Teoria Quântica

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395 De Louis de Broglie a Erwin Schrödinger: uma comparação Roberto de Andrade Martins 1 Introdução O trabalho de Erwin Schrödinger sobre mecânica ondulatória começou no final de 1925, como consequência do seu estudo da tese de De Broglie de 1924. Sabe-se que a equação de onda de Schrödinger pode ser deduzida dos resultados de De Broglie, no limite clássico. Sob este ponto de vista, poderíamos pensar que a teoria de Schrödinger seria um mero desenvolvimento da teoria de De Broglie. Mas podemos realmente aceitar essa conclusão? Este artigo compara algumas das características das teorias de De Broglie e Schrödinger. Sabe-se que, em suas primeiras tentativas de formular uma teo- ria quântica do átomo, Schrödinger tentou desenvolver uma teoria relativística, seguindo as ideias de De Broglie, e apenas depois começou a procurar uma equa- ção de onda não-relativística. É muito fácil deduzir uma equação de onda para as ondas de fase de De Broglie, tanto no caso relativístico, quanto no caso não- relativístico. Na sua tentativa relativística, Schrödinger realmente seguiu uma abordagem simples, usando a teoria de De Broglie. No entanto, ao desenvolver a formulação não-relativística, ele tentou produzir uma dedução independente da equação de onda, seguindo diversas linhas diferentes de argumentação, em vez de utilizar os resultados de De Broglie no limite clássico. Primeiramente será feita uma breve apresentação das ideias de De Broglie e sua influência histórica sobre Schrödinger; depois, serão discutidas as primei- ras deduções da equação de onda, enfatizando as diferenças e semelhanças entre

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    De Louis de Broglie a Erwin Schrdinger: uma comparao

    Roberto de Andrade Martins

    1 Introduo

    O trabalho de Erwin Schrdinger sobre mecnica ondulatria comeou no final de 1925, como consequncia do seu estudo da tese de De Broglie de 1924. Sabe-se que a equao de onda de Schrdinger pode ser deduzida dos resultados de De Broglie, no limite clssico. Sob este ponto de vista, poderamos pensar que a teoria de Schrdinger seria um mero desenvolvimento da teoria de De Broglie. Mas podemos realmente aceitar essa concluso?

    Este artigo compara algumas das caractersticas das teorias de De Broglie e Schrdinger. Sabe-se que, em suas primeiras tentativas de formular uma teo-ria quntica do tomo, Schrdinger tentou desenvolver uma teoria relativstica, seguindo as ideias de De Broglie, e apenas depois comeou a procurar uma equa-o de onda no-relativstica. muito fcil deduzir uma equao de onda para as ondas de fase de De Broglie, tanto no caso relativstico, quanto no caso no-relativstico. Na sua tentativa relativstica, Schrdinger realmente seguiu uma abordagem simples, usando a teoria de De Broglie. No entanto, ao desenvolver a formulao no-relativstica, ele tentou produzir uma deduo independente da equao de onda, seguindo diversas linhas diferentes de argumentao, em vez de utilizar os resultados de De Broglie no limite clssico.

    Primeiramente ser feita uma breve apresentao das ideias de De Broglie e sua influncia histrica sobre Schrdinger; depois, sero discutidas as primei-ras dedues da equao de onda, enfatizando as diferenas e semelhanas entre

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    as duas teorias. Ser mostrado que, embora seja formalmente possvel deduzir uma equao de onda a partir da teoria de De Broglie, existe uma incompati-bilidade entre as duas teorias: seria impossvel dar qualquer sentido s ideias de De Broglie, no caso de um corpo rgido girando, por exemplo. A abordagem de Schrdinger era, neste sentido, independente e incompatvel com a teoria de De Broglie, e podia ser aplicada facilmente a muitas situaes fsicas diferentes.

