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7º Encontro da ABCP

4 a 7/08/2010, Recife, PE

Área Temática 10: Teoria Política

Teoria democrática, representação e instituições participativas

na Bolívia, Equador e Venezuela

Fidel Pérez [email protected] Doutorando em Ciência Política noInstituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) epesquisador do Observatório PolíticoSul-Americano do IUPERJ

André Luiz Coelho [email protected] Doutorando em Ciência Política noInstituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ)

Clayton M. Cunha Filho [email protected] Doutorando em Ciência Política noInstituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e

pesquisador do Observatório PolíticoSul-Americano do IUPERJ

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Introdução

Experiências recentes de refundação institucional na América Latinaintroduziram com força a noção de que os sistemas políticos precisam abrirmais canais para a participação dos cidadãos mediante mecanismosreconhecidos constitucionalmente. Mostramos em um trabalho prévio (PÉREZFLORES ET AL., 2010) que as novas constituições da Venezuela, do Equadore da Bolívia, todas elas promulgadas entre 1999 e 2009, incorporam umconjunto de mecanismos de participação que tendem a tirar dos representanteseleitos o monopólio absoluto do processo decisório. Esses três países não sãocertamente os únicos nem os primeiros a reconhecer formalmente esse tipo demecanismos na região1, mas se tornaram o centro de atenção para esse tipode experiências na última década. Isto porque os seus governantes e aliadosenfatizam a necessidade de construir uma nova democracia capaz de abrir olimitado espaço que as instituições representativas outorgam para aparticipação mais protagônica dos cidadãos comuns.

Após ter mostrado que a nova ordem constitucional desses três paísesefetivamente propõe um desenho institucional que incorpora importantesmecanismos de participação democrática para além da eleição de

representantes, neste artigo pretendemos trazer elementos de reflexão teóricaque ajudem a esclarecer a dinâmica da complexidade intrínseca naimplementação efetiva de mecanismos de participação como os que vêmadotando vários países da região.

Naquele artigo (PÉREZ FLORES ET AL., 2010), apontamos distintostipos de mecanismos em que se concretizou a ambição participacionista dosrespectivos processos constituintes, quais sejam: a) a possibilidade de revogar

os mandatos de todos os representantes eleitos, b) a possibilidade de revogarou ratificar leis e tratados internacionais, c) a participação de organizações dasociedade civil na composição dos órgãos para o controle e prestação decontas da gestão pública, d) a iniciativa legislativa, e) a cogestão em governoslocais e d) reconhecimento de autonomias indígenas. Ao mesmo tempo,

1 A esse respeito, ver o interessante levantamento de casos de reconhecimento constitucional de

mecanismos de democracia participativa em países do sul latino-americano feito por Alicia Lissidini(2008). A autora nota que foi a partir da década de 1990 que várias dessas instituições começaram a serintroduzidas e praticadas com maior frequência.

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constatamos que, a despeito da retórica por vezes acentuada na crítica asinstituições da democracia representativa, nenhum desses três casos de fatoabandonou o essencial desse modelo2. Dessa forma, as instituiçõesparticipativas adotadas coexistiriam e eventualmente complementariam asinstituições tradicionais de representação.

Além de descrever a forma particular em que esses países incorporaramcada um desses mecanismos, apontamos que a sua implementação efetivasugere graus de complexidade distintos em função da intensidade doenvolvimento do cidadão que pressupõe cada mecanismo. Assim, seriapossível reclassificar os mecanismos do ponto de vista da complexidade e dosdesafios que representa sua existência na prática. O critério principal para essareclassificação seria identificar em que medida o voto perde relevância como odispositivo essencial para a concretização do mecanismo. Na medida em queoutros dispositivos e pré-requisitos para a participação se tornam maisrelevantes é que a complexidade para a efetiva implementação do mecanismoaumenta. Iniciamos a referida discussão problematizando sobre os desafios dese por em prática ideais em comunidades políticas de larga escala e, emseguida, apresentamos um elenco das questões relevantes decorrentes do

debate teórico sobre a implementação de instituições de democraciaparticipativa.

O problema duplo das democracias realmente existentes

Diversos teóricos contemporâneos concordam que um requisitoimportante dos regimes democrático é a necessidade da maior convergênciapossível entre os interesses dos governantes e os da comunidade política da

qual eles tiram a legitimidade dos cargos que ocupam. A diversidade intrínsecaaos grandes conglomerados humanos e às dificuldades coletivas para sechegar a acordos unânimes perfeitos são elementos incontornáveis dasociabilidade humana que tornam necessária a existência de formas

2 Bernard Manin (1995), por exemplo, após relatar o desenvolvimento do governo representativodesde sua aparição no século XVIII conclui que, apesar das transformações sofridas, há quatro elementosou instituições que sempre lhe foram características: a) a designação dos governantes mediante eleiçõesperiódicas; b) a relativa independência dos governantes em relação à vontade dos governados; c) a

possibilidade dos governados expressarem opiniões e preferências sem ser coagidos pelos governantes ed) a possibilidade de submeter ao debate público às decisões de governo. Todos esses elementos estãopresentes nas constituições dos três países referidos.

