Teoria Democrática e Política Comparada

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Teoria Democrática e Política Comparada * Guillermo O’Donnell Para minha filha Julia, pela metonímia ¾ e muito amor. UMA NOTA PESSOAL Passei boa parte da minha vida acadêmica estudando um tema que detesto¾ o regime autoritário ¾ e, mais tarde, um outro tema que me deu grande alegria, a falência desse regime. Durante esses anos, li muita coisa sobre teoria democrática e as democracias existentes, mas sempre o fiz, por assim dizer, de fora, isto é, como um tema importante, mas que não estava diretamente relacionado com minhas principais preocupações. Baseado nessas leituras e também nas grandes esperanças despertadas pelo fim dos vários tipos de dominação autoritária, pus-me a estudar, como tantos outros, os novos regimes que haviam nascido. Concentrei-me na América Latina, especialmente no sul do continente, embora também tenha me ocupado do que vinha ocorrendo na Europa meridional; além disso, a despeito de minhas sérias limitações no conhecimento dos idiomas, procurei manter-me razoavelmente informado sobre a situação dos países da Europa Central e Oriental e de alguns do Leste Asiático. Ao iniciar esses estudos, parti de duas premissas, tal como fazia na época a maior parte da literatura da área. A primeira delas é que existe um corpo suficientemente claro e consistente de teoria democrática; a segunda, que esse corpus teórico apenas requer modificações marginais para servir como ferramenta conceitual adequada ao estudo das novas democracias. Estas premissas são muito convenientes, pois nos permitem "navegar" em estudos comparativos sem muita preparação prévia ou grandes dúvidas teóricas. Elas aparecem em grande parte da bibliografia dedicada a investigar se as novas democracias se

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Teoria Democrática e Política Comparada*

Guillermo O’Donnell

 

Para minha filha Julia, pela metonímia ¾ e muito amor.

 

 

UMA NOTA PESSOAL

Passei boa parte da minha vida acadêmica estudando um tema que detesto¾ o regime autoritário ¾ e, mais tarde, um outro tema que me deu grande alegria, a falência desse regime. Durante esses anos, li muita coisa sobre teoria democrática e as democracias existentes, mas sempre o fiz, por assim dizer, de fora, isto é, como um tema importante, mas que não estava diretamente relacionado com minhas principais preocupações. Baseado nessas leituras e também nas grandes esperanças despertadas pelo fim dos vários tipos de dominação autoritária, pus-me a estudar, como tantos outros, os novos regimes que haviam nascido. Concentrei-me na América Latina, especialmente no sul do continente, embora também tenha me ocupado do que vinha ocorrendo na Europa meridional; além disso, a despeito de minhas sérias limitações no conhecimento dos idiomas, procurei manter-me razoavelmente informado sobre a situação dos países da Europa Central e Oriental e de alguns do Leste Asiático.

Ao iniciar esses estudos, parti de duas premissas, tal como fazia na época a maior parte da literatura da área. A primeira delas é que existe um corpo suficientemente claro e consistente de teoria democrática; a segunda, que esse corpus teórico apenas requer modificações marginais para servir como ferramenta conceitual adequada ao estudo das novas democracias. Estas premissas são muito convenientes, pois nos permitem "navegar" em estudos comparativos sem muita preparação prévia ou grandes dúvidas teóricas. Elas aparecem em grande parte da bibliografia dedicada a investigar se as novas democracias se "consolidarão" ou não, as relações dos novos regimes com as políticas de ajuste econômico e as instituições típicas desses regimes ¾ Parlamento, Poder Executivo, partidos. Creio que as análises institucionais têm produzido conhecimentos valiosos, embora muitas vezes excessivamente limitados às características formais das instituições. Com relação aos estudos sobre "consolidação democrática", já manifestei em outros trabalhos (O’Donnell, 1996a; 1996b) meu ceticismo ante a vagueza e a tendência teleológica desse conceito, de modo que não preciso me repetir aqui. Quanto aos estudos sobre ajuste econômico, a maioria focaliza exclusivamente as condições políticas que favorecem ou dificultam a adoção de medidas de ajustamento. A conseqüência desse enfoque limitado é transformar os fatores políticos, inclusive o regime, em variável dependente do ajuste ¾ o que nos velhos tempos seria considerado um caso de flagrante "economicismo". O foco desses estudos é tão estreito que até recentemente excluiu questões sociais e mesmo econômicas de grande importância, não só da ótica da eqüidade mas inclusive da perspectiva do próprio desenvolvimento1.

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Da mesma maneira como faziam essas vertentes da literatura, meus primeiros estudos sobre as novas democracias (O’Donnell, 19922) basearam-se nas premissas que acabei de mencionar: que existe um claro e consistente corpo de teoria sobre a democracia e que, com ele, é possível "viajar" confortavelmente no assunto. O problema ¾ o meu problema, pelo menos ¾ é que hoje estou convencido de que a primeira premissa é errada e a segunda, por conseguinte, impraticável. Chegar a essa conclusão me deixou desconcertado; ela privou-me das lentes com as quais acreditava poder dar início imediato ao estudo das novas democracias. Vi-me então obrigado a fazer um longo desvio intelectual, durante o qual internalizei, digamos assim, minhas leituras sobre a democracia e, por razões que esclareço adiante, retomei minhas antigas inquietações em filosofia, na teoria da moral e no direito.

Outro aspecto dessa mudança de rumo intelectual foi que dei início a uma série de estudos em colaboração com outros pesquisadores, com o apoio institucional do Kellogg Institute for International Studies, da University of Notre Dame. Esses trabalhos trataram de temas que considerei importantes para esclarecer certas peculiaridades empíricas e teóricas das novas democracias ¾ e das não tão novas assim ¾ , em especial, mas não exclusivamente, na América Latina. Um desses projetos fez um balanço da situação geral da democracia no início da década de 90, nas Américas do Sul e do Norte3. Outro examinou a pobreza generalizada e a profunda desigualdade social na América Latina4. Um terceiro analisou vários aspectos do funcionamento dos sistemas jurídicos da região. Quanto às suas conclusões, basta dizer que mudamos o título do livro que as incorporou deThe Rule of Law... [O Estado de Direito...] para The (Un)Rule of Law... [O Fracasso do Estado de Direito...] (Méndez, O’Donnell e Pinheiro, 19995). A mudança de rumo levou-me a algumas conclusões que talvez caiba resumir aqui:

(a) Uma teoria adequada da democracia deveria especificar as condições históricas do surgimento de várias situações concretas, ou, dito de outra forma, deveria incluir uma sociologia política, de orientação histórica, da democracia6.

(b) Nenhuma teoria sobre qualquer tema social deveria omitir o exame dos usos lingüísticos do seu objeto. A palavra democracia, desde tempos imemoriais, recebeu fortes (mas diferentes) conotações morais, todas fundamentadas em uma visão dos cidadãos como agentes. Isso estende à teoria da democracia, inclusive a de orientação empírica, os complicados mas inevitáveis problemas da filosofia política e da teoria moral.

(c) Uma teoria da democracia ¾ da democracia tout court ¾ deveria também incluir, e em uma posição central, vários aspectos da teoria do direito, visto que o sistema legal determina e respalda características fundamentais da democracia e, conforme explico mais adiante, da cidadania como agency*1.

(d) Os itens anteriores têm como conseqüência que a democracia não deveria ser analisada apenas no plano do regime, mas também no do Estado ¾ especialmente do Estado como sistema legal ¾ e de certos aspectos do contexto social geral.

Essas conclusões estão incorporadas em textos que escrevi nos últimos dez anos. Neles, examino certas características de algumas das novas democracias7, as quais dificilmente poderiam ser consideradas como transitórias ou apenas marginalmente diferentes do que

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pensam as teorias atuais. Nesses textos, questiono os estudos que "exportam" acriticamente as teorias para o caso das novas democracias8. No entanto, meus artigos abordam poucos temas de cada vez e logo voltam a problemas mais gerais da teoria democrática, sem tentar analisar ou reconstruir a teoria como tal. Sinto agora que essa tentativa precisa ser feita; para tanto estou escrevendo um livro, cujos dois primeiros capítulos, em versão preliminar, constituem este artigo. Trata-se, portanto, de um texto sobre a teoria da democracia tout court, e tem o indispensável objetivo de limpar o terreno conceitual para futuras incursões mais ambiciosas. Mas suas origens intelectuais no estudo das novas democracias se tornarão visíveis em algumas digressões comparativas que inseri ao longo da exposição.

 

INTRODUÇÃO

A recente emergência de países que são ou dizem ser democráticos colocou importantes desafios ao estudo comparativo dos regimes políticos9 e, inclusive, à própria teoria da democracia, embora nem sempre se perceba isto. Classificar um caso como "democrático" ou não é mais que um mero exercício acadêmico; tem implicações morais, na medida em que na maior parte do mundo contemporâneo existe um consenso de que a democracia, independente de como é definida, é um tipo de governo normativamente preferível. Essa qualificação também traz conseqüências práticas, pois no atual sistema internacional o acesso a importantes benefícios tem estado dependente da avaliação da condição democrática de um país.

Existe, porém, muita confusão e divergência quanto à maneira de definir uma democracia. Veremos que algumas dessas divergências são inevitáveis, mas a confusão não. A necessidade de esclarecimento conceitual manifesta-se na notável proliferação de qualificativos e adjetivos ligados ao termo democracia, conforme David Collier e Steven Levitsky (1997) registraram e analisaram com grande proveito. Na maioria das vezes, esses qualificativos se referem às novas democracias, sugerindo hesitações por parte da literatura comparativa e dos estudos nacionais e regionais sobre os critérios que nos permitiriam qualificar um caso como "democrático". O principal motivo dessas hesitações é que muitos desses novos regimes, e alguns dos mais antigos, no Sul e no Leste, apresentam características inesperadas ou divergentes das que uma democracia "deveria ter", segundo a teoria ou as expectativas de cada observador.

É preciso notar que a lógica de associar qualificativos à "democracia" pressupõe um significado claro e consistente da palavra, que é em parte modificado pelos adjetivos. Assim, o que varia e pode conter vaguidões ou ambigüidades são as categorias adicionadas ou subtraídas do significado principal10. Mas essa presunção é problemática quando esse significado não está bastante claro. Como afirmou H. L. Hart (1961:14): "Uma definição que nos diz que uma coisa pertence a uma família não ajuda muito se temos apenas uma vaga ou confusa idéia sobre a natureza dessa família de coisas."11 Creio que é isso que se passa com o conceito de democracia: além da proliferação de casos potencialmente relevantes, outro motivo da atual confusão reside no fato de que a teoria democrática não é a sólida âncora conceitual que se costuma supor. Por essa razão, argumento neste artigo que as definições existentes de democracia, mesmo as que têm uma estrutura básica com a qual concordo, precisam ser revistas e esclarecidas.

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Além desse problema, temos de enfrentar um outro, de ordem histórico-contextual. Praticamente todas as definições de democracia são uma condensação da trajetória histórica e da situação atual dos países originários12. Entretanto, as trajetórias e a situação de outros países que hoje podem ser considerados democráticos diferem muito do que ocorreu nos originários. Por isso, uma teoria de alcance adequado deveria dar conta dessas diferenças, tanto pelo que elas significam em si mesmas, quanto porque podem ser causa de características específicas ou de subtipos de democracias no universo dos casos relevantes.

Afirmo neste artigo que as teorias correntes sobre a democracia precisam ser revistas de uma perspectiva analítica, histórica, contextual e legal, ainda que isso acarrete uma certa perda de parcimônia [no sentido metodológico ¾ N. T.]13. O resultado desses esforços pode ser a criação de instrumentos conceituais adequados à elaboração de uma melhor teoria da democracia em suas várias encarnações. Este artigo tem a intenção de contribuir para essa tarefa, embora seja apenas um primeiro passo destinado a limpar o terreno conceitual. Portanto, no que diz respeito a diversos tópicos importantes (especialmente a relação entre o regime democrático e algumas características do Estado e do conjunto do contexto social, bem como as diversas questões associadas à idéia de agency), limito-me a estabelecer as primeiras conexões. Estas servem principalmente para sinalizar os temas a serem desenvolvidos em futuros trabalhos.

Na próxima seção, examino algumas influentes definições da democracia e extraio conclusões que abrem caminho para as seções posteriores.

 

A NOTA DE RODAPÉ DE SCHUMPETER

Depois de afirmar que a "democracia é um método político [...] um certo tipo de arranjo institucional para chegar a decisões políticas, legislativas e administrativas," Joseph Schumpeter (1975[1942]:242) enuncia sua famosa definição do "método democrático": "o arranjo institucional para chegar a decisões políticas pelas quais os indivíduos adquirem o poder de decidir mediante uma competição pelo voto popular." Esta é a definição "minimalista" (ou "processualista") paradigmática de democracia. No entanto, normalmente se esquece14 que Schumpeter não pára aí. Em primeiro lugar, ele esclarece que "o tipo de competição pela liderança que define a democracia [implica] a livre competição por votos livres." (idem:217)15 Nessa mesma linha, faz uma advertência ao comentar que "o método eleitoral é praticamente o único disponível para comunidades de qualquer tamanho", acrescentando ainda que isso não exclui outros modos menos competitivos "de garantir a liderança [...] e não se pode excluí-los porque, se o fizéssemos, nos restaria um ideal totalmente irrealista." (idem:271) É significativo que essa frase termine com uma nota de rodapé onde se lê: "Como no campo da economia, os princípios morais e legais da comunidade têm algumas restrições implícitas." (ibidem, nota 5) O significado dessas afirmações, contrastando com a definição que Schumpeter acabara de enunciar, é bastante nebuloso. A razão, acredito, é que o autor compreendeu que estava prestes a abrir uma Caixa de Pandora: se a "competição pela liderança" tem uma relação com "os princípios legais e morais da comunidade", então sua definição do "método democrático", ou de como ele funciona, acaba não sendo tão minimalista quanto poderia sugerir uma leitura isolada da célebre definição.

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Mais ainda, Schumpeter compreende que para haver "livre competição por um voto livre", é preciso que se cumpram algumas condições externas ao processo eleitoral. Citando suas próprias palavras: "Se, pelo menos em princípio, todos são livres para concorrer à liderança política apresentando-se ao eleitorado, isto exige na maioria dos casos, embora nem sempre, um grau considerável de liberdade de expressão para todos. Em especial, isso normalmente pressupõe uma grande liberdade de imprensa." (idem:271-272, ênfases no original) Em outras palavras, para que o "método democrático" exista, algumas liberdades básicas, supostamente relacionadas com "os princípios morais e legais da comunidade", também devem existir, e na maioria dos casos, como Schumpeter faz questão de enfatizar, "para todos". Por fim, quando o autor volta à sua definição e à declaração análoga de que "a função primordial do eleitorado [é] gerar um governo," esclarece que "tive a intenção de incluir nessa frase a função de derrubá-lo." (idem:272; ver, também, pp. 269 e 273) Schumpeter deixa claro, embora não o explicite, que não está falando de um acontecimento isolado, mas de um modo de eleger e derrubar governos ao longo do tempo; sua definição desloca-se então de um acontecimento único, ou como freqüentemente se diz, de um processo ¾ as eleições ¾ para um regime que se prolonga no tempo.

Nas páginas posteriores às passagens citadas, Schumpeter propõe várias "condições para o êxito do método democrático": (1) uma liderança apropriada; (2) "a real abrangência das decisões de políticas públicas não deve ser excessiva"; (3) a existência de uma "burocracia bem treinada, de tradição e prestígio social, dotada de um forte senso do dever e de um esprit de corps não menos forte"; (4) os líderes políticos deveriam exercitar em alto grau o "autocontrole democrático" e o respeito mútuo; (5) deveria também existir "uma alta dose de tolerância com as diferenças de opinião," a propósito do que, voltando à sua nota de rodapé, Schumpeter acrescenta que "um caráter nacional e hábitos nacionais de um certo tipo" são bem apropriados; e (6) "todos os interesses que têm importância são praticamente unânimes não só na sua lealdade com o país, mas também com os princípios estruturais da sociedade existente." (idem:289-296)

Essas afirmações, mais uma vez, estão longe da clareza, tanto em si mesmas quanto em relação às conseqüências previstas por Schumpeter para o caso de faltarem as mesmas condições que enumera. Em primeiro lugar, ele não nos diz se cada uma dessas condições é suficiente para "o êxito do método democrático" ou se, como parece mais razoável, é preciso que o conjunto delas se cumpra. Em segundo lugar, ele não nos diz se a "falta de êxito" significa que o "método democrático" deveria ser suprimido em si mesmo ou se daria lugar a uma democracia reduzida (Collier e Levitsky, 1997). Se a resposta correta for a primeira, teríamos então de acrescentar à definição de Schumpeter, pelo menos como condições necessárias, todo o leque de dimensões que transcrevi acima. Com isso, sua definição poderia ser qualquer coisa, menos minimalista. Se, por outro lado, a resposta correta for que se criaria algum tipo de democracia reduzida, então, em vez de caracterizar integralmente o "método democrático", Schumpeter não teria conseguido oferecer uma tipologia capaz de diferenciar as democracias plenas das reduzidas.

Esses esclarecimentos, ressalvas, postulados de condições necessárias e alusões ao regime aparecem nas páginas imediatamente posteriores à da célebre definição. Não resta a menor dúvida de que Schumpeter tem uma visão elitista da democracia: "Os eleitores que não fazem parte do Parlamento devem respeitar a divisão de trabalho entre eles próprios e os políticos que elegeram [...] devem compreender que, uma vez eleito

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um indivíduo, a ação política é problema deste e não deles." (1975:296) Mas uma definição elitista de democracia não é necessariamente minimalista. A essa altura, já deve ter ficado claro que as várias qualificações introduzidas por Schumpeter dão a entender que sua definição de democracia não é minimalista, nem se concentra estreitamente no "método" ou processo eleitoral, como supunham o próprio autor e a maioria dos seus comentadores.

Desejo argumentar que isso também acontece, implícita ou explicitamente, com todas as definições contemporâneas tidas como "schumpeterianas", ou seja, minimalistas e/ou "processualistas"16. Dentre estas se destaca por sua contundência a de Adam Przeworski: "Democracia é um sistema em que os partidos perdem eleições. Há partidos, ou seja, divisões de interesses, valores e opiniões. Há competição organizada por regras. E há periodicamente vencedores e perdedores." (1991:10) Mais recentemente, o mesmo Przeworski e seus colaboradores propuseram uma definição semelhante, que denominam de "minimalista": democracia é "um regime no qual os cargos governamentais são preenchidos em conseqüência da disputa de eleições. Um regime só é democrático quando a oposição pode concorrer, ganhar e assumir os cargos que disputou. Na medida em que esta definição põe o foco nas eleições, é evidentemente minimalista [...] [isso], por sua vez, implica três características: incerteza ex ante [...] irreversibilidade ex post e [...] [repetibilidade]." (Przeworski et alii, 1996:50-51) Note-se que, apesar de limitada às eleições, a irreversibilidade e, especialmente, a repetibilidade das eleições em que "a oposição tem alguma chance de conquistar cargos em conseqüência das próprias eleições" (idem:50)17, supõe a existência de condições adicionais, semelhantes àquelas mencionadas por Schumpeter, para que esse tipo de sufrágio se realize. Para que a oposição tenha essas oportunidades, é preciso, no mínimo, que também existam algumas liberdades básicas.