    2 A teoria de De Broglie

    Louis de Broglie apresentou sua teoria primeiramente sob a forma de uma srie de artigos publicados em 1923 e 1924 (DE BROGLIE, 1923a, 1923b, 1923c, 1923d, 1924a, 1924b, 1924c) e depois em sua tese de doutoramento (DE BROGLIE, 1924d, 1925).1 Ele tomou como ponto de partida a ideia de que todas as partcu-las (eltrons, quanta de luz etc.) sofriam algum processo peridico, obedecendo s equaes de energia da relatividade e da teoria quntica, E=h and E=mc, e usou a relatividade especial como principal ferramenta terica no seu trabalho. (DE BROGLIE, 1923a)

    No referencial de repouso da partcula, devemos ter E0=m0c=h0 e em rela-o a outros referenciais, a equao correta seria:

    E=mc=h (1)

    No entanto, a massa aumenta com a velocidade, e a frequncia diminui com a velocidade. Portanto, parecia que o uso de E=mc=h levava a uma contradi-o. (DE BROGLIE, 1923a, p. 507-508) Depois de lidar com essa dificuldade por algum tempo, De Broglie reconheceu que sua teoria s poderia obedecer teoria da relatividade especial se ele concebesse todos os quanta como sistema espacial-mente extensos, em vez de partculas pontuais.

    Na sua tese, ele apresentou esta ideia fundamental de um modo muito claro. De acordo com o eletromagnetismo de Maxwell, a energia de qualquer carga (incluindo um eltron) est espalhada no espao sua volta, embora haja uma forte concentrao de energia em torno do centro. Seguindo esta ideia, De Broglie considerou o eltron como um sistema infinito. (DE BROGLIE, 1925, p. 33-34)

    1 Uma anlise detalhada do trabalho de Louis de Broglie pode ser encontrada na dissertao de mestrado de Pedro Srgio Rosa (2004). Disponvel em: .

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    No referencial de repouso de um eltron, sups que toda sua estrutura (infi-nita) estava pulsando em sincronia, com uma frequncia dada por h0=m0c. Esse fenmeno peridico pode ser descrito por uma equao como esta:

    (2)

    Em relao a outros referenciais, a sincronia deste fenmeno peridico seria perdida, claro, devido a efeitos relativistas2. A transformao de Lorentz do tempo :

    (3)

    onde =v/c a velocidade da partcula dividida pela velocidade da luz no vcuo.

    Aplicando a transformao de Lorentz do tempo (3) a esta pulsao (2), De Broglie mostrou facilmente que a oscilao se transformava em uma onda, em relao a outros referenciais, e obteve a velocidade, a frequncia e as outras pro-priedades da onda . Substituindo t0 em (2) por (3), obtemos:

    (4)

    A frmula geral de uma onda monocromtica plana movendo-se na direo do eixo x :

    (5)

    2 Pode-se ver uma apresentao didtica do argumento de Louis de Broglie em Martins (2008, p. 160-170).

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    A comparao das equaes (4) e (5) mostra que a pulsao uniforme do el-tron (no referencial prprio) se transforma em uma onda plana monocromtica (a onda de fase), em relao a outros referenciais. Identificando as quantidades correspondentes nessas duas equaes, obtm-se a frequncia e a velocidade V da onda associada ao eltron:

    (6)

    (7)

    O eltron deve ter alguma posio definida, portanto, a onda uniforme infi-nita no pode descrev-lo completamente. O eltron livre em movimento seria equivalente a um sistema extenso, com uma forte concentrao de energia em torno de um centro, viajando a uma velocidade v e, ao mesmo tempo, atravessado por uma onda monocromtica de velocidade V=c/v e frequncia =mc/h.

    Uma onda monocromtica modulada matematicamente equivalente a um grupo de ondas, mas conceitualmente a ideia de De Broglie muito diferente, porque no referencial prprio ela tem uma nica frequncia bem definida, e no deveria se espalhar medida que se desloca.

    3 Mecnica e ptica

    De Broglie apresentou sua teoria sob diferentes formas. Em algumas de suas publicaes ele enfatizou as semelhanas entre a mecnica e a ptica. (DE BROGLIE, 1924a, 1925, p. 46-53) Na teoria da relatividade especial, o princpio da ao mnima de Maupertuis pode ser escrito como:

    (8)

    onde o smbolo Ji representa as componentes do quadrivetor de momento-energia3.