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institucionalizadas de representação para empossar, temporariamente, a umgrupo reduzido de cidadãos para exercer funções de governo. A análiseempreendida por Hanna Pitkin (1972) em torno dos dilemas da representação,que discute se o mandato do representante deve ser imperativo ou não, dáconta das dificuldades de implementar ideais democráticos mediante oexercício indireto do governo. Não fossem as comunidades políticas modernascompostas por milhões de cidadãos, seria talvez possível um funcionamentomais direto do sistema democrático, a semelhança do que nos apresentam osrelatos da antiga Atenas.

Ainda que parcialmente resolvida com mecanismos de representação aquestão de decidir quem governa em sociedades complexas e massificadas,subsiste o problema da lealdade dos governantes em relação aos governados.Independentemente de quão legítimo seja o procedimento que deu origem aosrepresentantes e possibilitou seu acesso a cargos de decisão política, não hágarantias de que o grupo de governantes empossados traia os interesses enecessidades da comunidade política que eles representam e comecem a agirmajoritariamente em benefício próprio. Nesse caso, ocorre o que EnriqueDussel (2007) chama defetichização do poder, ou seja, não só o exercício do

poder delegado pela comunidade política se desvirtua em seu mandato comotambém ele se torna um mecanismo de dominação.

A dupla face desse problema latente em todo ensaio do idealdemocrático poderia ser expressa da seguinte forma: comunidades políticasgrandes e diversas não podem se autogovernar em termos absolutos eprecisam de instituições representativas para a conformação de uma classegovernante temporária. Entretanto, esses governantes são eternos suspeitos

de trair a lealdade devida aos governados. A história é cheia de tentativasensaiadas por comunidades políticas dos mais distintos lugares e épocas paraencarar, com maior ou menor sucesso, esse duplo problema.

Para enfrentar a questão da seleção dos representantes, os sistemaspolíticos modernos consagraram o voto como o mecanismo essencial para darlegitimidade à eleição de elites de governo. Uma trajetória de mais de 200 anosdá conta das transformações dessa instituição essencial das democracias

representativas. A vigência desse direito em inúmeros países, no entanto, nãosatisfaz os anseios democráticos de quem possui a consciência da separação

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perversa entre o mundo pequeno e poderoso dos governantes do mundo doscidadãos comuns. É a persistente atualidade da segunda dimensão doproblema: o risco frequentemente confirmado de que os governantes nãorespondem aos interesses de seus governados. Daí a força que vem ganhandorecentemente em alguns países latino-americanos a ideia de que os sistemasdemocráticos precisam ser reformados na direção de uma maior participaçãodos cidadãos nos processos decisórios para além do voto

Ao longo dos últimos trinta anos os países da região passaram por umamplo espectro de reformas políticas e econômicas que tinham como principalobjetivo a modificação do modelo de substituição de importações para omodelo neoliberal. Para tal, a estratégia mais comumente utilizada foi ofortalecimento do Executivo em detrimento do Legislativo, expresso no dilemade mais governabilidade e menos representatividade. Em muitos países, noentanto, as consequências dessa nova lógica foram perversas, com seguidoscasos do chamado estelionato eleitoral3 que, via de regra, teve comoimplicações o aumento da instabilidade política, grandes manifestaçõespopulares e quedas de presidentes. É possível dizer que uma das motivaçõesdessa série de reformas constitucionais no sentido de retomar a

representatividade dos cidadãos seria uma resposta aos casos recentes deestelionato eleitoral. O desenho de instituições participativas abre, por sua vez,um novo leque de desafios para a concretização do ideal democrático.

Instituições participativas: desafios para sua implementação

Quanto maior a intensidade do envolvimento exigido do cidadão por ummecanismo institucional de participação democrática, mais complexa e

desafiadora se torna sua implementação efetiva no contexto dos sistemaspolíticos modernos. Essa é a tese que nos leva a identificar uma dinâmica decomplexidades incrementais entre os mecanismos para revogar mandatos, omais simples, e o reconhecimento jurídico de autonomias indígenas, o mais

3 Stokes (2001) ao analisar a implementação das reformas neoliberais e suas consequências para a regiãochama atenção para a ocorrência do estelionato eleitoral ( policy switch ), que consiste na ação estratégicados representantes em ocultar suas reais intenções e prometerem a adoção de políticas atrativas para os

eleitores durante suas campanhas e que, após eleitos, modificarem radicalmente sua plataforma, com aimplementação de políticas conservadoras e antipopulares.

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complexo. Um diálogo com distintos autores que se dedicaram à reflexão sobreo funcionamento dos sistemas democráticos, os seus ideais e os entraves desua implementação nos permite identificar com maior clareza a dinâmica dessacomplexidade incremental.

