Teoria Gaia

download Teoria Gaia

of 44

description

Teoria Gaia.

Transcript of Teoria Gaia

  • gaia: alerta final

    Gaia alerta final_miolo.indd 1Gaia alerta final_miolo.indd 1 11/27/09 4:17:23 PM11/27/09 4:17:23 PM

  • Gaia alerta final_miolo.indd 2Gaia alerta final_miolo.indd 2 11/27/09 4:17:23 PM11/27/09 4:17:23 PM

  • Traduo de Jesus de Paula Assis eVera de Paula Assis

    James Lovelock

    Gaia: alerta final

    Gaia alerta final_miolo.indd 3Gaia alerta final_miolo.indd 3 11/27/09 4:17:23 PM11/27/09 4:17:23 PM

  • Copyright 2009 James Lovelock

    ttulo originalThe Vanishing Face of Gaia: A fi nal warning

    preparaoAna Julia Cury

    reviso tcnicaProf. Dr. Trcio Ambrizzi(Departamento de Cincias Atmosfricas USP)

    revisoAntnio dos PrazeresJulio LudemirUmberto Figueiredo Pinto

    diagramaoIlustrarte Design e Produo Editorial

    capaTutano

    [2010]

    Todos os direitos desta edio reservados

    Editora Intrnseca Ltda.Rua dos Oitis, 5022451-050 GveaRio de Janeiro RJTel./Fax: (21) 3206-7400www.intrinseca.com.br

    CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTE. SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

    L947g Lovelock, James, 1919- Gaia : alerta fi nal / James Lovelock ; traduo de Vera de Paula Assis, Jesus de Paula Assis. - Rio de Janeiro : Intrnseca, 2010. 264p. Traduo de: The Vanishing Face of Gaia : A fi nal warning ISBN 978-85-98078-61-8 1. Hiptese de gaia. 2. Biologia - Filosofi a. 3. Biosfera. 4. Vida - Origem. I. Ttulo.

    09-4331. cdd: 577.27 cdu: 57

    Gaia alerta final_miolo.indd 4Gaia alerta final_miolo.indd 4 12/1/09 5:39:24 PM12/1/09 5:39:24 PM

  • Para minha querida esposa Sandy

    Gaia alerta final_miolo.indd 5Gaia alerta final_miolo.indd 5 11/27/09 4:17:23 PM11/27/09 4:17:23 PM

  • Gaia alerta final_miolo.indd 6Gaia alerta final_miolo.indd 6 11/27/09 4:17:23 PM11/27/09 4:17:23 PM

  • sumrio

    Agradecimentos, 9

    Prefcio por Martin Rees, 11

    1. A jornada no espao e no tempo, 15

    2. A previso climtica, 45

    3. Consequncias e sobrevivncia, 75

    4. Fontes de energia e alimento, 99

    5. Geoengenharia, 139

    6. A histria da Teoria de Gaia, 157

    Gaia alerta final_miolo.indd 7Gaia alerta final_miolo.indd 7 11/27/09 4:17:23 PM11/27/09 4:17:23 PM

  • 7. Percepes de Gaia, 181

    8. Ser ou no ser verde, 197

    9. Ao prximo mundo, 219

    Glossrio, 239

    Outras leituras, 247

    Crditos das imagens, 253

    ndice, 255

    Gaia alerta final_miolo.indd 8Gaia alerta final_miolo.indd 8 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • Meus sinceros agradecimentos a Richard Betts, John Gray, Armand Neukermans, Sir Crispin Tickell, Brian Foulger, Gari Owen, Tim Donaldson e Elaine Steel, que leram o livro e fi ze-ram comentrios pertinentes, e a Chris Rapley, Stephan Harding, Peter Liss, Andrew Watson, Tim Lenton e Dave Wilkinson, por seus valiosos conselhos. Tambm agradeo GAIA, instituio benefi cente registrada sob o n 327.903, o auxlio proporcionado quando eu escrevia este livro.

    agradecimentos

    Gaia alerta final_miolo.indd 9Gaia alerta final_miolo.indd 9 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • Gaia alerta final_miolo.indd 10Gaia alerta final_miolo.indd 10 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • por Martin Rees

    H pouco mais de quarenta anos os astronautas da Apollo 8, en-quanto orbitavam a Lua, fotografaram a Terra inteira a biosfera contrastando com a estril paisagem lunar onde os astronautas deixaram suas pegadas. As imagens da Apollo despertaram a per-cepo global de que a Espaonave Terra era vulnervel e que sustent-la era um imperativo ecolgico. Mas houve uma segunda e importante infl uncia de impacto global semelhante no uma imagem, mas um novo e deslumbrante conceito, com um ttulo romntico. Era Gaia a ideia de que a biosfera da Terra se comporta como se fosse um nico organismo.

    Gaia foi a viso iluminada de um homem que , sem dvida, um dos cientistas vivos mais originais e infl uentes: James Love-lock. Ele acredita que nossa espcie est agora impondo Terra um estresse sem precedentes e que a mudana climtica poder levar a um mundo com um ecossistema bem empobrecido, quase inspito para os seres humanos. Mais assustadora (e mais contro-

    prefcio

    Gaia alerta final_miolo.indd 11Gaia alerta final_miolo.indd 11 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • 12 james lovelock

    vertida) sua afi rmao de que o ponto sem retorno j pode ter sido ultrapassado.

    Nosso planeta tem quase 4,5 bilhes de anos. Se alguns alie-ngenas estivessem observando-o de longe, desde seu nascimento, o que teriam visto? Durante quase todo esse tempo imenso as mudanas foram incessantes, mas geralmente graduais. Houve a deriva dos continentes; a cobertura de gelo alternou perodos de crescimento e declnio; as temperaturas globais subiram e caram; espcies emergiram, evoluram e se tornaram extintas.

    Mas em apenas uma minscula frao da histria da Terra a ltima milionsima parte, alguns milhares de anos os padres de vegetao se alteraram mais rapidamente do que antes. Foi esse o sinal do incio da agricultura. O ritmo de mudan-as se acelerou medida que populaes humanas cresceram e se dedicaram atividade urbana e industrial. O consumo de combustveis fsseis causou um acmulo absurdamente rpido de dixido de carbono na atmosfera; o clima mudou, e o mundo comeou a se aquecer.

    Se conhecerem astrofsica, os aliengenas que estiverem vigiando nosso planeta podero prever com segurana que a bios-fera enfrentar o Juzo Final quando o Sol se tornar mais brilhante e, subitamente, explodir, transformando-se numa estrela verme-lha e gigante. Mas poderiam eles ter previsto essa sbita febre sem precedentes antes que a Terra chegasse sequer metade da sua vida essas mudanas induzidas pelos seres humanos, que parecem acontecer a uma velocidade alucinante?

    E o que esses hipotticos aliengenas poderiam testemunhar nos prximos cem anos? Seriam os espasmos seguidos por esta-bilidade? Em caso afi rmativo, ser que a nossa Terra vai se estabilizar num estado que ainda oferea um habitat para os seres humanos? Ou nossas intervenes no planejadas des-viaram o planeta para um estado climtico novo e bem mais

    Gaia alerta final_miolo.indd 12Gaia alerta final_miolo.indd 12 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • 13gaia: alerta final

    quente? Se assim for, quantas das espcies atuais de animais e plantas sobrevivero?

    Tais questes mudana climtica e perda de biodiversidade ascenderam a lugares de destaque na agenda internacional. James Lovelock est ajudando a mant-las l. um heri para mui-tos cientistas certamente para mim. Sua carreira nica e par-ticular contrape-se ao estilo especializado e quase industrial em que a maior parte das pesquisas conduzida. Na dcada de 1960, Lovelock criou um instrumento to sensvel para a deteco de tra-os mnimos de poluentes atmosfricos que muitos colegas se recu-saram a acreditar nas suas alegaes. Ele no deve nada a nenhuma instituio. Cruza as fronteiras entre disciplinas com tal liberdade que, muitas vezes, constrange pensadores institucionais.

    A genialidade da mente e da personalidade de James Lovelock brilha neste livro importante e agradvel de ler. O texto claro, at divertido, com muitas analogias inteligentes. Mas ele tambm escreve com sentimento, e seus pensamentos assentam-se em toda uma vida de trabalho excepcional. um excelente cientista e, ao mesmo tempo, um ativista eloquente.

    Muitos de ns ainda esperam que nossa civilizao faa uma passagem harmoniosa para um futuro com baixo teor de carbono e uma populao menor e que consigamos efetivar essa tran-sio sem trauma nem desastre. Tal desfecho benigno, contudo, exige ao decidida dos governos, implementada com urgncia; tal urgncia s ser atingida se campanhas sustentadas consegui-rem transformar atitudes coletivas e estilos de vida. Programas para o desenvolvimento de energia limpa devem ser desenvol-vidos e implementados simultaneamente em todo o mundo, com a mesma urgncia que os Estados Unidos deram ao programa Apollo nos anos 1960.

