos em cada relato, bem como a “verdade”

revelativa que trago em cada uma das minhas reflexões, compartilho com os leitores mostras

dessa abordagem prático-educativa pautada pelo viés estético, pois nas palavras de Luigi

Pareyson “a verdade reside mais como fonte e origem do que como objeto de descoberta”

(2005, p.11).

A partir da obra “Teoria della formatività” de Luigi Pareyson que se constitui como

teoria central desta pesquisa, destacarei três categorias com o intuito de organizar os conceitos

e problemas de natureza estética que circundam o arcabouço filosófico do autor. As categorias

foram dispostas da seguinte maneira:

Cada uma delas é composta por diferentes problemas filosóficos abstratos que serão

tomados no constructo dos capítulos. Apesar da organização categórica que proponho os

problemas estéticos dialogarão com os relatos de forma especulativa e não sistemática.

Antes de desenvolver as categorias ao longo do texto, no capítulo primeiro

apresentarei aos leitores que pela primeira vez se deparam com filosofia pareysoniana, uma

prévia dos conceitos mais relevantes para a compreensão dessa abordagem estética; são eles: o

caráter especulativo da estética, distinção entre poética, estética e crítica e o problema de

estetismo em suas diversas formas. No decorrer dos capítulos subsequentes retomarei os

O processo de invenção e

produção da obra

A obra de arte enquanto forma

Execução e leitura da obra

Page 45: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

29

respectivos conceitos juntamente com os problemas estéticos destacados nos itens da primeira,

segunda e terceira categoria.

Incutida no decorrer dos relatos a primeira categoria contempla o estágio da obra

enquanto matéria formante, isto é, o processo inventivo, assim sendo, destacarei os seguintes

problemas estéticos: o insight como passo inicial da invenção; o diálogo entre autor e matéria,

pontuando os limites da fisicidade do material, bem como o empenho do autor ao tentar dar

forma ao objeto, cujas leis próprias em consonância com o intento humano resultam na

formatividade; o aventuroso ato de tentar, corrigir, exercitar, experimentar em busca do puro

êxito de formar por formar; as relações entre os problemas e limites técnicos e os conteúdos

espirituais que se desvelam nesse percurso; a complexa rede de habilidades herdadas

socialmente que se configuram no discurso musical; o artista versus a biografia, de um lado a

dinâmica diacrônica da vida e de outro uma abordagem sincrônica do artista.

A segunda categoria engloba problemas que deflagram a obra enquanto forma, ou

seja, objeto acabado. Nessa etapa da atividade artística apresento problemas que dizem

respeito às escolas, os estilos, os gêneros, a tradição e a possibilidade da história da arte; a

pessoalidade do artista tal qual se revela na “forma” e que compreendemos por estilo; a

possibilidade da aprendizagem, das normas práticas e da imitação, e seus resultados positivos

e negativos; o confronto entre os problemas dinâmicos da própria realidade versus

historicidade da obra de arte; a divisão e a distinção das artes; a possibilidade das traduções,

transcrições, reduções, reproduções; a multiplicidade das poéticas e dos programas de arte; a

formação do artista através do ensino da técnica, a orientação através das regras e a imitação

de modelos.

A terceira categoria diz respeito ao caráter social e comunicativo da arte. Através dos

relatos apresentarei as possibilidades interpretativas do trabalho artístico; a relação entre

interpretação pessoal e o juízo quanto ao valor artístico; o problema da crítica e da igual

admissibilidade de qualquer método crítico; suas relações com a natureza e com as diversas

atividades do homem, como as relações entre arte e moral; o interesse profundamente humano

suscitado pela arte; a “fidelidade” ou “liberdade” da execução; a execução pública da obra de

arte.

Page 46: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

30

Nos gráficos a seguir pode-se conferir de maneira esquemática a temática das três

categorias, bem como os problemas estéticos que abarcam cada uma delas.

Processo de invenção e produção

O complexo e aventuroso itinerário através do qual o

artista, tentando e corrigindo e refazendo,

produz a obra: inspiração, o exercício e a composição.

O diálogo com a matéria e o domínio sobre ela

conseguido justamente através da obediência que ela

reclama.

O processo artístico tal como se desenrola desde o “tema” ou “assunto” até ao

“esboço” e à obra terminada.

Artista versus biografia. Uma relação diacrônica e

sincrônica entre a dinâmica da vida e os fatos históricos.

A relação entre os

problemas técnicos e os conteúdos espirituais.

A formação do artista através do ensino da técnica, a orientação

através das regras e a imitação de modelos.

Page 47: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

31

A obra de arte enquanto

forma

O “mundo” do artista tal qual

se revela na “forma”.

A correspondência entre o estilo e a humanidade

histórica e pessoal que aí ganha existência artística e

histórica.

A própria possibilidade da aprendizagem, das normas

práticas e da imitação, e seus resultados positivos e

negativos.

As escolas, os estilos, os gêneros, a tradição, e a

possibilidade da história da arte.

A distinção entre poética e estética e a multiplicidade

das poéticas e dos programas de arte.

A possibilidade das traduções, transcrições, reduções,

reproduções.

Page 48: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

32

Execução e leitura da obra (interpretação)

O caráter social e comunicativo da arte.

Suas relações com a natureza e com as diversas atividades do

homem, como as relações entre arte e moral e entre arte e

filosofia.

O interesse profundamente humano suscitado pela arte.

A “fidelidade” ou “liberdade” da execução;

A possibilidade da interpretação da obra artística.

A execução pública da obra de arte.

A relação entre interpretação pessoal e o juízo quanto ao

valor artístico.

O problema da crítica e da igual admissibilidade de qualquer

método crítico; o caráter simultaneamente histórico e

especulativo da estética.

Page 49: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

33

As categorias especificadas nas páginas anteriores, bem como aspectos filosóficos

que as compõem, poderão ser observadas de forma concreta e não sistemática a partir dos

relatos de experiência apresentados como objeto de estudo deste trabalho.

Alguns dos relatos que serão abordados neste trabalho consistem em experiências

musicais publicadas outrora em anais de congressos de educação musical. Baseados em

atividades musicais em diferentes contextos educacionais os relatos trazem propostas voltadas

para um modelo de educação estética, pois conforme nos traz Nogueira em seu artigo “Arte e

Experiência Estética: o assombro aproximando crianças e adultos”,

O fato é que não apenas quando entramos em museu ou em uma sala de

concerto estamos em contato com obras de arte; nesses espaços, sem dúvida,

há uma intencionalidade, um desejo formal de se ter uma experiência estética

definida, no entanto, mais do que podemos perceber, estamos imersos em um

caldo cultural em que escolhas estéticas e artísticas se formam e nos formam

a todo momento (NOGUEIRA, 2013, p.120).

Por essa razão, considero cada um dos encontros que tenho com meus alunos como

momentos propícios aos assombros estéticos não só para mim como também para eles.

Devo ressaltar que os nomes que forem aqui mencionados serão fictícios e não haverá

imagem dos alunos ou qualquer de espaço institucional. As figuras que ilustram a abertura de

cada capítulo consistem em "presentes" que recebi dos meus alunos e a adoção desses

desenhos para compor esta dissertação é uma forma de agradecimento e reconhecimento.

O critério de seleção para os quatro cenários educativos foi definido mediante a

relevância do tema e dos materiais. Apropriar-me-ei desses registros para ilustrar os problemas

estético-filosóficos presentes na invenção e na produção artística em diferentes espaços de

aprendizagem, como também compartilhar um modelo prático-educativo pautado numa

abordagem estética.

Cada relato será apresentado como um cenário e a descrição detalhada do espaço

educativo, bem como do trabalho musical desenvolvido constará em cada um dos capítulos

separadamente.

As reflexões estéticas que lançarei a partir das experiências musicais descritas nesses

registros, não possuem o intento de firmar-se objetivamente numa proposta estanque ou numa

Page 50: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

34

abordagem única de estética, mas como uma leitura revelativa acerca dos fenômenos

educativos que circundam o processo inventivo em diferentes práticas do ensino artístico.

Page 51: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

35

Capítulo 1

Da Filosofia para a Educação Musical

Page 52: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

36

Page 53: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

37

1. Da Filosofia para a Educação Musical

Por fim, a arte pode ser, ela mesma, fundadora de socialidade. Não

esqueçamos aqui o quanto a arte enobrece e eleva o ânimo e os

costumes, a ponto de ser considerada, na sua pura qualidade de

arte, como condição indispensável de civilização e fator

importantíssimo da educação, porque, livre da feroz rede de

necessidades e dos interesses, dispõe o ânimo para o desinteresse,

para a contemplação, para o reconhecimento, para a atenção, e o

introduz nos altos cumes da vida espiritual (PAREYSON, 2001, p.122).

Embora minha graduação não tenha sido em filosofia, como educadora musical, fiz

uso da concepção estética do filósofo Luigi Pareyson devido à sua ampla reflexão acerca dos

problemas da arte enquanto processo formativo, e principalmente, por ser um tema que diz

respeito aos profissionais que lidam com atividades artísticas. A preocupação e o cuidado com

o trânsito entre as áreas do conhecimento devem ser considerados, mas penso que não deva ser

impedido. O compositor e pesquisador Lucas Galon em sua dissertação de mestrado intitulada

“Nacionalismo, neofolclorismo e neoclassicismo em Villa-Lobos: uma estética dos conceitos”

lida de forma dialética com amplos conceitos tanto do campo da música como da filosofia e

levanta essa problemática com a seguinte indagação:

E, na estética musical, em específico, há ainda outra questão que permanece

aberta: a condição de um músico leitor de filosofia pode ser julgada a priori

inferior àquela de um filósofo ouvinte de música? Em ambos os casos não

haveria sempre um lado mais amador e outro mais profissional em cada um?

(GALON, 2011, p.12 [itálico do autor]).

Embora consciente da minha condição apenas como estudiosa da filosofia

pareysoniana me recuso a abdicar de suas considerações estético-filosóficas enquanto

ferramentas passíveis de contribuições significativas para o campo da educação musical, assim

também como não abdicam tantos outros pesquisadores que se apropriaram e ainda se

apropriam do pensamento de grandes sociólogos, antropólogos ou mesmo autores da

psicologia para investigarem aspectos da área de educação (musical), sem necessariamente

precisarem ser sociólogos ou psicólogos de formação.

Page 54: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

38

No que consiste uma educação estética sob a ótica da formatividade? Vejamos: Uma

prática artística e educacional pautada segundo os princípios teóricos da formatividade

pareysoniana, pressupõe um trabalho artístico-pedagógico consciente e valorativo voltado para

o processo inventivo do nascimento do insight até o complexo campo de leitura da obra. A

conscientização dos problemas de ordem estética que permeiam o itinerário pelo qual percorre

os artistas (e também nossos alunos) em seu processo de invenção contribui para um modus

operandi mais humano e sintonizado com a vida. O viver é incerto e o processo artístico

enquanto dinâmica inventiva traz-nos considerações significativas e palpáveis desse evento

operantemente inconcluso. É importante que o educador esteja ciente de que uma proposta

educacional que tome como modelo estético-filosófico ferramentas especulativas como

mecanismo investigativo do processo inventivo acarrete na impossibilidade de qualquer tipo

de controle. Pareyson cita os filósofos Platão e Schelling com o objetivo de reforçar as agruras

do ofício filosófico. Vejamos:

Quando Platão exaltava a beleza do risco, aludia ao fato de que a filosofia

requer audácia e coragem; e é quando, em tempos mais recentes, recorda

Schelling: “Quem verdadeiramente quer filosofar, deve renunciar a toda

esperança, a todo desejo, a toda nostalgia, não deve querer nada nem saber

nada, sentir-se pobre e só, abandonar tudo para ganhar tudo” (PAREYSON,

2005, p.6).

O caminho da educação estética pode se tornar arriscado e perigoso se carecer de uma

orientação estético-filosófica; é preciso ter cautela de forma a não incorrer no risco de uma

proposta vazia e à crédito, pois o maior objetivo desta proposta reside no seu alcance

transcendente à própria arte. Nas palavras do autor Gabriel Perissé,

A arte educa na medida em que, atraindo nossa visão, encantando nossa

audição, agindo sobre nossa imaginação, dialoga com a nossa consciência.

Mais do que nos fazer reagir à melodia, à rima, à composição pictórica, às

cenas do filme, esses estímulos que nos chegam pela arte criam um espaço de

liberdade, de beleza, no qual nos sentimos convidados a agir criativamente

(PERISSÉ, 2009, p.36).

Page 55: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

39

Na medida em que os alunos reagem e dialogam com os fenômenos artísticos, na

medida em que descobrem que as dificuldades que lhe aparecem nesse percurso de criação

muitas vezes são da mesma natureza daquelas que um dia fizeram (e fazem) parte do trabalho

de grandes artistas e inventores, a atividade pedagógica toma fôlego mediante a compreensão

que se adquire enquanto atividade humana construída de labor e dedicação.

1.1 Estética pareysoniana: experiência artística e filosofia

Dizer que a prática filosófica ou estética seja um mérito reservado somente aos

estudiosos que dela se debruçam é um equívoco. A disciplina de estética é fruto dos mesmos

princípios que regem a experiência filosófica, assim sendo, se a filosofia pode ser considerada

um caminho possível para amadores, a experiência estética também pode ser creditada a todos

aqueles que dela souberem se apropriar. Para elucidar esse assunto faço uso dos escritos do

filósofo italiano Antonio Gramsci e do próprio Pareyson no intuito de mostrar que tanto a

filosofia como a estética são caminhos possíveis para todos aqueles que souberem conectar

experiência e reflexão sobre a mesma. Vejamos:

É preciso destruir o preconceito, muito difundido, de que a filosofia é algo

muito difícil pelo fato de ser a atividade intelectual própria de uma

determinada categoria de cientistas especializados ou de filósofos

profissionais e sistemáticos. É preciso, portanto, demonstrar preliminarmente

que todos os homens são “filósofos”, definindo os limites e as características

desta “filosofia espontânea”, peculiar a “todo o mundo”, isto é, da filosofia

que está contida: 1) na própria linguagem, que é um conjunto de noções e de

conceitos determinados e não, simplesmente, de palavras gramaticalmente

vazias de conteúdo; 2) no senso comum e no bom senso; 3) na religião

popular e, consequentemente, em todo sistema de crenças, superstições,

opiniões, modos de ver e de agir que se manifestam naquilo que geralmente

se conhece por “folclore” (GRAMSCI, 1999, p.93).

De acordo com Pareyson,

Page 56: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

40

Todos se encontram na estética, cada um trazendo, na tarefa comum, a

particular sensibilidade e competência que deriva de sua proveniência pessoal

e mentalidade. A estética torna-se assim um frutífero ponto de encontro, um

campo no qual têm direito de falar os artistas, os críticos, os amadores, os

historiadores, os psicólogos, os sociólogos, os técnicos, os pedagogos, os

filósofos, os metafísicos, com a condição de que todos prestem atenção ao

ponto em que experiência e filosofia se tocam, a experiência para estimular e

verificar a filosofia, e a filosofia para explicar e fundamentar a experiência

(PAREYSON, 1997, p.9-10).

O ponto comum entre filosofia e estética reside na experiência e na verificação

filosófica que consubstancia a experiência, diferindo apenas em seus objetos de estudos. A

estética, por exemplo, tem por objeto de estudo a reflexão em torno dos fenômenos da arte.

Assim sendo, desde que experiência e a reflexão sobre a própria coisa se tocam, ou seja, a

experiência para estimular e verificar a filosofia, e a filosofia para explicar e fundamentar a

experiência é possível afirmar que há experiência filosófica ou estética. Verifica-se então um

processo de inseparabilidade entre experiência e reflexão “e o círculo que entre ambas se

estabelece não é vicioso, mas extremamente fecundo, e condição essencial para a validade do

pensamento filosófico” (PAREYSON, 1993, p.10-11), o que caracteriza esses campos por sua

condição especulativa e aberta a novas considerações. Segundo Pareyson,

A estética se constitui por este duplo apelo ao caráter especulativo da

reflexão filosófica e ao seu vital contato com a experiência. Não é estética

uma reflexão que, não alimentada pela experiência da arte e do belo, se

reduza a mero jogo de palavras, nem aquela experiência de arte ou de beleza

que, não elaborada num plano especulativo, se limita a uma descrição

(PAREYSON, 1993, p.19).

De acordo com esse pensamento, é imprescindível ao educador musical que queira

trilhar seu trabalho pela ótica da estética pareysoniana adotar uma conduta mediada pela

especulação, pois a filosofia assim como a estética “só tem valor quando são o resultado de

uma reflexão sobre a experiência e somente se, quando nascidas precisamente no contato com

a experiência, conseguem fornecer esquemas para interpretá-la e critérios para avaliá-la”

(PAREYSON, 1993, p.10-11). Uma abordagem estético-educativa, segundo as considerações

aqui propostas requer do educador uma prática dialógica conduzida por questionamentos em

Page 57: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

41

torno de experiências que contemplem fenômenos artísticos concretos, para que desse contato

possa extrair juntamente com seus alunos diferentes considerações, pois a experiência estética

não reside em experiências unívocas. Para exemplificar melhor esse posicionamento relativo à

pluralidade da experiência estética, é possível tomar como mostra um excerto reflexivo em

torno do processo de interpretação (uma das etapas constituintes do processo de invenção)

que será apresentado cuidadosamente mais adiante; vejamos uma prévia desse assunto.

De fato, a interpretação é o encontro de uma pessoa com uma forma; e se

pensarmos que tanto a pessoa como a forma não são realidades simples, mas

não um infinito encerrado em algo de definido, teremos, de pronto, a ideia do

quanto é positiva a infinidade da interpretação, a ser considerada antes como

inexaurível riqueza do que como o reino da imprecisão e da arbitrariedade

(PAREYSON, 1997, p.225-226[itálico do autor]).

É importante frisar também que, diante dessa abordagem estética como proposta

reflexiva voltada para o trabalho de educação musical, não é possível considerar como

experiência estética práticas educativas artísticas que caiam em determinado círculo de

considerações viciosas. Nesse sentido, perante uma experiência artística coletiva, cabe ao

educador proporcionar um ambiente propício à especulação filosófica, lançando diferentes

questionamentos para que junto com seus alunos possa refletir sobre esse encontro com a arte.

Imbuídos dessa prática dialógica, professores e alunos podem extrair do objeto artístico

aspectos transcendentes ao próprio elemento coisal, por exemplo, tecer reflexões no âmbito do

sujeito que a produziu, pois reitero: o estudo dessa teoria não se trata de uma reflexão aplicada

à “metafísica da arte, mas uma análise da experiência estética: não uma definição da arte

considerada abstratamente em si mesma, mas um estudo do homem enquanto autor da obra e

no ato de fazer arte” (PAREYSON, 1993, p.11).

Em suma, a estética pareysoniana, pressupõe a priori, experiências artísticas somadas

a filosofias especulativas como verificação da própria experiência. Calcado numa experiência

filosófica que funda e verifica a prática do pensamento dos filósofos acerca de diversos

assuntos, o conceito de estética é compreendido pelo autor como um instrumento investigativo

e especulativo não só da produção, mas também da sua fruição. No entanto, para adentrar aos

Page 58: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

42

parâmetros que designam a referida filosofia é de fundamental importância compreender

também que, além da experiência ela necessita de um diálogo especulativo com a obra. A

apreciação estética de uma obra de arte, por exemplo, não quer dizer postular qualquer

impressão sobre ela, segundo o autor:

a experiência estética não quer dizer cair um círculo vicioso, pois a estética

parte da experiência integral e esta, se devidamente questionada, há de

mostrar, ela mesma, e destacar no seu imenso âmbito os aspectos ou as

regiões que têm um caráter estético artístico (PAREYSON, 1993, p.20).

Portanto, creio que essa abordagem possa ser não somente um caminho especulativo

e significativo para apreciar as nuances da invenção e da produção artística em diferentes

situações do ensino de música, mas também um mecanismo de investigação para compreender

as relações e aquisições simbólicas do humano enquanto produz, pois, de acordo com

Pareyson, na formatividade há de se considerar a “dinâmica da obra de arte no seu emergir de

um humus histórico, e nas suas ligações com outras em um contexto histórico do qual se pode,

certamente e com utilidade, traçar a linha” (PAREYSON, 1993, p.58). Para corroborar a

presente justificativa de cunho sociológico incutida nesta teoria, e que nos incita a olhar o

processo formativo pelo viés valorativo da atuação do sujeito ao dar forma à obra de arte

segundo suas potencialidades humanas, apresento a seguinte reflexão de Umberto Eco:

de acordo com a estética da formatividade, o artista, formando, inventa

efectivamente [sic] leis e ritmos totalmente novos, mas esta novidade não

surge do nada, surge, como uma livre resolução de um conjunto de sugestões,

que a tradição cultural e o mundo físico propuseram ao artista sob a forma

inicial de resistência e passividade codificada (1972, p.18).

Eduardo Seincman em suas reflexões sobre estética chama também a atenção para a

experiência enquanto atividade capaz de desvelar o auditório social do sujeito.

Toda e qualquer experiência estética traz à tona um arsenal cultural,

simbólico, histórico sem o qual ela não seria possível. Ela é, portanto, um

aglutinador de sentidos que se encontram dispersos ou em repouso à espera

de um gatilho (SEINCMAN, 2008, p.8)

Page 59: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

43

Tendo como perspectiva a experiência estética como recurso reflexivo e investigativo

do humano para além da atividade artística, verifica-se a importância de um modelo estético-

educativo voltado para práticas educacionais em música.

1.2 A arte como fazer, como conhecer e como exprimir. Considerações de

uma proposta estético-educativa

O intuito deste capítulo é apresentar ao leitor que entra em contato pela primeira vez

com a estética de Luigi Pareyson as três definições tradicionais de arte elaboradas pelo

filósofo. No capítulo II de sua obra “Os problemas da estética”, Pareyson se dedica à reflexão

das formas mais comuns que foram atribuídas à arte ao longo da história, são elas: a arte como

um fazer, ora como um conhecer e ora como um exprimir. Embora a afirmação de uma ou de

outra definição atribuída à arte possa ter tido um peso diferenciado dependendo da época ou

de qualquer obra posta em questão, o autor ressalta que essas “diversas concepções ora se

contrapõem e se excluem umas às outras, ora, pelo contrário, aliam-se e se combinam de

várias maneiras. Mas permanecem, em definitivo, as três principais definições da arte”

(PAREYSON, 1997, p.21). Ao invés de deter sua concepção sobre arte em torno de uma ou

outra dessas definições, o filósofo incorpora ao campo da estética a ideia de arte enquanto

forma e o processo artístico como formatividade.

Assim como proponho por meio deste trabalho um olhar estético-educativo sob a

ótica da formatividade pareysoniana, penso também que o conhecimento dessas três definições

pode contribuir de maneira significativa para o trabalho do educador musical6. É nesse

exercício de reconhecimento da arte ora como um fazer, como um conhecer ou exprimir que

as bases críticas e reflexivas dos alunos em torno do processo artístico aos poucos vão se

sedimentando.

Pareyson remete ao período da Antiguidade a atribuição valorativa da arte como um

fazer onde seu “aspecto executivo, fabril, manual” acentuou-se mediante a pouca teorização

6 Meu trabalho de conclusão de curso como bacharel em música pela Universidade de São Paulo teve como tema

central essa temática em consonância com a proposta triangular da autora Ana Mae Barbosa trazendo o título

“Proposta triangular: uma abordagem aplicada ao ensino de violino”.

Page 60: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

44

entre a arte específica e a produção técnica do artesão (PAREYSON, 1997, p.21). Em

consonância com as definições apresentadas por Pareyson, o escritor Alfredo Bosi discorre de

maneira bastante específica a respeito dessas três concepções artísticas em sua obra

“Reflexões sobre arte”. No primeiro capítulo de sua obra, Bosi apresenta o processo artístico

enquanto forma de produção reforçando o período da Antiguidade como sendo um momento

histórico de exaltação à techné.

Em contraponto ao valor executivo e manual característico da arte na Antiguidade,

Luigi Pareyson destaca o período do Romantismo como cenário onde a arte foi fortemente

difundida enquanto forma de expressão. A definição de arte enquanto expressão é identificada

por Bosi como atividade que nasce da expressividade humana, afirmação que atina com o

pensamento pareysoniano. De acordo com o autor:

Em toda atividade artística impõem-se a presença de uma forte motivação. As

formas expressivas são geradas no bojo de uma intecionalidade que as torna

momento integrante ou resultante do pathos. A dissociação posterior de uma

forma e força interior só se cumpre historicamente quando os motivos iniciais

da união já se apagaram com a rotina das convenções, o esquecimento, a lima

do tempo e a morte da cultura que os produziu (BOSI, 1986, p.52).

No que diz respeito à arte como conhecimento, Bosi destaca as raízes dessa

concepção como sendo decorrentes do pensamento científico ocidental. No primeiro parágrafo

do capítulo II o autor previamente apresenta considerações de uma arte imersa no propósito do

conhecimento. Vejamos:

Que a obra de arte deite raízes profundas no que se convencionou chamar

“realidade” (natural, psíquica, histórica), constitui uma dessas evidências

fulgurantes que deveriam dispensar qualquer discurso demonstrativo,

bastando-lhe a constatação a olho nu (BOSI, 1986, p.27).

Como mostra de uma arte concebida enquanto forma de conhecimento, Pareyson traz

como exemplo especulativo a poética de Leonardo da Vinci como meio de conhecimento

próprio, de interpretação do mundo e até de fazer ciência (PAREYSON, 1997, p.23).

Page 61: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

45

A partir de uma observação reflexiva e dialética desses aspectos que por muito tempo

definiram a arte no seio da cultura ocidental, Luigi Pareyson dedica parte dos seus escritos

para demonstrar como as definições estão incutidas umas às outras.

Estas diversas concepções colhem caracteres essenciais da arte, conquanto

não sejam isoladas entre si e absolutizadas. Certamente, a arte é expressão.