O voto em si mesmo já é um mecanismo de participação. O que se exigedo cidadão para se envolver no exercício? Cuidar de sua inscrição numa listaeleitoral e comparecer periodicamente a sua seção eleitoral para selecionarsua opção preferida dentro de um cardápio de candidatos a ocupar cargos nogoverno ou no parlamento. É claro que para que isso seja possível em largaescala, é necessária a mobilização de muitos recursos, materiais e humanos,de forma que cidadãos em grande número possam comparecer às urnas.Porém, do ponto de vista do cidadão, a participação nesse nível érelativamente simples. É verdade que, para melhor exercício desse direito, édesejável que o cidadão esteja suficientemente informado sobre as opções quelhe são apresentadas para que, a partir de uma definida noção de sua própriaidentidade política e interesses, possa eleger a melhor opção. Mas isso, comoaponta Sartori (1994), não é crucial para uma democracia eleitoral funcionar. Acontagem final dos votos não distingue entre os votos exercidos por cidadãos

mais informados e a legitimidade conferida aos eleitos decorre unicamente dofato de eles possuírem uma maioria clara das preferências. Não se espera queo cidadão seja muito competente ou informado sobre todas as questõesrelevantes da gestão pública, já que, no contexto da democracia eleitoral, nãolhes é conferido um espaço significativo para intervir no processo decisório.

Quando nas constituições como as da Bolívia, Equador e Venezuela seabre a possibilidade para a revogação de mandatos, legislação e tratados

internacionais, trata-se de ampliar o mecanismo de voto para situações alémda seleção de pessoas. Com esses mecanismos vota-se também parasancionar algumas das decisões que essas pessoas, empossadas comorepresentantes e governantes, tomam a respeito de assuntos consideradoscruciais por uma parte expressiva dos cidadãos. Dada a experiência históricana organização razoavelmente eficaz de inúmeras experiências de voto,podemos dizer que a efetiva implementação desses mecanismos está à mão.

Inclusive, trata-se de instituições que já são praticadas com relativanormalidade em outros países, latino-americanos ou não.

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Francisco Gutiérrez e Fabián Acuña (2009) analisaram 20 referendos dealcance nacional ocorridos entre 1985 e 2009 na Bolívia, Colômbia, Equador,Peru e Venezuela. Os temas submetidos a tal mecanismo foramfrequentemente ligados a esforços de grande reconfiguração institucional,como o desenho territorial do Estado, relações Executivo – Legislativo,modalidades de acesso e permanência em cargos de eleição, aprovaçõesconstitucionais, etc. Algumas distorções, entretanto, foram apontadas poresses autores na hora de avaliar essas experiências: assimetrias no poder deagenda entre agentes decisórios, vantagens estruturais do poder público parapromover suas preferências e a tendência para o desmonte de outrosmecanismos de freios e contrapesos. Por seu lado, Alicia Lissidini (2008), emseu estudo sobre a inclusão de mecanismos de participação centrados no votopopular nos textos constitucionais, argumenta que esse processo podepromover duas tendências contraditórias: por um lado, a inclusão efetiva doscidadãos nas grandes decisões de interesse público e, por outro, a expansãoda influência dos poderes constituídos, notadamente do Executivo,incentivando assim a lógica da delegação.

Em conjunto, o tipo de distorções apontadas por esses autores não são

muito distintas das que podem vir a ocorrer nos processos eleitorais ordináriosou dizem respeito ao equilíbrio entre os poderes constituídos dentro do própriosistema representativo. A seguir, analisamos outros tipos de dificuldades,distorções e desafios que aparecem quando se espera do cidadão umaparticipação para além do voto.

Problemas de ação coletiva

A obra clássica de Mancur Olson (1999), “A Lógica da Ação Coletiva”mostra-se interessante para analisar o problema da ação coletiva nasiniciativas de democracia participativa nos países em questão. O autor rechaçaa ideia clássica de que grupos organizados agirão unidos para atingir seusobjetivos, imbuídos de uma espécie de comportamento racional e centrado emseus próprios interesses. Segundo Olson,

a menos que o grupo de indivíduos seja realmente pequeno, ou a menos

que haja coerção ou algum outro dispositivo especial que faça os indivíduos agirem em interesse próprio, os indivíduos racionais e centrados

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nos próprios interesses não agirão para promover seus interesses comuns

ou grupais.

Transpondo essa lógica para os casos de Bolívia, Equador e Venezuela,a participação popular seria extremamente prejudicada, uma vez que osindivíduos não teriam incentivos para participar das instâncias de cogestão,controle popular da gestão pública e iniciativa de lei.

Para que tal participação aconteça, afirma Olson, deveria havernecessariamente um incentivo ou coerção para a ação, que poderia seroferecido individualmente aos membros do grupo. Do mesmo modo, os gruposde grande porte dificilmente formariam organizações para promover seus

objetivos comuns na ausência de coerção ou incentivos independentes.Refletindo sobre a lógica de Olson em relação aos grandes grupos organizadosdos países analisados, temos nas organizações indígenas bolivianas eequatorianas exemplos que contradizem a fatalidade desse argumento. AConfederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie) e oConselho Nacional de Ayllus e Marqas do Qollasuyu (Conamaq) e aConfederação de Povos Indígenas do Oriente Boliviano (Cidob) na Bolívia são

exemplos de organizações que se formaram em oposição ao Estado. Nãoapenas não receberam incentivos públicos como tiveram que enfrentarconstrangimentos e coerção e mesmo assim têm mantido ao longo de mais deduas décadas um grau notável de mobilização. Certamente, uma vez quecontam agora com governos mais favoráveis a seus interesses, a problemáticapode se recolocar e trazer os riscos de cooptação e perda de autonomia, o quepoderia ser uma ameaça à democracia, e contradizer o ideal participacionista.4

No caso venezuelano, a criação dos conselhos comunais (ver PÉREZ FLORESET AL., 2010) como instâncias locais de participação direta em todo o territórionacional é um exemplo forte dos riscos de cooptação pelo governo centralatravés da condicionalidade para a liberação de recursos.