    Aqueles de ns que so cientistas deveriam encarar a inven-tividade de James Lovelock como um desafi o; todos os cidados

    Gaia alerta final_miolo.indd 13Gaia alerta final_miolo.indd 13 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • 14 james lovelock

    deveriam se inspirar no compromisso e no altrusmo de Lovelock. No exagero dizer que o futuro de nossa civilizao a longo prazo depende de uma resposta geral afi rmativa convocao deste livro fascinante.

    Martin ReesTrinity College, Cambridge

    Janeiro de 2009

    Gaia alerta final_miolo.indd 14Gaia alerta final_miolo.indd 14 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • cones so importantes para ns: a cruz e a cimitarra domina-ram vidas e a histria por dois milnios. Para alguns, o cone de maior signifi cado aquele da imagem azul e branca da Terra vista pela primeira vez do espao pelos astronautas. Aquele cone est sofrendo uma mudana sutil medida que o gelo branco desapa-rece gradualmente, o verde das fl orestas e das pastagens se trans-forma lentamente no tom pardo das regies desrticas e os oceanos perdem a tonalidade azul-esverdeada, passando para um simples azul-piscina medida que se tornam desertos. por isso que, aos 90 anos, tentarei imitar os astronautas e voarei para o espao, a fi m de ver a Terra do alto, antes que ela desaparea. Quero ter um vislumbre da Terra na qual vivi toda a minha vida, mesmo que meu mdico Douglas Chamberlain, em quem confi o, tenha me advertido que o risco grande demais. Irei, apesar dos avisos, para recapturar o momento arrepiante de sbita descoberta quarenta anos atrs, quando eu estava trabalhando no centro de pesquisas

    1A jornada no espao e no tempo

    Gaia alerta final_miolo.indd 15Gaia alerta final_miolo.indd 15 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • 16 james lovelock

    espaciais, o Laboratrio de Propulso a Jato (JPL, Jet Propulsion Laboratory), na Califrnia, e enxerguei com o olho da minha mente que nosso planeta era algo possivelmente singular no uni-verso, algo vivo. Desde ento, acho que a palavra Terra no serve para descrever o planeta vivo que habitamos e do qual fazemos parte. Sou grato ao escritor William Golding pela sugesto de que o nome Gaia seria mais apropriado. No menos importante entre as alegrias de ver nosso planeta vivo l do alto ser o simples prazer de ver quo esfrico ele . Tive poucas dvidas de que assim o fosse, mas, tal como acontece com muitas coisas na vida e na cincia, temos simplesmente de aceitar que um planeta redondo, mesmo que, quando em solo, nossos olhos nos digam que plano.

    Imagine meu assombro e alegria quando soube que meu desejo de ver a Terra do espao seria em breve atendido e que veria, do cu acima do Novo Mxico, a esfera de um mundo em toda a sua glria. Em um ato de esplndida generosidade, Sir Richard Branson criou a mgica e j fundou sua prpria companhia espacial, a Virgin Galactic, para torn-la possvel. Seu aperfeioamento defi nitivo, o voo ao espao, permitir que eu escape por alguns breves minutos da introspeco dominante da vida no sculo XXI e compartilhe aquela sensao transcendental dos astronautas de que nosso lar no a casa, nem a rua, nem a nao onde vivemos, mas a prpria Terra.

    H alguma necessidade de ver Gaia, o nico planeta vivo do sistema solar? Afi nal, apesar do recente revs econmico, a vida continua a melhorar na maior parte do mundo; mesmo os pobres do mundo desenvolvido, embora malnutridos, esto s vezes sufi cientemente bem alimentados para serem obesos. H tantas possibilidades de diverso que no h nenhum motivo para tdio, dia ou noite. Talvez no mais precisemos ver a Terra de verdade quando podemos v-la to bem no Google.

    Importa, sim, e mais que qualquer outra coisa: temos de v-la como ela realmente , porque nossas vidas so inteiramente depen-

    Gaia alerta final_miolo.indd 16Gaia alerta final_miolo.indd 16 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • 17gaia: alerta final

    dentes da Terra viva. No poderamos sobreviver um instante sequer em um planeta morto como Marte, e precisamos entender a diferena. Se deixarmos de levar nosso planeta a srio, seremos como crianas que acham que seus lares estaro sempre l e nunca duvidam que o caf da manh inicia o dia; no perceberemos, enquanto desfrutamos de nossas vidas cotidianas, que o custo de nossa negligncia poder em breve causar a maior tragdia j vista na histria da humanidade. A Terra, em seu prprio interesse, mas no no nosso, poder ser forada a mudar para uma era quente, na qual possa sobreviver, embora numa condio reduzida e menos habitvel. Se isso acontecer, como provvel, teremos sido ns a causa.

    No se deixe enganar por calmarias na mudana climtica quando a temperatura global se mantm constante por alguns anos ou at quando, no momento em que escrevo aqui no Reino Unido, em 2008, ela parece cair. Veranistas e agricultores que suportaram um julho e agosto desgraadamente frios e midos me perguntam: onde est o aquecimento global agora? Mais ao longe, no golfo do Mxico, onde por vrios anos a gua da superf-cie esteve extraordinariamente quente, agora est novamente mais fria, e o rtico tambm recuperou um pouco das impressionantes perdas de 2007 (embora o gelo continue ameaando fi car cada vez mais fi no). No mundo real, as mudanas raramente so suaves: elas ocorrem bruscamente, num movimento mais parecido com o crescimento de um engarrafamento do que com uma estrada livre e aberta. Mas, por mais improvvel que s vezes parea, a mudana est realmente acontecendo e a Terra fi ca mais quente ano aps ano. Est cada vez mais sob o risco de mudar para um estado estril, no qual poucos de ns podero sobreviver. Cientis-tas, particularmente Steve Schneider e Jim Hansen, reconhece-ram na dcada de 1980 a possibilidade de uma perigosa mudana climtica em consequncia de nossa poluio do ar com dixido

    Gaia alerta final_miolo.indd 17Gaia alerta final_miolo.indd 17 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • 18 james lovelock

    de carbono em excesso. Isso levou o eminente climatologista sue-co Bert Bolin a convencer a Organizao das Naes Unidas (ONU) a criar um Painel Intergovernamental de Mudanas Cli-mticas (IPCC, Intergovernmental Panel on Climate Change) com Sir John Houghton e Gylvan Meira Filho como copresiden-tes. O painel comeou a reunir evidncias sobre as mudanas qumicas e fsicas da atmosfera em 1990 e divulgou relatrios em 1991, 1995, 2001 e 2007. Por meio dos esforos desse painel de mais de mil cientistas de vrias naes sabemos hoje o bastante sobre a atmosfera da Terra para apresentar conjecturas inteligentes sobre climas futuros. Contudo, at agora essas conjecturas foram incapazes de indicar as mudanas observadas no clima num grau sufi ciente para termos confi ana sobre as previses do IPCC para as prximas dcadas.

    Hoje somos quase todos to urbanizados que poucos dos que vivem nas cidades do hemisfrio norte veem as estrelas noite. A luz e a poluio do ar as obscureceram tanto que somente a Lua e Vnus so visveis atravs do brilho da noite. Nossos bisavs muitas vezes viam as constelaes e usavam a estrela Polar para guiar seu caminho; em noites claras, at enxergavam a Via-Lctea, aquela indistinta faixa branca que cruza os cus e uma vista lateral da nossa galxia natal. Exceo feita a alguns marinheiros e agricul-tores a muitos quilmetros de qualquer povoado, que ainda veem as escuras profundezas do cu, estamos todos perdidos no ar ene-voado daquela megacidade em que a globalizao transformou o mundo humano. De modo semelhante, os cientistas tornaram-se urbanizados e apenas recentemente assimilaram a ideia de uma Terra viva em seu raciocnio. A maioria deles ainda precisa digerir a ideia de Gaia e torn-la parte de sua prtica.

    Estamos tentando desfazer parte dos males que provocamos e, com o agravamento da mudana climtica, tentaremos com maior afi nco e at um certo desespero. Contudo, enquanto no

    Gaia alerta final_miolo.indd 18Gaia alerta final_miolo.indd 18 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • 19gaia: alerta final

    enxergarmos que a Terra mais que uma mera bola de rocha, improvvel que tenhamos sucesso. No se trata meramente de dixido de carbono em excesso no ar nem da perda da biodiver-sidade medida que as fl orestas so derrubadas; a causa central o excesso de pessoas, seus animais de estimao e gado mais do que a Terra consegue suportar. Nenhum ato humano volunt-rio poder reduzir nossos nmeros com rapidez sufi ciente, nem mesmo para desacelerar a mudana climtica. Por sua mera exis-tncia, as pessoas e seus animais so responsveis por emisses de gases de efeito estufa que superam dez vezes todas as viagens areas do mundo.

