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CAPÍTULO 1 A Natureza da Teoria da Personalidade A TEORIA DA PERSONALIDADE E A HISTÓRIA DA PSICOLOGIA ................................................ 28 O QUE É PERSONALIDADE? .................................................................................................... 32 O QUE É UMA TEORIA? ......................................................................................................... 33 UMA TEORIA DA PERSONALIDADE ......................................................................................... 36 A TEORIA DA PERSONALIDADE E OUTRAS TEORIAS PSICOLÓGICAS ........................................ 38 A COMPARAÇÃO DAS TEORIAS DA PERSONALIDADE ............................................................. 39 Atributos Formais 39 Atributos Substantivos 40

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TEORIAS DA PERSONALIDADE 27

CAPÍTULO 1

A Natureza daTeoria da Personalidade

A TEORIA DA PERSONALIDADE E A HISTÓRIA DA PSICOLOGIA ................................................ 28O QUE É PERSONALIDADE? .................................................................................................... 32O QUE É UMA TEORIA? ......................................................................................................... 33UMA TEORIA DA PERSONALIDADE ......................................................................................... 36A TEORIA DA PERSONALIDADE E OUTRAS TEORIAS PSICOLÓGICAS ........................................ 38A COMPARAÇÃO DAS TEORIAS DA PERSONALIDADE ............................................................. 39

Atributos Formais 39Atributos Substantivos 40

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28 HALL, LINDZEY & CAMPBELL

Neste volume apresentaremos um resumo organiza-do das principais teorias da personalidade contempo-râneas. Além de oferecer um sumário de cada teoria,discutiremos pesquisas relevantes e faremos uma ava-liação geral da teoria. Mas antes de prosseguir deve-mos falar um pouco sobre o que são as teorias da per-sonalidade e como as várias teorias da personalidadepodem ser distinguidas umas das outras. Também co-locaremos essas teorias em um contexto geral, relaci-onando-as ao que aconteceu historicamente na psico-logia e situando-as no cenário contemporâneo.

Neste capítulo, começamos com um esboço bemgeral e um pouco informal do papel da teoria da per-sonalidade no desenvolvimento da psicologia, segui-do por uma discussão sobre o que significam os ter-mos personalidade e teoria. Partindo dessas considera-ções, é fácil passar para a pergunta: o que constituiuma teoria da personalidade? Além disso, vamos con-siderar brevemente a relação entre teoria da persona-lidade e outras formas de teoria psicológica, e apre-sentar algumas dimensões por meio das quais asteorias da personalidade podem ser comparadas en-tre si.

A TEORIA DA PERSONALIDADE E AHISTÓRIA DA PSICOLOGIA

Um exame abrangente do desenvolvimento da teoriada personalidade deve certamente começar com asconcepções do homem propostas por grandes estudi-osos clássicos, como Hipócrates, Platão e Aristóteles.Um relato adequado também teria de incluir a contri-buição de dezenas de pensadores, como Aquino, Ben-tham, Comte, Hobbes, Kierkegaard, Locke, Nietzschee Machiavelli, que viveram nos séculos intervenientese cujas idéias ainda são detectadas em formulaçõescontemporâneas. A nossa intenção aqui não é a detentar esse tipo de reconstrução geral. O nosso objeti-vo é bem mais limitado. Nós simplesmente vamos con-siderar, em termos amplos, o papel geral que a teoriada personalidade desempenhou no desenvolvimentoda psicologia durante o século passado.

Para começar, examinaremos cinco fontes de in-fluência sobre a teoria da personalidade relativamen-te recentes. Uma tradição de observação clínica, co-

meçando com Charcot e Janet, mas incluindo especi-almente Freud, Jung e McDougall, fez mais para de-terminar a natureza da teoria da personalidade do quequalquer outro fator isolado. Nós logo examinaremosalguns dos efeitos desse movimento. Uma segunda li-nha de influência vem da tradição Gestáltica e de Wi-lliam Stern. Esses teóricos estavam muito impressio-nados com a unidade de comportamento e, conseqüen-temente, convencidos de que um estudo fragmenta-do de pequenos elementos do comportamento jamaispoderia ser esclarecedor. Como iremos descobrir, esseponto de vista está profundamente inserido na atualteoria da personalidade. Também temos o impactomais recente da psicologia experimental em geral e dateoria da aprendizagem em particular. Dessa linha,surgiram uma crescente preocupação com a pesquisaempírica cuidadosamente controlada, um melhor en-tendimento da natureza da construção da teoria e umaapreciação mais detalhada de como o comportamen-to é modificado. Um quarto determinante é represen-tado pela tradição psicométrica, com seu foco na men-suração e no estudo das diferenças individuais. Essafonte proporcionou uma sofisticação cada vez maiornas dimensões de avaliação ou mensuração do com-portamento e na análise quantitativa dos dados. Fi-nalmente, a genética e a fisiologia desempenharam umpapel crucial nas tentativas de identificar e de descre-ver as características de personalidade. Tal influênciatem sido particularmente forte em modelos recentes,como os propostos por Eysenck (ver Capítulo 9) e osCinco Grandes teóricos (ver Capítulo 8), mas tambémestá clara no trabalho inicial de Freud e em declara-ções como a de Henry Murray: “Nenhum cérebro,nenhuma personalidade.”

O background específico do qual emergiu cada umadas teorias apresentadas neste livro é discutido bre-vemente nas seguintes fontes: discussões históricassobre o desenvolvimento da teoria contemporânea dapersonalidade são encontradas em Allport (1937,1961), Boring (1950) e Sanford (1963, 1985); o sta-tus atual da teoria da personalidade e da pesquisa éresumido em uma série de capítulos na Annual Revi-ew of Psychology, iniciando em 1950 (ver, p. ex., Buss,1991; Carson, 1989; Digman, 1990; Magnusson & To-restad, 1993; Pervin, 1985; Revelle, 1995; Rorer &Widiger, 1983; Wiggins & Pincus, 1992). Existem ou-tros tratamentos gerais do campo que valem a pena

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ler, incluindo McAdams (1994), Maddi (1996), Mis-chel (1993), Monte (1995), Pervin (1993, 1996), Pe-terson (1992) e Ryckman (1992).

Vamos tratar agora das características distintivasda teoria da personalidade. Embora esse corpo de te-orias faça parte do amplo campo da psicologia, aindaexistem diferenças apreciáveis entre a teoria e a pes-quisa da personalidade e a pesquisa e a teoria emoutras áreas da psicologia. Essas diferenças são espe-cialmente evidentes em relação à teoria da personali-dade em seus estágios iniciais de desenvolvimento, eelas ainda existem apesar da grande variação entre aspróprias teorias da personalidade. As notáveis dife-renças entre as teorias da personalidade, entretanto,significam que quase qualquer declaração que se apli-que com exatidão detalhada a uma teoria da persona-lidade será um pouco inexata quando aplicada a mui-tas outras teorias. Apesar disso, existem qualidadesmodais ou tendências centrais inerentes na maioriadas teorias da personalidade, e é nelas que focalizare-mos nossa discussão.

Não discutimos que existam congruências impor-tantes nas correntes de influência que determinaramos caminhos iniciais da psicologia geral e da teoria dapersonalidade, mas também existem diferenças signi-ficativas. É certo afirmar que Darwin foi um fator im-portante no desenvolvimento da psicologia geral e dapsicologia da personalidade. Também é verdade quea fisiologia do século XIX teve sua influência sobre osteóricos da personalidade, assim como um efeito acen-tuado sobre a psicologia geral. No entanto, o princi-pal teor dos fatores que influenciaram esses dois gru-pos durante os últimos três quartos de século foiperceptivelmente diferente. Enquanto os teóricos dapersonalidade estavam tirando suas idéias mais im-portantes principalmente da experiência clínica, os psi-cólogos experimentais estavam prestando atenção aosachados do laboratório experimental. Os nomes Char-cot, Freud, Janet, McDougall e Stern estão em pri-meiro plano no trabalho dos primeiros teóricos dapersonalidade, mas encontramos Helmholtz, Pavlov,Thorndike, Watson e Wundt em um papel compará-vel na psicologia experimental. Os experimentalistasderivaram suas inspirações e seus valores das ciênciasnaturais, enquanto os teóricos da personalidade per-maneceram mais próximos dos dados clínicos e de suaspróprias reconstruções criativas. Um grupo recebeucom satisfação os sentimentos intuitivos e os insights,

mas desprezou as armadilhas da ciência, com sua res-trição sobre a imaginação e suas habilidades técnicasrigorosas. O outro aplaudiu o rigor e a precisão dainvestigação delimitada e esquivou-se desgostoso douso desenfreado do julgamento clínico e da interpre-tação imaginativa. No final ficou claro que a psicolo-gia experimental tinha pouco a dizer com referênciaaos problemas que interessavam ao teórico da perso-nalidade e que este manifestava pouca consideraçãopelos problemas de importância capital para o psicó-logo experimental.

Os estudos recentes sugerem que Wundt pode tersido uma exceção a essas generalizações. Por exem-plo, Stelmack e Stalikas (1991) descrevem como aclassificação de Wundt dos temperamentos, baseadaem duas dimensões, a força das emoções e a variabili-dade, corresponde às subseqüentes descrições ofere-cidas por Hans Eysenck (ver Capítulo 9), baseadas nasdimensões subjacentes de neuroticismo e extroversão.Apesar dessas conexões, as “duas disciplinas da psico-logia científica” (Cronbach, 1957, 1975) permanece-ram notavelmente separadas.

Sabemos bem que a psicologia se desenvolveu noséculo XIX como fruto da filosofia e da fisiologia ex-perimental. A origem da teoria da personalidade devemuito mais à profissão médica e às condições da prá-tica médica. De fato, os primeiros gigantes nessa área(Freud, Jung e McDougall) tinham formação em me-dicina, mas trabalhavam também como psicoterapeu-tas. Esse vínculo histórico entre a teoria da personali-dade e a aplicação prática permaneceu evidentedurante todo o desenvolvimento da psicologia e ofe-rece uma importante distinção entre esse ramo da te-oria e outros tipos de teoria psicológica.