Já em relação aos grupos pequenos, Olson (1999) afirma que cadamembro poderia conseguir uma porção substancial do ganho total porque há

4 Contudo, cabe ressaltar que em maio de 2010 o Movimento de Unidade Plurinacional

Pachakutik, braço político da Conaie, declarou oficialmente situar-se na oposição ao governo de RafaelCorrea por discordar da política ambiental empreendida pelo Estado equatoriano, acusando o presidentede perseguição política contra líderes indígenas.

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poucos participantes do grupo. No entanto, mesmo nos grupos menores, obenefício não será provido em um nível ótimo, o que só acontecerá com oauxílio de determinados acertos institucionais: portanto, quanto maior o grupo,mais longe ele ficará de atingir o ponto ótimo de provimento do benefíciocoletivo. Além disso, em grupos pequenos, haveria uma grande tendência a“exploração” do grande pelo pequeno. Sartori (1994) vai ao encontro de Olsonno que diz respeito a maior efetividade de participação nos pequenos grupos,afirmando que a participação de um indivíduo em grupos muito numerosossomente irá diluir cada vez mais sua importância, tornando-a muitas vezesinsignificante. Conclui que um dos caminhos a serem tomados na democraciaparticipativa seria enfatizar e atribuir um papel importante a grupos pequenos eintensos.

Segundo o autor, somente um incentivo independente e “seletivo”

estimulará um indivíduo racional em um grupo latente a agir de maneira grupale independente. Tais “incentivos seletivos” podem ser tanto negativos (agir

como alguma punição para aqueles que não arcarem com a parte dos custosda ação grupal que lhes foi alocada) ou positivos. No entanto, os incentivoseconômicos não seriam os únicos possíveis a serem considerados pelos

indivíduos, mas também os desejos de prestígio, respeito, amizade e outrosobjetivos de fundo social e psicológico. Assim, a possibilidade da existência deuma ocasião onde não haja incentivo econômico, mas incentivo social, deveriaser considerada. Talvez sejam esses incentivos, muito fomentados pelos atuaisgovernos dos três países, como o patriotismo, ideologia, a mobilização contraum inimigo comum etc. o que poderia mover os indivíduos para participaremdas instituições de democracia participativa. Nesses nossos casos específicos,

em que os mecanismos de democracia participativa foram criados como umaresposta a demandas por uma refundação radical do Estado e das formas departicipação política, e que portanto possuíam um grau de mobilização popularelevado pré-existente, isto poderia fornecer os incentivos necessários àparticipação dos cidadãos. Certamente, também pode ser que esse tipo deincentivo funcione bem em um primeiro momento e possa vir a perder eficáciacom o tempo, recolocando a questão.

A existência dos grandes grupos organizados muitas vezes seria devidaa existência de subgrupos de lobby no interior desses grandes grupos, que os

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auxiliam com o seu poderio econômico. Assim, os lobbies dos grandes gruposeconômicos são um subproduto de organizações que tem a capacidade de“mobilizar” um grupo latente com incentivos seletivos (OLSON, 1999).Taisreflexões nos trazem o questionamento sobre se um grupo de interesse quepossua ou não um lobby organizado pode influenciar decisivamente nasiniciativas de democracia direta. Nos casos analisados neste artigo,provavelmente os mecanismos de cogestão, controle da gestão pública oumesmo de iniciativa de lei seriam os mais afetados. Grupos de pressãoorganizados poderiam agir no sentido de influenciarem a redação de alguma leique favorecesse seus interesses em detrimento da „vontade popular‟. Domesmo modo, esses grupos de pressão organizados poderiam atuar colocandoseus funcionários no organismo de cogestão, influenciando também nasdecisões tomadas e mesmo no controle e na prestação de contas de eventuaisações ligadas a esses grupos, caso não existam instituições compensatóriasque ajudem a garantir que o processo seja livre e justo (KAUFMANN, 2008).

Apatia, extremismo e intensidade das preferências

O ideal participacionista nos desenhos institucionais pressupõe dos

cidadãos uma demanda por desempenhar um papel mais decisivo no processodecisório, com atribuições que vão além da simples seleção de representantes.Os sujeitos potencialmente participantes, no entanto, não são homogêneosquanto a seu interesse pelas questões políticas e as formas preferidas departicipação. Isto é, há uma parcela dos cidadãos que simplesmente não seimporta com as questões políticas ao mesmo tempo em que pode existir, nooutro extremo, uma população que manifesta grande interesse pelas mesmas e

orienta parte considerável de seu tempo e esforço a essas preocupações. Nomeio, haverá quem manifeste um interesse moderado pela política. Queconsequências essa heterogeneidade pode trazer para a implementação demecanismos de democracia participativa?

