Termo de Mariana Volume III

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Capítulos de História Colonial de Minas Gerais e Transcrições de Documentos coloniais.

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Travessias inquisitoriais das Minas Gerais aos cárceres do Santo Ofício: diálogos e trânsitos religiosos no império luso-brasileiro (sécs. XVI – XVIII)

Organização: Júnia Ferreira Furtado

Maria Leônia Chaves

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P868

Por uma literatura pensante : ensaios de filosofia e literatura /Gustavo Silveira Ribeiro, Eduardo Horta Nassif Veras (org.).– Belo Horizonte, MG: Fino Traço, 2012. 228 p. (Litteris ; 3)

Inclui bibliografia ISBN 978-85-8054-090-1

1. Literatura - Filosofia. I. Ribeiro, Gustavo Silveira II.Veras, Eduardo Horta Nassif III. Série.

12-8020. CDD: 801

CDU: 82.030.10.12 07.11.12 040427

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SUMÁRIO

Apresentação 11

Parte 1 - O Tribunal do Santo Ofício e o Tribunal Eclesiástico 19

1 - “Com toda a conformidade e boa correspondência”: Inquisição e episcopado em Portugal (1536-1750) 21José Pedro Paiva

2 - A ação da Inquisição no Brasil: uma tentativa de análise 33Bruno Feitler

3 - O Tribunal Eclesiástico à época de Dom Frei Manuel da Cruz: a afirmação da jurisdição episcopal (1748-1764) 51Patrícia Ferreira Santos

Parte 2 - Os bastidores, os agentes e os penitenciados do Tribunal do Santo Ofício 81

4 - Ser comissário do Santo Ofício na Inquisição portuguesa e fingir sê-lo (séculos XVII-XVIII) 83Fernanda Olival

5 - A Inquisição na comarca do Rio das Mortes: os agentes 103Aldair Rodrigues

6 - Mazelas do cárcere: o atendimento de médicos, cirurgiões e barbeiros aos presos da inquisição de Lisboa 125Georgina Silva dos Santos

7 - “Negócios entre afins”? Penitenciados do Santo Ofício e os agentes do tabaco (séculos XVII e XVIII) 141João Figueiroa Rego

Parte 3 - O Tribunal do Santo Ofício e a perseguição aos cristãos-novos 169

8 - Do outro lado da vida: a construção do discurso marrano 171Anita Novinsky

9 - Trajetórias carto-geográficas de uma família de cristãos-novos dos

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sertões das Gerais aos cárceres da Inquisição: o caso dos irmãos Nunes 185Junia Ferreira Furtado

10 - A família Vale: do reino às Minas 235Lina Gorenstein

11 - A Torá nos caminhos do ouro: cristãos-novos e criptojudeus em Minas 251Angelo Adriano Faria de Assis

12 - Inquisição, cristãos-novos e arqueologia (Minas Gerais – séc. XVIII) 277Carlos Magno GuimarãesJuliana de Souza MolMariana Gonçalves MoreiraCamila Fernandes de MoraisThaís Monteiro de CastroWill Lucas da Silva Pena

Parte 4 - Heresias no Novo Mundo 297

13 - Catolicismo ilustrado e feitiçaria no mundo português 299Evergton Sales Souza

14 - Dois profetas, um levante e um outro Portugal: o sonho emboaba do Quinto Império nas Minas Gerais 319Adriana Romeiro

15 - Cartografia gentílica: os índios e a Inquisição na América Portuguesa (século XVIII) 335Maria Leônia Chaves de Resende

16 - Uma nova invenção da bruxaria diabólica: a Jurema e a Inquisição 363James Wadsworth

17 - Convertidos na Verdadeira Fé. Os indígenas, os missionários católicos e os predicantes: análises comparativas sobre a América Portuguesa nos séculos XVII 381Maria Paula Couto Paes

Anexo 403

Minas Gerais sub examine: inventário das denúncias nos Cadernos do

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Promotor da Inquisição de Lisboa (século XVIII)

Caderno de Imagens 467

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Apresentação

A expansão do império português a partir da era moderna se caracterizou por ter ocorrido sob a união da Igreja Católica e do Estado. A imagem da cruz e da espada como responsáveis pelo projeto colonizador estampa esta união. Pela importância que a religião adquire no mundo português, este livro, Travessias inquisitoriais das Minas Gerais aos cárceres do Santo Ofício: diálogos e trânsitos religiosos no império luso-brasileiro (sécs. XVI – XVIII), tem por propósito analisar o papel da Igreja católica, em geral, e do Tribunal do Santo Oficio, em particular. Ele deriva do encontro realizado em abril de 2011, em Tiradentes, onde alguns dos textos aqui reunidos foram apresentados e debatidos no Colóquio Internacional “Inquisição: religiosidade, o Tribunal do Santo Ofício e as Minas setecentistas”, organizado conjuntamente pelos Programas de Pós-graduação em História da UFMG, UFSJ, FFP/UERJ, UFJF e do CHAM/UNL.

A proposta do colóquio, que se concretiza de forma ampliada neste livro, foi de investigar de que maneira as duas instituições – Igreja e Inquisição – moldaram o universo religioso-católico no espaço geográfico do império marítimo português, ao longo do século XVIII, recortando, sempre que possível, suas atuações no espaço da capitania das Minas Gerais. Dessa forma, os textos aqui reunidos pretendem articular estudos acerca da Inquisição e do Tribunal Eclesiástico, destacando os papéis que essas duas instituições religiosas desempenharam na vida dos súditos portugueses. Por essa razão, foram congregados diversos pesquisadores e especialistas que analisam a atuação de ambas, tanto no plano mais geral no mundo reinol e da América portuguesa, quanto nas Minas Gerais em particular, promovendo uma articulação entre seus estudos. O objetivo, que pode ser visualizado na articulação dos textos aqui reunidos, foi oferecer uma oportunidade de debate dos resultados das investigações individuais, a partir de algumas perspectivas de análise, seja na esfera do funcionamento e dos mecanismos do Tribunal Eclesiástico – como as visitas episcopais; seja na atuação dos diversos agentes inquisitoriais – visitadores, comissários e familiares; ou ainda nas modalidades e na repercussão das denúncias e dos delitos praticados pelos réus inquisitoriais e eclesiásticos.

Em Portugal e seus domínios ultramarinos, como vigorava o direito do Padroado, a indicação e o sustento dos párocos cabiam ao Estado, que dividia com o Vaticano, por meio da Mesa de Consciência e Ordens, criada no reino, a responsabilidade sobre a ação do chamado clero secular (aquele não ligado às ordens regulares). Desta forma, uniam-se nesta empresa as duas instituições, e a Igreja ficava sob a tutela do poder estatal. Se, por um lado, era o reconhecimento da importância da religião para a concretização da colonização, por outro, o Vaticano perdia poder e tinha que se submeter à interferência da monarquia portuguesa.

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Desde o início da colonização, o Brasil se revelou espaço ímpar para a expansão da fé sob o abrigo da Coroa portuguesa. Terra de Santa Cruz foi a primeira denominação dada à terra, pois não só o descobrimento era fruto da ação divina, quanto a colonização propriamente dita se inscrevia sob o signo da religião. Em comum era a noção de que o tempo da religião era o da eternidade e transcendia em muito a vida terrena e a dominava. A Deus cabia manipular o destino dos homens e, ao final, realizar o acerto das contas daquilo que se tinha feito em vida. Na Terra nada se fazia impunemente e, na medida em que a vida transcorria, todos se colocavam na posição de credores ou devedores de Deus. Não por acaso, o primeiro ato de posse da esquadra cabralina se expressou na ereção de uma cruz de madeira e na celebração da primeira missa. Se o topônimo Brasil acabou por vingar em detrimento de Terra de Santa Cruz, desde os primeiros momentos, o catolicismo dos colonizadores ficou gravado nos diversos nomes com que os acidentes geográficos da costa brasileira foram batizados: Monte Pascoal, Morro de São Paulo, cabo de São Vicente, entre outros. Também os primeiros núcleos urbanos tiveram seus nomes consagrados à religião, como Salvador, São Paulo, Santos, São Vicente, lembrando aos colonos que a civilização que construíam nos trópicos devia ser devotada a Deus.

Papel fundamental nessa missão evangelizadora, ocupou também a Inquisição, com vistas a homogeneizar a fé e os ritos católicos, caçando bruxas de tradição europeia, reprimindo as crenças e os deuses africanos e indígenas, e, mais particularmente, perseguindo os cristãos-novos que teimavam em judaizar.

Em 1496, D. Manoel ordenou a expulsão de todos os judeus e mouros do território português, ou sua conversão forçada ao catolicismo, originando o aparecimento dos cristãos-novos. Inicialmente, a legislação manuelina foi francamente integracionista em relação aos conversos, inclusive proibindo qualquer tipo de perseguição religiosa. Mas, essa situação se modificou radicalmente a partir de 1536, quando se deu o estabelecimento da Inquisição em Portugal e iniciou-se uma perseguição sistemática aos cristãos-novos, antes já evidenciada em alguns atos isolados de intolerância e anti-semitismo.

Apesar de, no Brasil, não ter-se instalado um Tribunal do Santo Ofício propriamente dito, como ocorreu em Goa, a Inquisição atuou por meios variados e o estudo da sua atuação no Brasil é ilustrativa das mudanças por que essa instituição passou ao longo do tempo no mundo luso. Havia visitações de inquisidores, que vinham de Portugal por períodos definidos, mas também os bispos em suas visitas eclesiásticas podiam transferir réus para a sua alçada, além da atuação direta dos familiares e outros agentes nomeados no Brasil, ou mesmo por ingerência do aparato criminal do estado. Enquanto a maior parte das visitações concentrou-se no período da União Ibérica (1580-1640), marcadas pelo clima antijudaico vigente no reinado de Felipe II, os três últimos procedimentos foram os mais usuais em Minas Gerais ao longo do século

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XVIII. Como exemplo, Antônio Ferreira foi levado para o Rio de Janeiro por dois familiares; já Manoel de Albuquerque e Aguillar, importante homem de negócio nas Minas, preso por participar de fábrica de moeda falsa, foi parar nas prisões do Santo Ofício acusado de ser cristão-novo (Furtado, 1999:229).

A análise quantitativa das Visitações do Nordeste, ocorridas entre os séculos XVI e XVII, indicou a perseguição movida contra os hereges judaizantes. Das novecentas e cinquenta denúncias apresentadas aos inquisidores, duzentas e sete (21,78%) eram de práticas de judaísmo (Siqueira, 1978:255).1 O total de duzentos e sessenta e oito homens e noventa e oito mulheres foram identificados como cristãos-novos na Bahia, Pernambuco, Itamaracá e Paraíba, além de vinte e cinco em outras capitanias e vinte e quatro no Reino (Maia, 1995:243).

Se até bem pouco tempo, os estudos sobre a Inquisição no Brasil concentraram-se no século XVI, período em que as visitações tiveram seu auge, esse panorama já começou a mudar, pois “foi durante o Reinado de D. João V que se efetuou o maior número de prisões” (Novinsky, 1976:14), apesar de aparentemente, e apenas aparentemente, ter havido um refluxo dos mecanismos institucionais. Esmiuçar as novas formas de atuação inquisitorial, para além das visitações, é tema instigante de pesquisa que artigos deste livro ajudam a desvendar.

E, ainda que o Brasil não tenha sido sede do Santo Oficio no ultramar, os tentáculos da Inquisição alcançaram a América Portuguesa, em suas três visitações: no século XVI, na Bahia e Pernambuco, feita por Heitor Furtado Mendonça entre 1591 e 1595; no século XVII, a de 1618-1620, produzida pelo Licenciado Marcos Teixeira, na Bahia, e a terceira visitação do Pará, Maranhão e Rio Negro, levada a cabo por Geraldo José Abranches, entre 1763 e 1769. No período colonial, temos informações seguras apenas para essas três visitações, ainda que, no século XVII, haja fortes indicativos de outras duas: em 1605, no Rio de Janeiro, e em 1627, em Pernambuco. Isso sem mencionar a “Grande Inquirição”, na Bahia, em 1646, levada a cabo pelo então governador Teles da Silva (Cf. Pereira, 2006; Calainho, 2006:73; Gorenstein, 2006:25-31). Também ao contrário das outras regiões do Império português, pouco depois do início da ocupação da região, nas Minas Gerais proibiu-se a instalação das Ordens Religiosas, que tinham sido fundamentais para a difusão da fé católica no restante do Império, porque sua relativa independência e sua tradição de envolvimento nos negócios coloniais para angariar fundos para suas obras iam contra os interesses estratégicos da Coroa na região, pois se temia o desvio de ouro. Na capitania, coube então aos próprios moradores, em parceria com o Estado Português, a organização das práticas religiosas.

Nesse contexto de predomínio das Irmandades leigas, a Igreja encontrou

1 A seguir, vinha o desrespeito a Cristo, Virgem, Santos, Sacramentos que recebeu 177 denúncias (18,75%); distorções ou omissões de práticas religiosas ou litúrgicas, 48 denúncias (5,05%) e as demais se pulverizaram em 28 denúncias.

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dificuldades em institucionalizar-se e aparelhar-se em solo mineiro, mas em 1748, com a instalação do Bispado de Mariana, a instituição pôde manter uma presença mais efetiva. A demora decorrente entre a sua criação (1745) e sua instalação, ocorrida somente três anos depois, foi em parte devido a decisão do primeiro bispo escolhido (dom frei Manoel da Cruz, religioso de São Bernardo) de realizar por terra a viagem de deslocamento entre sua antiga diocese no Maranhão e a capitania de Minas Gerais. Sua chegada às Minas e sua posse foram comemoradas com uma festa em Mariana, intitulada Áureo Trono Episcopal, onde os mineiros puderam exteriorizar, com grande pompa, sua religiosidade.

Contemplando todo esse cenário, esta coletânea é organizada em quatro partes que se articulam nas muitas formas de travessias atlânticas do tribunal da inquisição no império português. Na primeira parte, O Tribunal do Santo Ofício e o Tribunal Eclesiástico, o texto basilar de José Pedro Paiva, “‘Com toda a conformidade e boa correspondência’: Inquisição e episcopado em Portugal (1536-1750)”, abre a discussão apontando a originalidade portuguesa na estreita cooperação, harmonia e profunda complementaridade entre a atuação episcopal e o tribunal inquisitorial, marcados pela ingerência do poder monárquico no campo religioso, bem como pelo trânsito de carreiras e circulação de pessoas entre as mitras e o topo hierárquico da Inquisição, provocando uma profunda imbricação das burocracias de ambas as instituições. De Bruno Feitler, “A ação da Inquisição no Brasil: uma tentativa de análise” é um escrutínio aguçado sobre o topos inquisitorial, analisando as visitações ao Brasil e as razões de suas realizações, o seu funcionamento e seus agentes. Patrícia Santos encerra essa parte com “O Tribunal Eclesiástico à época de Dom Frei Manuel da Cruz: a afirmação da jurisdição episcopal (1748-1764)”, no qual realiza uma comparação minuciosa entre o conteúdo das normas eclesiásticas e as práticas de coerção aplicadas no Juízo eclesiástico do bispado de Mariana, entre 1748 e 1764, por ocasião da imposição das punições temporais e espirituais aos condenados.

Na segunda parte, Os bastidores, os agentes e os penitenciados do Tribunal do Santo Ofício, Fernanda Olival, em um texto instigante, “Ser comissário do Santo Ofício na Inquisição portuguesa e fingir sê-lo (séculos XVII-XVIII)”, trata das características sociais e das motivações dos falsos comissários e sua inserção no cotidiano luso-brasileiro, entre 1601 e 1773. Enveredando-se pelas Minas Gerais, Aldair Rodrigues investiga, minuciosamente, em seu estudo, intitulado “A Inquisição na comarca do Rio das Mortes: os agentes”, a relação estabelecida entre o Santo Ofício e essa região por meio de seus agentes inquisitoriais ao longo do século XVIII, tomando como estudo de caso a trajetória e a ação do comissário José Sobral e Souza, vigário da vara em São João del-Rei. No comovente “Mazelas do cárcere: o atendimento de médicos, cirurgiões e barbeiros aos presos da inquisição de Lisboa”, Georgina Santos nos leva às aflições e aos tormentos de que padeciam os prisioneiros do Santo

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Ofício, vários encarcerados na prisão do Limoeiro, em que os detentos nem sempre tinham aplacado seus sofrimentos com o tratamento e misericórdia idealizados pelo Regimento Inquisitorial. João Rego, no arguto texto “‘Negócios entre afins’? Penitenciados do Santo Ofício e os agentes do tabaco (séculos XVII e XVIII)”, revela que a criação do monopólio do tabaco na Península Ibérica e o subsequente arrendamento do contrato geral a rendeiros ligados aos cristãos-novos suscitaram a desconfiança e atenção do Santo Ofício, por causa dos nexos mercantis, da ampla mobilidade e das redes de solidariedade estabelecidas por seus protagonistas.

Na terceira parte, O Tribunal do Santo Ofício e a perseguição aos cristãos-novos, Anita Novinsky apresenta a conferência seminal que realizou no âmbito do seminário ocorrido em Tiradentes, intitulada “Do outro lado da vida: a construção do discurso marrano”. Trata-se de um texto inspirador, pois percorre os estudos sobre a figura do cristão-novo judaizante, do marrano e, ainda, do cético ou descrente, abrindo um novo campo de interpretações e aprofundando a luta clandestina dos marranos e cristãos-novos em Portugal e no Brasil, no diálogo entre dois campos opostos: o do criptojudaísmo e o do Ceticismo, isto é, da descrença completa em termos de religião. “Trajetórias carto-geográficas de uma família de cristãos-novos dos sertões das Gerais aos cárceres da Inquisição: o caso dos irmãos Nunes”, de Junia Furtado, palmilha, com argúcia, os roteiros da “geografia vivida” pelos três irmãos Nunes, revelando a errância desses marranos presos pelo Santo Ofício. Esse percurso serviu de base para a Carte de l’Amérique meridionàle, mapa do cartógrafo francês, Jean Baptiste Bourguignon D’Anville, realizado em estreita colaboração com o embaixador português dom Luís da Cunha.

Lina Gorenstein acompanha detidamente a perseguição das famílias cristãs-novas, no texto “A família Vale: do reino às Minas”. Recorta, em detalhes, com grande fôlego de pesquisa, mais de um século e meio de tormentas que se abateram sobre a linhagem dos Vale, mas também sua capacidade de resistência. Na mesma vereda, Angelo Assis, em “A Torá nos caminhos do ouro: cristãos-novos e criptojudeus em Minas”, faz uma incursão cuidadosa na historiografia recente sobre os cristãos-novos e arrola os principais processos correlacionados ao tema preservados nos Arquivos da Torre do Tombo. Em co-autoria com pesquisadores associados, Carlos Magno Guimarães, em seara original, que articula a História e a Arqueologia, propõe a prospecção de alguns sítios que podem guardar vestígios de cultural material dos cristãos-novos, tema ao qual vem se dedicando em no projeto que descreve no capítulo “Inquisição, cristãos-novos e arqueologia (Minas Gerais – século XVIII)”.

A última parte, Heresias no Novo Mundo, inicia-se com o texto de Evergton Souza intitulado “Catolicismo ilustrado e feitiçaria no mundo português”, no qual o autor aborda, com perspicácia, o estabelecimento de uma nova concepção nos meios letrados acerca dos efeitos materiais da intervenção demoníaca, que repercutirá no novo Regimento Inquisitorial de 1774, alterando

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significativamente o entendimento do tribunal em matéria de feitiçaria. Como contraponto a essa reflexão, Adriana Romeiro, em “Dois profetas, um levante e um outro Portugal: o sonho emboaba do Quinto Império nas Minas Gerais”, descortina como a defesa de um Quinto Império para os portugueses da América coadunava-se com as formulações políticas em curso nas Minas Gerais por ocasião do conflito entre Emboabas e Paulistas. Leônia Chaves, em “Cartografia gentílica: os índios e a Inquisição na América Portuguesa (século XVIII)”, faz um mapeamento exaustivo e inédito das denúncias que implicaram os índios e seus descendentes em todo o Brasil setecentista, mostrando a extensão da atuação do Tribunal contra as populações nativas, de diversas procedências e regiões. James Wadsworth, em “Uma nova invenção da bruxaria diabólica: a Jurema e a Inquisição”, mostra, com propriedade, como a Inquisição lidou com os rituais indígenas, no nordeste do Brasil. Em seu texto, acena para uma arqueologia do culto da Jurema, que se baseia na ingestão de bebida alucinógena de mesmo nome, como sinal da reelaboração das práticas nativas, com o intuito de reafirmar a identidade e a alteridade desses grupos autóctones. Maria Paula Paes, em “Convertidos na Verdadeira Fé. Os indígenas, os missionários católicos e os predicantes: análises comparativas sobre a América Portuguesa nos séculos XVII”, faz uma incursão comparativa e sagaz acerca da religiosidade indígena, ao longo dos séculos XVI e XVII, envolvendo a percepção que os agentes católicos e protestantes no contexto colonizador do Novo Mundo possuíam das manifestações de fé desses povos nativos.

Na última parte do volume, no anexo, intitulado Minas Gerais sub examine: inventário das denúncias nos Cadernos do Promotor da Inquisição de Lisboa (século XVIII), Leônia Chaves apresenta o precioso, sistemático e inédito levantamento, por ela realizado, de todas as denúncias inquisitoriais registradas nos cadernos do promotor relativas a Minas Gerais. Esse inventário extenso é um convite a novas investigações sobre os réus que caíram nas garras do Santo Oficio na capitania do ouro.