Duas generalizações referentes à teoria da perso-nalidade são consistentes com o que dissemos até ago-ra. Primeiro, está claro que a teoria da personalidadeocupou um papel dissidente no desenvolvimento da psi-cologia. Os teóricos da personalidade foram rebeldesem sua época: rebeldes na medicina e na ciência ex-perimental, rebeldes contra idéias convencionais epráticas usuais, rebeldes contra métodos típicos e téc-nicas de pesquisa respeitadas e, acima de tudo, rebel-des contra a teoria aceita e os problemas normativos.O fato de que a teoria da personalidade jamais se in-seriu profundamente na psicologia acadêmica domi-nante tem várias implicações importantes. Por umlado, isso possibilitou libertar a teoria da personalida-

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de das garras mortais dos modos convencionais depensamento e dos preconceitos referentes ao compor-tamento humano. Ao ficar relativamente fora da ins-tituição da psicologia, era mais fácil para os teóricosda personalidade questionar ou rejeitar as suposiçõesamplamente aceitas pelos psicólogos. Por outro lado,essa falta de envolvimento também os eximia de par-te da disciplina e da responsabilidade por uma for-mulação razoavelmente sistemática e organizada, quefaz parte da herança do cientista bem integrado soci-almente.

Uma segunda generalização é que as teorias dapersonalidade são funcionais em sua orientação. Elasse preocupam com questões que fazem diferença noajustamento e na sobrevivência do indivíduo. Em umaépoca na qual o psicólogo experimental estava mer-gulhado em questões como a existência do pensamentosem imagens, a velocidade dos impulsos nervosos, aespecificação do conteúdo da mente humana consci-ente normal e as controvérsias das localizações cere-brais, o teórico da personalidade queria saber por quealguns indivíduos desenvolviam sintomas neuróticosincapacitantes na ausência de patologia orgânica, qualera o papel do trauma infantil no ajustamento adulto,em que condições a saúde mental poderia ser recupe-rada e quais eram as maiores motivações subjacentesaos comportamentos humanos. Assim, foi o teóricoda personalidade, e apenas o teórico da personalida-de, que nos tempos iniciais da psicologia lidou comquestões que, para a pessoa comum, pareciam estarno âmago de uma ciência psicológica bem-sucedida.Certos progressos entusiasmantes no campo continu-am a refletir essa orientação funcionalista. Um exem-plo claro é David Buss (1991), que emprega a metate-oria evolutiva para identificar as metas importantespara os seres humanos, os mecanismos psicológicosresultantes e as diferenças individuais nas estratégiascomportamentais empregadas pelas pessoas para atin-gir as metas ou para resolver problemas de adapta-ção.

O leitor não deve interpretar o que acabamos dedizer como uma acusação à psicologia geral e um elo-gio à teoria da personalidade. Ainda não está claro seo caminho para uma teoria abrangente e útil do com-portamento humano resultará mais rapidamente dotrabalho daqueles que têm essa teoria como objetivodireto, ou dos esforços daqueles que focalizam pro-blemas relativamente específicos e limitados. A estra-

tégia de avanço na ciência nunca é fácil de especifi-car, e o público geral normalmente não é consideradoum tribunal adequado para decidir quais problemasdevem ser enfocados. Em outras palavras, embora sejaum fato inquestionável que os teóricos da personali-dade trataram de questões que pareciam centrais eimportantes para o observador típico do comporta-mento humano, resta ver se tal disposição para tratardessas questões fará avançar a ciência da psicologia.

Como dissemos, não há nenhum mistério sobre arazão pela qual as teorias da personalidade eram maisamplas em escopo e mais práticas em orientação doque as formulações da maioria dos outros psicólogos.As grandes figuras da psicologia acadêmica do séculoXIX foram homens como Wundt, Helmholtz, Ebbin-ghaus, Titchener e Külpe, que executaram seu traba-lho dentro de ambientes universitários com poucaspressões do mundo exterior. Eles eram livres para se-guir suas inclinações intelectuais, com pouca ou ne-nhuma compulsão de tratar daquilo que os outrosconsideravam importante ou significativo. De fato, elesdecidiam o que era significativo em grande parte porseus próprios interesses e atividades. Em contraste,os primeiros teóricos da personalidade eram pratican-tes, além de estudiosos. Defrontando-se com os pro-blemas da vida cotidiana, agravados por uma neuro-se ou algo pior, era natural que se dedicassem aformulações que contribuíssem para esses problemas.Um conjunto de categorias para a análise das emo-ções, que pudesse ser aplicado por sujeitos treinadosem um ambiente de laboratório, era de pouco inte-resse para um terapeuta que diariamente observava aoperação de emoções que estavam prejudicando, in-capacitando ou inclusive matando seres humanoscomo ele. Assim, o forte tom funcional das teorias dapersonalidade e sua preocupação com problemas im-portantes para a sobrevivência dos indivíduos pare-cem uma decorrência natural do ambiente em queessas teorias se desenvolveram.

Está claro que os teóricos da personalidade costu-mavam atribuir um papel crucial aos processos motiva-cionais. Em uma época na qual muitos psicólogos ig-noravam a motivação ou tentavam minimizar acontribuição desses fatores em seus estudos, os teóri-cos da personalidade viam nessas mesmas variáveis achave para o entendimento do comportamento hu-mano. Freud e McDougall foram os primeiros a consi-derar seriamente o processo motivacional. A grande

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lacuna entre a arena da vida e a teoria desenvolvidapor psicólogos de laboratório é retratada por McDou-gall quando ele justifica suas tentativas de desenvol-ver uma teoria adequada do comportamento social(que era mais uma teoria da personalidade do queuma teoria do comportamento social):

“O ramo da psicologia mais importante para asciências sociais é aquele que trata das fontes deação humana, dos impulsos e motivos que sus-tentam a atividade mental e corporal e regulam aconduta; e este, de todos os ramos da psicologia,é o que permanece no estado mais atrasado, emque ainda reinam a maior obscuridade, impreci-são e confusão.” (McDougall, 1908, p. 2-3)

Assim, variáveis que eram vistas primariamente comoum incômodo para o psicólogo experimental passa-ram a ser alvo de estudo intensivo e interesse focalpara o teórico da personalidade.

Relacionada a esse interesse no funcional e nomotivacional está a convicção do teórico da persona-lidade de que um entendimento adequado do compor-tamento humano só vai surgir do estudo da pessoa emsua totalidade. A maioria dos psicólogos da personali-dade insistia que o sujeito deveria ser visto como umapessoa inteira funcionando em um habitat natural. Elesdefendiam ardorosamente o estudo do comportamen-to no contexto, com cada evento comportamental exa-minado e interpretado em relação ao resto do com-portamento do indivíduo. Esse ponto de vista era umderivativo natural da prática clínica, em que a pessoainteira se apresentava para a cura e em que era real-mente difícil limitar o exame a uma modalidade sen-sorial ou a uma série restrita de experiências.

Se aceitamos que a intenção da maioria dos teóri-cos da personalidade é promover o estudo da pessoaem sua totalidade, não-segmentada, é fácil compre-ender porque muitos observadores consideram queum dos aspectos mais distintivos da teoria da personali-dade é a sua função como uma teoria integrativa. En-quanto os psicólogos em geral têm demonstrado umaespecialização cada vez maior, fazendo alguns recla-marem que estavam aprendendo cada vez mais sobrecada vez menos, o teórico da personalidade aceitouuma responsabilidade pelo menos parcial de reunir eorganizar os diversos achados dos especialistas. Oexperimentalista poderia saber muito sobre habilida-des motoras, audição, percepção ou visão, mas em

geral sabia relativamente pouco sobre como essas fun-ções especiais se relacionavam umas com as outras. Opsicólogo da personalidade estava, nesse sentido, maispreocupado com reconstrução ou integração do quecom análise ou estudo segmental do comportamento.A partir dessas considerações, surge a concepção umtanto romântica do teórico da personalidade como oindivíduo que vai montar o quebra-cabeça apresenta-do pelos achados distintos de estudos separados den-tro das várias especialidades que constituem a psico-logia.

Devemos observar que vários autores lamentarama falta de atenção, por parte dos pesquisadores dapersonalidade, ao foco do teórico da personalidadena pessoa em sua totalidade. Rae Carlson escreveu:“O empobrecimento atual da pesquisa da personali-dade é perturbador, porque indica que a meta de es-tudar pessoas integrais foi abandonada” (1971, p. 207;ver Kenrick [1986] para uma réplica). Preocupaçõessemelhantes foram levantadas por White (1981) eSanford (1985).

Em termos amplos, então, o que distingue os teóri-cos da personalidade dos tradicionais teóricos da psico-logia? Eles são mais especulativos e menos ligados aoperações experimentais ou de mensuração. A visãorígida do positivismo afetou muito menos o psicólogoda personalidade do que o psicólogo experimental.Eles desenvolvem teorias que são multidimensionaise mais complexas do que as da psicologia geral. Emconseqüência, suas teorias tendem a ser um poucomais vagas e menos bem-especificadas do que as teo-rias do experimentalista. Estão dispostos a aceitarqualquer aspecto do comportamento que possua im-portância funcional como um dado legítimo para seumodelo teórico, ao passo que os psicólogos mais ex-perimentais se contentam em fixar sua atenção emuma série limitada de observações ou registros. Elesinsistem que um entendimento adequado do compor-tamento individual só pode ser atingido quando elefor estudado em um contexto amplo que inclua a pes-soa total, em funcionamento. O teórico da personali-dade encara a motivação, o “porquê” ou o ímpeto sub-jacente do comportamento como o problema empíricoe teórico crucial. Em contraste, o experimentalista oconsidera como um entre vários problemas e lida comele por meio de um pequeno número de conceitos es-treitamente ligados aos processos fisiológicos.

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O QUE É PERSONALIDADE?

Existem poucas palavras na nossa língua com tantofascínio para o público em geral como o termo perso-nalidade. Embora a palavra seja usada em vários sen-tidos, a maioria desses significados populares se en-caixa em um ou dois tópicos. O primeiro uso iguala otermo à habilidade ou à perícia social. A personalida-de de um indivíduo é avaliada por meio da efetivida-de com que ele consegue eliciar reações positivas emuma variedade de pessoas em diferentes circunstân-cias. É nesse sentido que a professora que se refere aum aluno como apresentando um problema de perso-nalidade, provavelmente, está indicando que suas ha-bilidades sociais não são adequadas para manter rela-ções satisfatórias com os colegas e com a professora.O segundo uso considera a personalidade do indiví-duo como consistindo-se na impressão mais destaca-da ou saliente que ele cria nos outros. Assim, pode-mos dizer que uma pessoa tem uma “personalidadeagressiva” ou uma “personalidade submissa” ou uma“personalidade temerosa”. Em cada caso o observa-dor seleciona um atributo ou uma qualidade altamentetípica do sujeito, que presumivelmente é uma parteimportante da impressão global criada nos outros, eidentifica sua personalidade por esse termo. Está cla-ro que existe um elemento de avaliação em ambos osusos. As personalidades, conforme descritas comumen-te, são boas e más.

