TERESINA E SEUS DRAMAS: TRANSPORTE COLETIVO, TRÁFEGO … · muitos desafios de estruturação...

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TERESINA E SEUS DRAMAS: TRANSPORTE COLETIVO, TRÁFEGO E TRANCO (DÉCADA DE 1970) 1 ALLAN RICELLI RODRIGUES DE PINHO 2 CLÁUDIA CRISTINA DA SILVA FONTINELES 3 RESUMO: O presente estudo busca compreender como ocorreram as transformações no transporte coletivo da cidade de Teresina no início da década de 1970 e, sua relação com o projeto de modernização da malha viária da capital, no período recortado. O estudo procura ainda, analisar os conflitos e tensões existentes em torno das demandas de transporte coletivo apresentadas nos periódicos locais, procurando identificar o papel do transporte coletivo nas transformações dos espaços da cidade, em um período marcado por discursos de progresso e modernização. A partir da metodologia da história oral, da pesquisa documental e hemerográfica nos periódicos da época, buscou-se ainda entender a participação dos vários grupos sociais ligados aos transportes coletivos e os traços que marcaram e constituíram a memória dos transportes na capital no início dos 1970. Palavras chaves: Cidade; Memória; Teresina; Transporte Coletivo. 1. Transporte e modernização Teresina na década de 1970 estava em pleno processo de expansão, enfrentando muitos desafios de estruturação urbana, e um deles era justamente, estabelecer um sistema de transporte 4 coletivo eficiente, e uma malha viária que pudesse atender as demandas da 1 Trabalho apresentado no ST 02 A Memória e a Escrita da História da Cidade: Narrativas orais e literatura memorialística do XI Encontro Regional Nordeste de História Oral Ficção e poder: oralidade, imagem e escrita, ocorrido de 9 a 13 de maio de 2017. 2 Mestrando(a) do Programa de Pós-Graduação em História do Brasil da Universidade Federal do Piauí, sob orientação do(a) Prof(a). Dr(a). Cláudia Cristina da Silva Fontineles. Teresina-PI. E-mail: [email protected]. 3 Dra. em História (UFPE). Atualmente é professora adjunta da Universidade Federal do Piauí e Coordenadora de História PIBID/CAPES da Universidade Federal do Piauí. Atuando na Pós-Graduação em História do Brasil. 4 Sistema de transporte público ou de transporte coletivo são meios de transportes fornecidos por empresas públicas ou privadas onde numa cidade é providenciado o deslocamento de pessoas de um ponto a outro dentro da área dessa cidade. As áreas urbanas de médio e grande porte geralmente são dotadas de algum tipo de transporte coletivo seja administrado pela prefeitura local ou através de concessão de licenças muitas vezes subsidiadas. O transporte coletivo urbano é fornecido principalmente para servir àqueles que não possuem meios de adquirir um veículo para sua locomoção e precisam percorrer longas distâncias até o seu local de trabalho e também para diminuir a poluição que esses carros provocariam. O transporte coletivo iniciou-se em 1662 na França, criado por Pascal e funcionou por 15 anos até o Parlamento restringir o uso apenas àqueles que tivessem “condições” que a tarifa foi aumentada de cinco para seis centavos. Disponível em:< http://www.naganuma.com.br/artigos-publicados/51-jornal-a-gazeta-do-acre/91-transporbte-publico-ou coletivo.html> Acesso em: 07 de mar. 2016

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TERESINA E SEUS DRAMAS: TRANSPORTE COLETIVO, TRÁFEGO E TRANCO

(DÉCADA DE 1970)1

ALLAN RICELLI RODRIGUES DE PINHO2

CLÁUDIA CRISTINA DA SILVA FONTINELES3

RESUMO: O presente estudo busca compreender como ocorreram as transformações no

transporte coletivo da cidade de Teresina no início da década de 1970 e, sua relação com o

projeto de modernização da malha viária da capital, no período recortado. O estudo procura

ainda, analisar os conflitos e tensões existentes em torno das demandas de transporte coletivo

apresentadas nos periódicos locais, procurando identificar o papel do transporte coletivo nas

transformações dos espaços da cidade, em um período marcado por discursos de progresso e

modernização. A partir da metodologia da história oral, da pesquisa documental e

hemerográfica nos periódicos da época, buscou-se ainda entender a participação dos vários

grupos sociais ligados aos transportes coletivos e os traços que marcaram e constituíram a

memória dos transportes na capital no início dos 1970.