Dessa forma, conectando estudos analíticos com o desvelar de novas fontes a ainda serem pesquisadas, esta coletânea busca descortinar a presença e a atuação do Santo Ofício e do aparato secular da Igreja católica, no vasto e multicultural império marítimo português. Ao destacar as conexões dessas duas instituições com o ultramar americano, em particular com a capitania de Minas Gerais, este livro busca revelar as tantas travessias e trânsitos por que ambas passaram nos diversos espaços do mundo luso-brasileiro em que atuaram ao longo da era moderna.

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Referências bibliográficas

CALAINHO, Daniela Buono. Agentes da fé: familiares da Inquisição Portuguesa no Brasil. Bauru: Edusc: 2006.

FURTADO, Júnia F. Homens de Negócio: a interiorização da metrópole e do comércio nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999.

GORENSTEIN, Lina. A terceira visitação do Santo Oficio às partes do Brasil (século XVII). In: VAINFAS, Ronaldo. A inquisição em xeque. Rio de Janeiro: Eduerj, 2006. pp.25-31. SIQUEIRA, Sônia. A inquisição portuguesa e a sociedade colonial. São Paulo: Ática, 1978.

MAIA, Angela Vieira. À sombra do medo. Rio de Janeiro: Oficina Cadernos de Poesia, 1995.

NOVINSKY, Anita. Inquisição: inventários de bens conquistados a cristãos-novos. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1976.

PEREIRA, Ana Margarida Santos. A Inquisição no Brasil: aspectos da sua actuação nas capitanias do Sul, de meados do séc. XVI ao início do séc. XVIII. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2006.

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Parte I - O Tribunal do Santo Ofício e o Tribunal Eclesiástico

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1.

“Com toda a conformidade e boa correspondência” Inquisição e episcopado em Portugal (1536-1750)1

José Pedro Paiva

Principie-se esta digressão pela memória que se foi erigindo a propósito do padrão que caracterizou as relações entre a Inquisição (criada definitivamente em Portugal no ano de 1536) e o episcopado.

O traço mais arcaico que pude alcançar dessa memória data de Abril de 1611, quando já quase um século transcorrera desde a gênese do Tribunal da Fé. Dom  Felipe  III, preocupado com o equilíbrio das relações entre bispos e inquisidores nos vários reinos que governava, decidiu escrever a todos os arcebispos e bispos de Castela e Aragão. Porque sabia de problemas existentes, e por considerar ser da máxima importância para “o serviço de Deus e seu” a preservação da harmonia entre as duas partes, ordenava a todos os prelados que instruíssem os seus subordinados a que, tendo alguma queixa ou problema com os inquisidores, apresentassem o assunto ao Conselho da Suprema (o equivalente ao Conselho Geral da Inquisição portuguesa), onde tudo seria resolvido com “justiça”. Através desta ordem, o monarca visava pôr termo a uma vaga de disputas e evitar que ambas as partes avocassem a autoridade romana para dirimir contendas. Esforço em vão, pois os conflitos naqueles reinos mantiveram-se ao longo de todo o século XVII e foram frequentes.

Na mesma conjuntura, e dado que a coroa de Portugal estava então integrada à monarquia hispânica, pensou-se em endereçar carta idêntica ao episcopado de Portugal. Nesse sentido, o valido, Duque de Lerma, apresentou ao Conde de Salinas (na altura uma das pontes decisivas na comunicação entre o valido e o Conselho de Portugal) a minuta da missiva régia, pedindo que naquele Conselho a apreciassem, para, posteriormente, ser remetida a todos os antístites portugueses. A resposta do Conselho de Portugal é uma pérola para apreciar a memória que ali circulava a respeito do que eram as relações

1 O presente texto segue de perto os termos da conferência apresentada no Colóquio Internacional Religiosidade, o Tribunal do Santo Ofício e as Minas setecentistas, e retoma, de modo sintético e abreviado, o que escrevi em Baluartes da fé e da disciplina. O enlace entre a Inquisição e os bispos em Portugal (1536-1750) (2011). Por estes motivos, optou-se por não colocar qualquer nota no texto, além desta. O leitor poderá encontrar toda a fundamentação documental das ideias aqui expostas, bem como um aprofundamento e explicitação delas, no referido livro.

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entre o episcopado e a Inquisição. A consulta data de 9 de Fevereiro de 1611. Os membros do Conselho de Portugal, obedientes ao seu rei, declararam que acatariam qualquer ordem do valido ou do soberano, mas advertiam que

se não tem noticia de duvidas nem contendas que de presente haja naquelle Reyno entre os prelados e os ministros da Inquisição, antes ha informação que se procede entre elles com toda a conformidade e boa correspondencia; e que sendo isto assi não podera deixar de lhes fazer novidade esta advertencia e porventura que se movão por algumas destas partes cousas que estão quietas.

Nos princípios do século XVII já se configurara a noção de que em Portugal a ligação de bispos e inquisidores se fazia “com toda a conformidade e boa correspondência”, ao invés do que sucedia em Castela.

Avaliação de sentido idêntico continuará a vislumbrar-se em muitos momentos, autores e distintas narrativas até à segunda metade do século XVIII, juntamente com outras ideias que subentendem um clima de harmonia entre as partes, como a de que foram os bispos portugueses que requereram o Santo Ofício, que a preservação da pureza do catolicismo em Portugal e a repressão do judaísmo decorreram da boa relação entre inquisidores e bispos.

É certo que a história desta convivência não foi linear, conforme se colhe, aliás, na memória que dela se foi compondo. Durante os quase três séculos de vida da Inquisição verificaram-se evoluções e mudanças, ligadas à emergência de problemas e desafios inéditos, ao papel desempenhado por distintos protagonistas, às estratégias conjunturais seguidas pelo Tribunal da Fé, a diferentes configurações normativas e de poder originadas no centro romano. No entanto, uma análise global, e que procure encontrar um padrão dominante do que foram as relações entre estas duas instâncias do campo religioso, revela que, regra geral, elas foram de grande harmonia, estreita cooperação e profunda complementaridade.

Este padrão que pautou o que já designei como o enlace entre a Inquisição e os bispos foi uma originalidade portuguesa, bem diferente do clima vivido nos territórios onde vingaram as outras inquisições modernas (Espanha e Península Itálica). Por que motivos foi assim? Quais as razões que justificam esta relação cooperante e complementar?

As razões profundas eram duas. Em primeiro lugar, o poder da monarquia num reino que há muito alcançara níveis satisfatórios de coesão territorial e identitária, bem como a sua apreciável capacidade de interferência na generalidade das esferas do campo religioso. Em segundo lugar, o cruzamento de relações entre a Inquisição e os titulares das mitras, através da mobilidade de indivíduos entre elas. A estes dois argumentos há que aduzir outros que, embora em menor escala, não devem ser desconsiderados: a relativa escassez quantitativa das elites político-eclesiásticas e a sua homogênea formação, tanto cultural como acadêmica; o forte poder adquirido pelo Santo Ofício no campo

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eclesiástico com a correlata capacidade de censura, drasticamente limitadora da crítica e restritiva da afirmação de um pensamento alternativo e dissidente; e o fato de, praticamente até ao terceiro quartel do século XVIII, a Inquisição ter tido à mercê uma “clientela” específica sobre a qual concentrava a sua atuação, permitindo a sua sobrevivência sem grandes sobressaltos e não ultrapassando fronteiras confinantes com outros agentes do campo religioso.

O centro político em Portugal era relativamente robusto, tinha meios de dominação e integração territorial capazes para a época, não conhecendo outros que lhe fossem superiores ou que pusessem em causa de modo significativo a posse do poder e o exercício do mando. Acresce que, ao contrário de Espanha e da Península Itálica, o território não estava dilacerado por diferentes regiões, diferentes línguas e clivagens profundas ao nível dos seus traços identitários, em boa medida graças a políticas desencadeadas pelos monarcas. Estes tiveram à sua disposição, desde os primórdios do século XVI, meios efetivos de intervenção tanto sobre o episcopado, como na Inquisição, que eram, em boa medida, o resultado de políticas desencadeadas por dom Manuel I, tendentes a reforçar a capacidade de intervenção da monarquia na esfera da Igreja e a aumentar a sua autonomia face a intervenções da Santa Sé. Neste sentido, dois aspectos são fulcrais. Por um lado, o fato de o Tribunal da Inquisição ter sido pedido pelo monarca ao papado; por outro lado, a vigilância exercida sobre os bispos e os inquisidores-gerais, pois era o rei quem os escolhia, praticamente sem limitações, respectivamente desde os reinados de dom Manuel I e de dom João III. Ora, num contexto deste tipo, interessava ao rei que as relações entre dois dos mais importantes polos da Igreja fossem de consonância, para o auxiliarem a consolidar um quadro de unidade social, de respeito pelo valor da obediência e de integridade religiosa do Reino, tudo aspectos essenciais para a manutenção do seu poder. Simplificando, dir-se-ia que, regra geral, a monarquia estimulou a aliança através da escolha dos titulares dos dois poderes e da promoção de ações que integrassem a respectiva atuação, procurando ainda sanar dissonâncias perturbadoras da concórdia. E a força do rei era suficiente para o alcançar.

O cruzamento de carreiras e a circulação de pessoas entre as mitras e o topo hierárquico da Inquisição, por outro lado, provocaram uma forte imbricação das burocracias de ambas as instituições que muito contribuiu para a sua aproximação. Tal resultou, volte a frisar-se, das políticas de provimento dos lugares na cúspide das duas hierarquias que o monarca adotou. Isso determinou que quase todos os inquisidores-gerais fossem recrutados entre quem previamente já era bispo. Acresce, e em sentido inverso, que um núcleo muito significativo de prelados – sobretudo os que governaram as mais prestigiadas dioceses (as do Reino) – tinha prévia carreira inquisitorial, a saber, antigos promotores, deputados, inquisidores ou membros do Conselho Geral. Dos 141 bispos que assumiram mitras do Reino entre 1536 e 1750, 68 (48.2%) saíram das fileiras do Tribunal da Fé. Este padrão foi bem distinto do

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verificado noutros territórios onde existiram inquisições modernas. Na Itália as duas carreiras raramente se cruzavam e em certos períodos até se entendeu que o perfil e formação de um prelado era substancialmente distinto do de um inquisidor, e que os bispos não estavam, por norma, aptos a servir como inquisidores. Já na Espanha, apesar de existir alguma fluidez, ela esteve bem longe de atingir os patamares e a força do que se verificou em Portugal. A isto há ainda que adicionar que na Inquisição portuguesa as trocas não se faziam apenas ao mais alto nível. Sobretudo até finais do século XVI, foram vulgares as situações de agentes que desempenharam funções nos aparelhos da administração episcopal (provisores, vigários gerais, desembargadores) e, em simultâneo, cargos nos tribunais distritais do Santo Ofício (promotores, deputados). Só pelos finais dos anos 70 de Quinhentos há ecos de uma política do Santo Ofício que passou a exigir um estatuto de exclusividade de funções para os seus agentes. Ora, esta ubiquidade de certos personagens que fizeram carreira na Inquisição antes de chegarem a prelados, ou de bispos transferidos para a cabeça do Tribunal da Fé, proporcionou, naturalmente, a criação de relações interpessoais com os aparelhos burocráticos das duas instâncias, conferiu aos titulares destes cargos um conhecimento interno profundo do funcionamento de ambas, facilitou, em suma, a emergência de uma cultura comum, tornando-se um aspecto determinante para o clima de boa cooperação entre as duas partes.

O terceiro aspecto a considerar neste complexo explicativo é a questão da exiguidade e da homogênea formação das elites eclesiásticas lusitanas. Embora se conheçam movimentações agitadas, nos momentos em que era necessário prover dioceses vagas ou cargos de topo na Inquisição, no quadro da economia de mercês em que lugares deste gênero eram providos, o leque de escolhas era relativamente reduzido. Isso facilitava a concentração deste tipo de lugares num grupo circunscrito de pessoas – por norma com fortes vinculações familiares à nobreza de corte – contribuindo para a relativa homogeneidade do universo de pessoas que a eles ascendia. Com a agravante de que este corpo ostentava, na sua maioria, uma formação intelectual e cultural semelhante. Em Portugal existiam apenas duas instituições onde se podia alcançar uma formação superior: a Universidade de Coimbra e a de Évora, esta fundada na segunda metade do século XVI e ligada à Companhia de Jesus. Nos séculos XVI a XVIII, fora deste círculo estreito não havia centros de saber alternativos, para além dos Colégios da Companhia de Jesus e de outros institutos religiosos, onde, todavia, não se ministravam graus superiores. Estas escolas praticavam um ensino rigidamente ortodoxo e vigiado pela própria Inquisição desde cedo no século XVI. O magistério docente, sobretudo no âmbito da Teologia, foi sempre fortemente dominado pelo pensamento de Tomás de Aquino, ou seja, pela corrente neo-escolástica que, a partir de Alcalá e, sobretudo, Salamanca, tendeu a dominar a universidade e parte considerável da intelectualidade portuguesa, sendo, por norma, avesso à discussão e fiel seguidor das interpretações e modelos

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difundidos pelos pensadores mais estritamente ligados à normatividade fixada pela Igreja de Roma; tendo-se ainda caracterizado por uma obstrução quase sistemática à introdução de novidades no campo da filosofia e das ciências empíricas, áreas em franco progresso na Europa setentrional, desde o século XVII. Excluindo um breve período (1521-1550) de renovação e até desenvolvimento cultural, em que as correntes humanistas fizeram sentir a sua influência na corte e em alguns setores da intelectualidade, a neo-escolástica moldou fortemente a universidade e a vida cultural portuguesa. Esse domínio dilatou-se bastante no tempo e era ainda notório quando já ia largo o século XVIII. Só a reforma educativa encetada por ordem do Marquês de Pombal, na segunda metade de Setecentos, parece ter transformado este panorama. Esta uniformidade cultural das elites compaginava-se com os padrões da ortodoxia católica dominantes, e promovia uma identidade de pensamento sobre questões nucleares do cristianismo, da Igreja e do Estado, favorecedora da cooperação que se verificava entre a Inquisição e o episcopado.

O quarto ponto referido – o forte poder alcançado pelo Santo Ofício em Portugal e a sua capacidade censora – foi importante, quanto mais não fosse por razões de natureza pragmática. É que o poder inquisitorial, se por um lado podia ser usado como catapulta para quem tinha pretensões de chegar a bispo, podia igualmente constituir sério embaraço não só à ascensão à mesma mitra (para quem mantivesse posições ou ideias de confronto com o Sagrado Tribunal), como ao exercício da atividade episcopal (pelas intervenções que a Inquisição poderia provocar sobre áreas de jurisdição comum) e até, por via da censura, à própria produção e divulgação do pensamento e da ação dos antístites. Boas razões para que os bispos não quisessem celeumas com o Tribunal da Fé.

Por último, pode não ter sido desprezível o fato de a Inquisição se ter concentrado na perseguição dos cristãos-novos. Isso teria permitido – até que, em 1773, Sebastião José de Carvalho e Melo impusesse o fim da distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos – a existência de um contingente de potenciais alvos que alimentavam a dinâmica de funcionamento da instituição e, de certo modo, justificavam a sua existência, sem que para isso tivesse que intervir em zonas onde os riscos de desentendimento com os prelados podiam ser mais sensíveis. Tal como se verificou, por exemplo, na Península Itálica, onde, desde finais do século XVI, matérias tocantes à superstição, blasfêmia, falsa santidade e solicitação de penitentes na confissão passaram a dominar quantitativamente os processos do Santo Ofício, aumentando a probabilidade de desentendimentos com os bispos que tinham similar jurisdição sobre estas matérias. No fundo, a complementaridade das duas instâncias, uma mais vigilante sobre as heresias maiores e a população cristã-nova e outra sobre os comportamentos religiosos, a moral sexual e a conduta social dos cristãos-velhos, dava espaço de atuação a ambas e permitia aos bispos afirmarem o seu poder e jurisdição em áreas específicas, sem que tivessem que disputar o mesmo território.

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Os laços apertados existentes entre o episcopado e a Inquisição não se confinaram às múltiplas dimensões de colaboração prática fornecidas no âmbito da vigilância e repressão das heresias. O entrelaçamento das duas instâncias era muito mais profundo. Existia um enervamento de matriz ideológica que impregnava esta relação. Pode dizer-se que, por norma, houve uma convergência tácita de interesses entre a Inquisição e a esmagadora maioria do episcopado, assente numa comunhão ideológica de fundo, decorrente de uma visão global do mundo, da sociedade, da religião e do tempo que era consensual e conforme, na qual a preservação da ortodoxia da fé católica (conforme definida pela autoridade da Igreja) e a manutenção da integridade religiosa do reino eram pilares essenciais. Postura que tinha evidentes implicações nos planos do disciplinamento das populações, do reforço da autoridade e integridade da Igreja portuguesa e até da afirmação e consolidação da monarquia. Acresce que generalidade dos bispos compartilhava e defendia a função e os métodos do Tribunal da Fé, sobretudo aquilo que era o cerne da política inquisitorial: a perseguição dos cristãos-novos acusados de perpetuarem um criptojudaísmo de que, a maioria, jamais se teria libertado. Este grupo, assim pensavam inquisidores e prelados, corroía a Igreja e a sociedade portuguesa, ameaçando dois dos seus pilares mais sólidos: a integridade do Reino e a ortodoxia do catolicismo. Consequentemente, e nisso também os antístites se sintonizavam com o Tribunal da Fé, era necessária uma instituição forte, vigilante, com meios especiais para poder erradicar este problema, cuja solução passava, aos olhos da maioria esmagadora dos bispos e inquisidores, pela punição pública e a aplicação de castigos violentos – que no limite podiam significar a morte – aos judaizantes portadores do “sangue infecto”, para usar a força segregadora e intolerante da expressão coeva.

Esta sintonia ideológica e desejo de cooperação dos antístites com a Inquisição a que me refiro estão bem espelhadas em dezenas de missivas trocadas entre ambas as partes, com particular ênfase para as palavras que muitos bispos quiseram voluntariamente escrever. Em Novembro de 1632, dom Frei Lopo de Sequeira Pereira, bispo da Guarda (1632-1636), queria prestar toda a ajuda ao Tribunal da Fé por reconhecer que essa ocupação era “tanto do servisso de Nosso Senhor”, comprovando linha bem arraigada no pensamento de muitos bispos. A ação da Inquisição era serviço de Nosso Senhor. Ou, na expressão de dom Luís Simões Brandão, bispo de Angola nos inícios do século XVIII, “um santo intento”. Por isso, com naturalidade, por sintonia de concepções, os bispos queriam ajudar a Inquisição.

Traços desta mesma sintonia ideológica entre bispos e inquisidores vislumbram-se ainda em sermões, incluindo os ditos por alguns bispos em autos-da-fé, nas posições assumidas pelo episcopado relativamente à doutrinação dos cristãos-novos e, como seria expectável, nos livros que lhes foram dedicados ou de que foram autores.

Uma terceira via para apurar e demonstrar esta convergência dos laços

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ideológicos entre os “bispos pastores” e os “inquisidores vigias” será a de averiguar o posicionamento assumido pelo episcopado em fases críticas da vida da Inquisição. Nessas circunstâncias, foi usual os prelados terem adotado posições corporativas congregadoras da maioria dos seus membros, raras noutras situações (mesmo no plano estritamente religioso). Pode dizer-se que, até ao final do século XVII, sempre que a independência ou a capacidade do Santo Ofício foram ameaçadas, os bispos cerraram fileiras e defenderam até ao limite o estatuto institucional, privilégios e modos de intervenção do Tribunal da Fé. Isso ficou bem evidente em quatro circunstâncias concretas: durante o estabelecimento da Inquisição perante as dificuldades levantadas à sua autonomia; por ocasião do perdão geral concedido aos cristãos-novos em 1604-1605; com as tentativas de reforma do Tribunal da Fé no reinado de dom Filipe IV, que culminaram com a publicação, em 1627, de um édito da graça especial para os cristãos-novos; no período que conduziu à suspensão da Inquisição imposta pelo papado entre 1674 e 1681.

A reconstituição minuciosa de todas estas conjunturas faz emergir algumas tendências claras denunciadoras da sintonia de pensamento entre bispos e inquisidores. Nestas quatro fases dramáticas da vida da Inquisição portuguesa as duas partes cerraram fileiras na defesa do Tribunal e os bispos foram nessas circunstâncias dos mais destacados defensores das políticas, do estatuto e dos privilégios da Inquisição. Na realidade, em todas estas conjunturas há alguns aspectos que foram estruturantes e estiveram sempre presentes. Por um lado, o fato de o episcopado em quase todas as circunstâncias assumir posições de corpo/coletivas, fanando a uma só voz em defesa da Inquisição, o que, deve notar-se, foi raro entre os bispos durante a Época Moderna. Em segundo lugar prelados e inquisidores procuraram sempre concertar as posições que tomavam junto da coroa, do papado, do cardinalato ou de outras instâncias onde fosse necessário fazer pressão para resolver as delicadas situações que afligiam o Tribunal.