Não há sistema democrático participativo sem participantes. Por isso,quanto maior o número de cidadãos apáticos, menos viável a implantaçãoefetiva de uma institucionalidade participativa. No entanto, também seria

excessivo pretender que qualquer experimentação nessa direção requer a totaldisposição dos cidadãos para participar. Assim como a operacionalização do

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sistema representativo é viável apesar dos altos níveis de abstenção emdistintos momentos e lugares, não há porque supor que os mecanismos paraampliar a participação só podem existir se essa participação for total. CarolePateman (1992) comenta que muitas vezes as críticas a quem advoga pormaiores níveis de participação vem no sentido dessa pretensão ser irrealistaporque ela exige níveis de racionalidade e envolvimento na política por parte detodos os cidadãos. Mas, reconhecida a impossibilidade de realizar esse idealem termos absolutos, vale a pena se perguntar até que ponto a apatia emrelação à política pode atrapalhar o funcionamento de instituições que tendema ampliar a participação. Principalmente se o fenômeno interage com seuoposto, qual seja, a existência de coalizões em torno de preferências muitointensas e extremadas sobre quaisquer assuntos.

A questão da intensidade leva Sartori (1994) a afirmar que emdeterminadas práticas de democracia direta acaba sendo um verdadeiroparaíso de minorias ativas com preferências muito intensas. Preferênciasmajoritárias, mas fracas quanto a sua intensidade, podem ser derrotadas porpreferências minoritárias porém fortes em intensidade. Quem é intenso é ativo;quem é ativo prevalece sobre o inativo e só pequenos grupos podem ser

duravelmente intensos. Minorias intensas são grupos reais capazes deencadear preferências em relação a uma série de questões; já as maioriasintensas são agregados efêmeros. Ou seja, quanto maior o grupo, mais difícilse torna a articulação complexa de preferências.

No caso de instituições como a cogestão em governos locais, aparticipação em instâncias de controle da gestão pública e a formulação deiniciativas de lei, a coexistência de apáticos e extremistas pode ter algumas

consequências negativas. Trata-se, afinal das contas, da captura da açãocoletiva por minorias que, por seu ativismo mais intenso, conseguem imporpreferências que podem inclusive contradizer a vontade da maioria. Na hora depromover uma iniciativa de lei ou organizar a participação em órgãos defiscalização, essa possibilidade se dilui na medida em que outras instituições,como o parlamento e referendo, podem intervir no processo. Asconsequências mais graves de acordo com os temores de Sartori encontram-

se nos governos locais. Se, como ele teme, uma minoria intensa e extremistaacaba tomando conta do processo decisório em uma comunidade que toma

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decisões mediante assembleias, abre-se efetivamente a possibilidade de quemaiorias menos intensas e apáticas sejam esmagadas pelas decisões tomadasnaquela instância. Nesse caso, seria necessário que outras garantiasinstitucionais possam fazer contrapeso para que essa situação não se torneuma prática de imposição autoritária de preferências minoritárias.

Outro problema que aponta o próprio Sartori é que o extremista estariamenos capacitado para avaliar a complexidade das questões devido à suavisão decididamente maniqueísta. Diante da necessidade de dar respostas aum problema social qualquer, o extremista, altamente confiante nas suascertezas, estaria menos disposto a ouvir outras vozes e, portanto, entender ofenômeno de forma mais integral. Ele procura apenas o conhecimentoconfirmador de suas certezas, não o conhecimento competente para resolverda melhor maneira os desafios de sua comunidade. Isto naturalmente levaria ànegação dos objetivos pelos quais a instituição participativa foi proposta eimplementada.

Hiperpolitização da vida, custos para outras atividades socialmente

necessárias

Uma consequência inerente da implementação dos mecanismosparticipativos é que aumente a frequência da intervenção nos processospolíticos para uma parcela expressiva de cidadãos. Já não apenas umcomparecimento pontual a uma urna para depositar um voto, agora também ocidadão estaria sendo convocado para integrar comitês de postulação decandidatos a membros dos organismos de fiscalização do poder público, paraintervir nos debates de uma iniciativa popular de lei ou para deliberar em

assembleias de vizinhos sobre a melhor maneira de aproveitar recursosmunicipais ou comunais. Se efetivamente estes mecanismos abrangempopulações que não tem na política sua principal atividade, como manda oideal participacionista, então estaríamos ampliando de forma autêntica aabrangência dessa atividade e se exigiria dos cidadãos comuns um maiorenvolvimento nas questões do poder público no seu dia a dia. Daí surge oseguinte questionamento crítico: uma excessiva politização da vida das

pessoas não implicaria em custos muito altos para o desempenho em outras

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atividades socialmente necessárias que os cidadãos comuns acabariamdescuidando por estar dedicados às deliberações políticas?

Sartori (1994), por exemplo, afirma que quando todos estão ocupadosna política, outras atividades poderiam ficar esvaziadas. Seria o caso da funçãoeconômica, que é indispensável para a sustentação da vida em comum e quepoderia terminar sendo atrofiada. Por isso ele afirma ser desejável que apolítica ocupe apenas poucas pessoas.