Palavras chaves: Cidade; Memória; Teresina; Transporte Coletivo.

1. Transporte e modernização

Teresina na década de 1970 estava em pleno processo de expansão, enfrentando

muitos desafios de estruturação urbana, e um deles era justamente, estabelecer um sistema de

transporte4coletivo eficiente, e uma malha viária que pudesse atender as demandas da

1 Trabalho apresentado no ST 02 – A Memória e a Escrita da História da Cidade: Narrativas orais e literatura

memorialística do XI Encontro Regional Nordeste de História Oral – Ficção e poder: oralidade, imagem e

escrita, ocorrido de 9 a 13 de maio de 2017.

2 Mestrando(a) do Programa de Pós-Graduação em História do Brasil da Universidade Federal do Piauí, sob

orientação do(a) Prof(a). Dr(a). Cláudia Cristina da Silva Fontineles. Teresina-PI. E-mail:

[email protected]. 3 Dra. em História (UFPE). Atualmente é professora adjunta da Universidade Federal do Piauí e Coordenadora

de História PIBID/CAPES da Universidade Federal do Piauí. Atuando na Pós-Graduação em História do Brasil. 4 Sistema de transporte público ou de transporte coletivo são meios de transportes fornecidos por empresas

públicas ou privadas onde numa cidade é providenciado o deslocamento de pessoas de um ponto a outro dentro

da área dessa cidade. As áreas urbanas de médio e grande porte geralmente são dotadas de algum tipo de

transporte coletivo seja administrado pela prefeitura local ou através de concessão de licenças muitas vezes

subsidiadas. O transporte coletivo urbano é fornecido principalmente para servir àqueles que não possuem meios

de adquirir um veículo para sua locomoção e precisam percorrer longas distâncias até o seu local de trabalho e

também para diminuir a poluição que esses carros provocariam. O transporte coletivo iniciou-se em 1662 na

França, criado por Pascal e funcionou por 15 anos até o Parlamento restringir o uso apenas àqueles que tivessem

“condições” já que a tarifa foi aumentada de cinco para seis centavos. Disponível em:<

http://www.naganuma.com.br/artigos-publicados/51-jornal-a-gazeta-do-acre/91-transporbte-publico-ou

coletivo.html> Acesso em: 07 de mar. 2016

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população. Nesse sentido, é importante analisar se a modernização desejada no período

atingiu o sistema de transporte coletivo da capital, ou seja, se este sofreu transformações.

O transporte urbano, fator fundamental para garantir que uma cidade desenvolva-se,

era temática recorrente nos debates jornalísticos e da população, que questionavam o

funcionamento do sistema de coletivos urbanos da capital. Para José Carlos Melo (1981, p.

232) ”as cidades só poderão ser aproveitadas em sua plenitude pelas oportunidades de

trabalho, de cultura e de lazer que nelas se desenvolvem, se forem bem servidas de transportes

urbanos”.

Em 1970, na edição do Jornal O Dia, de 10 de abril, um artigo intitulado ‘Coletivos e

Absurdos’ tem como objetivo contar sobre o desenvolvimento da capital e criticar alguns

setores que não estariam acompanhando as transformações e ‘aspectos de metrópole’ da

cidade, como o setor de transportes coletivos, “somos, talvez a cidade mais desassistida do

País em matéria de transportes coletivos. Além de poucos veículos, as empresas que se

dedicam à exploração desse ramo de atividades não prestam um serviço à altura, à

comunidade. As tarifas são extorsivas”. (O Dia. Teresina. n. 2.967. 10 de abr. 1970. p.8.). De

acordo Francisco Alcides do Nascimento (2009, p.6) “na década de 1970, Teresina

encontrava-se entre as capitais brasileiras com elevadas taxas de crescimento populacional,

em um cenário urbano recheado de problemas, contradições e desigualdades de ordem

econômica e social”, uma dessas dificuldades passava pela organização do sistema de

coletivos na capital.

