Teorias Organizacionais e Bourdieu: a “transgressão ... Organizacionais e Bourdieu: a...

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I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 Teorias Organizacionais e Bourdieu: a “transgressão” produzindo a mudança organizacional André Luis Corrêa da Silva 1 Resumo O presente trabalho pretende apresentar algumas questões teóricas relevantes para entender processos de mudança organizacional. Nosso objetivo é o de avançar no debate teórico sobre os processos de mudança institucional através dos mecanismos de transgressão a ordem instituída. As teorias organizacionais ao tratar da mudança destacam os aspectos exógenos (ambientais), o poder organizativo e a formação de preferências dentro da organização através de um aprendizado (learning). Nesse contexto, a mudança é um processo adaptativo da organização ao meio externo. Na perspectiva da sociologia francesa, em particular, nos trabalhos de Bourdieu e aqueles pesquisadores que deram sequência a essa agenda de pesquisa, a mudança é parte integrante das lógicas do campo do poder, pois, nesse modelo a posição dos agentes é constantemente questionada. Palavras-chave: mudança organizacional; transgressão; capitais; habitus, campos. Introdução A tendência à formação de grandes correntes paradigmáticas nas Ciências Sociais, sem comunicação entre elas, afasta não somente as possibilidades diálogo, mas também as tentativas de esboço de críticas a partir do confronto de seus pressupostos. As análises sistêmicas predominam no estudo de organizações, remontando a uma tradição que vai de Parsons (1968) e que avança até o novo institucionalismo. Com relação a essa problemática, as Ciências Sociais estão divididas em duas escolas, uma de cunho objetivista e outra subjetivista. Em comum, ambas tem o fato de não se comunicarem. De qualquer forma a dificuldade de pensar a mudança organizativa a partir de fatores endógenos através das teorias organizacionais coloca a necessidade de buscarem-se alternativas. As concepções de poder organizativo e a teoria das coalizões de poder são mais efetivas em explicar as continuidades e as cooptações do que os processos de mudança. Assim como o habitus, conceito caro no modelo de Bourdieu aparece como uma estrutura estruturante, ao mesmo tempo, aparece como uma estrutura internalizada pelo agente, mas passível a deslocamentos. O habitus é a objetivação de uma ordem subjetiva, de uma determinada configuração histórica. Por essa razão ele também é um produto dessa determinada realidade. Embora, as críticas a todo o modelo 1 Doutor em Ciência Política. E-mail: [email protected]

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I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015

Teorias Organizacionais e Bourdieu: a “transgressão” produzindo a mudança

organizacional

André Luis Corrêa da Silva1

Resumo

O presente trabalho pretende apresentar algumas questões teóricas relevantes para entender processos de

mudança organizacional. Nosso objetivo é o de avançar no debate teórico sobre os processos de mudança institucional

através dos mecanismos de transgressão a ordem instituída. As teorias organizacionais ao tratar da mudança destacam

os aspectos exógenos (ambientais), o poder organizativo e a formação de preferências dentro da organização através de

um aprendizado (learning). Nesse contexto, a mudança é um processo adaptativo da organização ao meio externo. Na

perspectiva da sociologia francesa, em particular, nos trabalhos de Bourdieu e aqueles pesquisadores que deram

sequência a essa agenda de pesquisa, a mudança é parte integrante das lógicas do campo do poder, pois, nesse modelo a

posição dos agentes é constantemente questionada.

Palavras-chave: mudança organizacional; transgressão; capitais; habitus, campos.

Introdução

A tendência à formação de grandes correntes paradigmáticas nas Ciências Sociais, sem

comunicação entre elas, afasta não somente as possibilidades diálogo, mas também as tentativas de

esboço de críticas a partir do confronto de seus pressupostos. As análises sistêmicas predominam no

estudo de organizações, remontando a uma tradição que vai de Parsons (1968) e que avança até o

novo institucionalismo.

Com relação a essa problemática, as Ciências Sociais estão divididas em duas escolas, uma de

cunho objetivista e outra subjetivista. Em comum, ambas tem o fato de não se comunicarem. De

qualquer forma a dificuldade de pensar a mudança organizativa a partir de fatores endógenos

através das teorias organizacionais coloca a necessidade de buscarem-se alternativas. As

concepções de poder organizativo e a teoria das coalizões de poder são mais efetivas em explicar as

continuidades e as cooptações do que os processos de mudança. Assim como o habitus, conceito

caro no modelo de Bourdieu aparece como uma estrutura estruturante, ao mesmo tempo, aparece

como uma estrutura internalizada pelo agente, mas passível a deslocamentos. O habitus é a

objetivação de uma ordem subjetiva, de uma determinada configuração histórica. Por essa razão ele

também é um produto dessa determinada realidade. Embora, as críticas a todo o modelo

1 Doutor em Ciência Política. E-mail: [email protected]

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construcionista de Bourdieu estejam centradas na ênfase aos aspectos de reprodução da ordem

social, não podemos deixar de observar que a dinâmica interativa entre a dimensão objetiva e

subjetiva da realidade possibilita avançar na análise de aspectos negligenciados em outros modelos

teóricos. Ao compreender a organização como uma construção sempre precária de arranjos

interativos, negando sua reificação, pode-se atribuir aos agentes um papel mais efetivo do que

meros “marionetes” de estruturas previamente montadas. Nesse trabalho pretendemos avançar na

perspectiva de integrar a análise dos agentes dentro de uma através do estudo da formação de

competências, da aquisição de recursos, investigando os processos de mudança institucional

proporcionados pelas tentativas de transgressão à ordem instituída.