Embora a diversidade no uso comum da palavrapersonalidade possa parecer considerável, ela é su-perada pela variedade de significados atribuídos aotermo pelos psicólogos. Em um exame exaustivo daliteratura, Allport (1937) extraiu quase cinqüenta de-finições diferentes que classificou em algumas cate-gorias amplas. Nós aqui examinaremos apenas algu-mas dessas definições.

Inicialmente é importante distinguir entre o queAllport chama de definição biossocial e definição bio-física. A definição biossocial mostra uma estreita cor-respondência com o uso popular do termo, uma vezque equipara personalidade ao “valor da impressãosocial” que o indivíduo provoca. É a reação dos ou-tros indivíduos ao sujeito o que define a sua persona-lidade. Podemos inclusive afirmar que o indivíduo nãopossui nenhuma personalidade a não ser aquela pro-porcionada pela resposta dos outros. Allport contestavigorosamente a implicação de que a personalidade

reside apenas no “outro-que-responde”, e sugere serpreferível uma definição biofísica que baseie firmemen-te a personalidade em características ou qualidadesdo sujeito. De acordo com essa última definição, apersonalidade tem um lado orgânico, assim como umlado aparente, e pode ser vinculada a qualidades es-pecíficas do indivíduo suscetíveis à descrição e à men-suração objetivas.

Um outro tipo importante de definição é a globa-lizante ou do tipo coletânea. Essa definição abrange apersonalidade por enumeração. O termo personalida-de é usado aqui para incluir tudo sobre o indivíduo. Oteórico comumente lista os conceitos considerados demaior importância para descrever o indivíduo e suge-re que a personalidade consiste nisso. Outras defini-ções enfatizam principalmente a função integrativa,ou organizadora, da personalidade. Tais definiçõessugerem que a personalidade é a organização ou opadrão dado às várias respostas distintas do indiví-duo. Alternativamente, elas sugerem que a organiza-ção resulta da personalidade que é uma força ativadentro do indivíduo. A personalidade é aquilo que dáordem e congruência a todos os comportamentos di-ferentes apresentados pelo indivíduo. Alguns teóricosenfatizam a função da personalidade na mediação doajustamento do indivíduo. A personalidade consistenos esforços de ajustamento variados e, no entanto,típicos, realizados pelo indivíduo. Em outras defini-ções, a personalidade é igualada aos aspectos únicosou individuais do comportamento. Nesse caso, o ter-mo designa aquilo que é distintivo no indivíduo e odiferencia de todas as outras pessoas. Finalmente, al-guns teóricos consideram que a personalidade repre-senta a essência da condição humana. Essas defini-ções sugerem que a personalidade se refere àquelaparte do indivíduo que é mais representativa da pes-soa, não apenas porque a diferencia dos outros, masprincipalmente porque é aquilo que a pessoa realmenteé. A sugestão de Allport de que “a personalidade é oque um homem realmente é” ilustra esse tipo de defi-nição. A implicação aqui é que a personalidade con-siste naquilo que é, na análise final, mais típico e ca-racterístico da pessoa.

Poderíamos passar muito mais tempo tratando doproblema de definir a personalidade, mas o leitor en-contrará muitas definições detalhadas de personali-dade nos capítulos seguintes. Além disso, estamosconvencidos de que nenhuma definição substantiva de

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personalidade pode ser generalizada. Com isso, quere-mos dizer que a maneira pela qual determinadas pes-soas definem a personalidade dependerá inteiramen-te de sua preferência teórica. Assim, se a teoria enfatizaa singularidade e as qualidades organizadas e unifi-cadas do comportamento, é natural que a definiçãode personalidade inclua a singularidade e a organiza-ção como atributos importantes da personalidade.Uma vez que o indivíduo tenha criado ou adotadouma dada teoria da personalidade, a definição de per-sonalidade será claramente indicada pela teoria. As-sim, acreditamos que a personalidade é definida pelosconceitos empíricos específicos que fazem parte da teo-ria da personalidade empregada pelo observador. A per-sonalidade consiste concretamente em uma série devalores ou termos descritivos que descrevem o indiví-duo que está sendo estudado em termos das variáveisou de dimensões que ocupam uma posição central den-tro de uma teoria específica.

Se tais definições parecerem insatisfatórias, queo leitor se console com a idéia de que encontrará vári-as definições específicas nas páginas seguintes. Qual-quer uma delas pode-se tornar a definição do leitor seele adotar aquela determinada teoria. Em outras pa-lavras, estamos dizendo que é impossível definir a per-sonalidade sem concordar com a estrutura de refe-rência teórica dentro da qual a personalidade vai serexaminada. Se tentássemos agora chegar a uma úni-ca definição substantiva, estaríamos pondo fim, im-plicitamente, a muitas das questões teóricas que pre-tendemos explorar.

O QUE É UMA TEORIA?

Assim como a maioria das pessoas sabe em que con-siste a personalidade, também sabe o que é uma teo-ria! A convicção mais comum é a de que uma teoriaexiste em oposição a um fato. Nessa visão, ela é umahipótese não-comprovada ou uma especulação refe-rente à realidade que ainda não está definitivamenteconfirmada. Quando uma teoria é confirmada, ela setorna um fato. Existe certa correspondência entre essavisão e o uso que defendemos aqui, pois concorda-mos que não sabemos se uma teoria é uma verdade.Também existe um elemento de discordância, pois avisão do senso comum afirma que ela se tornará ver-

dadeira ou fatual quando os dados confirmatórios ti-verem sido coletados. Na nossa visão, as teorias nun-ca são verdadeiras ou falsas, embora suas implicaçõesou derivações possam ser.

As passagens a seguir são um resumo relativamen-te convencional do pensamento de metodologistas oulógicos da ciência. Certamente não existe concordân-cia completa em relação a todas as questões discuti-das, mas o ponto de vista apresentado pretende sermodal, em vez de original. O estudante que está co-meçando talvez tenha dificuldade para entender in-teiramente algumas dessas idéias, e seria justo dizerque não é essencial entendê-las para poder ler e apre-ciar o restante do livro. Por outro lado, se o leitor es-tiver seriamente interessado no campo e ainda não seaprofundou nessa área de estudo, deve consultar aliteratura relevante (para boas introduções apropria-das a psicólogos, ver Gholson & Barker, 1985; a Intro-dução em Leahey, 1991; Manicas & Secord, 1983;Rorer & Widiger, 1983; e Suppe, 1977; para trata-mentos gerais, examine Bechtel, 1988; Eagle, 1984;Earman, 1992; Kuhn, 1970; Lakatos & Musgrave,1970; Popper, 1962, 1992).

Vamos começar examinando o que é uma teoria edepois tratar da questão mais importante, ou seja,quais são as funções de uma teoria. Em primeiro lu-gar, uma teoria é um conjunto de convenções criadopelo teórico. Compreender uma teoria como um “con-junto de convenções” enfatiza o fato de que as teoriasnão são “dadas” ou predeterminadas pela natureza,pelos dados, ou por qualquer outro processo determi-nante. Assim como as mesmas experiências ou obser-vações podem levar um poeta ou um romancista acriar uma entre as múltiplas formas de arte diferen-tes, também os dados da investigação podem ser in-corporados a um entre os incontáveis esquemas teóri-cos diferentes. O teórico, ao escolher uma determinadaopção para representar os eventos em que está inte-ressado, exerce uma escolha criativa livre que só édiferente da do artista nos tipos de evidência que fo-caliza e nos termos em que seu aproveitamento serájulgado. Nós estamos enfatizando aqui a maneira cri-ativa e, no entanto, arbitrária pela qual as teorias sãoconstruídas. Não existe nenhuma fórmula para a cons-trução de uma teoria proveitosa, assim como não existenenhuma fórmula para fazermos contribuições literá-rias duradouras.

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Já que uma teoria é uma escolha convencional, enão algo inevitável ou prescrito por relações empíri-cas conhecidas, a veracidade ou a falsidade não sãoqualidades a serem atribuídas a uma teoria. Uma teo-ria só é útil ou inútil. Essas qualidades são definidas,como veremos, principalmente em termos de quão efi-cientemente a teoria pode gerar predições ou propo-sições relativas a eventos relevantes que acabarão sen-do confirmados (verdade).

Sejamos um pouco mais específicos. Uma teoria,em sua forma ideal, deve conter duas partes: uma sé-rie de suposições relevantes sistematicamente relaci-onadas uma à outra e um conjunto de definições em-píricas.

As suposições devem ser relevantes no sentido deter relação com os eventos empíricos aos quais a teo-ria se refere. Se for uma teoria sobre a audição, assuposições precisam ter alguma relação com o pro-cesso da audição; se for uma teoria da percepção, assuposições devem referir-se ao processo perceptual.A natureza dessas suposições geralmente representaa qualidade distintiva da teoria. O bom teórico é apessoa capaz de pôr às claras suposições úteis ou pre-ditivas referentes aos eventos empíricos em um domí-nio de interesse. Dependendo da natureza da teoria,essas suposições podem ser muito gerais ou bem es-pecíficas. Um teórico comportamental, por exemplo,optaria por supor que todo o comportamento é moti-vado, que os eventos que ocorrem cedo na vida são osdeterminantes mais importantes do comportamentoadulto, ou que o comportamento de diferentes espé-cies animais é governado pelos mesmos princípiosgerais. A forma dessas suposições também pode vari-ar, da precisão de uma notação matemática à relativainexatidão da maioria das suposições que acabamosde usar como ilustração.

Não só as suposições devem ser enunciadas clara-mente, mas também as suposições e os elementos dateoria precisam estar explicitamente combinados erelacionados uns aos outros. Isto é, deve haver regraspara a interação sistemática entre as suposições e osconceitos nelas inseridos. Para dar à teoria consistên-cia lógica e permitir o processo de derivação, essasrelações internas necessitam estar claras. Sem essa es-pecificação seria difícil ou impossível extrair da teoriaconseqüências empíricas. Devido à sua semelhançacom as regras de gramática, essas declarações são àsvezes referidas como a sintaxe da teoria. Por exem-

plo, um teórico poderia escolher supor que um au-mento na ansiedade levaria a um decréscimo no de-sempenho motor. Além disso, ele poderia supor queum aumento na auto-estima levaria a uma melhorano desempenho motor. Se não soubermos nada alémdisso, a relação entre essas duas suposições seria in-determinante. Precisamos descobrir algo sobre a rela-ção entre ansiedade e auto-estima antes de podermosfazer predições sobre o que pode ocorrer nas circuns-tâncias em que ambas as variáveis estejam envolvi-das. Um enunciado adequado das suposições teóricasdaria ao usuário da teoria uma clara especificação darelação entre essas duas suposições.