Samuel Huntington, por sua vez, depois de declarar que está "seguindo a tradição schumpeteriana", define a democracia "[como um sistema político que existe] na medida em que seus mais poderosos decisores coletivos são escolhidos em eleições limpas19, honestas e periódicas, nas quais os candidatos competem livremente por votos e em que praticamente toda a população adulta está apta a votar." Mas esse autor acrescenta (Huntington, 1991:7), como fazem Schumpeter, de modo explícito, e Przeworski, de modo implícito, que a democracia "também envolve a existência das liberdades civis e políticas de palavra, imprensa, reunião e associação, que são indispensáveis para o debate político e a condução das campanhas eleitorais." Da mesma maneira, Giuseppe Di Palma (1990:16) diz que a democracia "tem como premissa [...] o sufrágio livre e isento em um contexto de liberdades civis, partidos competitivos, opção entre candidaturas, e instituições políticas que regulam e garantem os papéis do governo e da oposição." Larry Diamond, Juan Linz e Seymour Lipset propõem uma definição similar embora mais extensa:

"Um sistema de governo que atende a três condições essenciais: concorrência ampla e significativa entre indivíduos e grupos organizados (especialmente os partidos políticos) para todas as posições de governo que têm poder efetivo, em intervalos regulares de tempo e com exclusão do uso da força; um nível ‘altamente includente’ de participação política na seleção dos líderes e das políticas públicas mediante, ao menos, eleições periódicas e isentas, de modo a não excluir nenhum grupo social importante dentre a população adulta; e um grau suficiente de liberdades civis e políticas ¾ liberdade de

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expressão, liberdade de imprensa, liberdade de formar e filiar-se a organizações ¾ para garantir a integridade da competição e da participação política." (1990:6-7)

De sua parte, Giovanni Sartori (1987:24), ainda que mais preocupado com "um sistema de governo majoritário limitado pelos direitos da minoria" do que com eleições, acrescenta que "para haver democracia é preciso que exista uma opinião pública autônoma [...] [e uma] estruturação policêntrica da mídia e seu jogo competitivo" (idem:98 e 110). Por último, embora partindo de perspectivas teóricas distintas, Dietrich Rueschemeyer et aliiconcordam que a democracia "implica, primeiro, a eleição regular, livre e isenta de representantes pelo sufrágio universal e igualitário; segundo, a responsabilidade do aparelho de Estado perante o Parlamento eleito [...], e, terceiro, as liberdades de expressão e de associação, bem como a proteção dos direitos individuais contra a ação arbitrária do Estado." (1992:43)18

É claro que essas definições se prendem a eleições de um tipo específico, às quais acrescentam, na maioria das vezes de modo explícito, algumas condições simultâneas, como as liberdades ou garantias consideradas necessárias e/ou suficientes para a existência desse tipo de sufrágio. Algumas dessas definições se dizem minimalistas, no estilo de Schumpeter, mas na medida em que têm de supor, pelo menos implicitamente, algumas liberdades simultâneas, essa pretensão não parece justificar-se. Por outro lado, dizendo-se minimalistas ou não, essas definições têm a importante vantagem de ser realistas: pelo menos no que se refere às eleições, incluem com razoável precisão atributos cuja ausência ou presença podemos verificar empiricamente. Faço questão de repetir. Apesar de não inteiramente superpostas, todas essas definições incluem duas espécies de elementos: eleições limpas19 para a maioria dos cargos de alto nível no governo, conforme estipulado constitucionalmente (salvo para os tribunais superiores, as forças armadas e a diretoria dos bancos centrais); e as liberdades ou garantias já mencionadas. Além disso, as definições fazem referência, embora muitas vezes implícita, a um regime que perdura no tempo, e não somente às eleições como acontecimentos isolados. Retornarei a esse ponto mais adiante.

Outras definições também pretendem ser realistas, mas não se qualificam como tal, pois propõem características que ou não podem ser verificadas empiricamente, por não serem encontráveis em nenhuma democracia existente, ou postulam atributos demasiado vagos. Entre as primeiras, incluo as definições que continuam presas à "democracia etimológica" (Sartori, 1987:21), quando afirmam que é o demos, ou o povo, ou uma maioria que de alguma forma "governa"20. Não é isso que acontece nas democracias contemporâneas, em qualquer interpretação da palavra "governo" que implique a atividade deliberada de um agente, embora talvez tenha ocorrido de maneira ampla, mas ainda incompleta, em Atenas (Hansen, 1991). Outras definições procuram contornar essa objeção, mantendo a noção básica do demos como um agente. Por exemplo, Philippe Schmitter e Terry Lynn Karl afirmam que "a democracia política moderna é um sistema de governo em que os cidadãos responsabilizam os governantes por seus atos na esfera pública, agindo indiretamente por meio da competição e da cooperação dos seus representantes eleitos." (1993:40, ênfases minhas) O problema está nas palavras enfatizadas: nada se diz sobre o que significa "agindo indiretamente".

As definições realistas contrastam com as prescritivas ¾ aquelas que afirmam o que deveria ser a democracia na opinião do autor. As definições prescritivas pouco dizem sobre dois assuntos importantes: primeiro, como se deveria caracterizar as democracias

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realmente existentes (inclusive se, de acordo com essas teorias, deveríamos mesmo considerá-las como democracias); e segundo, como se deveria mediar, na teoria e não na prática, a brecha existente entre as democracias definidas de maneira realista e as que são definidas de maneira prescritiva. Por exemplo, Sheila Benhabib diz que a democracia é "um modelo para organizar o exercício público e coletivo do poder nas principais instituições de uma sociedade, partindo do princípio de que as decisões que afetam o bem-estar de uma coletividade podem ser entendidas como resultados de um processo de deliberação livre e racional entre indivíduos concebidos moral e politicamente como iguais entre si." (1996:68, ênfases minhas)21 Mais uma vez as palavras decisivas são as que estão enfatizadas; nada se diz sobre em que sentido, até que ponto e por quem as democracias "podem ser entendidas" como tendo satisfeito o requisito estipulado na definição. Objeção semelhante pode ser feita à concepção de democracia de Jürgen Habermas, na medida em que, para caracterizar e legitimar a democracia e a legislação democrática, ele se baseia na existência de uma esfera deliberativa livre de impedimentos, que é muito difícil de encontrar na prática22.

Invoco agora uma outra definição realista, a de poliarquia, de Robert Dahl23. Prefiro essa definição a outras da mesma espécie porque ela oferece detalhes úteis, e porque o termo "poliarquia" permite diferenciar a democracia política de outros tipos e espaços democráticos. Ela tem a mesma estrutura das demais definições realistas: primeiramente estipula alguns atributos das eleições (cláusulas 1 a 4); em seguida, relaciona certas liberdades que Dahl chama de "direitos políticos primários [os quais] fazem parte integrante do processo democrático" (Dahl, 1989:170) (cláusulas 5 a 7)24, entendidos como necessários para que as eleições efetivamente contenham as características estipuladas. Neste ponto de minha argumentação, cabe-me definir o que entendo por eleições em um regime democrático.

 

AS ELEIÇÕES EM UM REGIME DEMOCRÁTICO

Em um regime democrático, as eleições são competitivas, livres, igualitárias, decisivas e includentes, e os que votam são os mesmos que, em princípio, têm o direito de ser eleitos ¾ os cidadãos políticos. Sendo as eleições competitivas, os indivíduos têm pelo menos seis opções: votar no partido A; votar no partido B; não votar; votar em branco; anular o voto; ou adotar algum processo aleatório para escolher uma opção entre as anteriores. Além disso, os partidos concorrentes (que têm de ser, no mínimo, dois) devem ter oportunidades razoáveis de dar a conhecer suas opiniões aos eleitores efetivos ou potenciais. Para que seja uma verdadeira escolha, a eleição deve ser livre, no sentido de que os cidadãos não deverão ser coagidos, nem quando estão decidindo seu voto nem no momento de votar. Para ser uma eleição igualitária, cada voto deve valer o mesmo que os demais e ser computado como tal, sem fraudes, independentemente da posição social, da filiação partidária ou de outros atributos de cada eleitor25. Finalmente, as eleições devem ser decisivas, em vários sentidos. Primeiro, os vencedores devem tomar posse dos cargos para os quais foram eleitos. Segundo, com base na autoridade conferida aos seus cargos governamentais, os funcionários eleitos devem poder tomar as decisões que o marco democrático legal e constitucional lhes autoriza. Terceiro, os funcionários eleitos devem concluir seus mandatos nos prazos e/ou nas condições estipulados por essa estrutura institucional.

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Eleições livres, igualitárias e decisivas implicam, como argumenta Adam Przeworski (1991:10), que governos podem perder eleições e devem acatar seus resultados. Esse tipo de eleição é uma característica específica do regime democrático, ou poliarquia, ou democracia política ¾ três termos que usarei como equivalentes neste artigo. Em outros casos, pode até haver eleições (como em países comunistas ou outros regimes autoritários, ou na escolha do Papa, ou mesmo em algumas juntas militares), mas somente na poliarquia existe o tipo de eleição que satisfaz a todos os critérios acima mencionados (Sartori, 1987:30; ver, também, Riker, 1982:5).

Cabe advertir que os atributos antes especificados não dizem nada sobre a composição do eleitorado. Já houve democracias oligárquicas, de sufrágio restrito, que satisfizeram os atributos especificados; acontece, porém, que, em conseqüência dos processos históricos de democratização nos países originários, e de sua difusão em outros, a democracia adquiriu uma nova característica, a da includência: o direito de votar e de ser votado é outorgado, com poucas exceções, a todos os membros adultos de um país26. Por razões de concisão, daqui por diante chamarei de eleições competitivas aquelas que reúnem as condições de ser livres, isentas, igualitárias, decisivas e includentes27.

 

DIGRESSÃO COMPARATIVA (1)

Como o caráter decisivo das eleições não aparece nas definições atuais de democracia e de sufrágio democrático28, é preciso dar aqui uma explicação. Em um trabalho anterior, propus acrescentar esse atributo sob o argumento de que sua omissão mostra até que ponto as atuais teorias da democracia incluem pressupostos não examinados, que deveriam ser explicados para que elas adquiram uma adequada abrangência comparativa. Em outras palavras, a literatura presume que uma vez realizadas as eleições e proclamados os vencedores, estes tomarão posse dos seus cargos para os quais foram eleitos e governarão com a autoridade e pelos prazos que a constituição lhes prescreve29. Isso é, evidentemente, um reflexo da experiência das democracias originárias. Mas não é necessariamente verdade. Em diversos países houve casos em que os candidatos, depois de ganharem eleições que satisfaziam os atributos mencionados, foram impedidos de tomar posse, freqüentemente por um golpe militar. Por outro lado, governantes democraticamente eleitos, como Boris Yeltsin e Alberto Fujimori, dissolveram anticonstitucionalmente o Congresso e destituíram os ocupantes de altos postos no Poder Judiciário. Por fim, em casos como o do Chile contemporâneo (e menos formalmente, mas com igual eficácia, em outros países latino-americanos, africanos e asiáticos), certas organizações impedidas de participar do processo eleitoral, geralmente as forças armadas, mantêm, de modo explícito, poder de veto ou "domínios reservados"30que limitam substancialmente a autoridade dos funcionários eleitos. Em todos esses casos, as eleições não são decisivas: não geram, ou deixam de gerar, algumas das conseqüências básicas que supostamente deveriam acarretar.

 

OS COMPONENTES DE UM REGIME DEMOCRÁTICO, OU POLIARQUIA, OU DEMOCRACIA POLÍTICA

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Recordemos que as definições realistas de democracia contêm dois tipos de componentes. O primeiro consiste de postulados sobre o que é exigido para se considerar uma eleição suficientemente competitiva. Trata-se de uma definição estipulativa31, equivalente à que diz que "um triângulo é uma figura plana delimitada por três linhas retas". Estabelece que uma eleição será considerada competitiva se cumprir cada um dos atributos enumerados. O segundo, no entanto, relaciona condições, designadas como liberdades, ou garantias, ou "direitos políticos primários", que circundam eleições limpas. Essas liberdades são condições de existência de um objeto ¾ eleições competitivas ¾ com o qual mantêm uma relação de causalidade. As liberdades complementam a definição estipulativa com uma afirmação do tipo "para que exista X, também devem existir as condições A ... N." Como vimos ao tratar Schumpeter, nenhuma definição realista, ao que eu saiba, deixa claro se as condições que postula são necessárias e/ou suficientes em seu conjunto, ou se apenas aumentam a probabilidade de haver eleições competitivas. Essa imprecisão sugere a existência de alguns problemas que examinarei mais adiante, quando comentar sobre o terceiro aspecto dessas definições.

Vimos antes que um pressuposto freqüentemente implícito nessas definições de democracia é o de que elas não se referem a um acontecimento isolado, mas a uma série de eleições que se prolongam em um futuro indeterminado. Ao dizer isso, entramos no tema da instituição. As eleições a que essas definições se referem são institucionalizadas: praticamente todos os atores, políticos ou não, consideram evidente que as eleições competitivas continuarão a ser realizadas indefinidamente, em datas estabelecidas por lei (nos sistemas presidencialistas) ou em circunstâncias legalmente preestabelecidas (nos sistemas parlamentaristas). Isso faz com que os atores também admitam sem discussão que as liberdades simultâneas continuarão em vigor. Quando essas expectativas são compartilhadas de modo generalizado pela população, as eleições competitivas estão institucionalizadas32. Esses casos diferem não só daqueles dos regimes autoritários como também daqueles em que, por mais que tenha havido no passado eleições competitivas, não existe a expectativa geral de que eleições semelhantes continuarão a ocorrer. Apenas no primeiro tipo de situação, os agentes relevantes ajustam racionalmente suas estratégias à expectativa de que eleições isentas continuarão a ser realizadas. A confluência dessas expectativas geralmente aumenta a probabilidade de que tal tipo de eleição de fato continue a ocorrer33. Em outros casos, as eleições deixarão de ser "o único jogo existente"34, e os atores relevantes investirão em recursos extra-eleitorais como via de acesso às mais altas posições no regime35.

O último termo exige esclarecimentos. Modificando um pouco a definição que Philippe Schmitter e eu formulamos (O’Donnell e Schmitter, 1986:73, nota 1), entendo por "regime" os padrões formais e informais, explícitos ou implícitos, que determinam os canais de acesso às principais posições de governo, as características dos atores admitidos ou excluídos dessas posições e os recursos e estratégias que eles podem usar para alcançá-las36. Quando institucionalizadas, as eleições são um componente central de um regime democrático, já que são o único meio de acesso (com a notável exceção dos tribunais superiores, forças armadas e, eventualmente, dos bancos centrais) às principais posições de governo37. Na democracia, as eleições não são apenas competitivas; também são institucionalizadas. Esse tipo de eleição é um dos elementos que definem um regime democrático, ou poliarquia, ou democracia política.

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Passemos agora a um assunto mais complicado, o das liberdades que circundam as eleições.

 

UM PRIMEIRO EXAME DAS LIBERDADES POLÍTICAS

Parece óbvio que para a institucionalização de eleições competitivas, sobretudo por envolverem expectativas de duração indefinida, essas eleições não podem existir sozinhas. É preciso também haver, em torno das eleições, algumas liberdades ou garantias que ¾ e isso tem grande importância ¾ continuem a vigorar entre uma eleição e outra. Caso contrário, o governo do dia poderia facilmente manipular ou mesmo anular futuras eleições. Relembro que para Dahl as liberdades relevantes são as de expressão, associação e informação, e que outros autores propõem, com maior ou menor detalhamento, liberdades semelhantes. Note-se, porém, que o efeito combinado das liberdades mencionadas por Dahl e outros autores não garante inteiramente que as eleições serão competitivas. Por exemplo, o governo poderia proibir que candidatos da oposição viajem pelo país, ou poderia submetê-los à perseguição policial a pretexto de motivos não relacionados com sua condição de candidatos. Nesse caso, mesmo que estejam em vigor as liberdades relacionadas por Dahl, dificilmente se poderia aceitar que as eleições sejam competitivas. Isso significa que as condições propostas por Dahl e outros autores não são suficientes para garantir eleições limpas. Na realidade, trata-se de condições necessárias que, em conjunto, sustentam um juízo probabilístico: se estiverem presentes, haverá, caeteris paribus, uma forte probabilidade de as eleições serem isentas.

Lembremos que os atributos das eleições competitivas são estipulados por definição38. Em troca, as liberdades "políticas" são derivadas por indução: resultam de uma fundamentada avaliação empírica sobre o impacto de diversas liberdades na probabilidade de as eleições serem competitivas. Essa avaliação é regida pelo evidente propósito de encontrar um conjunto nuclear de liberdades "políticas"39, no sentido de que sua enumeração não se torne um inventário inútil de todas as liberdades que poderiam influir na isenção das eleições. O problema é que, como os critérios de inclusão de algumas liberdades e exclusão de outras se baseiam em juízos indutivos, não é possível existir uma teoria que estabeleça uma clara e sólida linha de demarcação entre as condições incluídas (necessárias e, idealmente, suficientes em seu conjunto), de um lado, e as excluídas, de outro. Esta é uma das razões ¾ embora, como veremos, não a única ¾ que explicam por que não há, e muito provavelmente não haverá jamais, um acordo geral sobre quais são as liberdades "políticas". Aí está, a meu ver, o principal motivo da persistente atração exercida pelas definições minimalistas da democracia e de sua não menos persistente dificuldade para limitar-se às eleições ¾ a Caixa de Pandora que Schumpeter procurou evitar, mas não conseguiu, continua entre nós.

Até aqui examinei o que poderíamos chamar de limites externos das liberdades ou garantias que cercam as eleições competitivas e as tornam altamente prováveis, ou seja, a questão de quais liberdades incluir ou excluir desse conjunto. Mas há um outro problema que reforça a conclusão céptica a que cheguei antes; denominá-lo-ei de problema dos limites internos de cada uma dessas liberdades. Todas elas contêm uma "cláusula de razoabilidade" que, mais uma vez, permanece implícita na teoria da democracia, pelo menos na forma proposta pela maioria dos sociólogos e cientistas

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políticos40. A liberdade de associação não inclui criar organizações com fins terroristas; a liberdade de expressão tem limites, entre outras coisas, na legislação contra os delitos de calúnia ou difamação; a liberdade de informação não impede a oligopolização dos meios de comunicação de massa etc. Como determinar se essas liberdades são ou não efetivas? Certamente os casos que se aproximam de um ou outro extremo não causam problemas, mas há os que caem em uma zona de penumbra entre os dois pólos. Novamente, a resposta a esses casos depende de juízos indutivos sobre até que ponto a frágil, ou parcial, ou intermitente existência de certas liberdades ainda sustenta, ou não, a probabilidade de que as eleições sejam competitivas41. Outra vez, não existem bases teóricas para dar uma resposta clara e firme a essa pergunta: os limites externos e internos das liberdades políticas são teoricamente indecidíveis.

Outra dificuldade é que os limites internos das liberdades enumeradas por Dahl, e de outras também potencialmente relevantes para a competitividade das eleições, sofreram mudanças significativas ao longo do tempo. Basta assinalar que certas restrições à liberdade de expressão e de associação que nos países originários eram consideradas aceitáveis até pouco tempo atrás, hoje pareceriam claramente antidemocráticas42. Levando isso em conta, quão exigentes terão de ser os critérios que devemos aplicar às novas democracias (e às velhas democracias que não pertencem ao quadrante Noroeste do mundo)? Devemos aplicar os critérios hoje prevalecentes nos países originários ou os que estes adotaram no passado? Ou, ainda, devemos fazer em cada caso uma fundamentada avaliação indutiva dessas liberdades, tendo em vista a probabilidade de que permitam ou impeçam a realização de eleições competitivas? Na minha opinião, a última opção é a mais razoável, mas ela nos joga em cheio na questão do caráter indecidível dessas liberdades, agora ainda mais complicado por sua variabilidade histórica.

Dadas essas razões, cheguei à conclusão de que existem e continuarão existindo divergências nos círculos acadêmicos e, por certo, no âmbito da política prática, a respeito de onde traçar os limites externos e internos das liberdades que circundam e tornam provável a existência de eleições institucionalizadas e competitivas. Isso não se dá por uma falha nas tentativas de enumerar essas liberdades. Elas são muito importantes, são fatores cruciais, são condições necessárias para a existência de um regime centrado em eleições competitivas, e como tal merecem ser enumeradas. Além de tudo, é intuitivamente evidente, e pode ser verificado empiricamente, que a ausência de algumas dessas liberdades (digamos, de expressão, associação ou movimento) elimina a probabilidade de haver eleições competitivas. Por outro lado, o caráter indutivo das enumerações e o correspondente problema dos seus limites externos e internos, revelam suas limitações como enunciados teóricos, de per se e em sua capacidade de persuasão intersubjetiva. Essas limitações tornam a questão rigorosamente indecidível. Conseqüentemente, em vez de ignorá-las ou tentar fixar artificialmente os limites internos e externos dessas liberdades, um caminho mais proveitoso consiste em estudar teoricamente as razões e implicações desse enigma43.