Mas é necessário não esquecer que há um sentido em que todas as operações

humanas são expressivas. Toda operação humana contém a espiritualidade e

personalidade de quem toma a iniciativa de fazê-la e a ela se dedica com

empenho; por isso, toda obra humana é como o retrato da pessoa que a

realizou [...] Dizer, por exemplo, que a arte é “expressão dos sentimentos”

pode ter importância no plano da poética, mas é uma perigosa asserção no

plano da estética (PAREYSON, 1997, p.22).

Em se tratando de uma proposta de educação estética, julgo esse exercício de tentar

identificar e colher os caracteres essenciais do fenômeno artístico também como prática

fundamental do educador musical, pois como mediador de processos educativos em arte,

torna-se responsável por apresentar essas especificações a partir do métier dos seus próprios

alunos.

Todas essas definições são passíveis de serem trabalhadas de maneira educativa, por

exemplo, por meio de uma atividade de composição o educador pode conduzir de forma

valorativa o processo de invenção e produção desde o seu nascimento - denominado como

insight ou tema condutor - e ao mesmo tempo propor uma reflexão sobre sua condição

expressiva, considerando o ato da inventividade como sendo fruto da expressividade daquele

que possui o intento de formar, pois toda operação humana externa a espiritualidade e

personalidade do sujeito que se dedica a produzir com empenho (PAREYSON, 1997); no que

diz respeito à arte enquanto forma de conhecimento, pode ser proposta uma atividade de

criação musical que tenha por objetivo a comunicação de algum estudo ou análise científica.

Page 62: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

46

1.3 Poética, estética e crítica: uma reflexão didática dos conceitos

A apropriação teórica que faço da estética pareysoniana para a área de educação

musical pode ser considerada uma forma de estetismo fora do campo da estética. Para tanto, os

conceitos apresentados foram analisados cuidadosamente com o intuito de não promover uma

apropriação indevida, incorrendo no perigo de estetizar qualquer situação sem prestar atenção

à complexa doutrina pareysoniana. Nas palavras de Pareyson,

A admissão de leis gerais do pensamento nas atividades não artísticas não

compromete em nada o caráter formativo da operosidade humana: a

normatividade, embora seja interna ao resultado, não se reduz a este, mas lhe

condiciona o valor, ainda que não condicione sua existência. Já na arte não

existe outra normatividade senão a do resultado, nem outra regra senão a

instaurada pela própria obra singular a fazer. Assim, transferir esse tipo de

legalidade às outras operações é, no fundo, uma nova e refinada forma de

estetismo (PAREYSON, 1993, p.68).

Assim sendo, justifico o estetismo da minha pesquisa no sentido de que ao educador

compete o exercício da reflexão estética justamente por ser a arte uma atividade humana

intimamente ligada à vida como um todo.

Em se tratando de uma nova e refinada forma de estetismo voltada para o campo da

educação musical, é necessário reconhecer no âmbito da filosofia pareysoniana a distinção de

três conceitos fundamentais que compõem sua abordagem, são eles: a poética, a estética e a

crítica. Abaixo alguns excertos elucidativos dos respectivos conceitos:

A poética é programa de arte, declarado num manifesto, numa retórica ou

mesmo implícito no próprio exercício da atividade artística; ela traduz em

termos normativos e operativos um determinado gosto, que, por sua vez, é

toda a espiritualidade de uma pessoa ou de uma época projetada no campo da

arte (PAREYSON, 1997, p.11[itálico meu]).

A estética é constituída deste dúplice recâmbio ao caráter especulativo da

reflexão filosófica e ao seu vital e vivificante contato com a experiência: não

Page 63: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

47

é estética aquela reflexão que, não alimentada pela experiência da arte e do

belo, cai na abstração estéril, nem aquela experiência de arte ou de beleza

que, não elaborada sobre um plano decididamente especulativo, permanece

simples descrição (PAREYSON, 1997, p.8[itálico meu]).

a reflexão da crítica não tem caráter filosófico: o crítico, enquanto tal, não é

filósofo, mas leitor e avaliador, intérprete e juiz [...] O trabalho do crítico

nem se inclui no do filósofo, nem se alinha ao seu lado, como se fossem dois

modos paralelos de considerar a arte. Antes, põe-se ao lado do artista e

ambos são objeto da estética, um enquanto produz arte, o outro enquanto a

aprecia e julga (PAREYSON, 1997, p.12[itálico meu]).

No que diz respeito a uma reflexão em torno da poética da obra, conforme aponta o

primeiro dos excertos acima, leva-se em consideração aspectos normativos relativos à sua

construção como também à técnica, à sua narrativa e concepção estilística; uma atividade de

apreciação que tenha como alvo a poética da obra consiste numa reflexão que denota o ofício e

ideário poético do autor. Assim sendo, é possível realizar também uma observação técnica

enquanto análise poética do seu trabalho, proporcionando uma apreciação contemplativa de

traços únicos e valorativos que resultam da sua pessoalidade, pois:

À atividade artística é indispensável uma poética, explícita ou implícita, já

que o artista pode passar sem um conceito de arte, mas não sem um ideal,

expresso ou inexpresso, de arte. Embora em linha de princípio todas as

poéticas sejam equivalentes, uma poética é eficaz somente se adere à

espiritualidade do artista e traduz seu gosto em termos normativos e

operativos (PAREYSON, 1997, p.18).

Na suposição a seguir, demonstrarei de que maneira um educador musical pode atuar

como mediador de uma proposta que tenha por objetivo uma reflexão em torno da poética da

obra.

Page 64: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

48

Professor: Eis a obra do pintor Vincent Van Gogh (1853-1890) criada em meados de 1887na

cidade de Stedelijk como parte integrante de sua série sapatos. Este conjunto de obras

apresenta diferentes versões de calçados gastos e desvelam por meio da ilustração desse

simples apetrecho a realidade dos campos e dos camponeses da lavoura. De acordo com a

reflexão do filósofo Martin Heidegger (1889-1976) em sua obra “A origem da obra de arte” -

permeada por sua concepção filosófica que implica na abordagem da autonomia da obra de

arte - é possível guiar nossos olhos mediante as reflexões trazidas pelo filósofo no sentido da

obra enquanto ser apetrecho responsável por desvelar o ente; vejamos nas palavras do

Page 65: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

49

filósofo: “O que se passa aqui? Que é que está em obra na obra? A pintura de Van Gogh

constituía abertura do que o apetrecho, o par de sapatos da camponesa, na verdade é. Este

ente emerge no desvelamento do seu ser. Ao desvelamento do ente chamavam os gregos

άλήνεια. Nós dizemos verdade e pensamos bastante pouco com essa palavra. Na obra, se nela

acontece uma abertura do ente, no que é e no modo como é, está em obra um acontecer da

verdade”. Nesse sentido, “a essência da arte seria então o pôr-se-em-obra da verdade do ente

[...] Até aqui, a arte tinha a ver com o Belo e a Beleza, e não com a verdade” (HEIDEGGER,

2005, p.27).

Diante das considerações supostamente apresentadas pelo educador7 observa-se que a

experiência artística perante uma atividade de apreciação ocorre segundo suas considerações,

análise e problemas levantados previamente no âmbito da poética, ao contrário de uma fruição

estética, pois ressalto que, a experiência estética enquanto ferramenta especulativa, “não tem

caráter normativo nem valorativo: ela não define nem normas para o artista nem critérios para

o crítico. Como filosofia, ela tem um caráter exclusivamente teórico: a filosofia especula, não

legisla” (PAREYSON, 1997, p.11). No que diz respeito à proximidade existente entre os

conceitos de poética e crítica, em síntese, é possível afirmar que, o primeiro cumpre a tarefa

de regular e instaurar um programa de arte à obra feita e o segundo de analisar e julgar seus

resultados.

Caso a proposta pedagógica do educador em determinado momento seja uma

apreciação de cunho especulativo em torno da obra, torna-se fundamental ao trabalho

pedagógico uma mediação conduzida por reflexões que atinam com problemas de ordem

estética, propiciando diálogos transcendentes a uma apreciação apressada e sensitiva da obra;

essa afirmação não tem o intuito de descartar reflexões estéticas circundantes no âmbito da

catarse, mas é importante não perder de vista que “não é estética aquela reflexão que, não

alimentada pela experiência da arte e do belo, cai na abstração estéril, nem elaborada sobre um

plano decididamente especulativo, permanece simples descrição” (PAREYSON, 1997, p.8).

7 Considerando também as notas explicativas que acompanham as peças de concerto e os quadros em galerias de

arte.

Page 66: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

50

Nesse sentido, para contrapor o exemplo anterior, suponho abaixo um modelo estético-

educativo referente à mesma ilustração enquanto proposta de apreciação estética.

Professor: É possível dialogarmos com a obra que está na obra? Que tipo de diálogo é

possível ter com as cores, ideias, formas e gestos que a compõem? A respectiva obra

comunica algo? É possível identificar em seus traços as marcas daquele que a fez? É possível

alcançar algum tipo de leitura ou interpretação mais legítima que outra?A comunicação de

uma obra de arte depende de um leitor (alguém para executá-la mediante o ato de olhar)? Ou

ela independe de qualquer olhar para dissipar vida própria?

Page 67: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

51

Indagações dessa natureza aberta à inexaurível possibilidade reflexiva conferem à

experiência artística uma atividade estética. Para elucidar e complementar a exemplaridade

didática dos conceitos acima trago mais uma citação do autor destacando a distinção desses

conceitos:

A distinção entre estética e poética é particularmente importante e representa,

entre outras coisas, uma precaução metodológica cuja negligência conduz a

resultados lamentáveis. Se nos lembrarmos que a estética tem um caráter

filosófico e especulativo enquanto que a poética, pelo contrário, tem um

caráter programático e operativo, não deveremos tomar como estética uma

doutrina que é, essencialmente, uma poética, isto é, tomar como conceito de

arte aquilo que não quer ou não pode ser senão um determinado programa de

arte (PAREYSON, 1997, p.15).

Em se tratando de uma atividade concernente à crítica como proposta pedagógica,

cabe ao educador discernir os pontos que qualificam essa tomada analítica. De acordo com a

respectiva distinção já citada “o crítico, enquanto tal, não é filósofo, mas leitor e avaliador,

intérprete e juiz” e sua atuação é indispensável como um todo concernente à vida da obra,

porque nem o artista consegue produzir arte sem uma poética declarada ou

implícita, nem o leitor consegue avaliar a obra sem um método de leitura

mais ou menos consciente, mesmo que não seja necessário que se traduzam

em termos explícitos, isto é, que a poética seja consignada num código de

normas e preceitos ou a crítica governada por um método declarado. A obra

requer tanto a poética quanto a crítica, na medida em que exige ser feita e

avaliada [...] (PAREYSON, 1997, p.10-11).

Tendo em vista que o trabalho de educação musical (artes em geral) engloba ora

encontros de apreciação estética da obra, ora atividades de análise poética ou mesmo

observações críticas, cumpre o educador o papel fundamental de conhecê-los para saber

transitar didaticamente através de preceitos tão caros e vivos que pululam suas práticas

educativas; é imprescindível que o mesmo disponha do conhecimento desses problemas

estéticos para extrair de cada uma dessas etapas que substanciam a produção artística

experiências significativas para a vida de seus alunos como um todo e também para a sua

Page 68: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

52

própria. Milena Guerson, autora do artigo “Ana Mae Barbosa e Luigi Pareyson: um diálogo

em prol de ‘re-significações’ sobre ensino/aprendizagem de artes visuais” apresenta um

panorama sobre as três definições de arte pareysoniana (abordadas no capítulo anterior), como

também da teoria do formatividade em consonância com a proposta triangular da arte-

educadora Ana Mae Barbosa, postulando a importância desses saberes conceituais ao

educador que lida com as artes pontuando a seguinte afirmação:

É relevante que o professor de Arte, em sua formação, compreenda as

pertinências das áreas aqui explicitadas, adquirindo a capacidade de conferir

ao fazer, à contextualização, à leitura da obra de Arte, o que de maneira

diferencial for pertencente à Técnica, à Poética, à Crítica, à História, à

Estética (GUERSON, 2010, p.6).

Considerando a multiplicidade de experiências estéticas que ocorrem em diferentes

contextos educativos, é imprescindível ao educador consciência e postura reflexiva às

diferentes formas de encontro de seus alunos com a arte.

Com base em sua extensa pesquisa ao lado de artistas, críticos e leitores de arte,

verifico que os problemas de natureza estética identificados por Pareyson são de extrema

relevância para o educador que lida com os problemas da arte em suas práticas educativas

devido ao seu alto nível reflexivo em torno das nuances e dos problemas que permeiam o

amplo percurso da inventividade.

A teoria pareysoniana se caracteriza por ser uma doutrina sistemática e ao mesmo

tempo aberta ao diálogo mediante outras propostas teóricas, não no sentido de “se deixar

envolver pelas teorias que se apresentarem diante dela, mas antes de utilizá-las como estímulo

para se consolidar ainda melhor” (PAREYSON, 1993, p.11), assim sendo, almejo que os

respectivos problemas estéticos tratados no âmbito da educação musical possam contribuir

com a sua teoria não no sentido de confrontá-la, mas reforçando-a e consolidando-a ainda

mais por meio de outros campos de pesquisa.

Irene Tourinho, autora de um dos primeiros textos publicados pela Revista da Abem

traz uma interessante e atual reflexão baseada num diálogo entre compositor e educador

musical em seu artigo “Um compositor, uma educadora, muitas perguntas e algumas reflexões

Page 69: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

53

sobre prática de ensino de música”. A autora aborda, dentre outros aspectos, a necessidade

contínua de formação que requer o ofício de um educador musical, afirmando que as bases de

um trabalho educacionalmente artístico exigem intenso aprimoramento e pesquisa nos campos

da musicologia, estética, performance, bem como da pedagogia. A autora chama a atenção

para a responsabilidade que carregam os artistas, especificamente, compositores no que diz

respeito às contribuições que poderiam oferecer ao campo educacional. Vejamos:

todos os compositores – se quisessem – poderiam contribuir para a nossa

compreensão sobre, por exemplo, criatividade. A explicitação de suas

“crenças” e duvidas, juntamente com algumas descrições de seus processos

de trabalho já iniciaria uma discussão valiosa (TOURINHO, 1996, p.72).

A reflexão apresentada por Tourinho é bastante atual e identifico-me com sua

afirmação no sentido de que muitas contribuições poderiam ser difundidas pelos próprios

artistas a partir de um diálogo entre autores e educadores, mas carecemos desses encontros

dialógicos; por essa razão, faço uso da doutrina pareysoniana - respeitando seus limites - com

o intuito de apropriar-me de suas considerações advindas do contato com artistas experientes

para investigar a produção artística em diferentes contextos educativos.

Page 70: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

54

Page 71: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

55

Capítulo 2

Teoria da formatividade:

um tal fazer que se reinventa enquanto faz

Page 72: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

56

Page 73: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

57

2. Teoria da formatividade: um tal fazer que se reinventa enquanto faz

Nasce o poema

há quem pense

que sabe

como deveria ser o poema

eu mal sei como gostaria

que ele fosse

porque eu mudo

o mundo muda

e a poesia irrompe

donde menos se espera

às vezes cheirando a flor

às vezes desatada no olor

da fruta podre

que no podre se abisma

(quanto mais perto da noite mais grita o aroma)

às vezes num moer de silêncio

num pequeno armarinho no Estácio

de tarde

Assim me fui

E o poema ficou

inaturo

parte no ar da loja

parte como poeira

em meus cabelos.

Ferreira Gullar

Page 74: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

58

A epígrafe que abre este capítulo consiste no poema intitulado “Nasce o poema” de

Ferreira Gullar e ilustra poeticamente o diálogo do poeta com uma pessoa que teve a

curiosidade de lhe perguntar o modo como fazia para escrever seus poemas. Nas palavras do

autor, “comecei a explicar-lhe como fazia, e à medida que ia explicando me dei conta de que

estava fazendo um poema. Então pedi desculpas, parei a conversa e voltei pra casa a fim de

escrevê-lo” (GULLAR, 2013, p.223). De acordo com esse depoimento pode-se verificar uma

experiência artística de puro êxito, onde se forma por formar mediante o ímpeto e estímulo de

um simples encontro do cotidiano.

Perante as inúmeras atividades que realizam nossos alunos como afazeres artísticos,

embora se almeje determinado propósito pedagógico, é importante observar que para o aluno

que ainda não tem a maturidade de reconhecer os benefícios advindos das propostas

educativas que o cercam, ele muitas vezes produz por produzir, isto é, forma por formar, mas,

formar por formar em arte requer um amplo conjunto de saberes que ele certamente não sabe

que sabe. É por essa razão que tomo como modelo teórico-filosófico a formatividade de

Pareyson para compreender e valorizar todos os aspectos que circundam o processo de

invenção e produção artística, de modo também a servir como reflexão para a formatividade

perdurável do viver.

2.1 Teoria da formatividade: uma estética da invenção

Toda a vida humana é, para Pareyson, invenção, produção de formas;

toda a atividade humana, tanto, no campo moral como no

pensamento e da arte, origina formas, criações orgânicas e perfeitas,

dotadas de compreensibilidade e autonomia próprias: são formas

produzidas pela ação humana os edifícios teoréticos ou as

instituições civis, as realizações quotidianas ou os empreendimentos

técnicos, um quadro e uma poesia (ECO, 1972, p.15).

Viver é um ato de invenção e toda produção humana pressupõe uma prática executiva

e realizativa, podendo ser compreendida mediante os princípios da formatividade. De acordo

Page 75: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

59

com Pareyson, “todos os aspectos da operatividade humana, desde os mais simples aos mais

articulados, têm um caráter, ineliminável e essencial, de formatividade” (1993, p.20). Segundo

essa premissa, somente através do ímpeto humano de formar por formar, de se alcançar puro

êxito diante daquilo que se forma é possível postular uma distinção entre a singularidade

artística do feitio das meras coisas. Considerando, pois, a essência do fazer como uma

atividade construtiva que emerge das mãos de um sujeito também em pleno processo

formativo, é possível compreender as origens que substanciam a singularidade que reside na

produção artística.

A singularidade da obra é fruto da individualidade e pessoalidade de cada autor. A

pessoalidade do artista (nesse caso do aluno) delineia seu modo de pensar, inventar e de fazer;

portanto, a obra de arte enquanto forma acabada resulta de um constructo relativo ao contexto

histórico-social daquele que a faz. Embora Pareyson não desenvolva em profundidade uma

filosofia do sujeito-autor, sua narrativa destaca ações oriundas da natureza humana. Vejamos:

se as obras são sempre singulares, pode-se afirmar que é impossível fazê-las

sem que ao fazê-las se invente o modo de fazê-las. Seja qual for a atividade

que se pense em exercer, sempre se trata de colocar problemas, constituindo-

os originalmente dos dados informes da experiência, e de encontrar,

descobrir, ou melhor, inventar as soluções desses problemas. Sempre se trata

de concluir e levar a cabo operações, ou seja, de produzir, realizando,

efetivamente, executando e de concluir o movimento de invenção em uma

obra que se esboça e se constrói com base numa lei interna de organização.

Sempre se trata de fazer, inventando ao mesmo tempo o modo de fazer, de

sorte que a execução seja a aplicação da regra individual da obra no próprio

ato que é a sua descoberta, e a obra “saia bem feita” enquanto, no fazê-la, se

encontrou o modo como se deve fazer (PAREYSON, 1993, p.21).

Nesse caso, o modo de fazer, inventar, e até mesmo descobrir, provém do autor, cuja

própria vida consiste em pleno processo de constituição singular. Mediante o diálogo com a

matéria é o autor quem encontra, descobre, e inventa soluções para os problemas da arte

enquanto forma nascente. A concepção de formatividade como um certo modo de fazer que ao

fazer vai inventando o modo de fazer deflagra a dinâmica dialógica entre autor e matéria,

assim sendo, somente

Page 76: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

60

fazendo-se forma é que a obra chega a ser tal, em sua individua e irrepetível

realidade, enfim separada de seu autor e vivendo vida própria, concluída na

indivisível unidade de sua coerência, aberta ao reconhecimento de seu valor e

capaz de exigi-lo e obtê-lo. Nenhuma atividade é operar se não for também

formar, e não há obra acabada que não seja forma (PAREYSON, 1993, p.20).

Mesmo dotada de leis internas que em essência caracterizam sua individua e

irrepetível realidade (matéria transformada em obra), o viver próprio da obra se prolonga no

campo da execução e das inexauríveis possibilidades interpretativas do humano, denotando

mais uma vez a inesgotável possibilidade dialógica que a cerca proveniente da energia

formante daquele que ouve ou que vê. A esse respeito Seincman traz a seguinte afirmação:

Uma obra de arte só é um objeto finito quando isolada do fenômeno

comunicacional, pois, em sua relação com os sujeitos cria-se um terceiro

lugar, o lugar da transcendência e da polissemia. Assim, a comunicação

artística transcende a mera relação sujeito-objeto e, depois de lapidada, a

matéria bruta das obras, com sua quantidade finita de elementos, passa a ser

um meio de conteúdo inesgotável (SEINCMAN, 2008, p.25).

Retomando a temática em torno do caráter formativo da obra, embora tenha sido essa

uma reflexão corrente entre filósofos e teóricos como Goethe, Schelling, Dewey, Whitehead e

Augusto Guzzo, conforme pontua Pareyson, será ele próprio o esteta que irá teorizar uma

estética da formatividade. Em síntese, o autor atribui à arte a definição de forma. Por que a

arte é forma? Porque nasce de um processo formativo. Diante dessa premissa é que o filósofo

direcionou seus estudos sobre estética ao processo de invenção que precede a forma (arte).

Ao refletir sobre a forma de viver de cada pessoa, verifica-se que cada um só é o que

é mediante o processo formativo que o conduziu até ali, sem perder de vista que esse tipo de

reflexão é apenas uma nova e refinada forma de estetismo voltada para o campo maior que a

própria arte, isto é, a vida. Doravante atrevo-me a passar por caminhos dessa natureza pelo

fato de que o próprio filósofo, mesmo ao conceber “as obras de arte como organismos vivendo

de vida própria e dotados de legalidade interna” (2001, p.27), não desconsiderou o sujeito por

detrás de sua estética; acredito que, mesmo dialogando no âmbito de uma estética que possa

abrir caminhos para uma filosofia que postule valores em torno da autonomia da obra, seus

Page 77: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

61

escritos também abrem portas que possibilitam leituras também sob perspectivas histórico-

sociais.

2.2 Reflexões sobre a formatividade na coletividade

Toda e qualquer experiência só pode se dar em plena atividade, em

plena atenção, comunhão, participação e troca (SEINCMAN, 2008,

p.28).

Partindo do pressuposto de que toda operação humana é sempre formativa,

considerando inclusive o ato de pensar, é possível afirmar que a prática educativa através da

arte expõe diariamente o educador à complexa malha polifônica de pensamentos e atos

formativos de seus alunos. Como considerar a individualidade e promover um consenso a

partir da pluralidade artística que nasce no trabalho coletivo? Como legitimar e ao mesmo

tempo ponderar entre tantos, os valores práticos e morais que se manifestam através do ato de

criar de cada aluno? Primeiramente, é importante compreender que qualquer tipo de

construção pressupõe não só a invenção, mas também a imitação, ou seja, “uma pessoa só

aprende a ser ela mesma descobrindo-se nos outros, e não existe outro caminho para a

originalidade senão a imitação (PAREYSON, 1993, p.152). Isto posto, conclui-se que toda e

qualquer atividade individual pressupõe a participação de um auditório social e perante a

conscientização desse espírito de troca é possível iniciar um trabalho pautado no respeito e na

legítima contribuição de um para com o outro.

No que diz respeito ao exercício de humanidade em torno de valores práticos e

morais, diante das palavras de Pareyson verifica-se que a produção artística em qualquer

instância ou contexto requer decisões práticas e morais, ou seja,

A obra de arte implica, por conseguinte, um compromisso prático e uma

decisão moral, a tal ponto que se faltar ao artista qualquer uma decisão moral,

a tal ponto que se faltar ao artista qualquer uma dessas condições, e não

considerar a arte como uma tarefa a cumprir de modo devido, realiza, ao

mesmo tempo que um desvalor artístico, igualmente um desvalor moral

(PAREYSON,1993, p.28).

Page 78: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

62

Ainda nas palavras do autor, vejamos outros excertos a acerca desse propósito:

Também o exercício do pensamento e a atividade moral exigem um “fazer”,

sem o que não se concretizariam em atos práticos ou de pensamento. Não se

pode pensar a não ser efetuando movimentos de pensamento com que se

passa de juízo a juízo e de raciocínio a raciocínio, sempre ligando e

sistematizando, isto é, realizando uma totalidade completa e, sobretudo,

formulando explicitamente os pensamentos, isto é, realizando-os em

proposições [...] de sorte que tanto o pensamento como a vida moral exigem

o exercício daquela atividade realizadora e produtiva sem a qual nenhuma

obra é possível (PAREYSON, 1993 p.20).

A vida moral exige um vivaz e incessante exercício de formatividade, como

se evidencia claramente assim que se pensa na necessária capacidade de

inventar a ação exigida pela lei moral em cada situação determinada, e de

realizá-la inventando o modo de lhe traduzir a intenção em atos convenientes,

submetendo as circunstâncias para que acolham as obras assim realizadas e

vigiando para que se mantenha e preserve o seu originário valor moral

(PAREYSON, 1993, p.283).