As definições empíricas (definições coordenativas)permitem a interação mais ou menos precisa de cer-tos termos ou conceitos da teoria com os dados empí-ricos. Assim, por meio dessas definições, a teoria en-tra em contato definido com a realidade ou com osdados observacionais, em certos locais prescritos. Elasfreqüentemente são chamadas de definições opera-cionais, porque tentam especificar operações pelasquais as variáveis ou os conceitos relevantes podemser medidos. Seria seguro dizer que, para que umateoria contribua para uma disciplina empírica, ela devepoder ser traduzida empiricamente. Por outro lado,deve estar claro que essas definições existem em umcontínuo que varia da especificação completa e exataaté uma declaração muito geral e qualitativa. Emboraquanto mais precisão melhor, uma insistência inicialem uma especificação completa pode destruir muitoscaminhos proveitosos de investigação. Definir a inte-ligência simplesmente como “o que os testes de inteli-gência medem” ou igualar a ansiedade unicamente acertas mudanças fisiológicas pode ser exato, mas ne-nhuma definição isolada provavelmente levará a idéi-as ou a investigações muito produtivas. A atitude ade-quada em relação a definições empíricas é a de quedevem ser tão precisas quanto as condições presentesno campo relevante permitem.

Vimos, em termos gerais, no que consiste umateoria. A pergunta seguinte é: o que ela faz? Primeiro,e mais importante, ela leva à coleção ou à observaçãode relações empíricas relevantes ainda não-observadas.A teoria deve conduzir à expansão sistemática do co-nhecimento referente aos fenômenos de interesse, eessa expansão deve idealmente ser mediada ou esti-mulada pela derivação de proposições empíricas es-pecíficas a partir da teoria (declarações, hipóteses, pre-

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TEORIAS DA PERSONALIDADE 35

dições), sujeitas a testes empíricos. Geralmente, oâmago de qualquer ciência está na descoberta de re-lacionamentos empíricos estáveis entre eventos ouvariáveis. A função de uma teoria é promover esseprocesso de uma maneira sistemática. A teoria podeser vista como uma espécie de moinho de proposi-ções, moendo declarações empíricas relacionadas quepodem então ser confirmadas ou rejeitadas, à luz dedados empíricos adequadamente controlados. Só asproposições ou as idéias derivadas da teoria é que es-tão abertas a testes empíricos. A teoria, ela mesma, ésuposta, e sua aceitação ou rejeição é determinadapor sua utilidade, não por sua veracidade ou falsida-de. Nesse caso, a utilidade tem dois componentes:verificabilidade e abrangência. A verificabilidade serefere à capacidade da teoria de gerar predições quesão confirmadas quando coletamos os dados empíri-cos relevantes. A abrangência se refere ao alcance oucompletude dessas derivações. Podemos ter uma teo-ria que gera conseqüências freqüentemente confirma-das, mas que lida apenas com alguns aspectos dos fe-nômenos que nos interessam. Idealmente, a teoriadeve levar a predições acuradas que tratem de formageral ou inclusiva os eventos empíricos que ela pre-tende abranger.

É importante distinguir entre o que pode ser cha-mado de geração sistemática e geração heurística depesquisa. Está claro que, no caso ideal, a teoria per-mite a derivação de proposições específicas testáveis,e estas, por sua vez, levam a estudos empíricos espe-cíficos. Entretanto, também acontece que muitas teo-rias, como por exemplo as de Freud e Darwin, exer-cem um grande efeito sobre os caminhos investigativossem a mediação de proposições explícitas. Essa capa-cidade de uma teoria gerar pesquisa ao sugerir idéiasou inclusive ao despertar descrença e resistência podeser referida como a influência heurística da pesquisa.Ambos os tipos de influência são muito importantes.

Uma segunda função da teoria é permitir a incor-poração de achados empíricos conhecidos a uma estru-tura logicamente consistente e razoavelmente simples.Uma teoria é um meio de organizar e integrar tudo oque é conhecido sobre um conjunto de eventos relaci-onados. Uma teoria adequada do comportamento psi-cótico deve ser capaz de organizar tudo o que se sabesobre a esquizofrenia e sobre as outras psicoses emuma estrutura compreensível e lógica. Uma teoria daaprendizagem satisfatória deve abranger de maneira

consistente todos os achados confiáveis relativos aoprocesso de aprendizagem. As teorias sempre come-çam com algo que foi observado e relatado até o mo-mento. Isto é, as teorias começam em uma fase indu-tiva e são orientadas e em certa extensão controladaspor aquilo que sabemos. Entretanto, se as teorias nãofizessem nada além de tornar consistente e ordenadoo presentemente conhecido, elas teriam apenas umafunção menor. Nessas circunstâncias, o investigadorpersistente estaria justificado em sua convicção de queas teorias são apenas uma penugem verbal flutuandona esteira da experimentação, que constitui o verda-deiro trabalho da ciência. O empiricista que insisteque as teorias são meramente racionalizações depois-do-fato daquilo que o investigador já relatou deixa deapreciar que a principal função da teoria é apontarrelações novas e ainda não-observadas. A produtivi-dade da teoria é testada antes-do-fato, não depois-do-fato.

A simplicidade, ou parcimônia, também é impor-tante, mas só depois de terem sido resolvidas as ques-tões de abrangência e de verificabilidade. Ela só setorna uma questão quando duas teorias geram exata-mente as mesmas conseqüências. À medida que asteorias diferem nas derivações que podem ser feitasreferentes aos mesmos eventos empíricos, a escolhaentre duas teorias deve ser decidida em termos daextensão em que essas predições diferem em verifica-ção. Assim, só quando temos uma tautologia – duasteorias chegando às mesmas conclusões a partir determos diferentes – é que a simplicidade se torna umaquestão importante. Existem alguns exemplos dessasituação na ciência e nenhum, pelo que sabemos, napsicologia. A simplicidade, como oposta à complexi-dade, é uma questão de valor ou preferência pessoalna teorização da personalidade, e não um atributoque deve necessariamente ser valorizado ou buscado.

Uma outra função da teoria é evitar que o observa-dor fique ofuscado pela complexidade total dos eventosnaturais ou concretos. A teoria é um conjunto de ante-paros e diz ao usuário que ele não precisa se preocu-par com todos os aspectos do evento que está estu-dando. Para o observador não-treinado, qualquerevento comportamental razoavelmente complexo pa-rece oferecer incontáveis meios diferentes de analisarou de descrever o evento – e realmente oferece. Ateoria permite que o observador abstraia a partir dacomplexidade natural de uma maneira sistemática e

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eficiente. As pessoas abstraem e simplificam quer usemou não uma teoria. No entanto, se não seguirmos aorientação de uma teoria explícita, os princípios quedeterminam a nossa visão ficarão escondidos em su-posições implícitas e em atitudes das quais não esta-mos conscientes. A teoria especifica para o usuárioum número limitado de dimensões, variáveis ou pa-râmetros mais ou menos definidos e de importânciacrucial. Os outros aspectos da situação podem em certaextensão ser ignorados do ponto de vista desse pro-blema. Uma teoria útil vai detalhar instruções explíci-tas sobre os tipos de dados que devem ser coletadosem relação a um determinado problema. Conseqüen-temente, como poderíamos esperar, os indivíduos composições teóricas drasticamente diferentes podem es-tudar o mesmo evento empírico e fazer observaçõesbem diferentes.

Nos últimos anos, um crescente número de psicó-logos adotou o raciocínio teórico e a terminologia deThomas Kuhn (1970). Em uma monografia muito in-teressante, ainda que excessivamente simplificada,Kuhn sugere que o avanço científico pode ser descritocom extrema precisão como consistindo em uma sé-rie de passos revolucionários, cada um acompanhadode seu próprio paradigma característico e dominante.Segundo Kuhn, cada campo científico emerge de ma-neira desajeitada e descoordenada, com o desenvol-vimento de linhas diversas de investigação e de idéiasteóricas que preservam sua posição autônoma e com-petitiva, até que um determinado conjunto de idéiasassuma o status de um paradigma. Ele sugere que es-ses paradigmas servem para

“definir os problemas e os métodos legítimos deum campo de pesquisa para as próximas geraçõesde praticantes. Eles permitiam isso porque apre-sentavam duas características essenciais. Sua re-alização foi suficientemente inédita para atrair umgrupo duradouro de adeptos, afastando-os demodos concorrentes de atividade científica. Simul-taneamente, (eles estavam) . . . suficientementeabertos para deixar todo tipo de problema para onovo grupo de praticantes resolver . . . Essas sãoas tradições que o historiador descreve sob rubri-cas como ‘astronomia ptolemaica’ (ou ‘copérni-ca’), ‘dinâmica aristotélica’ (ou ‘newtoniana’), ‘óti-ca corpuscular’ (ou ‘ótica de onda’) e assim pordiante.” (p. 10)

É interessante especular acerca do status paradig-mático da teoria e da pesquisa sobre a personalidade.Para aqueles que adotam este idioma, parece mais fácilver essa área como em um estado pré-paradigmático.Isto é, embora existam muitos conjuntos de idéias sis-temáticas, ou um pouco sistemáticas, nenhum delesadquiriu uma posição de real dominância. Não existenenhuma teoria única que sirva como um “paradig-ma” para ordenar achados conhecidos, determinar arelevância, ser algo estabelecido contra o qual rebel-des possam rebelar-se e ditar o melhor caminho parafuturas investigações. Alguns teóricos da personali-dade começaram a tratar do status paradigmático docampo. Eysenck, em particular, afirmou que o mode-lo dimensional da personalidade oferece “pelo menoso início de um paradigma no campo da personalida-de” (1983, p. 369; ver também 1991).

UMA TEORIA DA PERSONALIDADE

Nós concordamos que a personalidade é definida pe-los conceitos específicos contidos em uma dada teo-ria, que são considerados adequados para a descriçãoou entendimento completos do comportamento hu-mano. Também concordamos que uma teoria consisteem um conjunto de suposições relacionadas referen-tes aos fenômenos empíricos e às definições empíri-cas relevantes que permitem que o usuário passe dateoria abstrata para a observação empírica. Por sim-ples acréscimo, temos a implicação de que uma teoriada personalidade deve ser um conjunto de suposiçõesrelevantes para o comportamento humano, juntamen-te com as definições empíricas necessárias. Existe tam-bém a exigência de que a teoria seja relativamenteabrangente. Ela deve estar preparada para lidar comuma ampla variedade de comportamentos humanosou fazer predições sobre eles. De fato, a teoria deveestar preparada para lidar com qualquer fenômenocomportamental que possua significado para o indiví-duo.