Embora ainda tenhamos um longo percurso a fazer, com a análise precedente chegamos a um ponto importante em si mesmo e que nos situa, por assim dizer, em um promontório a partir do qual se podem vislumbrar os caminhos pelos quais teremos de transitar. Um primeiro comentário que devo fazer neste momento de minha argumentação é que concordei, embora com ressalvas e acréscimos, com os autores que propõem definições realistas da democracia política. Na verdade, em relação ao texto já

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citado de Collier e Levitsky (1997), "precisei" suas definições, acrescentando alguns elementos que elas deixam implícitos. Penso que convém incluir expressamente nessa definição duas espécies de componentes: primeiro, eleições competitivas e institucionalizadas; segundo, apesar de seu caráter indecidível, um conjunto de liberdades que, de uma perspectiva racional ¾ porque derivada de atenta observação ¾ , parece ser necessário para sustentar uma alta probabilidade de haver eleições livres e isentas. Outro comentário é que esse critério não é minimalista: não focaliza exclusivamente as eleições competitivas e não ignora as liberdades simultâneas. Penso que uma definição apropriada de democracia política deve concentrar-se em um regime que inclui um tipo específico de eleições, mas não se limita a este. Por outro lado, o critério que proponho é restritivo no sentido de que recusa incluir uma enumeração muito detalhada das liberdades relevantes, o que acabaria sendo inesgotável e analiticamente estéril.

Apesar de ainda ser necessário incluir outros fatores não situados no plano do regime para se chegar a uma definição adequada de democracia, a definição realista e restritiva de regime democrático é útil por várias razões. Uma, de ordem conceitual e empírica, é que ela permite gerar um conjunto de casos diferentes a partir da ampla e variada gama de exemplos de não-democracias, quer se trate de diferentes tipos de regime abertamente autoritários, quer dos regimes que realizam eleições, embora não competitivas e não institucionalizadas44. A outra razão, empírica e também conceitual, é que uma vez gerado tal conjunto de casos, abre-se a possibilidade de analisar e comparar as semelhanças e diferenças entre essas situações e seus subconjuntos45.

A terceira razão é ao mesmo tempo prática e normativa: a existência desse tipo de regime e das liberdades que lhe são simultâneas, apesar das muitas deficiências persistentes em outras esferas da vida política e social, implica uma enorme diferença em relação ao regime autoritário. No mínimo, essas liberdades criam a possibilidade de usá-las como base de proteção ou de habilitação para a busca de ampliar os direitos existentes ou obter novos. Outra razão é que ao longo da história as pessoas se mobilizaram e correram riscos justamente para reivindicar esse tipo de regime e as liberdades que o acompanham. Parece claro que, além das esperanças por vezes míticas em relação aos outros benefícios derivados da concretização de liberdades políticas, a reivindicação desses direitos esteve no cerne das grandes mobilizações que freqüentemente precederam a instituição da democracia46. Pelo menos em relação aos países pós-comunistas, há provas empíricas de que grande parte das respectivas populações reconhece e valoriza essas liberdades47. Ademais, se não levamos em conta que essas liberdades são importantes para muitas pessoas, não temos condições de entender o elevado apoio que a democracia recebe hoje em dia em todo o mundo, não obstante o desempenho com freqüência deficiente de seus governos48

Uma última razão é, como as anteriores,. de ordem prática e normativa. Tanto os dados das pesquisas citadas quanto numerosas observações impressionistas sugerem que, sejam quais forem os significados adicionais atribuídos à palavra "democracia", a maioria das pessoas, na maior parte dos países, inclui certas liberdades políticas e a realização de eleições que, no seu entender, sejam razoavelmente competitivas. Na concepção popular, na linguagem dos políticos e dos jornalistas e também pelos critérios propostos nas definições acadêmicas, que ¾ em parte por essa razão ¾ denominei de "realistas", a existência das liberdades e de eleições basta para chamar um país de democrático. Esse qualificativo tem uma conotação normativa

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positiva, como evidencia o fato de que chamar um "país" de democrático é uma metonímia: isto é, designa o todo, um país, por um atributo de conotação positiva ligado a uma de suas partes, o regime49.

Faço questão de sublinhar os argumentos precedentes porque chegamos a um ponto que se presta facilmente a mal-entendidos. De um lado, acredito ter deixado claro que um regime democrático é extremamente importante em si mesmo. Isto requer uma definição adequada desse regime; por isso propus que um regime que satisfaz os critérios realistas e restritivos já enumerados pode ser chamado de democracia política, ou equivalentemente, de poliarquia ou regime democrático (já observei que estou usando esses três termos como sinônimos). Levando em conta o uso prevalecente dentro e fora dos meios acadêmicos, esse regime pode ser denominado simplesmente de democracia, mas, nesse caso, cabe lembrar que se trata de uma metonímia, ou seja o termo tem uma extensão50 maior que a de regime.

O motivo dessa advertência é que, embora o regime seja uma parte fundamental da questão, ela não se esgota aí. Nisso me afasto dos teóricos que preferem restringir o conceito de democracia tomando como referência o regime. No restante deste texto, analiso algumas conexões do regime com outros temas que, a meu ver, também se incluem na problématique da democracia. Antes, porém, resumo em algumas proposições os principais argumentos até aqui expostos:

I. Em uma definição realista e restritiva, o regime democrático (ou poliarquia, ou democracia política) consiste de eleições competitivas e institucionalizadas, acompanhadas por algumas liberdades políticas.

II. Até as definições "minimalistas", "processualistas" ou "schumpeterianas", que se limitam a mencionar as eleições competitivas como o único elemento característico da democracia, pressupõem a existência de algumas liberdades básicas, ou garantias, para que essas eleições existam. Sendo assim, tais definições não são, nem poderiam ser, minimalistas ou processualistas, como se dizem.

III. As liberdades simultâneas às eleições competitivas e institucionalizadas só podem ser derivadas por indução, tanto no que se refere às liberdades incluídas quanto aos limites internos de cada uma. Por conseguinte, nessa matéria, é impossível chegar a um acordo geral que se baseie em critérios teóricos claros e sólidos51.

IV. Apesar de indecidíveis, já que algumas liberdades simultâneas podem gerar uma alta probabilidade de haver eleições competitivas, convém explicitá-las, tanto porque contribuem para uma definição adequada do regime de que fazem parte, quanto porque ajudam a elucidar as divergências que inevitavelmente cercam a questão.

V. Uma definição realista e restritiva de poliarquia, ou democracia política, ou regime democrático, delimita um espaço empírico e analítico que permite distinguir esse tipo de regime de outros, com importantes conseqüências normativas, práticas e teóricas.

A seguir, sem deixar de ter em vista nosso objetivo ¾ a discussão e elucidação de alguns aspectos da teoria democrática e suas implicações comparativas ¾ , faço uma mudança de perspectiva.

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UMA APOSTA INSTITUCIONALIZADA

Vimos que em um regime democrático cada eleitor tem pelo menos seis opções. Cabe lembrar que este não é o único direito que a democracia reconhece a praticamente todos os adultos residentes no território de um Estado. Cada eleitor tem ainda o direito de tentar ser votado. O fato de que ele deseje ou não exercer esse direito é irrelevante porque, tendo o direito de ser eleito, cada adulto traz consigo a autoridade potencial de participar de decisões governamentais. Os eleitores não somente votam; além disso, e conforme define a legislação relativa aos cargos para os quais são eleitos, eles também podem participar da responsabilidade de tomar decisões coletivas de caráter impositivo e eventualmente aplicar a coação estatal. O que importa no direito de votar e de ocupar cargos eletivos é que isso define um agente. Trata-se de uma definição jurídica; os direitos são atribuídos pelo sistema legal à maioria dos adultos que habitam no território de um Estado, com algumas exceções igualmente definidas por lei. É uma atribuição de alcance universalista, aplicável a todos os adultos independentemente de sua condição social e de suas características adscritas, com exceção da idade e da nacionalidade. Atribuir a todo adulto a condição de agente, implica conferir-lhe a capacidade de tomar decisões consideradas suficientemente razoáveis para produzir importantes conseqüências, tanto para a agregação dos seus votos quanto para seu desempenho em funções governamentais. Pode ser que os indivíduos não exerçam esses direitos, mas o sistema jurídico os conceitua como igualmente capazes de exercitá-los, assim como de desempenharem as obrigações correspondentes (por exemplo, abster-se de atos fraudulentos ou da violência no momento de votar, ou cumprir as obrigações de cargos públicos dentro dos limites estipulados pela lei).

Essa é a agency ¾ a presunção de autonomia e razoabilidade suficientes para tomar decisões cujas conseqüências acarretam obrigações de responsabilidade ¾ , pelo menos nas relações diretamente associadas com um regime fundado em eleições competitivas. Talvez porque a atribuição da condição de agente se tornou um lugar-comum nos países originários, tendemos a esquecer quão extraordinária e recente é sua existência.

Vista desse ângulo, a democracia não é o resultado de nenhum tipo de consenso, ou decisão individual, ou contrato social, ou processo deliberativo. A democracia resulta de uma aposta institucionalizada. O sistema jurídico (incluindo-se, naturalmente, as constituições) confere a cada indivíduo múltiplos direitos e obrigações. Não é uma questão de escolha; ao nascer (e mesmo antes, em vários sentidos) os indivíduos estão imersos em uma trama de direitos e obrigações determinados e respaldados pelo sistema jurídico do Estado-território onde vivem. Somos seres sociais bem antes de tomarmos decisões conscientes, e nas sociedades contemporâneas uma parte importante de nosso ser social é definida e regulada por lei. Este fato também é óbvio e tem importantes conseqüências. Entretanto, é ignorado pelas teorias contemporâneas da democracia.

A atribuição de direitos e obrigações é universalista52: presume-se que cada indivíduo aceite o fato de que, com algumas exceções especificadas pelo próprio sistema legal, todos gozem dos mesmos direitos e das mesmas obrigações que lhes cabem. Alguns desses direitos se referem a um modo peculiar de tomar decisões coletivas de caráter impositivo por indivíduos escolhidos em eleições competitivas e institucionalizadas.

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O que é essa aposta? É que, em uma democracia, cada ego deve aceitar que praticamente todos os demais adultos participem ¾ votando e eventualmente sendo votados ¾ do ato (as eleições competitivas) que determina quem os governará por certo tempo. É uma aposta institucionalizada, porque imposta aos indivíduos a despeito de sua vontade: cada ego tem de aceitar esse fato, ainda que ache que permitir que certos indivíduos votem ou sejam votados é um grave erro. Não resta outra opção a cada ego senão aceitar o risco de que pessoas "erradas" sejam escolhidas como resultado de eleições competitivas. Cada ego deve correr esse risco53, porque ele é determinado e sustentado pelo sistema legal de uma democracia. Ego pode não gostar ou mesmo ter sérias objeções54 a que alter tenha direitos iguais aos seus de votar e ser votado. Mas esta não é uma questão de escolha para ego. Durante sua vida, ego pode escolher muitos aspectos de sua vida social, mas não pode evitar que lhe atribuam, antes e a despeito de sua vontade, um conjunto de direitos e obrigações. Ego está imerso em um sistema legal que estabelece esses mesmos direitos para alter e proíbe ego de ignorá-los, transgredi-los ou negá-los. Em virtude do local de nascimento ou da nacionalidade, e em muitos aspectos pelo simples fato de residir em dado país, ego adquire direitos e obrigações com relação a alter e ao Estado. Insisto que isso não é uma questão de escolha: ego é um ser social constituído e configurado pelos direitos e obrigações promulgados e sustentados pelo Estado ¾ se necessário, por coerção.

Quando se instala uma democracia, há evidentes exceções ao que acabo de dizer. Existe então um momento de escolha: na medida em que os direitos e as obrigações são determinados por organismos constitucionais escolhidos em eleições limpas, ou ratificados por referendos isentos, esses direitos expressam o acordo majoritário¾ e, portanto, suficiente ¾ para a institucionalização da aposta democrática. Passado esse momento, as sucessivas gerações são constituídas e configuradas ab initio em e por relações legalmente definidas pela aposta democrática: cada indivíduo tem de correr o risco de as eleições darem resultados que julgam equivocados. É claro que isso está longe de esgotar toda a questão. Mas é importante porque significa que descobrimos então uma outra característica específica da democracia política contemporânea: é o único regime que resulta de uma aposta institucionalizada, universalista e includente. Todos os demais, quer incluam ou não eleições, impõem algum tipo de restrição a essa aposta, ou a suprimem completamente.

Velhos ou novos, os regimes democráticos, depois do seu momento fundador, são o produto dessa aposta e ficam profundamente marcados por esse fato. Repito: a aposta é institucionalizada55. Não depende das preferências dos portadores desses direitos, nem da agregação de seus votos56, nem de algum mítico contrato social ou processo deliberativo. A aposta é uma instituição legalmente promulgada e sustentada que todos devem respeitar dentro do território delimitado por um Estado. Embora, em si mesma, essa expectativa não implique a obrigação moral de aceitar um regime democrático e obedecer suas autoridades57, é uma expectativa exigente, entrelaçada no sistema legal e sustentada pelo poder coercitivo do Estado.

Essa aposta sustentada pela lei define parâmetros amplos, mas importantes do ponto de vista operacional, para a racionalidade individual: as tentativas de ignorar, transgredir ou negar os direitos que ela confere a alternormalmente trazem graves conseqüências negativas para quem as perpetua. Em suas interações com alter, ao menos na esfera política delimitada por eleições competitivas, geralmente convém a ego reconhecer e

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respeitar os direitos do outro. Esse interesse pode ser reforçado por motivos altruístas ou orientados para o bem-estar coletivo, mas em si mesmo implica o reconhecimento de outros como portadores de direitos idênticos aos de ego. É esse o germe de uma esfera pública que consiste dos reconhecimentos mútuos baseados na atribuição universalista de determinados direitos e obrigações.

Recapitulemos agora duas importantes conclusões a que chegamos na discussão precedente. A primeira é uma definição da cidadania política como o correlato individual de um regime democrático: ela consiste da atribuição legal e do efetivo gozo dos direitos implicados na aposta, isto é, ao mesmo tempo as liberdades simultâneas (basicamente de expressão, associação, informação e livre movimento, apesar de seu caráter indecidível) e o direito de participar de eleições competitivas, inclusive de votar e ser votado. A segunda é que, feita essa definição, saímos do plano do regime para o do Estado, entendido em dois sentidos: de um lado, como uma entidade territorial que fixa os limites de quem é portador dos direitos de cidadania política58; de outro, como um sistema legal que determina e respalda a atribuição universalista e includente desses direitos. A aposta democrática e a cidadania política pressupõem uma à outra, e ambas supõem o Estado, como delimitação territorial e como sistema legal.

A análise anterior introduziu complicações que devemos verificar com cuidado. Recordemos que a Proposição 1 estipula que um regime democrático consiste de eleições limpas e institucionalizadas juntamente com algumas liberdades "políticas" simultâneas. Pois bem, ao lado dos aspectos do Estado que acabo de mencionar, encontramos dimensões que não pertencem ao regime (pelo menos como o defini). Na realidade, esses aspectos têm duas faces. De um lado, estão entrelaçados em um regime democrático, no sentido de que são condições necessárias para sua existência; de outro, conforme discuto abaixo, esses aspectos são característicos da "democraticidade" de pelo menos algumas dimensões do Estado e não só do regime.

Neste ponto de minha argumentação, pode ser útil acrescentar as seguintes proposições:

VI. A cidadania política consiste da atribuição legal e do gozo efetivo de direitos comprometidos com a aposta democrática, isto é, as liberdades simultâneas e os direitos de participação em eleições competitivas, inclusive o de votar e ser votado.

VII. Um regime democrático (ou democracia política, ou poliarquia) inclui: (a) um Estado que delimita dentro do seu território aqueles que são considerados cidadãos políticos, e (b) um sistema legal vinculado a esse mesmo Estado que outorga a cidadania política, conforme definida na proposição anterior, sobre uma base universalista e includente.

Essas duas proposições nos levam a um terreno que devemos explorar com atenção.

 

AGENCY E DIREITOS

Como a adoção da aposta que concede direitos políticos universalistas é muito recente, precisamos fazer uma digressão histórica. Ela nos permitirá rastrear as origens pré-políticas da agency e depois relacioná-la com a democracia contemporânea.

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Sabe-se que, nos países originários, muitas categorias sociais foram excluídas do sufrágio durante muito tempo, e portanto, obviamente, da possibilidade de serem votadas: camponeses, operários manuais, empregados domésticos (e, em geral, os não proprietários ou os que possuíam baixo nível de instrução), os negros nos Estados Unidos, os índios nesse mesmo país e em muitos outros, além, decerto, das mulheres. Os direitos políticos só foram concedidos às mulheres durante o século XX e, em vários países, somente depois da Segunda Guerra Mundial59. Por outro lado, países do Sul e do Leste adotaram em épocas distintas o sufrágio includente, muitas vezes de maneira abrupta. Mas as inúmeras variações das democracias "tutelares" ou "de fachada" que surgiram nessas regiões, assim como, é óbvio, nos regimes abertamente autoritários, implicavam a negação da aposta democrática.

A história da democracia é, em toda parte, a história da difícil aceitação dessa aposta. A história dos países originários foi marcada por previsões catastróficas,60 e às vezes por violenta resistência61, das classes privilegiadas que se opunham à extensão dos direitos políticos a setores sociais tidos como "não confiáveis" ou "indignos" de os possuir. Em outras latitudes, por meios com freqüência ainda mais violentos e excludentes, essa mesma extensão sofreu resistência em inúmeras ocasiões.

Quais os fundamentos dessa recusa? Tipicamente, a falta de autonomia e a falta de responsabilidade ¾ em outras palavras, negação da agency. Presumia-se que somente alguns indivíduos (seja por sua instrução superior ou pela posse de propriedades, seja por fazerem parte de uma vanguarda política capaz de decifrar o sentido da história ou de uma junta militar que entendeu as exigências da segurança nacional etc.) teriam a correta motivação para assumir responsabilidades ou para participar das decisões coletivas. É claro que as vanguardas revolucionárias, as juntas militares e assemelhados criaram regimes autoritários, enquanto nos países originários os privilegiados deram origem, na maior parte dos casos, a regimes democráticos oligárquicos, de caráter não-includente para si próprios e politicamente excludente para todo o resto da população.

Como vimos rapidamente na seção anterior, há uma idéia central por trás de tudo isso: a agency. Essa idéia envolve complicadas questões filosóficas, morais e psicológicas62. Contudo, para os fins deste artigo, basta dizer que um agente é alguém concebido como dotado de razão prática, ou seja, que faz uso de sua capacidade cognitiva e motivacional para tomar decisões racionais em termos de sua situação e de seus objetivos, e dos quais, salvo prova conclusiva em contrário, é considerado o melhor juiz63. Essa capacidade faz do sujeito um agente moral, no sentido de que normalmente ele se verá (e será visto pelos outros) como responsável por suas escolhas e, ao menos, pelas conseqüências diretas que delas decorrem. Sem dúvida, as obras que abordam esse tema pelos mais diversos ângulos introduzem várias ressalvas ao que acabo de afirmar. Apesar de importantes, essas restrições não nos impedem de seguir adiante levantando uma outra questão que tem sido negligenciada pela teoria democrática.

 

A CONSTRUÇÃO LEGAL, PRÉ-POLÍTICA, DA AGENCY

A presunção de agency64 é outro fato institucionalizado, que nos países originários é mais antigo e mais arraigado do que a aposta democrática e as eleições competitivas. Essa presunção não é apenas um conceito moral, filosófico ou psicológico; é legalmente

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determinada e sustentada pela lei. A presunção de agency constitui cada indivíduo como um sujeito jurídico, portador de direitos subjetivos. O sujeito jurídico faz escolhas pelas quais é responsabilizado, porque o sistema legal o concebe como um ser autônomo, responsável e racional ¾ ou seja, um agente.