Terceiro ponto a merecer nota foi a circunstância de que na maior parte destes momentos de crise os bispos foram os primeiros a encabeçar a defesa do Santo Ofício, por vezes antecipando-se ao próprio Tribunal. Em quarto lugar nota-se que os prelados usavam de toda a influência e poder que tinham para ajudar a Inquisição, recorrendo aos conhecimentos e relações que pessoalmente tinham para defender a Inquisição. Por isso, escreviam, falavam, enviavam procuradores ao papa, cardeais, núncios, monarcas, conselheiros de estado, enfim, a todos quantos sentiam como importantes e que lhes eram próximos no contexto de cada configuração concreta. Por último, em todos estes processos, avulta na substância dos argumentos esgrimidos pelos antístites uma impressionante proximidade de posições e interesses relativamente ao que em idênticas conjunturas era sustentado pela Inquisição. Mesmo que, no limite, e excepcionalmente, tivessem que assumir posições de desobediência ao papado, como sucedeu quando Inocêncio XI, por 1679, enviou breves aos

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prelados do Reino, impondo-lhes que avocassem todas as causas correntes de heresia como juízes ordinários, sem esperar pela intervenção inquisitorial. Nessa altura, os prelados, assumindo uma invulgar e insubmissa posição face aos ditames pontifícios, recusaram-se a fazê-lo, enquanto a Inquisição estivesse suspensa, o que causou alarme entre as autoridades romanas residentes em Portugal.

É precisamente nesta conjuntura que conduziu à suspensão do Santo Ofício em 1674 que se encontra um dos mais notáveis exemplos desta aproximação. Em 15 de Setembro de 1683, dom Luís de Sousa, bispo de Lamego, remetia para o príncipe regente dom Pedro uma carta extensíssima (38 fólios). É, de todos os textos contra os cristãos-novos saídos da pena de um bispo lusitano, o mais intransigente e violento que conheço. Invocando a tradição, bem político muito considerado, lembrou que no perdão geral de 1604 os arcebispos foram a Madri para demover o rei, pelo que era de esperar que também nesta nova ocasião “he infalivel que o Conselho Geral do Santo Oficio e os prelados do Reino proporão a Vossa Alteza com igual instancia os inconvenientes que ha nesta material”.

Sabendo que o Príncipe já ouvira muitos letrados sobre o assunto, reconhecia que os conversos tinham legitimidade para pedir um perdão ao papa, o qual tinha jurisdição sobre a matéria, mas, sabendo da gravidade que teria para o Reino, estava disposto a demonstrar “que na pertenção da gente hebrea se envolvem os mesmos damnos que os principes são obrigados a impedir”, e este seria o principal intento da sua carta. Procurava, deste modo, sensibilizar a consciência do regente, tentando persuadi-lo de que, tal como todos os monarcas, tinha obrigação de “evitar os damnos espirituais e temporais das suas republicas”.

Com base numa sólida erudição e apoiado em várias autoridades, desde as Sagradas Escrituras, padres da Igreja e vários santos, encetou uma cerrada argumentação tendente a demonstrar que contra os heréticos não era solução a via da correção fraterna e evangélica. Pelo contrário, os príncipes e as autoridades eclesiásticas estavam obrigados a vigiá-los e castigá-los. O primeiro autor convocado em abonação da sua tese foi São Cipriano. Este afirmaria que “conceder facilmente perdõens aos culpados he largar-lhes as redeas para [que] com toda a liberdade sejão viciosos”. Depois desfiou um longo rol de outras autoridades da Igreja. Santo Ambrósio diria que o perdão do pecado era incentivo para que fosse cometido de novo; São João Crisóstomo

“que sempre cresse a culpa enquanto ha suspensão do castigo o apadrinha”, teses igualmente seguidas por Santo Agostinho, Nazianzeno, Clemente Alexandrino, Orígenes, São Leão e São Bernardo. O ponto mais importante dos seus argumentos radicava nos fundamentos bíblicos (em ambos os Testamentos) desta concepção do castigo severo contra os desviados da fé:

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No Testamento Velho, no Livro do Levitico e no Deutoronomio manda Deos castigar com pena de morte a quem faltar à religião, no Livro dos Nomaros mandou a Moyses que enforcasse aos judeos que avião adorado aos deoses das filhas de Moab e venerado ao idolo Belgedor; o mesmo Moyses mandou matar a muytos mil israelitas por haverem adorado a hum bezerro.

Igualmente no Testamento Novo diz Christo que o que escandelizar com impiedade a republica deve ser morto e lançado no mar. O apostolo S. Paulo castigou con cegueyra a hum pseudo propheta que desviado da relligião procurava preverter ao proconsul, e no Apocalipse reprehende Deos aos prelados que deixão herejes sem castigos.

E prossegue, legitimando, inclusivamente, a morte pelo fogo, pena que a Inquisição aplicava aos hereges convictos, negativos ou pertinazes:

A pena de fogo achamos explicada no Evangelho adonde Christo mandou castigar com chamas aos que se apartavão delle pellas culpas. Nas Epistolas de S. Paulo que metaphoricamente declarou esta verdade dizendo que se devem queimar as terras que produzissem espinhos. No cap. 26 dos Romanos de que consta que mandou Deos fogo para abrazar aos impios. A mesma doutrina se le em muitos outros lugares da Sagrada Escritura em que as hiresias e idolatrias se achão severissimamente castigadas.

No fundo, assegurava, fora Deus o instituidor destes castigos, não para oprimir mas para melhorar os ímpios, pelo que devia ser esse o intento da Igreja ao puni-los. Concluía com um poderoso silogismo: se o castigo era o mais eficaz remédio para evitar as culpas, e sabendo-se ser a falta dele o melhor meio de elas se propagarem, aceitar o pedido da gente de nação era abrir a porta a que a eles cometessem heresias “com mais soltura”, pois se sendo castigados tão asperamente em tantos autos-da-fé, “com desterros, fogueiras e outras penitencias” não se emendavam, antes prosseguiam nos seus erros, “a que impiedades se não animarão alcançando a impunidade delles?”.

Esta severidade e intransigência do seu juízo era o pensamento dominante entre o episcopado e compaginava-se com o dos inquisidores. E no seu longo arrazoado houve ainda espaço para defender a Inquisição e os seus procedimentos, declarando, por exemplo, que o perdão geral não fazia sentido porque no Santo Ofício ele já era concedido aos verdadeiramente arrependidos. Em suma, dom Luís de Sousa estava nos antípodas dos que liam a Bíblia pelo prisma da caridade evangélica e da misericórdia.

Baseando-se, sobretudo, em São Mateus, outros homens da Igreja sustentavam que o importante não era punir os desviados, mas perdoá-los, corrigi-los, afagá-los e trazê-los de volta a Cristo. O pensamento do episcopado não era, evidentemente, unívoco, havia exceções que discrepavam do sentir dominante. Era um deles o carmelita descalço dom Frei António do Espírito Santo, bispo de Angola (1672-1674). Em parecer datado de 26 de Julho de

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1673, o seu primeiro argumento é radicalmente distinto do que pensava dom Luís de Sousa, ao defender não ser o perdão via de fomento de erros, pois, se assim fosse, quando Deus perdoou tantas vezes aos pecadores estaria a ser co-responsável pelos pecados, o que seria interpretação manifestamente herética. Nesta senda contestava argumento recorrente, segundo o qual não se devia dar novo perdão aos cristãos-novos, porque no passado eles já tinham beneficiado de outros, voltando a cair nos mesmos erros. Ora, o carmelita argumenta ser comum um cristão-velho confessar-se e, posteriormente, voltar a pecar, não sendo de presumir que, por isso, queira Cristo e a doutrina da Igreja negar o perdão e a absolvição àqueles que reincidiam na mesma falta,

antes tendo perguntado S. Pedro a Cristo quantos vezes perdoaria aos pecadores, se bastariam seis ou sete, Cristo respondeu-lhe que não diria seis ou sete, mas antes todas as vezes que lhe pedissem. Portanto o pedir perdão pelas culpas passadas não é querer perseverar nelas, nem o permitir o perdão é fomentar as culpas.

Mas a sua posição mais arrojada denunciava e criticava abertamente o procedimento inquisitorial. Referindo-se ao pedido dos conversos para que a Inquisição passasse a usar os mesmos estilos da romana, considerou-o acertado, acrescentando que se assim fosse não se veriam tantos cristãos-novos nos autos-da-fé, pois muitos inocentes teriam possibilidade de se defender, “o que hoje dificilmente podem fazer e é um milagre se algum se defende”. Presumia ser contraproducente que se aprisionassem e condenassem os cristãos-novos, pois se fossem deixados em liberdade, abandonariam o judaísmo. Por fim, contestava a aceitação de testemunhas singulares e do segredo processual, o que os levava, para se tentarem salvar, a denunciar falsamente muitos cúmplices:

“confesso que venero o Tribunal como cristão velho que sou, mas digo que me agradaria ver este estilo emendado”.

Não foram muitos os antístites que acompanharam dom Frei António do Espírito Santo. Estas foram vozes raras e silenciadas, mas que anunciavam brechas entre a Inquisição e o episcopado, e chegaria o tempo, em meados do século XVIII, em que entre bispos e inquisidores foram medrando mais limites do que laços. A polêmica, que o demonstrou deflagrou em torno da designada questão do sigilismo. Foi luta áspera e duradoura e opôs o Tribunal da Fé, apoiado pelo patriarca de Lisboa dom Tomás de Almeida (1716-1754), a um grupo de prestigiados bispos ligados a uma corrente de renovação espiritual e eclesiástica designada jacobeia, a qual tinha o apoio e, de certo modo, era inspirada pelo franciscano do Varatojo frei Gaspar da Encarnação, personagem que, desde os anos 20 de Setecentos até 1750, teve elevada influência junto de dom João V, em particular nos negócios do provimento episcopal.

Mas regresse-se, para concluir, à via dominante. A da sintonia ideológica. Em 24 de março de 1688, o novo prelado de Cabo Verde, dom Frei Vitoriano do Porto, estava pronto para embarcar para a sua diocese. Ao partir, repetindo

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gesto que regularmente outros prelados executavam, escreveu para a Inquisição. Na missiva declarava que “se naquellas partes se offeresser algua cousa que pertença ao Santo Officio promptamente darei execução as ordens que me forem”, acrescentando fórmula justificativa do seu adestrado comportamento e que, seguramente, fora a que orientara o espírito da maior parte dos bispos portugueses. Dizia estar pronto a em tudo ajudar o Tribunal da Fé, e fazia-o

“como obediente filho da Igreja e de Nosso Senhor”. Eis o cerne da questão. A mesma obediência que reclamava aos seus súbditos servia para pautar o seu próprio comportamento. Pois foi esta sintonia ideológica, esta conformação geral com as diretivas do Tribunal e as suas estratégias, em nome da “obediência à Igreja e a Nosso Senhor”, que fez com que até 1745, sempre que a Inquisição atravessou dificuldades ou esteve mesmo em cheque, os bispos se tivessem assumido como seus incondicionais apoiantes e prontamente acudissem a defendê-la, por norma, assumindo posicionamentos coletivos unitários.

E assim, por via desta gramática do disciplinamento dos crentes, concebida, preservada e vigiada através do enlace de inquisidores e bispos se facilitou, estimulou e consumou a obediência dos vassalos. Estes são traços profundos, densos, decisivos e que deixaram lastro indelével em Portugal e nos portugueses. Estes não tinham nenhuma essência ôntica que lhes fosse conatural e que determinasse a sua vinculação ao catolicismo. O sangue da ortodoxia não lhes corria nas veias, foi-lhes lá instilado, pelos baluartes da fé e da disciplina, ou seja, por bispos pastores e inquisidores vigias.

Referências bibliográficas

PAIVA, José Pedro. Baluartes da fé e da disciplina. O enlace entre a Inquisição e os bispos em Portugal (1536-1750). Coimbra: Imprensa da Universidade, 2011.

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2.

A ação da Inquisição no Brasil: uma tentativa de análise

Bruno Feitler

Já se foi o tempo em que os estudos sobre a ação inquisitorial no Brasil, graças a fontes publicadas, se limitavam às visitações da virada do século XVI para o XVII.1 Desde a década de 1970 desenvolveram-se, impulsionados pela professora Anita Novinsky, estudos baseados em documentação dos períodos posteriores. Desde então, pouco a pouco, o conhecimento das pessoas presas, dos delitos perseguidos, dos agentes e do impacto da ação inquisitoriais locais se multiplicaram. Mesmo se os números ainda não são seguros, e se os estudos sobre a Inquisição portuguesa, em geral durante a segunda metade do século XVIII, ainda fazem falta, já é possível traçar um panorama geral da ação da instituição na América portuguesa.2

A lenta implantação da Inquisição no Brasil

Apesar de muito discreta em seus primeiros tempos, podemos dizer que a atuação do Santo Ofício na América portuguesa acompanhou a ocupação do território pelos portugueses. Isso quer dizer que assim como a fundação de vilas e de paróquias ou a criação de irmandades, a ação inquisitorial pode ser vista como mais um elemento do complexo de ações e comportamentos que caracterizam a transformação do espaço extra-europeu em espaço luso e católico.

1 Primeira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça: denunciações da Bahia (1591-3), C. de Abreu (pref.), 1925; Primeira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça: Confissões da Bahia (1591-2), 1935; Primeira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça:: Denunciações de Pernambuco (1593-5), 1929; Primeira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça: Confissões de Pernambuco, 1970; Segunda visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Inquisidor e Visitador o Licenciado Marcos Teixeira: denunciações da Bahia (1618), 1927; Segunda visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Inquisidor e Visitador o Licenciado Marcos Teixeira: Livro das confissões e ratifi-cações da Bahia (1618-20), 1963, XVII.2 Para um sobrevoo recente da bibliografia sobre a Inquisição portuguesa, e assim também da sua ação no Brasil, ver Marcocci (2010).

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Pouco tempo depois da implantação das capitanias hereditárias, ou seja, pouco depois da instalação dos primeiros núcleos populacionais portugueses, se deu a primeira manifestação do Santo Ofício na América portuguesa, quando o capitão donatário de Porto Seguro, Pero do Campo Tourinho, foi preso pelo vigário e pelos juízes ordinários locais por blasfemar, e remetido em 1546 diretamente para o tribunal da Inquisição de Lisboa.3

Mesmo se o sistema de capitanias não foi completamente abandonado, em 1548 dom João III criou o governo geral do Brasil, com sede na Bahia, com o objetivo de consolidar, ampliar e defender a ação da Coroa na região. Os primeiros anos não foram fáceis, e os franceses, antes ativos na costa nordeste, continuavam presentes, agora no Rio de Janeiro. Jean de Bolès, um desertor da França Antártica (a efêmera colônia francesa instalada na baía de Guanabara), parece ter sido a segunda pessoa a ser presa na América portuguesa em nome da Inquisição, num procedimento bem próximo do que seria mais tarde a regra de ação inquisitorial no Brasil. Após uma instrução secreta do processo por heresia, feita pelos jesuítas em 1560, o bispo da Bahia decretou sua prisão, enviando os autos para Lisboa. No ano seguinte chegava a ordem de prisão assinada pelo inquisidor geral. Uma vez em Portugal, Bolès abjurou seus erros em mesa.4 É de se notar que nem o processo de Tourinho nem o de Bolès foi movido por culpas de judaísmo, que foi não só a grande especialidade dos tribunais portugueses, como também a culpa da maioria das pessoas presas no Brasil pelo Santo Ofício de meados do século XVII em diante. Essa ‘anomalia’, que diferencia a ação da Inquisição no Brasil daquela no reino ou mesmo no Estado da Índia, se verifica durante as duas visitações feitas ao Nordeste entre fins do século XVI e os anos 1620 (a Bahia, Pernambuco, Itamaracá e Paraíba entre 1591 e 1596, e novamente à Bahia entre 1618 e 1620). Então, a colonização, mesmo que sobretudo litorânea, já se havia consolidado com núcleos populacionais cada vez mais importantes, justificando assim uma ação mais efetiva do Santo Ofício por meio do instrumento da visitação, em uso pelo Santo Ofício em outras paragens desde a década de 1560, ou mesmo da de 1540.5

O Brasil é dado como um lugar de refúgio para a população de origem conversa, um lugar onde eles estariam a salvo da Inquisição, pela falta de um tribunal local, mas também por representar para eles um lugar para recomeçar a vida e tentar a sorte, como, aliás, para o resto da população portuguesa que

3 Sobre Pero do Campo Tourinho, ver Britto (2000). O interrogatório sofrido por ele em Lisboa foi transcrito em Abreu ([1907] 1982:225-227).4 Sobre Bolès, ver entre outros Bicalho (2008). A documentação referente a seu processo lisboeta foi publicada em Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (vol.XXV, 1903: 215-308,). Jean de Bolès acabou mesmo assim na fogueira, julgado como relapso por luteranismo pelo tribunal da Inquisição de Goa em 1572 (Cf. Révah, 1960).5 Para uma cronologia das visitações inquisitoriais, ver Bethencourt (1987).

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aqui se instalou.6 Mas segundo os dados da documentação originada das duas primeiras visitações, mesmo se o maior número de denúncias foi de culpas de judaísmo (207), elas parecem não ter originado mais que 17 processos, enquanto as visitações provocaram a instauração de 31 processos por blasfêmia, 19 por irreverências e 18 contra pessoas que desqualificavam o estado religioso (Siqueira, 1978:217, 227 e 255). As pesquisas de Anita Novinsky também apontam para a mesma direção: dos 223 processos instaurados no século XVI contra habitantes ou naturais do Brasil (187 homens e 36 mulheres), somente 16 o foram por judaísmo, surgindo em primeiro lugar da fila os 68 processos por proposições heréticas, seguidos dos 29 por blasfêmia, dos 18 por gentilidades, e logo após, os 14 por sodomia (Novinsky, 2002:27-43). Esta aparente discrepância da ação inquisitorial no Brasil e no Reino, onde os judaizantes foram, nessa época e desde o início das atividades inquisitoriais em Portugal, o maior alvo do tribunal, pode ter duas causas; seja, como chegaram a aventar alguns historiadores, que não interessava à coroa desbaratar ou afugentar os cristãos-novos da colônia por seu importante papel na ocupação territorial, o que desestabilizaria o difícil adensamento populacional de origem branca, seja a perda de uma parte da documentação da primeira visitação à Bahia, mais especificamente relativa ao recôncavo baiano, região açucareira de importante população cristã-nova (Prado, 1976:107).7

De acordo com a documentação subsistente, durante a primeira visitação – a única que pode ser comparada a um tribunal itinerante, com instrução de processos e em alguns casos, a cerimônia de leitura de sentenças (ou seja, o auto-da-fé) e execução de penas –,8 os delitos mais escandalosos, e que deram mais trabalho ao visitador, o licenciado Heitor Furtado de Mendonça, foram os casos da santidade do Jaguaripe (Ver Vainfas, 1995).

Vale aqui lembrar que os índios, mesmo convertidos, não estavam sob a alçada do Santo Ofício. Uma comissão enviada pelo cardeal dom Henrique em 1579 ao bispo do Brasil dom Antônio Barreiros (1576-1600) lhe dava poderes sobre os fatos de jurisdição inquisitorial “sendo as pessoas culpadas dos novamente convertidos”. O bispo os deveria julgar com o auxílio dos jesuítas locais, e a provisão ainda encomendava que tal fosse feito “com moderação e respeito que se deve ter com gente novamente convertida para que não se intimidem os outros vendo que se usa de todo o rigor do direito com os já convertidos”, o contexto missionário justificando assim a medida.9 Apesar de não termos provas de uma ação real desse tribunal, a comissão enviada ao

6 Para a problemática do Brasil enquanto terra de refúgio e de degredo, ver Pieroni (2000).7 Ronaldo Vainfas (1935:11) informa do desaparecimento de cinco dos nove livros produzidos pela primeira visitação do Santo Ofício na sua introdução às Confissões da Bahia. 8 Sobre os autos-da-fé coloniais, ver Mello (1996). Ninguém foi, claro está, queimado na fogueira no Brasil. Apenas os casos menos graves foram sentenciados localmente.9 O translado dessa provisão encontra-se transcrito, entre outros, em Pereira (1987: 56-57, doc. 52).

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bispo excluiu oficialmente e na prática os índios da jurisdição inquisitorial, delegando-a ao prelado, seu pastor natural e instância originalmente detentora do poder de julgar os casos de heresia. Esta isenção dos índios da América portuguesa pode ser posta em paralelo com o que aconteceu nos territórios castelhanos, onde a criação dos tribunais inquisitoriais do México e de Lima em 1568 coincidiu com a retirada dos indígenas da sua alçada. No caso espanhol eles deviam ser julgados pelos tribunais civis ou episcopais.10 Os raros casos de indígenas do Brasil presos pela Inquisição (sobretudo por bigamia) aconteceram durante a segunda metade do século XVIII, quando a política pombalina tendeu a aplainar as diferenças entre os portugueses e os índios.11 Voltando à análise das visitações inquisitoriais ao Brasil e as razões de suas realizações, devemos atentar para o fato de a primeira visitação estar ligada ao contexto da expansão geral do Santo Ofício pelos domínios atlânticos portugueses e das visitações efetuadas na mesma época no reino, sem que se possa aventar concretamente nenhuma outra motivação mais específica. Já a segunda visitação à Bahia (1618-1620), a pouco conclusiva visitação ao Rio de Janeiro, a São Paulo e ao Espírito Santo (1627-1628) e o projeto de uma segunda visitação a Pernambuco e à Paraíba na mesma época, pelos relatos que chegavam a Portugal sobre a liberdade em que vivia a população do Brasil, sobretudo os cristãos-novos, podem ser mais facilmente conectados a uma vontade de repressão mais ampla ao criptojudaísmo, e ao medo de um conluio entre os cristãos-novos e os inimigos holandeses.12

Apesar dos contínuos rumores, de súplicas feitas ainda no século XVIII, ou dos desejos de Felipe III, o Brasil nunca chegou a abrigar um tribunal permanente da Inquisição, contrariamente aos territórios portugueses da Ásia e África oriental (sob jurisdição do tribunal de Goa, fundado em 1560) e à América espanhola, que contou com três tribunais, instalados no México, em Lima e em Cartagena de Índias. Toda a América portuguesa, assim como os territórios portugueses banhados pelo Atlântico e as praças do Norte da África permaneceram sempre sob a jurisdição do tribunal da Inquisição de Lisboa. O período filipino (1580-1640), coincidindo com um franco desenvolvimento econômico em torno da cultura da cana-de-açúcar e com um aumento populacional dos domínios portugueses na América, foi para o Santo Ofício um momento de experimentação e finalmente de fixação dos métodos locais de ação. Para além das visitações mencionadas, que se mostraram um instrumento caro e nem sempre efetivo de ação, Lisboa enviou ao Brasil o que podemos chamar de ‘super-comissários’, com poderes para inquirir, mas não para

10 Para uma análise do contexto ibero-americano, ver Piazza (2010:1037-1040, vol. 2).11 Sobre os índios e a Inquisição, ver o texto de Maria Leônia Chaves neste volume. Sobre a polí-tica indigenista pombalina, ver Almeida (2010).12 Sobre o discurso antijudaico e anti-cristão-novo e sua relação com a ameaça protestante no contexto brasileiro, ver França (1970), Novinsky (1972) e Schwartz (2000).