O que foi dito até este ponto possui uma validadeformal que, todavia, não se sustenta em uma análisecuidadosa das teorias existentes sobre a personalida-de. A nossa discussão é importante para identificar asqualidades às quais todos os teóricos aspiram, e tam-bém dá uma idéia de como as teorias da personalida-

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de devem ser. Entretanto, está claro que no presenteelas não são assim. Devemos dizer uma palavra sobrecomo elas diferem do ideal, tanto em estrutura quan-to em função.

Em primeiro lugar, como veremos, a maioria dasteorias carece de clareza. Geralmente é bem difícilentender as suas suposições ou a sua base axiomáti-ca. As teorias da personalidade são freqüentementeembaladas em vistosas imagens lingüísticas que po-dem servir muito bem como um meio de persuadir oleitor relutante, mas que freqüentemente servem paraocultar e esconder as suposições específicas subjacen-tes à teoria. Em outras palavras, a maioria das teoriasnão é apresentada de uma maneira direta e ordena-da. De fato, muitas delas parecem mais orientadas paraa persuasão do que para a exposição. Relacionada aessa falta de definição está uma freqüente confusãosobre aquilo que é dado ou suposto e aquilo que éafirmado empiricamente e aberto a testes. Como to-dos já concordamos, são apenas as derivações ou aspredições geradas pela teoria que estão abertas a tes-tes empíricos. O restante da teoria é suposto ou dadoe não deve ser julgado em termos de confirmação ourefutação, e sim em termos de quão exitosamente con-segue gerar proposições verificadas. Em geral, então,a distinção entre a teoria da personalidade em si esuas implicações ou derivações muitas vezes não émantida.

Uma conseqüência inevitável da falta de clarezareferente à natureza das suposições subjacentes à te-oria é a existência de uma séria confusão no processode derivar declarações empíricas da teoria. Assim,existe a possibilidade de diferentes indivíduos, usan-do a mesma teoria, chegarem a derivações conflitan-tes. Na verdade, o processo de derivação, na maioriadas teorias da personalidade, é casual, obscuro e ine-ficiente. Isso é um reflexo não só da falta de clarezadessas teorias, mas também do fato de a maioria dosteóricos da personalidade ter sido orientada para aexplicação depois-do-fato, e não para a geração denovas predições referentes ao comportamento. Final-mente, está claro que, embora as teorias da personali-dade variem em seu cuidado ao especificar definiçõesempíricas, nenhuma delas atinge um padrão muitobom em termos absolutos.

As declarações que acabamos de fazer sobre o sta-tus formal das teorias da personalidade podem pare-cer suficientemente desanimadoras para justificar o

abandono das tentativas de construir uma dessas teo-rias neste momento. Não seria melhor esquecer nopresente as teorias e focalizar os instrumentos empí-ricos e os achados empíricos específicos? Enfaticamen-te, não! Tal decisão não envolve desistir de uma teo-ria inadequada e ficar sem nenhuma teoria, masenvolve a substituição de uma teoria implícita por umaexplícita. Não existe isso de “nenhuma teoria”; conse-qüentemente, no momento em que tentamos esque-cer as teorias “por enquanto”, estamos na verdade em-pregando suposições implícitas sobre o comporta-mento, pessoalmente determinadas e talvez inconsis-tentes. Essas suposições não-identificadas vão deter-minar o que será estudado e como. A observação dequalquer evento concreto empírico é realizada sob osditados de alguma “teoria” – isto é, prestamos aten-ção a certos fatos e ignoramos outros – e um dos pro-pósitos da teorização é tornar explícitas as regras quedeterminam esse processo de abstração. A possibili-dade de melhorar as suposições que estão controlan-do a pesquisa é eliminada no momento em que al-guém desiste de tentar definir a base teórica a partirda qual opera.

Por piores que sejam as teorias da personalidadequando comparadas ao ideal, elas ainda representamum passo à frente considerável quando comparadasao pensamento do observador ingênuo que está con-vencido de estar abarcando ou examinando a realida-de da única maneira razoável. Mesmo que as teoriasda personalidade não possuam o grau de clareza quepoderíamos desejar, sua mera existência possibilitabuscarmos essa meta de maneira sistemática.

Dado que as teorias da personalidade geralmentenão permitem um processo de derivação tão explícitoquanto desejaríamos, que função elas têm para o in-divíduo que as maneja? No mínimo, elas representamum agrupamento de atitudes (suposições) referentesao comportamento, que de uma maneira ampla limi-ta os tipos de investigação a serem considerados cru-ciais ou importantes. Além de estimular certos tiposgerais de pesquisa, elas também oferecem parâme-tros ou dimensões específicas consideradas importan-tes na exploração desses problemas. Assim, mesmoque a teoria não ofereça uma proposição exata paraser testada, ela orienta o teórico para certas áreas deproblema e indica que determinadas variáveis são deimportância central no estudo desses problemas. Alémdisso, temos de considerar o valor heurístico dessas

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teorias. Tomadas como grupo, as teorias da personali-dade são altamente provocativas e, como iremos des-cobrir, levaram a muitas pesquisas, mesmo que relati-vamente poucas tenham sido o resultado de umprocesso formal de derivação. Em outras palavras, acapacidade dessas teorias de gerar idéias, de estimu-lar a curiosidade, de despertar dúvidas, ou de levar aconvicções resultou em um sadio florescimento de in-vestigações, apesar de sua falta de elegância formal.

A TEORIA DA PERSONALIDADE EOUTRAS TEORIAS PSICOLÓGICAS

A nossa discussão, até o momento, leva à conclusãode que uma teoria da personalidade deve consistir emum conjunto de suposições referentes ao comporta-mento humano, juntamente com regras para relacio-nar essas suposições e definições para permitir suainteração com eventos empíricos ou observáveis. Nesteponto, seria razoável perguntar se essa definição dealguma maneira diferencia as teorias da personalida-de de outras teorias psicológicas. Ao responder a essapergunta, convém começar com uma distinção entredois tipos de teoria psicológica.

É evidente que certas teorias psicológicas pare-cem estar prontas para lidar com qualquer eventocomportamental que possa ser importante no ajusta-mento do organismo humano. Outras teorias se limi-tam especificamente ao comportamento conforme eleocorre sob certas condições cuidadosamente prescri-tas. Essas teorias professam interesse apenas em as-pectos limitados do comportamento humano. Umateoria que tenta lidar com todos os fenômenos com-portamentais de importância demonstrada pode serreferida como uma teoria geral do comportamento, eaquelas teorias que restringem seu foco a certas clas-ses de eventos comportamentais são chamadas de te-orias de domínio único.

As teorias da personalidade se encaixam claramen-te na primeira categoria: elas são teorias gerais docomportamento. Essa simples observação serve paraseparar a teoria da personalidade da maioria das ou-tras teorias psicológicas. As teorias da percepção, au-dição, memória, aprendizagem motora, discriminaçãoe as muitas outras teorias especiais dentro da psicolo-gia são teorias de domínio único e podem ser distin-

guidas da teoria da personalidade em termos de al-cance ou abrangência. Elas não têm a pretensão deser uma teoria geral do comportamento e contentam-se em desenvolver conceitos apropriados para a des-crição e predição de uma série limitada de eventoscomportamentais. Mas, de modo geral, as teorias dapersonalidade aceitam o desafio de explicar ou incor-porar eventos de natureza muito variada, desde queeles possuam uma importância funcional demonstra-da para o indivíduo.

O fato de testes de personalidade planejados paramedir componentes da personalidade serem freqüen-temente usados na psicologia social e em outros ra-mos da psicologia não deve obscurecer esse ponto.Como Lamiell salientou, existe uma distinção entre apsicologia da personalidade, que focaliza consistências“temporais e transituacionais” dentro das pessoas, istoé, “no nível do indivíduo” (1981, p. 280), e a psicolo-gia diferencial, que focaliza o desempenho relativo daspessoas em geral em alguma característica de interes-se. As teorias da personalidade abrangem uma amplavariedade de comportamentos e de processos e consi-deram o indivíduo como uma unidade integrada. Apesquisa da personalidade baseia-se em uma teoriageral do indivíduo como um todo em funcionamentoe não emprega medidas ad hoc ou isoladas de tendên-cias de resposta.

Resta a pergunta sobre se existem teorias geraisdo comportamento que normalmente não seriam cha-madas de teorias da personalidade. Uma possibilida-de é a teoria da aprendizagem ser em alguns casossuficientemente generalizada para constituir uma te-oria geral do comportamento. Esse é claramente o casoe, como veremos com detalhes mais tarde, alguns te-óricos tentaram generalizar as teorias da aprendiza-gem de modo que fossem comparáveis em abrangên-cia a qualquer outra teoria geral do comportamento.Nesses casos, a teoria de aprendizagem deixa de sermeramente uma teoria da aprendizagem e torna-seuma teoria da personalidade ou uma teoria geral docomportamento. É verdade que tais modelos genera-lizados possuem certas características distintivas quelembram sua origem, mas, em intenção e proprieda-des lógicas, elas não são diferentes de qualquer outrateoria da personalidade.

A reunião de teorias que tiveram suas origens noslaboratórios com animais e nas teorias que se origina-ram dos consultórios dos terapeutas pode parecer for-

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çada para muitos observadores. Entretanto, se consi-derarmos as teorias do ponto de vista daquilo quepretendem fazer e de sua estrutura geral, e não doponto de vista de onde vêm ou das suposições deta-lhadas que fazem sobre o comportamento, fica claroque qualquer teoria geral do comportamento é iguala qualquer outra. Nesse sentido, todas as teorias ge-rais do comportamento são teorias da personalidadee vice-versa. Dentro desse grande grupo de teorias,podemos fazer muitas distinções, é claro. A próximaseção trata de alguns atributos em termos dos quaisas teorias da personalidade podem ser diferenciadasou comparadas.