    3 Ver Martins (2008, p. 164-166).

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    Por outro lado, a verso relativstica do princpio de Fermat pode ser escrita como:

    (9)

    onde o smbolo Oi representa as componentes do quadrivetor onda de universo, com componentes correspondendo s projees do nmero de onda e frequn-cia da onda.

    A analogia entre os dois princpios (Fermat e Maupertuis) e a relao E=h que vlida para a quarta componente dos quadrivetores permitiu, ento, a De Broglie estabelecer uma relao geral em quatro dimenses:

    (10)

    Ela contm tanto E=h quanto p=h/ como casos especiais da equao rela-tivstica geral. (BROWN; MARTINS, 1984)

    4 Campos eletromagnticos

    Se o eltron estiver se movendo em um campo eletromagntico, sua energia total W (incluindo a energia potencial e) permanece constante (DE BROGLIE, 1925, p. 60). De Broglie sups que a frequncia do eltron seria proporcional energia total W e, portanto, tambm seria constante.

    (11)

    No entanto, a velocidade V das ondas e o seu comprimento de onda muda-riam de ponto para ponto, de acordo com uma equao muito complexa (DE BROGLIE, 1925, p. 60):

    (12)

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    Nesta equao, o momento do eltron contm componentes proporcionais ao potencial vetor A, seguindo a teoria de Maxwell. (BORK, 1967)

    De Broglie no tentou aplicar (11) e (12) a nenhuma situao especfica. O nico caso de partcula em um campo que ele foi capaz de tratar foi o tomo de hidrognio. (DE BROGLIE, 1923a, p. 509-510) Ele sups que o centro do eltron obedecia mecnica clssica e seguia uma trajetria de Kepler. Assumiu que a onda seguiria a mesma trajetria clssica. Supondo que a onda estivesse sempre em fase com as oscilaes do eltron (e no supondo que a onda fosse estacion-ria, como apresentado nos livros didticos), ele provou que a regra de quantizao de Bohr para o momento angular, L=pr=nh/2pi, era uma consequncia de sua prpria teoria. (DE BROGLIE, 1925, p. 62-65)

    A nica previso nova da teoria de De Broglie foi a difrao de eltrons (DE BROGLIE, 1923b, p. 549, 1925, p. 104) e ela foi confirmada rapidamente. Experimentos com eltrons de alta energia provaram, depois de poucos anos, que o comprimento de onda da onda associada ao eltron obedecia equao relati-vstica, conforme previsto por De Broglie. (BROWN; MARTINS, 1984)

    5 O papel intermedirio de Einstein

    Costuma-se dizer que a tese de De Broglie s foi aceita pela banca por causa da influncia de Einstein sobre Paul Langevin (MEHRA; RECHENBERG, 1982-1987, v. 1-2, p. 604). Esta verso, baseada no testemunho do prprio De Broglie, no correta.

    Langevin contou a Einstein sobre o trabalho de De Broglie em julho de 1924 e no dia 27 do mesmo ms pediu a De Broglie que enviasse uma cpia de sua tese (ainda no defendida) a Einstein. (DARRIGOL, 1993, p. 355; WHEATON, 1983, p. 297) No entanto, Einstein no reagiu imediatamente. A tese de De Broglie foi apresentada e aprovada no dia 25 de novembro do mesmo ano. Somente no dia 16 de dezembro, Einstein escreveu cartas para Langevin e para Lorentz, elo-giando o trabalho de Louis de Broglie: Ele ergueu uma ponta do grande vu. (DARRIGOL, 1993, p. 355; MEHRA; RECHENBERG, 1982-1987, v. 1-2, p. 604) No dia 13 de janeiro, Langevin escreveu uma carta para De Broglie contando-lhe sobre a opinio favorvel de Einstein. (WHEATON, 1983, p. 297)

    Nessa poca, Einstein estava pesquisando a teoria quntica dos gases (atual-mente chamada estatstica de Bose-Einstein). Em um artigo que publicou em fevereiro de 1925, ele comentou que o trabalho de De Broglie poderia ajudar a esclarecer o significado dessa nova teoria. (JAMMER, 1966, p. 249)