Embora Teresina tenha apenas cerca de 110 ônibus servindo como transporte

coletivo na zona urbana, eles dão muitas dores de cabeça. Nesta boa terra nenhum

motorista de ônibus obedece ao que manda o trânsito em referência a paradas.

Apanha e solta passageiros no meio da rua e em qualquer lugar, congestiona todo o

trânsito; confia-se que está conduzindo um carro que suporta toda pancada e assim

vai vivendo, constantemente colocando em perigo a vida dos outros. As paradas

indicativas são ao que parece, simplesmente para efeito de ornamentação, e que

mau gosto terrível, pois não são obedecidas. O motorista parece que para levar

maior número de passageiros possível, para em qualquer lugar, basta ver alguém

dando sinal, seja para subir ou para descer. O povo realmente é deseducado e quer

que o coletivo pare onde o passageiro estar, pois é indolente e não se dar ao

trabalho de caminhar 20 ou 30 metros para esperar numa parada. Entretanto, são

próprios motoristas, visando o bem comum, os encarregados de educar este povo.

(O Dia. Teresina. n. 3.053. 26/27 de jul. 1970. s/p)

A capital piauiense na primeira metade do século XX era considerada uma pequena

cidade, ainda com ares interioranos, com péssimas condições de iluminação, sem asfalto,

esgoto sanitário ou sistema de comunicação, e precário serviço de abastecimento de água nos

bairros, o que não difere segundo Nascimento (2015, p. 127), Teresina ainda das primeiras

décadas do século XX, onde “as ruas estreitas, sujeira e presença de animais eram comuns”.

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Porém, por causa do modelo econômico escolhido pelos governos militares da época, a cidade

estava recebendo muitos investimentos, o chamado “milagre econômico”, que apresentou

mudanças na área urbana da cidade. Em razão do grande fluxo de migrantes que Teresina

recebia e da enorme expansão demográfica, houve o aumento dos problemas sociais, como

por exemplo, dificuldades habitacionais. Para a historiadora Cláudia Cristina da Silva

Fontineles, sobre este período de euforia nacional, que reverberou em Teresina na década de

1970, é preciso entender que:

É indissociável entender o investimento em urbanização ocorrido na capital

piauiense e os caminhos assumidos pelo Regime Autoritário implantado no Brasil

após o Golpe Civil-Militar ocorrido em 1964, que passou a semear e a difundir o

discurso de euforia na construção de um Brasil Gigante, que teria no crescimento

urbano e no investimento maciço em obras arquitetônicas de grande envergadura e

impacto social como símbolo maior de sua marca na história do país.

(FONTINELES, 2016, p. 170)

O período estudado marca um momento de explosão demográfica e crescimento

espacial de Teresina, fazendo com que não só o sistema de transporte coletivo, mas também a

malha viária do município tenha que assumir uma nova organização e estruturação para

atender a demanda da época. Para Fontineles (2016, p.172) “a cidade de Teresina foi

entrecortada e seduzida por construções e tornou-se o palco central da apropriação de um

projeto proposto, através da (re)significação do espaço físico, dotando-o de signos que o

transformaram em ambientes repletos de valores simbólicos”. Sobre a política de

modernização posta em prática nos anos de 1970, Nascimento e Regianne Lima Monte (2009)

revelam que:

As intervenções eram tanto no sentido de dotar a cidade, de abastecimento de água

e luz regular, desobstruir o tráfego de veículos- com abertura ou duplicação de ruas

e avenidas, que estavam recebendo cobertura asfáltica – e criar símbolos

modernizadores da presença do poder público, como no sentido de reformar

logradouros públicos e construir edifícios de grande porte, passando para seus

habitantes a sensação de que a cidade mudará sua configuração, adquirindo novos

ares, em consonância com novos tempos. (NASCIMENTO; MONTE, 2009, p. 123)

Neste momento de crescimento da cidade, as gestões municipais e estaduais aliaram-se

em um projeto de modernização que pretendia colocar Teresina, ao lado das capitais mais

desenvolvidas do país na época, como São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba. Este modelo de

desenvolvimento na capital estava de acordo com uma política modernizadora que seguia um

modelo nacional. Sobre a busca pelo moderno Marshall Berman (1986, p. 15) afirma que a

“experiência ambiental da modernidade, anula todas as fronteiras geográficas e raciais, de

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classe e nacionalidade, de religião e ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a

modernidade une a espécie humana”. Os indivíduos buscam constantemente a modernidade,

pois estes acreditam que o moderno diminui distâncias e espaços dentro da sociedade.

A presença de novos ônibus nas frotas locais e compra de veículos nos principais

polos metropolitanos do país, alimentava os sonhos do progresso na capital tanto para

gestores como cronistas da época, “pois a existência de ônibus modernos nas ruas tem o valor

de um apresentável cartão de visita” (O Dia. Teresina. n. 2.967. 10 de abr. 1970. p.8). Vale

destacar, que os cronistas da época cobravam por melhorias nos ônibus não apenas para

atender a população e mobilidade urbana de Teresina, tratava-se com a mesma relevância a

questão estética, as impressões que a cidade passava, pois ônibus velhos não trariam ares

modernos para a capital do Estado, eles estavam tornando-a feia e não atrativa, sendo urgente

a mudança. No entanto, a modernidade desejada pelos cronistas e gestores da cidade, segundo

Antonio Paulo Rezende (2015), não poderia se concretizar sem um processo de modernização

mais abrangente.

A cidade apresenta agora um aspecto bonito, com a presença diuturna em suas ruas

principais, de ônibus luxuosos, devendo a empresa que isso possibilite a todos,

especialmente pelas autoridades para que ela possa continuar melhorando cada dia

mais, o padrão de atendimento que vem mantendo, aos usuários, bem como

concorrendo para o desaparecimento total, do panorama citadino, daqueles carros

velhos, obsoletos que, além de enfeiarem, sobretudo a cidade, não oferecem

condições de conforto e segurança aos passageiros. (O Dia. Teresina. n. 2. 969.

12/13 de abr. 1970. p. 3).

Assim, é preciso entender a relação do transporte coletivo com os vários espaços da

cidade, pois estas relações vão muito além de construções materiais, existem sentimentos,

abstrações da realidade que resinificam espaços a partir da análise de contextos e memórias

dos que fizeram parte daquela construção, além de que estudar este campo é também falar das

experiências de si mesmo e de suas relações sociais com o espaço urbano.

2. Múltiplos olhares da cidade

Olhar a cidade com sensibilidade e suas múltiplas representações, é importante, pois

ela deve ser sentida a partir de percepções que transcorrem o real, ou seja, passam também

por um prisma de emoções e sentimentos representados pelo viver urbano, como afirma

Nascimento (2007, p. 1) “escrever a história da cidade é, sobretudo, resultado do fascínio que

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ela exerce nos indivíduos e da necessidade de compreender a complexidade da malha

urbana”.

Debruçar-se sobre os estudos que envolvem a relação História e Cidade, servem- nos

para que a estreita relação entre os indivíduos e a cidade, não fique esquecida, ou mesmo

apagada. Ao se fazer a história das cidades, o pesquisador se aproxima da afirmação de

Sandra Jatahy Pesavento (2007, p.14), ao dizer que a cidade pulsa de vida e que isto a faz

tornar ligada ao homem, “cidade, lugar do homem, cidade, obra coletiva que é impensável no

individual, cidade, moradia de muitos, a compor um tecido sempre renovado de relações

sociais”.