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efetuar prisões em nome da Inquisição.13 Em 1630, encontrava-se em Olinda o dominicano Antônio Rosado, que dizia ter sido enviado pelo inquisidor geral a Pernambuco enquanto comissário, com poderes para nomear notários, meirinhos e possivelmente também familiares. Também disse ter poderes para prender e soltar em nome do Santo Ofício, mas apesar disso, Rosado parece ter-se interessado mais pelas vantagens financeiras que poderia tirar de tal posição. As exações cometidas localmente pelo dominicano, de conchavo com o visitador das partes do sul do Brasil, Luis Pires da Veiga, então de passagem por Pernambuco, fizeram com que os dois fossem exonerados pelo Conselho Geral. Esta situação inédita, de um visitador que na verdade não o era, visto não ter o poder de julgar nenhum caso localmente, não foi, contudo, única. Este episódio pode ser posto em paralelo com a ordem do rei ao inquisidor geral de Portugal dom Fernão Martins Mascarenhas, emitida em 1623, para que este nomeasse um jesuíta enquanto “comissário-inquisidor” para a Guiné; mas também com a “grande inquirição” estudada por Anita Novinsky (1972), realizada em 1646 pelo jesuíta Manoel Fernandes na Bahia, quando este não fez mais que recolher os dizeres de um grande número de testemunhas, em seguida analisados em Lisboa. A “grande inquirição” da Bahia e a ação de Antônio Rosado não causaram nenhuma prisão, e o visitador das partes do Sul não efetuou mais que três.

Também houve, por parte da Coroa, tentativas de criação de um tribunal da Inquisição no Brasil, mesmo que dependente do tribunal lisboeta. Essas tentativas, feitas no mesmo contexto de medo de um conluio dos inimigos calvinistas com os cristãos-novos locais, encontraram resistência da parte da própria instituição, já que nos projetos de Felipe III (em 1622) e depois de Felipe IV (em 1639), por questões puramente econômicas (um tribunal completo custaria muito caro), o poder inquisitorial deveria ser entregue ao bispo da Bahia e ao futuro bispo do Rio de Janeiro, o que não interessava ao Santo Ofício. O sistema proposto pela Coroa para o tribunal brasileiro implicaria no julgamento de hereges diretamente pelos bispos, o que, apesar do “enlace entre a Inquisição e os bispos em Portugal”, poderia levar outros antístites do mundo português a querer exercer esse poder quase natural dos bispos independentemente do Santo Ofício (Ver Feitler, 2007).14 O sistema proposto pelos Felipes foi, contudo, instaurado tardiamente na chamada

13 Para o problema da dificuldade de controle dos visitadores e os altos custos das visitações, ver Siqueira (1978:135-139) e Pereira (2006).14 Sobre a ligação entre o episcopado português e a Inquisição, ver a contribuição de Paiva (2010). Esse autor trata especificamente das tentativas de criação de um tribunal no Brasil (Paiva, 2010:191-196). Vale salientar que alguns bispos podiam ver a Inquisição como um auxiliar do múnus e do trabalho do tribunal episcopais, e não o contrário. Em carta de 14/11/1609 o bispo de Cochim dom frei André de Santa Maria escreveu que “o ofício da Santa Inquisição [ter-se orde-nado] pelos Sumos Pontífices de 400 anos a esta parte para ajudar aos bispos a lançar de seus bis-pados os que são hereges ou o parecem” (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Mss 25, 1, 2, n.83).

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visitação do Santo Ofício às partes do norte. Com efeito, a ação de Giraldo José de Abranches enquanto enviado inquisitorial, como o mostrou recentemente Yllan de Mattos (2009), estava subordinada a seu papel de vigário geral e governador do bispado do Maranhão, cujo prelado foi destituído a mando do marquês de Pombal pelo próprio Abranches.15

A impossibilidade de se criar um tribunal local, e a pouca adaptação dos sistemas excepcionais de ação (visitações e ‘super-comissários’) à realidade luso-americana, fez com que a Inquisição tivesse que se contentar com um funcionamento ordinário.

O funcionamento e os agentes da Inquisição

O que aqui chamamos de funcionamento ordinário dependia sobretudo das denúncias feitas espontaneamente ou em reação à leitura de editais da fé, regularmente enviados à colônia a partir do começo do século XVIII. Era baseado nessas denúncias, e também naquelas feitas por pessoas já presas nos cárceres inquisitoriais, que o Santo Ofício conseguia os testemunhos necessários para se lavrar um mandado de prisão. Para que esse sistema funcionasse, a instituição contou com a participação não só de oficiais inquisitoriais, mas também necessitou da estreita colaboração do clero e das autoridades administrativas locais.16 Com efeito, a rede de oficiais do Brasil, composta de familiares, comissários, notários e os raros qualificadores e visitadores das naus, demorou a se formar. No longo espaço de tempo durante o qual essa rede se constituiu, e em seguida, se consolidou, foram pessoas que oficialmente não faziam parte do corpo inquisitorial que lhe serviram de agentes locais, efetuando inquirições, coordenando capturas e distribuindo editais da fé. As pessoas que serviram de agentes extra-oficiais da Inquisição variaram de acordo com o tempo e a região em questão, mas podem ser principalmente divididas em membros do clero secular e das ordens religiosas.

Nos anos 1670-1690, na Bahia, vários carmelitas foram os correspondentes privilegiados dos inquisidores e, aproximadamente na mesma época, franciscanos no Rio de Janeiro. Mas dessa colaboração do clero regular se sobressai o papel dos jesuítas. Seguindo o exemplo do colégio inaciano de Angra, nos Açores, cujos sucessivos reitores foram explicitamente nomeados a partir

15 A sua nomeação enquanto visitador pelo Santo Ofício só foi lavrada depois da provisão de vigário geral. A visitação não foi contínua como as anteriores, mas sim intermitente, Abranches evocando o título de visitador apenas quando surgiam casos de alçada inquisitorial (Mattos, 2009:117).16 Está ainda por fazer o estudo sobre as relações das autoridades laicas locais com a Inquisição no Brasil, apesar de ser conhecido seu papel como agentes do Fisco régio, assim como as dispu-tas que surgiram em torno dos privilégios dos oficiais do Santo Ofício. Sobre o Fisco, ver Feitler (2003:104-113) e sobre os conflitos em torno dos privilégios, Wadsworth (2006).

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de 1619 como os representantes locais do Santo Ofício, os reitores dos colégios de São Luís e de Belém transmitiram tacitamente o cargo de comissário a seus sucessores a partir de 1688. Também em São Paulo, um pouco mais tarde (não sabemos exatamente a partir de quando), os reitores do colégio local fizeram

“as vezes de Comissarios nossos naquella Cidade” (Lisboa. Arquivo Nacional da Torre do Tombo [ANTT]. Inquisição de Lisboa [IL], livro 20, fl. 254v. Carta dos inquisidores de Lisboa ao familiar de São Paulo José Ramos da Silva de 14 de fevereiro de 1719). Os jesuítas também tiveram papel importante enquanto representantes inquisitoriais nas primeiras décadas do século XVIII no Rio de Janeiro e em Pernambuco, transmitindo denúncias e efetuando inquirições em nome do Santo Ofício (Feitler, 2003:127-131).17

Curas, vigários da vara, bispos ou membros dos tribunais episcopais (os bispados do Rio de Janeiro e de Pernambuco foram desmembrados em 1676 do da Bahia, então elevado a arcebispado, e o do Maranhão criado no ano seguinte) foram essenciais ao bom funcionamento da Inquisição no Brasil; quem sabe até de modo mais evidente do que em Portugal, onde existiam tribunais locais e onde a rede de comissários se constituíra já durante o século XVII.18 Com efeito, mesmo sem o título oficial de comissários, vigários gerais, visitadores episcopais, juízes dos casamentos e os próprios bispos foram colaboradores privilegiados dos inquisidores, transmitindo-lhes denúncias surgidas durante as visitações e processos começados em seus tribunais. Eles também faziam, é claro, inquirições a pedido dos juízes de Lisboa. Mas queremos aqui salientar o papel de toda a malha formada pelo clero secular, que ia dos bispos até a mais distante paróquia do sertão ou capela de engenho na distribuição e leitura dos editais da fé, no qual eram descritos os crimes sobre alçada inquisitorial e se incitava, sob pena de excomunhão, a que se denunciassem os culpados em tais crimes (Feitler, 2003). Finalmente, a ligação entre episcopado e Inquisição também se desvela no Brasil por meio da nomeação a bispos de vários antigos inquisidores ou deputados do Santo Ofício, sobretudo depois das frustradas tentativas de criação de tribunais locais da Inquisição (Feitler, 2003:76-77).

Pouco a pouco, com a consolidação da rede local de comissários oficiais nos anos 1740, estes começaram a ser os correspondentes preferenciais dos inquisidores, mas os prelados, os jesuítas, franciscanos e capuchinhos nunca deixaram de receber, de quando em vez, inquirições delicadas ou mandatos de prisão para efetuar em nome do Santo Ofício.19 O regimento inquisitorial de 1613 instituía que os principais lugares de cada distrito, sobretudo os portos

17 Para as complexas relações entre jesuítas e Inquisição em Portugal, é essencial o artigo de Marcocci (2004).18 Para a formação da malha inquisitorial em Portugal ver Torres (1995).19 Podemos aqui mencionar o caso pernambucano em que, apesar da existência de comissários nos anos 1730 e 1740, encarregados de fazer inquirições de genere de candidatos a familiares e comissários, eram aos jesuítas que os inquisidores pediram que se fizessem as inquirições-crime referentes a denúncias ou processos em andamento (Ver Feitler, 2003:215-227).

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marítimos, deviam ter um comissário inquisitorial e um escrivão para assisti-lo, inclusive “nas capitanias do Brasil” (Regimento de 1613, título I, § II).20 Vale notar que os notários nomeados para o Brasil poucas vezes serviram como escrivães dos comissários, mas agiram frequentemente como comissários eles mesmos, não tendo merecido, por suas ‘qualidades’, o cargo superior. Já em 1611 o padre dom João de Membrive havia sido nomeado comissário para o Rio de Janeiro, mas trata-se de uma exceção: apesar de algumas esparsas nomeações de jesuítas enquanto visitadores das naus e comissários para a Bahia (1642) ou o Maranhão (1643), a rede de altos oficiais inquisitoriais no Brasil só se solidificou na Bahia nos anos 1690, no Rio de Janeiro e em Pernambuco nos anos 1710-1720 e ainda mais tardiamente no resto da colônia.21

O mesmo se verifica no que toca a seus familiares. Seu número, no Brasil, foi incipiente até fins do século XVII, quando a curva de pedidos e nomeações começa a subir exponencialmente, atingindo seu ápice em 1790, alguns anos mais tarde do que no resto do mundo português, decaindo então pelas mesmas razões das de lá, ou seja, a perda de prestígio do Santo Ofício, o que também se verifica pela maior dificuldade dos oficiais inquisitoriais em assegurar seus privilégios e o serviço do Santo Ofício. Como na metrópole, a maioria dos familiares eram mercadores em busca de marcas de distinção racial. Mais especificamente, no caso do Brasil, sobretudo reinóis enriquecidos (Ver Calainho, 2006 e Wadsworth, 2007). Em troca dessa distinção, o tribunal conseguia desses oficiais laicos uma penetração social que extrapolava o papel repressivo tanto do Santo Ofício quanto dos próprios familiares, pois, como os inquisidores de Lisboa fizeram questão de lembrar em 1719 a um familiar zeloso demais de suas prerrogativas de bastião da fé, “o Santo Ofício também se serve sem familiares” (ANTT. IL. Livro 20, fl. 254v. Carta dos inquisidores de Lisboa ao familiar de São Paulo José Ramos da Silva de 14 de fevereiro de 1719).22

Estimações feitas por James Wadsworth (2007) apontam para um total de entre 4000 e 5000 candidaturas à familiatura para todo o Brasil, com cerca de 3500 nomeações efetivas para familiares. A região pernambucana, por exemplo (o caso estudado mais de perto), contou com 885 candidaturas e 663 nomeações. A Bahia pode ter tido números similares, enquanto o Rio de Janeiro teve pelo menos 658 candidaturas e Minas Gerais, 345. As primeiras nomeações para o Brasil datam da década de 1640, mas mais da metade delas são da segunda metade do século XVIII (Wadsworth, 2007:37-41). O número de nomeações, evoluindo de modo oposto ao das prisões, em grande declínio após meados

20 Publicado, entre outros, em anexo a Franco e Assunção (2004).21 Sobre João de Membrive, ver Pereira (2006). Para a cronologia do estabelecimento da rede de comissários no Brasil, ver Feitler (2003:88-94).22 Os inquisidores ainda lhe escreveram “hum homem leigo como VMce, [...] não pode nem deve admitir denunciaçoens, e muito menos pesquizar nas vidas alhea”, e que o tribunal “não se agrada de zelos indiscretos e imprudentes”.

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do século XVIII, mostra a importância honorífica do cargo, assim como dos privilégios a ele relacionados. Esta inflação não era do gosto da Coroa, e o número de familiares que gozavam de privilégios (os chamados ‘familiares do número’) no Brasil foi limitado pelo rei em 1720, a 30 para a Bahia, 20 para o Rio e 10 para Olinda (esta limitação já havia ocorrido no reino por leis de 1682 e 1693), mas a questão só se complicou, pois a lei não especificava se esses números correspondiam somente às cidades mencionadas ou a toda a capitania correspondente, ou ainda qual a situação dos familiares das outras regiões. Essa ambiguidade da legislação, que vigorou até a extinção do Santo Ofício, pode ser a razão da manutenção do crescimento do número de candidaturas no Brasil mais tardiamente do que no resto do império (Wadsworth, 2006).

A formação de instituições ligadas ao Santo Ofício, como era de se esperar, segue a cronologia dos homens que as compunham. Assim, a companhia dos familiares só surge no Brasil no século XVIII, enquanto a primeira festa de são Pedro Mártir acontece na Bahia em 1697, um ou dois anos depois em Pernambuco, e em 1733 nas Minas. Inicialmente os oficiais inquisitoriais residentes no Brasil faziam parte da irmandade lisboeta, as antenas locais do sodalício surgindo provavelmente bem entrada a segunda metade do século XVIII (Feitler, 2003:138-148).23 Quanto ao cargo de juiz de juiz conservador dos familiares e de juiz do fisco, responsável pelo sequestro e subsequente confisco dos bens dos processados pela Inquisição, ele parecia ser tacitamente conexo ao cargo de ouvidor geral (isto é, o juiz local, nomeado por três anos) ou a um outro cargo similar, pelo menos nas regiões costeiras, de colonização mais antiga. Na região das minas, o cargo de juiz do fisco só foi criado em 1734, pelo rei, sob recomendação do inquisidor geral (Feitler, 2003:112).

A ação inquisitorial no Brasil

A ação do Santo Ofício no Brasil também variou bastante no tempo e no espaço, geralmente acompanhando o ritmo de ocupação territorial e de crescimento econômico das regiões, o que evidentemente fazia com que a população também crescesse e assim, as ocasiões de se encontrar réus. Ela também se deixou influenciar pela falta de uma estrutura local de funcionamento e pelos contextos geopolíticos europeus, como denota a baixa do número de casos brasileiros durante o século XVII, como vimos, período de experimentação para o Santo Ofício no Brasil, mas também de guerras, o que dificultava a comunicação entre os dois lados do Atlântico. Assim, as

23 James Wadsworth (2003) avança a criação de irmandades de São Pedro Mártir para a época de realização das primeiras festas em homenagem ao padroeiro da Inquisição, mas não me parece dar provas documentais dessa existência.

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primeiras décadas do século XVIII – quando a rede de oficiais locais se constituiu, quando, apesar dos ataques franceses ao Rio de Janeiro, a guerra se concentrou na Europa, e quando o lugar do Brasil como a “vaca de leite” da Coroa portuguesa se consolidou com a descoberta do ouro, em 1694, na região posteriormente chamada Minas Gerais – foram o momento de maior ação inquisitorial no Brasil, particularmente voltada contra os judaizantes. Ela resultou no desbaratamento das comunidades cristã-novas da colônia, sobretudo o tradicional e importante grupo do Rio de Janeiro, destruído com as mais de duzentas prisões, mas também de grupos de regiões periféricas, como foi o caso do núcleo paraibano, onde foram presos, nessa época, cerca de cinquenta pessoas acusadas de judaísmo. A importância do Brasil sobressai inclusive do aumento da porcentagem de pessoas dele provenientes nos autos-da-fé de Lisboa, contando em média por 21,25% dos condenados dos autos do século XVIII. Depois de 1760 a atividade repressiva do Santo Ofício no Brasil cai drasticamente, tornando-se inexpressiva após a instauração das reformas pombalinas (1768-1774).24

Vejam-se os Quadros 1 e 2 com os lugares de residência e a distribuição dos delitos ao longo do tempo dos 1076 casos até agora repertoriados para o Brasil em estudo feito por Anita Novinsky (2002:27-43). Quanto ao primeiro Quadro, vale a pena esclarecer que os casos por região não se distribuem homogeneamente no tempo, mas que boa parte dos casos da Bahia aconteceu durante as visitações de 1592 e 1618, os de Pernambuco na mesma visitação de 1592, enquanto os casos do Rio de Janeiro, da Paraíba, e evidentemente de Minas, se concentram no século XVIII. Os casos do Pará se concentram em torno da tardia visitação lá feita entre 1763 e 1769. A grande diferença dos números entre homens e mulheres revela o caráter colonial da sociedade local, sobretudo no primeiro século da presença portuguesa, onde a mulher branca, mais suscetível de cair nas teias inquisitoriais que as índias ou negras, era escassa. A diferença se aplainou no século XVIII, como também diminuiu a porcentagem de pessoas naturais do reino entre os presos do Brasil, mas essas diferenças continuaram nas regiões de fronteira ou de ocupação efetiva mais recente, como foi o caso em Minas Gerais e nos territórios constituintes do Estado do Maranhão.

24 Para estes números, ver Wadsworth (2007:47).

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Quadro 1 - Lugar de residência dos réus

Região Homens Mulheres TotalRio de Janeiro 185 162 347Bahia 208 41 249Pernambuco 120 15 135Minas Gerais/ Goiás 60 5 65Paraíba 26 29 55Pará 40 12 52São Paulo/ Santos 13 1 14Maranhão 10 1 11Outros 37 4 41Sem dados 79 28 107Total 778 298 1076

Fonte: Novinsky (2002)

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Quadro 2- Distribuição dos delitos inquisitoriais

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A situação colonial das terras portuguesas na América também sobressai das ocupações ou profissões declaradas pelos homens presos. Enquanto no reino os artesãos foram as principais vítimas da Inquisição, seguidos dos profissionais do comércio (comerciantes e tendeiros), surgindo só então os homens que viviam da terra, vemos que no Brasil a ordem se inverte. Com efeito, dada a grande importância da mão de obra escrava para a economia, o que desqualificava o trabalho manual, os artesãos livres eram poucos, como também foram poucos (mas não inexistentes) os cativos presos pelo Santo Ofício, apesar de sua importância numérica no Brasil. Excluindo-se o alto número de processos sem dados (238) surgem em primeiro lugar aqueles que trabalhavam na agropecuária e no comércio, contando ao todo por volta de 40% do total (respectivamente 20,56% e 19,44%), seguidos pelos artesãos (10,3%) e pelos eclesiásticos (10,19%).25

É bastante difícil vislumbrar objetivamente qual foi o impacto da ação inquisitorial sobre a população e sua importância na história local. Contando-se o número de prisões, não se pode dizer que sua ação tenha sido muito grande, beirando apenas os cinco casos por ano quando se consideram os 223 anos que medeiam a primeira visitação ao Brasil (1592) e a abolição do Santo Ofício português em 1821, número bem abaixo das médias metropolitanas, que giram em torno de 45 casos/ano para o período 1536-1821. Do total de 1076 prisões efetuadas, 29 resultaram em pena capital (2,7%), com 20 relaxações “em carne” e 7 em efígie, o que tampouco pode ser considerado como extremamente violento, quando se vê que, para o tribunal de Lisboa como um todo, as relaxações perfizeram 12% do total das penas (Novinsky, 2002:40). Também devem ser contempladas nesta quantificação as muitas denúncias feitas ao Santo Ofício que não resultaram em processo, pois elas são uma prova tangível da incorporação da mensagem inquisitorial pela população. Entre 1590 e 1810, pouco menos de 200 pessoas da região pernambucana (Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Rio Grande do Norte) foram presas pelo Santo Ofício, mas quase 700 foram lá denunciadas (Wadsworth, 2007:45-49).