1. DA TEORIA DAS ORGANIZAÇÕES AO “NOVO” INSTITUCIONALISMO

É dentro das organizações que os agentes constroem na relação com a particularidade das

conjunturas, seus esquemas de legitimação e o fundamento de sua ação, assim como mobilizam

seus repertórios, adquirem recursos e os utilizam ou não.

Decorrente dessa perspectiva analítica, algumas possibilidades teóricas alternativas podem

ser pensadas a fim de dar conta da problemática. Essas opções apresentam simultaneamente

aspectos positivos e negativos no tratamento de determinadas premissas. A partir disso,

consideramos a possibilidade de discutirmos alguns pontos relevantes desses modelos teóricos com

a intenção de ressaltarmos as diferentes implicações teórico-metodológicas nas escolhas adotadas.

Dentro dos modelos que consideram a prevalência da organização sobre os indivíduos,

contamos com a teoria das organizações que é uma escola crítica da racionalidade, e que estabelece

limites para a cognição. Segundo essa corrente, “tempo e informação não são suficientemente

abundantes para que indivíduos calculem suas preferências medindo a totalidade de todas

alternativas e suas consequências” (IMMERGUT, 1998, p.14- nossa tradução). Para esta escola, as

decisões políticas não podem ser vistas como macro agregadas formadas a partir das preferências

individuais, mas como resultado de aspectos cognitivos e procedimentos organizacionais que

produzem decisões a despeito das incertezas (IDEM, 1998, p.16).

A ênfase nessa proposição é importante, por estabelecer um novo marco analítico: as

preferências, antes vistas de um ponto externo da organização, agora são entendidas como parte

constituinte dela. Em síntese, as preferências são formadas, apreendidas e expressas na relação com

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os procedimentos organizacionais. A racionalidade nesse cenário não corresponde a uma espécie de

deus ex-machine; ao contrário, ela é parte constituinte do processo, na medida em que corresponde

a um aprendizado2.

A ideia de um aprendizado, nesse nível, serve para dar conta do dilema estrutural da teoria

das organizações, uma vez que, construído o modelo, resta pouco espaço para a intervenção dos

atores, alteração das regras do jogo e mudança. Explicar mudanças desconsiderando o possível

descolamento dos atores em relação aos procedimentos organizacionais resultaria problemático, se

não observássemos a forma como aspectos cognitivos operam agregando atos individuais e

produzindo processos de decisão.

Antes de Immergut (1998), March e Olsen (1989), em trabalho seminal que serviu de

referência para a retomada de estudos organizacionais, já enfatizavam a importância de entender as

organizações políticas como arenas dentro dos quais se estabelecem comportamentos políticos. A

elaboração teórica de March e Olsen (1989) pretendeu fazer um contraponto à forma como o

behaviorismo compreendia a formação de preferências. Nessa corrente teórica, essas preferências

políticas são vistas como produto desenvolvido endogenamente às organizações. O foco teórico

sobre as instituições foi recuperado em detrimento das grandes correntes teóricas que viam a

política como subordinada a forças exógenas, como é o caso do contextualismo (MARCH; OLSEN,

1989), das visões reducionistas da política como a análise do micro-comportamento, a ação baseada

no cálculo utilitário de atores racionais, o instrumentalismo e seu primado sobre os resultados e por

fim o funcionalismo e a sua eficiência da história.

Ao relacionarmos a noção de organização com os elementos de socialização militante,

podemos compreender as organizações políticas como arenas dentro dos quais se estabelecem

comportamentos políticos (MARCH; OLSEN, 1989)3. Dentro dessa perspectiva, dois modelos de

produção de decisões podem ser observados, um cujo foco recai na interação de atores racionais e

outro que se concentra nos problemas, soluções de tipo temporal.

O segundo modelo4, ao contrário, está mais preocupado em compreender a mudança,

entender por que a despeito das escolhas dos indivíduos, muitas vezes os resultados são colocados

2 Em Charles Perrow (1986) ela aparece junto com a hierarquia burocrática como mecanismo de dominação (APUD,

IMMERGUT, 1998, p.16). 3 É possível situar a obra de March e Olsen (1989) dentro do institucionalismo sociológico ou teoria das organizações. 4 Um modelo apresentado pelos autores é o Garbage Can Model que postula a substituição da ordem temporal por uma

ordem consequencial, nesse caso, os problemas, soluções, decision makers e oportunidades de escolhas ocorrem

simultaneamente.

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num segundo plano. Quanto ao primeiro modelo, podemos dizer que: “indivíduos entram no

processo político com preferências e recursos, [...] para medir ganhos pessoais em termos de

preferências pessoais” (MARCH; OLSEN, 1989, p. 9 – nossa tradução). Nesse modelo, a

informação é um instrumento estratégico fundamental, a ponto de constituir-se no próprio “jogo”.

Os dois modelos são construídos a partir de diferentes pontos de vista, embora ambos entendam o

processo de formação de preferências em termos complexos de interações entre eventos e atores.

Não nos interessa, entretanto, mesmo que sumariamente, discutir as vertentes de análise

organizacional e sim atermo-nos às noções importantes para compreendermos como a partir desses

modelos teóricos se dá a interação entre agentes e organizações. No interior da organização, os

agentes têm a sua disposição um estoque de estratégias que dependem das fronteiras definidas pela

própria instituição e, em função disso, potencializam o uso social dos repertórios produzidos

endogenamente. Em última análise, a organização fornece o frame que permite ao agente saber se

suas ações fazem ou não sentido. As duas noções-chave para pensar o processo de escolhas e

preferências em uma organização são as de learning e appropriateness, pois permitem pensar a

racionalidade, a ação do agente e o próprio processo de mudança e esses são fatores pertinentes para

pensar no uso social dos recursos organizacionais5.