Porém, como já dissemos antes, a existência de mecanismos queampliam a participação dificilmente empolgariam a todos os cidadãos e, aindaque assim fosse, não temos porque pressupor que esse envolvimento lhesocupe todo seu tempo. Principalmente se aceitarmos, como se aceita nossistemas políticos modernos onde esses mecanismos existem, que essasinstituições são complementares à engrenagem representativa e que, porconsequência, não está sendo proposta a implementação de uma democraciadireta pura. Entretanto, não deixa de ser pertinente a questão de até que pontoé razoável exigir dos cidadãos comuns um envolvimento muito intenso naatividade política sem atrapalhar outras atividades também relevantes em nívelindividual e coletivo. Ou, inversamente, até que ponto os cidadãos, inclusive os

mais interessados, podem dedicar tempo e esforço em grau suficiente paraparticipar de forma ótima na esfera política com um desenho institucionalaberto para sua participação mais protagônica.

Competências técnicas.

A abertura de novas esferas de participação política para além dadinâmica do voto coloca fortemente a problemática das competências técnicas.

Num mundo de mudanças tecnológicas, divisão social do trabalho avançada edelegação de funções a burocracias especializadas, o problema de se oscidadãos possuem suficiente capacitação técnica para tomar para si essasfunções sempre foi levantado pelos críticos da democracia direta como umadas principais objeções à extensão do poder popular para além do sufrágio.5

5 Edmund Burke (apud PITKIN, 1972), por exemplo, afirma que os representantes eleitos devem

ser membros de um grupo de elite, os únicos aptos a perceber e decretar o que é melhor para a nação, poiso governo deve residir na experiência, e não em desejos. O poder nas mãos da multidão, afirma, seriaincontrolável, pois não admite regulação e não possui qualquer direção.

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No entanto, em pelo menos três mecanismos constitucionais previstos nascartas magnas dos três países há a abertura de possibilidades de intervençãomais ou menos direta em campos onde se espera algum tipo de conhecimentoespecializado: a iniciativa de lei, os mecanismos de controle e prestação decontas e os mecanismos de cogestão.

Por iniciativa de lei nos referimos à potestade concedida aos cidadãosdos três países de apresentarem propostas de legislação ou alteraçãoconstitucional. Embora em última instância seja o parlamento a decidir pelaaprovação ou rejeição da lei proposta com diferentes graus e prazos deobrigatoriedade de consideração (ver PÉREZ FLORES ET AL., 2010), aelaboração do projeto de lei pelos cidadãos pressupõe tanto o conhecimentotécnico do linguajar próprio do direito a ser utilizado na confecção da lei, quantoà capacidade de antecipação dos efeitos a serem provocados em seu campoespecífico uma vez aprovado o projeto. Aqui o ponto principal não é nem tantoa possibilidade de efeitos adversos não antecipados provenientes de alguma leide iniciativa popular, visto que essa possibilidade existe da mesma maneiranos projetos legislativos apresentados pelos representantes eleitos, mas sim ofato de que o poder constitucionalmente concedido é bastante amplo e pode

ser utilizado para leis de caráter tanto geral quanto bastante específico como,por exemplo, políticas previdenciárias, hidrocarboníferas etc. Nesse tipo decaso, o grau de conhecimento técnico especializado potencialmente exigidopara a elaboração de leis coloca realmente em questão o quanto o cidadãocomum poderia utilizar de fato esse poder que lhe é concedido e os riscos deapropriação do mesmo por grupos de interesse específicos já previamenteorganizados que poderiam utilizá-lo em seu benefício próprio.

Entretanto, embora de fato seja irreal imaginar uma utilização massivado novo instrumento pelos cidadãos comuns, sendo mais provável aapresentação de leis a partir de grupos já previamente mobilizados edetentores de algum grau de conhecimento técnico específico como ONGs,associações profissionais, sindicatos etc., o filtro obrigatório da votaçãoparlamentar reduz significativamente quaisquer riscos mais sérios deusurpação do poder político por meio de minorias radicalizadas do tipo temido

por Sartori (1994). No caso desses países, há inclusive um segundo filtropossível através do qual qualquer legislação pode ser hipoteticamente

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mesmo em alguns casos de Equador e Venezuela (especialmente emgovernos subnacionais) o tema representa um desafio importante a serconsiderado.

E o desafio amplia-se ainda mais no caso dos mecanismos de cogestão,onde os cidadãos devem não apenas verificar a boa execução das políticas,mas propô-las e executá-las eles próprios. Mais uma vez, a constituiçãoboliviana delineia uma proposta de escopo ambicioso, onde a sociedade civilteria prerrogativas de participação direta no desenho das políticas públicas,mas remete o tema a lei complementar ainda inexistente. Nos casosequatoriano e venezuelano há mais detalhes nos textos constitucionais,embora também existam lacunas acerca de regulamentações específicas. NoEquador, por exemplo, a constituição estabelece a participação dos cidadãosno Conselho Nacional de Planejamento responsável pelo desenho dos PlanosNacionais de Desenvolvimento, embora não esteja claro quantos cidadãosparticipam ou como são escolhidos. De qualquer forma, pressupõe-se doscidadãos que participem dessas instâncias de cogestão um nível muitoespecializado de conhecimento técnico em diferentes áreas conforme cadacaso, que podem englobar desde o abrangente conselho equatoriano de

planejamento a empresas públicas específicas de áreas como gás, petróleo,mineração, siderurgia etc.