O Santo Ofício também atuou como instrumento especificamente disciplinador do clero (nos casos de solicitação) ou moralizante dos hábitos sociais da população em geral (com a punição da bigamia e da sodomia, por exemplo), mas é sobretudo nos casos de judaísmo que, atingindo grupos mais amplos, podemos ver com mais clareza o seu impacto local. No caso do Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XVIII, por exemplo – então a mais importante praça de comércio do Atlântico sul e porto de saída do ouro das Minas –, pela importância política e econômica de certos personagens presos, o impacto da ação inquisitorial sem dúvida não foi pequeno, mesmo que seja

25 Para os números de Portugal, ver Bethencourt ([1995] 2004:321-322). Os números referentes ao Brasil encontram-se em Novinsky (2002:37).

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difícil quantificar esse impacto na economia ou na sociedade locais.26 Como em todos os lados, através do medo que propositalmente incitava, ou por ter sido por vezes utilizado como instrumento de confronto, o Santo Ofício desestruturou cadeias de solidariedade, familiares ou outras, mantendo os cristãos-novos – enquanto durou a distinção racial no mundo português – na eterna posição de párias sociais, seja na prática, seja na simples possibilidade de quebra de vínculos a que estes estavam mais sujeitos do que outros.

Contudo, a ação da Inquisição não pode (e não deve) ser avaliada apenas a partir dos números de prisões ou de execuções, pois sua influência sobre as sociedades em que atuava ultrapassava em muito sua ação penal. Como já mencionado, no mundo português como um todo, o cargo de familiar acabou sendo instrumentalizado por aqueles que a ele se candidatavam como uma ferramenta de ascensão social. Acrescenta-se a isto o respeito e o temor que a ação real desses oficiais, ou sua simples presença enquanto corpo, podia significar (por meio das festas de são Pedro-Mártir e das milícias de familiares), além das impactantes visitações inquisitoriais, das eventuais leituras de editais da fé e da exposição dos retratos dos relaxados nas suas paróquias de origem, as quais foram outras das vias de penetração da Inquisição no seio da sociedade local.

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26 Dom Luis da Cunha, em seu Testamento político, lembra o impacto das prisões dos cristãos--novos do Rio: “Depois que a Inquisição descobriu no Rio de Janeiro a mina dos judeus, e se lhes confiscaram os bens, de que os principais eram os engenhos de açúcar, que se perdiam, foi preciso que S. Majestade ordenasse que os ditos engenhos não fossem confiscados, vendo o grande prejuízo que se fazia ao comércio deste importante género” (http://www.arqnet.pt/portal/portugal/documentos/dlc_testamento3.html). Sobre os cristãos-novos do Rio de Janeiro, ver Dines (1992) e Silva (2005).

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3.

O tribunal eclesiástico à época de Dom Frei Manuel da Cruz: a afirmação da jurisdição episcopal (1748-1764)1

Patrícia Ferreira dos Santos

Este capítulo pretende estabelecer uma comparação entre o conteúdo das normas eclesiásticas e as práticas de coerção aplicadas no Juízo eclesiástico do bispado de Mariana entre 1748 e 1764. Sob o padroado régio ultramarino, os agentes eclesiásticos deveriam articular a ação pastoral aos objetivos determinados pela Metrópole. Por outro lado, a concepção tridentina que orientava o trabalho evangelizador não dissociava o múnus pastoral da aplicação da justiça eclesiástica. A justiça era uma instância legitimadora da colonização; foco de tensões, divergências e convergências entre os juízes seculares e eclesiásticos na tarefa de estabelecer o controle social.

As representações de autoridade da realeza, da justiça e do episcopado no Antigo Regime

Na época moderna, muitos escritos, memórias, discursos satíricos e laudatórios propagaram diversas imagens da atuação do episcopado.2 Pela sua importância na empresa colonizadora portuguesa, houve, neste contexto, um trabalho de afirmação da autoridade episcopal. Para compreender a multiplicidade de visões, e a discussão coeva acerca dos limites do poder episcopal, é preciso ter em vista, de um lado, os interesses comerciais e expansionistas da Coroa

1 Registramos nossos agradecimentos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), por garantir a viabilidade da presente pesquisa de doutoramento. Agradecemos tam-bém ao Prof. Dr. Carlos de Almeida Prado Bacellar, pela orientação.2 Para citar alguns entre muitos exemplos da variada literatura acerca do episcopado e dos eclesiásticos na América Portuguesa, ver: ANÔNIMO do Século XVIII. Arte de Furtar: espelho de enganos, teatro de verdades, mostrador de horas minguadas, gazua geral destes reinos de Portugal oferecida a El-Rei Nosso Senhor Dom João IV para que a emende (2005:430); ÁUREO trono Episcopal (apud Ávila, 2006, v.2) Gonzaga (2007:75-78); Códice Costa Matoso. Coleção das notícias dos primeiros descobrimentos das Minas na América que fez o Doutor Caetano da Costa Matoso, sendo ouvidor geral das do Ouro Preto, de que tomou posse em Fevereiro de 1749 & vários papéis (1999); Coelho (1994).

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lusitana.3 De outro, as pretensões universalistas da Igreja de Roma. Desde os primeiros descobrimentos lusitanos, estudiosos verificaram elogios, incentivos e sanções papais aos avanços dos reis cristãos rumo aos novos continentes. As relações da coroa portuguesa com a Santa Sé foram consagradas pelo padroado régio ultramarino. Com vistas ao estímulo da expansão católica no Novo Mundo, aquele pacto ganhava pujança a partir do século XVI. Desta sorte, os bispos enviados às diferentes porções dos territórios coloniais deveriam conduzir o seu múnus sob a influência do rei de Portugal, respeitando, para o exercício de sua jurisdição, à legislação portuguesa e a eclesiástica (Oliveira, 1938:72-73; AZZI, 2008:160-161, Tomo 2, Vol. 1).

Ao longo do século XVIII, o bispo diocesano deteve obrigações pastorais e determinadas prerrogativas. Dentre estas, mostram-se importantes o perdão reservado, nos casos que tocassem aos pecados considerados gravíssimos; a jurisdição sobre os casos De rationae personae – quando se tratassem as causas cujos réus fossem eclesiásticos; De rationae materiae, ou a exclusividade em conhecer dos crimes atinentes aos assuntos espirituais. O ordinário diocesano detinha, ainda, a competência exclusiva sobre as causas relativas a bens dos eclesiásticos, garantindo aos clérigos o privilégio de foro. Estas imunidades eram previstas nas Ordenações e nas concordatas dos reis com os pontífices, mas sofreriam vários reposicionamentos na época pombalina. Havia, ainda, a jurisdição episcopal sobre os casos de foro misto, os quais poderiam ser do conhecimento da Igreja e do Estado. A carta de sentença do doutor Francisco Pereira de Santa Apolônia, então Vigário Geral do bispado, mostra que o conhecimento de uma causa que envolvesse um crime de foro misto somente caberia ao juízo eclesiástico, quando ganhasse publicidade; quer dizer, havendo infâmia, sendo o delito detectado durante as devassas, ou em visitas pastorais.4

3 Como observou Fernando Antônio Novais, “a colonização se dá nas mais diversas situ-ações históricas. Nos Tempos Modernos, contudo, tal movimento se processa travejado por um sistema específico de relações, assumindo assim a forma mercantilista de colonização, e esta dimensão torna-se para logo, essencial no conjunto da expansão colonizadora européia” (2011:57-58, itálico nosso). Ressalta, na mesma linha, o autor, que as relações coloniais podem ser apreendidas em dois níveis: primeiro, na extensa legislação ultramarina das várias potências colonizadoras; segundo, no movimento concreto de circulação de umas para as outras, isto é, no comércio que faziam entre si, e nas vinculações político-administrativas que envolviam. Para Novais, “sobreleva a importância das normas legais, pois nelas se cristalizam os objetivos da empresa colonizadora, aquilo que se visava com a colonização” (Novais, 2011:57-58).4 De acordo com as Ordenações Filipinas, os casos de foro misto se aplicavam a: públicos adúlteros; barregueiros; concubinários; alcoviteiros; incestuosos; feiticeiros; benzedeiros; sacrílegos; blasfemos; perjuros; onzeneiros; simoníacos; os que dão públicas tabolagens de jogos em suas casas (Ordenações Filipinas, liv.2, tít.9: Dos casos mixti-fori. Disponível em www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l2p427.htm). Carta de Sentença acerca de um caso de foro misto, elaborada pelo doutor Francisco Pereira de Santa Apolônia: “é vulgar entre os pragmáticos que sendo o mesmo delito mixti fori dele só pode inquirir a Igreja por via da visitação geral, havendo infâmia e publicidade, como recomenda a Ordenação e Edital expresso da dita Visitação; mas não con-hecer por meio da denúncia, ou querela própria do Juízo secular e competente foro do agravante

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Àquela época, para regulamentar o exercício das justiças seculares e eclesiásticas, encontravam-se em vigor diversas concordatas sobre os direitos do rei sobre os negócios eclesiásticos. Entre as prerrogativas que concediam ao monarca luso, se encontravam direitos e deveres quanto à administração eclesiástica. O rei arrecadaria os dízimos, e apresentaria ao papa os nomes dos bispos, seus titulares, mas pagaria as côngruas dos párocos colados; fundaria e proveria paróquias e dioceses (Kuhnen, 2005:33; Hollanda, 2004:52-56, T. 1, vol. 2; Paiva, 2000: 149, vol. 2).

Nestas circunstâncias, a ordem dos cortejos e celebrações públicas ocorridas nos domínios lusitanos teatralizava o padroado régio. Em 1748, quando o primeiro bispo adentrou a diocese de Mariana, foi recebido com uma grande festa pública, recomendada pelo próprio rei dom João V. Os festejos públicos, desta forma, assumiam a função pedagógica de doutrinar as gentes incultas, ensinar os lugares hierárquicos que ordenavam a sociedade.5

A partir de então, a memória da capitania de Minas Gerais seria marcada pela festa da Entrada Triunfal do primeiro bispo, conhecida como Áureo Trono Episcopal. A capitania vivia sob a vigilância e o controle dos organismos da Coroa; devido à intensa atividade de extração do ouro (Ávila, 2006, vol. 2).

No século XVIII, este sistema encontrava-se em pleno vigor, influenciando decisivamente o contexto e o objeto dos quais nos ocupamos: a atuação do episcopado e as suas interações com os agentes seculares na administração da justiça eclesiástica. As normas do padroado tornaram as ações dos bispos alvos de muitas contestações. Tais polêmicas eram, em geral, suscitadas pelos ouvidores das comarcas e pelos juízes e procuradores das câmaras de diferentes localidades da capitania de Minas Gerais. Muitas questões e demandas envolviam a arrecadação eclesiástica ou as providências tomadas pelos vigários gerais e das varas no âmbito da Justiça (Santos, 2010:224 e seg.).

Dom frei Manuel da Cruz e seus sucessores sofreram tais contestações, que provinham das câmaras, ouvidores, párocos colados e cônegos do Cabido. Alguns de seus antigos adversários veicularam críticas até mesmo depois da sua morte.6

do rol dos culpados e pague o agravado as custas em que o condeno. (Mariana, 3 de março de 1784. Francisco Pereira de Santa Apolônia. AEAM. Tribunal eclesiástico. Governos episcopais. Armário 6, prateleira 2, livro 1030 [1765-1784], f.5-5v)5 Ver, em perspectivas diferentes, as análises das cerimônias públicas nos estudos de Burke (1994), Seed (1999), Paiva (2002:415-425; 2007:138-161).6 Um ano após a morte do primeiro bispo, o cônego Francisco Gomes de Sousa espalhou na cidade que vira a alma do bispo ser castigada no inferno, por ter sido muito amigo de din-heiro e perseguidor do cabido. Consta que esse cônego sofria perturbações mentais. Certa feita, teria afirmado ao Santo Ofício ser perseguido pelo próprio demônio (Mott, 1989:97 e seg.). Coincidentemente, este e outros cônegos eram réus constantes em ações cíveis e criminais por desobediência e indisciplina no tribunal eclesiástico (Ver Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana [AEAM]. Governos episcopais. Armário 6, prateleira 2, livro 1030 (1765-1784), f.4v). Outrossim, processos que foram movidos contra o bispo, e encontraram desfecho após seu falec-

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Isto se explica tendo em vista que dom frei Manuel da Cruz e seus vigários gerais demarcaram bem definidas linhas de defesa da jurisdição episcopal: mantiveram correspondência regular com os ministros e eclesiásticos ligados à Corte lisboeta. Por outro lado, estimulavam as denúncias e queixas da população. Este estímulo era promovido nas prédicas, cerimônias públicas e ritos litúrgicos, como as Estações das Missas conventuais. Os textos pastorais propagavam, em todo o bispado, uma mensagem religiosa de afirmação da autoridade episcopal e da justiça eclesiástica. Outrossim, por meio de encomendas artísticas, propagavam modelos de virtudes, como era corrente no século XVIII. Reis, príncipes e dignitários eclesiásticos encomendavam a pintores e artistas retratos em atitude de autoridade (Biblioteca Nacional de Lisboa [BNL]. Retratos de cardeaes, bispos, e varoens portuguezes illustres em nobreza, armas, letras, e santidade [Visual gráfico] /coordenados nos mezes de Abril, e maio do anno do Senhor – 1791).7

Em 1760, após graves distúrbios e contestações judiciais do Cabido, foi emblemática a iniciativa, tomada por dom frei Manuel da Cruz, de ornar as abóbadas da Sé Catedral de Mariana, com santos mártires da Igreja, dentre os quais sete espanhóis e apenas um português. O trabalho foi arrematado por um pintor português, Manuel Rebelo e Sousa, que já havia prestado outros serviços em igrejas do bispado, retratando doutores e santos da Igreja.8

A pintura foi inaugurada logo após o desfecho oficial das demandas movidas pelo Cabido e representantes das Câmaras de Mariana e em Vila Rica. As ações episcopais deveriam ser examinadas por uma junta de ministros da corte por ordem do rei. Em 1760, houve a divulgação dos pareceres; o Secretário de Estado da Marinha e Ultramar avisava que a Corte não detectava suspeição nos atos do bispo. Não sem antes agradecer ao dignitário, em carta, por haver sido ouvido na questão, o bispo deliberou sobre a emblemática iniciativa de ornar as abóbadas.9

imento, também suscitaram rumores acerca de sua atuação (Trindade, 1957; 1955:316-319, vol. 1).7 Há hoje dois retratos de dom frei Manuel da Cruz conservados em Mariana. Em um deles, o bispo foi retratado ao lado dos paramentos e símbolos do poder apostólico: a Mitra, o báculo e o pálio.8 Em 1760, Manoel Rebelo e Souza arrematou a pintura do teto da Catedral de Mariana. Recebeu, nesse mesmo ano, 1:950$000 da pintura e mais 260$000 para a tarjeta da nave e os barretes com os cônegos (Arquivo Público Mineiro [APM]. Livro número 57, f.121v, Termos de arrematações; e Seção Colonial [SC]. Cód.75, f.121v e 122v; Vasconcelos, 1938:49). Para uma análise técnica do trabalho do pintor Manoel Rebelo e Souza e da pintura Barrete com os Cônegos, ver Andrade (1978:11-74, vol. 18; Oliveira, 1978-1979; Mott, 1989:97 e seg.). Para informações acerca do artista, ver Martins (1974:273-274).9 Aprovada sua defesa, Dom frei Manuel da Cruz observou: “Sua Majestade foi servido man-dar dizer-me que eu satisfizera plenamente todas as queixas. Queriam me macular, mas ficou triunfante a minha verdade”. Escreveu uma carta, então, ao Secretário de Estado agradecendo os cuidados para com o caso: “De outra sorte seria eu julgado sem ser ouvido” (Copiador de al-gumas cartas particulares do Excelentíssimo Senhor dom frei Manuel da Cruz [1739-1762], f.182-192v). Este valioso Códice conta hoje com dois estudos críticos, sendo um de Leoni (2009) e o

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Manuel Rebelo e Sousa pintou, deste modo, em espaço privilegiado da Sé catedral de Mariana, o conjunto Barrete com os Cônegos. A obra retrata um bispo ricamente paramentado, em posição central em relação a todo o corpo capitular e ao observador que adentra a catedral. Trata-se de São Julião Bispo de Cuenca, um santo mártir, mas que ali ostenta os símbolos de seu poder apostólico. Representado no centro, o bispo encontra-se ladeado por oito cônegos, distribuídos em dois grupos posicionados nas duas abóbadas da igreja catedral. Estes santos foram representados em balcões, identificados pelos nomes, benefícios eclesiásticos e locais de atuação. O contexto de produção do conjunto é, de igual forma, muito significativo, tendo em vista que os nove santos mártires passaram a ornar aquele espaço após a expulsão dos padres jesuítas, ocorrida em 1759. Na Compahia de Jesus, era professo um grande amigo do primeiro bispo de Minas Gerais: Gabriel Malagrida, cuja morte, em 1758, o havia chocado; e outros colegas com os quais saía para pregar pelos sertões da América. Ainda, o sobrinho teólogo, o qual se vira forçado a despedir do bispado de Mariana (Mott, 1997:113 e seg.; Trindade, 1953:32).

Persuasão

As ações de dom frei Manuel da Cruz no bispado de Minas Gerais foram alvos de discursos laudatórios e satíricos, que exprimiam representações do seu múnus episcopal. A presença e o cerimonial dos bispos propagavam a sua autoridade e exerciam grande impacto nas gentes. De igual forma, por meio da mensagem religiosa a palavra do bispo era dirigida a todo o orbe cristão e envolvia a persuasão dos fiéis, a seguir o caminho da salvação espiritual (Paiva, 1991; 1993; Hansen:2001:25).

Dom frei Manuel da Cruz escreveu um vasto repertório de cartas pastorais, por meio das quais se dirigia com regularidade a seus súditos, ao clero e às autoridades seculares, com as quais nem sempre logrou entendimento entre 1748 e 1764.10 O discurso pastoral seria propagado, com as leituras ocorridas

outro de Souza e Rodrigues (2008).10 AEAM. Cartas Pastorais do Senhor bispo D. Frei Manuel da Cruz: Pastoral que Sua Ex.ª Rma. foi servido mandar passar para ser pública da com todas as freguesias deste novo bispado de Marianna etc. 28 de fevereiro de 1748. Arm.1; Gav.1; Pasta 6. (Nomeação do dr. Lourenço José de Queiroz Coimbra como governador diocesano); Cópia de uma Pastoral de Sua Ex.ª R.ma. Arm.1; Gav.1; Pasta 8, 26 de Maio de 1750. (Anuncia a concessão do Pontífice para que os sacerdotes pos-sam celebrar 3 missas no dia 2 de Novembro e proíbe que aceitem esmolas); Pastoral pela qual se patenteiam as graças e Indulgencias, que Sua Santidade foi servido conceder a quem vizitar quatro Igrejas em quinze dias por tempo de seis Meses – prateleira W, códice 41, 14 de Novembro de 1751; Pastoral em que patenteia S. Excelência R.ma que as pessoaz que desencaminharem ouro para fora destaz Minaz; forem cauza da derrama geral pelos povoz dela não só pecam mortal-mente, mas ficam com a obrigação de restituirem à Republica os danos que lhe causarem – 12 de Março de 1752, prateleira W, códice 41; Pastoral porque Sua Excelencia Reverendíssima he

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às Estações das Missas, em todas as freguesias e capelanias. As cartas pastorais eram cuidadosamente elaboradas, funcionando como um importante veículo de deliberações e orientações aos fiéis. A forma da sua apresentação respeitava a longa tradição epistolar latina, desde os escritos de Cícero (Tin, 2005:17). Quanto ao conteúdo, as cartas pastorais apresentariam conformidade com as constituições diocesanas, corpos normativos eclesiásticos fundamentados no código canônico e nos decretos tridentinos (Torres-Londoño, 1999:120 e seg.; 1988:28).

Com esta orientação, a ação pastoral promovida por dom frei Manuel da Cruz, propagou um discurso salvacionista, que visava à adesão dos fiéis, primeiro, pela via persuasiva. Todavia, era também em conformidade com os decretos tridentinos que a hierarquia eclesiástica mostrava-se afinada com um ideal de justiça a ser aplicada pelo ordinário diocesano, de preferência, por seus próprios meios e recursos. De modo que o discurso religioso acenava com

Servido Rezervar a si o pecado do furto, que cometem as pessoas que, desencaminham ouro destas Minas Gerais, ou concorrem para o seu descaminho com conselho, ajuda, ou favor, pelas circunstâncias que abaixo se declaram – 09 de Setembro de 1753, prateleira W, códice 41; Pastoral do Ex.mo e R.mo Sr. Bispo para se fazerem as preces pellas infaustas notícias dos terremotos e incêndios de Lisboa – 22 de Fevereiro de 1756, prateleira W, códice 41; Pastoral por que Sua Excelência Reveredíssima foi Servido mandar passar o que nela se contém, e declara (Ordena ofícios divinos para aplacar a Ira Divina que recaiu contra Lisboa devastada pelo ter-remoto e incêndios) – 06 de Maio de 1756, prateleira W, códice 41; Pastoral do Exelentíssimo e Reverendíssimo Senhor D. Frei Manuel da Cruz na qual é servido mandar fazer preces públicas, e uma Quarentena de jejuns para aplacar a ira de Deus que ameaça grande castigo contra nós

– 07 de Outubro de 1756 - prateleira W, códice 41; Carta Pastoral na qual o bispo concede facul-dade a todos os párocos para assistir, em artigo de morte, aos fregueses como confessores – 02 de Agosto de 1757; Carta Pastoral de Dom Frei Manuel da Cruz que anuncia a Indulgência para quem rezar à Estaçaõ, todas as Sextas feiras do anno, às tres horas da tarde, ao toque doSino, etc.