Essa concepção de agency passou a ser o núcleo dos sistemas jurídicos dos países originários bem antes da democracia. O reconhecimento institucionalizado (isto é, legalmente determinado e respaldado, em geral aceito como evidente) de um agente portador de direitos subjetivos foi o resultado de um longo e complicado processo, cujos precursores são alguns sofistas, Cícero e os estóicos (ver, esp., Villey, 1968). Posteriormente, deram contribuições decisivas o minucioso trabalho jurídico da Igreja Católica e das universidades medievais, o nominalismo de William of Ockam (ver, esp., Berman, 1993; Villey, 1968), e, no fim do período, a influente elaboração, primeiro, dos escolásticos espanhóis do século XVI, e depois de Grotius (1583-1645), Pufendorf (1632-1694) e outros teóricos do direito natural (ver Van Caenegem, 1992; Gordley, 1991; Berman, 1993). Nessa época, o que veio a ser chamado de "teoria consensual do contrato" e a visão de agency que dela decorria alcançaram madura expressão. Como disse James Gordley (1991:7):

"Os últimos escolásticos e os juristas do direito natural haviam admitido o princípio fundamental de que os contratos são realizados pela vontade ou consentimento das partes [...] [em contraste com as concepções de Aristóteles e Santo Tomás de Aquino] entenderam que um contrato era simplesmente o resultado de um ato de vontade, não o exercício de uma virtude moral. As partes somente estavam obrigadas ao que haviam concordado voluntariamente, não a deveres originados da essência ou natureza do contrato." (ver, também, Lieberman, 1998)65

Nessa época, Hobbes propôs uma tese extremamente elaborada sobre a agency, baseada em direitos subjetivos, e a transpôs para a esfera da política. Essa mesma concepção impregnou a visão de mundo do Iluminismo66, e, após Hobbes, foi continuada por Locke, Rousseau, Stuart Mill, Kant e outros, apesar das divergências desses autores em outras questões. Além disso ¾ e este argumento é importantíssimo para minha análise ¾ , a concepção de agency foi incorporada ao núcleo da teoria do direito por juristas como Jean Domat (1625-1695) e Robert Pothier (1699-1772), cujas obras tiveram profunda influência sobre Blackstone, Bentham e outros teóricos ligados à tradição do direito consuetudinário, assim como nos códigos franceses e alemães da primeira metade do século XIX67.

Essas concepções de agency individual e seu corolário, a teoria consensual do contrato, opõem-se a outra concepção do direito, que provém de Aristóteles e Santo Tomás de Aquino e que em sua versão organicista continua a ser muito influente em alguns países fora do quadrante Noroeste do mundo68. Segundo essa visão, a lei diz respeito ao justo ordenamento da polis, onde cada parte deve ter um lugar e uma proporção adequados. O axioma suum cuique jus tribuere exprime essa concepção arquitetônica da justiça e da lei como seu instrumento: não há propriamente direitos individuais, mas direitos e deveres que são atribuídos, a bem do justo ordenamento do todo, a cada uma das categorias ou status que compõem uma sociedade organicamente concebida (cidadãos, estrangeiros e escravos ou, em outros contextos, reis, nobres, burgueses, plebeus etc.)69.

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O surgimento da idéia de agency e seus direitos subjetivos representou uma revolução copernicana: a lei deixou de ter a missão de designar corretamente as partes da totalidade social, e, por conseguinte, de realizar a justiça social para todos. Em troca, como já se inferia do nominalismo de Ockam e, mais tarde, do de Hobbes, a lei visava as únicas entidades verdadeiramente existentes ¾ os indivíduos. A missão da lei é a de determinar e proteger apotestas dos indivíduos, ou seja, sua capacidade de fazer valer sua vontade em todas as esferas não proibidas por essa mesma lei. O indivíduo, concebido como portador dos direitos subjetivos que sustentam sua potestas, é o objeto e a finalidade da lei70. De acordo com essa concepção, se eventualmente se produz uma boa ordem social, esta é um subproduto (como se afirmará mais tarde a respeito do mercado, em consonância com essa mesma visão) da soma das conseqüências da existência dos direitos subjetivos.

É claro que tudo isso constitui um capítulo da história do liberalismo. Muitos autores já assinalaram que, como doutrina política, o liberalismo condensou as cruéis lições deixadas pelas guerras religiosas dos séculos XVI e XVII. Mas é preciso acrescentar que boa parte do trabalho de construção do indivíduo que Hobbes, Locke, Kant e outros fizeram já havia sido realizada pelas teorias filosóficas e, especialmente, jurídicas que citei. O agente portador de direitos subjetivos já estava esboçado nessas teorias, quase pronto para ser transposto à esfera da política por esses grandes autores liberais.

Embora as reflexões anteriores possam parecer muito distantes de uma teoria da democracia contemporânea, não é bem a verdade. Para demonstrá-lo, nada melhor do que invocar Max Weber e seu colossal esforço para explicar o surgimento e as características singulares do capitalismo ocidental. Sabe-se que Weber não atribuiu statusexplicativo privilegiado a nenhuma das dimensões que utilizou. Suas idéias são especialmente importantes para minha análise, porque, ao contrário de grande parte da ciência política contemporânea, ele deu grande atenção aos aspectos legais, interpretando seu funcionamento como um contraponto à emergência dos Estados, do capitalismo, das classes e dos tipos de autoridade política. Weber argumentou que o surgimento do que chamou de direito racional-formal (um repositório de direitos subjetivos, apresso-me a acrescentar) não pode ser atribuído basicamente às demandas ou interesses da burguesia, pois quando esses processos começaram ainda não existia uma burguesia capitalista, no sentido moderno (Weber, 1968:847 e passim). A criação desses direitos se explica antes pelo trabalho secular que esbocei acima, pelos interesses corporativos dos profissionais do direito que levaram a cabo essa obra e, principalmente, pelos interesses dos principais empregadores desses profissionais ¾os governantes empenhados na formação do Estado e, por conseguinte, interessados em melhorar seu crédito e arrecadação fiscal, bem como em submeter ao seu controle direto a população dos territórios que pretendiam governar. Para este fim, era fundamental eliminar as ordens estamentais concebidas de forma organicista (especialmente as feudais e as cidades autônomas, bem como a ampla jurisdição que o direito canônico reivindicava), e com estas as concepções aristotélicas e tomistas da lei. Esses governantes encontraram no caráter universalizante dos direitos subjetivos um meio eficaz para afirmar sua soberania sobre todos os indivíduos residentes em seus territórios71. Apesar de toda a violência empregada, os contornos básicos do atual mapa político dessa parte do mundo foram enfim traçados72.

Pode-se dizer que o processo de construção da concepção jurídica da agency individual foi tudo menos linear e pacífico. Desenvolveu-se através de uma relação mutuamente

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dinamizadora com outro processo: o aparecimento e desenvolvimento do capitalismo. Como novamente nos recorda Weber, e nesse sentido também Marx, o reforço mútuo dos processos de formação do Estado, desenvolvimento do capitalismo e expansão do direito racional-formal teve, entre outras conseqüências, a abolição da servidão73 e o aparecimento do trabalho "livre". Essa liberdade consistiu do direito subjetivo de celebrar contratos pelos quais indivíduos privados da propriedade dos meios de produção vendem sua força de trabalho. O trabalhador das relações capitalistas é desde cedo um sujeito jurídico, portador de direitos (no início, poucos) e de obrigações que "livremente" ajusta com o empregador, como cabe a um indivíduo concebido juridicamente como agente. Isso também vale para as responsabilidades criminais, que deixaram de ser atribuídas coletivamente ao clã, à família ou à aldeia, e foram transferidas aos respectivos indivíduos ¾ de novo, em concordância com sua condição de agente74.

Gostaria de ressaltar que a primeira construção dos direitos subjetivos, especialmente do direito de propriedade e de contrato para o intercâmbio de bens e serviços, é um legado do capitalismo e do processo de formação do Estado, não do liberalismo ou da democracia política, que surgiram bem depois de os direitos já estarem amplamente difundidos nos países originários e tomarem forma detalhada nas doutrinas jurídicas75. O mesmo se pode dizer sobre a construção do direito de propriedade individual, exclusiva e vendável76. Examinando a convergência dessas histórias, devemos lembrar que os Estados e o capitalismo criaram mercados territorialmente delimitados, com o que contribuíram para a construção de uma densa trama de direitos subjetivos, inclusive de uma rede de tribunais que aplicavam esses direitos, bem antes de o liberalismo e a democracia entrarem em cena77.

Por outro lado, muitos autores chamaram a atenção para o fato de que a construção legal de um agente portador de direitos subjetivos, ao omitir as condições reais de exercício desses direitos e excluir outros, avalizou e contribuiu para reproduzir relações extremamente desiguais entre capitalistas e trabalhadores78. Mas essa construção incluía corolários potencialmente explosivos. Primeiro, se a ego se atribui a condição legal de agente em determinadas esferas da vida que, para ele e para o conjunto da sociedade, são de suma importância, levanta-se naturalmente a seguinte pergunta: por que se deveria negar essa atribuição a outras esferas e, de todo modo, quem deveria ter autoridade para tomar tal decisão? O segundo corolário não é menos explosivo, ainda que hoje esteja muito menos resolvido do que o anterior: se a agency implica escolhas, que opções reais poderiam ser consideradas como razoavelmente consistentes com a condição de agente de ego?

A resposta à primeira pergunta está na história da expansão dos direitos subjetivos, inclusive o de sufrágio, até sua atual includência. Essa história foi escrita através dos numerosos conflitos ao fim dos quais as classes dangereuses, depois de terem aceito morrer em massa na guerra para defender seus países (ver, esp., Levi, 1997; Skocpol, 1992) e de trocarem a revolução pelo Estado de Bem-Estar79, foram enfim admitidas como partícipes da aposta democrática ¾ isto é, obtiveram a cidadania política80. Enquanto isso, outros processos continuavam a se desenvolver nos países originários. Um deles foi a definição do mapa da Europa Ocidental e da América do Norte como resultado de bem-sucedidos e freqüentemente cruéis processos de formação do Estado (Tilly, 1985; 1990). Outro foi a expansão dos direitos na esfera civil, um processo que

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vários teóricos alemães chamaram de "juridificação", no duplo sentido de uma especificação de direitos e deveres já reconhecidos e do acréscimo de novos81.

O resultado desses processos foi que, quando em algum momento do século XIX a maior parte dos países do Noroeste adotou a democracia não includente, a maioria da sua população masculina (e, embora em menor extensão, também a feminina) já contava com uma série de direitos subjetivos que regulavam numerosos aspectos de sua vida82. Não se tratava ainda dos direitos políticos da aposta democrática; eram direitos civis relativos a atividades econômicas e sociais privadas. T. H. Marshall (1964) resumiu-os no conceito de "cidadania civil"83 e, mais recentemente, Habermas (1996) os denominou de "direitos burgueses"84. Em um trabalho anterior (O’Donnell, 1999c), discuti esse tema e formulei algumas restrições às tipologias desenvolvimentistas que esses autores propõem. O que desejo ressaltar aqui é que quando, nos países originários, se começou a discutir a questão da plena inclusão política, já existia um rico repertório de critérios legalmente sancionados e elaborados sobre a atribuição de agency a um grande número de indivíduos. É verdade que a restrição da abrangência desses direitos à esfera privada parece muito limitada para os nossos padrões contemporâneos. Mas também é certo que, graças a esse processo de expansão da atribuição de direitos subjetivos, preparou-se o terreno para estender à cidadania política os conceitos, as leis, a jurisprudência e as ideologias originadas da cidadania civil85.

Nessa época, só artificialmente se poderia separar o liberalismo, como uma doutrina política, da história jurídica que acabo de resumir. Muitos direitos que, desde o início, o liberalismo buscava proteger são os mesmos que já tinham sido aperfeiçoados e extensamente aplicados pela lei. É claro que com o tempo o liberalismo os ampliou, mas sempre o fez definindo-os como direitos subjetivos, seguindo suas próprias premissas. Foi na qualidade de defensores dessa espécie de direitos que os liberais conseguiram aprovar Constituições ¾ e as Constituições, independentemente do que possam conter a mais, protegem direitos subjetivos86. Foram essas as Constituições que institucionalizaram pela primeira vez a aposta democrática, embora se baseassem no sufrágio restrito.

Quando, por fim, a aposta includente foi aceita nos países originários, muitas pessoas (mas, certamente, nem todas) puderam perceber que essa decisão não era um salto no vazio. Os governos da época já estavam limitados por direitos subjetivos elaborados e amplamente difundidos, alguns consagrados como normas constitucionais87. Tratava-se, ademais, de sistemas representativos cujo funcionamento atenuava o temor causado pelas experiências de democracia direta ou de governo de massas, desde Atenas até a Revolução Francesa. Já tinham sido também adotadas, ou estavam prestes a sê-lo, outras medidas liberais de salvaguarda, de fundas raízes no passado (embora com histórias diferentes das que narrei aqui), principalmente a determinação de prazos aos mandatos dos funcionários eleitos e a divisão de poderes no interior do regime88.

Esses arranjos institucionais convergiram para configurar o princípio central do liberalismo: todo governo deve ser um governo limitado, pois diz respeito a portadores de direitos promulgados e respaldados pelo mesmo sistema legal que o próprio governo deve obedecer e do qual deriva sua autoridade. Repito que essa idéia fundadora de agentes portadores de direitos subjetivos, que geram uma potestas individual que não pode ser violada ou negada, salvo por razões cuidadosamente especificadas e definidas por lei, já estava enraizada em algumas teorias jurídicas. Essas teorias primeiramente

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precederam e depois interagiram em contraponto com o capitalismo, o Estado e mesmo mais tarde, antes do advento da democracia política includente, com o liberalismo. Como resultado dessa longa e complexa trajetória histórica, a democracia contemporânea se baseia na idéia de agencypromulgada e respaldada por lei. O governo, o regime e o Estado que daí resultam existem para e através de indivíduos portadores de direitos subjetivos89.

É essa, em síntese, a arquitetura legal e institucional do Estado democrático. O fato de que nos países originários essa arquitetura já estava basicamente em vigor quando a aposta includente foi adotada amenizou os riscos percebidos dessa decisão. Como assinala Sartori (1987:389): "Não foi certamente por acaso que a democracia voltou a ser vista como um bom sistema político (após ser condenada durante séculos) depois da aceitação do liberalismo". No mesmo sentido, John Dunn (1992:248) observou que graças a esses processos a democracia se tornou "amigável" para o Estado (e, acrescento, para o capitalismo). A aposta democrática, além de includente e universalista, é uma aposta moderada ou comedida: o enraizamento dos direitos subjetivos (inclusive a incorporação de muitos deles na Constituição), a limitação temporal dos mandatos dos altos postos do regime, a divisão de poderes e a periodicidade de eleições limpas, moderam o que está em jogo em cada eleição.

 

DIGRESSÃO COMPARATIVA (2)

Apresentei de forma extremamente compacta alguns processos históricos que ocorreram nos países originários até que foi adotada a aposta includente, universalista e moderada. Conforme Weber nunca se cansou de repetir, essas circunstâncias históricas foram únicas e marcaram profundamente as características dos países. Por outro lado, na maioria das outras democracias, novas e velhas, no Leste e no Sul, esses processos se desenvolveram mais tarde, em seqüências distintas, e tiveram conseqüências muito menos completas e homogeneizadoras do que nos países originários. Essas diferenças que estão fartamente documentadas nos registros históricos, também marcaram fundo as características contemporâneas dos últimos países, inclusive seus Estados e regimes. Contudo, a tendência anti-histórica e um enfoque estreito nos aspectos formais do regime que caracterizam muitas teorias democráticas atuais criam obstáculos ao estudo desses fatores. Na medida em que se pode presumir que tais fatores exerçam uma forte influência nas características de muitas democracias contemporâneas, essa omissão é um sério impedimento a uma abrangência comparativa adequada da teoria da democracia.

Enquanto não se concluem as pesquisas que deverão remediar essa omissão, só posso apresentar aqui alguns comentários preliminares, que retomarei abaixo em outra digressão comparativa. Em muitas novas democracias, mesmo que, por sua própria definição, se realizem eleições competitivas, e tanto estas quanto a aposta universalista estejam institucionalizadas, os direitos civis têm escassa vigência em todo seu território e nas classes e setores sociais. Além disso, quando se adotou nesses países a aposta includente, muitas salvaguardas liberais não estavam em vigor e algumas permaneceram ausentes. Por isso, os privilegiados viram na aposta uma grande ameaça, com o que muitas vezes desencadearam uma dinâmica de repressão e exclusão que teve como resposta uma profunda alienação popular e às vezes uma radicalização que causou ainda

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mais obstáculos à extensão dos direitos civis e das salvaguardas liberais. Foi essa dinâmica que, no passado e até muito recentemente, alimentou o aparecimento de várias formas de regime autoritário na América Latina e em outras regiões90.

 

A CIDADANIA POLÍTICA E SEUS CORRELATOS

Vimos em seções anteriores que a cidadania política é uma condição definida por lei, outorgada por um Estado nos limites do seu território, como parte e conseqüência da aposta democrática, a indivíduos concebidos como portadores de direitos pertinentes a um regime que se baseia em eleições competitivas e institucionalizadas, e em algumas liberdades simultâneas. Essa condição é uma mistura de atributos. É adscritiva91, porque, excetuando os casos de naturalização, é atribuída a uma pessoa pelo simples fato de ter nascido em determinado território (ius solis) ou ter um parentesco consangüíneo (ius sanguinis). É universalista, porque dentro da jurisdição delimitada por um Estado, designa nos mesmos termos todos os adultos que satisfazem o critério de nacionalidade. É também uma condição formal, porque resulta de normas legais que, em seu conteúdo, promulgação e aplicação, devem satisfazer critérios por sua vez estipulados por outras normas legais. Por último, a cidadania política é pública. Com isto quero dizer, em primeiro lugar, que é o resultado de leis que devem cumprir exigências cuidadosamente especificadas quanto à sua publicidade e, em segundo lugar, que os direitos e obrigações conferidos a cada ego pressupõem (e demandam legalmente) um sistema de reconhecimento mútuo entre todos os indivíduos, independentemente de sua posição social, na qualidade de portadores desses direitos e obrigações.

Sublinho que essas características da cidadania política são homólogas, ou, mais precisamente, fazem parte dos direitos subjetivos, civis, "privados", que discuti acima. É importante entender isto. Por suas origens, pela concepção de agency e por sua definição jurídica, as liberdades políticas que mencionei ao examinar as várias definições de democracia, são parte integrante e essencial dos direitos civis. Isto significa que entre a cidadania política e a cidadania civil há uma conexão histórica, jurídica e conceitual muito mais íntima do que reconhecem muitas teorias da democracia, realistas ou não92. Essas observações têm conseqüências empíricas. Algumas democracias incluem um conjunto nuclear de direitos políticos que são circundados, respaldados e fortalecidos por uma densa rede de direitos civis. Outras, ao contrário, podem exibir formalmente (por uma questão de definição do próprio regime) esses direitos políticos, mas a trama circundante de direitos civis é tênue e/ou se distribui desigualmente entre as diferentes categorias de indivíduos, classes e regiões. Retornarei adiante a essa questão; por ora, apenas quero ressaltar que essas diferenças entre situações e épocas influenciam fortemente o que se poderia chamar de profundidade ou grau de democratização civil e jurídica, ou seja, a qualidade geral da democracia em cada caso ou período.

Neste ponto de minha argumentação devo lembrar que uma outra questão levantada pela presunção da agencytem relação com as opções disponíveis a cada indivíduo, tanto em termos da sua capacidade de escolha, quanto da gama real de escolhas de que dispõe93. Nos países originários, a resposta a essa questão se ramificou em duas direções. De um lado, centrou-se nos direitos privados, em especial, mas não exclusivamente, na área dos

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contratos, definidos em sentido amplo. Criou-se uma série de critérios jurídicos e jurisprudenciais para anular, reparar ou impedir situações em que exista uma relação "manifestamente desproporcional"94 entre as partes, e/ou nas quais é razoável supor que uma das partes não consentiu livremente no contrato, devido à incapacidade mental, fraude ou coação etc.95. Essas medidas tutelares se fundamentam em um critério básico de eqüidade, que, por sua vez, é um corolário da idéia de agency: presume que os agentes se relacionam como tais, isto é, que não são vítimas de desigualdades ou de alguma forma de incapacidade que possam anular sua autonomia e/ou acesso a uma gama razoável de opções. O requisito de um mínimo de eqüidade foi introduzido nos sistemas jurídicos dos países originários por meio dessas construções legais. Em conseqüência disso, ao selo jurídico anterior ¾ anterior do ponto de vista histórico e analítico ¾ das concepções universalistas de agency, acrescentaram-se várias considerações de natureza jurídica e jurisprudencial de eqüidade. De um lado, esses acréscimos contradiziam as construções anteriores de agency, já que introduziam critérios não universalistas à atribuição e adjudicação de direitos em várias situações; de outro, eram coerentes com as construções jurídicas anteriores, porque refletiam o reconhecimento de que a agency não deve ser apenas presumida, mas também examinada em sua efetividade. Essa ambivalência ¾ contradição com as premissas universalistas e coerência com a concepção subjacente de agency ¾ contribuiu muito para a enorme complexidade dos sistemas jurídicos tanto dos países originários quanto dos que nestes se inspiraram.