March e Olsen (1989) defenderam a premissa de que organizações constrangem e moldam a

construção e elaboração de significados. Dessa forma, expectativas, preferências, experiências e

interpretações da ação são construídas dentro das instituições políticas. Para os autores, isso se dá

de três diferentes formas: os indivíduos atribuem valor a seu passado e futuro; o processo de

compreensão de mundo inicia a partir de uma representação do mundo; e interpretação não é só um

instrumento de outros processos, como o de tomada de decisão (1989, p.39).

Essa representação do mundo guarda relação direta com a posição que o indivíduo ocupa na

organização e com o conjunto de crenças (clusters de crenças) que atribui significados às

preferências e valores que são formados endogenamente. Esses significados são cognitivamente

apropriados e permitem aos indivíduos interagirem em seu interior. De forma mimética, o processo

reproduz-se num nível macro, pois organizações não apenas adaptam-se ao seu ambiente, como

também criam seu ambiente como forma de interpretar e atuar no mundo (MARCH; OLSEN, 1989,

5 Por recursos da organização entende-se o conjunto de bens materiais e simbólicos disponíveis para utilização dentro

de uma organização. Em uma vertente associada à administração eles são denominados de recursos organizacionais e

estão divididos em recursos físicos ou materiais, financeiros, humanos, mercadológicos e administrativos (DUBRIN,

2003).

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p. 47). Todos esses componentes tem um caráter eminentemente simbólico e é justamente isso que

os autores visam trazer para explicar a política.

As noções desenvolvidas permitem compreender processos de estabilidade e mudança a

partir do papel desempenhado pelas organizações, mas, embora a questão central seja responder

como organizações contribuem para processos de estabilidade e mudança, também é pertinente

indagar como organizações fornecem o frame no qual os agentes constituem-se em porta-vozes e

acumulam recursos.

De acordo com a definição dos autores, as organizações servem para: a) prover ordem e

influenciar mudanças na política; b) contribuem para a estabilidade e mudança na vida política; c)

são formas fundamentais da política; d) definem identidades; e) possibilitam um papel mais

independente para as instituições políticas (1989, p. 16). Apresentadas dessa forma, as

características das organizações parecem atribuir-lhes um conjunto de valores normativos. A

importância das organizações aparece no fato de que a ação coletiva coordenada não é um agregado

de ações individuais e sim um learning fornecido pela organização. De acordo com March e Olsen

(1989):

Instituições tem um repertório de procedimentos, e eles usam regras para

selecionar entre elas. As regras podem ser impostas e reforçadas por coerção

direta e política ou autoridade organizacional e ele pode ser parte de um

código de comportamento apropriado que é regrado e internalizado através

de socialização ou educação (1989, p. 22).

Os autores concebem a organização como um esquema de aprendizado cognitivo

simplificado que possibilita entender a aglutinação dos interesses e a própria tomada de decisão de

forma simplificada. A organização provê o meio de expressão de porta-vozes por intermédio do

processo de delegação e garantia a estes de possuir informação necessária para poder calcular o

retorno esperado pelas escolhas feitas6. Trata-se menos da disposição de informações do que da

possibilidade que os agentes têm de interpretar os códigos, crenças e esquemas culturais propostos

pelas instituições. Todos são socializados segundo as rotinas e as regras definidas pela organização,

isso elimina, ao menos em tese, a falta de informação. Nesse contexto, as diferenças hierárquicas só

6 Ação no modelo teórico de March e Olsen (1989) pode ser traduzida como o comportamento normativo de atores

socializados em instituições.

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podem ser explicadas por fatores ideológicos ou de justificação, como a presença de expertise ou de

ideologias.

Os autores buscam dar conta desse dilema através da ideia que instituições criam fronteiras

entre domínios de ação legitimada. Essa ação é apresentada como eficiência organizacional7 e deixa

explícita a ideia de crença (1989, p. 27). A expertise e a divisão do trabalho são partes constituintes

desses mecanismos de legitimação e justificação. A expertise está associada à alta especialização e

a divisão do trabalho permite conceder uma grande autoridade e considerável autonomia para os

dirigentes.

A retomada dos estudos organizacionais foi ampliada com o debate sobre o novo

institucionalismo histórico que remonta à tradição sociológica inaugurada com Durkhein e que

culmina com Weber e a relevância atribuída às estruturas organizacionais em seu trabalho.

Diferentemente da teoria das organizações, onde a ênfase recai sobre as considerações a respeito da

racionalidade limitada dos atores e a forma como procedimentos e regras coordenam a ação de

indivíduos independentes. O institucionalismo histórico está mais preocupado com temas relativos a

poder e interesses (IMMERGUT, 1998, p.16). Quanto ao método de análise, institucionalistas

históricos têm privilegiado análises comparativas.