    Parece que no temos a menor ideia da gravidade de nossa situa-o. Ao contrrio, antes que nossos pensamentos fossem desviados pelo colapso fi nanceiro global, parecamos perdidos num crculo infi ndvel de comemorao e felicitao. Foi bom reconhecer os enormes esforos do IPCC e de Al Gore com o Prmio Nobel da Paz e pedir aos corajosos 10 mil que fi zessem a longa jornada at Bali como uma saudao, mas, por no terem visto a Terra como uma entidade viva, eles ignoraram, custa de nos colocar em perigo, o quanto ela desaprova tudo o que fazemos. Enquanto organizamos nossas reunies e conferncias sobre administrao de recursos, Gaia ainda se desloca passo a passo rumo ao estado quente, aquele que lhe permitir continuar como a reguladora, mas onde poucos de ns estaremos vivos para nos reunir e con-versar. Talvez estejamos comemorando porque a voz outrora bem inquietante do IPCC agora falou tranquilamente sobre consenso e endossou aqueles misteriosos conceitos de sustentabilidade e energia que se renovava. At imaginamos que assim, de alguma maneira, poderamos salvar o planeta e tambm enriquecer, um desfecho bem mais prazeroso que a incmoda verdade.

    No sou uma Cassandra condescendente, e no passado fui publicamente ctico sobre histrias apocalpticas, mas, dessa

    Gaia alerta final_miolo.indd 19Gaia alerta final_miolo.indd 19 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • 20 james lovelock

    vez, realmente precisamos levar a srio a possibilidade de que o aquecimento global pode estar a ponto de eliminar as pessoas da Terra. Meu pessimismo pode parecer uma extrapolao que foi longe demais. Aceito o seguinte: uma contnua srie de erupes vulcnicas to poderosas quanto a de Pinatubo em 1991 poderia reverter a mudana climtica, bem como um ou mais dos projetos de geoengenharia atualmente em considerao; alm disso, nossas projees so provavelmente imperfeitas. Mas o pessimismo jus-tifi cado pela diferena entre as previses do IPCC e aquilo que os observadores constatam no mundo real. Pensemos simplesmente no seguinte: mais de mil dos melhores climatologistas do mundo trabalharam dezessete anos na previso de climas futuros e fracas-saram na previso do clima de hoje, no momento em que escrevo, em agosto de 2008. No confi o muito na suave curva ascendente da temperatura que os criadores de modelos predizem para os pr-ximos noventa anos. A histria da Terra e os modelos climticos simples baseados na noo de uma Terra viva e reativa sugerem que so mais provveis mudanas sbitas e surpresas. Meu pessimismo compartilhado por outros cientistas e abertamente pelo eminente climatologista James Hansen, que, assim como eu, acredita que as evidncias sobre a Terra que esto agora surgindo, com o conhe-cimento de sua histria, so gravemente perturbadoras. Acima de tudo, estou pessimista porque as empresas e os governos parecem estar aceitando cegamente uma crena de que a mudana clim-tica fcil e lucrativamente reversvel.

    No espere que o clima siga o caminho lento e suave de aumento de temperatura, previsto pelo IPCC, em que a mudana avana gradualmente e deixa muito tempo para manter as coisas funcionando como sempre. A Terra real se altera intermitente-mente com perodos de constncia, at ligeiro declnio, entre os saltos para um calor maior. Mudana climtica no se parece absolutamente com a engenharia civil regular de uma impor-

    Gaia alerta final_miolo.indd 20Gaia alerta final_miolo.indd 20 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • 21gaia: alerta final

    tante rodovia que escala ininterruptamente o desfi ladeiro de uma montanha, mas sim com a prpria montanha, uma conca-tenao de declives, vales, campinas planas, degraus rochosos e precipcios. possvel que em algum momento no passado um gerente de recursos que cuidava do seu fundo de penso tenha lhe mostrado uma curva de crescimento dos seus investimentos que subiam homogeneamente sem descontinuidade de agora at 2050; mas hoje voc estaria cheio de dvidas sobre um progresso to homogneo e contnuo e saberia que o crescimento pode ser interrompido por instituies fi nanceiras, como a Northern Rock e a Lehman Brothers, espalhadas pelo caminho, e at cair no abismo de uma recesso global. Ainda assim, pedem-nos que acreditemos que a temperatura subir continuamente por outros quarenta anos, a menos, claro, que coloquemos o dixido de carbono da atmosfera em algum outro lugar. Voc pode achar que previses climticas e econmicas tm pouco em comum, mas no: os dois sistemas so complexos e no lineares e podem mudar sbita e inesperadamente. Alan Greenspan, at recente-mente o guru econmico dos Estados Unidos, disse numa entre-vista BBC que por esse motivo ele se recusou a prever o curso da economia mundial; e o conceituado economista de Cambridge, Sir Partha Dasgupta, advertiu que modelos da economia se asse-melhavam aos do clima em sua imprevisibilidade caprichosa. Eles se escusaram de tais previses bem antes da quebra de 2008. Sabemos agora que as enormes dvidas contradas pelo chamado Primeiro Mundo foram a causa. No temos a menor noo de quando nosso endividamento ambiental trar uma runa ainda maior, somente que provvel que acontea.

    Parece que esquecemos que a cincia no se baseia inteira-mente em teoria e modelos: a confi rmao mais cansativa e prosaica por experimento e observao tem papel igualmente importante. De uns anos para c, talvez por motivos sociais, a

    Gaia alerta final_miolo.indd 21Gaia alerta final_miolo.indd 21 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • 22 james lovelock

    cincia mudou seu modo de trabalhar. Observao no mundo real e experimentos em pequena escala na Terra agora assumem o segundo lugar, atrs dos modelos tericos caros e em constante expanso. Trabalhar assim pode ser administrativa e politica-mente cmodo, mas as consequncias podero ser desastrosas. Nosso tanque est quase vazio de dados e estamos nos movendo a vapor terico: isto especialmente verdadeiro para os dados sobre os oceanos, que perfazem mais de 70% da superfcie da Terra, e para as respostas dos ecossistemas mudana climtica e, igualmente importante, o efeito da mudana nos oceanos e ecossistemas sobre o clima.

    As ideias que se originam da teoria de Gaia nos colocam em nosso devido lugar como parte do sistema Terra no somos os proprietrios, gerentes, comissrios ou pessoas encarregadas. A Terra no evoluiu unicamente para nosso benefcio, e quaisquer mudanas que efetuemos nela sero por nossa prpria conta e risco. Tal maneira de pensar deixa claro que no temos direitos huma-nos especiais; somos apenas uma das espcies parceiras no grande empreendimento de Gaia. Somos criaturas da evoluo darwiniana, uma espcie transitria com um tempo de vida limitado, como todos os nossos inmeros ancestrais distantes. Mas, ao contrrio de quase tudo antes que emergssemos no planeta, somos tambm animais sociais inteligentes com a possibilidade de evoluir para nos tornarmos mais sensatos e inteligentes, animais que poderiam ter um potencial maior como parceiros para o resto da vida na Terra. Nossa meta agora sobreviver e viver de modo a oferecer melhor chance evoluo que continuar depois de ns. O fi lsofo John Gray analisa at que ponto ainda somos uma inteligncia emer-gente e se ainda temos tanto caminho pela frente que justifi que a avaliao que fazemos de ns mesmos. Realmente acreditamos que ns, seres humanos, inteiramente despreparados como somos, temos a inteligncia ou a capacidade de gerenciar a Terra?

    Gaia alerta final_miolo.indd 22Gaia alerta final_miolo.indd 22 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • 23gaia: alerta final

    Tornamo-nos hbeis em enterrar as ms notcias e talvez por isso no gostemos dos relatos trazidos por aqueles admirveis e verdadeiros cientistas que saem mundo afora, como Charles David Keeling e o fi lho Ralph, que por tanto tempo e com grande pre-ciso monitoraram o dixido de carbono no pico de Mauna Loa. Ou Andrew Watson, que realizou medies no inverno em um navio chacoalhando nos mares frios e tempestuosos na costa da Groenlndia. Existem alguns cientistas como eles que atualmente fazem observaes de elevao de temperatura e do nvel do mar, e essas medies foram publicadas por Stefan Rahmstorf e cole-gas em maio de 2007, na revista Science. Eles constataram que o nvel do mar estava subindo 1,6 vez mais rpido e a temperatura, 1,3 vez mais rpido do que o IPCC tinha previsto em 2007. Em setembro de 2007, fi camos arrasados ao descobrir que somente 40% do gelo fl utuante no oceano rtico no tinha se derretido. verdade que a perda visvel em 2008 foi ligeiramente menor, mas o gelo restante diminuiu sua espessura para um valor recorde de 45 centmetros. Essas alteraes so muito mais rpidas que a mais sombria das previses feitas por modelos e, como ser visto, podero ter srias consequncias.

    Por meio da teoria de Gaia ofereo uma viso do futuro poss-vel, nosso e da Terra, medida que se desenvolve a mudana cli-mtica. Minha viso diferente da maioria dos climatologistas. As diferenas originam-se de procedimento, no de uma base fatual distinta. A maioria dos modelos de mudana climtica, por exem-plo, ainda no inclui a resposta fi siolgica dos ecossistemas do solo ou dos oceanos. Esta no , de forma alguma, a consequncia de uma batalha entre teorias; a questo que os modelos climticos foram tanto nossas capacidades mentais e processuais que leva muito tempo at que novos procedimentos possam ser includos de uma maneira confi vel meio parecido com mudar o sistema de transporte de uma cidade de nibus para bondes. Num mundo

    Gaia alerta final_miolo.indd 23Gaia alerta final_miolo.indd 23 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • 24 james lovelock

    ideal, modelos climticos que inclussem tudo poderiam reduzir ou at eliminar a discrdia, mas no podemos nos dar o luxo de esperar por modelos aperfeioados: temos de agir agora e, por-tanto, ofereo previses com base em modelos simples da teoria de Gaia e evidncias da Terra agora e no passado.