A segunda direção em que se ramificou a questão da agency e suas relações com as opções é mais bem conhecida entre cientistas políticos e sociólogos. Refiro-me ao aparecimento e desenvolvimento da legislação social. Também aqui sobressai o valor da eqüidade devida à agency, embora esta se concentre em várias categorias sociais e menos nos indivíduos, como acontece no direito privado. Por um longo e complicado processo que não é preciso detalhar aqui96, os novos participantes da aposta trocaram a aceitação da democracia política¾ inclusive a moderação proporcionada pelas salvaguardas a que me referi ¾ por uma parcela dos benefícios do Estado de Bem-Estar. Mas esses benefícios não eram apenas materiais; por meio da representação coletiva e de outros mecanismos, esses atores reduziram a aguda desigualdade de facto, em face dos capitalistas e do Estado, que Marx e outros autores afirmaram esconder-se por trás do universalismo dos sistemas jurídicos então vigentes. Por meio da legislação social, e com altos e baixos nas respectivas relações de poder97, foram incorporadas ao sistema legal algumas concepções de eqüidade baseadas nas idéias anteriores de agency individual, em parte transformando-as. Tal como no direito privado, ainda que em geral aplicadas a categorias de agentes definidos coletivamente, as leis sociais expressaram a idéia de que, se devemos presumir que os agentes são de fato agentes, a sociedade, sobretudo o Estado e seu sistema jurídico, não pode ser indiferente às opções que cada indivíduo enfrenta. Em conseqüência, essas leis criaram políticas preventivas e corretivas, que variaram desde o apoio a níveis básicos de bem-estar material até a autorização de diversos mecanismos de representação coletiva para aqueles que, de outra maneira, seriam demasiado fracos para admitir a presunção de que têm vontade autônoma e opções adequadas. Não deixando de incluir falhas98, essas mudanças, fixadas nos direitos público e privado, foram democratizadoras: tornaram mais denso o tecido jurídico que promulga e respalda a mesma agencypressuposta pela democracia.

Vemos assim que nos países originários houve um longo e complexo processo, que, através de normas legais, impregnou a sociedade, a economia e o Estado de uma

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concepção universalista de agency; esta, posteriormente, foi em parte transformada por valores de eqüidade fundados nessa mesma concepção. Adiante tratarei de algumas implicações desse processo; por ora, desejo salientar que, pelo menos em termos lógicos, a relação entreagency e opções na esfera política mantém estreita conexão com a mesma questão, quando formulada no âmbito do direito privado e da legislação social. Em outras palavras, formular essa questão na esfera política importa em ir além da atribuição universalista de direitos políticos que examinamos nas seções anteriores. Requer que se indague sobre as condições que permitem ou não o exercício efetivo da cidadania política.

Vimos que, do ponto de vista dos direitos civis e sociais, essa questão não pode ser ignorada nem pelo direito privado nem pela legislação social; não tenho clareza sobre as razões pelas quais pode ser ignorada em relação aos direitos políticos. Já que existe uma estreita conexão, como acabei de mostrar, entre direitos civis e direitos políticos (e, mais recentemente, também com os direitos sociais), não me parece coerente omitir o problema da efetividade da cidadania política quando se aplica a indivíduos privados de muitos direitos sociais e civis e, portanto, incapazes de fazer opções minimamente razoáveis. É certo que em um regime democrático os indivíduos contam com os direitos políticos universalistas que analisamos. Também é certo que a outorga desses direitos representa em si mesma um grande avanço em relação ao regime autoritário. Entretanto, olhar apenas para esse lado da questão, importa em suprimir da teoria democrática o mesmíssimo tema da agency e suas opções que o direito privado e a legislação social não puderam ignorar. Esta me parece ser uma limitação indevida e profundamente esterilizante. Em vez disso, a teoria democrática deve aceitar alguns fatos básicos: primeiro, desde Atenas, embora limitada a uns poucos indivíduos, até os tempos atuais, quando abrange muitos, a premissa da democracia política é a agency; segundo, essa idéia já estava incorporada, muito antes dos regimes democráticos contemporâneos, tanto nos múltiplos aspectos do sistema legal quanto no valor concomitante da eqüidade devida aos agentes; terceiro, os direitos civis e os direitos políticos são homólogos; quarto, as origens históricas, jurídicas e conceituais dos direitos políticos encontram-se nos direitos civis. Esses fatos explicam o pertinaz ressurgimento, na teoria e na prática, da questão das condições de existência da cidadania política, como preocupação ao mesmo tempo teórica e moral.

Compreendemos agora a razão do problema da indecidibilidade dos limites dos direitos políticos. A idéia de agencytem implicações diretas e convergentes na esfera civil e na política, porque é o aspecto legalmente estabelecido de uma concepção moral do ser humano como indivíduo autônomo, racional e responsável ¾ isto é, como agente99. Essa noção, ou melhor, presunção, não pode ser validamente separada ¾ nem lógica, nem moral, nem legalmente ¾ da questão das opções disponíveis a cada indivíduo, tanto em termos de sua capacidade de escolher quanto da gama de suas opções. Na medida em que a democracia pressupõe a agency, não vejo como exorcizar da teoria e da prática da democracia os problemas morais e práticos concernentes à efetividade da cidadania política. A Caixa de Pandora revela-se maior do que Schumpeter temia, mas nem por isso inacessível a um exame intelectualmente disciplinado.

Nesta altura da argumentação, convém acrescentar algumas proposições, dando seqüência à numeração anterior.

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VII. Um regime democrático, ou democracia política, ou poliarquia, é o resultado de uma aposta universalista e includente, embora em alguns países seja moderada por diversas garantias institucionais.

VIII. Nos países originários, a cidadania política teve raízes diretas, inclusive conceitos, práticas e instituições bem desenvolvidas e amplamente difundidas, no longo processo anterior de construção da idéia de agente, concebido como um sujeito jurídico dotado de direitos civis subjetivos. A concepção de agency é o aspecto legalmente promulgado de uma visão moral do indivíduo como ser autônomo, racional e responsável.

IX. As regras que estabelecem a cidadania política são parte essencial de um sistema legal cuja premissa é a concepção de agency de um sujeito jurídico. Essa idéia, por sua vez, sustenta e justifica logicamente a aposta democrática.

X. Certas filosofias e teorias morais questionam a validade ou utilidade da concepção de agency, enquanto outras que a aceitam discordam de seus fundamentos e implicações. Isso é interessante e importante, mas não se deve esquecer que, nos países originários, tal concepção estava profunda e abundantemente inscrita nos seus sistemas legais e, por conseguinte, no conjunto de sua estrutura social.

XI. Nesses sistemas legais, e por meio deles, é que, contradizendo em parte sua orientação universalista, a questão das opções de cada agente foi reconhecida (isto é, sua real capacidade de escolher e sua gama de opções). Em conseqüência disso, o direito civil e a legislação social adotaram políticas parcialmente igualizadoras. Inspiradas na concepção da eqüidade devida a uma adequada consideração da agency de cada indivíduo, essas políticas deram impulso à democratização, embora sem deixar de incorporar certos trade-offs.

Na próxima seção analiso algumas questões comparativas.

 

DIGRESSÃO COMPARATIVA (3)

Quando os países não originários importaram, no passado recente ou longínquo, a parafernália institucional de um regime democrático (eleições, constituições, congresso e outros), na realidade, fizeram mais que isso: também importaram sistemas legais fundados em concepções universalistas da agency individual e seus conseqüentes direitos subjetivos. Entretanto, o tecido social desses países pode não incluir uma extensa e detalhada explicitação das condições de efetivação desses direitos; em vez disso, podem prevalecer concepções tradicionais, orgânicas e inclusive criminosas da justiça e do direito100. Se é este o caso, a adoção da democracia e das liberdades que a cercam dá origem a uma profunda disjunção entre esses direitos e o tecido social geral, incluindo-se aí a maneira como são concebidos e concretizados os direitos e obrigações, de ordem política ou de outra natureza. Em outras palavras, a cidadania política pode ser implantada em meio a uma cidadania civil fraca ou extremamente injusta, para não falar do problema mais grave dos direitos sociais.

Esses países podem constituir poliarquias ou democracias políticas, mas o funcionamento do regime assim como suas relações com o Estado e a sociedade

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provavelmente serão muito diferentes do que vigorou nos países originários101. É possível, pelo menos, imaginar que a eficácia geral do sistema jurídico, incluindo-se os direitos civis e sociais, tenha forte influência na abrangência e no vigor, por assim dizer, dos direitos de cidadania política. No estágio atual de nossos conhecimentos, não se pode elaborar senão hipóteses a serem verificadas empiricamente; mas só as podemos formular se levarmos em conta os aspectos históricos e jurídicos que muitas vezes permanecem implícitos na teoria da democracia. Há uma outra questão intimamente relacionada com a anterior, porque aponta para uma grave lacuna no funcionamento do sistema legal. Trata-se do que denominei de deficiência na "horizontal accountability" [responsabilidade pública horizontal] de muitas democracias, que se evidencia nos casos em que o Poder Executivo tenta passar por cima, quando não abolir, muitas das salvaguardas institucionais que mencionei antes. Visto que esse tema já foi discutido em um texto recentemente publicado (O’Donnell, 1999b)102, não o abordarei neste artigo.

 

LIBERDADES "POLÍTICAS"?

Não concluímos ainda a análise das liberdades políticas. Vimos que algumas delas ¾ mais adequadamente definidas como direitos ¾ dizem respeito à realização de eleições competitivas: o direito de votar e de ser votado assim como, de modo geral, o de participar em ações conducentes à concretização de eleições limpas. Trata-se de direitos positivos, protegidos pelas liberdades simultâneas que já analisei e às quais devo agora retornar.

Voltando às liberdades propostas por Dahl, verificamos que existem diferenças entre elas. De um lado, a existência de informações livres e pluralistas é uma característica do contexto social e independe das decisões de indivíduos isolados. Em troca, as duas outras liberdades, de expressão e associação, constituem direitos subjetivos. Fazem parte da potestas de ego, seu direito a não ser molestado quando realiza ou não ações de auto-expressão ou de associação.

Estamos mais uma vez diante de um problema de limites: não é possível decidir que atos de expressão ou de associação são "políticos" e quais não são. A razão disso é que, conforme já foi assinalado, os direitos de expressão e de associação, assim como outros também relevantes para a democracia, fazem parte das liberdades civis que analisei. Evidentemente, os espaços sociais em que os direitos de expressão e associação são relevantes e estão protegidos por lei são muito mais amplos do que a esfera do regime político. Nesse sentido, as definições realistas de democracia, assim como muitas outras, realizam, aparentemente sem sabê-lo, uma dupla operação. Primeiro, "adotam" algumas dessas liberdades, no sentido de que as consideram como diretamente referidas a um regime democrático103. Segundo, essas definições "promovem" as mesmas liberdades à categoria de condições necessárias ao regime. No entanto, devido ao problema dos limites internos que já examinei, essa adoção e promoção é inevitavelmente arbitrária: é difícil imaginar, por exemplo, que as liberdades de expressão e de associação vigorem no campo da política e sejam grosseiramente negadas em outras esferas da vida social. As liberdades políticas diluem-se em um conjunto maior de liberdades civis porque grande parte de sua prática efetiva, de suas origens históricas e de sua formulação jurídica primordial corresponde às liberdades civis. As liberdades de expressão e de associação são tipicamente civis; tornaram-se

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direitos sancionados por lei bem antes de serem reconhecidas como direitos "políticos" relevantes para um regime democrático. Dessa maneira, não há nenhuma linha divisória firme e clara entre os aspectos civil e político dessas liberdades. Elas têm em comum a mesma concepção de agency e de direitos subjetivos acrescida do detalhe, faço questão de insistir, de que os direitos políticos são uma extensão, jurídica e histórica, dos direitos civis. Assim, partindo de um ângulo distinto, deparamo-nos outra vez com os problemas de limites comentados na primeira "Digressão Comparativa"104.

 

SOBRE O ESTADO E SUA DIMENSÃO LEGAL

Há uma outra conclusão que desejo expor agora. Ela deriva do fato de que todos esses direitos ¾ civis, políticos e sociais ¾ são promulgados e respaldados por um sistema legal que faz parte ou é um aspecto do Estado. Normalmente, o Estado estende sua autoridade, que na maioria das vezes se expressa na gramática das leis, por todo o território que abarca. Se afirmamos na proposição VII que para haver um regime democrático é preciso existir uma delimitação territorial e, no mínimo, direitos legalmente estabelecidos que protejam algumas liberdades "políticas", isto quer dizer que deslocamos o foco da análise do regime para o Estado. Em outras palavras105, sustento que o Estado não deve ser entendido como um conjunto de burocracias; ele também inclui uma dimensão legal, o sistema jurídico que o Estado promulga e normalmente sustenta devido à sua supremacia sobre a coerção no território que delimita106. É esse sistema legal que configura e constitui como sujeitos jurídicos os indivíduos que habitam em um território. Portanto, na medida em que o sistema legal sustenta a aposta democrática, bem como um regime baseado em eleições competitivas e algumas liberdades simultâneas, esse sistema jurídico e o Estado do qual faz parte são democráticos. A "democraticidade" é, portanto, um atributo do Estado, não só do regime. Esse Estado é um Rechtsstaat democrático, um Estado democrático de direito, porque promulga e sustenta as normas legais que correspondem à existência e persistência de um regime democrático107.

Fiz referências acima à diferença entre o direito de acesso à informação livre e pluralista e os demais direitos, como os de expressão e associação. Por ser de uso corrente, utilizo com relutância a distinção entre direitos positivos e negativos que tem sido criticada de maneira convincente por vários autores (ver Holmes e Sunstein, 1999; Raz, 1986; Shue, 1996; Skinner, 1984; Taylor, 1993). Mas a mantenho porque ela tem utilidade heurística, principalmente a de nos advertir que, ao contrário do que se costuma pensar, nem todas as liberdades políticas são negativas. Há pelo menos um direito positivo nelas implícito: o de acesso rápido e equânime aos tribunais de justiça. Trata-se de um direito positivo porque contém a expectativa de que certos agentes do Estado tomarão providências, quando legalmente apropriado, para tornar concretas as referidas liberdades (ver Fábre, 1998). A negação de tal direito implicaria que essas liberdades seriam puramente nominais. Com essa afirmação voltamos a nos deparar com o Estado como sistema legal que sanciona e respalda liberdades que, apesar de indecidíveis, são geralmente aceitas como componentes básicos da democracia. Assim, além das normas legais já discutidas, identificamos certas instituições do Estado, principalmente os tribunais de justiça, como elementos necessários ao funcionamento de um regime democrático. Isso me permite completar o quadro de um sistema legal: não se trata apenas de um agregado de normas, mas de um sistema caracterizado pelo fato

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fundamental de que nem no Estado, nem no regime (nem na sociedade) existe um poder legibus solutus, isto é, que se possa declarar acima do sistema jurídico ou isento das obrigações que ele estabelece. Em um sistema legal democrático ¾ ou seja, em um Rechtsstaat democrático ou um Estado democrático de direito ¾ todos os Poderes estão sujeitos à autoridade legal dos outros Poderes108. Um sistema legal desse tipo "encerra", [no sentido de fechar ¾ N. T.], quer dizer, ninguém pode estar acima ou além de suas normas109.

Chegamos agora a uma outra conclusão. Na seção anterior, assinalei que a democracia política inclui duas características específicas não encontradas em nenhum outro regime: eleições competitivas e institucionalizadas e uma aposta includente e universalista. Acabamos de ver que ainda é preciso acrescentar duas outras características: a primeira é que, como conseqüência lógica da definição de regime democrático, há um sistema legal que decreta e respalda os direitos e liberdades associados a esse regime; a segunda é o "fechamento" do sistema legal que faz com que nenhuma pessoa, papel ou instituição possa julgar-se de legibus solutus110. A diferença está em que as duas primeiras características dizem respeito ao regime, enquanto as duas últimas correspondem ao sistema legal do Estado. E assim, mais uma vez, constatamos que focalizar a atenção exclusivamente no regime é insuficiente para uma adequada caracterização da democracia. Essas conclusões podem ser resumidas na seguinte proposição:

XII. A democracia tem quatro características específicas que a diferenciam de todos os demais tipos de regime político: (1) eleições competitivas e institucionalizadas; (2) uma aposta includente e universalista; (3) um sistema legal que promulga e respalda, no mínimo, os direitos e liberdades incluídos na definição de um regime democrático; e (4) um sistema legal que exclui a possibilidade de que uma pessoa, papel ou instituição sejam de legibus solutus. As duas primeiras características dizem respeito ao regime e as duas últimas ao Estado e ao seu sistema legal.

Um outro aspecto do sistema legal é sua efetividade (ou, na terminologia de alguns autores, sua validade), isto é, o grau em que esse sistema de fato ordena as relações sociais. A efetividade de um sistema legal é uma função do seu entrelaçamento. Em um plano, que se poderia chamar de vertical, suponha-se, por exemplo, um juiz que deve decidir uma causa criminal; sua autoridade seria nula se não fosse acompanhada, em diferentes etapas do processo, pela ação da polícia, dos promotores, dos advogados de defesa etc., e, eventualmente, dos tribunais superiores e do sistema carcerário111. No plano horizontal, já aludi ao fato de que, em termos de relações internas ao regime e ao Estado, um sistema legal democrático faz com que nenhum funcionário público possa fugir ao controle da legalidade e adequação de suas ações, conforme definidas pelos órgãos juridicamente incumbidos de exercer esse controle. Em ambas as dimensões, vertical e horizontal, o sistema legal supõe o que Linz e Stepan (1996:37) chamam de "Estado efetivo" e que, nos meus termos, não é apenas uma questão de legislação, mas também de toda uma vasta e complexa rede de instituições estatais que atuam no sentido de assegurar a efetividade do sistema. Conforme veremos, a fragilidade desse tipo de Estado é uma das características mais perturbadoras e desconcertantes de muitas das novas democracias.

 

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UM RÁPIDO EXAME DO CONTEXTO SOCIAL GERAL

Uma vez examinado o sistema legal, passamos à questão da liberdade de informação. Comentei anteriormente que esse direito não é nem positivo nem negativo; é um dado social, uma característica do contexto social geral, que independe da vontade de cada indivíduo. A liberdade de informação é um aspecto geralmente benéfico da sociedade, um bem público indivisível, que não se pode excluir e não tem equivalentes112.

Como demonstra a enorme atenção que lhe dedicam a teoria e a prática jurídicas, a liberdade de informação e seus cognatos, liberdade de opinião e de expressão, abrangem praticamente todos os espaços sociais, estendendo-se muito além do regime113. Para ser razoavelmente efetiva, essa liberdade pressupõe duas coisas: de um lado, um contexto social geral pluralista e tolerante; de outro, um sistema legal que lhe dê sustentação. Se aceitarmos a idéia de que a liberdade de informação é uma das liberdades necessárias e simultâneas a um regime democrático, estaremos novamente não só ultrapassando o regime e entrando no terreno do Estado e de seu sistema jurídico como também tratando de alguns aspectos do contexto social geral.

Estabelecidos esses nexos, defrontamo-nos com um outro problema de limites: é impossível decidir sobre onde e com base em que critérios teóricos se poderia traçar uma linha divisória clara e firme entre os aspectos da liberdade de informação que são relevantes para a democracia política e os que não o são. Por exemplo, em um determinado caso seria permitido o amplo debate de questões da política, mas os temas poderiam estar definidos de modo muito estreito. Em uma situação de censura à discussão pública de direitos de gênero ou diversidade sexual, ou no caso de se proibir o acesso à mídia dos grupos que defendem a reforma agrária, seria muito difícil declarar que a liberdade de informação existente permitiria qualificar o regime como democrático. Por outro lado, não faz muito tempo, essas restrições não eram consideradas como problemáticas nos países originários. Como vimos ao tratar do problema dos limites de outras liberdades, também no caso da informação há uma difícil questão comparativa: seria teórica e normativamente justo aplicar às novas democracias os critérios que os países originários atualmente aplicam a si mesmos, ou deveríamos admitir os critérios mais restritivos que eles adotavam décadas atrás, ou haveria outros critérios? Não posso resolver esse problema neste artigo. Quero apenas deixar assinalado que com essa pergunta estou me referindo a um certo grau, ou qualidade, de "democraticidade" do contexto social geral, e não só do regime ou do Estado. Mas me parece pelo menos lícito afirmar que os países onde grupos e movimentos como os que menciono podem manifestar livremente suas opiniões e têm acesso aos meios de comunicação de massa são mais democráticos do que aqueles onde isso não acontece. Se essa observação faz sentido, devemos entender que a liberdade de informação é uma característica do contexto social geral e não do regime ou do Estado.