Immergut (1998) pontua três aspectos cruciais para entender a agenda de pesquisa do

institucionalismo histórico: primeiro, os pesquisadores dessa área estão interessados em

racionalidades “alternativas” (1998, p.18). Nesse caso, tanto os indivíduos quanto as coletividades

desenvolvem interpretações acerca de seus próprios interesses, baseados evidentemente em um

esquema de interpretação da própria realidade. Sendo assim, não há razões para falarmos em uma

ratio que não seja historicamente datada. Como adverte a autora, a própria noção de razão

instrumental encontrada em Weber é produto de uma realidade histórica particular. Segundo, os

institucionalistas históricos entendem a causalidade como sendo contextual. Essa é uma

aproximação com o método histórico8 e um afastamento com os pressupostos do método das

ciências sociais9. Terceiro, o novo institucionalismo enfatiza as contingências da história, isto é,

7 Desse processo advém vantagens para pessoas que possuem recursos econômicos ou intelectuais (1989, p. 28). 8 Immergut (1998) aponta para o fato de que os institucionalistas históricos estão indo além da utilização da história

como método e trabalhando história como uma teoria ou uma filosofia. 9A observação comparativa histórica trabalha freqüentemente com um número de variáveis maior que o número de

casos e isso inegavelmente possui implicações metodológicas. Outro ponto de discussão importante é o fato de que fica

difícil estabelecer a relação de causalidade ou mesmo os graus de associação entre as variáveis já que se trata de um

processo de relação multivariada. A despeito desses questionamentos de método as análises dos institucionalistas

históricos permitem testar hipóteses.

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nossa compreensão sobre os eventos históricos particulares considera as possibilidades que não

figuraram e, mais do que isso, dos fatores acidentais que produziram este ou aquele resultado.

Ao olhar para trás, as opções deixadas pelo caminho são ignoradas no repertório de soluções

ofertadas para o futuro e este é um elemento importante para se pensar tanto em path dependence

quanto em increasing returns. As opções descartadas e o arranjo estrutural dos fatores que

permitem uma dada contingência histórica produzem uma sensação de “eficiência da história”. Essa

eficiência é amplificada através da dependência de trajetória e de um reforço dos fatores que

asseguram essa contingência através de retornos crescentes. A questão-chave aqui é como pensar a

mudança numa configuração dessa natureza. Uma hipótese teórica para esse caso seria a de que a

mudança só seria possível mediante ruptura.

Outro aspecto relevante discutido por Immergut (1998) acerca do institucionalismo histórico

é a tendência de endogenizar a construção política de interesses em seus modelos (1998, p. 20). Ao

tornar endógena a formação de preferências, uma das consequências é que as instituições passam a

ser vistas como espaços de ressocialização reduzindo os indivíduos a meros portadores de

identidades coletivas e, como sugere a própria Immergut (1998), os atores conseguem compreender

as tensões entre seus interesses e sua identidade coletiva. Mais uma vez, coloca-se o problema da

possibilidade de explicar mudanças, pois, se as instituições servem para ditar o comportamento dos

atores políticos, o resultado será uma equação com resultados pré-definidos.

A mudança, num esquema de análise radicalmente fechado, só ocorreria em havendo um

deslocamento entre a forma como os atores foram socializados e o desenvolvimento institucional.

Por outro lado, se compreendermos a formação de preferências como um processo não redutível à

adequação a um frame institucional, mas ela própria entrecortada por interesses, oportunidades

políticas e influências cruzadas, ampliamos a capacidade de compreender mudança, ainda que ao

custo de reduzirmos a capacidade analítica de entendimento sobre ela.

Immergut (1998) utiliza-se de uma série de exemplos e de trabalhos para demonstrar que

não apenas instituições, mas também autoridades políticas e cultura política são importantes para

compreender como se estruturam estratégias e se organizam interesses e cursos de ação. O fato é

que diferenças institucionais podem explicar por que interesses construídos de forma similar podem

produzir resultados diferentes (1998, p.21), pois é a percepção das possibilidades oferecidas para

mudança num determinado cenário institucional que definirá o melhor curso de ação.

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Muitos institucionalistas têm colocado em relevo o contexto para explicar relações de poder

e interesses. Nesse tipo de abordagem, as instituições podem oferecer o contexto no qual a ação

política desenrola-se ou a modalidade que ela assume. Fatores contextuais podem ser fatores que

incrementam mudanças. Se explicar mudança institucional apresenta-se como um problema, os

institucionalistas históricos o contornam ao não assumir a existência de equilíbrio entre poder e

instituições. Essa relação está intimamente ligada à forma como se dá a formação de decisões

políticas e, antes disso, a formação das preferências dos atores políticos.

Reconhecendo que se trata de um processo complexo, convém acompanhar a definição na

qual Immergut (1998) estabelece que: “instituições não determinam comportamento, elas

simplesmente provêm um contexto para a ação que nos auxilia a entender porque atores fazem as

escolhas que fazem” (1998, p. 26- nossa tradução).

Apesar das diferenças existentes entre os três tipos de abordagens institucionalistas, há

muitos pontos de contato. Immergut (1998) chama a atenção para três questões que considera

problemáticas no institucionalismo histórico. O primeiro relativo ao problema do falsificacionismo,

o segundo diz respeito à adoção incorreta de premissas de modelos que esses scholars criticam e

terceiro um problema relativo à dificuldade de cumulatividade de seus trabalhos.

Boa parte dessa reserva em relação ao institucionalismo histórico vem do fato de que o

terreno metodológico privilegiado, o estudo comparativo fundado, sobretudo em termos de duas

orientações, escolha racional versus interpretação, tem privilegiado estudo com poucos casos e

muitas variáveis. Essa digressão que pretendia dar conta das várias nuanças assumidas pelas

interpretações institucionalistas justifica-se tanto pela possibilidade de situar as possíveis diferenças

e divergências existentes quanto por seus pontos de contato.