    A climatologia profi ssional se fundamenta, principalmente, na geofsica e geoqumica, e muitas vezes pressupe que a Terra inerte e incapaz de uma resposta fi siolgica mudana climtica. O que tornam diferentes as ideias apresentadas neste livro que elas se baseiam numa teoria coerente da Terra, Gaia, cujo acerto pode ser medido pelo excesso de suas previses, e est comeando a ser aceita como a sabedoria convencional sobre a Terra e a cin-cia da vida. No suponha que a sabedoria convencional entre cientistas seja similar ao consenso entre polticos e advogados. Cincia tem a ver com verdade e deve ser inteiramente indife-rente justia ou convenincia poltica.

    Quando critico o consenso do IPCC, estou criticando, prin-cipalmente, a falta de conhecimento entre administradores e polticos que foraram (de m vontade, desconfi o) cientistas a apresentarem dessa maneira as concluses de diferentes centros climticos nacionais e regionais. Pouco antes de terminar este livro li a recente e muito comovente obra The Patient from Hell [O paciente do inferno], de Steve Schneider, sobre sua longa e dolorosa, mas bem-sucedida, batalha contra o cncer. Schneider um dos climatologistas mais importantes do mundo e relembra no livro seu papel numa sesso da ONU em Genebra, durante o desenvolvimento do relatrio de 2001 do Grupo de Trabalho do IPCC, no qual descreve como a boa cincia apresentada na sesso foi manipulada at que satisfi zesse todos os representantes nacionais presentes. O livro deixa claro que as palavras emprega-das para expressar as consequncias do aquecimento global foram dissimuladas at que fossem aceitveis aos representantes das naes

    Gaia alerta final_miolo.indd 24Gaia alerta final_miolo.indd 24 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • 25gaia: alerta final

    produtoras de petrleo, que enxergaram seus interesses nacionais ameaados pela verdade cientfi ca. Se for isso que a ONU quer dizer quando fala de consenso, no se poder esperar que verdade cientfi ca surja de suas deliberaes e seremos induzidos ao erro sobre os perigos do aquecimento global. Pode tambm ser esse o motivo pelo qual governos nacionais e agncias internacionais se mostram relutantes em destinar fundos para observaes e medies, mas propensos a fomentar modelos. Medies feitas por cientistas so bem mais difceis de contestar. Dizem que a verdade a primeira vtima da guerra, e parece que isso vale tam-bm para a mudana climtica. Se eu estiver mais certo que o consenso, isso alterar profundamente o melhor curso da ao individual e poltica. A mera reduo da queima de combustveis fsseis, do uso de energia e da destruio de fl orestas naturais no ser uma resposta sufi ciente ao aquecimento global, principal-mente porque parece que a mudana climtica pode acontecer mais rpido do que somos capazes de reagir a ela. E ela pode ser irreversvel. Consideremos: o Protocolo de Kyoto foi elaborado h mais de dez anos e, desde ento, parece que fi zemos pouco mais que gestos quase vazios para deter a mudana climtica. Por causa da rapidez da mudana da Terra, precisaremos reagir mais como os habitantes de uma cidade ameaada por uma inundao. Quando eles veem a subida irreprimvel da gua, a nica opo fugir para terreno alto; tarde demais para fazer qualquer outra coisa, como para ns tentar salvar nosso mundo familiar.

    O conceito de uma Terra viva no fcil de apreender, mesmo como metfora. Tentarei explic-lo mais adiante, mas, por ora, no levarei em conta singularidades que a Terra pare-ce no reproduzir. As evidncias de que a Terra se comporta como um sistema vivo so agora fortes. Ela tanto pode resistir mudana climtica como intensifi c-la e, a menos que leve-mos tal ponto em considerao, no poderemos entender nem

    Gaia alerta final_miolo.indd 25Gaia alerta final_miolo.indd 25 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • 26 james lovelock

    prever o comportamento da Terra. Devemos ter sempre em mente que arrogncia achar que sabemos como salvar a Terra: nosso planeta cuida de si prprio. Tudo o que podemos fazer tentar nos salvar.

    Aqueles de ns que porventura caminhem por reas ainda cha-madas de campos verdes e tm a sensao de que h algo de errado ou que est faltando alguma coisa quando vemos uma moderna fazenda de agronegcios, com os campos cheios de monoculturas, sentem a mesma coisa em relao s escuras e soturnas plantaes fl orestais de conferas semeadas em fi leiras disciplinadas bem fechadas para maximizar a quantidade e qualidade da madeira e o ganho dos silvicultores. Poucos de ns consideram terrivel-mente errado quando alguma joia da paisagem litoral ou rural degradada por plantaes de gigantescas turbinas elicas em escala industrial. Contudo, se formos a uma fl oresta virgem, a um deserto ou, de fato, a qualquer lugar da Terra onde as coisas ainda crescem em coexistncia dinmica, iremos consider-lo belo, mas assustador, um lugar que coloca nosso detector de perigo em estado de alerta. O explorador extrovertido com seu chapu de palha dir: Bobagem, passei boa parte da minha vida na selva e nunca me senti ameaado. O indivduo esquece que ele tambm usa bota contra cobras e seu kit contm comprimidos para este-rilizar gua e plulas antimalricas. No se engane: nosso medo instintivo do selvagem fundamentado: lugares inteiramente naturais so to hostis s pessoas inocentes das cidades como a pai-sagem de um planeta aliengena infestado de monstros. Formas de vida, dos micro-organismos aos nematoides, invertebrados, cobras, tigres e, claro, outros seres humanos: para ns, todos esses seres so potencialmente perigosos se nos colocarmos prximos a eles. No admira que o homem primitivo tenha separado da natureza os seus campos e, gradualmente, tenha se tornado fazendeiro, considerando maligna toda vida que no fosse animal de criao,

    Gaia alerta final_miolo.indd 26Gaia alerta final_miolo.indd 26 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • 27gaia: alerta final

    plantas cultivadas, mo de obra contratada e parentes. Mais tarde, construmos cidades fortalezas , para nos manter protegidos contra a vida selvagem e para subjugar a regio rural, fazendo-a servir s nossas necessidades de alimento, combustvel, minerais e materiais de construo. No h nada de antinatural nessa evolu-o. Cupins e outros animais sociais tambm o fi zeram, sua pr-pria maneira. O ponto em que diferimos de tudo que veio antes que nos esquivamos das causas de morte precoce, predao, fome e doena, as coisas que j nos amedrontaram. Agora, multipli-camos e expandimos nossas cidades e as ocupamos tanto e em tal grau que sobrecarregamos a Terra e tornamos real o pesadelo de Malthus, apesar da nossa capacidade imensamente ampliada de nos sustentar, algo que no tnhamos previsto. O mundo natural fora das nossas fazendas e cidades no existe como decorao, mas serve para regular a qumica e o clima da Terra, e os ecos-sistemas so os rgos de Gaia que lhe permitem manter nosso planeta habitvel.

    Voc acha que estou exagerando mas quando foi a ltima vez que voc se sentou em um belo campo gramado sob o sol e sentiu o cheiro de tomilho silvestre ou viu a prmula e uma violeta oscilante? Aposto que foi h muito tempo, se que isso realmente aconteceu alguma vez. Shakespeare podia fazer isso quando vivia em Londres, porque um campo gramado assim estava a uma cami-nhada de sua casa, e quando eu era um garoto que vivia no sul de Londres, oitenta anos atrs, o bonde me levaria a tal campo em trinta minutos; agora, quase uma impossibilidade. A cidade e suas reas agrcolas esto quase em todos os lugares, e so imensos.

    Se isto parecer uma percepo provinciana inglesa da Terra em transformao, uma questo de geografi a, no de preconceito tribal. Com o agravamento da crise climtica, o mundo inteiro ser afetado, mas de diferentes maneiras. Sir John Houghton nos lembra em seu livro Global Warming [Aquecimento global],

    Gaia alerta final_miolo.indd 27Gaia alerta final_miolo.indd 27 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • 28 james lovelock

    publicado em 2004, que as maiores mudanas climticas sero observadas nas regies polares. Primeiro, o gelo fl utuante ir der-reter e, depois, as calotas de gelo da Groenlndia e da Antrtida sofrero eroso; as consequncias dessas mudanas climticas rti-cas e antrticas sero calor adicional e nveis do mar em elevao para a Terra inteira e, ento, todos sentiremos a mudana. Exceto por aqueles lugares tropicais onde montanhas prximas a um oceano morno atraem chuvas, maior calor implica seca e uma perda fatal da produo de alimentos. Clima quente atrai mais chuva, mas ou ela produz inundaes instantneas ou evapora com tal rapidez que bem menos til s plantas em crescimento que a suave garoa que cai numa terra fria como a Irlanda. Nas reas continentais, onde a maioria de ns vive nos hemisfrios norte e sul, as estiagens de vero se intensifi caro. Os Estados Unidos revivero as lembranas da tempestade de areia dos anos 1930 [Dust Bowl]. A Austrlia j sofreu onze anos de estiagem contnua; os europeus iro lembrar o terrvel vero de 2003; e, na China, na frica e no sul da sia, a fome um inimigo familiar. Assim como a pata de um elefante sobre um formigueiro, o aque-cimento global esmagar a vida das plancies continentais.