De acordo com Milton Santos (2009, p.26) “a cidade é o lugar privilegiado do impacto

das modernizações, já que estas não se instalam cegamente, mas nos pontos do espaço que

oferecem uma rentabilidade máxima”. A modernidade, no âmbito do espaço urbano, portanto

traz consigo consequências e até mesmo segregações no acesso aos benefícios dessa

modernização. Sobre as intervenções dos gestores, no processo de modernizar Teresina, é

necessário compreender que:

No início da década 1970, o governador Alberto Silva (1971-1974) e o prefeito Joel

Ribeiro; o governador Dirceu Arcoverde (1975-1979) e o prefeito Wall Ferraz

orientaram suas ações no sentido de estruturar a cidade para que se tornasse

moderna e desenvolvida. Joel Ribeiro para implantar o sistema viário, adotou uma

postura segregacionista, promovendo o deslocamento de várias famílias para a

zona norte, em áreas que não apresentavam condições básicas para serem

habitadas: faltava água tratada, energia elétrica, calçamento, hospitais, transporte

coletivo. O deslocamento para o centro da cidade era realizado a pé ou de bicicleta,

e os gêneros alimentícios adquiridos no mercado central eram transportados no

lombo de animais, no ombro ou na cabeça dos moradores da periferia cidade. A

roupa era lavada nas águas dos rio Poti e Parnaíba. Desse modo, os habitantes

moravam em Teresina, mas desenvolviam práticas próprias do campo.

(NASCIMENTO, 2009. p. 7)

Com isso entende-se que os espaços urbanos são fragmentados, articulados, cheios de

símbolos e refletem os condicionantes sociais, produzidos e proferidos pelos agentes, que

produzem e consomem o espaço. Os caminhos para o estudo das cidades perpassam, de

acordo com Roberto Lobato Corrêa (1989, p. 5) pelo interesse em “conhecer e atuar sobre a

cidade derivando do fato de ser ela o lugar onde vive parcela crescente da população [...] onde

os locais de investimentos são maiores [...] e mais, de ser o principal lugar dos conflitos

sociais”.

O campo história e cidade permite contemplar os mais diversos olhares sobre a

sociedade e a construção desta como ambiente de autotransformação e transformação, de

continuidades e rupturas, de significações e ressignificações, isto se deve a suas múltiplas

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facetas que só podem ser analisada a partir de olhares sensíveis, que vejam além do material,

do objeto concreto, que trate a cidade como história, e uma história repleta de significados,

que marcaram o passado e este por sua vez ecoam no presente.

Dentro do contexto urbano de uma cidade, existem múltiplas realidades contidas

naquele espaço, como é o caso de Teresina na década de 1970, onde múltiplos olhares

recaíram sobre aquela capital em crescimento, sendo preciso atentar segundo Nascimento

(2007) que “essa multiplicidade que insiste em ser reduzida ao uso no âmbito dos discursos

que dizem a cidade. Neles, é privilegiada a cidade projetada, desejada e desejável expressa

pelos administradores pelos cronistas que atuavam nos principais jornais da cidade, no

período”. Desse modo o ser humano como revela Pesavento (2007) faz acontecer o urbano,

ele reconstrói, recria, remodela os traços da cidade, através de sua ação cria outras cidades

seja por meio, de seu pensamento ou de suas ações.

Uma das facetas que compõe a história das cidades é sem dúvida o transporte coletivo

urbano, onde este, segundo Antônio Clóvis Pinto Ferraz (1999), é um serviço essencial nas

cidades, desenvolvendo papel social e econômico de grande importância, pois democratiza a

mobilidade na medida em que facilita a locomoção de pessoas.