Segundo os pressupostos pareysonianos, pensamento e moralidade são frutos de uma

realidade única e irrepetível que ocorre de maneira distinta na vida de cada pessoa. Ao tomar

essa reflexão como parâmetro para olhar a diversidade que reside entre todos aqueles que

compõem um grupo de pessoas, penso na importância de uma proposta estético-educativa que

possa considerar o sujeito em seu contexto histórico-social, ponderando também a expressão

de seus costumes diante do convívio entre seus pares. Uma vez conscientes de que processo

inventivo percorre esse tal faz que vai se transformando na medida que se faz, torna-se

possível compreender a dinâmica formativa que também reside no viver de cada um; para

tanto, é necessário que o educador estabeleça em sua prática uma relação dialógica que

conduza ao respeito e à responsabilidade que se propaga a partir da atividade criadora de cada

um dos alunos. O reconhecimento que se instaura perante as diferenças e a dignificação

pessoal que resulta da produção individual abre portas para a construção de um trabalho

coletivo artístico e humano, gerando experiências estéticas cordiais e amistosas, pois “um

campo, embora formado de individualidades, é maior que a soma destas, pois o individual e o

coletivo se retroalimentam continuamente” (SEINCMAN, 2008, p.14); mediante essa

Page 79: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

63

afirmação é possível concluir que, a atividade estético-educativa enquanto ferramenta

especulativa destinada ao campo de educação musical possibilita além do exercício crítico,

reflexivo e criativo ações de solidariedade e cidadania, pois:

O interesse despertado pela arte não é só questão de gosto estético, mas

também e sobretudo de humanidade; ou melhor, justamente por ser questão

de gosto se pode dizer que seja também questão de humanidade, porque

como nas obras um espírito se torna estilo e um mundo se torna forma [...]

(PAREYSON, 1993, p.276-277).

Isto posto, cabe ao educador conscientizar-se de que a produção e a invenção da

pessoa tratam-se sempre de ações concretas e intencionais. Diante dessa abordagem, pode-se

verificar através da estética da formatividade uma proposta conscientizadora das diferentes

formas de criação, e, por conseguinte um caminho para alcançar o respeito mútuo entre os

pequenos artistas.

Anseio que, por meio dessas reflexões, possa o educador musical identificar que os

elementos que nutrem a imaginação e a criação na infância não diferem em essência dos

elementos que orientam a imaginação e a inventividade artística que ocorre na vida adulta. De

acordo com esta proposta, torna-se possível atingir o objetivo principal que consiste numa

prática educativa que almeja instaurar no sujeito uma relação de legítima aceitação de um para

com o outro através da arte, afinal, “as diferenças e divergências podem acarretar

indiferença!”, no entanto, “O encontro torna as diferenças produtivas. A aula como um texto

construído por todos” (PERISSÉ, 2009, p.86). O espírito construtivo, de descoberta ou de

criação quando partilhado coletivamente possibilita, além de ricas trocas de experiências que

alimentam a inventividade artística, a invenção da própria vida em sociedade. Nas palavras de

Perissé,

A palavra criativa é o melhor recurso de que o professor dispõe. Essa palavra

abre espaço para a verdade do encontro, indo em direção ao outro ao mesmo

tempo que se encoraja o outro a assumir seu papel no jogo do aprender-

ensinar. A aula poética inventa a verdade. Não se pode mentir em poesia,

porque tudo o que se inventa, esteticamente falando, é verdade. A arte

inventa a vida, e essa vida não é mentirosa, tal como entendemos a mentira

em seu significado cotidiano (PERISSÉ, 2009, p.87).

Page 80: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

64

Essas afirmações significam que, uma abordagem estético-educativa que tenha por

princípio a valoração do processo inventivo e realizativo da arte em prol de uma

conscientização artística e humana do fazer, implica num tipo de experiência estética

transcendente à própria arte. Embora os conceitos abordados nesta dissertação, bem como o

próprio referencial teórico possam causar no leitor uma impressão intelectualizada do ensino

de música mediada por propostas que possam sugerir atividades filosoficamente complexas, é

importante esclarecer que a adoção da presente concepção estética oferece ao educador

sensibilidade para olhar a produção artística de seus alunos assim como olha um esteta para a

arte (seu objeto de estudo e reflexão); dialogar com nossos alunos no âmbito dos problemas

estéticos de suas produções fomenta a valorização do trabalho individual e coletivo, o

autoconhecimento, o respeito para com o processo formativo do próximo, consciência e

responsabilidade artística enquanto autor, intérprete e leitor. Afinal, a estética como

ferramenta de ensino reside mais na forma de conceber e mediar o trabalho artístico perante o

seu processo do que exatamente na coisa ou no resultado concreto em si. Para Seincman,

O sentido de uma experiência dependerá de nossa capacidade de estabelecer

relações de causalidade, continuidade e finalidade a partir dos elementos que

nos cercam. Havendo troca, comunicação, compartilhamento, nós e mundo

nos tornamos dotados de sentido: todos os atores saem de uma experiência

transformados (SEINCMAN, 2008, p.32).

Considerando, pois, o convívio como uma prática imbuída de trocas e experiências

mútuas, confirma-se a importância de uma filosofia estética que facilite o trânsito do educador

musical perante a dinâmica e plural conduta socializadora que envolvem as atividades

artísticas em diferentes contextos do ensino de música. Cada um constrói a sua maneira,

porém, a individualidade de cada autor ou a construção do seu “mundo” - conforme o conceito

utilizado por Pareyson - pressupõe a colaboração de outrem. Nas palavras do autor, “o que

caracteriza um mundo é a sua personalidade, mas isso não implica que não seja um mundo,

uma visão coletiva da vida, pois também nesse caso se trata sempre de concepções pessoais”

(PARESYON, 1993, p.273).

Page 81: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

65

Capítulo 3

Criação musical: o processo inventivo do insight até

o complexo campo da leitura da obra

Page 82: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

66

Page 83: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

67

3. Criação8 musical: o processo inventivo do insight até o complexo campo

da leitura da obra

Os escritos que compõem este capítulo consistem nos relatos de experiência

vivenciados por mim em diferentes contextos educativos. Todos eles acompanharão materiais

ilustrativos produzidos pelos próprios alunos. A partir das reflexões elaboradas por Pareyson

em torno da sua teoria da formatividade, demonstrarei as contribuições dessa filosofia voltada

para o campo da educação musical com o intuito de compartilhar possibilidades práticas e

teóricas dessa abordagem estética em diferentes situações do ensino de música.

Mediante os recortes que serão apresentados em cada cenário, discorrerei sobre

aspectos substanciais do processo formativo observados a partir de atividades realizadas pelos

meus pequenos artistas. Considerando os relatos de experiências como perspectiva prática

desta pesquisa, compartilharei os exemplos pedagógicos com a intenção de ampliar a

compreensão desta proposta. Ao tomar o processo de criação em suas principais etapas

realizativas (a obra enquanto formatividade, forma e seu campo interpretativo), cada exemplo

representará um cenário educativo entremeado por reflexões estéticas, destacando aspectos do

insight até o complexo campo da leitura da obra.

As figuras ilustrativas serão postas em evidência proporcionado aos leitores uma

apreciação detalhada do registro de cada atividade. É importante frisar que, os nomes que

serão aqui mencionados são fictícios e os espaços institucionais mantidos em sigilo. Tanto o

8Embora Luigi Pareyson conceba o conceito de criação diferentemente do conceito de formatividade, faço uso

dos seguintes conceitos ciente do não comprometimento da sua abordagem. Pareyson estabelece como criação

uma atividade divina como um ato absoluto e Para situar o leitor sobre a diferenciação dos conceitos acima,

transcrevo a seguinte distinção firmada pelo autor: “De resto, convém lembra que a ‘formatividade’ não pode ser

confundida com a ‘criatividade’, pois o homem certamente cria, ‘com infinita diferença, porém, do criar do

próprio Deus’, pois enquanto a criação é atividade no sentido absoluto, como tal impensável no homem, a

formatividade é uma atividade que tem caráter receptivo e tentativo, de sorte que não opera a não ser começando

como insight e não termina a não ser culminando em um resultado, o que certamente é impensável em Deus”

(PAREYSON, 1993, p.267).

Page 84: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

68

cenário educativo como a descrição dessas atividades têm como principal objetivo demonstrar

possibilidades práticas dessa filosofia estética enquanto caminho educativo.

Ao longo desta pesquisa, alguns dos relatos foram transformados em artigos e em

parceria com outros autores publicados e apresentados outrora em encontros e congressos de

educação musical de âmbito nacional e internacional.

Concebo os cenários aqui apresentados como “obras” no sentido pareysoniano, ou

seja, em seu estágio de obra acabada, e como autora desses relatos declaro estar consciente de

que a forma uma vez concluída, só pode ser vista na sua perfeição considerada

dinamicamente (ECO, 1972, p.20), no entanto, embora esses registros enquanto forma

acabada contenham as marcas do meu olhar e das minhas reflexões, disponibilizo-os aos

leitores como uma porta de entrada reflexiva passível de interpretação desta proposta estética e

educação musical. Como complemento teórico farei uso das reflexões do autor Gabriel Perissé

que em consonância com esta proposta amenizam o uso exaustivo dos conceitos

pareysonianos.

3.1 Primeiro cenário: Compondo a Sinfonia Poética

Este primeiro cenário traz reflexões sobre o complexo itinerário do processo de

criação musical vivenciado por crianças entre oito e treze anos num contexto educativo que

designarei como projeto social.

Direcionado ao atendimento de jovens e crianças o presente espaço comporta além da

modalidade de música, cursos de artes plásticas, literatura, tecnologia inclusiva, dança e

línguas estrangeiras. Em se tratando do curso de música, são oferecidos aos alunos aulas de

instrumento9, canto coral, prática em conjunto, fundamentos teóricos, percepção e apreciação

musical.

Composta por duas unidades de ensino instaladas na cidade de Sertãozinho, o projeto

social comporta atualmente no curso de música mais de cinquenta jovens e crianças entre sete

9Violino, viola, violoncelo, contrabaixo, saxofone (alto e tenor), clarineta, trompete, trompa, trombone, flauta e

percussão.

Page 85: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

69

e dezenove anos. De acordo com o plano de ensino institucional, o projeto contempla uma

proposta de ensino que se divide em três modalidades: formação de público, ensino

profissionalizante e inclusão social. Os conteúdos paulatinamente se voltam,

intencionalmente, para abordagens pedagógicas que possam passar por uma compreensão da

música a partir de seu fenômeno eminentemente artístico: a obra de arte, as possibilidades de

acesso a ela e suas contribuições para a vida como um todo. Com o intuito de proporcionar

vivências significativas, os conteúdos são desenvolvidos de maneira transversal, envolvendo

todas as práticas musicais - do solitário estudo da técnica de um instrumento às teorias,

percepções e apreciações musicais -, de modo a culminar na execução de obras musicais e na

reflexão da música em geral. Assim, pode-se afirmar que o plano pedagógico de ensino se

resume a práxis (performance no instrumento), a theoria (estudo e aprofundamento no

universo da obra em vários níveis) em completa associação com a poiésis (composição da obra

de arte), possibilitando também experiências sociais transcendentes ao fazer artístico.

Como se apropriar de uma abordagem filosófica, de modo que seja possível

transformá-la num diálogo acessível entre jovens e crianças num contexto de ensino como

esse? De onde extrair reflexões acerca dos problemas da produção e da invenção artística com

o intuito de propor uma conscientização da formatividade como fenômeno da arte e da vida?

Pautado no diálogo e na experiência artística compartilhada entre jovens e crianças a

partir dos sete anos, trago como modelo desta proposta estética o relato de experiência

“Criação musical: um processo filosófico da imagem ao registro da obra”10

publicado nos

anais de 2013 da III Jornada de Estudos em Educação Musical (UFSCar), onde apresento

juntamente com outros dois autores uma atividade de criação musical11

.

Como professora de prática de orquestra iniciei o presente trabalho coletivo

perguntando aos alunos se naquele início de semestre eles gostariam de produzir um trabalho

autoral, além de executar obras de outros compositores. A resposta se concretizou com um

10CESCA, Sara. PEREIRA, Guilherme C. GALON, Lucas E. S. Criação musical: um processo filosófico da

imagem ao registro da obra. III Jornada de Estudos em Educação Musical. Anais da III JEEM, p.106-113, 2013.

Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/207189540/Anais-Da-III-Jeem-2013 Data de acesso: 27/03/2014. 11

Ao tomar o presente artigo como material desta dissertação revisei as técnicas de escrita adaptando-o a uma

nova edição.

Page 86: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

70

suspense no ar e olhares desconfiados. Talvez estivessem pensando: “Nossa própria música?

Como assim? Será que a professora está falando sério?” Aos poucos as crianças foram se

manifestando timidamente interessados na tal composição autoral. Uma vez decididos pela

proposta de compor, lancei a seguinte reflexão: “Antes de qualquer coisa, é preciso encontrar

uma ideia que possa inspirar a composição; algo que sirva de guia”. Deixá-los livres para

imaginar e tomar como orientação qualquer coisa poderia ser uma possibilidade pedagógica,

mas o intuito da proposta consistia em mostrar aos alunos o quanto a arte de outros artistas

poderia ajudá-los nessa atividade de invenção. Segundo Gabriel Perissé,

A arte educa, influenciando nossa maneira de sentir e pensar, de imaginar e

avaliar. Influência forte e sutil. E renovadora. Para o bem ou para o mal, não

saímos incólumes de uma experiência estética verdadeira. Os artistas são

educadores, perturbadores, levam-nos aos extremos de nós mesmos.

Educadores provocadores, desestabilizadores (PERISSÉ, 2009, p.38).

Com o intuito de proporcionar às crianças uma atividade de invenção e produção

musical, conduzi o trabalho através de reflexões estéticas, partindo da apreciação musical

como fonte para o despertar da inventividade. Nessa etapa de fruição e contemplação,

disponibilizei aos alunos obras descritivas e de caráter programático, como por exemplo, as

obras em estilo madrigalesco do compositor Gilberto Mendes (1922) sob a influência do

movimento literário Noigrandes, como Motet em Ré Menor (Beba Coca-Cola), Vai e Vem e

Nascemorre e Asthmatour. Foi dispondo de obras musicais deste gênero teatral que lancei as

primeiras especulações estéticas acerca da relação música e texto no cenário musical, e a partir

dessas influências as crianças vislumbraram seus primeiros passos inventivos; como

espectador e agente participativo deste trabalho, pude observar atentamente a variedade de

insights que na nasciam entre as crianças. Apropriei-me da arte de outros autores com o intuito

de compartilhar entre as crianças diferentes formas composicionais. Nas palavras de Perissé, a

arte dos poetas, dos compositores, dos escultores, dos artistas plásticos,

educa na medida em que, atraindo nossa visão, encantando nossa audição,

agindo sobre nossa imaginação, dialoga com a nossa consciência. Mais do

que nos fazer reagir à melodia, à rima, à composição pictórica, às cenas do

filme, esses estímulos que nos chegam pela arte criam um espaço de

Page 87: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

71

liberdade, de beleza, no qual nos sentimos convidados a agir criativamente

(PERISSÉ, 2009, p.36).

De acordo com Luigi Pareyson,

O vínculo entre exemplaridade e imitação, com a possibilidade ainda de um

preceituário operativo e de uma imitação transformadora, serve para explicar

antes de mais nada, a formação do artista, formação que de outra maneira

seria processo misterioso e incompreensível, pois nenhum artista consegue

fazer arte a não ser passando pela imitação entendida como reconhecimento

operativo da exemplaridade (PAREYSON, 1993, p.149).

Após trilharem este percurso em busca de um “começo”, os alunos decidiram dar

início a composição partindo de uma poesia. Alguns alunos que diziam serem "bons" na

escrita de poemas se dispuseram a escrevê-los, e assim vários alunos o fizeram. Através de

uma seleção o grupo escolheu quatro poesias para compor o trabalho. Para ajudá-los na

estruturação do trabalho e no aproveitamento do material (poesias), sugeri que elaborassem

uma composição em quatro partes, de modo que cada poema pudesse ser desenvolvido

separadamente. Foi assim que iniciamos a construção do primeiro movimento da composição,

tendo a poesia como um guia temático e orientador desse processo de criação; segundo a ótica

pareysoniana, a criação consiste em puro tentar, no entanto, é importante frisar que não é um

tentar destituído de imagens prévias. De acordo com L. Pareyson,

Tentar não é nem andar às cegas nem caminhar com plena segurança; nem

vaguear no escuro até o momento da súbita iluminação, nem seguir um

caminho todo iluminado. O tentar não é tão incerto que signifique puro tatear,

nem tão seguro que siga pela estrada principal, mas antes se constitui de um

misto de incerteza e segurança, onde enquanto durar a busca, o risco não

instaura o reino do acaso e a esperança não se torna ainda certeza. A tentativa

tem algo de ordem e desordem ao mesmo tempo, de sorte que a norma que a

guia nunca é assim tão evidente que indique de antemão a sua descoberta, e a

série dos fracassos não é nunca tão desastrosa que não se converta em alguma

sugestão do resultado feliz (PAREYSON, 1993, p.73).

Nas ilustrações a seguir destaco o manuscrito de dois poemas selecionados como

tema do primeiro e do segundo movimento deste trabalho de composição:

Page 88: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

72

Figura1– Poema que inspirou o primeiro movimento da composição.

Figura 2– Poema selecionado para o segundo movimento da obra.

Dediquei inteiramente uma de nossas aulas somente para o exercício de apreciação

destes poemas e a cada leitura que se fazia, vivenciávamos o surgimento de novas impressões.

Pensando na proposta da composição, as crianças começaram a compartilhar ideias musicais e

a partir do diálogo que naquele momento nascia entre insight (poema) e matéria (seus próprios

instrumentos), a proposta composicional aos poucos foi ganhando formas e gestos sonoros.

Com o intuito de proporcionar às crianças reflexões voltadas para os problemas que

permeiam a inventividade artística, conduzi a presente proposta através perguntas e

questionamentos, propiciando um trabalho de imersão e conscientização do processo

Page 89: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

73

formativo da obra, bem como de outros problemas que ela traz em sua condição “acabada”,

isto é, o campo da recepção.

Para conscientizá-las deste fenômeno tão presente na operosidade humana, enquanto

trocavam ideias e mudavam o que já estava pronto em busca de novas ideias sonoras, julguei

ser oportuno interrompê-las com a seguinte indagação:

Professor: Vocês estão percebendo que as ideias parecem não ter fim? Por que isso

acontece?

Alunos: São muitas pessoas criando, respondeu uma aluna.

Professor: Você tem razão... são várias ‘cabecinhas’ criativas funcionando ao

mesmo tempo. É isso que acontece quando começamos a inventar. Parece que nossa

imaginação não tem fim. Mas vamos continuar e ver onde essas ideias nos levarão!

Em meio aos diálogos que realizávamos acercada nossa capacidade imaginativa e das

infinitas possibilidades de criação, procurei destacar também as possibilidades interpretativas

que a obra de arte suscita em seu estágio acabado, sua variedade de transcrições e traduções,

seu caráter comunicativo, a importância do seu registro e do domínio técnico na fase de

execução. Diante das considerações estético-filosóficas que aos poucos foram se

intensificando através dos diálogos, pude verificar a importância e as contribuições do

exercício especulativo enquanto atividade coletiva voltada para a formação social e humana

dos alunos, pois acredito que, “somente quem aprende percorrer caminhos inexististes, porque

eles se fazem no percurso, será capaz de compreender as respostas e os caminhos antes

percorridos” (GERALDI, 2010, p.96).

As ideias fervilhavam na construção de cada detalhe da obra que se reinventava no

processo formativo, e foi assim, que a composição foi se materializando sonoramente passo a

passo no bojo da inventividade.

Page 90: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

74

É nesse estágio de invenções, tentativas e erros, que o formar pareysoniano pressupõe

o ato de buscar, pois conforme suas palavras "‘formar significa aqui ‘fazer’ inventando ao

mesmo tempo ‘o modo de fazer’, ou seja, ‘realizar’ só procedendo por ensaio em direção ao

resultado e produzindo deste modo obras que são ‘formas’” (PAREYSON, 1993, p.12). A

cada nova fase do trabalho eu convidava as crianças a refletir sobre a permanência deste

“tentar” que acompanha não somente o artista no ato da criação, mas as ações de cada um em

seu viver; de acordo com o autor, o ato de tentar,

se estende a toda a vida espiritual, e abrange todos os campos da operosidade

humana, o que confirma que seu âmbito coincide com o da formatividade,

pois toda a vida espiritual é formativa. E certamente este destino do homem,

de não poder atuar a não ser procedendo por tentativas, é sinal de sua miséria

e grandeza ao mesmo tempo: o homem não encontra sem procurar e não pode

procurar a não ser tentando, mas ao tentar figura e inventa, de modo que

encontra, de certo modo já fora, propriamente, inventado (PAREYSON,

1993, p.61[itálico do autor]).

Ao término da construção do primeiro movimento da Sinfonia Poética, assim

denominada pelos alunos, tínhamos em nossas mãos o esboço gráfico da composição, no

entanto, sugeri que transcrevêssemos todos aqueles “desenhos” e “rascunhos” inventados para

a notação musical convencional. A escrita original poderia ter sido mantida, afinal, todos

aqueles símbolos faziam sentido para as crianças, porém, como a grafia tradicional

basicamente era uma ferramenta dominada por todos os presentes, optei por este caminho

pedagógico conscientizando-as para a importância do conhecimento teórico e da escrita na

prática composicional; cada criança se dedicou ao registro do seu respectivo instrumento.

Mesmo nesse procedimento técnico voltado para a escrita da obra, propus inúmeros

questionamentos até conclusão do trabalho, afinal, é perguntando que o educador demonstra

que não só participa, mas também aprende convivendo com seus alunos. Confiramos outro

olhar dessa abordagem no diálogo a seguir.

Ao término de uma das aulas do teórico e pesquisador Humberto Maturana cuja

temática enfocava “O que ensinar? Quem é um professor?”, um ouvinte interroga-o com a

pergunta central: “Quem é o professor”. A resposta de Maturana desvela: “Alguém que se

aceita como guia na criação deste espaço de convivência. No momento em que eu digo a

Page 91: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

75

vocês: ‘perguntem’, e aceito que vocês me guiem com suas perguntas, eu estou aceitando

vocês como professores, no sentido de que vocês me estão mostrando espaços de reflexão

onde eu devo ir” (MATURANA, 1990) 12

. Considerando que tanto o ensino como a

aprendizagem são frutos da convivência, concluo que o professor é aquele que se posiciona

também como aprendiz nesse espaço que se compartilha. A reflexão trazida pelo autor

corrobora com uma proposta estético-educativa no sentido interativo das experiências e

considerações pessoais entre todos; encontros marcados por uma prática dialógica desvelam

aos alunos a legitimidade de suas contribuições para a construção do trabalho em conjunto.

Nas ilustrações da página a seguir é possível conferir alguns registros deste trabalho.

12 Transcrito do trecho final da aula de encerramento de Humberto Maturana no curso de Biologia Del Conocer,

Faculdad de Ciencias, Universidad de Chile, Santiago, em 27/07/90. Gravado por Cristina Magro; transcrito por

Nelson Vaz.

Page 92: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

76

Figura 3– Partitura do violino I.

Figura 4 – Partitura de violino I.

Page 93: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

77

Figura 5 – Partitura de violino I.

Figura 6 – Partitura de viola.

Page 94: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

78

Figura 7 – Partitura de viola.

Figura 8 - Partitura de contrabaixo

Page 95: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

79

Figura 9 – Partitura de violoncelo

Da descoberta das armaduras de clave (considerando cada instrumento da orquestra)

até as dinâmicas, foram muitas indagações e questionamentos. Cada criança escreveu sua

partitura de acordo com a clave do seu instrumento e após a conclusão do registro executamos

e contemplamos a sensação de dever cumprido, mas mesmo com o trabalho concluso, o

espírito inventivo ainda se fazia presente e outros palpites não queriam silenciar. Diante de

observações como essas, verifica-se que a essência do processo inventivo reside na eterna

novidade do fazer.

A primeira edição do material foi realizada e entregue às crianças, de maneira que

pudessem visualizar o primeiro movimento da composição com todos os instrumentos. A

edição gráfica deste trabalho pode ser conferida na página seguinte.

Page 96: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

80

Figura 10 - Partitura da obra Sinfonia Poética. 1ª Edição.

Page 97: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

81

Diante dessa partitura impressa, perguntei às crianças a respeito de alguns aspectos

problemáticos inerentes ao material. Segue baixo um recorte desse diálogo:

Professor: Aqui está a composição de vocês. O que faremos com ela agora?

Alunos: Temos que tocar!

Professor: Mas isso - (referindo-se ao papel) - não é uma música?

Alunos: Não professor, é uma partitura!

Nesse momento, nossa conversa caminhou no sentido de compreender a necessidade

da execução da obra e a importância daqueles que a executam, isto é, os intérpretes.

Professor: Daqui há alguns anos, vocês estarão trabalhando, cursando uma

universidade e talvez até morando em outra cidade, mas a composição de vocês continuará

fazendo parte do repertório da Instituição e outras crianças a executarão. Então, gostaríamos

de saber de vocês o seguinte: e se estes novos alunos resolverem dar outra interpretação para

a música?

Alunos: Não, isso não pode acontecer, professor! É errado! Uma resposta quase

unânime entre as crianças.

Professor: Nós já interpretamos de formas diferentes músicas de outros

compositores! Por que eles não poderiam também?

Alunos: Porque fomos nós que fizemos!

E assim conversamos por muito tempo a respeito dos problemas que circundam a

execução da obra, como também a possibilidade das múltiplas interpretações que recaem

sobre ela e também do contínuo ato de re-significação que nasce da capacidade imaginativa

Page 98: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

82

daqueles que a apreciam. Consensualmente, chegamos à conclusão de que a obra quando

“acabada” não mais pertence ao autor, mas sim ao mundo das interpretações e da imaginação

daqueles que a encontram. Conforme as reflexões elaboradas por Seincman,

A obra musical só se efetiva, de fato, na performance, em sua relação com os

ouvintes. Quando um compositor finaliza uma obra, ela já não mais lhe

“pertence”, passando a fazer parte de um “campo estético”: é nesse palco que

irá se consubstanciar seu “jogo”. A despeito de o senso comum acreditar que

o compositor teria mais condições de “explicar” a obra, ele passou à condição

de mais um de seus ouvintes e, devido à transcendência da experiência

estética, jamais poderá dar conta da infinitude de questões que ela suscita

(SEINCMAN, 2008, p.25).