No caso venezuelano, a partir da Lei dos Conselhos Comunais de 2006foram criadas unidades políticas menores que os municípios, compostos porpelo menos 10 famílias em áreas indígenas, 20 em áreas rurais ou entre 200 e400 em áreas urbanas e que recebem recursos orçamentários próprios edevem decidir em assembleias cidadãs abertas a destinação de recursos, a

execução de obras e a gestão comunal. Dos três países, esse é provavelmenteo experimento mais radical de democracia direta e autogestão em curso esegundo um estudo de 2008 realizado pela Fundación Centro Gumilla (MACHADO, 2009), existem mais de 25 mil conselhos comunais já constituídose 10 mil em processo de formação com resultados ambíguos até o momento.Por um lado, destaca-se o aumento de empoderamento local, a definição deprioridades pelas próprias comunidades e a experiência de participação política

direta proporcionada a muitos cidadãos antes politicamente passivos, queconfirmariam a viabilidade desse tipo de experimento democrático. Por outro, a

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falta de experiência administrativa de muitos dos conselheiros tem de fatocomprometido a qualidade das decisões adotadas por alguns dos conselhos,confirmando a problemática das competências técnicas (ver, por exemplo,ELLNER, 2009).

Pseudoparticipação

Uma das preocupações frequentes dos teóricos da democraciaparticipativa é a possibilidade de que os dispositivos institucionais para aparticipação acabem sendo na prática não mais do que instrumentos para alegitimação de decisões tomadas, no fim das contas, por uma cúpula dirigente.Carole Pateman (1992), por exemplo, alerta para essa possibilidade aoreconhecer três tipos de participação. A primeira seria a participação plena,ideal, em que cada membro isolado no contexto de um corpo deliberativo temigual poder de determinar o resultado final das decisões. A segunda seria umamodalidade de participação parcial, no qual há dirigentes e subordinados nocorpo deliberativo, sendo que estes últimos tem certo poder de influir nasdecisões que são tomadas mas a responsabilidade final da decisão recai nosdirigentes. E finalmente, a pseudoparticipação aconteceria quando uma cúpula

toma uma decisão e, ao invés de ser simplesmente comunicada aossubordinados para sua execução, ela é submetida a discussão para criar neleso sentimento de participação. Na deliberação com os subordinados permite-se,inclusive, o questionamento do líder, mas a decisão da cúpula é a quepredomina. Neste caso, a suposta participação é mais um instrumento dapersuasão do que um mecanismo de tomada de decisão.

Armando Chaguaceda (2008), na sua análise sobre as experiências

participativas em Cuba, sugere que há distintas formas de assumir aparticipação cidadã, entendida ela como a atividade de envolvimentoconsciente e ativo dos sujeitos nos processos sociopolíticos relativos àconstituição, exercício e ratificação do poder e a distribuição de recursos quedaí deriva. No contexto do socialismo de Estado vigente em Cuba,Chaguaceda observa que a cúpula governamental se interessa por umaabordagem que vê a participação apenas como mobilização, na qual se espera

que a massa implemente as políticas desenhadas por um comando de podercentralizado. O autor também dá conta da existência de um espaço associativo

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indígenas à vida política nacional.6 Nesse sentido, poderiam de fato ser umaimportante contribuição democrática e mostrar a eventual possibilidade deoutras lógicas de funcionamento estatal para além da liberal dominante, mascertamente trazem alguns questionamentos importantes na linha do argumentode Garay e podem ser fontes de atritos políticos significativos.

O direito a ser consultados sobre o aproveitamento de recursos em suasterras, por exemplo, pode colocar nas mãos de algumas minorias o poder deveto completo sobre políticas com o potencial de afetar todo o conjunto decidadãos, levantando o questionamento sobre quem teria mais legitimidadepara a palavra final sobre esse tipo de questão. E em países hidrocarboníferose mineiros como os três em questão, esse tipo de desafio adquire ainda maissignificância. Na Bolívia, onde o movimento indígena em suas mais variadasvertentes é aliado de primeira hora do presidente Evo Morales, problemas coma consulta prévia quase inviabilizaram um projeto de industrialização de cobrede interesse do governo em 2009 e atrasaram bastante a prospecção dehidrocarbonos no norte de La Paz em associação com a estatal venezuelanaPDVSA, levando o presidente a insinuar que os indígenas dessa regiãopoderiam estar recebendo recursos da agência de cooperação estadunidense

USAID para se opor ao projeto. Algumas empresas petrolíferas em atuação nopaís se queixaram de que os indígenas muitas vezes fazem exigências muitoelevadas para permitir a operação em seus territórios e o governo temsinalizado com a possibilidade de regulamentar a prática através de lei fixandoos valores mínimos e máximos de indenização em porcentuais sobre otamanho da atividade econômica em questão. Embora até o momento nadanesse sentido tenha ainda se concretizado, organizações como a

Confederação dos Indígenas do Oriente Boliviano (CIDOB) têm criticado apossibilidade desse tipo de regulamentação como uma limitação ao princípioconstitucional de autonomia indígena.