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    Erwin Schrdinger leu esses trabalhos de Einstein e trocaram cartas sobre o assunto. (HANLE, 1977, 1979) Estimulado pela referncia de Einstein ao trabalho de De Broglie, Schrdinger obteve uma cpia da tese (que havia sido publicada) e a leu em outubro de 1925.4 Em novembro do mesmo ano, Schrdinger escreveu cartas para Einstein e Land que mostravam que ele estava muito excitado com as ideias de De Broglie. (MOORE, 1989, p. 192) Ele aplicou essa teoria aos gases em um artigo que completou, em dezembro de 1925. (REGT, 1997, p. 474) No entanto, ele considerou alguns aspectos da teoria de De Broglie difceis de enten-der ou de aceitar especialmente a teoria do tomo de hidrognio.

    No dia 23 de novembro de 1925, Schrdinger apresentou um seminrio sobre as ideias de De Broglie. (MOORE, 1989, p. 192). Na ocasio, Peter Debye comentou que a abordagem de De Broglie era infantil e que era necessrio usar uma equao de onda para descrever uma onda em trs dimenses. (KRAGH, 1982, p. 157) Schrdinger concordou que as ondas deviam ser tratadas de um outro modo, no caso do tomo de hidrognio. Ele tambm notou que ondas de De Broglie em rbitas keplerianas prximas produziriam uma frente de onda distorcida.

    Em dezembro de 1925, Schrdinger comeou a tentar produzir uma equa-o de onda a partir da teoria de De Broglie e aplic-la ao tomo de hidrognio. Em vez de ondas seguindo rbitas de Kepler, ele comeou a pensar sobre ondas estacionrias em trs dimenses, anlogas a ondas sonoras em cavidades. A quan-tizao surgiria como uma consequncia do espectro discreto de frequncias das ondas estacionrias no tomo.

    6 A equao de onda relativstica de Schrdinger

    Alguns passos decisivos foram dados na poca de Natal de 1925, durante uma estada de Schrdinger em Villa Herwig, nos Alpes, onde ele passou duas sema-nas com uma amante misteriosa. (MOORE, 1989, p. 194-195) Primeiramente, Schrdinger tentou produzir uma equao de onda relativstica, seguindo a abor-dagem de De Broglie. (KRAGH, 1982, p. 175-178) Esta deduo no foi publicada, mas foi encontrada em um manuscrito escrito provavelmente no final de 1925. (MEHRA; RECHENBERG, 2001, v. 5.1, p. 423-430) Vamos apresentar aqui uma

    4 De acordo com Heitler (1961, p. 222), muitos outros fsicos estudaram De Broglie pela mesma razo, mas ningum exceto Schrdinger levou a srio a ideia de ondas associadas a el-trons. Ver a anlise de Raman e Forman (1969) sobre a atitude peculiar de Schrdinger em relao ao trabalho de De Broglie.

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    reconstruo dessa primeira deduo da equao de onda por Schrdinger. (KRAGH, 1982, p. 180, 1984)

    A equao de onda geral, vlida tanto na fsica clssica quanto na relativs-tica, :

    (13)

    Para qualquer onda monocromtica =V/, portanto, a equao de onda geral tambm pode ser escrita como uma funo da velocidade da onda e de sua frequncia:

    (14)

    Na teoria de De Broglie, V = E/p onde E a energia total do eltron:

    (15)

    Se no for necessrio levar em conta campos magnticos, o momento p ser:

    (16)

    Como a energia total do eltron igual a h (eq. 15), possvel obter v=c como funo de . Substituindo esse resultado nas equaes de E e de p, pode-se computar a velocidade da onda V=E/p como funo da frequncia . Depois de algumas manipulaes, a equao de onda geral (13) se torna:

    (17)

    Esta uma das formas da chamada equao de Klein-Gordon.