Podemos adicionar agora mais duas proposições:

XIII. Nas definições realistas de democracia, as liberdades que acompanham as eleições limpas são consideradas "políticas" em virtude de uma operação de adoção e promoção de liberdades que originariamente foram direitos civis clássicos. Embora essa operação seja útil para caracterizar um regime democrático, ela acrescenta um complicador ao problema dos limites das liberdades e à sua conseqüente indecidibilidade114.

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XIV. As liberdades enumeradas por Dahl e com mais ou menos detalhes por outros autores são de natureza distinta. Algumas são direitos positivos de participação em eleições competitivas. Outras, como as de expressão e associação, geralmente são vistas como negativas, embora sua efetividade envolva pelo menos um direito positivo: o de acesso rápido e equânime aos tribunais de justiça. Por último, a liberdade de informação e, por implicação desta, um contexto social pluralista e tolerante, não é nem negativa nem positiva, mas um bem público que caracteriza o contexto social geral e é em si mesma respaldada por um sistema (democrático) legal.

 

DIGRESSÃO COMPARATIVA (4)

Analisei em seções anteriores as liberdades enumeradas em muitas definições da democracia e assinalei os problemas de limites que todas elas apresentam. Isto requer um exame mais detalhado. Começo por trazer à baila situações que hoje são raras nos países originários, mas freqüentes, se não generalizadas, em muitas das novas democracias. Nestas, existem, por definição, eleições competitivas e institucionalizadas e também algumas liberdades políticas. Mas outras liberdades e garantias, inclusive algumas que fazem parte do repertório clássico dos direitos civis estão ausentes. Estou me referindo às situações em que as mulheres e minorias são discriminadas, ainda que a letra da lei o proíba; situações em que operários e camponeses têm negado, de jure ede facto, o direito à sindicalização; em que a polícia e grupos criminosos violam sistematicamente os direitos dos pobres e dos setores discriminados; em que o acesso à justiça é prejudicado por preconceitos etc.115. As pessoas podem até estar de posse dos direitos políticos descritos, mas seus direitos civis estão muito lesados, quando não inteiramente inacessíveis. Todos são cidadãos políticos, mas sua cidadania civil é, na melhor das hipóteses, mutilada ou intermitente. O fato, simples e rasteiro, mas suficientemente importante para ser visto como algo mais que uma observação alheia à teoria, é que em muitas democracias, velhas e novas, do Sul e do Leste, os que têm acesso a uma cidadania civil mutilada, formam uma grande proporção, se não a maioria, da sua população.

Essa é uma diferença fundamental em relação aos países originários, onde, na maioria dos casos, os direitos de cidadania civil foram adotados de maneira extensiva e detalhada antes que se aceitasse a aposta democrática, e onde, mais tarde, outros direitos civis e sociais foram definidos. Essa diferença tem estreita relação com uma outra. Afirmei que nos países originários o processo de formação do Estado e o surgimento do capitalismo tinham se completado com sucesso ¾ em geral, e com exceções cuja importância empalidece quando comparadas com a história de muitas das novas democracias ¾ antes que a aposta democrática fosse adotada. Nesses países, o êxito da formação do Estado e da expansão do capitalismo fez prevalecer em todo o território do Estado um sistema jurídico baseado no conceito de agency individual. Em muitas democracias do Leste e do Sul (quanto mais nos países que não podem ser considerados democracias), em contrapartida, muitos desses processos homogeneizadores não se verificaram. A geografia desses países é muito mais marcada por regiões, algumas bem vastas, em que o sistema legal sancionado pelo Estado quase não tem uma efetiva presença. E isso não acontece apenas nas áreas rurais; também nas periferias de muitas cidades e, no caso de certos setores discriminados, em todas as regiões, a legalidade estatal também é pouco efetiva116. Parte do problema está em que essas "zonas pardas"

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têm crescido, em vez de diminuir, nos últimos vinte anos, muitas vezes já sob regimes democráticos. Outra maneira de pensar esse problema é considerar a maneira muito desigual como o capitalismo se expandiu nesses países. Ali prevalece uma mescla bastante complexa de relações entre capital-trabalho, principalmente, enormes e crescentes mercados informais, que são não só focos de profunda miséria como também de relações protocapitalistas, e até servis117.

Deve-se também levar em conta que muitas dessas pessoas vivem em condições de tamanha pobreza que toda sua preocupação converge para a mera sobrevivência; elas não têm oportunidades, nem recursos materiais, nem educação, tempo ou mesmo energia para muito mais do que isso. Essas carências manifestam uma pobreza material, ao passo que as anteriores se referem a uma pobreza legal. Pobrezas material e legal fazem parte da situação real de grandes parcelas (em alguns países da maioria) da população de novas e velhas democracias, no Leste e no Sul.

Uma pergunta importante que se deve fazer é se esses fatos são relevantes para uma teoria da democracia, ao menos para aquela que pretende incluir casos em que predominam as condições que acabo de descrever. Alguns observadores, especialmente nos países atingidos por esses problemas, afirmam que isso deixa claro que a "democracia" não passa de um disfarce para enormes desigualdades ¾ e esta é uma das origens da proliferação dos adjetivos e qualificativos compilados por Collier e Levitsky (1997). Para aqueles que, como eu, acreditam que a despeito de suas limitações o regime democrático é uma conquista valiosa, essas opiniões são inquietantes. Mais preocupante ainda é ver que em muitos países governos democraticamente eleitos têm sido incapazes de melhorar uma situação moralmente tão repugnante e chegam mesmo, às vezes, a piorá-la. Por outro lado, alguns observadores respondem com um peremptório "não" à pergunta sobre a relevância dessa situação: chegam a lamentá-la, mas pensam que uma teoria da democracia tem a ver com um regime, e um regime consiste de comportamentos e instituições cuja análise, a não ser que se admita uma grave perda de parcimônia, deve isolar cuidadosamente variáveis legais, sociais e econômicas. Em todo caso, é melhor deixar que essas condições sejam tratadas pelas profissões específicas, e pelos ideólogos e moralistas de toda sorte.

O nexo estreito que estabeleci entre direitos políticos, civis e sociais, assim como seu fundamento comum nos conceitos de agency e de tratamento equitativo que esta demanda, mostram que a posição desses autores é insustentável. Penso que a teoria democrática deve enfrentar de maneira decidida duas questões: uma é a simples e trágica situação das centenas de milhões de pessoas cujo desenvolvimento físico e emocional é "atrofiado" (esta é a expressão sintética usada pela literatura pertinente) pela desnutrição e pelas doenças típicas da extrema pobreza118. Outra questão é viver sob o constante temor da violência, tema sobre o qual Shklar (1989) escreveu com tanta eloqüência e que atormenta a vida de muitas pessoas nesses países, principalmente os que moram nas "zonas pardas" e/ou pertencem a grupos discriminados. Salvo no caso de indivíduos realmente excepcionais, ambos os problemas, o da miséria e o do constante temor da violência, impedem a existência ou o exercício de aspectos básicos da agency, inclusive a disponibilidade de opções mínimas compatíveis com ela; essa "vida de escolhas forçadas" é intrinsecamente contrária à agency (Raz, 1986:123).

Essas questões são ignoradas pela maioria das teorias da democracia119. Mas, na medida em que a democracia implica a agency e esta não tem sentido algum sem um grau

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mínimo de opções não forçadas, não vejo como se possa ignorar esses problemas. Vimos que não há fundamentos lógicos, legais ou históricos para separar a agencypolítica da agency civil e social. O fato de que, de modo geral, a miséria extrema e generalizada e o constante temor não são problemas sérios nos países originários, não é uma boa razão para ignorá-los nas novas democracias. Uma questão fundamental a ser examinada nessas novas democracias ¾ talvez a mais importante do ponto de vista que adotei ¾ é até que ponto e em que condições os pobres e os discriminados podem recorrer às liberdades políticas de um regime democrático como plataforma de proteção e fonte de poder nas lutas pela ampliação dos direitos civis e sociais120.

 

ALGUMAS PROPOSIÇÕES FINAIS

Fizemos uma longa e complexa incursão no campo da teoria democrática, embora preliminar em vários aspectos. Como deixei muitos tópicos para analisar em futuros textos e, principalmente, como a ampliação do âmbito da teoria democrática que estou propondo contradiz boa parte das opiniões predominantes, que preferem limitar a abrangência dessa teoria ao regime, pode ser útil resumir em algumas proposições o terreno percorrido.

XV. Aceitando o uso corrente, a existência de um regime democrático basta para (por metonímia) qualificar um país como "democrático", ainda que nele existam sérias deficiências quanto à efetividade dos direitos civis e sociais.

XVI. A existência desse regime requer um Estado que delimita territorialmente quem são seus cidadãos políticos, isto é, os portadores dos direitos e obrigações instituídos pelo regime. Exige também a existência de um sistema legal que, a despeito de suas deficiências em outros aspectos, garanta a vigência universalista e includente dos direitos positivos de votar e ser votado, assim como de algumas liberdades "políticas" básicas incluídas na definição de um regime democrático.

XVII. Contudo, a natureza em última instância indecidível desses direitos e liberdades significa que, mesmo no âmbito do regime, salvo casos claramente localizados nos pólos de plena vigência e de negação desses direitos e liberdades, surgirão disputas quanto ao caráter democrático ou não democrático do regime.

XVIII. Ainda no âmbito do regime, um alto grau de vigência desses direitos e liberdades, junto com medidas que aumentam a participação dos cidadãos e a transparência e responsabilidade pública dos governos, justificam avaliações sobre os vários graus ou tipos de democratização política dos países que incluem esses regimes, em diferentes épocas e casos.

XIX. Mais além do regime, várias características do Estado (especialmente seu sistema legal) e do contexto social geral, justificam avaliações sobre os vários graus de democratização civil e social de cada país, em diferentes épocas e casos.

XX. A concepção do ser humano como agente liga indissoluvelmente as esferas precedentes e vincula logicamente sua pertinência à teoria democrática, sobretudo na

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medida em que essa concepção é tecida pelo sistema legal nos múltiplos espaços sociais, inclusive no regime.

 

INDICAÇÕES PARA FUTURAS PESQUISAS

Há um tema sobre o qual apenas me referi brevemente, porque é amplo e importante demais para ser discutido neste artigo. Gostaria, porém, como fiz com outros tópicos, de deixar algumas indicações para futuras pesquisas. É que, assim como observei em relação a outros assuntos, e por razões equivalentes, a questão das opções que realmente habilitam a agency é indecidível. Onde e em base a que critérios podemos traçar uma linha a partir da qual seria possível afirmar que a agency tem condições reais e efetivas de existir para cada indivíduo? Podemos estabelecer ¾ embora, mais uma vez, apenas por indução ¾ condições de tamanha privação que deixem pouca margem de dúvida quanto à negação da agency. Porém, essa determinação é puramente negativa; ela não nos diz em que ponto ou linha as opções de agency podem ser consideradas satisfeitas. Ademais, e assim como vimos com diversos direitos e liberdades, os critérios relevantes passaram por importantes mudanças na história tanto dos países originários quanto dos novos. É ainda mais difícil definir critérios que possam ser aplicados a países que contam com menos recursos que os pioneiros.

Em síntese, as várias dimensões da democracia inevitavelmente extravasam para todos os aspectos em que aagency está em jogo. Isto pode causar problemas para uma mentalidade geométrica; creio, porém, que confere à democracia sua dinâmica peculiar e sua abertura histórica. A condição indecidível das liberdades políticas, a sempre possível extensão ou retração dos direitos sociais e civis e, no fundo, subjacente a todas as questões anteriores, a das opções que habilitam a agency, constituem o campo no qual se realiza a competição política na democracia, e assim deverá continuar. É verdade que muitas regras que regulam essa competição são determinadas pelo regime, mas também é certo que as lutas pela expansão e limitação de direitos, assim como para decidir se deve haver, e em que níveis, políticas destinadas a habilitar a agency dos indivíduos, são travadas dentro do regime e, ao mesmo tempo, além dele. Nesse sentido, um fato que mencionei de passagem no início deste texto adquire especial relevância: a atribuição universalista de liberdades políticas e a aposta includente geram pelo menos um embrião de esfera pública. Essa esfera, que tem nexos diversos (entre países e entre épocas) com as várias órbitas de luta social e política, pode ser usada como base para deliberações, debates, pressões e protestos que alimentam essas lutas. É claro que o que se demanda, como e em que áreas, varia caso a caso; mas a atribuição universalista de liberdades políticas e a aposta includente geram possibilidades de habilitação de que todos os outros tipos de regime político são deficientes.

 

CODA

Examinei neste artigo várias dimensões contidas ou conseqüentes às definições de democracia política (ou poliarquia, ou regime democrático), especialmente as de índole realista, com as quais em geral concordo, mas achei necessário precisá-las. Ao propor uma definição realista e restritiva de regime democrático, examinei as implicações

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lógicas e algumas conseqüências empíricas de seus atributos e componentes, e assinalei alguns aspectos que extravasam, com limites indecidíveis, para questões mais amplas. Analisei esses aspectos, primeiro, em relação ao regime e depois, embora de modo sumário, a certas questões morais; posteriormente, relacionei-os ao Estado (com atenção especial ao sistema jurídico que o integra) e, por fim, a algumas características do contexto social geral. Durante essas explorações, descobrimos um aspecto comum a tudo isso: a agency.

Conforme adverti na Introdução, essas conexões são aqui apresentadas apenas para sinalizar tópicos a serem explorados em futuros trabalhos. Contudo, tomando como ponto de partida o terreno relativamente firme que espero ter atingido com uma definição realista e restritiva de regime democrático, essas sinalizações talvez apontem para caminhos pelos quais se poderia expandir uma teoria da democracia. Creio que uma expansão se faz necessária tanto para a teoria democrática tout court como para orientar a enorme agenda de pesquisas ainda pendentes no estudo comparativo da democracia.

Entretanto, talvez possa sintetizar boa parte de minha argumentação lembrando que o ponto a que chegamos ¾uma definição realista e restritiva de regime democrático ¾ se aplica por metonímia a países inteiros. Isso nos sugere a importância do regime e de sua definição, e também nos indica que vários importantes caminhos ainda estão por trilhar.

 

(Recebido para publicação em dezembro de 1999)

 

NOTAS:

* Versões anteriores deste artigo foram apresentadas em seminários realizados na University of North Carolina, na Cornell University, no Wissenschaftszentrum de Berlim, na reunião de agosto de 1999 da American Political Science Association ¾ APSA, em Atlanta, e no Helen Kellogg Institute, da University of Notre Dame, ocasiões em que recebi valiosos comentários. Agradeço também as críticas e os comentários de Michael Brie, Jorgen Elklit, Robert Fishman, Ernesto Garzón Valdés, Jonathan Hartlyn, Osvaldo Iazzetta, Gabriela Ippolito-O’Donnell, Iván Jaksic, Oscar Landi, Hans-Joachim Lauth, Steven Levitsky, Juan Linz, Scott Mainwaring, Juan M. Abal Medina, Martha Merritt, Peter Moody, Gerardo Munck, Luis Pásara, Adam Przeworski, Héctor Schamis, Sidney Tarrow, Charles Tilly, Ashutosh Varshney e Ruth Zimmerling.

*1 Ver na oitava e décima seções, e principalmente na nota 62, o significado de agency e, por conseguinte, o uso particular do termo "agente" que o autor adota neste artigo. Não encontrei em português uma palavra ou expressão que desse conta simultaneamente da presunção de autonomia, responsabilidade e razoabilidade atribuída aos cidadãos pelo sistema legal no regime democrático, que é sintetizada pelo autor na palavra agency. [N. T.]

1. Essas críticas estão em O’Donnell (1994b; 1995).

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2. Neste texto, publicado pela primeira vez no Brasil em 1988, incluo muitas opiniões sobre a "consolidação democrática" que depois concluí estarem equivocadas.

3. O projeto foi coordenado por mim e por Abraham Lowenthal. Seu principal produto foram artigos publicados em 1994 (Castañeda, Conaghan, Dahl, Karl e Mainwaring) em uma série especial do Kellogg Institute, onde podem ser solicitados.

4. Esse projeto foi coordenado por mim e por Víctor Tokman, e seus resultados foram publicados em Tokman e O’Donnell (1998).

5. Esse projeto foi coordenado pelos co-autores do livro. Entre outros estudos patrocinados pelo Kellogg Institute nos quais tive menor participação, mas de que muito me beneficiei, estão: um que analisou a situação depois da democratização do Estado de Bem-Estar e das políticas sociais na Argentina, Brasil, Chile e Uruguai e outro que examinou a situação atual da infância, especialmente da infância pobre, na América Latina. Esses projetos também deverão ser publicados em livro proximamente. Ver, respectivamente, Ippolito-O’Donnell (no prelo) e Bartell e O’Donnell (no prelo).

6. Dentre os trabalhos realizados com essa perspectiva e que focalizam no todo ou em parte a América Latina, destacam-se as excelentes contribuições de Collier e Collier (1991) e Rueschemeyer et alii (1992). Mas ainda resta muito por fazer, tanto em relação à América Latina quanto para compará-la com outras regiões do mundo.

7. Ver O’Donnell (1993; 1994b; 1996a; 1996b); os três primeiros estão reunidos em O’Donnell (1999a).

8. Sartori (1995) também criticou esse modo de proceder; no entanto, nossas opiniões sobre como enfocar os problemas são muito diferentes.

9. Munck (1998) contém uma excelente discussão desse tema.

10. Para uma proveitosa discussão desses procedimentos, ver novamente Collier e Levitsky (1997).

11. Hart discute definições do direito, mas o que ele diz pode muito bem ser aplicado ao conceito de democracia.

12. Adoto a expressão "países originários" como uma forma sintética de me referir aos primeiros países que se democratizaram no quadrante Noroeste do mundo, mais a Austrália e a Nova Zelândia.

13. Importantes reflexões sobre as armadilhas da parcimônia precoce ou injustificada encontram-se em King, Keohane e Verba (1994:20 e passim).

14. Uma exceção é Nun (1987), o qual, depois de chamar a atenção para essa omissão por parte da literatura (que Held, 1987, também notou), critica Schumpeter por alegar ¾ sem nenhuma consistência, conforme veremos a seguir ¾ que sua definição é minimalista.

15. Há uma formulação semelhante na página 285.

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16. Com este termo, alguns autores se referem a definições que pretendem focalizar exclusivamente o "processo" de eleições. Como esse significado equivale ao de "minimalismo", daqui por diante adotarei apenas o último termo ao mencionar esse tipo de definição.

17. Mais recentemente, Przeworski (1998) propôs uma outra caracterização da democracia em um texto que, a despeito do título (Minimalist Conception of Democracy: A Defense), se afasta do minimalismo confesso de outras definições aqui transcritas.

18. Com o segundo atributo, esses autores introduzem um novo elemento, que faz referência ao Estado e não mais apenas ao regime. Mas não precisamos nos deter nisso, neste momento.

19. Mais adiante defino o que entendo por eleições limpas.

20. Ver, por exemplo, a definição de Barber (1984:151): "Uma democracia forte, do tipo participativo, resolve conflitos, na ausência de um terreno independente, mediante um processo participativo de contínua e direta legislação e de criação de uma comunidade política que seja capaz de transformar indivíduos privados e dependentes em cidadãos livres, e interesses privados e parciais em bens públicos". Ver, também, a definição de Beetham (1993:61): "A essência da definição de democracia está no controle popular do processo decisório coletivo por cidadãos iguais". Ou, ainda, a de Shapiro (1996:224): "Os democratas estão comprometidos [com o princípio] do governo pelo povo [...]. O povo é soberano; em todas as questões da vida coletiva, [o povo] governa a si mesmo."

21. Essa definição, como outras de natureza prescritiva, omite a referência pelo menos explícita às eleições. O mesmo vale para algumas definições não prescritivas baseadas na teoria da escolha racional, como a de Weingast (1997), centrada nas limitações impostas aos governantes e nas garantias dos governados. Considerando-se que, seja qual for a avaliação normativa das eleições que cada um dos autores faz, elas são parte integrante das democracias reais, a omissão prejudica seriamente a utilidade de tais definições.