A COMPARAÇÃO DAS TEORIASDA PERSONALIDADE

O fato mais notável com o qual o estudante da perso-nalidade se depara é a multiplicidade de teorias dapersonalidade. A confusão aumenta quando lhe di-zem que é impossível afirmar qual teoria está certa oué melhor do que as outras. Essa incerteza é tipica-mente atribuída à qualidade recente do campo e àdificuldade do assunto. Neste ponto, em vez de per-guntar se as teorias estão certas ou erradas, o estu-dante é aconselhado a adotar uma estratégia compa-rativa. Uma boa base racional para essa abordagemvem de George Kelly, cuja teoria é apresentada noCapítulo 10. Kelly aborda a personalidade da posiçãofilosófica que ele chama de alternativismo construti-vo. Colocando-a simplesmente, Kelly sugere que aspessoas diferem em sua maneira de perceber, ou cons-truir, a realidade. As pessoas diferentes constroem ouinterpretam o mundo de maneiras diferentes e, con-seqüentemente, agem de maneiras diferentes. Nenhu-ma dessas construções alternativas está necessaria-mente certa ou errada; mais propriamente, cada umatem implicações diferentes. Essa mesma abordagemsugere que as teorias da personalidade possibilitamconstruções alternativas da personalidade, nenhumadas quais está completamente certa ou errada, cadauma das quais tem diferentes forças e fraquezas, ecada uma das quais enfatiza diferentes componentesdo comportamento.

Este texto foi organizado para facilitar este pro-cesso comparativo. Primeiro, as teorias estão agrupa-

das em quatro famílias, sendo que as teorias de cadafamília compartilham certas características. As teori-as psicodinâmicas enfatizam os motivos inconscientese o conflito intrapsíquico resultante. As teorias estru-turais focalizam as diferentes tendências comporta-mentais que caracterizam os indivíduos. As teorias ex-perienciais observam a maneira pela qual a pessoapercebe a realidade e experiencia seu mundo. Final-mente, as teorias da aprendizagem enfatizam a baseaprendida das tendências de resposta, com uma ênfa-se no processo de aprendizagem em vez de nas ten-dências resultantes. Cada conjunto de teorias será in-troduzido com uma descrição mais completa dascaracterísticas da família.

Segundo, alguns aspectos da personalidade sãodiscutidos por diferentes teóricos. Por exemplo, a an-siedade, o senso de competência, o conflito intrapsí-quico e o nível de sociabilidade desempenham papéiscentrais em muitas das teorias que o estudante vaiencontrar neste livro. Por um lado, isso é alentador,porque a convergência de diferentes teóricos em de-terminadas facetas da personalidade sugere que essascaracterísticas são reais e importantes. Por outro lado,isso pode ser desorientador, uma vez que os diferen-tes teóricos necessariamente empregam linguagensespecíficas das próprias teorias para discutir essas ca-racterísticas. Para ajudar o estudante a compreenderessas convergências, nós incluiremos uma discussãoexplícita das traduções entre as teorias apresentadas.

Finalmente, existem várias qualidades pelas quaisas teorias da personalidade podem ser comparadas edistinguidas. Nós agora apontamos algumas das maisimportantes destas dimensões. Os atributos se divi-dem naturalmente entre aqueles referentes a ques-tões de adequação formal e os referentes à naturezasubstantiva da teoria.

Atributos Formais

Aqui estamos interessados em quão adequadamentea estrutura da teoria é desenvolvida e apresentada.Essas qualidades representam um ideal, e quanto maisperto a teoria chega dele, mais efetivamente pode serusada.

A questão da clareza e explicitação é de imensaimportância. Essa é uma questão de quão claramentee precisamente as suposições e os conceitos inseridosque constituem a teoria são apresentados. Em um dos

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extremos, a teoria pode ser enunciada em termos deuma notação matemática, com uma definição precisade todos os termos, com exceção dos primitivos, demodo que a pessoa adequadamente treinada possaempregar a teoria com um mínimo de ambigüidade.Nessas circunstâncias, diferentes indivíduos, empre-gando a teoria independentemente, chegarão a fun-damentos ou derivações extremamente parecidos. Nooutro extremo, encontramos teorias apresentadas comtal excesso de descrição vívida e complexa que é ex-tremamente difícil para a pessoa que vai empregar ateoria saber ao certo com o que exatamente está li-dando. Nessas circunstâncias, há pouca probabilida-de de que indivíduos, usando a teoria de forma inde-pendente, cheguem às mesmas formulações ouderivações. Ficará claro, à medida que prosseguirmos,que não existe uma teoria da personalidade que seaproxime bastante do ideal da notação matemática;no entanto, dado o livre uso da descrição verbal, va-mos descobrir que existe uma considerável variaçãoentre as teorias da personalidade na clareza de suaexposição.

Uma outra pergunta é a questão de quão bem ateoria se relaciona aos fenômenos empíricos. Aqui esta-mos preocupados com a explicitação e a praticidadedas definições propostas para traduzir as concepçõesteóricas em operações de mensuração. Em um dos ex-tremos, encontramos teorias que prescrevem opera-ções relativamente exatas para avaliar ou medir cadaum dos seus termos empíricos. Em outros casos, o te-órico parece supor que o nome atribuído ao conceitoé uma operação definidora suficiente em si mesma.

Talvez este seja um lugar apropriado para enfati-zar novamente a nossa convicção de que todas as ques-tões de adequação formal diminuem de importânciadiante da pergunta sobre quais pesquisas empíricasforam geradas pela teoria. Por mais vaga e maldesen-volvida que seja a teoria, e por mais inadequadas quesejam sua sintaxe e definições empíricas, ela passa noteste crucial se provarmos que tem um efeito genera-tivo sobre áreas de pesquisa significativas. Assim, aquestão do resultado, que supera, e na verdade tornatriviais todas as questões de adequação formal, é aquestão de quanta pesquisa importante a teoria pro-duziu. Não é fácil concordar sobre o que é pesquisaimportante, especialmente porque a importância seráem grande parte determinada pela posição teórica do

juiz. Também é verdade que nem sempre é fácil dizerexatamente qual foi o processo que levou à realizaçãode uma investigação específica. Assim, o papel gene-rativo da teoria pode ser difícil de avaliar. Apesar dis-so, existem diferenças claras e perceptíveis entre asteorias da personalidade na extensão em que foramtraduzidas em investigações de interesse geral.

Atributos Substantivos

Embora os atributos formais que acabamos de descre-ver apresentem um valor normativo ou padrão emtermos do qual cada teoria pode ser comparada, osseguintes atributos não possuem essa implicação ava-liativa. Eles são neutros em relação ao bom e ao maue refletem simplesmente as suposições particulares dateoria sobre o comportamento.

As diferenças de conteúdo entre as teorias da per-sonalidade refletem naturalmente as questões atuaismais importantes nessa área. Portanto, nas páginasseguintes, não só apresentaremos as dimensões quepodem ser usadas para a comparação das teorias dapersonalidade, mas também destacaremos as opçõesmais importantes para um teórico nessa área. Seriaperfeitamente apropriado dar a esta seção o título“questões na teoria da personalidade”.

Mais antiga que a história da psicologia é a per-gunta sobre se o comportamento humano deve servisto como possuindo qualidades intencionais ou teleo-lógicas. Algumas teorias do comportamento criam ummodelo do indivíduo em que a busca de objetivos, opropósito e o empenho são vistos como aspectos es-senciais e centrais do seu comportamento. Outrasteorias supõem que os aspectos de empenho e buscano comportamento não são importantes, e acreditamque o comportamento pode ser explicado adequada-mente sem essa ênfase. Estes últimos teóricos consi-deram os elementos subjetivos do empenho e da bus-ca como um epifenômeno, acompanhando o compor-tamento, mas não desempenhando um papel deter-minante em sua instigação. As teorias que minimizama importância do propósito ou da teleologia geralmen-te são chamadas de “mecanicistas”.

Um outro antigo debate se refere à importânciarelativa dos determinantes conscientes e inconscientesdo comportamento. Essa questão também poderia serenunciada em termos da relativa racionalidade ou irra-

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cionalidade do comportamento humano. O termo in-consciente é usado aqui simplesmente para se referiraos determinantes do comportamento dos quais o in-divíduo não está consciente e que é incapaz de trazerpara a consciência exceto em condições especiais. Asteorias da personalidade variam daquelas que rejei-tam explicitamente qualquer consideração de deter-minantes inconscientes do comportamento, ou que serecusam a aceitar a existência desses determinantes,às teorias que os consideram os mais importantes oupoderosos determinantes do comportamento. Ummeio termo é ocupado pelos teóricos que estão dis-postos a atribuir um papel central aos determinantesinconscientes no comportamento dos indivíduos per-turbados ou anormais, mas afirmam que para o indi-víduo normal os motivos conscientes são as forças go-vernantes.

Uma distinção fundamental entre as teorias dapersonalidade tem relação com a extensão em que oprocesso de aprendizagem, ou a modificação do com-portamento, é uma questão que recebe uma atençãodetalhada e explícita. Alguns teóricos da personalida-de vêem no entendimento do processo da aprendiza-gem a chave para todos os fenômenos comportamen-tais. Para outros teóricos, a aprendizagem é umproblema importante, mas secundário. Embora ne-nhum teórico da personalidade vá negar a importân-cia da aprendizagem, veremos que alguns preferemfocalizar as aquisições ou os resultados da aprendiza-gem ao invés do processo em si. Essa questão se tor-nou um ponto de discordância entre aqueles que que-rem tratar principalmente do processo de mudança eaqueles que se mostram mais interessados nas estru-turas ou aquisições estáveis da personalidade em qual-quer momento dado.

Uma questão tão antiga quanto o pensamentohumano sobre a humanidade é a pergunta sobre arelativa importância da genética, ou dos fatores here-ditários na determinação do comportamento. Pratica-mente ninguém vai negar que os fatores hereditáriostêm implicações para o comportamento, mas existemteóricos da personalidade que diminuem dramatica-mente a sua importância, insistindo que todos os fe-nômenos comportamentais importantes podem sercompreendidos sem recorrermos ao biológico e aogenético. Na América, o papel dos fatores da heredi-tariedade tem sido historicamente subestimado em

favor de algum tipo de ambientalismo, mas há umaconsiderável variação entre os teóricos no que se re-fere ao manejo e à aceitação dos fatores genéticos.