– 20 de Setembro de 1757, prateleira W, códice 41; Pastoral do Exelentíssimo e Reverendíssimo Senhor D. Frei Manuel da Cruz para afervorar a devoção dos fiéis seus suúitos para com o ven-eravel Padre Josê da Anchieta, e dos prodigios que por sua intercessão obrar fazerem uma fiel relaçaõ aos seus pároco, que devem dar disto uma conta exacta ao dito Senhor para se ajuntar ao processo da sua canonização – 14 de Fevereiro de 1758 -, prateleira W, códice 41; Cópia de uma Pastoral de Sua Excelência Reverendíssima (Expulsão dos Padres da Companhia denomi-nada de Jesus pelo bárbaro e sacrílego crime de Inconfidência) - 23 de Novembro de 1759; Carta Pastoral de Sua Excelência Reverendíssima (Por ordem do Rei, ordena solenidades de Aplausos e Te Deum Laudamus pelas Bodas de D. Maria, filha do rei D. José I, com o Príncipe Dom Pedro, seu irmão) – 06 de Dezembro de 1760; Carta Pastoral de 05 de Outubro de 1762. (Ordena preces pela Paz no Reino e Portugal, invadido pela Potência Católica unida com a Cristianíssima – Espanha e França) (Santos, 2010:39-40, 224 e seg.). Fernando Torres-Londoño (2002:164) iden-tificou um conjunto temático verificado em estudos de 130 cartas pastorais, que classificou em grupo de diretivos norteadores, tais como: administração religiosa; controle do clero; norma-tivo do Sacramento; sentir com a Igreja; sentir com o Reino; e vida espiritual e moral dos fiéis. Em artigo posterior, o autor reclassificou estes diretivos: as cartas pastorais poderiam ser divi-didas em três grupos, em ordem de grandeza decrescente: 1º) interesses pastorais; imposição de normas conforme as Constituições da Bahia, e a reforma dos costumes do clero e dos povos; 2º) dimensões locais e universais da igreja: incluía normatização embasada em bulas e breves pontifícios; 3º) sintonia com a coroa portuguesa (Torres-Londoño, 2003:231).

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punições temporais e espirituais aos pecadores obstinados; principalmente, àqueles cujos desvios se tornavam “públicos e escandalosos” (Torres-Londoño, 1999:120).

As infrações que ganhavam publicidade demandavam uma urgente contra-partida da parte dos agentes da Igreja e do Estado, mesmo nas mais longínquas capelanias. O discurso religioso enunciava, mediante estas circunstâncias, a necessidade do castigo e das penitências – públicas, assim como eram as afrontas.

Da necessidade da justiça episcopal

A 24ª sessão do Concílio de Trento foi, desde a sua publicação, exaustivamente citada pelas autoridades civis e eclesiásticas no mundo católico. Suas deliberações representam um marco redefinidor da autoridade episcopal, em meio às divisões religiosas que marcavam aquele momento. As normas tridentinas, sendo confirmadas pelos Príncipes católicos sem prejuízo das leis do Reino, deveriam ser propagadas, em cada diocese, por meio das suas respectivas constituições sinodais. Em Portugal, o Arcebispo de Elvas, Dom Sebastião de Matos de Noronha, convocou um sínodo diocesano, em 1633, ressaltando que tinha a seu cargo “a vigia dos súditos, que Deus foi servido entregar-nos” (Primeiras constituições sinodais do bispado de Elvas, 1633-34, f.27-28). Os padres confessores deveriam portar-se como juízes das consciências, e ter em mãos os casos reservados ao bispo e ao Sumo Pontífice (Primeiras constituições sinodais do bispado de Elvas, f.27-28).11

As Constituições do Arcebispado de Lisboa seguiam a mesma linha, associando cada um de seus títulos e disposições à sessão conciliar correspondente. A necessidade de leis justapunha-se aos vícios – eram males que deveriam ser refreados, pois advinham da malícia e desordenada cobiça dos homens. Por essa razão, os sumos pontífices e os concílios da igreja quiseram que os arcebispos e bispos tivessem o poder e a obrigação de legislar e administrar a justiça, fazendo leis e constituições sinodais para o governo particular das suas dioceses. Para exercer este múnus, os bispos haveriam de contar com o auxílio dos parócos, confessores e visitadores. Também na

11 Além de considerar os casos reservados ao pontífice, previstos à Bula da Ceia do Senhor [Anexo 1], o arcebispo recomendava que o confessor conhecesse os privilégios aos penitentes concedidos na Bula da Santa Cruzada. Sobre os casos da bula da Ceia do Senhor, ver Suma Breve dos casos reservados do Arcebispado de Braga. Pelo Douto Manuel de Barros e Costa Abade de S. Cipriano da Refontoura do dito Arcebispado, natural da cidade de Braga das Hespanhas e Primaz, etc. Oferecidos à Virgem Senhora da Conceição segunda vez, e acrescentado com o aviso e exame dos confessores. Coimbra: com as licenças necessárias na Oficina de Joseph Ferreira, Impressor da Universidade (1681:57-75). Sobre os pecados reservados, ver os Anexos 1 e 2.

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diocese de Lisboa, as constituições apontavam o ofício de confessor como uma faculdade de exercer julgamento, delegada aos sacerdotes idôneos para atuar como juizes das consciências:

Este poder de absolver se chama poder das ordens: porque quando se ordenam se lhe dá, mas nem por isso ficam confessores, para dele poderem usar se não forem habilitados com outro poder que chamam de jurisdição com que ficam confessores & juízes das consciências. O qual de jure têm o papa e os bispos & Reitores das igrejas e por comissão aqueles a quem estes o encomendam & os que o bispo apresenta por idôneos. (Constituições sinodais do Arcebispado de Lisboa novamente feitas no sínodo diocesano, 1656:2-3, Lib.1, tít. 3º; itálicos nossos)

Era, por outro lado, necessário bem mais do que uma confissão. Os manuais de confessores estimulavam uma confissão completa. Segundo eles, se os senhores inquisidores prendessem um homem por um grande crime e lhe dissessem: “sabemos que haveis cometido este pecado, pelo qual mereceis ser queimado; se o confessais diante de nós em secreto, ninguém o saberá, e saireis livre”. Os manuais apregoavam, por outro lado, o que ocorreria se o fiel não dissesse todos os pecados: “vos faremos sair no auto público em o meio da praça, com uma carocha e sambenito, com muitos diabos pintados e diante de inumerável povo”. O conselho visava que todos confessassem integralmente os seus pecados aos inquisidores em secreto, “por fugirem de tão grande infâmia, e juntamente para não ser queimado”, pois

da mesma forma o fará Deus Nosso Senhor se confessares teus pecados inteiramente ao confessor, ninguém o saberá e serão os teus pecados perdoados; e se não te confessares inteiramente sairás em cadafalso público no dia do Juízo, não com demônios pintados, senão com verdadeiros, que te queimarão para sempre na fogueira infernal. (Veiga, 1710:90 e 102-107)

Os párocos e os padres confessores se tornam, neste sistema, particularmente importantes para estimular as denúncias. Os fiéis deveriam cooperar com a justiça eclesiástica e com a Inquisição, denunciando hereges, sob pena de excomunhão:

É obrigado toda a pessoa cristã a denunciar e descobrir a nós, ou aos Inquisidores Apostólicos, todas e quaisquer pessoas que souberem de vista ou certa ciência, ou por outro modo, que sente mal dos artigos da nossa Santa Fé Católica (…) E assim exortamos e mandamos (…) sob pena de excomunhão ipso facto, reservada a nós, descubram e denunciem as tais pessoas, levados somente com o zelo da mesma fé e não com ódio nem outra tenção má. E particularmente encarregamos aos párocos tenham grande cuidado, cada um em suas paróquias, de o guardarem assim e de

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encarregar a seus fregueses que o façam. (Constituições sinodais do Arcebispado de Lisboa, 1656:13)12

No Arcebispado de Braga, a recusa em denunciar o irmão que estivesse em falta era um pecado mortal; e sendo assim, de perdão reservado ao bispo.13

A compreensão da correção fraterna tornava a denúncia obrigatória.14 As constituições de Lisboa ressaltavam o fundamento bíblico da correção fraterna:

Todos os nossos súditos devem obviar os pecados de seu próximo por meio da correção fraterna, na forma em que Cristo Nosso Senhor mandou no Evangelho, emendando-os deles fraternalmente quando há esperança de que se emendarão, e não se emendando, têm obrigação de recorrer a nós, e fazerem denunciação do mal estado em que vivem. (CONSTITUIÇÕES sinodais do Arcebispado de Lisboa, liv.5, tít.18, 1673-1674:450)

A ação pastoral encontra-se, desta sorte, associada à punição dos pecadores públicos. A legislação apontaria alguns mecanismos de coerção destinados a punir os que persistiam no erro (Carvalho, 1990:136, t. XXIV).

Malgrado fosse justificado pelo concílio de Trento, e assim, fosse identificado à ação pastoral, este sistema não se ajustou perfeitamente à organização judiciária secular, encontrando pela frente muitos entraves impostos pela Coroa, por meio das Leis do Reino.15 Alguns destes entraves respeitavam a “força” que pretendiam os juízes eclesiásticos exercer sobre os vassalos. Doutrinadores e juristas, ligados aos tribunais régios, Relações e Casa da Suplicação régia, bem como teólogos de prol, debateram este aspecto. Os

12 Da Santa Fé Católica. Decreto III. Princípio: Que todas as pessoas são obrigadas, sob pena de excomunhão maior reservada, a descobrir, e denunciar os hereges e as pessoas suspeitas na fé; par. 1. Que a mesma denunciação se faça dos que encobrirem, ajudarem, ou favorecerem aos hereges; par. 2. Que os párocos das igrejas de Lisboa observem o modo de vida das pessoas que tratam familiarmente com estrangeiros hereges.13 Este livro, de formato 15x10, teve sua primeira edição em latim, em 1566, e reúne as primei-ras constituições feitas em Portugal após o Concílio de Trento, no reinado de Dom Sebastião. SUMA BREVE dos casos reservados do Arcebispado de Braga. Pelo Douto Manuel de Barros e Costa Abade de S. Cipriano da Refontoura do dito Arcebispado, natural da cidade de Braga das Hespanhas e Primaz, etc. Oferecidos à Virgem Senhora da Conceição segunda vez, e acrescen-tado com o aviso e exame dos confessores. Coimbra: com as licenças necessárias na Oficina de Joseph Ferreira, Impressor da Universidade, ano 1681. Sobre a condenação aos que se recusassem à denúncia, vide p.24. 14 BÍBLIA de Jerusalém. Edição portuguesa trad. dos originais da Sociedade Bíblica de Jerusalém. 4ª impressão. São Paulo: Paulus, 2006. Mt 18: 15-18; PRIMEIRAS Constituições sino-dais do Arcebispado da Bahia feitas e ordenadas pelo Ilustríssimo e Reverendíssimo Senhor Dom Sebastião Monteiro da Vide, 5º Arcebispo da Bahia, do Conselho de Sua Majestade. Propostas e aceitas em o Sínodo Diocesano, que o Dito Senhor celebrou em 12 de junho do ano de 1707. Coimbra: no Real Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1720. Com todas as licenças necessárias. Liv.5, tít.XXXVII, n.1047-1049.15 A respeito da difusão da palavra episcopal e os conflitos entre as autoridades seculares e ecle-siásticas, ver Santos (2010: cap. 5).

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primeiros empenhavam-se em limitar a autoridade dos prelados, por julgar que se equiparavam ou usurpavam prerrogativas exclusivas do soberano – o único defensor legítimo dos vassalos.16

Esboçava-se a distinção entre a autoridade da Igreja e a do soberano, ou a do Estado. Se a Igreja, como associação de dominação ‘hierocrática’, empregava, para manter a sua autoridade, a ‘coerção psíquica’, o Estado Moderno caracteriza-se por monopolizar o uso da força. Esta era tão essencial a ele como era para a Igreja o controle do modo de obter a salvação, ou o exercício da dominação espiritual.17

Os limites entre um e outro constituem, então, o cerne de um dos maiores debates intelectuais deste período. Sob o título de “duelo escolástico”, foi protagonizado por um padre teólogo, o jesuíta Francisco Soarez, de Granada; e um jurista da Casa da Suplicação, Gabriel Pereira de Castro. Este defendeu uma perspectiva regalista. Publicou sua disputa com Soarez em um livro, no qual rechaçava as investidas eclesiásticas na defesa dos súditos e no uso da força sobre eles – campo exclusivo do rei, como seu soberano e defensor (Castro, 1742).18

Em defesa de suas liberdades, prerrogativas e imunidades, o episcopado, com frequência, recorreu à tradição, legitimada pelo critério de antiguidade. Os bispos evocavam com frequência a autoridade pontifícia e os antigos estilos praticados, e nesta chave exortavam os fiéis à obediência. Com esta mesma justificativa, da tradição e do estilo praticado “desde tempos imemoriais”, pleiteavam a adesão da Coroa às suas reivindicações. 19

Malgrado os entraves burocrático-normativos, os bispos se desvelavam em garantir a sua margem de ação. Onde havia dioceses, não deixaram de proceder contra os públicos pecadores, e penalizá-los com o que mais temiam: as excomunhões e as penitências públicas. Em Mariana e suas freguesias, nos casos cujos réus, humildes e arrependidos o implorassem, concediam absolvições públicas das excomunhões, em domingos, e dias de grande

16 Entre muitos tratados que versaram sobre o tema no século XVII e XVIII, destaco a minucio-sa obra de Castro (1788:247-48).17 “O conceito de ‘Igreja’ caracteriza-se pelos atributos da associação racional compulsória, com organização contínua, e pela reivindicação de ser uma autoridade monopolizadora” (Weber, 2002:99-100, 103).18 Obra póstuma (Gabriel P. Castro, De Manus Regia, 1742); o autor havia falecido em Lisboa, a 20 de outubro de 1632.19 Segundo especialistas, a autoridade é um conceito sociológico frequentemente associado às elaborações do sociólogo alemão Max Weber (Ver Johnson, 1997:23-26). Sobre os conceitos de autoridade e legitimidade, veja-se: Weber: “Como as instituições que o precederam historica-mente, o Estado é uma relação de homens dominando homens, relação mantida por meio da violência legítima (isto é considerada como legítima). Para que o Estado exista, os dominados devem obedecer à autoridade alegada pelos detentores do poder. Quando e porque os homens obedecem? Sobre que justificação íntima e sobre que meios exteriores repousa este domínio?” (s/d:98-99). Ver também Weber (1944; 2002).

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concurso de pessoas, conforme orientava o Ritual Romano (AEAM. Governos Episcopais. Juízo eclesiástico. Governos episcopais. Armário 6, prateleira 2, livro 1029 [1748-1765], fl. 13).

A justiça eclesiástica destinava-se a coagir aqueles que não foram persuadidos das verdades da fé. A instalação de uma diocese, nesse sentido, previa a criação das condições materiais para a execução dos mecanismos das justiças e procuras dos pecadores públicos. Deste modo, além da legislação, eram fundamentais os agentes especializados, que buscariam os transgressores. Eles seriam recrutados junto aos religiosos seculares, uma vez que as ordens religiosas eram proibidas de fixar-se na capitania de Minas Gerais (Boschi, 1986).

Nesta ação, as devassas e as visitas pastorais se mostraram fundamentais. Primeira peneira dos pecadores públicos, não foi à toa que as suas atas, em profusão de registros, subsidiaram importantes análises historiográficas sobre aspectos da sociedade e das práticas religiosas coloniais. Elas constituem, portanto, registros reveladores sobre a ação da justiça eclesiástica junto às comunidades religiosas setecentistas. Sob o comando de dom frei Manuel da Cruz, a justiça eclesiástica logrou levar a cabo as suas práticas coercitivas e investigativas nas freguesias, desde as mais longínquas, até a sede do bispado (Torres-Londoño, 2002:175; Vainfas, 1997:216 e seg.; Souza, 1999:19 e seg.; Figueiredo e Sousa, 1987; Figueiredo, 1997:68-69; Paiva, 2000:250-255, vol. 2).

O tribunal episcopal sob a mitra de dom Frei Manuel da Cruz

Quando dom Frei Manuel da Cruz chegou às montanhas da região mineradora, não utilizou eufemismos para exprimir uma desconcertante assertiva: aquele território induzia os habitantes ao que havia de mais torpe e violento. Enviou esta caracterização à Sagrada Congregação do Concílio Tridentino em 1757, no Relatório Decenal, Visita Ad Limina, à Santa Sé. Entre outras informações sobre as paróquias e a diocese, insistia que naquela região alastravam-se os vícios e maus costumes. A ganância e a soberba levavam seus moradores à ruína moral. O bispo deixava claro que não se referia apenas aos povos, mas também às autoridades, que desacatavam a jurisdição eclesiástica (Rodrigues, 2006:80).

As queixas registradas no tribunal eclesiástico, deveras, dão conta de incruentas disputas por terras e lavras, ataques noturnos a roças, animais e rebanhos, incêndios propositais, invasões e ataques a pedradas a vários domicílios. As querelas eclesiásticas (acusações judiciais de crimes violentos, com derramamento de sangue, cujos réus fossem sacerdotes) davam conta de estupros, raptos, mãos violentas, adultérios, abortos. As denúncias esboçavam um clero heterogêneo, com muitos representantes dignos, e outros violentos, que andavam armados, tomavam parte em desafios, levavam vida libidinosa,

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em companhia de meretrizes e concubinas; outros, que raptavam, espancavam, cometiam sacrilégios, até matavam. Havia os que sofreram processos por desobedientes; os “de ânimo inquieto e revoltoso”; e os “resistentes às Justiças” (AEAM. Juízo Eclesiástico. Epistolário dos Bispos. Livros 1029 a 1031). A historiografia especializada aponta que aquela sociedade se formou em um meio extremamente violento (Ramos, 1999; Anastasia, 2005; Aguiar, 1999:75-76; Silveira, 1997:25).

As visitas pastorais conferiram especial impulso ao trabalho fiscalizador e coercitivo do tribunal eclesiástico no século XVIII. Recomendadas em Trento, elas coadunavam-se, àquela época, à detecção das formas de penitência e de livramentos mais temidos pelos leigos. Dom Sebastião Monteiro da Vide, Arcebispo Metropolitano da Bahia, responsável pela organização das Constituições Primeiras daquele Arcebispado, recomendava aos visitadores, vigários gerais, promotores e demais ministros eclesiásticos, muita consideração ao determinar qualquer tipo de castigo, seja pecuniário, espiritual ou corporal, examinando bem as circunstâncias, particularidades e o escândalo que resultasse do delito, e procurando o que se pudesse aliviar o réu, perdoar e comutar (Primeiras Constituições sinodais do Arcebispado da Bahia, liv.5, tít.XLIV, n.1083-1084).

Esta união das esferas da evangelização e da aplicação das justiças conferia muito poder e projeção social aos vigários gerais. Juízes e sacerdotes, eles atuavam no tribunal eclesiástico como delegados dos bispos, conhecendo e julgando ações cíveis e criminais movidas contra pessoas leigas e eclesiásticas. Possuíam especial comissão episcopal para comutar penas, emitir mandados de comissão ou avocatórios às vigararias da vara – os primeiros, para solicitar diligências e investigações; os últimos, para avocar, ou chamar alguma causa ao tribunal da Sede, conhecido como Juízo Geral.

Os vigários gerais realizavam, ainda, a triagem dos casos de exclusiva competência do Santo Ofício; verificando esta necessidade, estes deveriam ser encaminhados, por meio dos Comissários do Santo Ofício. Muitos destes se encontravam infiltrados na hierarquia do tribunal eclesiástico, como vigários das varas, e vigários gerais da diocese de Mariana. À época de dom frei Manuel da Cruz, eles marcaram presença na análise das infrações do tribunal eclesiástico. Eram comissários os doutores Lourenço José de Queiroz Coimbra, e Geraldo José de Abranches, os dois primeiros vigários gerais a atuar como seus delegados, entre 1748 e 1752. O Dr. José dos Santos foi o terceiro Vigário Geral; atuou entre 1752 e 1756. Não era Comissário do Santo Ofício, mas era bem assistido por um: o Dr. Teodoro Ferreira Jácome, promotor do bispado, que representou o bispo diversas vezes como Visitador delegado. Em 1756, assumiu o posto de Vigário geral o doutor Manuel Cardoso Frazão Castelo Branco, outro Comissário do Santo Ofício. Concluindo seu exercício em 1761, passou o cargo ao Dr. Teodoro Ferreira Jácome, também Comissário do Santo Ofício. A esta altura, atuava também, como Provisor do bispado, e por vezes como

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Vigário geral substituto, o doutor Inácio Corrêa de Sá, também Comissário do Santo Ofício. Este último assumiu um papel decisivo, principalmente durante a enfermidade de dom frei Manuel da Cruz, a partir de 1762, pois o Dr. Teodoro Ferreira Jácome ascendeu ao posto de governador da diocese de Mariana (AEAM. Governos Episcopais. Juízo eclesiástico. Governos episcopais. Armário 6, prateleira 2, livro 1029 [1748-1765], fl. 2-122v).