22. Ver Habermas (1996:296): "o elemento central do processo democrático são os procedimentos da política deliberativa." Na página 107, Habermas acrescenta: "As únicas normas de ação válidas [entre as quais estão as ‘que estabelecem um procedimento legítimo para a elaboração das leis’ ¾ p. 110] são aquelas com as quais todas as pessoas por elas afetadas poderiam concordar como partícipes de discursos racionais" (ênfases minhas). Niklas Luhmann (1998:164) contrapõe-se a esta e a outras definições similares com argumentos que considero decisivos: "Cada conceito dessa definição é explicado minuciosamente, exceto a palavra ‘poderiam’, com a qual Habermas disfarça o problema. Trata-se de um conceito modal que, além do mais, está formulado no subjuntivo. Desde Kant, sabe-se que em casos desse tipo a afirmação deve ser especificada, determinando-se suas condições de possibilidade. Mas nada disso é feito [...]. Quem determina, e como, o que poderia gerar um acordo racional?" (ênfases no original). Recentemente, John Rawls propôs uma definição da lei legítima, e por conseqüência, da democracia, que também é prejudicada pela proposição de condições hipotéticas ideais, sem que fiquem determinadas as condições de possibilidade ou as

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implicações da ausência dessas condições. "Assim, quando se trata de uma questão constitucional essencial ou de um assunto de justiça básica, todas as autoridades governamentais pertinentes agem de acordo com a razão pública, e quando todos os cidadãos sensatos pensam em si mesmos, idealmente, como legisladores se atêm à razão pública, o ato legal que expressa a opinião da maioria é uma lei legítima." (Rawls, 1997:770) Para comentários prudentes sobre várias teorias "deliberativas" da democracia, ver Maiz (1996), Johnson (1998) e Fearon (1998). Para evitar mal-entendidos, gostaria de acrescentar desde logo que, a meu ver, a deliberação, o diálogo e o debate têm um importante lugar na política democrática e que, em princípio, quanto mais deles houver, melhor será a democracia. Mas isso não quer dizer que uma esfera pública hipotética e idealizada deva se tornar um componente da definição ou um requisito para a democracia.

23. Entre as várias definições um tanto diferentes que Dahl formulou, escolhi a que se encontra em Dahl (1989:120). A poliarquia consiste das seguintes características: "(1)funcionários eleitos. O controle sobre as decisões governamentais de políticas públicas é constitucionalmente exercido por funcionários eleitos; (2) eleições livres e limpas; (3) osfuncionários eleitos são escolhidos [e removidos de seus cargos por procedimentos pacíficos ¾ p. 233] mediante eleições freqüentes e isentas, nas quais a coerção é comparativamente rara; (4) praticamente todos os adultos têm o direito de concorrer a cargos públicos; (5) liberdade de expressão; (6) existência de informação alternativa, [inclusive] de fontes alternativas de informação, protegidas pela lei; (7) autonomia deassociação. Para concretizar seus vários direitos, inclusive os acima relacionados, os cidadãos também têm o direito de formar associações ou organizações relativamente independentes, entre elas partidos políticos independentes e grupos de interesse."

24. Reformulando um pouco as palavras de Dahl, denomino-as de liberdade de expressão, liberdade de (acesso à) informação alternativa e liberdade de associação.

25. O que estou dizendo é que, no momento do escrutínio, cada voto deve ser computado como um voto (ou, no caso de um sistema de eleições plurais, na mesma quantidade de todos os demais). Com isso, deixo de levar em consideração o complicado problema ¾ não tenho nem espaço nem conhecimentos para resolvê-lo aqui ¾ das regras de agregação de votos, que fazem com que votos de determinados distritos na realidade pesem mais, às vezes significativamente mais, do que os de outros lugares (em relação à América Latina e à super-representação de alguns distritos em certos países, ver Mainwaring, 1999; Samuels e Snyder, 1998). É claro que, a partir de certo grau, a super-representação pode se tornar tão acentuada que elimine toda aparência de votação igualitária, como acontecia em certos parlamentos medievais, nos quais o voto era computado por estamentos, qualquer que fosse o número de seus representantes e representados.

26. É preciso estabelecer uma outra condição, embora se trate de uma precondição estrutural das eleições competitivas mais do que de um de seus atributos. Refiro-me à existência de um domínio territorial incontestado que define univocamente o eleitorado. Como vários autores discutiram esse tema recentemente (Linz e Stepan, 1996:16-37; Offe, 1991; Przeworski et alii, 1996; Schmitter, 1994), não o abordarei aqui.

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27. Note-se que, assim como nos mercados, poucas eleições são perfeitamente competitivas; podem haver importantes restrições factuais, digamos assim, devido a profundas diferenças entre partidos no acesso aos recursos econômicos, ou então barreiras elevadas à formação de partidos que, não fosse por isso, dariam provas de significativas clivagens sociais. Essa advertência aponta, no entanto, para a questão dos diferentes graus de democratização do regime, um tema que não posso abordar neste artigo. Para uma boa discussão desse e de outros assuntos relacionados, ver Elklit e Svensson (1997).

28. São exceções a discussão da "irreversibilidade ex post" das eleições democráticas em Przeworski et alii (1996:51), e a análise de Linz (1998) sobre a democracia como um governo pro tempore. Mas esses autores tratam apenas de alguns aspectos do que eu denomino de "caráter decisivo" das eleições (ver O’Donnell, 1996a, onde se pode encontrar uma discussão mais desenvolvida do tema). Em uma conversa pessoal (junho de 1999), Przeworski me fez ver que o uso que faço do termo "decisivo" poderia ser confundido com o significado que a palavra assumiu na literatura sobre a teoria da escolha social (ou seja, um procedimento que gera uma única decisão em um conjunto de alternativas disponíveis). Com esta nota, espero ter dissipado essa possível confusão.

29. É óbvio que essa possibilidade não é ignorada nos estudos regionais ou por países. O fato de não ter tido suficiente repercussão na teoria democrática diz muito, a meu ver, sobre a tenacidade com que pressupostos implícitos (nem sempre corretos) sobre os países originários ainda sobrevivem nas versões contemporâneas dessa teoria.

30. Sobre o caso do Chile, ver Garretón (1987; 1989) e Valenzuela (1992).

31. Sobre definições em geral, ver Copi e Cohen (1998).

32. O’Donnell (1994a; 1996a) desenvolve essa argumentação.

33. A probabilidade de tal continuidade não significa que após N eleições desse tipo, a democracia esteja consolidada (como alega, por exemplo, Huntington, 1991), ou que outros aspectos do regime (como os que se supõe existentes nos países originários) estejam institucionalizados ou em processo de institucionalização. Análises desses temas podem ser encontradas em O’Donnell (1996a; 1996b), bem como na réplica de Gunther, Diamandouros e Puhle (1996).

34. Como afirmam Przeworski (1991:26) e Linz e Stepan (1996:5). A bem dizer, esses autores não estão falando de eleições, mas da democracia como "the only game in town" [o único jogo existente], mas neste momento não preciso discutir essa sutileza.

35. Mesmo que os agentes prevejam que as eleições em t1 serão competitivas, se acharem que existe uma boa probabilidade de as eleições em t2 não serem competitivas, tenderão a usar esse tipo de recurso extra-eleitoral já em t1, por uma regressão bem analisada nos estudos sobre o "dilema do prisioneiro" com número fixo de interações.

36. Advirto que essa definição está incompleta: trata exclusivamente dos padrões de acesso a posições superiores no governo, e nada diz sobre as modalidades de exercício da autoridade ligada aos cargos. Mazzuca (1998) argumenta convincentemente sobre a conveniência de fazer essa distinção ¾ que vem desde Aristóteles. Mas, neste artigo,

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faço apenas uma discussão muito genérica das modalidades de exercício da autoridade, tema que pretendo desenvolver em um futuro trabalho.

37. Uma boa imagem talvez seja a de uma cadeia de montanhas interligadas, de diferentes alturas, com um único caminho que leva até o cume. O mapa dessas montanhas é o das organizações que compõem o aparelho de Estado, todas interligadas mas relativamente independentes entre si. O que caracteriza a democracia política é que, com as exceções já apontadas, apenas funcionários eleitos ocupam as montanhas mais altas, de onde exercem uma autoridade legalmente definida sobre o resto da configuração.

38. Embora, como observado na nota 50, até que ponto esses atributos de fato vigoram seja uma questão de verificação empírica.

39. A razão pela qual emprego este termo entre aspas ficará clara mais adiante.

40. Esse problema deu origem a uma enorme produção de textos por parte dos teóricos do direito. Adiante voltarei a tratar de certos aspectos dessa literatura e de seu desafortunado rompimento com a maior parte da sociologia e da ciência política.

41. As classificações de países em função dos atributos que venho examinando (como os da Freedom House), embora sejam operacionalizações bastante grosseiras dos conceitos subjacentes, estão muito difundidas. Contudo, essas classificações não escapam do problema dos limites externos e internos que assinalo neste texto. Além disso, outros atores adotam critérios diferentes. Por exemplo, os governos dos países originários costumam aplicar critérios muito indulgentes (basicamente, a realização de eleições nacionais, sem a preocupação de averiguar se há competitividade) para conferir a outros países o título de "democráticos", sobretudo quando mantêm relações amistosas com os governos destes últimos. Outros atores, ao contrário, exigem o respeito efetivo e generalizado a uma série de direitos humanos, independentemente de sua influência mais ou menos direta sobre as eleições competitivas (ver, por exemplo, Méndez, 1999 e Pinheiro, 1999).

42. Holmes e Sunstein (1999:104), por exemplo, afirmam que "o que a liberdade de palavra significa para a jurisprudência americana contemporânea não é o que significava há cinqüenta ou cem anos atrás." Esses autores acrescentam que "os direitos estão permanentemente se ampliando e se restringindo." (ibidem)

43. Embora tratando de outro assunto (os conceitos de igualdade), Amartya Sen (1993:33-34) afirma com toda a razão: "Se uma idéia básica contém uma ambigüidade essencial, a formulação exata dessa idéia deve procurar captar a ambigüidade em vez de escondê-la ou eliminá-la." (ênfase no original)

44. Alguns casos se situam, porém, em uma zona de sombra entre esses dois pólos. No entanto, dado o caráter indecidível das liberdades políticas (e dos diferentes graus de competitividade de cada eleição, tema que como já afirmei não posso discutir neste artigo), não vejo como evitar esse problema. Mas uma melhor elucidação da definição de regime democrático poderia minimizar a dificuldade ou, pelo menos, esclarecer em cada caso quais são seus aspectos problemáticos.

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45. Por exemplo, em sua definição de "democracia liberal", Diamond (1999:11) inclui, além dos costumeiros atributos postulados pelas definições realistas, outras características, como a responsabilidade pública horizontal [horizontal accountability], a igualdade perante a lei e um Poder Judiciário independente e não discriminador. Não tenho dúvidas de que esses aspectos são altamente desejáveis, mas também creio que, em vez de transformá-los em componentes da definição de democracia, seria mais proveitoso estudar até que ponto essas e outras características estão presentes ou não no conjunto de casos gerados pela definição realista e restritiva que proponho. Esse procedimento facilitaria o estudo, ao longo do tempo e entre os diversos casos, das diferenças e mudanças produzidas nas características que Diamond postula, entre outros.

46. As conclusões de Klingeman e Hofferbert (1998:23) sobre sua pesquisa a respeito dos países pós-comunistas também se aplica a outras regiões: "Não foi em busca de comida que o povo saiu às ruas em 1989 e 1991 na Europa Central e Oriental, mas de liberdade." Baseado em outro estudo que analisou um grande número de entrevistas, Welzel e Inglehart (1999) concluem que as "aspirações à liberdade" são essenciais para a maioria dos cidadãos nas novas democracias.

47. Sobre esse tema ver Rose e Mishler (1996).

48. Klingeman (1998) mostra dados a respeito do apoio à democracia "como uma forma de governo", com base em entrevistas realizadas nas antigas e muitas das novas democracias. As médias regionais obtidas por esse autor são as seguintes: Europa Ocidental, 90%; Europa Oriental, 81%; Ásia, 82%; África, 86%; Américas do Norte e Central, 84%; América do Sul, 86% e Austrália/Oceania, 83%.

49. Embora nos últimos tempos o valor da democracia tenha subido no mercado mundial das ideologias políticas, suas conotações normativas positivas também se evidenciaram na maneira como os regimes comunistas se autodenominavam de "democracias populares", no esplêndido oximoro que o Chile de Pinochet inventou para designar seu regime ("democracia autoritária"), e nas aberrações adotadas por muitos líderes autoritários, no passado e no presente, para convocar algum tipo de eleição, esperando com isso legitimar seus governos.

50. Por extensão entendem-se "os diversos objetos aos quais se pode aplicar corretamente um termo; sua denotação" (Copi e Cohen 1998:690).

51. Estou formulando uma razão de ordem epistemológica para o caráter indecidível dessa matéria. Há outras razões concorrentes que não tenho como discutir neste momento.

52. Esta afirmação exige ressalvas em termos das legislações civil e social que visam beneficiar setores desfavorecidos. Voltarei a este tema mais adiante.

53. Veremos, porém, que nos países originários esse risco foi atenuado por diversos arranjos institucionais.

54. Em alguns países esses egos que fazem objeções podem ser uma multidão, embora estejam todos legalmente obrigados a aceitar a aposta. Em uma pesquisa que realizei na

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área metropolitana de São Paulo, entre dezembro de 1991 e janeiro de 1992, espantosos 79% dos entrevistados responderam "Não" à pergunta: "Os brasileiros sabem votar?" Essa porcentagem subiu para 84% entre os entrevistados de nível de instrução secundária ou superior. (No contexto, estava claro para os entrevistados que a pergunta não se referia à mecânica da votação, mas à maneira como avaliavam as escolhas dos demais eleitores entre candidatos e partidos concorrentes.)

55. Ernesto Garzón Valdés (durante conversa realizada em Bonn, em maio de 1999) me fez ver que, nesse ponto, toco em dois tipos de institucionalização que não são exatamente equivalentes. Um deles, o das eleições competitivas, apesar de respaldado pelas regras jurídicas (inclusive constitucionais) que as sancionam, depende em sua efetividade das expectativas subjetivas dos atores relevantes. No entanto, como deixa claro o exemplo brasileiro exposto na nota anterior, a institucionalização da aposta depende diretamente dessas regras e é relativamente independente das opiniões dos indivíduos concretos, até mesmo da maioria deles.

56. Embora a aceitação em geral desses direitos contribua para seu prolongamento no tempo e, presumivelmente, para sua ampliação. Mas isso é irrelevante neste ponto de minha argumentação.

57. Mas é um ponto de partida sólido. Deixo para trabalhos posteriores a discussão da justificativa normativa da democracia.

58. O que, por seu turno, implica a existência de um domínio territorial inconteste que define o eleitorado de modo unívoco. Já observei que vários autores discutiram com propriedade esse tema (Linz e Stepan, 1996:16-37; Offe, 1991; Przeworski et alii, 1996; Schmitter, 1994).

59. Apesar de freqüentes declarações em contrário, os Estados Unidos não são uma exceção a esse respeito, nem mesmo quanto ao sufrágio universal masculino. A existência precoce do sufrágio em âmbito nacional revelou-se puramente nominal devido às rigorosas restrições impostas aos negros e índios, especialmente no sul do país. Por isso, alguns autores, a meu ver convincentemente, remontam à Segunda Guerra Mundial ou à década de 60, na esteira do movimento dos direitos civis, a conquista da democracia política includente (ver Hill, 1994; Bensel, 1990; Griffin, 1996, assim como o livro pioneiro de Key, 1949).

60. Sobre essas resistências, ver Hirschman (1991), Hermet (1983) e Rosanvallon (1992). Como afirmou um político inglês contrário à Lei de Reforma de 1867, "como sou liberal [...] considero que uma proposta [...] destinada a transferir o poder que está nas mãos da propriedade e da inteligência para as mãos de homens cuja vida é necessariamente devotada à luta cotidiana pela subsistência é um dos maiores perigos" (Lowe apudHirschman, 1991:94).

61. A esse respeito, ver, principalmente, Goldstein (1983).

62. Considero particularmente úteis algumas obras que prestam atenção expressa aos nexos entre as questões morais e filosóficas implicadas no conceito de agency, de um lado, e nas teorias jurídica e política, de outro, como Raz (1986; 1994), Gewirth (1978; 1996) e Dagger (1997). Mas na forma ampla em que defini o termo neste artigo, muitos

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autores que se orientam por diversas perspectivas teóricas, compartilham essa visão deagency (ou autonomia). Ver Benn (1975-76); Crittenden (1992); Dahl (1989); Dworkin (1988); Fitzmaurice (1993); Garzón Valdés (1993); Habermas (1990; 1996); Held (1987); Kuflik (1994); Rawls (1971; 1993); Taylor (1985) e, evidentemente, Weber (1968). É interessante notar que, partindo de perspectivas próprias, as psicologias evolutivas de Piaget (1932; 1965) concordam com essa visão; ver, também, Gruber e Vonèche (1977), Reis (1984) e Kohlberg (1981; 1984), entre outros. Ver ainda a interessante análise deste último autor e de outros psicólogos evolutivos em Habermas (1996:116-194). Por outro lado, não são poucas as teorias da personalidade que, apesar de importantes diferenças e da diversidade de suas terminologias, também destacam o conceito e o desenvolvimento da agency como elemento fundamental de suas respectivas concepções (ver Hall, Lindzey e Campbell, 1998).

63. Como disse Dahl (1989:108): "O ônus da prova [da falta de autonomia] sempre recairá na reivindicação de uma exceção, e nenhuma exceção pode ser moral ou juridicamente admissível na ausência de uma evidência muito contundente."

64. Daqui por diante, usarei o termo agency para indicar a presunção e/ou atribuição ¾dependendo do contexto ¾ de autonomia, responsabilidade e razoabilidade ao indivíduo.

65. Os historiadores do direito concordam que nos países regidos pelo direito civil a teoria do contrato baseada na vontade alcançou decisiva influência nos séculos XVI e XVII, mas há divergências quanto ao que aconteceu nos países que seguem o direito consuetudinário. Hamburguer (1989:257), que em uma ampla resenha sobre esse tema defende a tese de que nos últimos países essa influência já era forte no século XVII, transcreve uma passagem de um livro escrito em 1603 pelo jurista inglês William Fulbecke, que resume muito bem essa teoria: "A principal base dos contratos é o consentimento, de modo que as pessoas que os celebram devem ser capazes de dar seu consentimento [...] o consentimento nasce do conhecimento e da livre vontade de um indivíduo, diretamente de seu entendimento suficiente [...]".

66. A influência das idéias científicas de Bacon, Galileu, Descartes e, principalmente, Newton sobre essas concepções nesse período mereceria muito mais do que a referência de passagem que posso fazer aqui. Após chamar a atenção para a revolução copernicana contra o aristotelismo que os novos métodos analíticos e experimentais representaram, Von Wright (1993:177) comenta que, em conseqüência, "a Natureza é objeto, o homem ésujeito e agente (ênfases no original). Sobre esse tema, Cassirer (1951) e Gay (1966a; 1966b) ainda são fontes indispensáveis. Para uma análise que coincide com a minha no que se refere à importância política das idéias de agency no Iluminismo, ver Galston (1995).

67. Sobre essas influências ver, especialmente, Gordley (1991) e Lieberman (1998).

68. Para uma discussão dessas concepções organicistas relativamente à América Latina, ver Stepan (1978).

69. Como disse Santo Tomás de Aquino: "Dado que a parte guarda com o todo a mesma relação que o imperfeito tem com o perfeito, e dado que cada homem é uma parte dessa totalidade perfeita que é a comunidade, segue-se que a lei deve ter como objeto

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apropriado o bem-estar do conjunto da comunidade [...]. Em sentido estrito, a lei tem como objeto primeiro e principal o ordenamento do bem comum." (apud Kelly, 1992:136)

70. Referindo-se à concepção de Hobbes (e de Spinoza) sobre os direitos subjetivos, Kriegel (1995:38-39) afirma com acerto: "Essa definição, que vincula direitos aos indivíduos e à sua libertas, rompe de maneira decisiva com o aristotelismo e o antigo direito natural, que concebia os direitos e a lei como relações de eqüidade dentro de uma sociedade política natural, ou como uma expressão legalizada da mais justa distribuição segundo a ordem das coisas. Hobbes, ao contrário, pensa os direitos como atributos de um indivíduo, uma manifestação de suas potencialidades no estado de natureza. Em lugar de uma teoria realista e objetivista do direito, estamos diante de uma visão subjetivista e naturalista" (ênfases no original).

71. Como escreveu Weber (1968:852): "O interesse político na unificação do sistema legal desempenhou um papel dominante [na adoção e expansão do direito racional-formal]." Ver, também, Bendix (1964); Dyson (1980); Poggi (1978); Spruyt (1994); e Tilly (1975; 1985; 1990).