    Como ser daqui a alguns anos? Vimos que em 2007 a Terra passou por um marco signifi cativo quando a rea de gelo rtico fl utuante que se derreteu no vero foi cerca de 3 milhes de qui-lmetros quadrados maior que a habitual, uma rea trinta vezes maior que a Inglaterra. Apesar do calor absorvido, a temperatura global no subiu; de fato, caiu ligeiramente, talvez porque se gasta 81 vezes mais energia para derreter gelo que para elevar a mesma quantidade de gua em um grau: tal propriedade do gelo conhecida como calor latente. Para observar esse fenmeno prepare uma xcara quase cheia de ch com gua fervente. Estar quente demais at mesmo para dar um gole. Acrescentar gua gelada para resfri-la com rapidez raramente funciona, mas a

    Gaia alerta final_miolo.indd 28Gaia alerta final_miolo.indd 28 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • 29gaia: alerta final

    adio de um nico cubo de gelo a esfriar o bastante para beb-la em poucos segundos. Em mais alguns anos, todo aquele gelo fl utuante poder desaparecer e, ento, o Sol estar livre para aque-cer o escuro oceano rtico. Ele no mais ter a tarefa extenuante de tentar derreter o gelo branco refl etor que rejeita 80% da luz solar recebida de maneira que o derretimento consome a maior parte da energia radiante que, do contrrio, aqueceria o oceano. Tenhamos em mente o fato de que, antes que o clima possa vol-tar ao seu estado pr-industrial, todo o gelo derretido dever se congelar novamente, e isso signifi ca reembolsar o dbito do calor latente do gelo. O cientista americano Wally Broecker alerta em seu novo livro, Fixing Climate [Consertando o clima], escrito com Robert Kunzig, sobre a mudana climtica global potencial-mente devastadora consequente de pequenas mudanas no clima rtico.

    Algumas partes do mundo podero escapar do pior. As regies setentrionais do Canad, Escandinvia e Sibria, que no forem inundadas pela subida do nvel do oceano, permanecero habi-tveis, o mesmo acontecendo com os osis nos continentes, principalmente nas regies montanhosas onde ainda ocorre pre-cipitao de chuva ou neve. Mas as excees mais importantes nessa perturbao de alcance planetrio sero as ilhas-naes do Japo, Tasmnia, Nova Zelndia, as Ilhas Britnicas e inmeras ilhas menores. Mesmo nos trpicos, o aquecimento global poder no mutilar comunidades como as das ilhas havaianas, Taiwan ou as Filipinas. As Ilhas Britnicas e a Nova Zelndia estaro entre as menos afetadas pelo aquecimento global. Sua posio ocenica temperada propensa a favorecer um clima capaz de sustentar agricultura abundante. Elas estaro entre os botes salva-vidas da humanidade. Para as naes que ocupam os continentes, tudo poder depender da densidade populacional. Os Estados Uni-dos e os Estados russos so singularmente afortunados por terem

    Gaia alerta final_miolo.indd 29Gaia alerta final_miolo.indd 29 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • 30 james lovelock

    densidades oito e trinta vezes menores que a do Reino Unido, respectivamente, e ambos contm vastas reas de territrios previa-mente congelados nas suas regies setentrionais. O subcontinente indiano, a China e o Sudeste Asitico, contudo, so densamente povoados, e naes como Bangladesh j esto ameaadas pelo nvel crescente do mar.

    O mundo humano das ilhas-botes salva-vidas e dos osis con-tinentais ser restringido pela limitao de alimento, energia e espao para viver. A tica de um bote salva-vidas em que o impe-rativo a sobrevivncia deve ser inteiramente diferente daquela de aconchegante autoindulgncia da ltima parte do sculo XX. No consigo deixar de me perguntar como iremos nos arranjar como decidiremos quem entre os desesperados permitiremos que suba a bordo. No Reino Unido, sobrou pouca terra para cultivo e para nos alimentar, mas ns e os refugiados poderemos, de qual-quer forma, no ser capazes de o fazer, porque a maioria absoluta de ns urbana, e praticamente ignora a vida alm da cidade, no entendendo que todas as nossas vidas dependem dele. As vises to ntegras e bem-intencionadas da Unio Europeia para salvar o planeta e promover o desenvolvimento sustentvel com o uso apenas de energia natural poderiam ter funcionado em 1800, quando havia apenas um bilho de seres humanos no mundo, mas agora no podemos nos dar a esse luxo. De fato, sua prpria maneira, a ideologia verde que agora parece inspirar o norte da Europa e os Estados Unidos poder, afi nal, ser to prejudicial ao meio ambiente real quanto o foram as ideologias humanistas anteriores. Se o governo do Reino Unido persistir em forar os esquemas dispendiosos e nada prticos da energia reno-vvel, em breve descobriremos que quase tudo o que resta da nossa regio rural ser usado para a produo de biocombustvel, geradores de biogs e parques elicos de escala industrial tudo isto no exato momento em que precisaremos de todo o campo

    Gaia alerta final_miolo.indd 30Gaia alerta final_miolo.indd 30 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • 31gaia: alerta final

    existente para o cultivo de alimentos. No se sinta culpado por optar por essa bobagem: um exame mais profundo revela que ela um elaborado embuste criado pelo interesse de algumas naes cujas economias se enriquecem a curto prazo pela venda de turbinas elicas, usinas de biocombustvel e outros equipa-mentos energticos supostamente verdes. No acredite por um momento sequer na conversa de vendedor de que isso salvar o planeta. A conversa mole dos vendedores tem a ver com o mundo que eles conhecem, o mundo urbano. A Terra real no precisa ser salva. Pde, ainda pode e sempre ser capaz de se salvar, e agora est comeando a faz-lo, mudando para um estado bem menos favorvel a ns e outros animais. O que as pessoas querem dizer com o apelo salvar o planeta como o conhecemos, e isso agora impossvel.

    Acho improvvel que um dano grave possa decorrer do uso em pequena escala de biocombustveis produzidos a partir de resduos agrcolas, leo de cozinha reciclado ou uma modesta colheita de algas ocenicas. Entretanto, os cultivos de cana-de-acar, beter-raba, milho, colza e outras plantas unicamente para a produo de combustvel quase certamente o ato mais danoso de todos. O problema com a espcie humana que, como disse William James, o homem nunca tem o bastante sem ter em demasia. Uma vez que o combustvel seja utilizado para manter nossos carros e caminhes em movimento, tentaremos cultiv-lo glo-balmente, com consequncias estarrecedoras. Para ter uma ideia da escala j envolvida, consideremos a legislao sobre energia promulgada em 2007 nos Estados Unidos, que prev cerca de 170 bilhes de dlares para refi narias de biocombustvel e infraestru-tura. Brent Erikson, da Organizao das Indstrias de Biotecnolo-gia, disse que estamos no ponto onde estvamos nos anos 1850, quando o querosene foi destilado pela primeira vez, e tambm que a nova lei exige a produo de 3,8 bilhes de litros de com-

    Gaia alerta final_miolo.indd 31Gaia alerta final_miolo.indd 31 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • 32 james lovelock

    bustvel etanol obtidos de gro de milho at 2022. Fica evidente pelas declaraes de Erikson, pelo que est acontecendo agora no Brasil e pelas intenes dos europeus, que os biocombust-veis no so uma indstria artesanal incua qualquer: so grandes empreendimentos, como de hbito. Quanto tempo levar at nos tornarmos dependentes de biocombustvel para mover nossos car-ros e caminhes?

    Os Estados Unidos entendem a ameaa do aquecimento glo-bal? Poucos duvidariam de que, no presente momento, os Esta-dos Unidos sejam a nao mais destacada em termos de cincia e inveno e no h maior prova disso que o computador que est sobre todas as nossas mesas e que, no mnimo, realiza o traba-lho outrora feito por um datilgrafo. Os Estados Unidos tiveram um papel importante em sua evoluo. Como se no bastasse, temos os pousos na Lua, a explorao de Marte e as frotas de sat-lites assombrosamente complexos, desde o telescpio Hubble at aqueles que lhe informam exatamente onde voc se encontra em qualquer lugar do mundo. Tudo isso e muito mais um tributo ao know-how americano e sua atitude dinmica. Mesmo a teoria de Gaia foi descoberta no frtil ambiente do Laboratrio de Pro-pulso a Jato da Califrnia, e o nico bilogo que a entendeu e continuou a desenvolv-la foi a destacada cientista americana Lynn Margulis. Obviamente, avanos em cincia e tecnologia emergiram na Europa na Idade Mdia e seu centro de excelncia se moveu entre as naes. Em tecnologia e teoria computacionais, Babbage, Ada Lovelace e o mais trgico entre os homens, Alan Turing, fi zeram, todos, o trabalho de base aqui, no Reino Uni-do. Turing foi aquele que, com seu grupo, construiu o primeiro aparelho computacional srio e o utilizou para decifrar o cdigo inquebrvel dos nossos inimigos de tempo de guerra. Mas isso foi naquela poca. Agora, os Estados Unidos so o centro da cincia.