A gestão de dom frei Manuel da Cruz se encerrou com sua morte, em 3 de janeiro de 1764. Mas o tribunal episcopal de Mariana, que já funcionava e registra ações desde 1706, funcionou ativamente em todo o século XVIII. A sua movimentação era alimentada pelas denúncias, ocorridas em devassas, visitas pastorais, e em fluxo contínuo. O tribunal eclesiástico de Mariana julgou, entre 1706 e 1799, 1398 ações, de natureza cível e criminal. Este número engloba, ainda, as ações dos dois foros sob a alçada da Mitra: o gracioso e o contencioso.

Como se pode verificar na Tabela 1, os processos cíveis existem em maior número. Compreendiam inventários, testamentos, execuções, penhoras, contas e ações de créditos, cujos réus eram eclesiásticos. Já as ações criminais resultam, em sua maioria, de denúncias que o tribunal investigou; e de denúncias judiciais, movidas pelo promotor, ou pelos fiéis, em conformidade com as Constituições do Arcebispado da Bahia. Alguns processos de livramento ordinário se originavam nas visitas pastorais, quando alguns acusados envolvidos em delitos graves não obtinham o livramento por despacho do visitador. Ficavam, assim, obrigados ao livramento ordinário no tribunal eclesiástico ou o Juízo Geral, na sede do bispado. Como decorrência desta movimentação, abriram-se os processos criminais também contra réus leigos, que deveriam livrar-se por meio do tribunal eclesiástico. Como adiante veremos, além destas ações ordinárias, havia os processos sumários; estes compreendiam as queixas por coisas furtadas e perdidas no território da diocese. O seu escopo era conclamar as denúncias a esse respeito, por meio de cartas de excomunhão geral, e obter o paradeiro dos bens e dos culpados (Castro, 1788:242-246; Artigo XII. Sobre os culpados em visitação. PRIMEIRAS Constituições sinodais do Arcebispado da Bahia, liv.5, tít.34. Das acusações, e pessoas que podem a ela ser admitidas).

A principal finalidade dos processos de livramento ordinário era identificar os pecadores públicos. Como expunham as Constituições, eles deveriam ser punidos e evitados aos sacramentos e ofícios divinos:

Não serão admitidos à comunhão os pecadores públicos, como são os amancebados públicos, mulheres públicas, feiticeiros ou onzeneiros públicos, e quaisquer outras pessoas que publicamente estiverem em ódio, ou em qualquer outro pecado mortal. E para se terem, e haverem, por pecadores públicos, para este efeito não bastará serem infamados publicamente dos ditos pecados, senão é necessário, que ou por sentença, que passasse em coisa julgada, ou por evidência, que se não possa encobrir, nem desculpar, ou por outro modo legítimo, de Direito, sejam os ditos pecados públicos e notórios: de que os párocos nos darão conta antes de lhes negarem a comunhão, para

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vermos se podem ou devem ser tidos, conforme a Direito, por públicos pecadores. (Constituições sinodais do Arcebispado de Lisboa, 1656:45 lib.1, tít.IX, do Santo Sacramento da Eucaristia parágr.3º: Que aos pecadores públicos se não dê a comunhão, e quais se devem ter por pecadores públicos)

No conjunto dos processos de livramento nota-se, ainda, que o tribunal eclesiástico de Mariana recebeu em profusão, ao longo de todo o século XVIII, queixas da população, de motivação diversa. Demonstraremos a seguir sobre o que elas tratavam, e em que condições elas poderiam ser aceitas, bem como os procedimentos e diligências que elas demandavam.

As paróquias e a remessa das queixas ao bispo

No complexo esquema da evangelização no século XVIII, era fundamental articular a sede episcopal às capelanias mais longínquas. Através das paróquias, e vigararias, os padres-curas e capelães deveriam recepcionar e fazer circular as informações recebidas e enviadas para a Câmara Episcopal. As paróquias se comportavam como elos da imensa malha eclesiástica, destinada a vigiar a vida social setecentista, visando a aplicar os seus mecanismos de busca e punição dos pecadores públicos.20

Por outro lado, como se sabe, nem sempre as obrigações paroquiais eram cumpridas com a esperada assiduidade, mas os párocos eram instados a cooperar, debaixo das penalidades disciplinares cabíveis. A exigência anual de confecção dos róis de confessados foi uma das formas de obrigá-los às suas tarefas. Eram listas, que deveriam conter os nomes das pessoas acima de sete anos, de confissão, e comunhão de casa em casa, rua a rua, de cada freguesia. Entre outras finalidades, estes róis também alimentavam os processos eclesiásticos, pois apontavam os reincidentes e omissos quanto ao preceito quadragesimal. Nos róis, determinava-se que os párocos “darão conta dos revéis, declarando o número e nome deles, e as causas de suas revelias, se as souberem fora de confissão, para nisso se prover”. Na segunda etapa, o “Provisor mandará entregar as cartas ao Promotor da Justiça, para acusar os revéis”.21

Além deste auxílio à hierarquia eclesiástica na busca dos pecadores públicos, a série de queixas aos bispos do século XVIII, verificada entre 1746 e 1799, vem demonstrar que a paróquia foi fundamental para encontrar até

20 (CARVALHO, Joaquim Ramos. A jurisdição episcopal sobre leigos em matéria de pecados públicos, p.136 e ss.; TORRES-LONDOÑO, Fernando. (Org.) Introdução. In: Paróquia e comu-nidade no Brasil: perspectiva histórica. São Paulo: Paulus, 1997.21 PRIMEIRAS constituições sinodais do bispado de Elvas, tít.VI. Do sacramento da confissão. § 4, p.7; CONSTITUIÇÕES sinodais do Bispado do Algarve, liv.1, cap.LXIV. Da obrigação que os párocos têm de mandar o rol dos confessados e comungados, e como se registará, p.122-123.

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mesmo os réus ocultos, não apenas os públicos.22

As queixas evidenciam uma constante intermediação eclesiástica nos problemas cotidianos dos diocesanos. Representadas junto ao Vigário Geral do bispado, elas amparavam-se nos títulos das constituições sinodais, segundo as quais os fiéis poderiam solicitar cartas de excomunhão geral, para apurar casos de perdas passados em lugares distantes, quando denunciavam o delito nas freguesias ou capelas do bispado. Deste modo, os párocos eram os seus primeiros receptores.23

Isto ocorria durante as Estações, no início da missa conventual, cujo rito era regulado pelas Constituições do Arcebispado da Bahia. Como veremos, elas tornaram-se particularmente importantes neste contexto. Antes das Estações ocorria, na maioria das freguesias de Minas Gerais, uma procissão em favor das Almas do Purgatório, do lado de fora da igreja, e no cemitério.24

Após este ato, a celebração da missa deveria iniciar-se, e os fiéis adentravam o templo. Neste clima de reverência perante os limites da vida e da morte, punham-se de joelhos, para a escuta das denunciações matrimoniais e judiciais. Ouviam, ainda, os avisos de interesse geral, notícias e deliberações da coroa; mensagens e exortações da mitra diocesana – leituras de cartas pastorais, deliberações dadas em visitas episcopais na comunidade e indulgências.25

À Estação, o pároco deveria admoestar as queixas apresentadas. Deveria referir-se aos prejuízos, desde que superiores a um marco de prata. E admoestar com severidade aos fiéis para que denunciassem o que soubessem acerca dos danos feitos às pessoas e patrimônios dos queixosos: furtos de escravos, ataques noturnos, invasões ou danos físicos a casas, roças, hortas, animais, incêndios propositais, pedradas. Muitas queixas foram dadas, ainda, sobre extravio de papéis; ou solicitando, a quem soubesse, informações sobre causas judiciais. Malgrado haverem sido aceitas, e em grande quantidade, dom Sebastião da Vide desaconselhava a expedição da carta de excomunhão geral nestas circunstâncias.26

Em geral, respeitados estes procedimentos dos cânones, os crimes eram obrigatoriamente denunciados em três dias festivos ou de grande concurso de pessoas, para cumprir as três admoestações canônicas do estilo. Em seguida,

22 Os procedimentos de investigação vigentes poderiam ser acusatórios e inquisitoriais. No pri-meiro, a iniciativa e o acompanhamento do processo caberiam à parte lesada; no segundo, ao órgão público, mormente o promotor de justiça. WEHLING, Arno e WEHLING, Maria José. Direito e Justiça no Brasil Colonial: o tribunal da Relação do Rio de Janeiro (1751-1808). Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p.560-563.23 PRIMEIRAS Constituições sinodais do Arcebispado da Bahia, liv.5, tít. XLVI, n.1087-1093.24 SAINT-HILLAIRE, Auguste de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Trad. Vivaldi Wenceslau Moreira. São Paulo/Belo Horizonte: Edusp/Itatiaia, 2000. (Reconquista do Brasil,n.4)25 CONSTITUIÇÕES da Bahia, liv.III, tít.33.26 PRIMEIRAS Constituições sinodais do Arcebispado da Bahia, liv.5, tít.46, n.1093, liv.III, tít.33, n.585; liv.5, tít.XLVI, n.1088.

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o queixoso deveria dar sequência na ação. O próximo passo nesse sentido seria procurar o vigário geral, na sede episcopal, para dele solicitar uma carta de excomunhão geral pelos danos que reclamara na queixa. Neste caso de 1749, após realizar as admoestações na paróquia de Sumidouro, um coronel apresentou a seguinte petição ao então vigário geral do bispado, Geraldo José de Abranches:

Diz o tenente coronel Tomé de Araújo Pereira, morador na Igreja do Sumidouro, que pela certidão das admoestações que junto oferece consta fazer o Suplicante admoestar que um seu escravo por nome Alexandre Mina deu uma libra de ouro a uma negra do distrito do Bacalhau, com ânimo de tirar carta de excomunhão no caso de se não saber qual negra recebeu a dita libra, de quem ela era, e porque fazendo-se as três admoestações na forma do estilo, o que consta da certidão do Reverendo Vigário da freguesia de Piranga, não se descobre, somente com as ditas admoestações, que negra recebeu a dita libra de ouro; e quer o Suplicante proceder a mais, tirando carta de excomunhão na forma costumada para se publicar na capela do Bacalhau, filial da freguesia da Piranga, e nas mais, sendo necessário, logo protesta o Suplicante, não proceder criminalmente em outro Juízo, só sim eclesiástico, sendo necessário, pelo que, Pede a Vossa Mercê seja servido mandar passar carta de excomunhão na forma costumada para se publicar na dita capela do Bacalhau ou aonde necessário for. E. R. M. 27

O coronel deveria jurar sobre os Santos Evangelhos os requisitos exigidos pelas Constituições: que o que lhe fora furtado lhe pertencia; a quantia alcançava o valor de um marco de prata exigido na Constituição; que não possuía prova alguma para que pudesse alcançar a satisfação; e que não procederia criminalmente no juízo secular, somente no eclesiástico. Após o juramento, a queixa foi admoestada na freguesia de Guarapiranga, pelo fato de o coronel ter notícias que a negra seria do Bacalhau, sua filial:

Queixa-se à Santa Madre Igreja o tenente coronel Tomé de Araújo (corroído 1 palavra) que tem por notícia que um escravo por nome Alexandre Mina deu uma libra de ouro a uma negra deste distrito do Bacalhau e como não sabe quem, ele pede a toda pessoa que souber a quem o dito negro tenha dado a libra de ouro o descubra aliás pretende tirar carta de excomunhão. 28

A causa foi encerrada sem denúncias. O seu autor pagou os custos a cada oficial: ao vigário geral, escrivão, e chancelaria do bispado. Obteve, assim, uma carta de excomunhão geral para publicar em sua freguesia. Muitas denúncias foram dadas sobre o caso, embora quase um ano depois. Para obter o dito destas testemunhas, o coronel era obrigado a jurar novamente:

27 AEAM. Epistolário dos bispos, processo n.1608. (Itálicos nossos).28 AEAM. Epistolário dos bispos, processo n.1608. (Itálicos nossos).

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Por este termo disse se obrigava não acusar pessoa alguma daquelas que em virtude da carta de excomunhão que se lhe concedeu foram denunciadas e descobertas criminalmente; que não usaria dos testemunhos que saíram para acusar de algum modo criminalmente os autores do seu dano e que queria e era contente que as testemunhas dissessem os nomes e ditos e se lhes passasse certidão, não tenham fé em Juízo nem fora dele, e de como assim o disse, e prometeu debaixo do dito juramento, assinou com o Muito Reverendo Doutor Vigário Geral, e eu, Antônio Monteiro de Noronha, ajudante da Câmara Eclesiástica, que o escrevi. Abranches. Tomé de Araújo Pereira.29

Todos os depoimentos apresentados, com um e outro detalhe, confirmavam a informação de “João de Miranda Silva que ouvira dizer a Manuel [corroído 1 palavra] de Freitas que o negro do Tenente Coronel Tomé de Araújo Pereira, por nome Alexandre, dera uma libra de ouro a uma negra de Ignácia Ferreira, de nome Esperança, e a tal a dera a sua escrava para a sua alforria, e al não disse”. Inácia Ferreira, dona da escrava que ganhara a libra de ouro, era uma preta forra daquela freguesia. A excomunhão era uma pena espiritual que aterrorizava os coevos, na medida em que preconizava a exclusão dos ofícios religiosos, dos sacramentos, da proteção dos santos; da sepultura em solo sagrado; e da comunidade – as pessoas, com exceção dos familiares, sequer poderiam falar com públicos excomungados. Sem contar o anátema – a eterna maldição, que acompanhava expressamente o texto da carta de excomunhão geral na qual o vigário geral historiava a queixa e exortava:

Esta carta de excomunhão, que é a presente, pela qual requeiro e admoesto a todas as pessoas de um e outro sexo, de qualquer qualidade, preeminência ou condição que sejam, que souberem ou tiverem notícia a quem o referido negro deu ou entregou por qualquer modo a libra de ouro assim declarada, o descubram ao seu Reverendo Vigário, a quem esta publicar no termo de 9 dias, e não o fazendo assim lhe ponho a Lei por imposta a censura de Excomunhão maior e como tais os hei por publicados e excomungados, malditos e amaldiçoados da maldição de Deus padre Todo-Poderoso e dos Bem-Aventurados e Apóstolos e Santos Pedro Paulo e todos os Santos e santas da corte celeste, até que com o efeito de (corroído 1 palavra) uma pessoa ou pessoas que em seu poder tenha o dito ouro (ou tendo-o tido dê conta) ao seu Reverendo Vigário ou a quem esta publicar ainda que seja por qualquer forma dado pelo dito negro e para que chegue a notícia de todos mando a qualquer sacerdote a leia e publique, no arraial do Bacalhau, onde for lida, se fixará na porta da capela onde estará os dias determinados, no fim dos quais passará certidão e também se lerá nas mais partes onde necessário for. Dada e passada nesta Cidade Mariana sob o selo das armas de Sua Excia. Revma., e meu sinal aos 22 de Agosto de 1749. Eu Manuel Ferreira Coutinho, Escrivão da Câmara Eclesiástica, por impedimento do atual, que a sobscrevi. Geraldo José de Abranches. Coutinho. Registro no Tombo 1 de Provisões fl. 171 em Mariana 22 de Agosto de 1749.30

29 AEAM. Epistolário dos bispos, processo n.1608. (Itálicos nossos).30 AEAM. Epistolário dos bispos, processo n.1608. (Itálicos nossos).

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As queixas se mostraram recorrentes em todo o século XVIII. Demonstram que a ação evangelizadora lançou mão da habilidade em lidar com sentimentos de esperança e temor – e também de causá-los, mediante uma ação pastoral que envolvia a persuasão e a coerção – esta, ligada às atividades do tribunal eclesiástico.

Antes mesmo da fundação do bispado, e ao longo de todo o século, as paróquias sediaram as denúncias de delitos, perdas e danos cotidianos. Os párocos assumiam uma importância central, seja com a veiculação das admoestações canônicas, a emissão da certidão jurada in verbo sacerdoti, declarando se sabia ou não alguma notícia do crime denunciado. Ou recebendo e enviando ao tribunal as denúncias. Conforme a norma das Constituições da Bahia, as queixas também poderiam ceder matéria para que o promotor do juízo eclesiástico procedesse a investigações e acusações.31

As queixas, a pleitear carta de excomunhão geral, para atrair as denúncias, são indícios da exploração de um campo de punição espiritual, no qual se movia o episcopado, mesmo em tempo de restrições a sua jurisdição. Por meio da excomunhão, referida como a espada espiritual da Igreja, e de outros recursos de informação, os agentes da Igreja em Minas Gerais lançaram mão de sua jurisdição sobre os pecados públicos, ocultos e da exclusiva jurisdição episcopal sobre os delitos do clero.

A documentação eclesiástica do século XVIII revela, portanto, a existência de mecanismos institucionalizados de ação pastoral e judiciária, ambos fundamentais para a efetivação do múnus episcopal na América Portuguesa. Com este esquema de aproximação e mediação das dificuldades cotidianas dos aplicados, as paróquias funcionaram como um dos mais importantes elos da ação evangelizadora. A vivência religiosa, as relações comunitárias, e o exercício das práticas de culto eram algumas das suas principais atividades.

Por conseguinte, este universo era alvo das visitas pastorais, outro mecanismo de importância central para a articulação do sistema da evangelização. As visitações eram ocasião privilegiada para o exercício da jurisdição episcopal especialmente no que tocava aos casos de foro misto. Fiscalizando as paróquias e suas atividades, os visitadores recolhiam as informações sobre a vida do clero e dos fregueses mais longínquos para subsidiar a complexa administração eclesiástica. Estas informações eram levadas ao juízo eclesiástico, onde seriam filtradas. Reafirmadas em Trento, as visitas pastorais encontravam-se profundamente identificadas à missão do episcopado.

No século XVIII, a ação pastoral tridentina e o exercício da justiça apresentam-se ligados e indissociáveis. A concepção de autoridade episcopal veiculada nos decretos tridentinos propugnava um trabalho evangelizador com qualidades indissociáveis da aplicação da justiça aos trangressores. Junto

31 PRIMEIRAS Constituições sinodais do Arcebispado da Bahia, liv.5, tít.XLVI, n.1090-1093.

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aos leigos, se não podiam os bispos empregar a coerção física, exploraram a psíquica, intermediando os problemas cotidianos. Deste modo, interligaram as tarefas da evangelização ao exercício da justiça no universo colonial. 32

Anexo 1: Pecados reservados à Santa Sé (BULA DA CEIA DO SENHOR - PAULO IV)

1.Hereges, cismáticos e impressores de seus livros.

2.Corsários e ladrões do mar e quem os favorece.

3. Quem impõe novos tributos ou leva tributos defesos.

4.Falsários de letras apostólicas de graça ou de justiça.

5. Os que levam às terras dos infiéis, armas, instrumentos de guerra e utilidade.

6. Os que impedem de levar mantimentos e coisas necessárias à Corte de Roma.

7. Os que fazem ofensa aos que vão ou vêm de Roma e nela vivem e peregrinos e romeiros.

8. Os que põem mãos nos prelados e os encarceram, ou mandam fazê-lo.

9. Os que impedem a alguém de recorrer à Santa Sé.

10. Os que se intrometem a julgar causas eclesiásticas.

11. Os que atentam contra as liberdades da Igreja do papa e da Sé Apostólica, fazendo estatutos e nomeações.

12. Os juízes eclesiásticos que avocam causas espirituais dos juízes apostólicos. E aos que por autoridade secular impedem a execução de mandados apostólicos.

13. Aos que ocupam ou destroem terras da Santa Sé.

Fonte: SUMA BREVE dos casos reservados do Arcebispado de Braga. Pelo Douto Manuel de Barros e Costa Abade de S. Cipriano da Refontoura do dito Arcebispado, natural da cidade de Braga das Hespanhas e Primaz, etc. Oferecidos à Virgem Senhora da Conceição segunda vez, e acrescentado com o aviso e exame dos confessores. Coimbra: com as licenças necessárias na Oficina de Joseph Ferreira, Impressor da Universidade, ano 1681:57-59.