2- O ESTRUTURALISMO CONSTRUCIONISTA DE BOURDIEU

Embora para o esquema pensado por Bourdieu o conceito de Estrutura seja inseparável do

conceito de habitus, nas tentativas de dialogar com seu modelo teórico, os analistas de organizações

tem privilegiado um sobre o outro. Um dos aspectos sublinhados nas tentativas de estabelecer um

diálogo entre as diferentes perspectivas é aquele relacionado à ênfase atribuída ao poder e ao

interesse, muito mais significativos nas abordagens construtivistas de Bourdieu do que naquela

contemplada pelo funcionalismo e nas vertentes institucionalistas. Para alguns desses interpretes,

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inclusive, as análises que se debruçam a partir da teoria das organizações, negligencia as dimensões

ligadas ao conflito e as disputas. Como ponto de partida interessa compreender a de que forma a

incorporação da idéia de habitus as análises pode qualificar o entendimento, sobretudo, da mudança

organizacional. De acordo com Bourdieu o habitus serve como um esquema de interpretação, já que

o espaço social por si só não determina necessariamente a ação dos indivíduos. Este habitus é

construído a partir da biografia e de acordo com os campos percorridos ou como salienta o próprio

Bourdieu (1996): “O habitus é essa espécie de senso prático do que se deve fazer em dada situação

– o que chamamos, no esporte, o senso do jogo, arte de antecipar o futuro do jogo inscrito, em

esboço, no estado atual do jogo”. (1996, p. 42- grifos do autor). É o habitus que serve como

orientação dentro de um sistema de preferências levando a um campo do poder em detrimento do

outro ou mesmo a determinadas atitudes dentro de um campo específico, pois, em não se tratando

de um esquema determinista, ele guarda relação direta com a posição que o individuo ocupa no

interior de cada campo. Existe uma particularidade sobre o habitus que é o processo de sua

produção e aquisição, pois, o habitus não é –como salienta Bourdieu- substancialista, ele é parte da

estrutura estruturante do campo. Explica-se dessa forma o fato de ser um aprendizado, como

demonstra Bourdieu (1989) ao comentar a aquisição do habitus político como supondo uma

preparação especial, o domínio de um conjunto de conhecimentos e de saberes específicos (1989,

p.169). Esse aprendizado que é parte constituinte do habitus também é verificado no domínio que as

lideranças sindicais precisam ter sobre os conhecimentos e saberes considerados importantes no

campo. Essa aquisição reflete-se na conquista de um poder simbólico que “[...] é um poder que

aquele que lhe está sujeito dá àquele que o exerce, um crédito com que ele o credita, uma fides, uma

auctoritas, que ele lhe confia pondo nele a sua confiança”. (BOURDIEU, 1989, p.188 – grifos do

autor).

Diante disso impõe-se uma consideração que diz respeito ao fato de que esse acúmulo de

capital também se dá em função da possibilidade de dominar o conhecimento de um conjunto de

práticas, mas também de dominar um campo semântico. E quanto a isso é importante observar que

o discurso faz sentido no seu campo e nas condições objetivas em que foi produzido, ou ainda:

[...] a competência prática é adquirida em situação, na prática: o que é

adquirido é, inseparavelmente, o domínio prático da linguagem e o domínio

prático das situações, que permitem produzir o discurso adequado numa

situação determinada. (BOURDIEU, 1994, p.158).

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De todas as maneiras é uma relação de força, de poder, onde se busca de alguma forma

reproduzir o capital que se possui, ainda que, se acrescente que essa reprodução implica na criação

de novos capitais com valores variados colocados num mercado de disputa. Tudo isso envolve uma

relação de força simbólica entre interlocutores. Ocorre que se o habitus lingüístico é a “[...]

capacidade de utilizar as possibilidades oferecidas pela língua e de avaliar praticamente as ocasiões

de utiliza-las [...]” (BOURDIEU, 1994, p.182), quais seriam os elementos distintivos do discurso

adotado pelas “novas” lideranças? Tome-se em conta que a questão da semântica associa-se ao

domínio dos símbolos e também ao espaço de enunciação, afinal, não é qualquer um que pode falar

qualquer coisa ou manipular os símbolos. No caso dessas lideranças sindicais há que se considerar o

modo de falar, o que é dito e para quem é dito e, especialmente o local de onde é dito, pois, isso é

fundamental quando se pensa em discursos para campos distintos (político e sindical). A palavra é

fundamental para a tarefa de legitimar-se, pois como assegura Lagroye (1985) “[...] a legitimação

consiste na demonstração de uma atitude que visa assegurar o triunfo dos valores [...]”. (1985,

p.400- nossa tradução). Isso não seria um problema se estivéssemos pensando unicamente em

legitimação num campo especifico, entretanto, a necessidade de pensar a reconversão de capitais

obriga a relativizar os valores produzidos na relação com cada um dos campos. A própria

especialização dos quadros políticos se torna matéria de análise na medida em que interessa

investigar uma mudança estrutural no seu padrão histórico de recrutamento (ainda que seja uma

mudança localizada) no sentido de compreender que o que garante o poder nesse campo é “da

reivindicação por parte dos dirigentes do monopólio da palavra de autoridade”. (LAGROYE, 1985,

p.49). Observar a reconversão implica observar tanto as transformações nas palavras originadas no

campo sindical quanto àquelas carregadas para dentro do campo político emprestando legitimidade

para essa reconversão.

Ao enveredar por uma investigação centrada na análise biográfica pretende-se ver as

estratégias que determinaram as escolhas dos atores, em função dos recursos que eles puderam

mobilizar e do jogo de concorrência que eles estimam enfrentar. O método parte do

desenvolvimento de trajetórias de carreiras convergentes, concorrentes ou paralelas a fim de

esclarecer o habitus e suas estruturas hierárquicas ou institucionais que determinam seus recursos e

opiniões.