Ao lado de outras grandes obras, hoje a Sinfonia Poética compõe o acervo de peças

dessa instituição, possibilitando aos alunos dizerem ao público: “nós compusemos”.

3.1.1 Reflexões a partir do relato de experiência

Ensina-me que eu esquecerei

Conta-me que eu lembrarei

Envolve-me que eu aprenderei.

Benjamin Franklin

O breve relato acima descrito tem por objetivo mostrar através da prática dialógica

reflexões estéticas e valorativas da produção artística enquanto atividade coletiva. Quando

conduzimos um trabalho por meio de perguntas, rompemos com os modelos tradicionais de

ensino que promovem um suposto saber legítimo e único dominado somente pelo professor,

em prol de uma concepção de ensino que valoriza e dignifica as experiências estéticas de cada

um, proporcionando entre todos os participantes atos solidários e respeitosos diante das

contribuições do próximo.

Como educadora musical, pude vivenciar algumas adversidades passíveis de

inviabilizar o trabalho de qualquer educador musical em espaços institucionais, situações

Page 99: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

83

muitas vezes incontornáveis; em quadros dessa natureza, procuro direcionar minha conduta

exclusivamente para os alunos respeitando-os acima de qualquer instância burocrática, pois

destinam total confiança ao meu trabalho como educadora. Considerando a premissa de que

um aprendizado fecundo pressupõe experiências significativas, penso que a qualidade desses

encontros entre educadores e educandos pressupõe respeito ao tempo de aprendizagem de cada

um.

Numa atividade de invenção, conforme pôde ser observado no relato do capítulo

anterior, como educadora e co-autora deste trabalho entre as crianças posso afirmar que, as

conquistas aqui descritas foram possíveis devido à quantidade de tempo que pude dispor para

realizar essa atividade. A partir das reflexões sobre o ato da experiência levantadas por Jorge

Larrosa Bondia, procurei desenvolver este trabalho sem a pressa da conclusão e do resultado

enquanto produto, vivenciando juntamente com meus alunos as dificuldades e conquistas

processuais deste trabalho inventivo; a obra em seu estágio acabado, ou seja, enquanto forma,

representaria apenas uma etapa desse processo realizativo. É no ato do fazer que o tentar, criar,

recriar, compartilhar, acertar, errar, modificar, aceitar, respeitar capacita o aluno para o

exercício da formatividade em cada ato do viver. De acordo com o referenciado autor,

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça, ou nos toque, requer

um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que

correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar

mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir,

sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender

o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a

atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos

acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro,

calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (BONDIA, 2002, p.24).

A realização de sinapses ou o estabelecimento de conexões significativas de

aprendizagem precede um espaço dialógico e amistoso entre aqueles que compartilham as

mesmas experiências, como também respeito ao ritmo individual da aprendizagem. Muitas

vezes a falta de tempo em determinadas situações do ensino assalta o trabalho do educador

fazendo com que experiências que deveriam chegar, tocar e acontecer de forma significativa

entre alunos e educadores tornem-se cada vez mais escassas. Bondia afirma também que:

Page 100: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

84

a experiência é cada vez mais rara, por falta de tempo. Tudo o que se passa

passa demasiadamente depressa, cada vez mais depressa. E com isso se reduz

o estímulo fugaz e instantâneo, imediatamente substituído por outro estímulo

ou por outra excitação igualmente fugaz e efêmera (BONDIA, 2002, p.23).

Dando continuidade aos desdobramentos da atividade de composição relatada

anteriormente, apresento a seguir um exemplo que ilustra as contribuições de uma atividade

vivenciada com a calma e sem a pressa descrita por Bondia. A ilustração em destaque ao

término desses escritos traz três poemas cada um deles acompanhado de uma pequena

composição criado por Carlos, aluno de nove anos que participou dessa atividade.

Próximo ao término das aulas letivas a Sinfonia Poética foi parcialmente finalizada e

como encerramento do semestre e antes do recesso escolar13

realizou-se um concerto

destinado somente às famílias e dirigentes da instituição. Ao retornar as atividades um mês

após o concerto fui surpreendida no primeiro dia de aula com o trabalho de Carlos.

Ao entrar na sala de aula preparado para o retorno de suas aulas individuais de

violino, Carlos motivado pelo simples prazer de criar, apresentou-me uma composição que

havia realizado sozinho durante o período de recesso escolar. Diante desse acontecimento

comecei a refletir sobre o que havia levado ele a compor; teria encontrado prazer no processo

criativo? Apenas como reflexão complementar, rememoro a narrativa inicial do capítulo três,

onde apresento o nascimento dos primeiros insights da atividade de composição, sob a

influência da atividade de apreciação musical em que as crianças puderam conhecer e

desfrutar da poética do compositor Gilberto Mendes. A meu ver, as obras puderam inspirar os

alunos no processo inicial de criação, mas é importante observar também que, antes de se

encantarem pelas obras, já havia um professor encantado por elas, assim sendo, proponho a

seguinte especulação estética: “Que significados residem no objeto artístico senão forem

aqueles atribuídos a quem lhes dirige o olhar?” Reconheço que além do fenômeno “coisal”, a

obra pressupõe em sua concretude feitos carregados de histórias daquele que a fez, no entanto,

em se tratando de espaços educativos, deparamo-nos com mais um fator a ser considerado: a

13 Nessa instituição de ensino o recesso escolar ocorre no mês de julho.

Page 101: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

85

relação do professor com aquilo que compartilha. Assim sendo, é importante ponderar também

o seguinte aspecto:

As qualidades de uma obra de arte inspiram e educam o professor. Em

consequência, o professor torna-se inspirador para o aluno, indicando-lhe

portas para aquelas qualidades. E essas qualidades, impregnadas de valor,

influenciam a sensibilidade do aluno, incentivando-o a ver-se como ser

criativo (PERISSÉ, 2009, p.55).

Apreciei sua obra e conversamos sobre as ideias que o levaram a compor e em

seguida executamos. Carlos me disse que suas pequenas obras haviam sido inspiradas na

atividade de composição realizada em conjunto na disciplina de orquestra. Sua produção foi

composta por três poemas no estilo de Haikai, cada um acompanhado de um pequeno discurso

musical. Os poemas foram escritos numa folha sulfite e a escrita musical numa folha pautada14

recortada e colada abaixo dos poemas. Esse acontecimento demonstra o quão significativo foi

para ele (e também para mim) a experiência composicional vivenciada naquela atividade de

criação (descrita no capítulo anterior). Assim sendo, acredito que, a transformação resultante

de feitos do passado possibilita que:

cada sujeito – professor e alunos – se torne autor: refletindo sobre o seu

vivido, escrevendo seus textos e estabelecendo novas relações com o já

produzido. Isto exige repensar o ensino como projeto, e para dar conta de um

projeto não se pode esporadicamente conceder lugar ao acontecimento. O

projeto como um todo tem de estar sempre voltado para as questões do

vivido, dos acontecimentos da vida, para sobre eles construir compreensões,

caminhos necessários da expansão da própria vida (GERALDI, 2010, p.100).

Penso que o envolvimento de Carlos com a atividade de criação musical possibilitou-

lhe uma experiência estética significativa que de fato tocou-lhe, proporcionando ações

autônomas e criativas longe do espaço institucional. A seguir, a ilustração da sua produção

artística para a apreciação.

14 Pentagrama musical.

Page 102: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

86

Figura 11. Três poemas e composições.

Page 103: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

87

3.1.2 O insight

Retomando o conceito de insight, é possível defini-lo como fase embrionária da ideia,

isto é, um esboço difuso e total dos primeiros passos da atividade inventiva. Os insights

trazem consigo experiências vividas socialmente por cada indivíduo e enquanto memória

carregada de significados constitui-se como guia responsável por agregar novas formas

criativas ao processo inventivo.

A plural e dinâmica rede de pensamentos que emerge das atividades conjuntas

desestabiliza propostas educativas que tenham como princípio um modelo normativo e

controlador em qualquer ação pedagógica, assim sendo, cabe ao educador uma conduta

reflexiva, cuidadosa e respeitosa frente às diferenças, com o objetivo de promover entre todos

os presentes dinâmicas saudáveis, amigáveis e construtivas para o trabalho em conjunto. De

acordo com as reflexões de Seincman,

Essa maneira de proceder, tão atual, toma como base o fato de que as

significações surgem a partir das relações em que operam “linhas de força”

que nós, observadores, analistas e intérpretes, costuramos dentro de um

determinado campo. É uma concepção polifônica da realidade (SEINCMAN,

2008, p.13).

Compreendo, pois, que é humanamente compreensível que o educador fique confuso

diante da variedade de insights que nascem num trabalho coletivo, assim sendo, ao propor uma

atividade musical que pressupõe o ato de criar, interpretar ou mesmo refletir, é importante

estar atento às relações que fazem os alunos, pois através delas é possível compreender

fragmentos de suas experiências vividas.

Atento às primeiras manifestações desses insights o educador musical atua como

mediador dessas ideias que despontam como os primeiros passos da invenção. Outro aspecto

importante que o educador deve orientar nesse percurso da inventividade consiste na prática

de produzir esboços e rascunhos, de modo que se possa preservar e registrar os “primeiros”

insights, uma ação essencialmente favorável ao trabalho de criação em contextos coletivos. O

comprometimento com o trabalho, a concentração e a dedicação, são observações que

Page 104: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

88

geralmente fazemos aos alunos justamente para não perder de vista “sementes aladas” do

pensar. De acordo com Pareyson:

É evidente que o insight é algo incompleto, não é preciso insistir neste ponto,

tamanha a distância que o separa da obra, a tal ponto que insights fecundos

são por vezes negligenciados por artistas apressados ou ocupados em outra

coisa (PAREYSON, 1993, p.123).

Nesse sentido, acredito que o educador possa contribuir com o grupo ou

individualmente com cada aluno através de perguntas esteticamente elaboradas a buscarem por

imagens e significados vagantes no mundo das ideias.

A todo segundo imaginamos e concebemos formas inventivas para o viver, doravante,

seria possível no bojo da formulação imagética identificar um insight artístico? Uma

lembrança, um sentimento, uma experiência de vida ou um costume podem suscitar insights

significativos passíveis de promover a inventividade de uma obra de arte? Segundo Pareyson,

sim, pois os aspectos comuns vivenciados pelo sujeito no cotidiano não se constituem como

insights artísticos, mas podem se tornar “quando se fazem vontade de forma e solicitam a

definição de sua vocação formal e reclamam uma matéria para manipular de certa maneira, e

impõem problemas artísticos, propondo ao mesmo tempo a solução para eles”

(PAREYSON,1993, p.127-128).

No momento em que os insights começam a ser manifestos entre os alunos -

conforme apresenta o relato descrito no capítulo anterior - é importante que o educador pontue

que o processo inventivo já começou. Nesse primeiro estágio da inventividade, por exemplo, é

possível valorizar o trabalho dos alunos, mesmo que ainda incipiente (em fase de esboço),

dando mostras de outras produções artísticas que resultaram em grandes obras que marcaram a

nossa história (na arte, na ciência, na astronomia, na biologia).

Embora esteja eu considerando o insight como o começo de uma invenção artística, é

importante compreender que estas fagulhas do pensamento estão presentes em toda

operosidade humana, caracterizada por sua completude e incompletude no processo de

realização de um trabalho artístico. Do ponto de vista da obra, enquanto matéria formante, o

insight reside em sua completude, pois insight e esboço conduzem a força motriz da

Page 105: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

89

formatividade e são completos por conterem os fragmentos do devir da forma. Por outro lado,

do ponto de vista da obra, enquanto matéria formada (acabada), o insight expõe a sua

incompletude, pois consiste apenas como imagem contendo tudo quanto a obra deve conter,

porém memorável e destituída de fisicidade. Nas palavras de Pareyson, os insights são

“incompletos, quando vistos como ‘momentos’ do processo de formação; e completos, se

considerados como este mesmo processo em ‘movimento’” (PAREYSON, 1993, p.121).

É importante ressaltar que a concepção pessoalista que fundamenta o pensamento

pareysoniano em voga nesta dissertação, possibilita a outras correntes filosóficas possíveis

interpretações do ponto de vista da metafísica, no entanto, a apropriação desse conceito de

acordo com a leitura e necessidade desta pesquisa, atribui ao conceito de pessoalidade tudo

quanto possa pertencer ao cultivo social e histórico de uma pessoa. Segundo Eco,

Uma pincelada, uma frase musical, um verso [...] são pontos de partida de

formação que, pelo simples facto [sic] de o serem e de consistirem numa

espécie de premissas de uma possível figuração, pressupõem um crescimento

orgânico segundo regras de coerência; mas estes pontos de partida só se

tornam fecundos quando o artista os segura e os faz seus – e faz da coerência

postulada pelo ponto de partida, a sua própria coerência, e, das várias

direcções [sic] a que pode aspirar, escolhe a que lhe é congenial e que, por

isso, será a única realizável (ECO, 1972, p.19).

Assim sendo, as primeiras manifestações de confusão que se apresentam numa

atividade de criação requerem atenção e respeito para que se fortaleçam e se desenvolvam,

pois trazem consigo a singularidade das marcas socialmente vivenciadas por cada indivíduo.

Page 106: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

90

3.1.3 O ato de perguntar: a chave para uma educação estética

Dá-me um ponto de apoio e erguerei um mundo.

Arquimedes15

A porta de entrada para uma relação dialógica e conscientizadora dos problemas

filosóficos que circundam o fazer artístico, depende da postura do educador em saber

perguntar e abrir-se para o inesperado das respostas, podendo de fato vivenciar a

formatividade nos atos operosamente humanos. Nas palavras do escritor e poeta José

Saramago, “tudo no mundo está dando respostas, o que demora é o tempo das perguntas”

(1994, p.225). O princípio de uma abordagem educacionalmente estética reside na prática

reflexiva entre alunos e professores, sendo o professor o principal responsável por suscitar um

diálogo de caráter especulativo. De acordo com Seincman,

Um campo de relações é um campo de vivências, de experiências estéticas,

do qual partem e para o qual convergem inúmeros atores, materiais ou não.

Neste contexto, o papel de um trabalho teórico não é “explicar”, mas levantar

questões e provocar centelhas que poderão iluminar, ao menos, uma parcela

desse infinito campo de relações (SEINCMAN, 2008, p.14).

Numa atividade artística que envolva invenção e produção a imaginação opera como

ferramenta essencial do ato criativo, porém, se a resposta de outrem tende a orientar o

processo ela será responsável por cercear e cristalizar o pensamento definindo verdades e

limitando o processo criativo, promovendo sua metamorfose em pura ideologia; em

contrapartida, se houver tempo para perguntas e especulações para que se possa refletir sobre

as respostas, é possível que se conquiste uma prática educativa reflexiva que transcenda os

limites impostos pelo trabalho unicamente definido pelos ideais do professor.

João Wanderley Geraldi em sua obra "A Aula Como Acontecimento" concebe o

exercício de formular perguntas como uma prática socialmente dialógica, capaz de transformar

15Arquimedes, Siracusa, 287 a.C. – 212 a.C.

Page 107: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

91

as experiências e os saberes que cada pessoa carrega em novas formas de conhecimento,

prática essa sustentada por tudo àquilo que se compartilha mutuamente através do discurso.

Segundo o autor, “aprender não é se tornar um depósito de respostas já dadas. Saber não é

dispor de um repertório de respostas. Saber é ser capaz de compreender problemas, formular

perguntas e saber caminhos para construir respostas” (GERALDI, 2010, p.96). Portanto,

formular perguntas e estar aberto ao encontro de respostas não esperadas promove aberturas

para acontecimentos que possibilitam a elaboração de novos pensamentos, propícios ao

enriquecimento da produção e reflexão sobre arte como um todo.

“É com as mãos cheias de perguntas que melhor nos orientamos no manuseio da

herança cultural” (GERALDI, 2010, p.96) que se desvela na formatividade segundo o ato

criativo de cada aluno. Quando se propõe uma atividade de composição musical, por exemplo,

é importante que os alunos tenham consciência de que as ideias que vão surgindo e se

transformando indicam a formatividade em operação e que este processo ocorrerá de maneira

distinta e única no trabalho de cada pessoa. Conduzir o trabalho através de perguntas traz à

tona significados e relações subjetivas que vão se materializando no formar; assim sendo, o

diálogo recíproco que se estabelece coletivamente encoraja e legitima a criação e a imaginação

de todos aqueles que estão imersos na formatividade artística.

É importante frisar que as nuances do processo formativo não se definem em

categorias precisas. Segundo a abordagem pareysoniana, a formatividade consiste num estágio

da obra em que o insight tenta ganhar formas no esboço. De acordo com o capítulo anterior, é

durante esse momento nebuloso de confusão e incertezas que o educador tende a atuar com

cuidado e atenção, pois as possibilidades revelativas que o processo formante proporciona se

evidenciam somente enquanto se forma.

Lembremo-nos sempre que a capacidade criadora transborda na confusão. Para

abrandar a inquieta, plural e complexa rede de pensamentos é importante que educador dê voz

à confusão dos alunos, de modo a compartilhar as dúvidas de um com a certeza de outros,

proporcionando-lhes sempre novas considerações, esclarecimentos e força criativa para o

próprio pensar. De acordo com Seincman:

Page 108: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

92

o conhecimento não provém do mero acúmulo de fatos, mas da qualidade de

relações que estabelecemos entre os fatos. Conhecer é realizar sinapses,

vínculos significativos, estabelecer conexões e nexos a fim de dotar o mundo

de experiências significativas. Os fatos estão aí, à espera de conexões que os

despertem. Não há fatos puramente “objetivos”, pois seu ser depende de

nossas interpretações. Resgatamos certos fatos do passado, que são

vivenciados no presente, e arquitetamos seu futuro a fim de que, neste

movimento errático e tentativo, dotemos o mundo de sentido (SEINCMAN,

2008, p.12[itálico meu]).

Nesse sentido, penso que os grandes feitos também são capazes de serem despertos

no bojo da confusão, e por meio de perguntas e do próprio diálogo as conexões e sentidos vão

se engendrando umas às outras.

O breve diálogo apresentado no primeiro cenário deste capítulo é um exemplo de

como as perguntas podem abrir portas para especulações estéticas em torno dos problemas

inventivos da arte, proporcionando também reflexões transcendentes da arte para a vida como

um todo. Usando o mesmo recorte apresentado no relato de experiência do capítulo anterior, é

possível verificar como uma simples pergunta pode revelar o fenômeno formativo presente no

processo de criação. Com base na resposta do professor, observa-se a ênfase que é dada ao ato

formativo e a conscientização do seu aventuroso percurso. Eis o diálogo novamente:

Professor: Vocês estão percebendo que as ideias parecem não ter fim? Porque isso

acontece?

Aluno: São muitas pessoas criando!

Professor: Você tem razão... são várias ‘cabecinhas’ criativas funcionando ao

mesmo tempo. É isso que acontece quando começamos a inventar. Parece que nossa

imaginação não tem fim. Mas vamos continuar e ver onde essas ideias nos levarão...

Através desse exemplo, é possível averiguar como uma simples pergunta pode levar a

respostas objetivas e pontuais, como também a caminhos amplos e subjetivos, possibilitando

Page 109: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

93

reflexões acerca da incapacidade humana de controlar os eventos da vida e a lida com a

inexaurível novidade dos acontecimentos para além da invenção artística.

Nize Maria Campos Pellanda apresenta em seu artigo “A música como

reencantamento: um novo papel para a educação”, um panorama das transformações ocorridas

na sociedade moderna que culminaram em modelos educacionais formalizados e divorciados

da vida. Segundo a autora,

A vida é pura virtualidade. Nós estamos continuamente atualizando nossos

potenciais de ser. Tudo é devir, tudo é vir a ser. Nossa vida depende de

nossas ações concretas. Com isso, podemos ir empurrando cada vez mais as

fronteiras da realidade. Não há limites para a construção pessoal e para o

conhecimento (PELLANDA, 2004, p.18).

Em continuidade ao pensamento da autora, afirmo também que, o ato de viver é

substancialmente pura formatividade, pois a todo o momento praticamos nossa capacidade de

inventariar a vida.

O processo de invenção e produção artística que compõem os exemplos desta

dissertação demonstra uma ínfima parte do complexo percurso da operação artística enquanto

fruto do ato de criar do humano; creio não ser possível dissociar a formatividade artística da

formatividade que dita as leis inventivas do viver. Tudo é devir, tudo é vir a ser. Em certos

momentos direcionamos nossas potencialidades para formar por formar, isto é, vivenciar a

produção artística - conforme a premissa pareysoniana - e quando essa produção se finda, tudo

continua vir a ser; a inventividade que nos move continua empurrando o indivíduo para outras

realizações criativas necessárias e fundamentais para a vida.

No mesmo texto, Pellanda propõe o seguinte questionamento: “Como criar uma

escola onde se aprenda a viver e a amar? Uma escola onde se invente a vida, onde possamos

fazer da vida de cada um de nós uma obra de arte?” Elaborar um modelo escolar de acordo

com os aspectos apontados pela autora talvez seja uma missão quase impossível mediante as

atuais estruturas burocratizantes das instituições de ensino públicas, por exemplo, mas acredito

na força do trabalho do educador como um sujeito ativo e ciente da operosidade formativa da

vida, conduzindo de maneira análoga atividades artísticas que emergem da motriz capacidade

Page 110: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

94

humana. Nas palavras de Geraldi, “o que importa é aprender a aprender, para construir

conhecimentos. Ensinar não é mais transmitir e informar, ensinar é ensinar o sujeito

aprendente a construir respostas, portanto só se pode partir de perguntas” (2010, p.100).

3.2. Quando nos inspiramos nas respostas...

Todos os dias sou influenciada de diversas maneiras pelos meus pequenos mestres, e

neste breve recorte contarei como algumas perguntas e respostas despertaram em mim ideais

inovadoras incorporadas hoje ao meu trabalho como educadora musical.

Venho desenvolvendo na cidade de Ribeirão Preto/SP um trabalho com crianças do

3º ano do fundamental I numa escola regular privada. Nesse contexto educativo, a prática do

ensino de violino se estabelece enquanto disciplina complementar da grade curricular. Além

das aulas de violino, as crianças do 3º ano dessa escola recebem semanalmente outras duas

aulas voltadas para variados tipos de vivências musicais.

Nesse espaço escolar a vivência artística (música, escultura, pintura, arquitetura,

trabalhos manuais, teatro, dança, ginástica artística) consiste no carro chefe da proposta

pedagógica que ali se propõe; seu espaço físico possui ampla estrutura para a realização de

eventos e atividades artísticas, composta por duas amplas salas de música e um teatro de

arena. A sala de música na qual pude vivenciar o breve relato que aqui será descrito, dispõe de

um piano de armário, vários instrumentos percussivos, estantes para partitura e amplo espaço

para a realização de atividades que contemplam movimentos corporais. Os instrumentos de

cordas são acomodados adequadamente na sala do 3º ano, são eles: quinze violinos16

específicos para crianças menores de nove anos (doze violinos tamanhos ¾, um ½, um ¼ e um

violino tamanho adulto) e o único instrumento tamanho adulto é destinado ao professor. Além

dos violinos a escola também possui dois violoncelos tamanhos ¾.

Geralmente, a turma do 3º ano do fundamental I é composta por no máximo trinta

crianças e para viabilizar a utilização dos instrumentos o grupo é dividido pela professora

16A posse desses instrumentos ocorreu mediante doações realizadas pela comunidade de pais e professores ao

longo dos últimos quinze anos e através de compras realizadas pela própria escola.

Page 111: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

95

tutora17

em duas pequenas turmas. Classificados como turma A e B, cada uma das turmas

recebem aulas com duração de 50 minutos.

As primeiras aulas de violino acontecem com as duas turmas juntas. Nesses primeiros

encontros realizo a distribuição dos violinos, observando a compleição física de cada um com

o objetivo de adaptá-los aos instrumentos; nesse primeiro encontro apresento o instrumento

executando algumas músicas e em seguida procuro mostrar algumas de suas peças, bem como

a função de cada uma delas. Um tipo de aula que praticamente sempre conduzi com a mesma

abordagem.

Durante essa fase de iniciação ao instrumento procuro sempre enfatizar

(demonstrando a partir do meu instrumento) os cuidados básicos e formas de manutenção do

instrumento, como também as peças que o compõem chamando a atenção para a fragilidade de

algumas delas, especificamente, cavalete e “alma’ 18

que se sustentam pela pressão das cordas

e dos tampos superiores e inferiores. Quando apresento a alma, assim como as outras peças

que constituem a parte interna do instrumento peço sempre para que os alunos observem-nas

através dos furos em “f”19

e certa vez, num momento como esse, um aluno me questionou em

tom de frustração porque eu não desmontava o violino para mostrar mais de perto os detalhes

internos. Ele queria conhecer melhor o interior do instrumento, olhar através dos furos em “f”

não bastava. Eu respondi ao aluno que não era possível, pois se descolássemos os tampos

romperíamos com a construção do instrumento. Uma vez descolado seria preciso ter pleno

conhecimento técnico para reparar os estragos, e também ferramentas específicas de lutheria20

.

Foi a partir desse momento que o aluno então propôs que construíssemos um violino para que

pudessem conhecer melhor o instrumento.