    Gaia alerta final_miolo.indd 32Gaia alerta final_miolo.indd 32 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • 33gaia: alerta final

    Fao este elogio solene aos Estados Unidos da Amrica por es-tar perplexo: apesar de sua excelncia cientfi ca, eles, entre to-das as naes, foram os mais lentos em perceber a ameaa do aquecimento global. Duvido que essa ignorncia inesperada tenha alguma ligao com o fato de o uso per capita americano de combustvel fssil, uma fonte de dano climtico, ser maior que em qualquer outro lugar. Considero-a mais uma consequncia de a maioria dos cientistas americanos, sua maneira francamente bem-sucedida e reducionista, considerar a Terra algo que eles poderiam melhorar ou controlar; parece que eles a veem como nada mais que uma bola de rocha umedecida pelos oceanos e situada dentro de uma tnue esfera de ar. At parece que consi-deram Marte um planeta a ser desenvolvido quando a Terra no for mais habitvel. No veem a Terra como um planeta vivo que regula a si prprio.

    Eles no enxergam isso porque a Terra foi colonizada pela vida h pelo menos 3,5 bilhes de anos, sendo sua temperatura e a composio de sua superfcie defi nidas pelas preferncias de quaisquer que tenham sido os organismos que formavam a bios-fera. Isso foi verdadeiro no frio das eras glaciais, verdadeiro agora e ser verdadeiro no calor da era escaldante que em breve vir. claro que a fsica e a qumica do ar so importantes para com-preender o clima, mas o gerente dos climas e sempre foi Gaia, o sistema Terra do qual faz parte a biosfera. O erro desastroso da cincia do sculo XX foi partir do pressuposto de que tudo que precisamos saber sobre o clima pode se originar da criao de um modelo fsico e qumico do ar nos computadores cada vez mais potentes e, ento, supor que a biosfera simplesmente reage passivamente mudana, em vez de perceber que ela est ao volante. Por termos reconhecido a liderana dos Estados Unidos na cincia, a maior parte do mundo aceitou que sua concepo equivocada fosse verdadeira. Quase tarde demais, os cientistas

    Gaia alerta final_miolo.indd 33Gaia alerta final_miolo.indd 33 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • 34 james lovelock

    mais importantes do mundo inteiro esto percebendo que obser-vaes e medies reais refutam a concepo do sculo XX, que v a Terra como um recurso passivo. Pode ser boa o bastante para as previses do tempo, mas no para prever o clima das dcadas que esto por vir.

    A qualidade dos cientistas profi ssionais individuais nos Estados Unidos inigualvel e so eles que esto observando com exatido o ambiente global: os nomes de Ralph Keeling e Susan Solomon vm imediatamente minha mente, mas existem muitos outros no mesmo nvel na Nasa, na Administrao Nacional Ocenica e Atmosfrica (NOAA, National Oceanic and Atmospheric Administration) e nos departamentos cientfi cos universitrios. Os Estados Unidos tambm se redimem por meio das vigorosas mensagens de Al Gore, Jim Hansen e Steve Schneider. Suas palavras nos tornam todos cientes de quo srio o aquecimento global, mas, com exceo de E. O. Wilson, Stephen Schneider, Robert Charlson e outros poucos geocientistas, a maioria absoluta se retrair diante do difcil conceito de uma Terra viva. Nossas respostas e aes corretas para prevenir o pior ou, mais prova-velmente, escapar dele ainda exigem que a cincia abrace esse conceito e abandone as ideias estreis da corrente dominante das cincias da Terra e da vida. Uma mudana de viso est surgindo nos Estados Unidos e poder restabelecer sua liderana nessa parte vital da cincia.

    Talvez os cientistas devessem ser recrutados para servir, como foi feito na Segunda Guerra Mundial e com isso no quero dizer algo que lembre apenas o Projeto Manhattan. No Reino Unido, houve uma mudana tectnica nas atitudes de cientistas durante a Segunda Guerra Mundial. Bem me lembro de ser entrevistado para meu primeiro emprego como um recm-graduado em junho de 1941 no Instituto Nacional de Pesquisas Mdicas (National Institute for Medical Research), na poca em Hampstead. O entre-

    Gaia alerta final_miolo.indd 34Gaia alerta final_miolo.indd 34 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • 35gaia: alerta final

    vistador era o diretor do instituto, Sir Henry Dale; era tambm presidente da Royal Society e ganhador do Prmio Nobel. Era um homem gentil e de inteligncia fenomenal, com modos bem diretos. Algumas das primeiras palavras que ele me disse foram: Deixe de lado todos os pensamentos de fazer cincia aqui a cincia est suspensa enquanto durar a guerra; tudo que temos a oferecer so problemas ad hoc que precisam ser resolvidos hoje ou, melhor, ontem. Ele ento acrescentou: Depois da guerra, voltaremos cincia real, e a espera ter valido a pena. Obvia-mente, Sir Henry estava errado. A guerra foi um campo frtil para a cincia real quando a lenta e corriqueira pesquisa dos tempos de paz foi colocada de lado. Achei a cincia em tempo de guerra apaixonante e estimulante, e quando a paz chegou fi quei cons-ternado com o retorno da busca de engrandecimento pessoal e da perda do senso de deslumbramento que tanto desfi gura a cincia moderna. Lembremos que a penicilina foi inicialmente desenvolvida durante a guerra e todo o conceito de antibiticos nasceu ali. Lembremos tambm, ao usarmos o micro-ondas, que o magntron em seu centro foi inventado por Boot e Randal na dcada de 1940 para melhorar o radar em tempo de guerra. A pesquisa de radar levou diretamente radioastronomia e uma nova compreenso do universo. Na Alemanha, as presses para inveno em tempo de guerra levaram von Braun a desenvolver os foguetes que foram a base da cincia espacial, que agora nos permite aceitar com naturalidade os satlites que orbitam a Terra e considerar a explorao planetria por veculos robticos um luxo ao nosso alcance.

    Polticos do mundo desenvolvido reconhecem a mudana cli-mtica, mas suas polticas ainda esto no sculo XX, fundamen-tadas nos conselhos de lobistas dos ambientalistas e daqueles da comunidade empresarial, que enxergam um enorme lucro no curto prazo vindo de planos energticos subsidiados. Eles raramente pare-

    Gaia alerta final_miolo.indd 35Gaia alerta final_miolo.indd 35 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • 36 james lovelock

    cem agir sob as recomendaes de seus consultores cientfi cos. Em Bali, lderes polticos acordaram em cortar as emisses de carbono em 60% at 2050. De onde que eles tiraram a ideia de que pode-riam fazer uma poltica para um mundo com mais de quarenta anos de antecedncia? improvvel que polticas baseadas em extrapolao injustifi cvel e dogmas ambientais evitem a mudana climtica, e no deveramos sequer tentar implement-las. Em vez disso, nossos lderes deveriam se concentrar imediatamente na sus-tentao de suas prprias naes como um habitat vivel; poderiam ser inspirados a faz-lo no apenas por causa de um interesse nacio-nal egosta, mas como capites dos botes salva-vidas que suas naes poderiam vir a ser. No incio de 2008, o governo do Reino Unido fi nalmente anunciou um programa para a construo de novas centrais energticas nucleares. Certamente espero que essa no seja outra das falsas promessas que caracterizaram tantas das elo-quentes declaraes do governo Blair. Energia nuclear , de longe, o meio mais efetivo de reduzir a emisso de dixido de carbono, mas no esse o motivo mais importante para que rivalizemos com a Frana e passemos a produzir eletricidade a partir de urnio. O importante que as cidades exigem um fornecimento constante e econmico de eletricidade que at recentemente veio do carvo e do gs, mas esses recursos esto agora em declnio e no deixam nenhuma alternativa alm da energia nuclear. As megacidades que esto comeando a emergir demandaro enormes fl uxos de eletricidade e somente uma vigorosa e rpida expanso da energia nuclear poder satisfaz-los num futuro prximo. Essa necessidade se intensifi ca por termos pouca terra para cultivar alimentos e a agricultura intensiva exige energia abundante. Com o esgotamento do petrleo, precisaremos sintetizar combustvel para a maquinaria mvel de construo, transporte e agricultura. No algo difcil de fazer a partir do carvo ou da energia nuclear, mas precisamos comear a nos preparar para isso agora. Poderemos at ter de con-

    Gaia alerta final_miolo.indd 36Gaia alerta final_miolo.indd 36 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • 37gaia: alerta final

    siderar a sntese direta de alimento a partir de dixido de carbono, nitrognio, gua e cultura de clulas.