3. O ônibus e o povo: a memória dos transportes nos início dos anos 1970 através da

História Oral

Em meados da década de 70, Teresina contava com seis empresas de ônibus operando

em vinte e duas linhas, eram elas, Auto Viação5 Rio Poty, Empresa Manuel Morais, Auto

Viação Teresinense Ltda., Auto Viação Coimbra Ltda, Empresa Manuel Ribeiro, Auto Viação

Primavera Ltda. consideradas ainda insuficientes para abranger todo o espaço urbano da

capital, segundo relatos de moradores e reclamações presentes nos periódicos da época.

Bairros como Buenos Aires, Água Mineral, Parque Piauí, Primavera, São João e muitos

outros, sofriam pela escassez de veículos que atendessem as necessidades dos moradores, com

grande demora entre uma condução e outra, precariedade da frota e veículos em muitos casos

5 A especificação Auto-Viação Ltda., presente nas designações jurídicas das empresas, significa, nos registros

das atividades comerciais, uma forma de propriedade que não pretende ser extensiva. Assim, o “para todos”

volta a restringir-se no que diz respeito à propriedade: a viação urbana é limitada, pois pertence a um grupo de

pessoas geralmente unidas por laços familiares embora possa ser constituída também como sociedade anônima.

Limitado é também seu alcance: ela transporta sujeitos em determinada localidade. Mas isso não impede os

empresários do ramo de exercer seu ofício em várias viações ou cidades, ou em outras atividades de transporte,

nem lhes proíbe investir em setores diferentes. O limitado da viação torna-se, assim, relativo. (BRASILEIRO;

TURMA, 1999, p.22)

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cheios. “Os transportes coletivos, bem distribuídos para todos os bairros da cidade e com

horários certos de partida e chegada em pontos determinados, são de grande serventia para a

população, principalmente quem trabalha no centro e reside em outros bairros”. (Estado do

Piauí. n° 1230. 25 de jan. 1970. s/p)

Devido à precariedade do sistema de transporte oferecido, e em muitos momentos pelas

elevadas tarifas cobradas por esse serviço, muitos moradores utilizavam de alternativas, como

bicicletas, dados relatados em relatório realizado pela Prefeitura na década de 1970. “A

população de baixa renda serve-se principalmente das bicicletas, que, de forma definitiva,

incorporou-se a paisagem de Teresina, onde estimava-se existir, em 1977, um total de 25.000

veículos desse tipo.”

Figura 1: Estudantes do bairro São Cristóvão descolocando-se a pé por falta de ônibus

Fonte: Jornal O Dia, Teresina, 11 set. 1971, p.1.

Em 1970, no Jornal O Dia, um artigo intitulado ‘Coletivos e Absurdos’ tem como

objetivo contar sobre o desenvolvimento da capital e criticar alguns setores que não estariam

acompanhando as transformações e ‘aspectos de metrópole’ da cidade, como o setor de

transportes coletivos, “Somos, talvez a cidade mais desassistida do País em matéria de

transportes coletivos. Além de poucos veículos, as empresas que se dedicam à exploração

desse ramo de atividades não prestam um serviço à altura, à comunidade. As tarifas são

extorsivas”.

Vale-se destacar que os cronistas da época cobravam por melhorias nos ônibus não

apenas para atender a população e mobilidade urbana de Teresina. Tratava-se com a mesma

relevância a questão estética, as impressões que a cidade passava. Ônibus velhos não trariam

ares modernos para a capital do Estado, eles estavam tornando-a feia e não atrativa, sendo

urgente a mudança.

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O transporte urbano faz parte da memória social e coletiva da cidade, pois segundo Le

Goff (2003, p. 470) são as sociedades, cuja memória social é, sobretudo, oral, ou que estão

vias de constituir uma memória coletiva escrita, aquelas que melhor permitem compreender

esta luta pela dominação da recordação e da tradição, esta manifestação da memória.

Os bairros de Teresina enfrentavam muitos problemas de mobilidade urbana em

meados da década de 1970, nesse sentido é interessante ressaltar a desigualdade que existia

entre a distribuição dos coletivos nas zonas da cidade. O trabalho com as fontes orais permitiu

fazer registros de parte das demandas sociais da época alargando a interpretação da situação

do sistema de transporte coletivo no período analisado. Sobre o uso da metodologia da

História Oral, Verena Alberti (2009) destaca que: A História Oral permite o registro de

testemunhos e o acesso a “história dentro da história”, e dessa forma, amplia as possibilidades

de intepretação do passado.