Diferentemente do individualismo metodológico onde o indivíduo acaba sendo regido por

um axioma que lhe é externo, a razão, ou ainda uma razão econômica que na essência (não no

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sentido do essencialismo) não encontra o papel da cultura nos seus pressupostos, o individuo num

sistema de ação é também fruto das suas condições sociais de existência, é esta que providenciará

seu espectro de opções. A capacidade de assegurar as melhores escolhas é o que garantirá a esse

individuo seu pertencimento a um grupo social determinado e ao domínio da sua categoria de ações.

(LAGROYE, 1997, p.215).

Obedece-se a regra de luta pelo capital em disputa no campo específico, ocorre que os

capitais variam na relação com o local e com o tempo. A forma como cada agente assegura o

controle dos “bens” simbólicos produzidos no interior do campo criam condições para a ampliação

de sua influência sobre esse campo. Não se trata, entretanto, de um esquema de dominação como

percebido pelo(s) marxismo(s), pois, existe para Bourdieu a idéia de que há certo senso-comum na

construção dessa estrutura de dominação, pois, os dominados em geral compartilham das regras que

estabelecem a sua dominação. Todos são participantes na luta pelo poder dentro de relações de

poder que não são fixas, já que ao mesmo tempo em que se encontram estruturadas elas são também

estruturantes. Essas lutas entre dominantes e dominados sempre envolvem poder simbólico. E esse

poder não esta unicamente no poder de exercer coerção física pode encontrar-se na própria questão

do discurso reconhecido como válido. Aqui se encontra uma forma de exercício do poder simbólico

e também porque não dizer uma forma de violência simbólica. Quanto a isso o que é definido como

o bom, verdadeiro, justo é provido de todas as adjetivações positivas constituindo-se a partir de

então no discurso ortodoxo, que define o poder. Todavia, como foi alertado inicialmente

circunscrever o conceito pode ser uma armadilha se não atentarmos para o fato apontado por

Coradini (1996) de que não faz sentido o conceito de capital sem vinculá-lo adequadamente com os

demais conceitos de estrutura de capital, posição social, formação de “classes”, princípios de

classificação, formas de dominação, legitimação, estratégias de reprodução social, etc.

(CORADINI, 1996, p.215). Essa preocupação deve ser redobrada se lembrarmos de que o capital

em disputa no campo guarda características que só podem ser apreendidas com um exame

metódico. A própria agenda de pesquisa do modelo teórico esboçado por Bourdieu ampara-se na

necessidade da produção de um vasto conjunto de trabalhos empíricos a fim de dialeticamente

reestruturar continuamente o próprio corpo teórico.

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3- AS TENTATIVAS DE SINTESES

Ainda que possamos apontar diferenças entre os tipos de abordagem (institucionalistas e do

estruturalismo construcionista de Bourdieu), alguns autores consideram que a utilização de

categorias propostas por Bourdieu, tais como as de campos e habitus, são relevantes para explicar

processos de mudança. Nessa linha, Misoczky (2003) defende essa premissa assumindo entre as

vantagens desse tipo de abordagem “compartilhada” a possibilidade de ver a organização como uma

construção social sem retificá-la e reconhecer as disputas e os processos de luta pelos capitais em

cada diferente campo social.

Kirschbaum (2012), discutindo o texto de Misoczky (2003), apontou algumas de suas

lacunas e inconsistências, sem deixar de reconhecer a importância da proposta de abordagem inter-

paradigmática da autora. Ao retomar os principais conceitos presentes, tanto nos teóricos

institucionalistas quanto em Bourdieu, o autor sugere um debate com vários pontos de contato. O

reconhecimento de uma dívida intelectual comum entre os dois modelos autoriza não apenas a

refletir sobre as possibilidades dos modelos teóricos como também em buscar um diálogo profícuo,

que em última instância, permita que pesquisadores institucionalistas incorporem conceitos

desenvolvidos por Bourdieu e vice-versa.

Diferentemente de Misoczky (2003) e de Kirschbaum (2012) que discutem as possibilidades

e limites de diálogo entre diferentes paradigmas teóricos, menos preocupados na resolução de

problemas específicos, Marenco (2008) procurou discutir a luz da teoria das elites às possíveis

contribuições para a resolução dos enigmas na agenda de pesquisa das instituições políticas. No seu

entendimento a:

Eventual utilidade de uma perspectiva analítica centrada na composição e

recrutamento de elites políticas reside menos na controvérsia de se minorias

continuam a preponderar mesmo em democracias (primeira geração elitista),

ou se essas minorias são homogêneas ou divididas (segunda geração

elitista), e mais na potencial possibilidade de se explorar as conexões entre

elites e instituições políticas, buscando compreender processos de

selfenforcing institucionais. (MARENCO, 2008, p.6)

Mais preocupado com uma resposta utilitária da teoria das elites do que com as tentativas de

ruptura paradigmática, Marenco (2008) examina de que forma essa retomada seria útil a fim de dar

resposta a questões pendentes nas teorias institucionalistas, tais como, a tendência a endogeneizar a

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explicação para formação de elites e a questão da mudança institucional. Tangenciando as

discussões de Mosca (1992 [1986]) e Pareto (1935) sobre a inevitabilidade de minorias que

governam, da lei de ferro da oligarquia expressa na obra de Michels ou da confirmação da hipótese

de homologia estrutural que balizaram investigações sobre os padrões de recrutamento, Marenco

(2008) propõe pensar a partir das questões presentes nesses modelos teóricos os fatores endógenos

que explicam as mudanças institucionais. A perspectiva de integrar a análise dos agentes dentro de

uma organização permite além de avançar no estudo da formação de competências, da aquisição de

recursos, identificar os processos de mudança institucional proporcionados pelas tentativas de

transgressão a ordem instituída.