    Haver um dilvio de desinformao antienergia nuclear por parte das empresas de energia cuja lucratividade ser ameaada e at de naes que vero seu poder e infl uncia diminudos. No acredite em mentiras como aquela que diz que a construo de uma nova fonte de energia nuclear leva de dez a quinze anos. Os franceses precisam de menos de cinco anos para tal e no h nenhum motivo pelo qual deveramos levar mais, se evitarmos o tempo excessivo gasto nas agncias de planejamento, nas salas de tribunal e em audincias pblicas. Espero que o movimento verde e seus advogados no mantenham a equivocada oposio energia nuclear. Boa parte dessa oposio irracional e fun-damentada numa concatenao insustentvel de erros e desin-formaes amplifi cada pela mdia. Seria bom se jornalistas e editores moderassem o desejo de contar uma histria apavorante com a realidade de que, sem um amplo suprimento de energia nuclear, a vida em nossas ilhas poder, em uma ou duas dcadas, declinar a um estado de escassez. Por terem colocado a huma-nidade em primeiro lugar, e negligenciado Gaia, so muitos os verdes que plantaram as sementes de sua prpria destruio e, se persistirem, tambm a nossa; para mitigar o erro, eles poderiam desistir da ttica que tem como fi m retardar a energia nuclear. Mais importante, eles estariam ento ajudando a impulsionar o bote salva-vidas e no sabotando, como agora, o motor.

    absurdo pensar que ns, no Reino Unido, podemos alterar a resposta da Terra a nosso favor pelo uso de energia elica ou voltaica solar. Um parque elico de vinte turbinas de 1 megawatt exige mais de 10 mil toneladas de concreto. Seriam necessrios duzentos desses parques elicos cobrindo uma rea do tamanho do Parque Nacional de Dartmoor, que tem cerca de 950 quil-metros quadrados, para se equiparar ao rendimento constante de

    Gaia alerta final_miolo.indd 37Gaia alerta final_miolo.indd 37 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • 38 james lovelock

    energia de uma nica central energtica nuclear ou de carvo. Mais absurdo ainda: seria necessrio construir uma central ener-gtica nuclear ou de carvo totalmente funcional para cada um desses monstruosos parques elicos a fi m de alimentar as turbinas durante 75% do tempo em que o vento fosse demasiado alto ou baixo. Como se isso no bastasse para condenar a energia elica, a construo de um parque elico de 1 gigawatt usaria uma quanti-dade de concreto de 2 milhes de toneladas, sufi ciente para cons-truir uma cidade para 100 mil pessoas viverem em 30 mil lares; a fabricao e o emprego dessa quantidade de concreto lanariam cerca de 1 milho de toneladas de dixido de carbono no ar. Para sobrevivermos como nao civilizada, nossas cidades precisam de um abastecimento seguro, garantido e constante de eletricidade que somente o carvo, o gs ou a energia nuclear podem propor-cionar. E somente com a energia nuclear poderemos ter a garantia de um suprimento constante de combustvel. J vimos quo vulne-rveis so os suprimentos de gs com relao duradoura integri-dade dos dutos, talvez de 1,6 mil quilmetros de comprimento, e agressiva poltica dos autocratas. O carvo caro no Reino Unido e as importaes no so garantidas. Parques elicos so absoluta-mente inadequados para o Reino Unido como fonte de energia e, como j sugeri, pouco podem fazer para impedir o aquecimento global, mesmo quando usados numa escala global; alm disso, a experincia na Europa Ocidental mostra que so fontes dispen-diosas e inefi cazes de eletricidade. Voc em breve descobrir isso quando as contas e impostos sobre eletricidade aumentarem para pagar a energia renovvel de que no precisamos. Seu dinheiro prover os lucros fceis a ser sacados do escoadouro dos subsdios. Essas contas nos so impostas para que polticos possam parecer verdes e bons, e algumas naes europeias enriqueam. No fazem nada pela Terra e s contribuiro para aumentar o estresse de nossa ilha-nao e, talvez, lev-la ao colapso fi nal.

    Gaia alerta final_miolo.indd 38Gaia alerta final_miolo.indd 38 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • 39gaia: alerta final

    A resposta mais frequente dos meus amigos verdes infl exvel mensagem do meu ltimo livro foi: Voc no pode dizer coi-sas assim. No deixa espao para nenhuma esperana. Parece ter sido uma boa crtica, que ajudou a esclarecer minha mente e me permitiu entender por que dizem que mensageiros tm vida curta. Percebi que tinha dito muito sobre a catstrofe iminente, mas quase nada sobre como poderamos tentar garantir nossa pre-sena duradoura na Terra, dando aos nossos descendentes uma chance no mundo quente que em breve poder chegar. Somos a elite inteligente entre a vida animal na Terra e, quaisquer que sejam nossos erros, Gaia precisa de ns.

    Essa declarao pode parecer estranha depois de tudo que eu disse sobre o modo como os seres humanos do sculo XX tor-naram-se quase um organismo patolgico planetrio. Mas Gaia levou 3,5 bilhes de anos para desenvolver um animal capaz de pensar e comunicar os prprios pensamentos. Se formos extintos, ela ter poucas chances de desenvolver outro. Aprofundarei esse pensamento mais adiante.

    Quando sou advertido de que meu pessimismo desestimula aqueles que melhorariam sua pegada de carbono ou fariam bons trabalhos como plantar rvores, lamento que eu considere que tais tentativas so, na melhor das hipteses, bobagem romntica, ou, na pior, hipocrisia. Hoje existem agncias que permitem que os passageiros areos plantem rvores para compensar o dixido de carbono que seu avio adiciona ao ar sobrecarregado. Tm a mesma funo das indulgncias outrora vendidas pela Igreja Catlica aos pecadores ricos para compensar o tempo que de outra forma passariam no purgatrio. Trinta anos atrs, fui insen-sato e plantei 20 mil rvores, na esperana de restituir natureza a propriedade rural que tinha comprado. Percebo agora que foi um erro: deveria ter deixado a terra intocada e permitido que emer-gisse um ecossistema, uma fl oresta natural, repleta de vida biodi-

    Gaia alerta final_miolo.indd 39Gaia alerta final_miolo.indd 39 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • 40 james lovelock

    versa e abundante, no prprio ritmo de Gaia. Em vez de uma mera plantao, uma fl oresta assim poderia evoluir, ou morrer se preciso, medida que o clima mudasse. Plantar uma rvore no produz um ecossistema da mesma forma que colocar um fgado numa jarra com sangue e nutrientes no produz um homem.

    Espero que o timo livro Os senhores do clima, de Tim Flannery, e meu ltimo livro, A vingana de Gaia, tenham alcanado parte de seu propsito. Ambos pretenderam funcionar como alertas, como aquele grito ouvido no passado pelos donos de pub: lti-mos pedidos. Est na hora, cavalheiros! um aviso de que, em breve, as portas se fechariam e que poderamos ser lanados s condies climticas do lado de fora. Espero que um nmero sufi ciente de ns esteja agora ciente de que o mundo exuberante e confortvel que conhecemos no passado foi embora para sem-pre. Mas temo que continuamos a sonhar e, em vez de despertar, inserimos o som do despertador dentro de nossos sonhos.

    Talvez, por sermos to adaptveis, no estejamos cientes da velocidade com que o mundo est mudando. Se a temperatura mdia no Reino Unido em janeiro for 7C, temos a sensao de frio a maior parte do tempo e nos agasalhamos nas manhs gela-das quando sopra um deprimente vento noroeste. Resmungamos: onde est o aquecimento global agora? No vero, a mdia de 20C em julho e desfrutamos uma semana com temperaturas mximas de 30C, mas grunhimos se cair a 15C por um mesmo perodo. Ainda assim, h apenas vinte anos, essas temperaturas de inverno e de vero teriam sido registradas como anormalmente quentes para essas pocas do ano. A precipitao pluvial nos con-dados orientais do Reino Unido sempre foi baixa, na faixa de 500 milmetros por ano, mas a zona rural sempre foi exuberante e verde, porque permanecia fresca durante o vero. Em compara-o, o Arizona, que tem uma precipitao pluviomtrica seme-lhante, quase inteiramente cerrado e deserto simplesmente por

    Gaia alerta final_miolo.indd 40Gaia alerta final_miolo.indd 40 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • 41gaia: alerta final

    ser bem mais quente e pelo fato de a chuva que cai secar intei-ramente ou escorrer para dentro dos canais antes que as plantas possam aproveit-la. Nosso condado mais ao sudeste, Kent, j est com escassez crescente de gua, e o sul da Europa agora quase um deserto. A adaptao, como animais individuais, no to difcil: quando uma tribo muda das regies temperadas para as tropicais, leva apenas algumas geraes para que os indivduos se tornem mais escuros medida que a seleo elimina os de pele clara. Tambm assim com todos ns: nosso mundo mudou para sempre, e teremos de nos adaptar a muito mais que a mudana climtica. Mesmo durante meu tempo de vida, o mundo enco-lheu em relao quele que era bastante vasto para fazer da explorao uma aventura e inclua muitos lugares distantes onde ningum tinha jamais caminhado. Agora, tornou-se quase uma cidade interminvel, encravada numa agricultura intensiva, mas domesticada e previsvel. Em breve, poder reverter novamente a uma selva. Para sobreviver nesse novo mundo, precisamos de uma fi losofi a Gaiana e precisamos nos preparar para combater um chefe militar brbaro disposto a nos capturar e a se apoderar de nosso territrio.