Conhecer um violino que não “desmontava” já estava se tornando algo frustrante para

aquele aluno, nesse sentido, com o intuito de levar aquele brilhante ideia avante perguntei a

17 Professora responsável pelas disciplinas de língua portuguesa e matemática.

18 Nos instrumentos da família das cordas, pequeno cilindro de madeira colocado verticalmente entre o tampo e o

fundo, um pouco atrás do pé do cavalete, e cuja função é transmitir as vibrações sonoras à caixa de ressonância, e

sustentar o tampo do lado direito, para que ele resista à pressão das cordas sob o cavalete (cf. AURÉLIO, 1975,

p.71). 19

Abertura artificial no tampo superior dos instrumentos de cordas com o formato da letra “f”. 20

Oficina especializada na construção e no reparo de instrumentos de cordas.

Page 112: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

96

todas às crianças como poderíamos realizar um trabalho como aquele. Sempre me surpreendo

com suas respostas criativas e inspiradoras. Alguns falaram da possibilidade de criar um

violino que desmonta usando papel, outros sugeriram como material a própria madeira. Diante

dos vários insights que nasciam daquela proposta, eu pensava que de uma forma ou de outra

haveria um jeito, afinal, se é possível construir é possível desconstruir! Um dos alunos sugeriu

que toda a sala fosse até a marcenaria da escola buscar pedaços de madeiras e cada um se

encarregaria de “recortar” uma peça. O tempo da aula já estava se esgotando e antes de

despedir-me das crianças, disse a elas que iria pesquisar sobre todas as possibilidades que

havíamos discutido naquela manhã sobre a criação de um violino que desmonta.

Esse acontecimento demonstra como o ato de perguntar vindo diretamente dos alunos

também pode desestabilizar e inspirar caminhos não previstos pelo professor, assim sendo,

verifico mais uma vez a importância da pergunta no diálogo entre alunos e educadores, pois

conforme pode ser conferido através da fala de Perissé, “estudar é praticar a arte da pergunta.

E ensinar nossos alunos a perguntarem” (2009, p.78).

Foi através dessa experiência que pude vivenciar com os alunos daquele 3º ano que

tanto insistiram na possibilidade de criar um violino desmontável, que fiquei motivada e

inspirada na realização desse projeto. A primeira etapa consistiu em encontrar um luthier que

pudesse desconstruir um violino e criar um novo a partir de algum mecanismo de encaixe. Por

fim, levou muito tempo até que eu conseguisse concretizar essa primeira etapa, e assim, não

pude compartilhar com as crianças os desdobramentos desse projeto tão demorado, porém

realizado! No ano seguinte mostrei o violino às crianças autoras deste projeto. A turma me

recebeu com brilho nos olhos e a reação de todos foi de grande satisfação. Não posso afirmar o

que de fato sentiram ao ver o projeto concluído, mas posso afirmar que as aulas iniciais das

turmas seguintes nunca mais foram as mesmas.

Diante desse exemplo, considero que, um ensino criativo independe dos recursos

materiais dispostos no ambiente da sala de aula, pois a criatividade nasce do encontro entre os

seres que buscam partilhar suas experiências num ato de coragem e respeito. Segundo as

reflexões levantadas por Perissé:

Page 113: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

97

o ensino nasce do encontro, desse influxo mútuo e desse enriquecimento

entre duas ou mais realidades. A sala de aula como espaço físico ainda não é

um âmbito. Podemos colocar móveis lá dentro, e até “encher” de gente. Mas

ainda não constitui um campo de jogo, um “tabuleiro” em que alunos e

professores dialoguem verdadeiramente e caminhem para uma unidade

dinâmica. Professores e alunos precisam tomar iniciativas para que a sala de

aula seja uma fonte de possibilidades criativas (PERISSÉ, 2009, p.86).

E foi assim, dando voz às perguntas e respostas das crianças que eu pude

compreender a importância de construir um violino desmontável. Confesso que a parte mais

difícil deste trabalho foi encontrar um profissional que aceitasse “estragar” um violino em

função de uma proposta como esta. E foi na cidade de Pirassununga/SP que encontrei um

jovem luthier que se dispôs a realizar este trabalho e para que o instrumento ficasse completo

era necessário adquirir suas peças. A partir de alguns acessórios quebrados ou sem uso, “restos

de lutheria” e doação de amigos consegui montar o “kit” do violino desmontável. Atualmente,

possuo mais peças do que preciso inclusive peças de violoncelo; falta-me apenas um

violoncelo desmontável (risos).

E assim, graças ao impulso do fazer e da ânsia por descobertas que marcam o

comportamento das crianças nessa fase nasceu o violino que desmonta, mas o espírito da

formatividade não parou por aí...

O violino didático foi tão bem recebido entre as crianças que continuei motivada a

criar outras ferramentas lúdicas voltadas para o ensino do instrumento, como o violino em

quebra-cabeças (figuras 15 e 16) e os “arquinhos” reciclados (figuras 17 e 18). Com a ajuda do

professor e artesão que ministra aulas de marcenaria nessa escola pude concretizar esses

projetos.

Elaborei o quebra-cabeça a partir de um desenho baseado nas proporções de um

violino tamanho ½ com os respectivos recortes de encaixe e entreguei ao professor como

modelo; o projeto ainda se encontra em fase de experimentação e acabamento, mas já vem

enriquecendo grandemente as aulas coletivas de violino. Hoje, as aulas iniciais são muito mais

interessantes, pois as crianças manuseiam os quebra-cabeças e conversam entre elas

Page 114: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

98

mencionando o nome de cada uma das peças, enquanto outras montam e desmontam o violino

didático.

Os “arquinhos” reciclados nasceram a partir de vários arcos quebrados que eu

guardava com o objetivo de transformá-los em algo a qualquer momento. E foi nessa fase

inspiradora que a ideia dos “arquinhos” reciclados nasceu.

O manuseio do arco na fase inicial do aprendizado do violino é bastante delicado e

requer habilidades motoras finas. Nesse momento de familiarização dos movimentos é comum

as crianças deixarem o arco cair no chão causando trincos ou danos irreparáveis; em

decorrência desses pequenos acidentes (em vários contextos educativos em que lido com o

violino) fui acumulando esses arcos danificados. Alguns dos arcos danificados encontravam-

se com a ponta quebrada, com o talão sem funcionamento, muito empenados ou quebrados ao

meio. Levei todos ao professor artesão e pedi para que complementasse um ao outro

encaixando a ponta de um no talão de outro, deixando-os pequenos e sem crina21

. E assim foi

feito. Mas para o quê eles servem?

A partir da confecção dos “arquinhos” didáticos posso desenvolver inúmeras

atividades de fortalecimento para os dedos entre outros exercícios técnicos de adaptação e de

fôrma da mão direita, sem a preocupação de caírem no chão e quebrar. Portanto, uma aula de

música sob a ótica de uma abordagem estética pressupõe as mais diversas experiências como

criar, executar, apreciar, refletir sobre música, escrever sobre música e porque não inventar

materiais didáticos? A produção desse material já ilustrou várias de minhas palestras e oficinas

em escolas e universidades, e o meu intuito consiste em cada vez mais poder demonstrar como

uma abordagem estético-educativa pode contribuir para um trabalho passível não só de

reflexão, mas também de cunho prático, no sentido de transformar materiais velhos em

materiais novos.

21 Fios extraídos do pescoço do cavalo responsáveis por causar atrito com as cordas do instrumento a fim de

produzir som.

Page 115: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

99

E aí está a função do professor, que sozinho não precisa dar conta dos

sentidos todos de cada um dos elementos constituintes da resposta à pergunta

formulada, mas é seu dever organizar com os alunos mais perguntas e buscar

em colegas, em profissionais, nas fontes, na herança cultural, os

esclarecimentos disponíveis; é aqui que a pesquisa começa, é aqui que o

caminho começa a ser construído e ele somente passa a ter existência depois

de percorrido, na narrativa que se escreve deste processo de produção. Enfim,

trata-se de pensar o ensino não como aprendizagem do conhecimento, mas

como produção de conhecimentos, que resultam, de modo geral, de novas

articulações entre conhecimentos disponíveis (GERALDI, 2010, p.97-98).

Em se tratando de um ensino que prima pelo desenvolvimento do aluno para além da

arte, postulo que “se a música for apenas uma matéria escolar entre outras, uma obrigação a

mais em nossa tão desejada ‘formação integral’, deixará de humanizar. Será obstáculo”

(PERISSÉ, 2009, p.74) e esse não é o objetivo da abordagem de estética e educação que aqui

proponho.

Page 116: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

100

Figura 12. Violino que desmonta I.

Page 117: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

101

Figura 13. Interior do tampo superior e inferior.

Figura14.Violino que desmonta montado!

Page 118: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

102

Figura 15. Quebra-cabeça I.

Figura 16. Quebra-cabeça II.

Page 119: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

103

Figura 17. Arquinhos reciclados

Figura 18. Material didático para o ensino de violino

Page 120: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

104

3.3 Segundo cenário: Solo para violino

Este relato traz considerações estéticas a partir de uma atividade realizada num

conservatório de nível técnico22

conhecido também por oferecer aulas de curso livre23

na

cidade de Ribeirão Preto/SP. Como professora responsável pelas aulas direcionadas ao público

infantil, pude vivenciar ao lado de muitos desses pequenos intérpretes-compositores incríveis

trabalhos de criação musical como este que vou aqui apresentar. Mas o leitor pode estar se

perguntando: “Atividade de criação musical numa aula de violino de curso livre? Onde entra a

abordagem estética”. Sim, reflexões estéticas são possíveis e necessárias num contexto como

esse e podem ser trabalhadas todos os dias!

Em se tratando de um curso voltado para atender famílias que primam por um ensino

musical de excelência para seus filhos, as aulas têm como enfoque conteúdos técnicos,

orientações de estudo diário, execução de peças de diferentes estilos e períodos (escritas

especificamente para o instrumento) e conhecimentos gerais sobre o instrumento, no entanto,

procuro não perder de vista atividades que contemplam a inventividade, pois a meu ver, ser

um bom violinista não pressupõe somente tocar afinado e ter bom domínio técnico, como

intérprete é preciso saber pensar sobre música e ser criativo para além da arte musical.

Além da ampla abordagem técnica que direciono a este trabalho como professora de

violino, sempre procuro dialogar com meus alunos no intuito de conscientizá-los sobre o

processo formativo da prática musical, como também a reflexão do seu próprio fazer; nesse

aspecto faço uso das palavras de Regis Duprat no seguinte sentido:

os que fazem as coisas bem seriam justamente os que refletem bem sobre o

que fazem; porque se não souberem refletir sobre o que fazem jamais se

tornarão bons no fazer. Insisto em que não há fazer sem a reflexão sobre esse

fazer; que existe uma instância pragmática em toda reflexiva, e uma instância

reflexiva em toda tarefa pragmática. O homem culturalizado de hoje não

pode mais abdicar dessa verdade. E toda vez que o faz ou que é constrangido

a fazê-lo, se robotiza. E essa ameaça de robotização, universalmente presente

em nossa civilização pós-industrial, tida como pós-moderna, constitui, talvez,

22Emite certificado de técnico em música com reconhecimento do MEC.

23Cursos que não emitem certificado reconhecido pelo MEC.

Page 121: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

105

o maior obstáculo para a livre expansão das potencialidades humanas e,

portanto, da liberdade. Diríamos, também, que essa robotização constitui uma

sobrevivência da modernidade, porque mecânica, no período da pós-

modernidade (DUPRAT, 2001, p.29).

Como mostra dessa abordagem, contarei a história da pequena Maria de sete anos,

aluna de violino desde os seis. Seu relato traz os desdobramentos de uma atividade de criação

musical solicitada como tarefa de casa. Vários recursos técnicos já faziam parte da sua

bagagem violinística.

Com o intuito de que ela pudesse explorar seus conhecimentos musicais e produzir

novos sons por meio deles sugeri como tarefa da semana uma atividade de criação musical. É

importante ressaltar que, Maria já possuía uma rica bagagem técnica violinística, embora seu

tempo de estudo ainda não tivesse completado um ano. Ao perceber seu desconforto por não

saber por onde começar, como ponto de partida pedi então que observasse os sons de sua casa,

de sua escola, das ruas ou dos parques de maneira que pudesse encontrar alguma ideia

inspiradora para a sua obra, ou seja, um

insight. A proposta consistia numa obra para violino solo. Combinados que a invenção poderia

ou não ser baseada em alguma cena do cotidiano, ficando a cargo dela os critérios de escrita e

registro da obra.

Na aula seguinte recebo Maria com as mãos ocupadas além do seu violino. De um

lado o instrumento e de outro uma bolsa e um papel escorregando pelas mãos. Esse papel era a

composição. Deixei-a à vontade para que apresentasse a composição como quisesse, e assim

preferiu pegar seu violino e tocar. Após a execução aplaudi e parabenizei-a pelo trabalho, em

seguida, Maria quis explicar-me cada detalhe. Enquanto narrava seu processo de criação e

escrita pude apreciar o percurso de sua inventividade observando cada detalhe do seu processo

de formatividade. Conforme afirma Pareyson:

o processo artístico pode ser ao mesmo tempo criação e descoberta, liberdade

e obediência, tentativa e organização, escolha e coadjuvação, construção e

desenvolvimento, composição e crescimento, fabricação e maturação. O que

caracteriza o processo artístico é precisamente esta misteriosa e complexa co-

possibilidade, que, no fundo, consiste numa dialética entre a livre iniciativa

Page 122: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

106

do artista e a teleologia interna do êxito [...] (PAREYSON, 1997,

p.192[itálico do autor]).

Da escolha do tema até a execução da obra, quanta coisa Maria desbravou sozinha!

Ela alçou voos por meio do diálogo implícito que corria entre suas ideias e o material (seu

instrumento) que impunha suas leis e normas internas de manipulação; foi tentando que

chegou a organização de sua obra e na escolha de cada elemento imprimiu suas marcas

deflagrando estilo próprio; no processo de construção explorou novas técnicas violinísticas; ao

alinhavar todas as ideias que brotavam a cada instante descobriu que sabia muita coisa que

achava que não sabia e a partir da complexidade desses instantes Maria percebeu-se como

violinista capaz de criar. Dando continuidade à essa atividade inventiva decidimos inscrever

sua composição na apresentação didático-semestral que aconteceria no auditório da escola no

próximo mês. Maria foi aplaudida de pé! A seguir o registro de sua obra.

Page 123: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

107

Figura 19. Registro da obra Solo para violino.

A temática da composição descreve um momento de banho inspirado no cotidiano da

própria aluna. O primeiro compasso apresenta sons de porta se fechando com a indicação de

batidas leves no tampo inferior do violino descritos pela autora como “bater atrás do violino”.

No segundo compasso a autora registra a seguinte frase: “tirar a roupa” e nesse momento a

execução é realizada com um movimento de detaché24

na madeira lateral do violino,

produzindo um som levemente “raspado”. No seguinte compasso produz-se o som da torneira

24Técnica de arco onde é realizado movimentos para cima e para baixo com o arco.

Page 124: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

108

indicando uma execução atrás da ponte25

resultando num som ríspido e com poucos

harmônicos26

. No quarto compasso a água do chuveiro que cai é representada mediante o uso

da técnica sul ponticello27

descrito pela autora como “tocar na ponte na corda sol e cantar”. O

cantar faz menção àqueles que gostam de “cantarolar no chuveiro”. No compasso cinco e seis

as gotas do chuveiro caem enquanto se fecha a torneira (novamente representada pelos sons

expressos atrás do cavalete). Nos compassos sete e oito o movimento de detaché na madeira

lateral do instrumento mais uma vez remete aos sons deslizantes da toalha e das roupas secas.

Ao término da obra, no compasso nove, a porta se fecha representada por batidas no tampo

inferior do instrumento conforme sua abertura.

A atividade de invenção foi um caminho para que Maria pudesse explorar não

somente sua musicalidade e processo criativo, mas também os conhecimentos técnicos do seu

instrumento adquiridos ao longo de sua rotina de estudos. Segundo as reflexões de Pareyson,

A habilidade de quem domina o ofício é a resultante da simples routine

(rotina, em francês no original): repertório de soluções, depósito de truques e

catálogo de “macetes”. Mas se a habilidade se alimenta das obras-primas e

faz seu ninho em uma memória operativa em que os modos de fazer,

entrelaçando-se organicamente entre si em uma progressiva acumulação,

enriquecem a própria energia formante da personalidade do artista,

manifesta-se então como a habilidade de quem, possuindo o domínio do

ofício, possui igualmente o próprio estilo (PAREYSON, 1993, p.157).

O contínuo exercício de uma memória operativa contribui positivamente para um

viver criativo cujas habilidades transcendem às realizações artísticas, ajudando-nos a refletir

sobre nossas condutas e convivência social.

A abertura da obra "A dança do universo" escrita pelo físico Marcelo Gleiser,

consiste num exemplo significativo acerca da importância da inventividade para a vida, como

25Designado também por cavalete consiste numa peça ornamentada cuja função é sustentar o peso das cordas e

transmitir suas vibrações para o interior do instrumento. 26

“Cada um dos sons produzidos numa série harmônica” (Novo Dicionário Aurélio). 27

Técnica que consiste na execução do arco sob o cavalete, resultado numa sonoridade ríspida e com poucos

harmônicos.

Page 125: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

109

por exemplo, na prática de um pensador da área das ciências naturais. Abaixo um trecho dessa

abertura.

Muitos pensam que a pesquisa científica é uma atividade puramente racional,

na qual o objetivismo lógico é o único mecanismo capaz de gerar

conhecimento. Como resultado, os cientistas são vistos como insensíveis e

limitados, um grupo de pessoas que corrompe a beleza da Natureza ao

analisá-la matematicamente [...] A ciência vai muito além da sua mera

prática. Por trás das fórmulas complicadas, das tabelas de dados

experimentais e da linguagem técnica, encontra-se uma pessoa tentando

transcender as barreiras imediatas da vida diária, guiada por um insaciável

desejo de adquirir um nível mais profundo de conhecimento e de realização

própria. Sob esse prisma, o processo criativo científico não é assim tão

diferente do processo criativo nas artes, isto é, um veículo de autodescoberta

que se manifesta a tentarmos capturar a nossa essência e lugar no Universo

(GLEISER, 1997, p.17[itálico meu]).

Por meio de atividades como essa é possível despertar mudanças de conduta muitas

vezes imperceptíveis aos olhos do educador, no entanto, quando o processo criativo é

reconhecido e valorizado pelo próprio aluno as fronteiras da arte se rompem para os mais

diversos campos do saber; nesse sentido, penso que atividades reflexivas em torno dos

problemas da estética contribuem significativamente para uma formação consciente e reflexiva

do próprio fazer.

Quando a aluna me entregou a cópia do material para compor as ilustrações desta

dissertação notei que haviam manchas que poderiam comprometer a leitura da sua obra, e logo

chamei a atenção para os problemas estéticos em torno das mutilações, do desgaste do

material, ou da pátina do tempo; fatos que não podem ser descartados por aqueles que lidam

com produções grafadas em registros manuais.

Do processo de realização dessa atividade até a produção desse relato muito tempo se

passou e a obra que nascera para ser executada encontrava-se na gaveta, o que na doutrina

pareysoniana também se configura como um problema de natureza estética, podendo ser

definido como “esquecimento do homem”. No ato em que esse parágrafo nascia pude

observar que o trabalho de invenção ainda continuava, mas por meio dos desses escritos.

Embora o registro de Maria traga consigo a pátina do tempo apresentando deformidade ao

Page 126: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

110

colorido dos seus desenhos, bem como nos textos explicativos da partitura, o presente capítulo

contribui para que sua obra seja lembrada por todos os leitores que por aqui passarem,

adquirindo novos olhares e novas interpretações, pois de acordo com Pareyson “a mutilação da

forma lhe compromete o perfil e a extensão, sem todavia destruir lhe a integridade” (1993,

p.108).

3.4 Terceiro cenário: Construindo um dicionário de música

Este cenário diz respeito a mais uma possibilidade educativa que suponho segundo os

conceitos estéticos que apresento nesta dissertação. Baseado numa atividade escolar

vivenciada por mim num contexto escolar privado de ensino fundamental I e II na cidade de

Ribeirão Preto/SP, o presente artigo descreve o processo de invenção e construção de um

material literário de música.

O relato que será aqui descrito foi apresentado no IV Encontro de Educação Musical

promovido pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP),

porém com poucas ilustrações dessa atividade. Nesta edição compartilharei todos os registros

dessa produção e detalhadamente as reflexões estéticas orientadoras desse processo. Antes de

relatar o percurso dessa caminhada pedagógica apresentarei ao leitor o presente cenário

escolar.

Como professora de música ministrei nessa instituição de ensino as disciplinas de

violino, prática de orquestra e apreciação musical. Caracterizado por seu ambiente familiar e

acolhedor o espaço físico dessa escola é conhecido pela comunidade de pais e alunos por fazer

menção a uma grande casa. O ensino fundamental é composto por três amplas salas

denominadas nível I, II e III. Em cada um dos níveis são agrupadas crianças com faixas etárias

distintas, possibilitando experiências significativas entre os mais velhos e mais novos. O nível

I recebe crianças dos seis aos oito anos; o nível II crianças dos nove aos onze anos; e o nível

III dos treze aos quatorze anos.

A principal filosofia por detrás deste trabalho reside na valorização das distintas

formas de pensar, tomando como princípio formativo a participação do outro como fonte do

Page 127: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

111

próprio aprendizado. Institucionalmente, esse modelo composicional de sala de aula recebe o

nome de salas de auxílio mútuo ou salas multi-seriadas. O mobiliário interior compõe-se por

quatro mesas redondas de quatro a seis lugares, prateleiras e armários disponíveis para o uso

de todos, inclusive os materiais escolares expostos sobre elas (lápis grafite, borrachas, lápis de

cor, giz de cera, entre outros utensílios). Além dessas três salas de aula o espaço escolar dispõe

também de secretaria, sala de professores, cozinha, refeitório, banheiros, quadra poliesportiva,

marcenaria, oficina de artes, sala de música, biblioteca, almoxarifado, amplo espaço de

convivência e apresentações em geral (teatro, saraus, concertos e formaturas), além das

repartições e instalações que comportam a educação infantil.

A sala de música, cenário onde essa atividade pôde ser desenvolvida, caracteriza-se

por seu amplo espaço físico propício para desenvolver atividades de roda e dança, possuindo

lousa pautada28

, giz, cadeiras, um piano de armário, dez violinos (tamanhos variados), um

violoncelo, uma bateria, instrumentos percussivos (alguns produzidos pelos próprios alunos da

escola), oito flautas doces, sendo cinco sopranos e três altos.

Imerso na proposta pedagógica deste contexto educativo, o relato trará possibilidades

de uma proposta estética de educação considerando a estrutura pedagógica da referida

instituição. É importante frisar que algumas especificidades aqui propostas se enquadram no

bojo temático e interdisciplinar dessa estrutura pedagógica.

Denominados unidades de trabalho os projetos interdisciplinares dessa instituição de

ensino têm como principal característica o uso de metáforas como fio condutor das atividades

a serem realizadas por cada uma das disciplinas. Nesse contexto, a metáfora se dispõe como

uma porta de entrada especulativa, possibilitando às diferentes áreas de conhecimento uma

relação dialógica entre os conteúdos; assim sendo, a abertura das aulas de todas as disciplinas

se dá sempre através da mesma metáfora. Segundo a educadora e pesquisadora Balieiro, “as

metáforas nos ajudam a compreender uma ideia recorrendo à outra ideia, sustentando a rede de

relações que configura nosso espaço vivencial, ou seja, nossa cognição” (BALIEIRO, 2004,

p.1).

28 Pauta ou pentagrama musical.

Page 128: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

112

O conteúdo em foco não é apresentado a princípio, mas aos poucos, com a

contribuição da metáfora e das demais áreas do conhecimento sua essência vai sendo

desvelada. Baseado nas reflexões de Balieiro, no contexto escolar “as metáforas deveriam

sugerir, de forma velada e implícita, os conteúdos, que deveriam ser descobertos, buscados e

compreendidos pelos alunos nos recorrentes períodos de conversações que aconteciam nas

salas de aula” (BALIEIRO, 2006, p.36).

A partir das práticas educativas interdisciplinares que pude vivenciar e desenvolver

em parceria com outros educadores nesse específico contexto educativo compartilharei mais

uma pequena uma mostra desta proposta estética de educação musical através da construção

de um dicionário de música.

Oh! Abre alas! Rumo ao dicionário de música

Antes dessa unidade de trabalho ser desenvolvida as crianças de nível I, isto é,

crianças entre seis e oito anos, haviam vivenciado estudos correspondentes aos aspectos

sociais e culturais do Brasil no período do Segundo Reinado enfocando a cidade do Rio de

Janeiro. Com o intuito de dar continuidade aos estudos desse contexto que haviam sido

trabalhados na unidade anterior a professora responsável29

apresentou aos docentes da escola

uma nova unidade de trabalho a ser desenvolvida com a sala do nível I. Visando aprofundar

aspectos artísticos em voga nessa época, como também a possibilidade de realizar um trabalho

inventivo e executivo, a professora responsável elegeu como conteúdo daquela unidade a arte

e a vida da compositora Chiquinha Gonzaga e como metáfora da unidade apresentou a

seguinte frase exclamativa: Oh! Abre alas!

Como professora de música e parceira deste projeto interdisciplinar apresentei aos

docentes uma proposta que pudesse integrar atividades de criação, execução e produção

literária fundamentado na temática central da unidade de trabalho que seria desenvolvida.

29 Designada como tutora é também responsável pelas disciplinas de língua portuguesa e estudos sociais.

Page 129: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

113

Como atividade literária e de criação seria proposto a construção de um dicionário de música e

como atividade de prática a vivência de cada um dos verbetes que ali fossem elencados.