72. Nessa época, o princípio de cuius regio eius religio, que desencadeara as guerras religiosas, foi substituído pelo princípio de "um só Estado, um só código legal" (Van Caenegem, 1992:125).

73. Mas apenas entre os países do quadrante Noroeste do mundo, e mesmo aí, com a importante exceção da escravidão no sul dos Estados Unidos. Posteriormente, em outras regiões, a formação do Estado e a expansão do capitalismo tiveram, em geral, características e conseqüências menos benéficas.

74. Este é um outro tema importante do Iluminismo que foi transposto para as leis por influência de Bentham, Montesquieu, Voltaire e, principalmente, Beccaria.

75. Tilly (1997:87) comenta que no início do período moderno "o trabalho assalariado deslocou os sistemas de aprendizagem, escravidão e trabalho doméstico agregado sob os quais todos haviam trabalhado até então" (ver, também, Habermas, 1996; Rosanvallon, 1992; Steinfeld, 1991; Tilly, 1990; e Tomlins, 1993).

76. Janowski (1998:200) escreve que: "[Nos séculos XVII e XVIII] os direitos universais à propriedade eram protegidos pelos tribunais bem antes dos direitos sociais e políticos." Note-se que as origens da moderna legislação sobre a propriedade remontam ao direito romano, no qual a propriedade era definida como exclusiva e transferível. Orth (1998) mostra que a relação histórica entre trabalho e leis de propriedade e contrato nos países de direito consuetudinário era mais complexa do que descrevi aqui; mas esses complicadores não desmerecem o fato de que as novas relações de trabalho, entendidas como derivadas do direito de propriedade ou do de contrato, foram concebidas como resultado da livre vontade dos indivíduos.

77. Como assinalam Alford e Friedland (1986:240), "o aparecimento do Estado foi progressivamente constituindo o indivíduo como um sujeito jurídico abstrato, portador de direitos específicos independentemente da estrutura social e responsável por seus atos." Acrescento que isso também foi produto da expansão paralela do capitalismo.

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Rosanvallon (1992) concorda com essa idéia: "A história do aparecimento do indivíduo pode ser entendida como uma parte da história dos direitos civis [...] (:107) [antes da Revolução Francesa] a noção de autonomia [individual] [...] já fora formulada no direito civil." (:111)

78. "Portanto, a conseqüência da liberdade contratual é, em primeiro lugar, a criação de oportunidades de usar esses recursos, pelo uso inteligente, sem restrições legais, da propriedade no mercado, como meio de obter poder sobre outros. Assim, as partes interessadas em obter poder no mercado também estão interessadas nessa ordem legal [...] a coerção é exercida em grau considerável pelos proprietários privados dos meios de produção e aquisição, cuja propriedade é garantida pela lei [...]. No mercado de trabalho, deixa-se ao ‘livre’ critério das partes aceitar as condições impostas pelos que são economicamente mais fortes graças à garantia legal de sua propriedade." O autor dessas frases é Weber (1968:730-731), não Marx.

79. Essa generalização omite importantes variações entre países, mas que não são essenciais para minha análise. Na vasta bibliografia sobre essa tema, ver Esping-Andersen (1985; 1990); Przeworski (1985); Przeworski e Sprague (1988); Rothstein (1998); Rueschemeyer et alii (1992); e Offe e Preuss (1991).

80. Além disso, foram iniciados vigorosos esforços educacionais para assegurar que esses setores sociais se tornassem "verdadeiramente confiáveis". Isso teve a longo prazo importantes efeitos democratizadores. Mas para um estudo sobre o caráter defensivo dos primeiros esforços realizados na França (os quais, pelo que sei, não foram muito diferentes dos que se desencadearam nos países originários), ver Rosanvallon (1992). Nesse sentido, não deixa de ser significativa a grande atenção que Condorcet, Locke, Rousseau, Adam Smith e outros ilustres membros do Iluminismo prestaram à educação como instrumento fundamental de habilitação do indivíduo à condição de agency na esfera política.

81. Marshall (1964:18) comenta que: "A história dos direitos civis em seu período de formação é a da progressiva adição de novos direitos a um status que já existia e que era considerado pertinente a todos os membros adultos da comunidade." Foram estes: "os direitos indispensáveis à liberdade individual ¾ liberdade da pessoa, liberdade de palavra, de pensamento e de religião, o direito à propriedade e o de celebrar contratos válidos, e o direito à justiça" (idem:10-11).

82. Como escreve Tilly (1994:7) a respeito da França: "Com a Revolução, praticamente, todo o povo francês obteve acesso aos tribunais. Durante o século XIX, os direitos [...] foram ampliados, junto com as obrigações de freqüentar a escola, prestar serviço militar, responder aos censos, pagar impostos individuais e cumprir outros deveres já então comuns aos cidadãos." Mais cedo ou mais tarde, isso também foi atoado em outros países originários. As análises neo-institucionalistas, como as de North (1991) e North e Weingast (1989), prestaram muita atenção a essa juridificação das esferas civil e econômica.

83. De acordo com Marshall (1964:71-72), os direitos civis incluem "a liberdade da pessoa, liberdade de palavra, de pensamento e de religião, o direito à propriedade e o de celebrar contratos válidos, e o direito à justiça."

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84. Referindo-se a esses direitos, Habermas (1996:28) observa que "desde Hobbes, o protótipo da lei em geral são as normas do direito privado burguês, que se baseia na liberdade de celebrar contratos e de adquirir propriedades."

85. Rehg (1996:xxi-xxii) escreveu o seguinte comentário: "Na tradição do contrato social que vem de Thomas Hobbes [...] a constituição jurídica da sociedade baseada nos direitos individuais parecia ser uma extensão plausível das relações contratuais que regiam a economia burguesa. As instituições econômicas do contrato e da propriedade já implicavam uma concepção da pessoa jurídica como livre e igual, e, portanto, possuidora de direitos iguais." Fazendo um comentário a Weber, Kronman (1983:144) acrescenta: "Tanto o conceito de trabalho livre quanto a idéia de contrato voluntário e consensual se baseiam no mesmo entendimento do que significa ser uma pessoa jurídica, um ser dotado do poder de criar direitos e de adquirir propriedades. Ambos pressupõem que a personalidade jurídica do indivíduo, seu status como portador e criador de direitos, depende inteiramente da posse de uma faculdade que pode ser indistintamente descrita como a capacidade de agir tendo em vista os fins para a auto-regulação voluntária, para agir de acordo com regras."

86. Não posso tratar neste texto de outros aspectos power-enabling das Constituições. Sobre isto, ver Hardin (1989); Holmes (1995); Bellamy (1996); Habermas (1996); e Preuss (1996b).

87. Estou mais uma vez expondo de modo sumário uma história muito complicada. O livro de Alexander (no prelo) e o de Gould (1999) tratam com detalhes valiosos dos diversos padrões e ritmos desses processos na Europa Ocidental.

88. Para uma discussão desses processos institucionais, ver Manin (1995).

89. Jones (1994:88) formula claramente essa idéia: "A autoridade política é autoridade sobre e em benefício de indivíduos investidos de direitos."

90. Analisei essa questão em vários textos, especialmente em O’Donnell (1998a; 1988).

91. Análises coincidentes encontram-se em Brubaker (1992) e Preuss (1996b).

92. Uma exceção é Habermas (1986; 1988; 1996), embora, como já observei, eu tenha discordâncias quanto à sua abordagem geral. Outros trabalhos que realçam a estreita relação entre os fatores jurídicos e políticos são os de Bobbio (1989; 1990); Garzón Valdés (1993); Linz (1998); Preuss (1986); e Sartori (1987). Certamente não é por acaso que tanto esses autores quanto eu mesmo nos tenhamos formado na tradição jurídica e política européia, em que jamais existiu a profunda divisão entre teoria do direito e teoria política que deu origem, especialmente nos Estados Unidos, à "revolução behaviorista" das décadas de 50 e 60.

93. Daqui por diante, quando falo em "opções" me refiro à capacidade efetiva de fazer escolhas e à gama de opções de que cada indivíduo realmente dispõe. Neste artigo, minha análise desse tema tão complexo é rudimentar, mas confio que seja suficiente para destacar a parte da história jurídica que me interessa. Para uma cuidadosa análise das opções e sua conexão necessária com a idéia de agency, ver Raz (1986).

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94. Tal como enuncia a seção 138 do Código Civil Alemão.

95. Esta foi outra longa e complexa evolução, que variou significativamente nos países originários, principalmente no seu timing (ver Atiyah, 1979; Van Caenegem, 1992; e Trebilcock, 1993). A análise pioneira foi feita, mais uma vez, por Weber (1968). Vale notar que, acompanhando e apoiando essa evolução, a concepção individualista da teoria consensual do contrato (e de outros direitos em geral) foi revista no sentido de uma visão mais relacional dos direitos (ver Dagger, 1997:21 e passim).

96. Ver as referências bibliográficas da nota 79. Talvez eu deva esclarecer que essa bibliografia nos leva a deduzir que a motivação inicial de algumas políticas sociais foi a de agir preventivamente contra questionamentos populares ou a de obter benefícios setoriais estreitos. Mas essas leis não teriam sido formuladas se não respondessem a intensos, generalizados e bem documentados sentimentos contra a injustiça representada pelas profundas desigualdades e riscos a que estavam expostas as pessoas durante sua vida profissional e nos locais de trabalho. Aludindo à introdução de leis sociais "pelo alto", Bismarck disse: "Se não tivesse existido a social-democracia e se tantas pessoas não a tivessem temido, não teríamos realizado sequer os modestos progressos que agora estamos alcançando no campo das reformas sociais" (apud Goldstein, 1983:346).

97. Por exemplo, a atual ofensiva neoconservadora visa exatamente anular essas políticas parcialmente igualizantes. Na maioria dos países da América Latina atingidos por graves crises econômicas e caracterizados pela fragilidade dos seus sistemas jurídico e de proteção social, as conseqüências dessa ofensiva têm sido particularmente devastadoras. Para uma análise desse tema e de outros assuntos pertinentes, tendo em vista o caso do Brasil e do cone sul da América Latina, ver Ippolito-O’Donnell (no prelo).

98. Weber (1968) denominou esses processos de "materialização da lei" por introduzirem no direito racional-formal regras e critérios não universalistas de justiça substantiva. Recentemente, as críticas da "contaminação jurídica" (Teubner, 1986; Preuss, 1986) produzida por esses processos legais se espalharam, à esquerda e à direita. Trata-se de uma literatura bem conhecida que não é fundamental para minha análise. Ressalto, porém, que essas críticas negligenciam seriamente os avanços na igualdade obtidos em muitos aspectos por esses processos. O argumento contrafactual que deveria moderar essas críticas é a situação muito mais desfavorável dos países nos quais as políticas sociais foram adotadas ou postas em prática apenas parcialmente.

99. Essa concepção foi memoravelmente inscrita na Declaração Universal dos Direitos Humanos da Revolução Francesa e na Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos. Posteriormente, a partir da Declaração dos Direitos Humanos das Nações Unidas, de 1948, e na seqüência de numerosas convenções e declarações internacionais, foi incorporada ao direito internacional, criando uma espécie de ius gentium que a maioria dos governos, pelo menos nominalmente, respeita.

100. O’Donnell (1993) apresenta as inumeráveis discussões geradas por essa disjunção, no Leste e no Sul, entre o pays réel e o pays légal. Esse é outro processo histórico extremamente complexo ao qual só posso fazer aqui uma rápida referência. Os antropólogos do direito estudaram as fascinantes ambigüidades que nos países coloniais e semicoloniais cercaram a adoção dos sistemas jurídicos europeus e sua inter-relação

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com as ordens legais preexistentes (sobre o caso do Egito, por exemplo, ver Brown, 1995). Ao que eu saiba, no entanto, ainda há muito o que estudar sobre esse tema. Um livro de Jaksic (no prelo) a respeito de Andrés Bello e de sua grande influência na adoção e adaptação de várias correntes da legislação européia em vários países da América Latina no século XVII também é relevante.

101. Argumentos nesse sentido podem ser encontrados em DaMatta (1987); Fox (1994a; 1994b); Neves (1994; no prelo); Schaffer (1998); e O’Donnell (1993; 1996a; 1999c).

102. Nesse texto analiso a fragilidade do componente liberal dessas democracias assim como do que chamo de sua dimensão republicana.

103. Flathman (1972) contém um argumento na mesma linha.

104. Nesse ponto, não nos deve surpreender que em sua cuidadosa resenha de muitas definições de democracia Collier e Levitsky (1997:443) concluam que: "Há divergências sobre que atributos são necessários para viabilizar a definição [de democracia]."

105. Discuto esse tema em O’Donnell (1993; 1999c).

106. Para uma visão coincidente, ver Bobbio (1989:47).

107. Para uma análise mais detalhada, ver O’Donnell (1999b).

108. É isso que alguns teóricos alemães denominaram de "indisponibilidade" do sistema legal para os governantes (ver, esp., Preuss, 1996a; e Habermas, 1986; 1988). Trato desse aspecto sob a rubrica de horizontal accountability [responsabilidade pública horizontal] em O’Donnell (1999b). Essa característica está intimamente ligada às salvaguardas dos direitos e liberdades que já comentei antes, caso contrário, haveria poderes essencialmente incontroláveis que poderiam anular de modo unilateral esses direitos e liberdades. Esse tema deu origem a interessantes ramificações que não posso seguir aqui; por outro lado, estou deixando de lado o fato, não diretamente pertinente para minha análise, de que em certos países esse "rounding up" [enclaustramento] do sistema legal foi realizado por oligarquias democráticas não includentes.

109. Sobre esse tema, consulte os seguintes autores, cujas perspectivas, apesar de diversas, convergem nesse aspecto: Alchourrón e Bulygin (1971); Fuller (1981); Habermas (1996); Hart (1961); Ingram (1985); e Kelsen (1945). Ver, também, O’Donnell (1999c) para um desenvolvimento de minhas idéias.

110. Em todos os outros regimes políticos há sempre alguém (um ditador, um rei, um partido de vanguarda, uma junta militar, uma teocracia etc.) que, por decisão unilateral, pode anular ou suspender qualquer norma legal existente, inclusive as que regulam seus papéis.

111. Para voltar a uma comparação contrastante, os capítulos escritos por Chevigny (sobre a polícia), Brody (sobre o sistema carcerário) e Garro e Correa Sutil (ambos sobre o acesso aos tribunais) mostram de maneira conclusiva que na América Latina

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esse entrelaçamento é seguidamente interrompido e, portanto, a lei perde eficácia (ver, também, Domingo, 1999).

112. Ver Raz (1986; 1994) para uma excelente análise dessa liberdade como bem público que caracteriza o contexto social geral.

113. Na verdade, a definição de Dahl (nota 24) fala da liberdade de acesso à informação; mas, para que haja livre acesso, é preciso que também haja livre produção da informação. Como afirma o próprio Dahl (1989:221), "existem formas alternativas de informação que são protegidas pela lei."

114. Volto a lembrar, porém, que isso não invalida a utilidade de enumerar as liberdades políticas.

115. Para uma análise minuciosa e desoladora desses e outros problemas semelhantes na América Latina contemporânea, ver Méndez, O’Donnell e Pinheiro (1999).

116. Refiro-me à legalidade efetiva do Estado porque essas "zonas pardas" (como as denomino em O’Donnell, 1993) constituem um sistema de dominação de base territorial em que outros sistemas legais, de tipo mafioso, coexistem de maneira complexa com a legalidade estatal. Algumas dessas regiões, nas quais os funcionários do governo raramente ousam entrar, podem alcançar 70 mil quilômetros quadrados, como no Brasil (segundo informa uma reportagem da revista Veja, de 1997, a respeito de uma área do Estado de Pernambuco, conhecida pelo significativo nome de "Polígono da Maconha"). Discussões mais aprofundadas desse tema podem ser encontradas em Holston (1991); Pásara (1998); e O’Donnell (1993). Méndez, O’Donnell e Pinheiro (1999) incluem detalhes. Em diversos trabalhos, Touraine (esp. 1988) insistiu nessas características da América Latina.

117. Calcula-se que em 1995, 55,7% da população urbana economicamente ativa estava ocupada no mercado informal; e essa porcentagem tem aumentado progressivamente ¾era de 40,2% em 1980, passou a 47% em 1985 e aumentou para 52,1% em 1990 (Thorp, 1998:221). Referindo-se a um período anterior, 1950-1980, Portes (1994:121) comenta que "ao contrário do que se passou nos países avançados, o trabalho por conta própria não diminuiu com a industrialização, mas permaneceu constante durante esse período de trinta anos." Ver, também, Portes e Schauffler (1993); Portes, Castells e Benton (1989); Rakowski (1994); Roberts (1994); e Tokman (1992; 1994) sobre o mercado informal na América Latina. No início da década de 90, 46% da população da América Latina vivia em estado de pobreza (195 milhões de pessoas ao todo) e aproximadamente a metade destes em condições de indigência, entendida como a falta de recursos para a ingestão alimentar mínima necessária. Além do mais, em 1990, o número de pobres na América Latina havia aumentado em 76 milhões relativamente a 1970 (dados extraídos de O’Donnell, 1998b; para maiores detalhes ver Altimir (1998).

118. Veja os dados e a excelente análise de Dasgupta (1993), cuja conclusão é a de que a pobreza extrema afeta inclusive a capacidade para trabalhar: "Costuma-se dizer que quando uma pessoa carece de bens materiais, ela possui um bem inalienável, sua força de trabalho. Mostrei a importante verdade de que isto é falso. [...] A conversão da força de trabalho potencial em força efetiva de trabalho pode ser feita quando a pessoa dispõe

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de meios para isso, de outro modo não. A nutrição e os cuidados com a saúde estão entre esses meios." (ênfase no original) Ver a esse respeito os importantes trabalhos de Sen (esp. 1992; 1993). Para dados e análises sobre a América Latina, ver Borón (1995), e de uma perspectiva médico-biológica, ver A. O’Donnell (no prelo). Sobre um país relativamente rico, a Argentina, mas que padece desses males, ver Stillwaggon (1998). Um estudo antropológico que descreve em detalhes as conseqüências devastadoras, tanto físicas quanto psicológicas, da extrema pobreza em uma cidade brasileira é o de Scheper-Hughes (1992).

119. Isso não é verdadeiro para todas as correntes da teoria da democracia. Porém, pelo que conheço, as obras que levam em conta essa situação não vão muito além de uma retórica de denúncia, muitas vezes acompanhada pela negação pura e simples da "democraticidade" do regime.

120. O’Donnell (1998b) contém algumas especulações sobre esse tema. A abundante, variada e desigual literatura sobre movimentos sociais estimulada pelas transições do regime autoritário contém rica informação sobre esse assunto. Não conheço, porém, estudos que tenham focalizado especificamente a questão que estou aqui propondo.

 

 

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ABSTRACTDemocratic Theory and Comparative PoliticsThe present article is a revision of democratic theory from the perspective of its inadequacies to account for the new - and not so new -, democracies located outside the Northwestern quadrant of the world. It begins by examining various definitions of democracy, especially those that claiming to be Schumpeterian, are deemed to be minimalist, or processualist; and proposes a realistic and restricted, but not minimalist definition of a democratic regime. The connections of this topic with several others are then explored, including political, social, and welfare rights; the state, mainly in its legal dimension; and some features of the overall social context. The main grounding factor that results from these explorations is the conception of agency, as it is expressed in the legal system of existing democracies, although widely variable across cases. Key words: democratic theory; comparative politics; political theory; democracy

 

RÉSUMÉThéorie de la Démocratie et Politique ComparéeDans cet article on examine la théorie de la démocratie en soulignant son insuffisance à expliquer les jeunes démocraties ainsi que les moins jeunes apparues dans la région nord-ouest du monde. Tout d’abord, on procède à l’analyse critique de plusieurs définitions de démocratie, surtout celles qui, censées suivre les idées de Shumpeter, sont considérées comme minimales ou processuelles, et propose une définition réaliste et plus succinte, mais non pas minimale, du régime démocratique. Ensuite, on examine les connexions de ce thème avec d’autres, comme les droits politiques, civils et sociaux, ou encore l’État dans sa dimension légale et certaines caractéristiques du grand contexte social. De cette analyse se détache la notion d’agency, car on la trouve surtout exprimée, sous diverses variantes ce pendant, dans le système juridique des démocraties

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actuelles.Mots-clé: théorie de la démocratie; politique comparée; théorie politique; démocratie