6 A discussão proposta por Arend Lijphart (2003) acerca dos prós e contras dos modelosmajoritários e consociativo/consensual nos ajudam a pensar a questão da autonomia indígena. O modeloconsensual, apontado pelo autor como o mais completo, tem por objetivo compartilhar, dispersar e limitar

o poder de várias maneiras. Dentre suas vantagens, podemos citar a busca pela representação de minoriase pela resolução do conflito em sociedades profundamente divididas, seja por questões étnicas, religiosasou culturais, como nos casos da Bolívia e do Equador.

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No Equador, a proposta de Lei de Águas enviada ao Congresso pelopresidente Rafael Correa provocou fortes protestos da Confederação dasNacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE) e um indígena da etnia shuarchegou a morrer em confronto com a polícia em outubro de 2009.Recentemente, em maio de 2010, o presidente do Congresso, FernandoCordero, decidiu submeter o projeto a uma consulta pré-legislativa junto aospovos indígenas, embora não seja claro qual será o real poder dos indígenassobre o projeto de lei nessa consulta ainda a ser realizada.

O tema da justiça indígena e suas relações com o sistema judicialregular também tem sido bastante controverso. Em primeiro lugar, pelapossibilidade de condenação a castigos físicos como chicotadas, incompatíveiscom o sistema tradicional de justiça e em grande medida chocantes aos olhosde observadores não indígenas. E em segundo, pelo fato de frequentementelinchamentos serem invocados em nome da justiça indígena. Apesar de aprática não ser permitida segundo as regras vigentes em nenhum dos países eque em última instância a justiça indígena esteja submetida ao controleconstitucional, o fato de que seja invocada em seu nome tem aumentado oestigma e as percepções negativas em torno do tema.

Reflexões finais

Ao longo deste trabalho mostramos que a aposta por instituiçõesparticipativas no marco dos sistemas políticos latino-americanoscontemporâneos sinaliza a abertura do processo decisório para novos atorescom demandas no sentido da ampliação da participação. Mas, ao mesmotempo, destacamos questões do debate teórico em torno das instituições

democráticas que anunciam o tamanho do desafio que comporta implementarem sua forma mais plena todos esses mecanismos institucionais. Acreditamosque neste momento relativamente próximo ao seu lançamento formal em textosconstitucionais, uma reflexão sobre os problemas e eventuais distorções dessetipo de aposta contribui tanto para aprimorar as análises empíricas de suaprática quanto para alertar aos atores genuinamente interessados no sucessodessa aposta sobre possíveis distorções.

Como parte do esforço analítico, apresentamos argumentos sobre porque afirmamos que há instituições participativas que enfrentam desafios mais

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complexos quando levadas a prática. Assim, entendemos que a centralidadedo voto como dispositivo fundamental para praticar instituições como arevogação de mandatos ou a revogação de leis torna mais acessível suaimplementação no curto prazo. O sufrágio já é uma prática recorrente emmuitos países e os cidadãos cada vez mais se acostumam a exercê-lo. Em umreferendo revogatório, por exemplo, o voto por candidatos é substituído peladecisão em torno de uma pergunta frequentemente formulada em termosdicotômicos: você é a favor ou contra a deposição do seu representante docargo para qual ele havia sido eleito? Você é a favor ou contra a aprovação detal lei ou tratado?

Outros mecanismos, como os de iniciativa legislativa, controle da gestãopública, cogestão em governos locais e os que emergem em contextos deautonomia indígena, pressupõem um cidadão mais ativo, informado ecompetente em relação a vários assuntos. Daí que autores como Lissidini(2008) tenham sugerido a distinção entre mecanismos reativos e pró-ativos. Osreferendos se identificam com os primeiros e os que aqui colocamos em umsegundo grupo correspondem aos pró-ativos. A tentativa de implementar essesmecanismos necessita de cidadãos pró-ativos, prontos para compartilhar

responsabilidades e assumir um esforço coerente com o tamanho de seurenovado protagonismo. Portanto, intervenções em outras esferas que nãoapenas a institucional são necessárias para viabilizar tais práticas, o quesugere um processo de longo prazo coerente com a multiplicidade e acomplexidade das questões envolvidas.

As abordagens mais céticas quando à viabilidade destes mecanismosmais complexos recomendam, em nome do perigo de encontrar como

resultado o oposto do que se pretendia com esse ideal, que o mais prudenteseria nem ensaiar sua implementação. Porém, as instituições representativasclássicas não são imunes a esse perigo oposto, como já se mencionou nestetrabalho em relação aos casos de estelionato eleitoral. Além disso, vários dosautores aqui referidos, dos mais simpáticos às instituições representativas,como Enrique Dussel (2007), aos mais críticos, como Giovanni Sartori (1994),concordam, cada qual à sua maneira, que toda forma de democracia realmente

existente é imperfeita e que não se pode esperar que os ideais se concretizemem toda sua pureza. Portanto, nós salientamos a pertinência de um

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experimentalismo institucional que aponte para uma interação mais dinâmica emenos delegativa entre governantes e governados, sem por isso deixar deconsiderar seus eventuais percalços e deformações.

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