Os primeiros passos da minha aula foram dados com atividades de apreciação a partir

de algumas obras da compositora; em seguida lancei às crianças algumas perguntas acerca das

profissões desempenhadas pela artista ao longo de sua carreira a partir de informações trazidas

pela biografia que há alguns dias já vinha sendo utilizada pelos professores de outras

disciplinas. Propus aos alunos então, que recriássemos em nossa aula um dos trabalhos da

artista para que pudéssemos compreender na prática alguns dos seus ofícios e por meio dessa

vivência elaborar definições que pudessem substanciar o dicionário de música que

construiríamos, assim sendo, regência foi o primeiro tema eleito como primeiro passo dessa

aventura. É no próprio ato de invenção e produção, conforme apresenta a formatividade

pareysoniana, que o fazer gera outros fazeres; de acordo com as reflexões de Luigi Pareyson

que fundamentam esses escritos de estética e educação:

Seja qual for a atividade que se pense em exercer, sempre se trata de colocar

problemas, constituindo-os originalmente dos dados informes da experiência,

e de encontrar, descobrir, ou melhor, inventar as soluções desses problemas.

Sempre se trata de concluir e levar a cabo operações, ou seja, de produzir,

realizando, efetivamente, executando e de concluir o movimento de invenção

em uma obra que se esboça e se constrói com base numa lei interna de

organização. Sempre se trata de fazer, inventando ao mesmo tempo o modo

de fazer, de sorte que a execução seja a aplicação da regra individual da obra

no próprio ato que é a sua descoberta, e a obra “saia bem feita” enquanto, no

fazê-la, se encontrou o modo como se deve fazer (PAREYSON, 1993, p.21).

Diante dessa abordagem filosófica enquanto processo educativo, organizamos um

pequeno grupo e chamamos de orquestra com o objetivo de vivenciá-la enquanto um fazer,

pois somente no ato do fazer é possível encontrar outros modos significativos de fazer, como

por exemplo, redigir sobre.

Como repertório inicial as crianças pediram para executar a marchinha Oh! Abre

alas! Uma das obras da compositora que há alguns dias já vinha fazendo parte do repertório

daquela sala.

Page 130: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

114

A nossa orquestra experimental foi composta por apenas dois naipes - percussão e

madeiras - e aos músicos foi proposto um revezamento para que todos pudessem vivenciar a

prática da regência. Todos tiveram a oportunidade de conduzir a orquestra; as crianças

observavam que cada um que se propunha a reger trazia estilos e gestuais bastante diferentes.

Em se tratando de uma abordagem estético-educativa, durante a atividade eu perguntava para

os membros da orquestra quais dentre os regentes estavam atuando com maior clareza em seus

movimentos, de maneira que pudesse estimulá-los a dialogar sobre a importância dos gestos e

interpretações musicais. Em duas aulas todos puderem vivenciar a prática de regência e assim

desenvolveu-se a práxis musical dessa atividade.

Em continuidade ao trabalho o grupo optou por eleger um regente oficial que pudesse

dar conta de conduzir o trabalho caso viessem a se apresentar. Enquanto ouvíamos os regentes

falarem sobre suas considerações musicais, apreciávamos suas reflexões estéticas sobre a obra;

naquele contexto, enquanto condutores, suas interpretações confluíam com as dos outros

alunos - na posição de intérpretes - que também propunham ideias sobre outras possibilidades

interpretativas.

Faço uma observação interessante: ao propor o exercício de regência todos quiseram

reger mesmo sem nenhuma explicação a priori. Em se tratando de um espaço educativo onde

a vivência musical é tida como prática diária dos estudos, determinadas explicações podem ser

desnecessárias, podendo ser observado na reação das crianças ao se disporem a reger sem

nunca antes terem regido.

Prosseguindo, procurei conduzir a atividade levantando questões de modo que o

grupo pudesse dialogar sobre o melhor caminho para a execução, tanto do ponto de vista da

interpretação dos músicos como do regente.

No início da atividade o ato de reger resumia-se apenas na movimentação dos braços,

mas aos poucos os alunos foram se deparando com as dificuldades que encontram um

“ensaiador” em seu ofício. Dinâmicas solicitadas através de gestos e não atendidas, cortes não

respeitados, andamentos sem sincronia, foram algumas das dificuldades observadas por eles.

Em contrapartida, os músicos também se depararam com a problemática de conceber um

Page 131: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

115

acabamento musical em equipe, no entanto, o diálogo com outro e a aceitação das propostas

alheias legitimavam o trabalho que ali era realizado por todos. Segundo Pareyson,

Um modo de formar se torna comum sobretudo pela participação em uma

mesma situação histórica e no ambiente cultural em que estão igualmente

imersos os vários autores, por um lado ligados a seu tempo e, por outro,

capazes de reagir livre e originalmente à sua época. De tal sorte que, assim

como um semelhante modo de pensar, viver, sentir liga os espíritos de um

determinado tempo, da mesma forma os vincula um modo semelhante de

formar (PAREYSON,1993, p.36).

Ao tomar os pressupostos estéticos da formatividade pareysoniana como fundamento

do trabalho artístico em diferentes espaços de educação, pude observar que o processo

formativo das crianças cria vínculos significativos com o processo umas das outras.

Considerando a inventividade e a formatividade como fenômeno humano carregado pela

historicidade de cada pessoa, verifica-se a importância e a influência que exercem o fazer de

cada um na constituição social do outro.

No comentário a seguir, destaco uma observação feita por aluna durante o ensaio:

“Você (dirigindo-se ao regente) precisa esperar a gente terminar de tocar as notas da melodia

(frase), senão vai ficar tudo pela metade”! Questionei os regentes se era adequado ou não

cortes no meio das frases musicais; para facilitar a compreensão pedi aos alunos que

imaginassem como soaria se fosse um coral cantando com frases cortadas ao meio. E assim

prosseguimos com o ensaio na tentativa de executar cada um dos ritmos e frases em conjunto.

Na terceira aula foi escolhido um regente titular e um assistente, bem como um spalla

para a orquestra com o objetivo de organizar um concerto a todos da comunidade escolar.

Ao fim dessa etapa prática procuramos pontuar os aspectos característicos desse

ofício e a partir das considerações que cada criança trazia mediante a vivência de orquestra foi

possível dar os primeiros passos na elaboração do dicionário de música. A lousa nos serviu

como esboço provisório para o desenvolvimento conjunto de tais conceitos.

Page 132: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

116

Para finalizar a construção deste material a colaboração do professor tutor30

foi de

grande importância. A revisão gramatical foi orientada pelo mesmo e em seguida o esboço foi

transcrito na aula de língua portuguesa para as páginas originais por algumas das crianças.

Passível de revisão ou novas edições o dicionário encontra-se disponível a todas as

crianças da escola e sempre que surgem dúvidas referentes aos temas por elas vivenciados

procuram recorrer a ele. Através dessa mesma abordagem foi possível construir mais quatro

verbetes, entre eles estão: música, ritmo, pulso e melodia, todos extraídos dessa mesma

unidade de trabalho.

Na tentativa de criar uma memória para o trabalho de produção e pesquisa musical

realizado pelas próprias crianças organizou-se na nossa sala de música um acervo contendo

além do dicionário, composições (escritas), áudios das apresentações e instrumentos também

confeccionados por elas.

Ações dessa natureza legitimam não somente a atuação prática das crianças em

concertos e demais apresentações, mas também suas produções literárias fomentando um

ambiente reflexivo, de produção e pesquisa. Neste caso, o registro escrito torna-se tão

relevante quanto o registro sonoro. Aproprio-me dos pressupostos pareysonianos para o campo

da educação musical no sentido de que:

Seja qual for a atividade que se pense em exercer, sempre se trata de colocar

problemas, constituindo-os originalmente dos dados informes da experiência,

e de encontrar, descobrir, ou melhor, inventar as soluções desses problemas.

Sempre se trata de concluir e levar a cabo operações, ou seja, de produzir,

realizando, efetivamente, executando e de concluir o movimento de invenção

em uma obra que se esboça e se constrói com base numa lei interna de

organização. Sempre se trata de fazer, inventando ao mesmo tempo o modo

de fazer, de sorte que a execução seja a aplicação da regra individual da obra

no próprio ato que é a sua descoberta, e a obra “saia bem feita” enquanto, no

fazê-la, se encontrou o modo como se deve fazer (PAREYSON, 1993, p.21).

Partindo do pressuposto de que a ciência nunca deve se estancar, porém manter-se

sempre aberta para novas investigações, penso que as atividades que desenvolvemos com

30 Nesta instituição escolar o professor tutor consiste num profissional da área de Letras que acompanha as

atividades diárias das crianças. Além de orientador, ministra também as disciplinas da língua portuguesa.

Page 133: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

117

nossos alunos deveriam consubstanciar-se também enquanto fonte de pesquisa contribuindo

para o desenvolvimento reflexivo, criativo e social. Assim sendo, é possível tornar a sala de

aula num campo de cientistas, estetas, criadores e pesquisadores.

Acredito que experiências como esta é de extrema importância para a formação da

criança, e um dos papéis que considero fundamental a ser desempenhado pelos educadores

musicais é o de proporcionar aos alunos vivências colaborativas e de auxílio mútuo,

promovendo também respeito às propostas artísticas de cada um. O fomento ao registro de

determinadas atividades, bem como sua preservação e compartilhamento adequado

contribuem também como mostra valorativa de produções coletivas.

Se por um lado as ferramentas tecnológicas têm garantido o registro de importantes

atividades escolares – no sentido de preservar a história do trabalho artístico nas instituições –

por outro, quando se trata de diálogos estéticos sobre música ou arte em geral, muito pouco do

que é experienciado é registrado (no aspecto da escrita). Todas as formas de registro

possibilitam o fortalecimento da memória do trabalho dos alunos, como também das

instituições às quais estão inseridos.

Baseado nas reflexões de Marisa Ramos Barbieri, os registros escolares constituem-se

como fonte de pesquisa e os laboratórios se consubstanciam como espaços de verificação e

materialização das reflexões científicas. Tomando como exemplo o campo da ciência e suas

tecnologias - cujo registro é essencial - como modelo comparativo ao campo das práticas

educativas em música, como educadora musical certifico-me através de todos esses anos de

trabalho, o quanto somos agraciados por poder vivenciar ao lado dos nossos alunos

verdadeiros experimentos artísticos, porém, é importante lembrar que para que nossa

disciplina possa ter desdobramentos relativos aos das áreas científicas, é preciso fazer história,

afinal, quantas observações estéticas são abandonadas e esquecidas ao longo de uma aula?

Quantas observações que nos levam a respostas - Eureca! - e que no dia seguinte esquecemos.

Pois bem, como profissional responsável pela formação de cada criança que a mim é confiada,

sei que é quase impossível registrar tudo, pois se trata do dinamismo da vida que corre em sala

de aula, no entanto, o mais importante é não perder de vista ações educativas legitimadoras de

saberes individuais em confluência com o do próximo.

Page 134: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

118

A ilustração a seguir apresenta a página do dicionário de música elaborado pelas

crianças contendo definições do ofício que possibilitou a artista Chiquinha Gonzaga difundir a

sua arte enquanto regente.

Page 135: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

119

Figura 20. Regente.

“O regente é a pessoa que ajuda os músicos a tocar juntos; às vezes, o regente

rege apenas alguns músicos”.

“O instrumento do maestro é a batuta que serve para ajudar os músicos”.

“O regente usa gestos para ajudar os músicos com sons mais altos ou mais

baixos. Quando ele abre muito os braços eles tocam forte e quando não abre

muito eles tocam fraco”.

Page 136: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

120

Quando o educador musical se propõe a conduzir suas atividades por meio de

perguntas e diálogos especulativos, é importante estar consciente dos caminhos inusitados que

o curso das respostas poderá conduzi-lo; as reflexões de Perissé confirmam essa premissa:

Abrir caminhos, dedicar-se à arte de ensinar, é atividade repleta de incertezas

quanto ao desenrolar dos acontecimentos, à reação dos alunos, aos resultados.

Incertezas não assustam o artista. A vida é incerta, a despeito dos nossos

esforços e conjecturas. O relacionamento humano é incerto. A arte nos ensina

que a vida é uma obra de arte em andamento, repleta de surpresas (PERISSÉ,

2003, p.88).

A descrição do processo de elaboração do verbete que compartilho a seguir é um

exemplo desses momentos de incerteza e surpresa vivenciado no decorrer desse trabalho.

Durante a atividade de regência desenvolvida na unidade de trabalho que teve como

base a biografia da compositora Chiquinha Gonzaga, falou-se muito sobre aspectos de

andamento e rítmico. Baseado nos diálogos que realizamos acerca dos andamentos achamos

oportuno levar também para o dicionário o verbete da palavra “pulso”.

Diante dos diálogos em torno da palavra “pulso” houve um fato que marcou essa

atividade. Como responsável pelas aulas de música dessa turma, estava eu acostumada a

mencionar “pulso” como “tempo” e somente no decorrer dessa atividade atentei-me para as

complicações desse hábito. Quando começaram a esboçar definições para a palavra “tempo” e

não pulso, percebi que a confusão já estava instalada. Ouvi respostas incríveis, mas nenhuma

delas relacionadas à prática musical. Uma delas dizia: “Professora, o tempo é assim.... olha já

passou!” e outra que muito me chamou atenção dizia o seguinte: “Eu sei o que é, mas se você

me pergunta eu já não sei”. Imediatamente após a aula comentei com a professora responsável

pelo grupo sobre a frase que me chamara atenção e para a minha surpresa, a professora disse

que havia mais de um mês que o professor de matemática havia proposto como metáfora de

uma unidade de matemática a seguinte frase do filósofo Santo Agostinho: “Que é, pois, o

Page 137: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

121

tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se quiser explicar a quem me pergunta, não sei” (cf.

AGOSTINHO, 1973)31

.

Esse exemplo dá mostras de uma experiência profundamente significativa vivenciada

outrora pelas crianças que desabrocharam na aula de música. Dias depois comentei com o

professor de matemática que ficou surpreso com a lembrança dos alunos.

A partir desse exemplo chamo a atenção para aspectos que vão além da música. Na

tentativa de corrigir a minha falha poderia eu ter ignorado todas as reflexões conduzindo os

alunos a uma nova compreensão da palavra “pulso”, mas a discussão já estava instalada e eu

preferi dar continuidade às reflexões sobre tempo, e por que não dizer estéticas?

Diante desse exemplo pude observar a importância de um trabalho significativo para

a vida dos alunos como um todo, pois a capacidade de imaginar e costurar experiências do

passado com o presente vislumbrando desdobramentos futuros só é possível mediante as

marcas daquilo que foi vivido. Carregado de sua historicidade e formulações oriundas do

diálogo ou da fala de outrem, em sendo o educador um esteta em sala de aula é possível

observar fagulhas e fragmentos dessa complexa trama humanamente inconclusa em sua

31

Ao anoitecer recebi da professora o seguinte e-mail dizendo:

Sara, boa noite,

professor de matemática, quando trabalhamos Unidades passadas, ele comentou sobre essa frase, não me lembro

como era nem de onde ele tirou, mas impressiona nossa aluna ter guardado o conhecimento para usar no

momento adequado. Perceber que crianças tão jovens fazem isso é um ganho do trabalho que passa pela

imaginação e não só de conteúdos ‘formais’. Você pode investir nisso, pois é observadora e sensível. Fiz para

você pela sua capacidade de trabalho. Pelo seu entusiasmo hoje na hora do almoço. Nem dei acabamento, fiz e

pronto:

Professora encantadora de alunos,

Para isso nem precisa de violino.

Basta percussionar,

Basta chegar.

Professora encantadora de alunos,

Para isso pode precisar do violino

Basta tocar,

Basta chegar.

Professora encantadora de alunos,

Para isso basta chegar.

Page 138: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

122

realidade e dinâmica social. Na ilustração da página seguinte segue o material contendo a

definição de “pulso” em música

Figura 21. Pulso.

“O pulso sempre se mantém. Pode ser lento ou rápido”.

Page 139: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

123

O verbete de música nasceu a pedido das próprias crianças, afinal de contas, como

elaborar um dicionário de música sem a principal definição que seria música? Nesse sentido, a

partir das considerações que as próprias crianças formulavam pude apreciar o conceito de

música de uma forma simples e enriquecedora.

O tempo de vida e as experiências que adquirimos ao longo desse viver consistem no

principal aspecto que nos diferencia desses pequenos enquanto indivíduos criativos.

Conceituar música trata-se de compreender aspectos altamente complexos, e por alguns

instantes fiquei pensando: “Como eu definiria música? Música em qual contexto social e

cultural? Música enquanto processo inventivo ou executivo? Música do ponto de vista de

quem faz ou de quem ouve?” Concluí rapidamente minhas reflexões convicta de que precisaria

escrever uma tese a respeito, portanto, o melhor caminho seria considerar somente as

definições que fossem elaboradas por elas. E não demorou para que essas elaborações

“conceituais” começassem a fluir, pois nesse contexto educativo a vivência musical é

complementar à rotina de estudos. Penso que atividades que proporcionem aos alunos o

desenvolvimento de seus espíritos criativos e especulativos “é uma questão de sobrevivência,

na medida em que integre um projeto de humanização” (PERISSÉ, 2009, p.90).

Vivenciar música por meio da imitação, improvisação, dança, criação, interpretação,

produções literárias ou do ato contemplativo proporciona ao humano experiências

significativas para além dos próprios fenômenos artísticos. Conforme as reflexões do autor:

O dinamismo criador não pertence exclusivamente ao artista. A experiência

que tenho ao ler uma obra literária de qualidade, ao ouvir uma canção

comovente, ao deter meu olhar sobre um desenho engenhoso, ao assistir a um

filme bem feito, ao acompanhar os diálogos de uma peça teatral... pode levar-

me a uma nova compreensão da realidade e de mim mesmo, a uma

compreensão lúdica, isto é, a uma interpretação que supera reducionismos,

calculismos e outros “ismos” limitantes. Pode até, despertar em mim o artista

que eu não acreditava ser (PERISSÉ, 2009, p.37).

As definições que foram sendo atribuídas ao verbete de música pelas crianças,

desvelaram significados dessa arte em suas vidas, tanto como disciplina escolar quanto

Page 140: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

124

experiência ligada à vida conforme pode ser observado nas seguintes frases que integram o

verbete: “É uma aula onde tocamos, ouvimos e imaginamos música. Pode servir de consolo na

tristeza”. Na ilustração da página seguinte em destaque as frases que compõem esse verbete.

Page 141: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

125

Figura 22. Música.

“É uma aula onde tocamos, cantamos, imaginamos e ouvimos música”.

“É ter imaginação e atenção”.

“Pode ter muitos estilos a sua frente. Pode ser calma e agitada”.

“Pode ser criada a partir do silêncio e da audição”.

“Pode servir de consolo na tristeza”.

Page 142: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

126

Figura 23. Música.

“Pode nos fazer sentir alegria, tristeza, raiva, medo, susto”.

“Nasce a partir dos sons dos instrumentos musicais, das notas musicais com

diferentes durações, do jeito que se ouve, dos estilos e das ideias do compositor”.

“É o tempo que passa”.

Page 143: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

127

Inspirando outras crianças...

A produção do dicionário inspirou outras crianças a produzirem novos materiais

literários. Com a justificativa de poder orientar aqueles que chegassem à escola sem nunca

terem praticado o violino32

, os alunos do nível II decidiram escrever um livro didático voltado

para a técnica do instrumento. Expliquei a eles que a produção do dicionário de música que

havia sido construído pelas crianças do nível I fora elaborada segundo experiências práticas.

Sugeri então que, observassem a partir de suas aulas práticas de violino aspectos técnicos

relevantes que pudessem ser transcritos em forma de orientação aos alunos iniciantes.

No decorrer das aulas de instrumento entre um exercício, uma escala ou uma peça

que o grupo executava conversávamos sobre informações técnicas que pudessem servir como

conteúdo do livro que seria destinado aos alunos ingressantes. Discutimos também sobre a

qualidade do texto, de modo a proporcionar a todos uma leitura fluída e compreensível do

assunto. Embora a produção literária do livro tivesse o apoio da professora de língua

portuguesa, como também da professora responsável pelos trabalhos manuais (auxiliando no

acabamento e confecção do livro), a atividade precisou ser interrompida para que outra

envolvendo um maior número de alunos pudesse ser desenvolvida em conjunto. A seguir os

resultados parciais deste trabalho.

32 A aula de violino compõe a grade curricular dessa escola a partir do nível II.

Page 144: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

128

Figura 24. Detaché.

“Detaché. É o movimento de arco para baixo e para cima. O detaché pode ser

tocado com o arco inteiro ou meio arco. Geralmente, é a primeira técnica que

aprendemos e, muitas vezes, a aprendemos sem saber o seu nome”.

Page 145: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

129

Figura 25. Pizzicato, Trêmulo e Martellé

“Pizzicato. O pizzicato é uma técnica que usamos sem arco. Puxamos a corda com

o dedo indicador direito”.

“Trêmulo. É uma técnica em que o violinista toca rápido usando pouco arco

próximo à ponta”.

“Martellé. É uma técnica na qual utilizamos a parte do meio do arco. Ao movimentar

o arco para cima e para baixo, é preciso inserir uma pausa entre cada movimento

do arco. É importante tocar com pressão e velocidade”.

Page 146: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

130

3.5 Quarto cenário: Reflexões sobre a prática

Neste cenário apresento reflexões sobre a prática musical - envolvendo a técnica -e a

importância do seu registro; esse relato poderia ser questionado no seguinte sentido: Como

que uma atividade técnica pode-se configurar numa proposta estético-educativa? Aliás, é

possível a aplicação de uma abordagem estética segundo os fundamentos apresentados nesta

dissertação numa aula individual de instrumento?

A realização dessa atividade se deu na cidade de Sertãozinho no mesmo contexto

educativo descrito no primeiro cenário33

deste capítulo. Resultante das aulas individuais de

instrumento (nesse caso de violino) as figuras ilustrativas que serão aqui apresentadas trazem a

produção do livro intitulado “Dicas para violinistas” produzido pela aluna Juliana de oito anos.

Juliana é aluna de violino desde os sete anos nessa instituição de ensino e iniciou seus estudos

de música sob o incentivo da família e de sua irmã mais velha, também violinista desde os sete

anos de idade.

Durante uma de suas aulas (individual) de instrumento, enquanto executava o

repertório, chamaram-me a atenção alguns detalhes técnicos que cuidadosamente Juliana

operava. Com o intuito de que ela se conscientizasse de tal habilidade de forma a engrandecer

ainda mais a sua aptidão lancei uma pergunta: “Nossa! Como o som está bonito! O que você

fez para conseguir esse resultado?” Baseado numa abordagem estética de educação penso

também que, “a admiração pode e deve deflagrar o pensamento, provocar perguntas, sacudir

inércias” (PERISSÉ, 2009, p.26); diante disso, a pergunta pegou-a de surpresa, pois ela mesma

parecia não estar atenta para seus movimentos técnicos, apenas tocava demonstrando de

maneira fluída seu domínio instrumental. O meu intuito era que ela pudesse sedimentar seus

conhecimentos técnicos também no âmbito do pensar. Após ser indagada, Juliana retomou os

mesmos movimentos violinísticos e começou a formular suas explicações. A partir das

reflexões que elaborava para responder minhas perguntas pude apreciar a forma com que

articulava suas bases teóricas, verificando também a formatividade do seu pensamento

conectado a fala.

33 Conferir maiores detalhes na página 40.

Page 147: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

131

Em virtude da reação positiva que apresentava Juliana diante das conversas que

tínhamos sobre aspectos técnicos do instrumento, procurei conduzir as aulas pelo mesmo

caminho das perguntas até que um dia disse a ela: “Você bem que poderia me ajudar a ensinar

outras crianças com todas essas formas que você encontrou para tocar!” Motivada por suas

conquistas e cheia de criatividade, respondeu-me: “Claro que posso professora! Você quer que

eu venha na aula das outras crianças?” Respondi a ela que seria enriquecedor para todos, mas

devido à restrição dos seus horários (considerando atividades escolares e outros afazeres)

sugeri a produção de um livro e no mesmo instante ela providenciou folhas e sem

impedimento algum começou a escrever. E assim, nasceu o livro “Dicas para violinistas”.

Conforme suas habilidades técnicas se desenvolviam dialogávamos sobre os

caminhos tomados, procurando sempre trazer reflexões sobre os resultados obtidos. Numa

proposta de educação estética e valorativa do pensamento de outrem, dispor de tempo é

essencial para que o diálogo e o trabalho fluam com respeito e dignidade, tanto para o

educador como para o educando. Segundo Perissé,

A aula é encontro se houver espírito de infância, criação de situações que

detém o tempo. Quando nos encontramos numa situação criadora, ambital,

lúdica, o tempo não passa. Paramos de envelhecer. Deixamos de ser adultos

adulterados e reencontramos a alegria de pensar, imaginar, fabular

(PERISSÉ, 2009, p 87).

Em vista disso, posso afirmar que a realização de trabalhos como esses, além de

proporcionarem a mim a alegria de pensar e fabular junto com meus alunos, vivificam o meu

trabalho fortalecendo também os laços de respeito e admiração entre eu meus verdadeiros

mestres.

Porque refletir sobre a prática instrumental? Acredito que toda operação humana

pressupõe um fazer acompanhado do pensar, além disso, afirmo também que, mesmo não

sendo o pensar tão evidente em algumas instâncias do fazer, não deixa de ter menos valor que

a realização prática. Acerca do ato de pensar, Pareyson traz a seguinte reflexão:

Também o exercício do pensamento e a atividade moral exigem um “fazer”,

sem o que não se concretizariam em atos práticos ou de pensamento. Não se

Page 148: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

132

pode pensar a não ser efetuando movimentos de pensamento com que se

passa de juízo a juízo e de raciocínio a raciocínio, sempre ligando e

sistematizando, isto é, realizando uma totalidade completa e, sobretudo,

formulando explicitamente os pensamentos, isto é, realizando-os em

proposições [...] De sorte que tanto o pensamento como a vida moral exigem

o exercício daquela atividade realizadora e produtiva sem a qual nenhuma

obra é possível (PAREYSON, 1993, p.21).