    Note-se que a deduo de Schrdinger desta equao de onda relativs-tica depende apenas de resultados que j haviam sido obtidos por De Broglie. Realmente, o prprio De Broglie chegou a este resultado, de forma independente. (KRAGH, 1984, p. 1025)

    Schrdinger aplicou esta equao de onda ao tomo de hidrognio e obteve resultados errados para os nveis de energia. (JAMMER, 1966, p. 257-258;

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    MEHRA; RECHENBERG, 1982-1987, v. 5, p. 367-368) Depois de se debater por pouco tempo com uma teoria relativstica, ele se voltou para uma abordagem no-relativstica.

    7 A equao de onda clssica

    Obter uma equao de onda no caso da aproximao clssica muito mais fcil do que no caso relativstico e diversos livros-texto apresentam tal tipo de deduo. Se aceitarmos a relao =h/p entre momento e comprimento de onda e aplicarmos a dinmica clssica, obteremos:

    (18)

    Na mecnica clssica, a energia cintica K :

    (19)

    Portanto, o quadrado do comprimento de onda, no limite clssico, :

    (20)

    A equao de onda geral (clssica e relativstica) :

    (21)

    Substituindo em (21) pela expresso de (2), obtemos:

    (22)

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    Esta a chamada equao de Schrdinger independente do tempo. Portanto, usando apenas a mecnica clssica e a relao de De Broglie =h/p possvel deduzir a equao de onda de Schrdinger. Note que esta deduo muito seme-lhante que Schrdinger usou no caso relativstico, embora mais simples. No entanto, Schrdinger no utilizou essa deduo to simples. Como ele apresentou a equao de onda em seus primeiros artigos? 5

    8 A equao de onda no primeiro artigo de Schrdinger

    No primeiro artigo que publicou em 1926, Schrdinger apresentou a equao de onda como uma consequncia da abordagem de Hamilton-Jacobi, de um modo bastante abstrato .(SCHRDINGER, 1926a, p. 361-362, 1929, p. 1-2) Ele introdu-ziu uma funo desconhecida e afirmou que a ao S poderia ser escrita como:

    S = K log (23)

    Portanto, a funo hamiltoniana H poderia ser escrita como:

    (24)

    Schrdinger, ento, afirmou que no caso no-relativstico essa equao sem-pre pode ser transformada de modo a se tornar uma forma quadrtica (de e de suas derivadas) igualada a zero (SCHRDINGER, 1926a, p. 361-362; 1929, p. 1). No caso do tomo de hidrognio (um campo coulombiano), ela se torna:

    (25)

    Esta simplesmente a equao clssica da conservao da energia p=2m(E-V), pois os trs primeiros termos correspondem ao quadrado do momento dividido por (K/), de acordo com (24).

    5 No discutirei aqui o caminho que Schrdinger seguiu para chegar sua equao de onda. Os trabalhos que ele publicou no apresentam suas ideias do modo como foram desenvolvidas. (KRAGH, 1982, p. 158) O que nos interessa aqui o modo pelo qual Schrdinger decidiu publicar seus resultados e qual poderia ter sido sua motivao para apresent-los exatamente desta forma.

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    Schrdinger (1926a, p. 362, 1929, p. 2), ento. afirmou: Agora procuramos uma funo tal que para qualquer variao arbitrria dela a integral da acima referida forma quadrtica, calculada sobre todo o espao de coordenadas, esta-cionria [...]. A equao correspondente :

    (26)

    A partir deste problema variacional, Schrdinger deduziu a equao de onda para o tomo de hidrognio:

    (27)

    Esta deduo apresentada no primeiro artigo de Schrdinger de 1926 com-pletamente sem sentido, j que uma funo no definida e (26) no um princpio variacional vlido na fsica clssica6. Sua nica justificao que a equao de onda leva aos nveis de energia corretos para o tomo de hidrognio, deduzidos cuidadosamente no restante desse mesmo artigo. (SCHRDINGEr, 1926a, p. 362-374, 1929, p. 2-10)

    10 A deduo no segundo artigo de Schrdinger

    O prprio Schrdinger no estava muito satisfeito com essa deduo do primeiro artigo e apresentou uma muito diferente, no seu segundo artigo de 1926 (SCHRDINGER, 1926b, 1929, p. 13-40), onde apresentou pela primeira vez a equao de onda genrica independente do tempo (m=1):

    (28)

    6 A primeira deduo publicada [...] era no apenas curiosamente formal, mas explicitamente crptica. No conjunto, esta deduo parece mal justificada, sua nica fundamentao sendo seu resultado [...]. (KRAGH, 1982, p. 158)

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    Apresentamos aqui uma reconstruo de sua deduo, enfatizando os seus pontos principais.