Uma dimensão adicional em termos da qual asteorias da personalidade mostram uma considerávelvariação tem a ver com a relativa importância das ex-periências desenvolvimentais iniciais. A teoria atribuiuma importância estratégica e crítica aos eventos queocorreram no período de bebê e na infância maior doque a importância atribuída aos eventos ocorridos emestágios posteriores do desenvolvimento? Como des-cobriremos, algumas teorias defendem que a chavepara o comportamento adulto é encontrada em even-tos que aconteceram nos primeiros anos de desenvol-vimento, enquanto outras afirmam explicitamente queo comportamento só pode ser compreendido e expli-cado em termos dos eventos contemporâneos ou atu-ais. Relacionada a essa questão, está a extensão emque os teóricos consideram a estrutura da personali-dade, em um determinado ponto do tempo, como au-tônoma ou funcionalmente distinta das experiênciasque precederam esse ponto. Para certos teóricos, oentendimento do comportamento em termos de fato-res contemporâneos não só é possível, mas é também oúnico caminho defensável para esse entendimento.Para outros, uma compreensão razoável do presentesempre depende parcialmente do conhecimento deeventos que ocorreram no passado. Naturalmente,aqueles que enfatizam o ponto de vista contemporâ-neo estão convencidos da independência funcional daestrutura da personalidade em qualquer momento es-pecífico no tempo, enquanto os que enfatizam a im-portância da experiência passada ou inicial estão me-nos convencidos da liberdade da estrutura presenteem relação à influência dos eventos passados.

Estreitamente relacionada a essa questão está aquestão da continuidade ou descontinuidade do com-portamento em diferentes estágios do desenvolvimen-to. A maioria das teorias que enfatizam o processo deaprendizagem e/ou a importância das experiências de-senvolvimentais iniciais tende a ver o indivíduo comoum organismo em constante desenvolvimento. A es-trutura observada em um dado ponto do tempo estárelacionada de maneira determinante à estrutura e àsexperiências que ocorreram em um ponto anterior. Ou-tras teorias tendem a considerar o organismo comoatravessando estágios de desenvolvimento relativa-

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mente independentes e funcionalmente separados dosestágios iniciais de desenvolvimento. Este último pontode vista pode levar à construção de teorias drastica-mente diferentes para o comportamento do bebê e ocomportamento do adulto.

Uma diferença importante entre as teorias da per-sonalidade está na extensão em que elas adotam prin-cípios holísticos. Isto é, elas consideram legítimo abs-trair e analisar de modo que, em um dado momento,ou em um estudo específico, seja examinada apenasuma pequena parte do indivíduo? Os indivíduos queadotam uma posição holística consideram que o com-portamento só pode ser compreendido no contexto,de modo que devemos considerar simultaneamente apessoa total, em funcionamento, juntamente com asporções significativas de seu ambiente, para que te-nhamos um bom resultado. Outras teorias aceitam ofato de que a própria natureza da ciência necessita deanálise. Essas posições normalmente não mostram ne-nhuma preocupação especial com a violação da inte-gridade do organismo total que pode existir nos estu-dos segmentais.

Tal ênfase na totalidade do indivíduo e do ambi-ente pode ser analisada de duas formas distintas. Aprimeira normalmente é referida como uma posiçãoorganísmica. Aqui existe uma ênfase maior no inter-relacionamento de tudo o que o indivíduo faz: cadaato só pode ser compreendido contra o pano de fun-do oferecido pelos outros atos da pessoa. Não só exis-te uma implicação de que todos os comportamentossão essencialmente inter-relacionados e não-suscetí-veis a técnicas de análise, mas geralmente tambémexiste um interesse pelas bases orgânicas do compor-tamento. Conseqüentemente, o comportamento deveser visto em função da perspectiva oferecida pelosoutros atos do indivíduo, assim como em função daperspectiva oferecida pelos processos fisiológicos ebiológicos concomitantes. Todos os comportamentose o funcionamento biológico da pessoa constituem umtodo orgânico que não pode ser compreendido se es-tudado de modo segmentado.

A segunda posição holística normalmente é refe-rida como uma ênfase no campo. Aqui, a teoria se pre-ocupa principalmente com a unidade indivisível deum determinado ato comportamental e o contextoambiental em que ele ocorre. Tentar compreender umadada forma de comportamento sem especificar comdetalhes o “campo” em que ele ocorre é tentar com-

preender sem considerar os fatores significativos.Embora o comportamento seja parcialmente um re-sultado de determinantes inerentes ao indivíduo, exis-tem forças externas igualmente convincentes que agemsobre a pessoa. É só quando o ambiente significativodo indivíduo está inteiramente representado que es-sas forças, agindo fora da pessoa, podem receber adevida atenção. Existe uma forte tendência, nos teó-ricos que enfatizam a importância do “campo”, de mi-nimizar a importância dos fatores hereditários, assimcomo dos eventos que ocorreram no início do desen-volvimento. Essa não é uma necessidade lógica, masna prática a maioria dos teóricos que se centraram nocontexto ambiental do indivíduo enfatiza o presenteao invés do passado e está mais interessada no queestá “lá fora” e não nos aspectos inatos do indivíduo.

Relacionada à questão do holismo está a questãoda singularidade ou individualidade. Certas teoriassuperestimam muito o fato de que cada indivíduo e,na verdade, cada ato é único e não pode ser duplica-do por qualquer outro indivíduo ou ato. Elas salien-tam que sempre existem qualidades distintivas e im-portantes que destacam o comportamento de umindivíduo do comportamento de todas as outras pes-soas. Em geral, o indivíduo que adota fortemente umponto de vista de campo ou organísmico tende a en-fatizar também a singularidade. Isso decorre natural-mente do fato de que, se ampliarmos suficientementeo contexto que deve ser considerado em relação a cadaevento comportamental, ele passará a ter tantas face-tas que certamente apresentará diferenças distintasem comparação com todos os outros eventos. Algu-mas teorias aceitam o fato de que cada indivíduo éúnico, mas propõem que essa singularidade pode serexplicada em termos de diferenças na configuraçãodas mesmas variáveis subjacentes. Outras teorias afir-mam que os indivíduos nem sequer podem ser com-parados proveitosamente em termos de variáveis co-muns ou gerais, pois elas distorcem e representam mala singularidade do indivíduo. As teorias da personali-dade variam das que não fazem nenhuma mençãoespecial à singularidade àquelas para as quais esta éuma das suposições mais centrais. Tais teorias costu-mam descrever uma hierarquia, variando de compor-tamentos específicos a tendências comportamentaismais amplas e a princípios gerais de comportamento(p. ex., Raymond Cattell e Hans Eysenck). Isto é, es-sas teorias sugerem que o grau de individualidade ou

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TEORIAS DA PERSONALIDADE 43

de generalidade depende do nível de análise que de-cidimos adotar.

Intimamente associada às questões de holismo esingularidade está a amplitude da unidade de com-portamento empregada na análise da personalidade.Aqueles teóricos que são holistas relativos ou absolu-tos escolhem analisar o comportamento só no nívelda pessoa completa, enquanto outros teóricos da per-sonalidade empregam constructos de graus variadosde especificidade ou elementalismo. Isso já foi referi-do como uma escolha entre uma abordagem molar(geral) e uma abordagem molecular (específica) aoestudo do comportamento. No segmento mais extre-mo desse contínuo, está o teórico que acredita que ocomportamento deve ser analisado em termos de re-flexos ou hábitos específicos; na outra extremidade,está o observador disposto a ver o comportamentoem algum nível mais molecular do que a pessoa intei-ra funcionando. Como veremos, pesquisas recentessobre a utilidade diferencial dos constructos de per-sonalidade amplos versus limitados e a importânciade se “agregar” observações isoladas em escalas de-sempenharam um papel importante na solução dodebate entre aqueles que defendem o comportamen-to como determinado pela situação e aqueles que en-fatizam o papel determinante das características depersonalidade.

Existe uma distinção relacionada entre as teoriasque lidam extensivamente com o conteúdo do com-portamento e sua descrição e as que lidam principal-mente com princípios gerais, leis e análises formais.Os teóricos podem concentrar-se nos detalhes concre-tos da experiência e do comportamento ou preocu-par-se principalmente com leis ou princípios que po-dem ser amplamente generalizados. Tipicamente,quanto mais abstração tiver a teoria, menor a preocu-pação com o conteúdo ou com os detalhes concretosdo comportamento.

Certos teóricos da personalidade centraram suaposição teórica na importância do ambiente psicológi-co ou da estrutura subjetiva de referência. Eles enfati-zam que o mundo físico e seus eventos só afetam osindivíduos se eles os perceberem ou experienciarem.Assim, não é a realidade objetiva que serve como umdeterminante do comportamento, e sim a realidadeobjetiva conforme é percebida ou “significada” peloindivíduo. É o ambiente psicológico, não o ambientefísico, que determina a maneira pela qual o indivíduo

vai responder. Contrapondo-se, existem posições teó-ricas que afirmam ser impossível construir uma teoriasólida do comportamento sobre as areias movediçasdos relatos subjetivos ou das complicadas inferênciasnecessárias para inferir “significado” dos eventos físi-cos. Tais teorias afirmam que podemos progredir mais,deixando de lado as diferenças individuais na manei-ra de perceber o mesmo evento objetivo e focalizan-do as relações, envolvendo eventos externos e obser-váveis.

Uma outra distinção entre os teóricos da persona-lidade tem relação com o fato de acharem ou não ne-cessário introduzir um autoconceito. Para certos teóri-cos, o atributo humano mais importante é a visão oua percepção que o indivíduo tem de si mesmo. Esseprocesso de auto-exame freqüentemente é visto comoa chave para o entendimento da multiplicidade deeventos comportamentais surpreendentes apresenta-dos pelas pessoas. Em outras teorias, não existe esseconceito, e a percepção do sujeito de si mesmo é con-siderada de pouca importância geral.

Uma característica do autoconceito que mereceespecial atenção é o senso de competência do indiví-duo. Alguns teóricos propuseram que estabelecer emanter um senso de poder, controle ou competênciapessoal funciona como um motivo predominante.Além disso, o grau de competência, quer em domíni-os gerais, quer específicos, existe como uma caracte-rística central da autodefinição e do senso de valor doindivíduo. Outros teóricos não reconhecem a existên-cia de um motivo autônomo como esse. Tal construc-to pode ser descrito em vários termos, mas serve comoum princípio organizador para o autoconceito naque-las teorias que o incluem.