Assim sendo, através de diálogos e perguntas pude realizar em parceria com minha

aluna o presente livro. Com o objetivo de registrar e refletir esteticamente aspectos técnicos do

instrumento, a cada aula eu procurava levantar questões acerca da sua produção.

Todas as “dicas” foram elaboradas e redigidas num período de dois meses. Durante

esse período trabalhamos por meio de um esboço onde as correções ortográficas e gramaticais

também foram realizadas. A escolha do material para a coloração de fundo das páginas, bem

como margens e escritos foram escolhidos e realizados pela própria autora. Minha parcela no

acabamento do livro se deu em alguns contornos e na produção da capa, produzida

artesanalmente com materiais reaproveitados com intuito de valorizar e preservar a edição

final deste trabalho.

Ao término de sua produção o livro foi disponibilizado na biblioteca da instituição

para todas as crianças de todos os cursos e para a nossa surpresa um aluno do curso de música,

também estudante de artes plásticas, ao ler o livro se ofereceu para ilustrá-lo, pois havia um

amplo espaço abaixo dos textos de cada página; a parceria foi aceita e o resultado

comemorado entre todos.

Nas páginas seguintes a produção desse trabalho poderá ser apreciada na íntegra sem

a intervenção de parágrafos explicativos. Atualmente, o livro encontra-se disponível a todos os

alunos que frequentam essa instituição de ensino. Com base nas reflexões pareysonianas,

penso que o exercício prático também pode ser abordado de forma significativa via perguntas,

permeando de forma reflexiva o fazer de cada um. Nas palavras do autor:

não se pode pensar sem ao mesmo tempo agir e formar, nem agir sem ao

mesmo tempo pensar e formar, nem formar sem ao mesmo tempo pensar e

agir. Conforme a posição que assumem dentro de uma determinada operação,

as atividades humanas se fazem, portanto, a cada vez, específicas ou comuns,

Page 149: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

133

predominantes ou subordinadas, intencionais ou constitutivas. (PAREYSON,

1993, p.24).

Após a conclusão do livro pude observar o quão significativo fora esse trabalho para

Juliana. Todas as vezes que vivenciávamos algumas das questões em destaque no livro com

outras crianças, ela dizia: “Lembra da dica professora? Mostra no livro!”, assim sendo,

verificar-se que “o conhecimento sistematizado deve fazer parte do percurso e não ser o fim do

percurso” (GERALDI, 2010, p.101). Através da produção desse material que se presta como

livro de consulta pedagógica a tantas outras crianças, Juliana passou a demonstrar mais

confiança em relação à sua prática como violinista, dando mostras também de orgulho e

satisfação perante a construção do seu próprio trabalho.

Em suma, diante desse relato destaco possibilidades de uma abordagem estética em

uma aula individual de violino, pois penso que todo estudo é passível de experiências belas e

criativas. Segundo Perissé,

A experiência estética (todo o estudo pode converter-se em experiência de

beleza) torna-nos mais confiantes no poder criativo do ser humano, em nossa

capacidade para admirar belezas, ansiar verdades, realizar coisas boas. E,

pensando bem, até mesmo reconhecer o que há de perverso na vida humana

(perversão é a pior versão) desperta nosso desejo de perfeição, outro

“impossível necessário” (PERISSÉ, 2009, p.94).

Como mostra desse relato, segue cada uma das páginas que compõem essa bela

experiência de produção literária e editoração vivenciada numa aula de instrumento.

Page 150: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

134

Figura 26. Capa do livro34

34 O nome da autora foi apagado para preservar sua identificação.

Page 151: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

135

Figura 27.Dica 1.

“Como fazer um som suave: Para fazer um som suave você precisa tocar

relaxadamente e com o arco muito leve”.

Page 152: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

136

Figura 28. Dica 2.

“Como tocar sem esbarrar: preste muita atenção no arco e no violino para não

esbarrar nas cordas”.

Page 153: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

137

Figura 29. Dica 3.

“Quando você errar não pare de tocar; continue tocando”.

Page 154: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

138

Figura 30. Dica 4.

“Como tocar forte. Aperte um pouco a crina na corda e não se preocupe”.

Page 155: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

139

Figura 31. Dica 5.

“Quando você se perder tocando na orquestra fique calmo e tente continuar”.

Page 156: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

140

Figura 32. Dica 6.

“Quando não souber as notas pergunte para a professora ou professor”.

Page 157: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

141

Figura 33.Dica 7.

“Quando você errar muito peça para a professora colocar marquinhas”.

Page 158: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

142

3.5.1 Considerações sobre o exercício como atividade imprescindível

da produção

No percurso inventivo de qualquer atividade artística o exercício se consubstancia

como um aspecto vital da formatividade; um modus operandi que deve ser compreendido pelo

educador musical como uma necessidade intrínseca do fazer e não somente como um mero

manuseio técnico despido de qualquer valor. Por trás do exercício que reside na busca

incessante pela forma é possível extrair exemplos significativos transcendentes a destreza

mecânica. Conforme nos apresenta Pareyson,

Certamente o momento da obediência exige paciência e assiduidade: no

mundo humano só há conquista com esforço, facilidade com suor, domínio

com submissão; não há dom sem merecimento, nem graça sem pesquisa, nem

pícaro que não seja um prêmio [...] Lançar-se a “fazer” ainda que somente

aplicando regras e repetindo modelos, é o melhor modo para alcançar aquela

aptidão operativa e facilidade executiva que poderão ajudar, um dia, a

reinventar as regras transformando-as em modos de fazer e assimilar o estilo

dos modelos, convertendo-o no próprio modo de formar. Nem sempre a

inventividade e a originalidade brotam de que não poderão surgir a não ser

emergindo com a letra para aí saber ler e manifestar o espírito; é mister saber

aceitar as formas para se pôr em condição de inventá-las. Somente o já feito

pode ser caminho para quilo que se há de fazer (PAREYSON, 1993, p.155).

No percurso da formatividade o exercício se apresenta como uma atividade ambígua,

pois consiste numa tarefa que faz, mas que ainda não consegue fazer; é a busca pelo esmero do

traço e dos delineamentos que caracterizam a obra; é o tatear da matéria que ainda não

consegue ser forma; é a busca pelo estilo enquanto se forma; para tanto, exige paciência e

assiduidade daquele que faz. Segundo a ótica pareysoniana, “é uma fase de pesquisa e teste,

em que se examinam as próprias possibilidades e as da matéria”, consistindo num único

caminho para que se possa alcançar o êxito da concretude artística; de acordo com o próprio

autor:

Page 159: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

143

no exercício a disciplina pode tornar-se criadora, a assiduidade pode fazer-se

invenção, o esforço pode traduzir-se em descoberta, e a matéria ser sugestiva;

tudo isso é claro, logo que se pensa no conceito de uma “espera” que é por si

mesma atrativa e suscitadora, fértil e evocativa (PAREYSON, 1993, p.84-

85).

Em vista disso, acredito que olhar para o exercício como sendo uma atividade de

disciplina e obediência como virtude a ser alcançada por meio da produção, resulta numa

proposta educativa que ultrapassa os objetivos do fazer artístico, dado que o êxito do trabalho

só se alcança via tentativa e erro perante uma conduta criativa e perseverante.

A formatividade se alimenta de um tentar que se aprimora tentando, refazendo e

corrigindo. É um tentar que tenta através do diálogo com a matéria, do exercício, da

composição e do aperfeiçoamento atingir puro êxito; em essência, podemos encontrar essa

mesma forma de tentar em outras instâncias operativas do viver. Conforme já foi demonstrado

em capítulos anteriores, na vida cotidiana a invenção muitas vezes está associada a uma

finalidade, na arte o artista forma por formar e a obra resulta em forma porque deriva de sua

formatividade.

Através desse pensamento, podemos rever os valores implícitos do exercício

enquanto mecanismo que viabiliza a forma formada, como também único caminho de

realização, produção e aprimoramento. Para produzir qualquer coisa necessitamos

constantemente de uma prática assídua e rotineira para se alcançar resultados significativos.

Nas palavras de Pareyson,

A habilidade de quem domina o ofício é a resultante da simples routine

(rotina, em francês no original): repertório de soluções, depósito de truques e

catálogo de “macetes”. Mas se a habilidade se alimenta das obras-primas e

faz seu ninho em uma memória operativa em que os modos de fazer,

entrelaçando-se organicamente entre si em uma progressiva acumulação,

enriquecem a própria energia formante da personalidade do artista,

manifesta-se então como a habilidade de quem, possuindo o domínio do

ofício, possui igualmente o próprio estilo (PAREYSON, 1993, 157).

Page 160: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

144

Toda atividade artística pressupõe a experimentação e a manipulação; sistemática ou

pouco sistemática as tentativas se estabelecem como exercícios técnicos. Segundo Humberto

Eco,

E é precisamente este caráter aventuroso e interrogante da acção [sic]

formativa que vai permitir a Pareyson escrever páginas densas e acutilantes

sobre o valor da improvisação e do exercício como pesquisas da virtualidade

contida na ‘matéria’, e lhe abre um caminho para a remeditação do problema

da inspiração, fora dos esquemas românticos e dionisíacos (ECO, 1972,

p.19).

Diante dessas reflexões, penso que o educador musical possa enriquecer e exaltar o

trabalho técnico de seus alunos enfatizando conquistas virtuosas no sentido da paciência e

constância no ato de operar; “A técnica não pode ser um fim em si, mas um meio de se

alcançar determinado resultado” (SEINCMAN, 2008, p.28), e aqui postulo que tais resultados

possam contemplar não somente a produção de arte como um todo, mas também aprendizados

para uma vida equilibrada com labor, perseverança e conquistas.

Page 161: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

145

Capítulo 4

Diálogos entre autor e obra

Page 162: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

146

Page 163: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

147

4. Energia formante e matéria. Diálogos entre autor e obra

O diálogo entre autor e matéria trata-se da relação entre a energia formante que

emerge das mãos daquele que produz e da fisicidade do material escolhido para a realização de

determinado trabalho. Em vista da escolha do material para dele extrair determinado

propósito, a matéria através da qual a obra será formada passa a revelar suas leis internas, mas

é importante recordar que antes de ser reclamada para uma finalidade específica repousa em

sua essência coisal.

Mediante o diálogo entre a fisicidade da matéria e a intenção com a qual o autor

pretende dela formular, a legalidade interna da matéria se manifesta por meio de seus limites

em confronto com as ideias do autor que perpassam de um lado para o outro em busca da

forma. Vejamos num exemplo hipotético possibilidades de examinar esse problema estético

numa dada proposta de invenção e produção artística: digamos que os alunos escolham como

material para realizarem uma composição musical baseada em algum tipo de programa de

arte35

dois violinos, três flautas doces sopranos e suas próprias vozes. Dado esse propósito o

primeiro passo consiste na manipulação dos instrumentos, bem como sua experimentação

sonora; assim sendo, de tentativas em tentativas os alunos (autores) deparar-se-ão com os

limites impostos pela matéria (e seus) no percurso de tal operação, isto é, a busca pela forma.

Nesse tipo de atividade é comum os alunos manifestarem dificuldades para

inventarem e produzirem malgrado o confronto entre suas intenções e os limites do material

escolhido. Diante de uma situação como essa, como educadora, procuro encorajá-los

enfatizando que o que eles vivenciam naquele momento consiste no difícil diálogo com a

matéria pelo qual artistas e inventores de qualquer outra natureza também passam.

35A música de programa ou descritiva estrutura-se mediante a intenção descritiva de um texto ou qualquer

programa de arte. Embora tenha se constituído como uma forma composicional fortemente exercida durante o

século XIX, o musicólogo e esteta Enrico Fubini ressalta em sua obra “La estética musical desde la Antiguedad

hasta el siglo XX” que essa prática “no se trataba de uma novedad absoluta; dentro de la historia de la música, ya

habia do intentos de decribir, sin la ayuda de um texto literário, alguno que outro sucesso o fenômeno natural; em

este sentido, basta recordar La batalla de Andrea Gabrieli, Las historias bíblicas de Kuhnau, Las estaciones de

Vivaldi y, finalmente, la Pastoral de Beethoven, citándo-se tan solo ejemplos más ilustres” (FUBINI, 2002,

p.304).

Page 164: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

148

É preciso reconhecer que no trânsito formativo a matéria dita suas próprias leis em

confronto com as intenções do autor, no entanto,

é precisamente o artista quem a constitui como tal, imprimindo-lhe uma

disposição fértil de possibilidades e dela liberando uma multidão de

sugestões criativas e de iniciativas de obras. Sem o olhar fecundador do

artista, a matéria é inerte e muda: apenas aquele olhar formativo desperta-a

para a vida da arte (PAREYSON, 1997, p.163).

Dada a afirmação acima é lícito considerar também que, no trabalho dos nossos

alunos a matéria é “uma espécie de obstáculo sobre o qual se exerce a atividade inventiva, que

transforma as necessidades do obstáculo em leis da obra” (ECO, 1972, p.18); com base nesses

obstáculos vivenciados de maneiras diferentes por cada aluno, procuro mostrar como esses

problemas artísticos podem ajudá-los a encontrar cada vez mais soluções criativas para o dia-

a-dia, visto que nas palavras de Perissé “desenvolver nossa sensibilidade para o artístico é uma

questão de sobrevivência, na medida em que integre um projeto de humanização” (2009,

p.90).

A dificuldade dialógica entre autor e matéria não consiste na incapacidade do autor

produzir ou inventariar, mas na habilidade de transpor e transformar os obstáculos ditados por

ela mesma. Segundo a ótica de Eco, Luigi Pareyson integra no bojo conceitual da matéria os

“‘meios expressivos’, as técnicas de transmissão, os preceitos codificados, as várias

‘linguagens’ tradicionais, os próprios instrumentos da arte. Tudo isto está contido na categoria

geral da ‘matéria’, realidade externa sobre a qual o artista trabalha” (ECO, 1976, p.18);

portanto, aspectos como estes são essenciais aos olhos do educador enquanto orientador de um

projeto inventivo e criativo no campo das artes.

Diante do confronto entre o dinamismo da vida do autor e a coisidade da matéria é

possível tornar legítimo o esforço único e irrepetível que nasce das mãos de cada aluno, já que

“separar a obra da sua matéria é impossível: a obra nasce como adoção de uma matéria e

triunfa como matéria formada” (PAREYSON, 1997, p.165[itálico do autor]).

Cecília Cavaliere França é autora de uma vasta produção didática e acadêmica

voltada para aspectos educacionais em torno da prática de criação musical. Num dos seus

Page 165: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

149

artigos nomeado “Engajando-se na conversação: considerações sobre a técnica e compreensão

musical”, França destaca possibilidades educativas em torno do pensar e agir musicalmente

por meio do desenvolvimento da compreensão crítica e de competências técnicas e funcionais.

Embora fundamentado por outras fontes teórico-filosóficas, as reflexões apresentadas pela

autora nesse texto trazem situações que dialogam com a presente proposta estética. O

exercício da composição, por exemplo, além de possibilitar a expansão dos recursos técnicos

dos alunos ampliando seus recursos expressivos em torno do discurso musical, capacitam

tomadas de decisões significativas para além da criação musical. Na citação abaixo trago uma

citação da autora que atina como respectivo diálogo entre autor e matéria.

Este exercício exploratório é guiado por um ouvir cuidadoso e uma

capacidade de julgamento, escolha e rejeição de possibilidades. Quando um

aluno pesquisa como usar as baquetas para produzir um fortíssimo, é a sua

concepção musical que o leva a explorar as maneiras diversas de abordar um

instrumento (ibid.). Assim, ele percebe que o propósito da técnica é atender

suas necessidades expressivas imediatas. Da mesma forma, articulações,

alternância de toques, legato e staccatto, pianíssimos e crescendos são

empregados naturalmente, contribuindo para a fluência do discurso musical

(FRANÇA, 2001, p.38).

É possível realizar uma leitura desse parágrafo via a concepção da formatividade;

além do exercício guiado por um ouvir exploratório ilustrar o diálogo pareysoniano entre

autor e matéria que vem sendo abordado, o ouvir cuidadoso, a capacidade de julgamento e a

escolha ou rejeição de possibilidades revelam também um fazer que se faz fazendo conforme

as leis que vão sendo ditadas pela matéria no momento em que o autor reclama por suas

intenções. A escolha do material pelo aluno - conforme o exemplo acima - pode desvelar ao

educador atento, suas concepções específicas de música.

A busca pela forma formada consiste numa operação esteticamente complexa não

distante (em essência) de um trabalho realizado por um adulto. As evidências extraídas desse

pequeno recorte revelam a complexa operação de adoção e manipulação da matéria através de

uma atividade de invenção artística no contexto escolar. Conforme as palavras de Pareyson,

Page 166: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

150

Assim como a intenção formativa escolhe e adota a matéria em consonância

com as próprias exigências, e só então começa e ser tal e a definir os próprios

objetivos, assim também a matéria é adotada e escolhida justamente porque

sua natureza e suas características se prolongam em inúmeras possibilidades

reclamadas, para a própria realização, pela intenção formativa (PAREYSON,

1993, p.47).

Após a fase de adoção da matéria somado a intencionalidade do autor a matéria exibe

seus limites. A escolha do material e a pesquisa no sentido da manipulação do mesmo revelam

fragmentos intencionais do autor, como pôde ser observado no exemplo de França, quando o

aluno estuda por meio de suas baquetas possibilidades sonoras para conseguir um fortíssimo;

no entanto, “assim como a matéria resiste ao trabalho do artista”, domando-o segundo suas

leis, o artista também não é impedido de domá-la com respeito aos seus limites (PAREYSON,

1993, p.48-49). De acordo com França, as atividades de invenção e improvisação,

são usadas como canais para os alunos exercerem a capacidade de

julgamento e decisão criativa dentro de uma atmosfera de confiança. Estes

são encorajados a realizarem sua interpretação pessoal das obras, trazendo à

tona elementos afetivos; assim, a comunicação e expressão pessoais ganham

autenticidade. Iniciativas desta natureza demonstram que, mesmo na

educação musical especialista, há espaço para um fazer musical mais criativo,

exploratório, espontâneo e com sentimento de aventura (FRANÇA, 2001,

p.37).

Doravante, acredito que a invenção e a produção artística se constituem como

ferramentas pedagógicas que contribuem significativamente para o exercício de julgamento e

decisão não só dos alunos, mas também dos educadores musicais, pois a conscientização dos

problemas estéticos que circundam o curso da formatividade (como o diálogo entre autor e

matéria) capacita-os para uma observação cautelosa e atenta à complexa trajetória da produção

e da invenção de arte entre seus alunos. Ciente do aventuroso curso da inventividade cabe ao

educador musical orientar e motivar de forma consciente e crítica a produção dos seus, seja

compondo, executando ou interpretando.

Outro aspecto importante também levantado pela autora ressalta que, pensar sobre

música também é fazer música. Segundo França, “qualquer que seja o conteúdo e o nível de

Page 167: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

151

complexidade, música é pensamento articulado, podendo ser uma fonte de significados

revelados em ideias sonoras” (2001, p.36), e para complementar essa afirmação segundo a

ótica pareysoniana trago a seguinte afirmação: a arte “é constituída pelo pensamento porque a

pura formatividade só consegue efetivar a própria específica operação quando mantida e

controlada pelo vigilante exercício do pensamento crítico” (PAREYSON, 1993, p.27). Isto

posto, constata-se mais uma vez a importância do pensamento enquanto reflexão operativa e

formativa da produção artística.

Embora os alunos passem por vários obstáculos durante o processo inventivo

confrontando, por exemplo, a infinitude do ato criativo com as limitações físicas que a matéria

impõe enquanto consubstanciação do objeto para o qual foi escolhida, por meio dessas

observações confirma-se a legitimidade de seus trabalhos artísticos, deflagrando o estilo do

autor que aos poucos vai se materializando na obra enquanto forma formada, pois segundo

Eco, “a pessoa que forma é declarada pela obra formante como estilo, modo de formar”. Das

inspirações abstratas até a concretude da forma, nossos alunos persistem trabalhando segundo

as leis impostas pela matéria em confronto com seus interesses.

Com base nas considerações acima, uma abordagem estético-educativa também

pressupõe uma conduta reflexiva em torno dos problemas que residem na obra enquanto forma

acabada, isto é, seu estágio concreto, que resulta desse embate entre autor e matéria. Ponderar

os fenômenos que circundam a obra enquanto forma, pressupõe tomadas analíticas no âmbito

da crítica, da poética e da estética enquanto especulação filosófica (conforme apresentado no

capítulo 1). A obra em sua concretude presta-se à prática educativa “como narração definida

daquilo que foi o trabalho da sua própria feitura”, pois nas palavras de Eco:

‘a forma é o próprio processo em forma conclusiva e inclusiva, logo é algo

que não se pode separar do processo de que é a perfeição, a conclusão e a

totalidade’. É ‘memória actual [sic]’ e ‘permanente reevocação’ do momento

produtivo que lhe deu vida (ECO, 1972, p.20).

Dessarte, a produção artística enquanto forma presta-se ao educador como ferramenta

investigativa não sentido de desvelar aspectos metafísicos, mas como reevocação e memória

Page 168: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

152

do processo produtivo dos alunos, capacitando o educador para observações pontuais do

trajeto até ali percorrido por cada um deles

Page 169: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

153

4.1Da forma a execução: as possibilidades interpretativas dos alunos

Concerto

o pedinte ouve

o não-lúdico sonoro

do bater de panelas;

contramão, corrente

latido

formicídio

saceio de seio

alumínico

Há um espanto

Código gemido

Ganido de instinto

Tropeço de dentes;

Um degustar audível

Coaxos de estômago

Relinchos de ossos – e no canto

Entrelábios

Escorre azedo

Coagulando

um consoante

suco

esverdeado

o maestro és tu

Luiz Frazon

Page 170: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

154

O maestro és tu! A síntese desse poema denota o que pretendo considerar neste

capítulo como abordagem estética no âmbito da apreciação, tanto no que diz respeito a àqueles

que atuam com mestria na produção da obra, como também aqueles que como leitores também

apreciam seus resultados; esse trânsito que o processo artístico oferece a todos que dela

queiram se envolver, segundo Eco, é o que fundamenta “a permanência da obra na infinidade

das interpretações”, pois:

Ao dar vida a uma forma, o artista torna-se acessível às infinitas

interpretações possíveis. Possíveis, frisando bem, porque a “obra vive apenas

nas interpretações que dela se fazem”; e infinitas não só pela característica de

fecundidade própria da forma, mas porque perante ela se coloca a infinidade

das personalidades interpretantes, cada uma delas com o seu modo de ver, de

pensar, de ser (1972, p.31[itálico do autor]).

A atividade de interpretação consiste numa forma legítima de conhecimento em que

receptividade e atividade tornam-se indissociáveis. Nas palavras de Pareyson:

o conceito de interpretação resulta da aplicação ao conhecimento de dois

princípios fundamentais para a filosofia do homem: em primeiro lugar, o

princípio graças ao qual todo agir humano é sempre e ao mesmo tempo

receptividade e atividade e, em segundo lugar, o princípio segundo o qual

todo agir humano é sempre de caráter pessoal (PAREYSON, 1993, p.172).

Noutras palavras,

Em primeiro lugar, no agir humano só se dá receptividade junto com

atividade. Não agir humano que não pressuponha uma ocasião, um insight ou

intuição, um estímulo ou uma proposta: toda iniciativa deve ser proposta,

sugerida, desencadeada. Mas esse pressupor, por sua vez, não deve ser

entendido como uma determinação de fora, um condicionamento externo,

uma relação, pois aproveitar uma ocasião é já valer-se dela, aproveitar um

insight é já desenvolvê-lo, acolher uma proposta é já dar-lhe uma resposta,

receber um estímulo é já reagir: a própria forma da receptividade é a

atividade [...] O que constitui a receptividade como tal, e impede que se torne

determinista passividade, é a própria atividade que a acolhe e a desenvolve:

só é receptividade aquela que se prolonga em atividade (PAREYSON, 1993,

p.173[itálico meu]).

Page 171: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

155

Considerando a pessoalidade do agir de cada leitor ou intérprete, a função do

educador em face da plural rede de interpretações em dadas situações do ensino coletivo,

reside numa conduta que possa gerar um trânsito respeitoso e legítimo em torno das diferentes

leituras compartilhadas. A atividade de interpretação traz em seu curso a seguinte

problemática: “na interpretação é sempre uma pessoa que vê e observa. E observa e vê do

particular ponto de vista em que atualmente se acha ou se coloca e com o singular modo de ver

que formou ao longo da vida [...]” e, por conseguinte, “na interpretação é sempre uma forma

que se vê e observa” (PAREYSON, 1993, p.180). Para exemplificar a atividade de

interpretação o autor faz a seguinte analogia:

Pode-se, então, comparar a interpretação a um diálogo entre pessoas, feito de

perguntas e de respostas, em que se trata não só de saber escutar, mas

também de saber fazer falar, isto é, de formular as perguntas do modo mais

compreensível ao próprio interlocutor de forma a dele obter as respostas mais

acessíveis ao ponto de vista em que nos encontramos. E, uma vez iniciado

este colóquio, não tem mais fim: quem acreditasse ter compreendido

definitivamente uma obra de arte, no fundo, não fez outra coisa senão

interromper um colóquio [...] pretender ter compreendido definitivamente

uma obra seria como que desconhecer sua inexauribilidade (1997, p.228-

229[itálico do autor]).

A atividade de interpretação, incluindo também a execução, é complementar a

formatividade; uma vez que a obra musical é concluída, ou seja, quando repousa em sua forma

acabada, necessita de execução, e simultâneo ao processo executivo a obra acaba quando

exposta ao campo da leitura; embora entregue a multiplicidade das interpretações a obra “uma

vez formada, a forma não continua a ser realidade impessoal, mas configura-se como memória

concreta não só do processo formante, mas da própria personalidade formadora” (ECO, 1972,

p.29).