A população fazia o uso dos periódicos da época, para reivindicar por consessões de

linhas de coletivos que passassem por dentro de seus bairros, para evitar as longas

caminhadas que precisavam fazer para pegar condução. “É penosa a viagem do centro da

cidade até o bairro tabuleta e são gasto no minímo 50 minutos, além do longo percuso a pé”

(O Dia. Teresina. n.3432. 26/27 de set. 1971. p.4).

Figura 2: Matéria publicada referente a falta de transporte no bairro Tabuleta, zona sul da capital. Fonte:

Jornal O Dia. Teresina. 26/27 de set. 1971. p.4

O motorista Borges em seu depoimento pontua essa desigualdade nos bairros ao afirmar

que: “Naquele tempo só era a piçarra, naquelas ladeiras. Ninguém ia botar carro novo naquela

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situação, pra estragar o carro”6. Este tipo de fonte permite ao historiador um maior

entendimento sobre os olhares da cidade, pois de acordo com Paul Thompson (2002, p.14) “a

História Oral é uma história constituída em torno de pessoas. Ela lança a vida para dentro da

própria história e isso alarga seu campo de ação.”

É importante destacar que ao utilizar os depoimentos de usuários de transportes da época

não pretende-se apenas dar voz à minorias “ reforçando as diferenças sociais”, como diz

Verena Alberti (2009), mas com uso da História Oral “transmitir uma experiência coletiva,

uma visão de mundo tornada possível em determinada configuração histórica e social”. Nesse

sentido o trabalho com a História Oral configura-se como:

Um caminho interessante para se conhecer e registrar múltiplas possibilidades que

se manifestam e dão sentido a formas de vida e escolhas de diferentes grupos

sociais, em todas as camadas da sociedade. Nesse sentido, ela está afinada com as

novas tendências de pesquisa nas ciências humanas, que reconhecem as múltiplas

influências a que estão submetidos os diferentes grupos no mundo globalizado.

(ALBERTI, 2009)

Referente à situação do sistema de coletivos nas zonas periféricas da cidade, a zona

norte não apresentava um cenário diferente da região sul da capital. Dona Maria Luz

moradora do bairro Poty Velho revela “Eu trabalhava vendendo verdura no Mafuá ia a pé,

com a bacia de cheiro-verde na cabeça, eram muitas mulheres com o cheiro-verde na cabeça e

os homens com os peixes enfiados em um pau nas costas”.7 Nesse sentido a ineficiência do

transporte prejudicava moradores que precisavam sair dos seus bairros para outras áreas

trabalhar, era preciso fazer os trajetos a pé ou depender de raras caronas.

Nota-se que cada morador dos respectivos bairros produziu memórias e experiências

diferentes em relação ao uso do transporte coletivo da capital, daí a relevância das fontes orais

para mostrar que a constituição da memória é objeto de ininterrupta negociação. Nesse

sentido:

A memória é essencial a um grupo porque está atrelada à construção de sua

identidade. Ela [a memória] é resultado de um trabalho de organização e de

seleção do que é importante para o sentimento de unidade, de continuidade e de

coerência - isto é, de identidade. E porque a memória é mutante, é possível falar de

uma história das memórias de pessoas ou grupos, passível de ser estudada por meio

de entrevistas de História oral. As disputas em torno das memórias que

prevalecerão em um grupo, em uma comunidade, ou até em uma nação, são

importantes para se compreender esse mesmo grupo, ou a sociedade como um

todo.(ALBERTI. 2009, p.167)

6 SOUSA, José Wilson Borges. Depoimento concedido a Allan Ricelli Rodrigues de Pinho. Teresina, fev. 2016 7 LIMA, Maria Luz Rosa. Depoimento concedido a Allan Ricelli Rodrigues de Pinho. Teresina. Fev. 2016.