Os teóricos da personalidade variam muito naextensão em que enfatizam explicitamente os deter-minantes comportamentais culturais ou a condição demembro de um grupo. Em algumas teorias, esses fato-res recebem um papel principal, modelando e contro-lando o comportamento; em outras, a ênfase é quaseexclusivamente nos determinantes do comportamen-to que operam independentemente da sociedade oudos grupos culturais aos quais o indivíduo está expos-to. Em geral, os teóricos caracterizados por uma pe-sada ênfase organísmica tendem a subestimar o papeldos determinantes comportamentais da condição demembro de um grupo. Aqueles que enfatizam o cam-po em que o comportamento ocorre vêem com mais

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simpatia o papel dos determinantes socioculturais ouda condição de membro de um grupo. Os exemplosextremos dessa posição, normalmente referidos comoexemplos de determinismo cultural, são encontradosentre teóricos antropológicos e sociológicos, mas osteóricos psicológicos também apresentam considerá-vel variação nessa questão.

Além disso, temos a questão mais geral de quãoexplicitamente os teóricos da personalidade tentamrelacionar sua teoria à teorização e aos achados em-píricos das disciplinas correlatas. Isso poderia ser re-ferido como uma questão de ancoramento interdisci-plinar. Alguns teóricos da personalidade ficamrelativamente satisfeitos ao lidar com os fenômenoscomportamentais em termos de conceitos e achadospsicológicos, com pouca ou nenhuma atenção ao queestá acontecendo nas disciplinas afins. Outros julgamque a teorização psicológica deve basear-se nas for-mulações e nos achados de outras disciplinas. Os psi-cólogos da personalidade “orientados para outras dis-ciplinas” podem ser divididos em dois tipos básicos:os que buscam orientação nas ciências naturais (bio-logia, fisiologia, neurologia, genética) e os que bus-cam orientação nas ciências sociais (sociologia, antro-pologia, economia, história).

As teorias da personalidade mostram grande va-riação no número de conceitos motivacionais que em-pregam. Em alguns casos, considera-se que um ou doisdesses conceitos estão na base de todos os comporta-mentos; para outras teorias, existe um número extre-mamente grande de motivos hipotetizados; e paraoutras, ainda, o número é praticamente ilimitado. Tam-bém existem diferenças consideráveis entre as teoriasna atenção dada aos motivos primários, ou inatos, emoposição aos motivos secundários, ou adquiridos. Alémdisso, algumas teorias oferecem um quadro relativa-mente detalhado do processo pelo qual os motivosadquiridos se desenvolvem, enquanto outras poucose interessam pela derivação ou aquisição de moti-vos.

Um outro aspecto em que as teorias da personali-dade variam bastante é a extensão em que lidam comaspectos avaliativos ou ideais do comportamento. Al-

guns teóricos oferecem uma rica descrição dos com-ponentes sadios ou ideais da personalidade, enquan-to outros se limitam a uma descrição objetiva ou fatu-al, sem nenhum esforço para indicar o positivo e onegativo ou inclusive o normal e o anormal. Algunsteóricos estão muito mais preocupados com as carac-terísticas da pessoa madura ou ideal, enquanto ou-tros relutam em considerar uma forma de ajustamen-to como necessariamente superior à outra.

Algumas teorias da personalidade derivam-se dee são mais relevantes para a descrição do comporta-mento anormal ou patológico. Outras teorias e teóri-cos centram-se no normal ou no melhor que o nor-mal. As teorias com origens nas clínicas psiquiátricas,nos centros de aconselhamento e nos consultórios deterapeutas certamente têm mais a dizer sobre o com-portamento desviante ou anormal, enquanto as teori-as derivadas do estudo das crianças e dos estudantesuniversitários são mais descritivas e representativasdo intervalo relativamente normal de personalidade.

Nós agora encerramos nossa lista de dimensõespara a comparação das teorias da personalidade, masesperamos que os leitores não se esqueçam delas. Abreve orientação aqui oferecida terá um significadomais rico e uma maior importância se essas questõesforem consideradas na leitura dos capítulos que des-crevem as diferentes teorias da personalidade. Tam-bém ficará claro que os aspectos mais distintivos des-sas teorias são decorrência de decisões relativas àsquestões que acabamos de discutir. No capítulo final,nós vamos reconsiderar essas dimensões à luz das te-orias específicas da personalidade.

Isso nos leva ao final da nossa discussão introdu-tória, e agora podemos prosseguir para a essência destevolume – as próprias teorias da personalidade. Se oleitor só pudesse gravar um único pensamento de tudoo que foi dito até este ponto, que fosse a simples im-pressão de que as teorias da personalidade são tenta-tivas de formular ou representar aspectos significati-vos do comportamento dos indivíduos e que aprodutividade dessas tentativas deve ser julgada prin-cipalmente em termos de quão efetivamente elas ser-vem como um estímulo para a pesquisa.

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TEORIAS DA PERSONALIDADE 45

ÊNFASE NAPSICODINÂMICA

Os teóricos da personalidade descritos nesta seção compartilham uma preocupação central comas forças dinâmicas que determinam o nosso comportamento e com as estruturas defensivas que,sem saber, erigimos para nos proteger dessas forças. A primeira posição considerada,evidentemente, é a de Sigmund Freud. Freud desenvolveu a primeira teoria sistemática dapersonalidade, e em muitos aspectos todos os teóricos subseqüentes apresentaram reações à suaposição.

O núcleo da teoria de Freud foi sua defesa de um modelo conflitual de motivação. Segundoessa posição, o comportamento é provocado por impulsos inconscientes, com base biológica, queexigem gratificação. Quando a expressão dessas exigências é bloqueada por constrangimentosmorais, nós negociamos compromissos comportamentais centrados nas substituições ou nasrepresentações simbólicas do objeto originalmente desejado. À medida que amadurecemos,ficamos mais capazes de adiar a gratificação até o momento e o lugar apropriados. Mascontinuamos carregando o resíduo inconsciente de conflitos infantis não-resolvidos, e eles são abase de grande parte do nosso comportamento adulto. Uma das suposições centrais de Freud erao determinismo psíquico, segundo o qual todos os comportamentos ocorrem por alguma razão.Conseqüentemente, a nossa tarefa como psicólogos é descobrir os determinantescomportamentais enterrados. Essa posição de “psicologia profunda” levou Freud a fascinantesanálises de fenômenos cotidianos, como sonhos, chistes e atos falhos. As outras suposiçõesadotadas por Freud em seus modelos desenvolvimentais separados para homens e mulheres semostraram difíceis de aceitar. Neste ponto o leitor deve ser alertado: Freud oferece a primeirailustração, e em muitos aspectos a mais clara, da necessidade de se identificar as suposições deum teórico. Uma vez que as suposições sejam aceitas, a lógica da teoria em si torna-se difícil decontestar.

Duas notas finais sobre Freud. Primeiro, Freud foi um racionalista, não um defensor daexpressão desenfreada de impulsos irracionais. Ele escreveu: “Onde era o Id, ficará o Ego” e “Avoz do intelecto é uma voz suave, mas não descansa até ser ouvida”. Segundo, Freud seconsiderava um empiricista. Isso não surpreende, dada sua carreira original em anatomia e noque agora chamaríamos de neurociência, mas nos leva a um paradoxo. A teoria de Freud muitasvezes é descartada como não-científica segundo os critérios apresentados no Capítulo 1.Qualquer teoria baseada na estrutura e nas forças inconscientes revela-se difícil, se nãoimpossível, de testar, e a testabilidade das predições é a marca registrada da teoria científica. Na

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verdade, Freud estava mais empenhado na “pós-enunciação”, ou explicação após o fato, do quena predição. Você, leitor, deve chegar à sua própria conclusão sobre a estatura e a credibilidadecientíficas da teoria de Freud.

Os cinco outros teóricos importantes discutidos nesta seção compartilham muito com Freud,mas também diferem dele de maneiras substanciais. Carl Jung foi endossado por Freud como seu“príncipe herdeiro”, mas eles acabaram tendo uma separação amarga. Jung jamais conseguiuaceitar a ênfase de Freud na sexualidade como um motivo, e propôs que os determinantesinconscientes do comportamento tinham uma origem ancestral e não-pessoal. Alfred Adlernunca foi tão próximo de Freud em um nível pessoal ou teórico como Jung. Adler estava muitomais interessado nos determinantes conscientes do comportamento do que Freud estivera, e eletambém enfatizou o “interesse social” como a base do funcionamento sadio. Karen Horneydesafiou as suposições e as conclusões de Freud acerca do desenvolvimento psicossexual. Elatambém propôs um modelo convincente, mas subapreciado, de ansiedade básica e conflitos entreos componentes do autoconceito. Harry Stack Sullivan enfatizou os estágios desenvolvimentais,e grande parte de seu modelo baseia-se em constructos de energia e ansiedade. Mas a inclusãode Sullivan no presente grupo é assegurada pelo contexto interpessoal em que ele conceitualizao comportamento do indivíduo. Erik Erikson manteve grande parte do modelo de Freud, masreinterpretou os instintos freudianos como “fragmentos pulsionais”, que só recebem significadopor meio das forças culturais e das práticas de educação das crianças. Erikson transformou osestágios do desenvolvimento psicossexual de Freud em estágios psicossociais, e estendeu aanálise desenvolvimental a todo o ciclo vital. Apesar dessas diferenças, os teóricos compartilhamuma ênfase geral no conflito intrapsíquico e na importância da ansiedade resultante.

TABELA 1 Comparação Dimensional das Teorias Psicodinâmicas

Parâmetro Comparado Freud Jung Adler Horney Sullivan Erikson

Propósito A A A A A ADeterminantes inconscientes A A M A M MProcesso de aprendizagem M B B M M MEstrutura A A M M M AHereditariedade A A A B B MDesenvolvimento inicial A B A M M AContinuidade A B A M A AÊnfase organísmica M A M M M MÊnfase no campo B B A M A ASingularidade M M A M M MÊnfase molar M M M M M MAmbiente psicológico A A M M A AAutoconceito A A A A A ACompetência M B A M M AAfiliação grupal M B A A A AAncoragem na biologia A A M B M MAncoragem nas ciências sociais A B A A A AMotivos múltiplos B M B B M MPersonalidade ideal A A A A M AComportamento anormal A A A A A M

Nota: A indica alto (enfatizado), M indica moderado, e B indica baixo (pouco enfatizado).

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Conforme indica a Tabela 1, os teóricos psicodinâmicos geralmente enfatizam o propósito eos determinantes inconscientes do comportamento. Eles estão preocupados com a personalidadeideal e com o comportamento patológico, e alguma versão do autoconceito desempenha umpapel-chave em suas posições. Observem a variabilidade, todavia, na importância que atribuem àafiliação grupal e à hereditariedade. Essas semelhanças e discrepâncias ficarão claras conformetratarmos de cada teoria.