Os problemas estéticos que permeiam o campo da execução e da interpretação são

fundamentais à abordagem estético-educativa aqui proposta. A partir de formulações simples é

possível instigar nossos alunos-inventores a refletirem na continuidade do fenômeno formativo

após sua concretização. Vejamos um exemplo: “Finalizamos a composição musical. A obra de

arte está acabada. O que devemos fazer agora? Guardar a partitura na gaveta”? É provável que

respondam, em outras palavras, que o próximo passo consiste na execução.

Page 172: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

156

Tomando a execução como a música em seu estado concreto, constata-se que

somente por meio de sua etapa executiva é possível fruir de sua concretude sonora. Segundo

Pareyson, toda obra de arte deve ser executada, pois nasce de um processo executivo e

realizativo conferindo à obra a sequência do seu intento formativo, mas pelas mãos e pela

escuta36

de outrem. Segundo Pareyson,

A execução é a atividade que uma realidade, por sua vez ativa, dinâmica e

eficaz exige para ser comunicada e reconhecida como tal, de modo que só

uma realidade viva está em condições de solicitar uma operação tão ativa

quanto a execução (1997, p.218).

Conforme apresenta Seincman a esse respeito,

A obra musical só se efetiva, de fato, na performance, em sua relação com os

ouvintes. Quando um compositor finaliza uma obra, ela já mais lhe

“pertence”, passando a fazer parte de um campo “campo estético”: é nesse

palco que irá se consubstanciar seu “jogo” (SEINCMAN, 2008, p.25).

No que se refere aos problemas estéticos que envolvem a atividade de execução

chamo a atenção para alterações físicas que podem comprometer sua execução, tais como: o

desgaste do material, a possibilidade das traduções, das transcrições, reduções e reproduções,

no entanto, quanto ao desgaste do material, Pareyson apresenta a seguinte reflexão: “a pátina

do tempo [...] enquanto perde certas características, adquire outras, novas e não previstas

36 Aqui me refiro às obras musicais, no entanto, a execução é também imprescindível às obras pictóricas ou

esculturais; nesse caso podem ser executadas e apreciadas pelo mesmo espectador sem necessitarem de

mediadores, muito embora seja considerado como mediador o responsável pela iluminação direcionando o olhar

do espectador para determinado ângulo das telas e esculturas em galerias e museus. De acordo com Eco, “antes

do mais, Pareyson - precisamente com base no princípio crociano da unidade das arte - observou que o conceito

de execução devia estender-se a todas as artes, porque execução era também a leitura de uma página de versos, a

iluminação correcta [sic] de uma estátua, a representação de um drama; é verdade que a analogia era recoberta

por comportamentos diferentes que toca ao ponto de partida dos signos e pela distinção entre artes que se

entregam a uma escrita convencional e artes totalmente presentes na sua fisicidade; mas todas estas ‘aparências’

não pareciam a Pareyson definitivas, porque cada tipo de obra pede uma execução - também puramente interior -

que a faça reviver na experiência de quem a frui. E estas observações punham já em evidência a exigência

dinâmica acima referida” (ECO, 1972, p.22).

Page 173: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

157

originalmente. Mas aderem de tal sorte à obra que dela já não é mais possível separá-las”

(1993, p.111).

Diante da problemática desses aspectos o educador que se posiciona de maneira

atenta e cuidadosa aos problemas da obra de arte enquanto forma, tende a orientar o aluno de

que, uma vez acabada, a obra de arte passa a pertencer ao inexaurível campo das

interpretações.

Além dos problemas físicos da matéria que podem ou não comprometer a sua

execução, observo que a formatividade se volta para a obra de arte atuando no dinâmico e

inconcluso campo interpretativo. Se considerarmos que a multiplicidade é das execuções e não

da obra mais uma vez nos depararemos com a formatividade enquanto fruto das

possibilidades imagéticas e criativas do humano. Portanto,

Cada pessoa, interpretando e contemplando uma obra de arte, faz dela uma

nova edição; no caso da tradução ou redução ou transcrição se trata,

precisamente, de uma nova edição desse gênero, ou seja, de uma

interpretação, em que, todavia o aspecto formativo e produtivo, essencial a

todo processo de interpretação, se intensificou e externou em nova matéria

(PAREYSON, 1993, p.53).

E o que dizer sobre os problemas da fidelidade ou liberdade da execução e da

interpretação? Devemos orientar nossos alunos em qual sentido? Uma vez cientes dessa

problemática como proceder de forma ponderada perante as interpretações? Para tanto, tomo

como referência excertos da obra "Os Limites da Interpretação" escrita por Eco, destacando a

seguinte reflexão:

Nem sempre o privilégio conferido à intenção do leitor é garantia da

infinidade de leituras. Se privilegiarmos a intenção do leitor, será mister

também prevermos um leitor que decida ler um texto de modo absolutamente

unívoco e opte pela busca, quiçá infinita, dessa univocidade (ECO, 2012,

p.8).

Para tanto, Pareyson não deixa de atentar para os riscos interpretativos que circundam

a obra. Vejamos:

Page 174: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

158

Não tem sentido nem a unicidade nem a definitividade da interpretação.

Colocada a interpretabilidade, ipso facto se põe também a possibilidade de

infinitas interpretações e de um infinito processo de interpretação: a

interpretação é infinita em seu número e em seu processo, caracteriza-se por

uma infinidade quantitativa e qualitativa. Como caráter específico da

interpretação, pode-se dizer que ela visa a compreensão somente através de

um processo que corre sempre o risco da incompreensão (PAREYSON,

1993, p.179).

Em sendo a obra de arte forma que deriva de uma atividade formativa, penso que se

houver acuidade reflexiva por parte do educador musical a construção artística pode revelar

além da capacidade humana de combinar e transformar suas próprias experiências com outras

novas, a descoberta do outro como um agente ativo e legitimamente diferente, mas ao mesmo

tempo fonte essencial da constituição criativa de cada um.

Page 175: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

159

Capítulo5

Educador musical:

um esteta em sala de aula

Page 176: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

160

Page 177: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

161

5. Educador musical: um esteta em sala de aula

Para navegar por um mar de possibilidades, se deleitar com a viagem e

usufruir as descobertas que ela pode proporcionar, é preciso ter olhos e

ouvidos apurados. Saber ler tanto as estrelas quanto quaisquer

instrumentos de que se puder dispor, para não perder o sentido de

direção; mas poder observar os detalhes, as mudanças de paisagem, seus

sons e silêncios, dando tempo e lugar às explorações, transformações e

devires (ROCHA, 2011, p.20).

Apreciar os afazeres do cotidiano como operações imbuídas da formatividade

consiste num exercício significativo enquanto reflexão do processo criativo, pois a invenção

não é um atributo específico da arte, mas um ato inteiramente humano. A preparação de uma

aula, uma atividade ou qualquer tipo de proposta didática requer organização e estruturação

pedagógica, no entanto, a essência formativa há de ser considerada em todas as etapas

construtivas, do insight didático até a interpretação dos alunos. Por mais que o educador esteja

munido de ferramentas educativas, é importante compreender que a recepção das atividades é

apreendida de maneira diferente entre cada um dos alunos. Compartilhar da pluralidade

interpretativa trazida por esses pequenos é vivenciar o dinamismo formativo que percorre a

aprendizagem como um todo.

O processo de construção pressupõe tentativas, erros, descobertas, trocas,

compartilhamentos, revisão, transformação, interação entre outras formas de pensar e agir;

diante desse princípio, ao conceber a formatividade em situações cotidianas enquanto reflexão

diária para tudo aquilo que formamos e que se forma ao nosso redor, desde os nossos atos até

o trabalho educacional-artístico, enriquecemos nossa visão social perante os encontros e

desencontros, tanto na arte como na vida. Nas palavras de Ana Cristina Rossetto Rocha,

autora da dissertação intitulada “Educação musical e experiência estética: encontros e

possibilidades”,

Page 178: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

162

A configuração do professor-artista, a pedagogia do encontro e a integração

de linguagens não acontecem separadas umas das outras. Acontecem no

fluxo da experiência, entre linguagens, entre lugares, pelas brechas e desvios,

pelo inesperado, entre o artístico e o pedagógico - navegando no campo da

experiência estética (ROCHA, 2011, p.30).

Nesse fluxo de encontros e experiências coletivas não é possível separar a

individualidade do educador da sua atuação como profissional, pois sua essência enquanto

educador-artista deriva de sua própria realidade histórico-social em contínuo processo de

construção com a realidade de todos aqueles que o cercam; assim sendo, cumpre o educador

nesse espaço de encontro o papel de cultivar o respeito, como também,

investigar os princípios e os valores que (em tese) devem orientar as ações

humanas, descobrindo formas de suscitar essa reflexão entre os alunos.

Esteticamente, cabe ao docente despertar em si e nos demais a reflexão sobre

a arte, relacionando-a com tantos outros temas - a história, a mitologia, a

política, a censura, a psicanálise, a cultura, a tecnologia, etc. (Est) eticamente,

cabe ao docente inventar formas belas-boas de pensar e agir, formas atraentes

e inesquecíveis de atuar em sala de aula (PERISSÉ, 2009, p.83).

Numa proposta de atividade artística que envolva a composição musical, por

exemplo, é importante que o educador apresente a atividade de invenção como uma tarefa que

se conduz de tentativas em tentativas, esclarecendo aos alunos que só se formará formando,

isto é, compor compondo. Este é o primeiro passo de um trabalho que tem como princípio uma

estética da formatividade. Guiados por algum tema proposto pelo educador musical ou à

vontade para encontrar um propósito ou um assunto que servirá como o insight da

composição, o educador atua como um esteta ao mediar as ideias que vão surgindo, dando voz

a experiência artística de cada aluno, mesmo numa turma com trinta crianças.

Acompanhar com atenção e cuidado as ideias que aos poucos vão ganhando formas

nas mãos dos alunos consiste em compreender também que, o fragmentado esboço não é a

obra acabada, no entanto, já contém em essência tudo quanto ela (a obra) deve conter.

O perfil do educador-esteta em sala de aula pode ser identificado como aquele

profissional que não se inibe com as mudanças repentinas e alterações que ocorrem no

percurso do trabalho, pois considera e sabe apreciar a força da formatividade humana; o esteta

Page 179: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

163

em sala de aula é aquele educador sensível e atento para as belezas artísticas dos seus alunos,

mesmo que em fase de construção, pois para o educador esteta a obra enquanto forma formada

é apenas uma etapa desse incrível trajeto da inventividade; é um profissional consciente de que

a obra dos seus alunos enquanto matéria formante ainda aguarda por seu êxito, pois somente

“operando e fazendo, ou seja, escrevendo ou pintando ou cantando o artista encontra e inventa

a forma. Enquanto não se encerra este processo, não há forma, e tudo ainda está em jogo”

(PAREYSON, 1993, p.69); o educador esteta concebe o seu trabalho como atividade filosófica

e transformadora, indo ao encontro dos seus alunos com ânsia de apreendê-los e de aprender

com eles.

Penso que a estética pareysoniana sobressai, enquanto abordagem estético-educativa,

por sua clareza e sistematismo didático-filosófico, como também pelas observações

concernentes a inseparabilidade entre arte e vida como pôde ser observado nos diálogos entre

obra e autor, obra e receptor e autor(s) e autor(s) em diferentes contextos educativos. A

doutrina pareysoniana abre portas para o diálogo com outras áreas e saberes fora do campo da

estética, como por exemplo, a atribuição da inventividade artística como sendo a mesma

inventividade orientadora do viver (conforme foi traçado nos capítulos anteriores), afinal, a

natureza humana devido ao seu constante estado de formação e criação, também pode ser

compreendida como forma formante; de acordo com Pareyson,

A pessoa é uma forma. Com efeito, a pessoa, fixa em um de seus instantes,

fechada em seu incessante processo de desenvolvimento, individuada em um

de seus atos, que recolhe e condensa, é o resultado encerrado de todo um

operar: é uma obra acabada e definida, com seu caráter singular e

inconfundível; não uma entre muitas, mas individual, única, não parte de um

todo, algo particular, mas sim uma integralidade. (PAREYSON, 1993,

p.176).

É importante que o esteta em sala de aula reconheça que é preciso “arte” para realizar

qualquer tarefa, ou seja, se arte é um processo de invenção que se materializa somente por

meio da capacidade humana de formar, conclui-se também que através do exemplo educativo

que a prática artística oferece, é possível conquistar ainda mais sensibilidade, criatividade e

beleza para o percurso do viver em sociedade, pois de acordo com o esteta:

Page 180: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

164

Precisa-se de “arte” para fazer qualquer coisa, e nada se pode fazer bem sem

“arte”: não existe ocupação humana, por humilde, singela e insignificante que

pareça, que não exija, de quem a ela se dedica, alguma “arte”, ou seja, a

capacidade de inventar o modo de fazer fazendo, e de fazer sabendo fazer, e

em nada se obtém um bom resultado se o fazer não se faz inventivo além de

produtivo, tentativa e figurativo, além de executivo e realizador

(PAREYSON, 1993, p.64).

Posicionar-se como um educador-esteta é, portanto, acreditar que a obra de arte

enquanto formatividade pode revelar mediante o diálogo filosófico o “mundo” do artista (do

aluno) tal qual se apresenta no ato do formar, e um educador

esteticamente mais bem formado cultivará (eis um pressuposto somado à

esperança) um comportamento especial no cotidiano escolar, porque olhará

de modo especial os seus alunos, verá neles artistas em potencial, respeitando

essa possibilidade, acreditando nela como realidade alcançável (PERISSÉ,

2009, p.54).

Além de toda observação voltada para o desenvolvimento cognitivo e social de cada

aluno, cabe ao docente investigar os princípios e os valores que o fazer artístico podem

suscitar enquanto veículo para a formação humana, assim sendo, o cultivo do respeito e a

legitimidade para com a produção do próximo - considerando suas experiências e limites

individuais - proporciona ações solidárias e mutuamente respeitosas.

Creio que um dos problemas que impedem o profissional a uma atuação mais

profunda e atenta aos problemas da arte manifestos em diferentes espaços educativos, se

propaga pelo fato do próprio educador não compreender amplamente a importância do seu

papel e da sua área de atuação para a formação humana como um todo. É importante que o

profissional vivencie as grandezas do seu campo, tentando extrair do seu vasto repertório de

experiências estéticas a importância do fazer artístico para a vida do ser humano.

A formação estética do professor requer atividades que extrapolem a leitura

teórica. Por exemplo: frequentar exposições de pinturas, expondo-se o

próprio observador àqueles quadros. Dupla exposição, em que a pessoa

mergulha no quadro e o quadro mergulha naquele que o contempla. Outro

exemplo: conhecer programas populares de teatro em sua cidade, para ver

Page 181: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

165

como os atores, expondo-se, expõem-se a nós mesmos. Cada qual deverá

cuidar da sua agenda cultural, da sua agenda artística (PERISSÉ, 2009, p.49).

A experiência estética possibilita que o mesmo examine e reveja na prática suas

concepções de ensino e de arte em geral, proporcionando a si mesmo novas formas de contato

com o novo. Exercícios como esses geram estranhezas e incompreensões, levando o educador

- enquanto receptor - a um tipo de “distanciamento” necessário para que possa reviver a

mesma sensação de estranheza que confrontam seus alunos diante de novas experiências

artísticas, que para o educador já familiarizado, fluem como sendo “naturais”. Assim como

defendo uma proposta de educação estética que postula valores transcendentes da arte para a

vida, acredito também que, a vida do educador musical deva se movimentar pelo campo das

artes no sentido de trazer combustível para suas experiências profissionais, ou seja, da vida

para o trabalho, pois:

O professor é mediador do encontro entre alunos a arte, mas obviamente

precisa ter intimidade necessária (ou seja, bastante intimidade!) com a arte

que pretende apresentar, quase corrigia o verbo- com que pretende presentear

seus alunos. Apresentar, tornar presentes, atuais e relevantes, para os alunos

até mesmo as obras de arte mais antigas ou mais herméticas. Enfatizando,

porém, que esse encontro será sempre uma experiência única e intransferível.

A mediação do professor jamais substituirá o diálogo, fácil ou problemático,

entre um indivíduo e a obra de arte (PERISSÉ, 2009, p.48).

Mesmo entremeando diariamente diferentes tipos de experiências estéticas o

educador jamais poderá clarificar a complexidade que reside no encontro entre seus alunos e a

obra. A mesma estranheza que assola um adulto perante uma experiência artística, bem como

a possibilidade de uma não compreensão, deve ser considerada também entre seus alunos.

Dessa forma, o educador cumpre o papel como de quem presenteia os seus com diferentes

situações estéticas, porém ciente de que a apropriação que cada um fará está fora do seu

controle, e esse fenômeno de caráter incerto e fugidio já é sabido pelo educador esteta.

Page 182: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

166

Page 183: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

167

Conclusão e Considerações finais

Neste trabalho procurei enfatizar as contribuições de um ensino de música permeado

pela estética da formatividade. A partir da conscientização dos problemas estéticos que

circundam o processo de invenção e produção artística em diferentes contextos educativos,

compartilho possibilidades educativas para que alunos e professores vivenciem de forma

profunda, humana e reflexiva a atividades de criação, transcendendo-as para os atos de suas

próprias vidas, tomando o processo formativo da arte como espelho para a formatividade do

mundo.

Através da estética pareysoniana procurei demonstrar também a importância do outro

para a construção do novo que vai além da produção de arte. Considerando o fato de que

aprendemos e inventamos mediante o convívio, a estética pareysoniana permite compreender

que por traz do tal fazer que enquanto faz inventa o por fazer existe um diálogo mútuo entre

sujeito e as várias vozes que compõem o seu cenário social, pois conforme Pareyson,

Já se viu, por um lado, que toda a vida espiritual prepara a arte, no sentido de

haver sempre um caráter formativo inerente a todas as suas manifestações, e

justamente por esse presságio de arte, que mesmo a vida do dia-a-dia traz

consigo, a arte se pode especificar como operação determinada. E, por outro

lado, justamente no ato em que a arte se especifica como operação distinta,

toda a vida penetra dentro dela, e é este o motivo pelo qual a arte pode tornar-

se a razão de vida para o homem que a exerce e a contempla (PAREYSON,

1993, p.263).

O intuito das minhas reflexões não foi invalidar qualquer outro tipo de abordagem

estética, mas demonstrar de que maneira a estética pareysoniana pode contribuir

significativamente para o ensino de música. A apropriação filosófica deste trabalho não

pressupõe que o educador tenha que desconsiderar seus princípios pedagógicos em prol dessa

concepção estética, ao contrário disso, considero os estudos reflexivos aqui apresentados como

parte de uma formação.

Com o objetivo de familiarizar o leitor aos principais conceitos e problemáticas

pareysonianas que substanciaram este trabalho, propus uma metodologia sistemática os

problemas centrais dessa abordagem, no entanto, o caráter especulativo dessa temática

Page 184: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

168

propiciou uma condução pouco sistematizada e mais especulativa; no decorrer da apresentação

de cada um dos cenários é possível observar como minhas observações, somadas as

fundamentações teóricas frente aos objetos de análise se imiscuem numa proposta reflexiva.

Procurei demonstrar também os diferentes papéis de atuação do educador, ora como

mediador, ora como inventor ou receptor em torno do trabalho artístico de seus alunos; como

educadores musicais atuamos de formas diferentes e nas palavras de Seincman,

Não importa de que lado estejamos, quer do palco quer da plateia, a constante

troca de papéis é permanente e fundamental: não há comunicação e

experiência estética sem desdobramento, pois só sendo um duplo para obter

alternar as posições. Só me faço entender por ouvinte quando, ao mesmo

tempo em que falo (ou toco, interpreto, crio), coloco-me como ouvinte de

meu próprio discurso; o mesmo vale para quaisquer das posições assumidas

(SEINCMAN, 2008, p.23).

Assim sendo, compartilho esses escritos como sugestão para futuras pesquisas no

campo de educação musical, especificamente pelo viés da estética. Acredito também que, este

trabalho possa servir não só como instrumento de reflexão aos educadores musicais, mas a

todos os educadores que lidam com as artes de um modo geral.

Page 185: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

169

REFERÊNCIAS

AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

BALIEIRO, Adalgisa Campos. História de uma escola. Ribeirão Preto: Interativa Serviços

Educacionais, 2006.

BARBIERI, Marisa Ramos. Ensino de ciências nas escolas: uma questão em aberto. Revista

Em Aberto. Brasília, ano 7, n°. 40, out./dez, 1988.

BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. In. Associação

Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, número 19, p.20-28, 2002.

BOSI, Alfredo. Reflexões sobre arte. São Paulo: Editora Ática, 1986.

BRAIT, Beth. Bakhtin: Conceitos-chave. Beth Brait (org). 5. Ed. São Paulo: Contexto, 2013.

CANDÉ, Rolland de. História Universal da Música. Volume 1. São Paulo: Martins Fontes,

2001.

CARBONELL, Sônia. Educação estética para jovens e adultos: a beleza no ensinar e no

aprender. São Paulo: Cortez, 2010.

CESCA, Sara. PEREIRA, Guilherme C. GALON, Lucas E. S. Criação musical: um processo

filosófico da imagem ao registro da obra. In: III Jornada de Estudos em Educação Musical.

Universidade Federal de São Carlos, p.106-113, 2013. Disponível em:

http://pt.scribd.com/doc/207189540/Anais-Da-III-Jeem-2013 Data de acesso: 27/03/2014.

Page 186: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

170

DUPRAT, Régis. Musicologia e Hermenêutica: teoria e prática. Revista de Ciências,

Educação e Artes Don Domenico. São Paulo, vol. I nº 2, p.29-38, 2001.

ECO, Humberto. Os Limites da Interpretação. São Paulo: Perspectiva, 2012.

______________A definição de arte. Tradução de José Mendes Ferreira. Lisboa: Edições 70,

1972.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de

Janeiro: Aurélio Buarque de Holanda e J.E.M.M., Editores, LTDA, 1975.

FRANÇA, Cecília Cavalieri. Engajando-se na conversação: considerações sobre a técnica e a

compreensão musical. Revista da ABEM, nº.6, setembro de 2001.Porto Alegre: Associação

Brasileira de Educação Musical, p.35-40, 2001.

FRAZON, Luiz H. T. Roçando água. Franca (SP): Ribeirão Gráfica e Editora, 2008.

FORMAGGIO, Dino. Arte. Barcelona: Editorial Labor, 1976.

FUBINI, Enrico. La estética musical desde La Antiguedad hasta el siglo XX. Madrid: Alianza

Editorial, 2002.

GALON, Lucas Eduardo da Silva. Nacionalismo, neofolclorismo e neoclassicismo em Villa-Lobos:

uma estética dos conceitos. Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Música da

Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2011.

GERALDI, J. Wanderley. A aula como acontecimento. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010.

Page 187: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

171

GLEISER, Marcelo. A Dança do Universo. Dos mitos de criação ao Big Bang. São Paulo:

Companhia das Letras, 1997.

GOMBRICH, Ernst H. A história da arte. Tradução de Álvaro Cabral. 16ª edição. Rio de Janeiro:

Editora LTC - Livros Técnicos e Científicos Editora S.A, 1999.

GRAMSCI, Antônio. Introdução ao estudo da filosofia. Cadernos do cárcere. Caderno 11

(1932-33), vol. I. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1999.

GUERSON, Milena. Ana Mae Barbosa e Luigi Pareyson: Um diálogo em prol de “re-significações”

sobre ensino/aprendizagem de artes visuais. “Existência e Arte” - Revista Eletrônica do Grupo PET.

Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rey. Ano V, número

V, Janeiro/Dezembro de 2010.

HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Lisboa: Edições 70, 2005.

JIMÉNEZ, Ariel. Ferreira Gullar conversa com Ariel Jiménez. Tradução Vera Pereira. São Paulo:

Cosac Naify, 2013.

SEINCMAN, Eduardo. Estética da comunicação musical. São Paulo: Via Lettera, 2008.

PELLANDA, Nize Maria Campos. A música como reencantamento. Um novo papel para a

educação. Revista da ABEM. Porto Alegre, nº 10, 13-18, 2004.

PAREYSON, Luigi. Estética: Teoria da Formatividade. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993.

_______________Os Problemas da Estética. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

_______________ Verdade e interpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

Page 188: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

172

PERISSÉ, Gabriel. Estética e Educação. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.

ROCHA, Ana Cristina Rossetto. Educação musical e experiência estética: entre encontros e

possibilidades. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de

Educação. Campinas, SP: [s.n.], 2011.

SARAMAGO, José. Memorial do Convento. Lisboa: Editores Reunidos Lda, 1994 [1982].

SEINCMAN, Eduardo. Estética da comunicação musical. São Paulo: Via Lettera, 2008.

TOMÁS, Lia. Música e Filosofia: estética musical. São Paulo: Irmãos Vitale, 2005.

TOURINHO, Irene. Um compositor, uma educadora, muitas perguntas e algumas reflexões

sobre prática de ensino de Música. Revista da ABEM. Salvador, nº3, 65-75, 1996.

ZANOLLA, Sílvia Rosa da Silva (org.). Arte, Estética e Formação Humana: Possibilidades e

críticas. Campinas, SP: Editora Alínea, 2013.

SITES CONSULTADOS:

BALIEIRO, Adalgiza Campos. O poder das metáforas. Disponível em:

<http://www.escolasinterativas.com.br> Data de acesso: 13/04/2011.

FONSECA, Marcio de Oliveira. ArtArte. http://arteseanp.blogspot.com.br/2011/05/van-gogh-

shoes-seus-significados.html. Data de acesso: 28/03/2015.

Page 189: TEORIA DELLA FORMATIVITÀ: REFLEXÕES SOBRE A INVENÇÃO E …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285318/1/Cesca_SaraCecilia_M.pdf · vii RESUMO A presente dissertação consiste

173