4- O NÍVEL MICROMESO DE ANÁLISE

Para os objetivos desse trabalho interessa, particularmente, o que Sawicki e Siméant (2011)

denominaram de nível micromeso, ou ainda um modelo organizacional da militância. Nesse

modelo, o engajamento “emerge na intersecção das expectativas organizacionais e das experiências

pessoais” (KANTER, 1968, p. 499). Logo, compreender o engajamento em uma organização supõe

não apenas dar conta dos motivos e das motivações, mas também das estratégias10 dos agentes

sociais para manter e orientar essas motivações no interior da organização, possibilitando a

acumulação de recursos.

Entendemos a organização como algo que não pode ser explicado pelos seus objetivos

declarados. De fato ela só existe à medida que consideramos os indivíduos que agem em seu

interior e que se encontram inseridos em um determinado contexto social. Nesse sentido, a

organização deve ser entendida como sendo o “produto objetivado de uma prática incessantemente

em jogo” (PUDAL, 1989, p. 125). Não se trata apenas de uma entidade formalizada, mas de todas

as formas de ação instituídas e, inclusive, das imposições sobre seus membros dos mecanismos de

seleção (SAWICKI; SIMEANT, 2011).

A “configuração” depende das disposições dos militantes, dos recursos que se encontram em

disputa e da legitimidade construída pelos militantes (TOMIKASI; ROMBALDI, 2009). É

importante estabelecer uma distinção entre organizações que tomam como objetivo um interesse e o

10 Em Bourdieu (1989) o agente é mais “atravessado” pelas estratégias do que é capaz de propô-las, ainda assim, ele

possui alguma margem de manobra, menos do que em Giddens (1993) e menos ainda do que os indivíduos agindo sob

condições de escolha sub-ótima da teoria da escolha racional.

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transformam em causa ao estilo dos grupos de interesse (OFFERLÉ, 1998) e as organizações

formais. Trata-se de configurações distintas que afetam a hierarquização e as formas de

representação. Alguns fatores esclarecem essas diferenças, tais como: grau de legalização segundo a

legislação e a regulamentação do Estado, a relação com outros grupos ou organizações e a

existência ou não de parceiros ou adversários. Em uma organização estruturada formalmente, duas

dimensões são importantes para compreender como o interesse pode ser expresso: a força do

número e a notoriedade de um pequeno número de indivíduos.

A análise processual do engajamento pressupõe a “inscrição dos atores sociais dentro de

múltiplos mundos e submundos sociais que podem, ocasionalmente, entrar em conflito”

(FILLIEULE, 2001, p. 207). Os indivíduos incorporam uma multiplicidade de esquemas de ação e

tanto a trajetória individual quanto a coletiva combinam-se codeterminando as carreiras militantes,

não sendo possível distinguir o estudo das disposições do estudo das instituições ou dos grupos que

originam a institucionalização (SAWICKI; SIMÉANT, 2011). Logo, para Sawicki e Siméant

(2011), o desafio é articular os três níveis de observação: o micrológico (indivíduo), o mesológico

(grupos ou organizações) e o macrológico (as transformações sociais, econômicas e políticas). A

ênfase nos aspectos micrológicos negligenciou ao longo do tempo os efeitos das mudanças

conjunturais sobre os custos do engajamento, o capital militante, a disponibilidade a se engajar e as

expectativas em relação a essa militância ao colocarmos apenas sobre as características individuais

o primado da explicação das trajetórias militantes, dos motivos para os engajamentos avançamos,

no limite extremo, para as fronteiras do utilitarismo, do homo economicus. Além disso,

desconsiderar os contextos históricos equivaleria a ignorar o peso relativo e diferencial de cada

conjuntura nas estratégias e na aquisição de recursos e sua reconversão.

5- A TRANSGRESSÃO A ORDEM INSTITUÍDA E A MUDANÇA ORGANIZACIONAL

São as organizações que proveem uma alternativa através da concentração do capital simbólico na

pessoa do porta-voz. A militância proporciona o acesso a cargos que, por sua vez, resultam em

benefícios não coletivos para os dirigentes. Esses benefícios consistem em estímulos materiais e

retribuições honoríficas, sendo essas últimas uma dimensão que não deve ser negligenciada do

militantismo quando se pensa na reconversão de capitais para a política partidária.

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Bourdieu (1988), com a noção de interesse11, avançou para além das finalidades econômicas

e abarcou alguns conceitos que se tornaram fundamentais daí em diante para a compreensão dos

engajamentos e da militância: os conceitos de lucro simbólico, capital simbólico, interesse

simbólico. O autor parte da premissa de que os indivíduos não realizam atos arbitrários e que, por

essa razão, suas ações apresentam-se motivadas por várias ordens de interesses que podem

apresentar-se como explícitos ou estratégicos.

Um caso exemplar é o dos líderes sindicais da CFDT após a “crise de 1968”. A conjuntura

diferenciada permitiu que a distinção entre as ordens de atividades fosse momentaneamente abolida.

Evidentemente que essa transgressão parcial deu-se ao preço de acrobacias que imiscuíram os

sentidos entre uma política dita “politicienne” e uma política em sentido “mais nobre”. A

politização12 suscita um imenso trabalho de legitimação ou de justificação na medida em que visa

ultrapassar os limites ditados pela setorização. Ela implica ademais em uma convergência possível

dos objetivos dos agentes que portam papéis distintos. Offerlé e Gaxie (1985) ainda apresentaram

uma pesquisa a respeito da ascensão ao poder do PS na França e a emergência de militantes

sindicais e associativos ocupando cargos estatais.