    Exceto por uma eventual inundao desastrosa, onda de calor excessiva ou temperatura congelante inteiramente inesperada, o clima no Reino Unido mudar lenta e imperceptivelmente no incio. Pessoas em cidades como Londres esquecero que, mesmo nos dias de bonana no muito distantes, o ar-condicionado quase nunca era necessrio no vero, enquanto meu colega Gari Owen me lembra que Londres em 2006 usou mais energia para esfriar que para aquecer. Em curto prazo, no provvel que acontea aqui algo muito exagerado com o clima, algo que instigasse uma rebelio. O que poderia faz-lo so as consequncias desastrosas da elevao do nvel do mar, levando destruio de uma grande cidade ou ao colapso do abastecimento de alimentos ou eletrici-

    Gaia alerta final_miolo.indd 41Gaia alerta final_miolo.indd 41 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • 42 james lovelock

    dade. Esses perigos sero agravados pelo fl uxo sempre crescente de refugiados climticos, ao qual se somar o fl uxo de repatriados que deixaram o Reino Unido por aquilo que imaginaram que seria uma vida agradvel na Europa. Os perigos mais graves no provm da mudana climtica em si, mas indiretamente da fome, disputa por espao e recursos e guerra tribal.

    Em um pequeno grau, a difcil situao dos britnicos em 1940 lembra o estado do mundo civilizado agora. Naquela poca, tnhamos quase uma dcada da crena bem-intencionada, mas inteiramente equivocada, de que a paz era tudo o que importava. Os seguidores dos lobistas da paz dos anos 1930 eram pareci-dos com os movimentos verdes agora; as intenes eram mais que boas, mas inteiramente imprprias para a guerra que estava prestes a comear. A falha fundamental dos lobistas verdes de agora se revela no prprio nome Greenpeace; por aglutinarem o humanismo dos movimentos pela paz com o ambientalismo, eles inconscientemente antropomorfi zam Gaia. Est na hora de despertar e perceber que Gaia no nenhuma me acolhedora que acalenta os seres humanos e que pode ser aplacada por ges-tos como comrcio de carbono ou desenvolvimento sustentvel. Gaia, mesmo que faamos parte dela, sempre dita os termos da paz. Em maio de 1940, despertamos para descobrir, encarando-nos do outro lado do canal da Mancha, uma fora continental inteiramente hostil prestes a nos invadir. Estvamos sozinhos, sem nenhum aliado efetivo, mas tivemos a sorte de ter um novo lder, Winston Churchill, cujas palavras comoventes sacudiram a nao inteira de sua letargia: Nada tenho a oferecer, seno sangue, trabalho duro, lgrimas e suor. Precisamos de um outro Churchill agora, que nos tire do pensamento insistente, acomo-dado e consensual de fi ns do sculo XX e una a nao num es-foro resoluto de travar uma guerra difcil. Precisamos de um lder que instigue todos ns, mas especialmente atice aqueles

    Gaia alerta final_miolo.indd 42Gaia alerta final_miolo.indd 42 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • 43gaia: alerta final

    jovens ativistas verdes que to bravamente protestaram contra todas as formas de profanao dos campos. Onde esto os bata-lhes de Terra acima de tudo e para onde foram Swampy* e seus amigos?

    O que mais me comoveu quando escrevia este livro o pensa-mento de que ns, seres humanos, somos importantes em termos vitais como parte de Gaia, no atravs do que somos agora, mas pelo nosso potencial como espcie para sermos os progenitores de um animal muito melhor. Gostemos ou no, somos agora seu corao e mente; mas, para continuarmos a melhorar esse papel, teremos de garantir nossa sobrevivncia como espcie civilizada e no retroceder a um aglomerado de tribos guerreiras, que foi um estgio de nossa histria evolutiva. Fico emocionado com a ideia de que o sistema Terra, Gaia, tem mais de um quarto da idade do universo e que tudo isso para que evolusse uma espcie capaz de pensar, comunicar e guardar pensamentos e experincias. Como parte de Gaia, nossa presena comea a tornar o planeta mais consciente. Deveramos estar orgulhosos de poder fazer parte desse gigantesco passo, aquele que poder ajudar Gaia a sobrevi-ver enquanto o Sol continua seu lento mas inevitvel aumento da produo de calor, fazendo do sistema solar um ambiente futuro cada vez mais hostil. Temos de fazer tudo que pudermos, e o Captulo 5 trata das ideias que agora circulam entre cientistas e engenheiros que poderiam reverter a mudana climtica. So, at agora, inexperientes, inseguros e possivelmente perigosos, um pouco como a medicina e cirurgia do sculo XIX. Se conseguir-mos manter a civilizao viva durante todo este sculo, talvez exista uma chance de que nossos descendentes algum dia sirvam

    * Pantaneiro, apelido de Daniel Hooper, um dos mais conhecidos ecoguer-reiros do Reino Unido. (N. do T.)

    Gaia alerta final_miolo.indd 43Gaia alerta final_miolo.indd 43 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

  • 44 james lovelock

    Gaia e a auxiliem na autorregulao delicadamente ajustada do clima e da composio do nosso planeta.

    Desfrutamos 12 mil anos de paz climtica desde a ltima mu-dana da era glacial para a interglacial. No demorar muito e poderemos nos defrontar com uma devastao de alcance pla-netrio pior at que uma guerra nuclear ilimitada entre superpo-tncias. A guerra climtica poderia matar quase todos ns e deixar os poucos sobreviventes com um padro de vida comparvel ao da Idade da Pedra. Mas em vrios lugares do mundo, inclusive no Reino Unido, temos uma chance de sobreviver e, at mesmo, de viver bem. Para que isso seja possvel teremos, neste momento, de deixar nossos botes salva-vidas em condies de enfrentar o mar. Mesmo que algum evento natural, como uma srie de grandes erupes vulcnicas ou um decrscimo da radiao solar, nos d uma trgua, ainda assim ter sido melhor gastar nosso dinheiro e nossos esforos tornando nossos pases autossufi cientes em alimentos e energia e, se quisermos nos tornar inteiramente urbanos, ento, na criao de cidades nas quais tenhamos orgulho em viver.

    Gaia alerta final_miolo.indd 44Gaia alerta final_miolo.indd 44 11/27/09 4:17:24 PM11/27/09 4:17:24 PM

    /ColorImageDict > /JPEG2000ColorACSImageDict > /JPEG2000ColorImageDict > /AntiAliasGrayImages false /CropGrayImages false /GrayImageMinResolution 260 /GrayImageMinResolutionPolicy /Warning /DownsampleGrayImages true /GrayImageDownsampleType /Bicubic /GrayImageResolution 300 /GrayImageDepth -1 /GrayImageMinDownsampleDepth 2 /GrayImageDownsampleThreshold 1.00000 /EncodeGrayImages true /GrayImageFilter /DCTEncode /AutoFilterGrayImages false /GrayImageAutoFilterStrategy /JPEG /GrayACSImageDict > /GrayImageDict > /JPEG2000GrayACSImageDict > /JPEG2000GrayImageDict > /AntiAliasMonoImages false /CropMonoImages false /MonoImageMinResolution 600 /MonoImageMinResolutionPolicy /Warning /DownsampleMonoImages true /MonoImageDownsampleType /Bicubic /MonoImageResolution 1200 /MonoImageDepth -1 /MonoImageDownsampleThreshold 1.50000 /EncodeMonoImages true /MonoImageFilter /CCITTFaxEncode /MonoImageDict > /AllowPSXObjects false /CheckCompliance [ /PDFX1a:2001 ] /PDFX1aCheck false /PDFX3Check false /PDFXCompliantPDFOnly true /PDFXNoTrimBoxError false /PDFXTrimBoxToMediaBoxOffset [ 70.87000 70.87000 70.87000 70.87000 ] /PDFXSetBleedBoxToMediaBox false /PDFXBleedBoxToTrimBoxOffset [ 14.17000 14.17000 14.17000 14.17000 ] /PDFXOutputIntentProfile (Euroscale Coated v2) /PDFXOutputConditionIdentifier (FOGRA1) /PDFXOutputCondition () /PDFXRegistryName (http://www.color.org) /PDFXTrapped /False

    /CreateJDFFile false /Description > /Namespace [ (Adobe) (Common) (1.0) ] /OtherNamespaces [ > > /FormElements true /GenerateStructure false /IncludeBookmarks false /IncludeHyperlinks false /IncludeInteractive false /IncludeLayers false /IncludeProfiles false /MarksOffset 9.921260 /MarksWeight 0.250000 /MultimediaHandling /UseObjectSettings /Namespace [ (Adobe) (CreativeSuite) (2.0) ] /PDFXOutputIntentProfileSelector /UseName /PageMarksFile /RomanDefault /PreserveEditing true /UntaggedCMYKHandling /LeaveUntagged /UntaggedRGBHandling /UseDocumentProfile /UseDocumentBleed false >> ] /SyntheticBoldness 1.000000>> setdistillerparams> setpagedevice