    A suposio fundamental de Schrdinger foi a equao de onda geral (cls-sica) nesta forma (SCHRDINGER, 1926b, p. 510; 1929, p. 27)7:

    (29)

    Schrdinger j havia obtido, no mesmo artigo (1926b, p. 494-498; 1929, p. 16-20), a equao para a velocidade da onda:

    (30)

    Ento, supondo que a funo de onda tenha a mesma forma que usual-mente possui na fsica clssica (SCHRDINGER, 1926b, p. 510, 1929, p. 27):

    (31)

    deduzimos:

    (32)

    Substituindo (32) e (30) em (29), obtm-se imediatamente a equao de onda de Schrdinger:

    (33)

    Como E=h, ela pode tambm ser escrita (SCHRDINGER, 1926b, p. 510; 1929, p. 27):

    (34)

    7 Em vez do smbolo usual para o operador laplaciano, empregado aqui, Schrdinger escreveu div grad.

  • 407De Louis de Broglie a Erwin Schrdinger: uma comparao

    Portanto, na deduo que apresentou no seu segundo artigo, as nicas suposi-es no-clssicas so E=h e a frmula para a velocidade u das ondas associadas ao eltron (30) que corresponde ao limite clssico da relao u=E/p de De Broglie.

    No entanto, Schrdinger no tomou a frmula de u do trabalho de De Broglie. Ele apresentou sua prpria deduo original e altamente abstrata dessa relao, usando a analogia entre os princpios de Huygens e Hamilton (SCHRDINGER, 1926b, p. 494-498, 1929, p. 16-20). Ele se referiu ao trabalho de De Broglie neste artigo, mas enfatizou que seus prprios resultados foram obtidos de um modo mais geral e de forma independente da teoria da relatividade. Depois de apresen-tar sua prpria deduo ele comentou:

    Encontramos aqui novamente um teorema para as ondas de fase do eltron, que o Sr. De Broglie tinha deduzido, referindo-se essencialmente teoria da relatividade, nessas belas pesquisas s quais devo a inspirao para meu tra-balho. Vemos que o teorema em questo de uma maior generalidade, e no surge apenas da teoria da relatividade, mas vlido para qualquer sistema conservativo da mec-nica comum. (SCHRDINGER, 1926b, p. 498, 1929, p. 20)

    Portanto, Schrdinger poderia ter utilizado o trabalho de De Broglie para deduzir a equao de onda no caso no-relativstico, mas ele no o fez. Utilizou uma frmula para a velocidade da onda associada ao eltron, que equivalente de De Broglie, mas apresentou uma nova deduo dessa relao aparentemente porque queria provar que ela era vlida, independentemente de consideraes relativsticas.

    11 As teorias de De Broglie e Schrdinger

    O cuidado que Schrdinger tomou em evitar fundamentar sobre o de De Broglie poderia, talvez, ser justificado da seguinte forma: primeiramente, ele havia tentado usar a abordagem relativstica e havia falhado; alm disso, a equa-o de onda que de fato levava a resultados corretos no o limite clssico da equao de onda relativstica. Portanto, era adequado apresentar uma deduo completamente independente da teoria relativstica de De Broglie, para assegurar que sua prpria teoria era bem fundamentada. Provavelmente, isso era parte de sua motivao. No entanto, h outros aspectos relevantes, pois h muitas diferen-as profundas entre as duas teorias.

    O trabalho de De Broglie estava fundamentado na relatividade especial e suas principais equaes s podiam ser deduzidas para eltrons em movimento uni-forme, j que ele tomou como ponto de partida a descrio da pulsao do eltron

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    extenso no seu referencial prprio. Sua ampliao para o caso do movimento acelerado exigia um novo modo de pensar e uma justificao diferente.