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Assim, de acordo com a maneira com que cada um utilizava-se dos transportes

coletivos é possível identificar que o sistema dificultava a vida tanto daqueles que precisavam

estudar ou trabalhar e até mesmo impedindo o acesso ao lazer.

O lazer na capital também era afetado pela insuficiência dos coletivos, fato que

manifesta-se na experiência do comerciante Adão “A noite ele era assim mais cheio, porque

naquela época o pessoal vinha muito ver filme aqui na Praça Pedro II, no cine rex, cine royal,

essas coisas, naquele tempo o pessoal usava muito as praças, era lotado, ai os ônibus ficavam

cheio, pra ir e pra voltar”8. Vale lembrar que Teresina em meados do século XX mesmo com

o discurso modernizador, ainda possuía ares provincianos, sendo as praças locais de encontro

entre os moradores da capital.

Nesse sentido percebe-se um cenário multifacetado em relação aos usos e desusos dos

coletivos na capital a partir da memória dos usuários, ou seja, esta multiplicidade de

experiências vividas e compartilhadas é que estabelecem segundo Pollack (1989) a existência,

numa sociedade, de memórias coletivas tão numerosas quanto às unidades que compõem a

sociedade. Vale ressaltar que o trabalho com fontes orais por parte do historiador, deve ser

alvo de análise minuciosa para a construção de uma narrativa que resgate os fragmentos da

história e memória dos transportes da capital.

Desse modo o cruzamento de fontes permitiu à investigação perceber as mais variadas

demandas pelo transporte coletivo por parte dos moradores dos bairros e usuários do período

estudado, possibilitando entender à pluralidade de vivências e experiências da população

teresinense para com o sistema de coletivos urbanos. Além de propiciar a representação das

memórias produzidas na década de 1970 sobre o transporte coletivo na capital.

4 Considerações finais

Teresina no início da década de 1970 passava por um momento de transformações

urbanísticas, políticas, sociais e econômicas. Foi um período marcado pelo seu crescimento

espacial e populacional, com o surgimento de novos bairros. Estes fatores ocasionaram

grandes desafios nos setores da saúde, educação, emprego e consequentemente no setor de

transportes urbanos na cidade, que neste período tinha nos coletivos urbanos o principal meio

de locomoção dos teresinenses pela cidade.

A partir dos relatos orais de usuários do transporte da época, de motoristas que fizeram

parte do sistema de transporte coletivo e de matérias publicadas nos periódicos Estado do

8 SOARES, Adão Barbosa. Depoimento concedido a Allan Ricelli Rodrigues de Pinho. Teresina, fev. 2016.

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Piauí e O Dia, que eram jornais de grande circulação na época percebeu-se as falhas que

continham o sistema no início da década de 1970, com coletivos que não possuíam uma

organização em seus horários de viagens.

Notou-se na investigação que o sistema funcionava em grande parte em condições

precárias, não atendendo a demanda social da população e do crescente número de bairros que

surgiam. A população sentia necessidade de deslocar-se pela capital já que grande parte de

seus bairros não possuíam farmácias, escolas e mesmo locais de emprego. Os mesmos

apelavam muitas vezes para os jornais com pedidos, cartas e apelos para que os empresários e

a Prefeitura tomassem providências para regularização de horários dos coletivos.

Este estudo permitiu entender que no início da década de 1970, o progresso presentes

nos discursos dos governantes e publicados, muitas vezes nos periódicos da época, não

conseguiu atender a demanda dos transportes para a população existente na capital. Foram

tomadas medidas que apenas amenizaram alguns dos problemas existentes e não de fato

modificando permanentemente a vida daqueles usuários que sofriam pela precariedade do

sistema. Deve-se ressaltar que os objetivos estudados são apenas uma pequena parte de uma

área rica de conhecimento e fragmentos que possibilitam conhecer a história da cidade e

consequentemente, a história dos transportes urbanos na capital.

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