Numa perspectiva mais ampla, a pesquisa de Juhem (2001) a respeito da reconversão de

capitais dos militantes fundadores do SOS Racismo forma um painel que permite observar como o

“uso e a propagação das ‘ideias de maio’ (de 1968) são então favorecidas pela ação de

empreendedores políticos da extrema esquerda (...)” (JUHEM, 2001, p.132). Para o nosso caso,

podemos aventar que a propagação da ideia de redemocratização e de luta contra a ditadura foi

favorecida pela ação política desses militantes dirigentes através dos mais variados repertórios de

ação coletiva.

Siméant (2003), ao tomar como universo empírico o militantismo humanitário e a tensa

relação com a política partidária identificou um distanciamento desses agentes em relação à política,

considerada um tipo de militantismo desvalorizado. Isso, entretanto, não exclui em nada a

politização entendida como narrativa da política, recusando seu modo de reconhecimento, avaliação

e interesse (2003, p.169).

11 Para Bourdieu (1988), a noção de interesse funciona como um instrumento de ruptura com a mistificação das

condutas humanas. 12 Ainda que o conceito de politização tenha sido concebido para entender a dinâmica de sociedades em que ocorre a

autonomização e independência de esferas sociais é possível traduzi-lo para uma realidade como a brasileira. Por mais

que nas sociedades periféricas a relação com a política seja indiscernível das outras esferas da vida social (COMBES,

2008) é justamente nessa relação que ela (a politização) se torna importante para explicar [não apenas as transgressões],

mas, sobretudo, as possibilidades de compensar a escasses de recursos sociais de origem.

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O humanitarismo revela a presença de uma oposição entre verdade e puro a falso e impuro.

Essa tendência apresenta uma aparente ausência de interesse na política; quando ao contrário, esse

tipo de militantismo (humanitário) garante um forte prestígio social a partir justamente da

apresentação apolítica (IDEM, p. 177). O humanitário nesse caso, antes de ser uma negação da

política, representa um prolongamento do militantismo político.

Agrikoliansky (2002), ao investigar o porquê de alguns indivíduos que portam

características comuns se engajarem enquanto outros permanecem inativos enveredou sua pesquisa

para um estudo do militantismo político, observando o itinerário dos militantes de uma organização,

a Liga dos Direitos do Homem (LDH). A problemática investigada pelo autor diz respeito aos

determinantes do engajamento ou do contrário, dos estímulos para o desengajamento.

Em outra pesquisa com o mesmo universo empírico, Agrikoliansky (2002) colocou o acento

sobre os recursos hierárquicos como exigindo a constituição de um interlocutor da administração. A

hierarquia de postos e cargos na organização, enquanto legitimador da condição de porta-voz

autorizado foi ainda alvo da análise de Agrikoliansky (1994). O autor analisou 70 biografias de

candidatos ao Comitê Central da LDH partindo da premissa de que organizações têm um papel

importante na estruturação do mundo social. Elas produzem importantes elementos de objetivação e

produção de sentido do qual a função de representação através da designação do porta-voz

desponta. A construção dessas biografias, assim como o uso de estratégias de apresentação de si, é

condição relevante para explicar a legitimação.

Uma das dimensões mais importantes do difícil aprendizado que é a politização é o de

“saber o que é conveniente fazer” sob as diversas circunstâncias, ou seja, o fato é que, ao

trabalharem a fim de transgredir os papéis sociais, esses indivíduos rompem processos

historicamente estabelecidos de “setorização”13, caracterizados pelas lutas por legitimação e, por

extensão, por hierarquização. A transgressão permite mesclar os setores, ainda que cada um deles

seja regido por ações orientadas através de lógicas distintas.

6- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dentro dos analistas que se debruçam sobre a Teoria das Organizações, especialmente

aqueles dedicados a investigação mais genérica e normativa do comportamento organizacional há

13 Um exemplo desta setorização é a crescente diferenciação das atividades políticas e das atividades sindicais, ainda

que os objetivos dos dois se apresentem como idêntico (LAGROYE, 2003).

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um relativo consenso a respeito das limitações dos modelos vigentes para dar conta da mudança

organizacional. Considerados os aspectos sob as quais essas limitações tornam-se mais relevantes,

tentativas de síntese ou problematizações foram esboçadas (MISOCZKY, 2003; KIRSCHBAUM,

2012; PECI, 2003). As questões mais discutidas ficaram por conta das possibilidades de

incorporação de conceitos e categorias encontradas na teoria da estruturação de Bourdieu a fim de

compreender aspectos negligenciados na Teoria das Organizações, tais como, conflito e relações de

poder.

Evidentemente não se trata de uma simples transposição de aspectos de um modelo teórico

para outro, pois, como todos esses autores observaram há uma considerável distância entre seus

pressupostos epistemológicos. Ainda assim consideramos importante apontarmos para o aspecto

mais pertinente e interativo da possibilidade de avançar no entendimento, sobretudo, de

organizações políticas. Ao resgatar a dimensão do poder e do interesse e os mecanismos de

contestação dentro do espaço social, resgatamos em última análise, tanto a contraposição a uma

tendência de entender as organizações como entidades monolíticas, explicáveis por suas declarações

a cerca da própria existência, quanto o debate a cerca da ação social e de suas potencialidades.

Nesse sentido, a transgressão representa o mecanismo pelas quais “novos” agentes questionam a

ordem estabelecida e propõem alterações nessa estrutura, resultando em “novo” arranjos.

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