    De Broglie tentou de fato proporcionar uma base para sua teoria, no caso do movimento acelerado, usando a analogia entre os princpios de Maupertuis e Fermat que so vlidos apenas para partculas isoladas e para raios. Isso o levou a uma relao geral entre as propriedades ondulatrias e mecnicas do eltron, movendo-se em um campo eletromagntico. No entanto, o eltron de De Broglie ainda descrevia uma trajetria bem definida e a onda associada podia ser descrita por raios uma abordagem que s satisfatria em situaes correspondentes ptica geomtrica, mas inadequada nos casos de interferncia e difrao. Ele aplicou suas ideias com sucesso ao tomo de hidrognio, mas foi incapaz de estu-dar o oscilador harmnico e outros sistemas simples. O conceito de De Broglie sobre o eltron no podia ser aplicado de forma adequada aos casos em que as dimenses do sistema eram comparveis ao comprimento de onda. Era tambm difcil perceber como sua teoria poderia ser aplicada a um sistema com diversas partculas. Alm disso, sua teoria no teria significado para um slido rgido em rotao, por exemplo8.

    A abordagem de Schrdinger era muito mais geral do que a de De Broglie. Suas dedues no dependiam da teoria da relatividade e, portanto, ele podia atacar diretamente os casos de sistemas acelerados e em rotao. Alm disso, na deduo apresentada no seu segundo artigo de 1926, Schrdinger apresentou sua prpria teoria de modo muito geral (SCHRDINGER, 1926b, p. 490-491, 1929, p. 14), usando coordenadas generalizadas (abrindo assim a possibilidade de aplic-la rotao e outros tipos de movimento) e discutindo um sistema conser-vativo geral (ou seja, ele no restringiu seu tratamento a uma partcula isolada). Seu modo geral e abstrato de abordar o problema lhe permitia aplicar a equao de onda a qualquer sistema fsico.

    No seu segundo artigo, Schrdinger usou a analogia entre os princpios de Huygens e Hamilton (no entre Fermat e Maupertuis, como De Broglie fez) e assegurou, assim, que a relao poderia ser aplicada a casos nos quais as dimen-ses do sistema fossem comparveis ao comprimento de onda. Por essas razes, apenas a teoria de Schrdinger podia ser aplicada diretamente a ondas associadas a um ou mais eltrons em trs dimenses (sistemas atmicos), ao oscilador har-mnico e a slidos em rotao, como ele de fato o fez. (SCHRDINGER, 1926b)

    8 A anlise do slido rgido quntico em rotao era muito importante na teoria dos calo-res especficos de gases poliatmicos. Este problema foi abordado por Schrdinger em seu segundo artigo de 1926.

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    12 Concluses

    A equao de onda de Schrdinger pode ser deduzida dos resultados de De Broglie, no limite clssico. No entanto, a sua teoria no uma aplicao ou desen-volvimento da teoria de De Broglie.

    A teoria de Schrdinger pode ser aplicada a casos nos quais a de De Broglie no pode ser aplicada, como movimento acelerado e rotao, e para partculas em situaes em que o comprimento de onda comparvel s dimenses da regio que contm o eltron. Mesmo no caso de uma partcula livre, so tambm incompatveis: o comprimento de onda relativstico de De Broglie foi confirmado por experimentos de difrao e, portanto, o comprimento de onda clssico de Schrdinger no vlido, para velocidades altas. O valor heurstico da equao de onda de Schrdinger outra distino muito importante entre as duas teorias, j que a de De Broglie apenas levou a uma nica predio nova: o comportamento ondulatrio de eltrons em experimentos de difrao. H ainda outras diferenas entre as duas abordagens que no podem ser descritas aqui.

    Embora a teoria de De Broglie tenha sido o ponto de partida do trabalho de Schrdinger e tenha tido um importante papel heurstico a esse respeito, as duas teorias so diferentes, independentes e incompatveis.

    Agradecimentos

    O autor agradece o apoio recebido do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq) e da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP), sem cujo auxlio teria sido impossvel desenvolver esta pesquisa.

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