32 PRIMEIRAS Constituições sinodais do Arcebispado da Bahia, liv.5, tít.XLV, n.1085-1086.

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Anexo 2 : Pecados Reservados*

LISBOA1674

(16 CASOS)

BRAGA1681

(14 CASOS)

ELVAS1634

(16 CASOS)

ALGARVE1674

(15 CASOS)

BAHIA1719

(9 CASOS)

MARIANA**(10 CASOS)

1.Heresia 1.Heresia 1. Blasfêmia pública. 1.Heresia 1. Homicídio

voluntário 1. Idem

2.Blasfémia pública

2.Blasfémia pública

2. Juramento falso

2. Blasfêmia pública. 2. Feitiçaria 2. Idem

3. Feitiçaria 3. Feitiçaria

3. Enterrar em sagrado o público excomungado.

3. Feitiçaria

3. Furtar algo da Igreja acima de um marco de prata.

3. Idem

4. Invocação do demônio

4.Homicídio voluntário

4. Defraudar dízimos acima de dois tostões

4. Homicídio voluntário

4. Jurar falso, mesmo sem prejuízo de outrem

4. Idem

5. Homicídio 5. Incêndio 5. Homicídio voluntário.

5. Incêndio proposital, antes que seja denunciado.

5. Aconselhar ou procurar aborto

5. Idem

6. Incêndio proposital 6. Sacrilégio 6. Aborto 6. Sacrilégio 6. Incêndio

proposital 6. Idem

7.Sacrilégio, esp. Mãos violentas em clérigos

7. Excomunhão 7. Simonia. 7. Excomunhão maior

7. Dízimos não pagos, acima de 400 réis.

7. Idem

8. Excomunhão Maior posta por Direito ou por homem

8. Reter o alheio cujo dono se não sabe

8. Incêndio proposital

8. Reter o alheio, cujo dono se não sabe, acima de 400 réis.

8. Reter o alheio cujo dono se não sabe acima de 10 tostões.

8. Idem

9. Juramento falso

9. Matrimônio clandestino 9. Falsários

9. Dízimos não pagos, acima de 400 réis.

9. Excomunhão Maior posta por Direito ou por homem***

9. Idem

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10.Dízimos não pagos acima de 200 réis

10.Comutação de votos

10. Feiticeiros ou feiticeiras

10. Os que se não confessam na Quaresma XXXX

10. Desencaminhar ouro, ou concorrer, com ajuda, conselho e favor

11. Reter o alheio cujo dono se não sabe acima de 500 réis

11. Mãos violentas em clérigos

11. Sacrilégios11. Casamentos clandestinos e testemunhos XXXX XXXX

12. Casamentos clandestinos

12. Receber ordens com falsificações

12. Quebrar o sigilo da confissão.

12. Mãos violentas em clérigos XXXX XXXX

13. Ordenar sem patrimônio ou benefício ou com documentos falsos

13.Testemunho falso

13. A excomunhão maior ab jure vel ab homine, não reservada a outrem.

13. O que se ordenou por falto ou com licença falsa. XXXX XXXX

14. Fazer ou usar escritura falsa

14.Dízimos não pagos à Igreja que passem de um tostão

14. Reter o alheio acima de quantia de dois mil réis cujo dono se não sabe.

14. Comutação de votos. XXXX XXXX

15. Quebra do sigilo confessional

XXXX

15. Mãos violentas em clérigos de ordens sacras ou menores.

15. Testemunho falso em atos ou juízo XXXX XXXX

16. Solicitação, de conhecimento privativo do S. Ofício

XXXX

16. Ordenar-se com patrimônio fingido por falto, ou com dimissória ou reverenda falsa

XXXX XXXX XXXX

* Conforme a explicação das constituições, a reservação pressupunha pecado mortal.** Pecados reservados na diocese de Mariana: o bispado adotou todas as deliberações e os casos reservados das Constituições da Bahia; as pressões da Coroa de Portugal a partir da década de 1750 forçaram o bispo, Dom Frei Manuel da Cruz, a incluir no rol dos casos reservados, o crime de contrabando.

*** no Arcebispado da Bahia, as excomunhões, em todas as suas modalidades, eram reservadas ao bispo.

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Fontes

ARQUIVO ECLESIÁSTICO DA ARQUIDIOCESE DE MARIANA (AEAM). Governos episcopais. Armário 6, prateleira 2, livro 1030 (1765-1784), f.4v.

Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. (AEAM). Seção de Livros paroquiais. Prateleira W, Códice 41. “Pastoral pela qual Vossa Excelência Reverendíssima declara que as pessoas que desencaminharem ouro para fora destas Minas forem causa da Derrama Geral pelos povos delas não só pecam mortalmente, mas ficam com a obrigação de restituírem à República os danos que lhe causarem” - 12 de março de 1752, f.9-9v.

5º ARCEBISPO da Bahia, do Conselho de Sua Majestade. Propostas e aceitas em o Sínodo Diocesano, que o Dito Senhor celebrou em 12 de junho do ano de 1707. Coimbra: no Real Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1720. Com todas as licenças necessárias. Liv.5, tít.XXXVII, n.1047-1049.

AEAM. Cartas Pastorais do Senhor bispo D. Frei Manuel da Cruz: Pastoral que Sua Ex.ª Rma. foi servido mandar passar para ser pública da com todas as freguesias deste novo bispado de Marianna etc. 28 de fevereiro de 1748. Arm.1; Gav.1; Pasta 6. (Nomeação do dr. Lourenço José de Queiroz Coimbra como governador diocesano); Cópia de uma Pastoral de Sua Ex.ª R.ma. Arm.1; Gav.1; Pasta 8, 26 de Maio de 1750.

AEAM. Governos Episcopais. Juízo eclesiástico. Governos episcopais. Armário 6, prateleira 2, livro 1029 (1748-1765), fl. 13.

AEAM. Governos Episcopais. Juízo eclesiástico. Governos episcopais. Armário 6, prateleira 2, livro 1029 (1748-1765), fl. 2-122v.

AEAM. Juízo Eclesiástico. Epistolário dos Bispos. Livros 1029 a 1031. AEAM. Tribunal eclesiástico. Governos episcopais. Armário 6, prateleira

2, livro 1030 (1765-1784), f.5-5v.AEAM. Seção de Livros Paroquiais. Livro de disposições pastorais W-3, 1727

a 1853, f.14. Sobre os casos de perdão reservado da diocese de Mariana.AEAM. Seção de Livros paroquiais. Prateleira H, Códice 14 de Visitas e

Fabrica (1727-1831). Pastoral de Dom Frei Manoel da Cruz que torna de perdão reservado o crime de desencaminho do ouro destas Minas. Dada em 9 de setembro de 1753, f.63v-64.

ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO (APM). Livro número 57, f.121v, Termos de arrematações; e Seção Colonial (SC). Cód.75, f.121v e 122v.

BIBLIOTECA Nacional de Lisboa (BNL). Retratos de cardeaes, bispos, e varoens portuguezes illustres em nobreza, armas, letras, e santidade [Visual gráfico] /coordenados nos mezes de Abril, e maio do anno do Senhor – 1791.

CARTA para o Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Gomes Freire de Andrade, governador e capitão-general destas Minas e Rio de Janeiro, de 24 de janeiro de 1752. In: COPIADOR de Algumas Cartas Particulares de Dom frei Manuel da Cruz. Brasília: Editora do Senado; Mariana: Gráfica e Editora Dom Viçoso, fl. 139-139v.

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CASTRO, Gabriel Pereira de. Monomachia sobre as concórdias que fizeram os reis com os prelados de Portugal nas dúvidas da jurisdição eclesiástica e temporal. E breves de que foram tiradas algumas Ordenações com as Confirmações Apostólicas, que sobre as ditas Concórdias interpuseram os Sumos Pontífices. Composta por Gabriel Pereira de Castro, Desembargador da Casa da Suplicação, dedicada a Jeronymo Leite de Vasconcellos Pacheco Malheiro, Fidalgo da Casa de Sua Majestade, e Cavalleiro Professo na Ordem de Cristo. Lisboa Ocidental: por José Francisco Mendes, Livreiro, que dá à luz a dita Obra, 1788.

CASTRO, Gabriel Pereira de. Tractatus de Manu Regia. Pars prima. Editio novíssima auctior, infinitis pene Mendis, quibus fcatebat, ad amuffin expurgata. Cum novis additoinibus, et duplici Indice locupletiffimo. Ulyssipone. Ex tipis Joannis Baptiste Lerzo, 1742.

CÓDICE COSTA MATOSO. Coleção das notícias dos primeiros descobrimentos das Minas na América que fez o Doutor Caetano da Costa Matoso, sendo ouvidor geral das do Ouro Preto, de que tomou posse em Fevereiro de 1749 & vários papéis. Coord. de Luciano Raposo de Almeida Figueiredo e Maria Verônica Campos. 2v. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1999.

CONSTITUIÇÕES sinodais do Arcebispado de Lisboa novamente feitas no sínodo diocesano, que celebrou na Sé Metropolitana de Lisboa o Ilustríssimo e REVERENDÍSSMO Senhor Dom Rodrigo da Cunha, Arcebispo da mesma cidade, do Conselho de Estado de Sua Majestade em os 30 dias de maio de 1640. Concordadas com o Sagrado Concílio Tridentino, e com o Direito Canônico, e com as Constituições Antigas, e Extravagantes primeiras, e segundas deste Arcebispado. Ano: 1656. Acabadas de imprimir e publicadas por mandado dos muito Revdos. Srs. Deão, & Cabido da Santa Sé de Lisboa, Sede Vacante, no ano de 1656. Em Lisboa: com todas as licenças necessárias. Na oficina de Paulo Craesbeeck. Taxado em oitocentos réis em papel.

CONSTITUIÇÕES sinodais do Bispado do Algarve novamente feitas e ordenadas pelo Ilustríssimo e Reverendíssmo Senhor Dom Francisco Barreto, segundo deste nome, Bispo do Reino do Algarve, e do Conselho de Sua Alteza, publicadas em Sinodo diecesano, que celebrou em a See da Cidade de Faro em 22 de Janeiro de 1673. Com todas as licenças necessárias. Évora: Impressão da Universidade. Ano de 1674. Cap. LXVI: Que os bispos podem reservar alguns pecados em seus bispados: quais são neste nosso os reservados, pp.143-144.

CONSTITUIÇÕES sinodais do Arcebispado de Lisboa novamente feitas no sínodo diocesano, que celebrou na Sé Metropolitana de Lisboa o Ilustríssimo e Reverendíssimo Senhor Dom Rodrigo da Cunha, Arcebispo da mesma cidade, do Conselho de Estado de Sua Majestade em os 30 dias de maio de 1640. Concordadas com o Sagrado Concílio Tridentino, e com o Direito Canônico, e com as Constituições Antigas, e Extravagantes primeiras, e segundas deste Arcebispado. Ano: 1656. Acabadas de imprimir e publicadas por mandado dos muito Revdos. Srs. Deão, & Cabido da Santa Sé de Lisboa, Sede Vacante, no ano de 1656. Em

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Lisboa: com todas as licenças necessárias. Na oficina de Paulo Craesbeeck. Taxado em oitocentos réis em papel. Ver: Princípio; Lib.1, tít. 3º, p.2-3. Itálicos nossos.

CONSTITUIÇÕES sinodais do Arcebispado de Lisboa, lib.1, tít.IX, do Santo Sacramento da Eucaristia parágr.3º: Que aos pecadores públicos se não dê a comunhão, e quais se devem ter por pecadores públicos.

CONSTITUIÇÕES sinodais do Arcebispado de Lisboa, liv.5, tít.18.CONSTITUIÇÕES sinodais do Arcebispado de Lisboa, p.13. Da Santa Fé

Católica. Decreto III.CONSTITUIÇÕES sinodais do Bispado do Algarve, liv.1, cap.LXIV. Da

obrigação que os párocos têm de mandar o rol dos confessados e comungados, e como se registará, pp.122-123.

COPIADOR de algumas cartas particulares do Excelentíssimo Senhor dom frei Manuel da Cruz (1739-1762), f.182-192v.

PRIMEIRAS Constituições sinodais do Arcebispado da Bahia feitas e ordenadas pelo Ilustríssimo e Reverendíssimo Senhor Dom Sebastião Monteiro da Vide, 5º Arcebispo da Bahia, do Conselho de Sua Majestade. Propostas e aceitas em o Sínodo Diocesano, que o Dito Senhor celebrou em 12 de junho do ano de 1707. Coimbra: no REAL Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1720. Com todas as licenças necessárias. Liv.1, tít.44, n.177. Dos Casos Reservados, p.81; Liv.5, tít.52, n.1160.

PRIMEIRAS constituições sinodais do bispado de Elvas feitas e ordenadas pelo Illmo. e Revmo. Senhor Dom Sebastião de Matos de Noronha, 5º Bispo d’Elvas & do Conselho de Sua Majestade. Lisboa. Sínodo realizado entre 1633-34. Tít.VI. Do sacramento da Confissão. § 20, p.28. Casos a nós reservados.

SUMA BREVE dos casos reservados do Arcebispado de Braga. Pelo Douto Manuel de Barros e Costa Abade de S. Cipriano da Refontoura do dito Arcebispado, natural da cidade de Braga das Hespanhas e Primaz, etc. Oferecidos à Virgem Senhora da Conceição segunda vez, e acrescentado com o aviso e exame dos confessores. Coimbra: com as licenças necessárias na Oficina de Joseph Ferreira, Impressor da Universidade, ano 1681. Cap.IX. Dos casos reservados no Arcebispado de Braga.

ORDENAÇÕES Filipinas, liv.2, tít.9: Dos casos mixti-fori. Disponível em <www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l2p427.htm> Consultado em 28 de Maio de 2011.

PRIMEIRAS Constituições sinodais do Arcebispado da Bahia feitas e ordenadas pelo Ilustríssimo e Reverendíssimo Senhor Dom Sebastião Monteiro da.

PRIMEIRAS Constituições sinodais do Arcebispado da Bahia, liv.5, tít.XLIV, n.1083-1084.

PRIMEIRAS Constituições sinodais do Arcebispado da Bahia, liv.5, tít.34. Das acusações, e pessoas que podem a ela ser admitidas.

PRIMEIRAS Constituições sinodais do Arcebispado da Bahia, liv.5, tít. XLVI, n.1087-1093.

PRIMEIRAS Constituições sinodais do Arcebispado da Bahia, liv.5, tít.46, n.1093, liv.III, tít.33, n.585; liv.5, tít.XLVI, n.1088.

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PRIMEIRAS Constituições sinodais do Arcebispado da Bahia, liv.5, tít.XLVI, n.1090-1093.

PRIMEIRAS Constituições sinodais do Arcebispado da Bahia, liv.5, tít.XLV, n.1085-1086.

PRIMEIRAS constituições sinodais do bispado de Elvas feitas e ordenadas pelo Illmo. e Revmo. Senhor Dom Sebastião de Matos de Noronha, 5º Bispo d’Elvas & do Conselho de Sua Majestade. Lisboa. Sínodo realizado entre 1633-34. Convocatória; Edital da Procissão; Tít. 6º: Sacramento da Confissão, f.27-28.

PRIMEIRAS constituições sinodais do bispado de Elvas, f.27-28. Além de considerar os casos reservados ao pontífice, previstos à Bula da Ceia do Senhor (Anexo 1), o arcebispo recomendava que o confessor conhecesse os privilégios aos penitentes concedidos na Bula da Santa Cruzada.

PRIMEIRAS constituições sinodais do bispado de Elvas, tít.VI. Do sacramento da confissão. § 4, p.7.

SUMA BREVE dos casos reservados do Arcebispado de Braga. Pelo Douto Manuel de Barros e Costa Abade de S. Cipriano da Refontoura do dito Arcebispado, natural da cidade de Braga das Hespanhas e Primaz, etc. Oferecidos à Virgem Senhora da Conceição segunda vez, e acrescentado com o aviso e exame dos confessores. Coimbra: com as licenças necessárias na Oficina de Joseph Ferreira, Impressor da Universidade, ano 1681, p.57-75. Sobre os pecados reservados, vide os Anexos 1 e 2.

SUMA BREVE dos casos reservados do Arcebispado de Braga. Pelo Douto Manuel de Barros e Costa Abade de S. Cipriano da Refontoura do dito Arcebispado, natural da cidade de Braga das Hespanhas e Primaz, etc. Oferecidos à Virgem Senhora da Conceição segunda vez, e acrescentado com o aviso e exame dos confessores. Coimbra: com as licenças necessárias na Oficina de Joseph Ferreira, Impressor da Universidade, ano 1681.

VEIGA, Cristóvão. Cazos Raros de Confissam. Com regras e 8 modo fácil para fazer hua boa confissão geral ou particular. E huas advertências para ter perfeyta contrição & para fé dispor bem em o artigo da morte. Composto em Castellano pelo Padre Christovam da Veiga, da Companhia de Jufus. Pello D. Balthezar Guedes, Clérigo do Hábito de São Pedro (...) & agora nefta fexta Impreffão acrefentados hús solilóquios para bem fé confeffar, e para bem morrer. Lisboa, na Officina de Joseph Lopes Ferreyra. Anno: 1710, p.90 e p.102-107.

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Parte II - Os bastidores, os agentes e os penitenciados do Tribunal do Santo Ofício

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4.

Ser comissário na Inquisição portuguesa e fingir sê-lo (séculos XVII-XVIII)1

Fernanda Olival

Este capítulo analisa dois tópicos: traçam-se as características sociais e as motivações daqueles que fingiram ser comissários da Inquisição, independentemente de atuarem no Portugal metropolitano ou no Império; através da recreação desenvolvida por estas personagens, aprofunda-se o conhecimento do modo de atuar dos comissários efetivos e da recepção obtida por esses comportamentos nas comunidades locais.

Desde a década de 1580, a Inquisição portuguesa começou a criar uma rede de comissários, aptos a desenvolver boa parte da sua atividade nas periferias dos tribunais. Todos estes indivíduos tinham que ser clérigos de ordens sacras e com limpeza de sangue.

O seu papel foi definido sobretudo pelo regimento de 1640. No de 1613 eram unicamente aflorados numa parte de um capítulo, apenas para apontar onde deviam existir: “Haverá mais em cada um dos lugares principais de cada distrito da Inquisição, mormente nos portos de mar e assim nos lugares de África e nas Ilhas da Madeira, Terceira e São Miguel, Cabo Verde e São Tomé e capitanias do Brasil, um comissário e um escrivão de seu cargo” (Tít. I, cap. II). Na altura realçava-se a necessidade da sua presença nas localidades do litoral e nos espaços fulcrais do Atlântico. O regimento era, todavia, completamente omisso no que respeitava às incumbências destes agentes. Foi só no regimento de 1640 que se inseriu um título inteiro (XI do LºI) dedicado aos comissários, com um total de 14 parágrafos. Neste texto, mesmo assim, não se definia de forma muito exaustiva todas as funções de que poderiam ser encarregues. Era, no entanto, particularmente minucioso na caracterização do modo como deviam desempenhar as suas tarefas.

A partir da segunda metade do século XVII terá sido feita uma espécie de separata desses artigos, em formato de folheto, e foi impressa autonomamente,2 com uma pequena introdução e sem numeração de parágrafos. Foi-lhe dado o título de Regimento dos commissarios do S. Officio, & escrivães de seu

1 Trabalho desenvolvido no âmbito do projecto, financiado pela FCT, COMPETE, QREN e FEDER: PTDC/HAH/64160/2006.2 Defende-se, assim, a tese oposta à de Lourenço (2007:109-110, v.I).

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cargo (Arquivo Nacional da Torre do Tombo [ANTT]. Armário Jesuítico, liv.11, f.87-88v), o mais antigo que se identificou. Houve, contudo, mais do que uma impressão destas diretivas, com pequenas variantes, uma das quais foi publicada por Isaías da Rosa Pereira (Documentos para a História da Inquisição em Portugal, Século XVI, Fasc.18, doc. XXVI). Nenhum folheto apresenta data, local, ou vestígio respeitante à tipografia por onde teriam passado. Seriam textos pragmáticos, efectuados para distribuir pelos novos comissários, quando vinham jurar o seu cargo ao tribunal inquisitorial ao qual pertenciam.

Chegaram até nós muitos destes bifólios, mas as diferenças que apresentam de lição para lição são poucas, feita ressalva a dois parágrafos. Um deles dizia respeito à obrigação de inventariar as bibliotecas dos defuntos e alertar o Santo Ofício desse fato, com o rol dos títulos. Esta incumbência deixou de ter efeito, com a criação da Real Mesa Censória, e por isso o parágrafo desapareceu nas versões posteriores.3

Assim, a partir dos textos normativos que regularam a atividade dos comissários podemos ter uma primeira ideia das suas atribuições e dos cuidados que deviam observar no exercício das suas atividades. A esta tipologia de fonte poder-se-á agregar os dados obtidos mediante a intervenção destes agentes nas habilitações e em alguns processos-crime. Neste último caso, quer através da canalização de denúncias, quer ouvindo testemunhas em diferentes contextos. Os cadernos de promotor também evidenciam o seu envolvimento nas delações. A correspondência é outro elemento precioso nestas matérias, como bem salientou James E. Wadsworth (2007). Neste texto pretende-se chamar a atenção para a relevância de outro tipo de fonte. Equivale aos processos-crime movidos contra as pessoas que se fingiam comissários do Santo Ofício.

Ao analisar estes casos, os objetivos são essencialmente dois. Por um lado, estudar este tipo de delito em si mesmo (qual a sua incidência; que tipo de tópicos eram alvo de apropriação indevida; quem eram estes impostores, que motivações os levavam a agir desta forma); por outro, pretende-se chegar a um enquadramento da atividade dos comissários mais próxima da realidade quotidiana. É esta a hipótese de investigação que se intenta prosseguir a partir da imitação que estes personagens efetuavam e da descrição do modo como o seu comportamento era recebido. Espera-se colher particularidades que de outra forma escapariam ao ângulo de observação do historiador.

Para seleccionar os processos, percorreram-se essencialmente as listas de autos da fé dos 3 tribunais metropolitanos. Embora seja um método não muito rigoroso, corresponde quase ao único possível no atual estado de inventariação destas fontes. Para maior fiabilidade, pesquisaram-se diferentes coleções

3 Ver sobre o assunto os exemplares guardados em ANTT (Conselho Geral do Santo Ofício, liv.487).

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de listas de autos4 e colocou-se de lado o século XVI, uma vez que para este período este tipo de fonte nem sempre relata todas as informações. Sempre que exequível, pesquisaram-se os catálogos informatizados da Torre do Tombo.

Os falsos comissários

A seleção dos processos-crime contra os comissários falsos entre 1601 e 1773 não foi fácil de efetuar. Desde logo, a descrição destas fontes na Torre do Tombo é pouco minuciosa; acresce que embora se tenham percorrido várias coleções de autos da fé (públicos e privados), não há garantias plenas de se ter conseguido uma análise exaustiva, sobretudo para o começo do século XVII, quando as listas eram menos pormenorizadas. A este quadro de fundo importa juntar problemas decorrentes da natureza deste delito. Assim, houve um número ainda razoável de indivíduos que prenderam e efetuaram outras manobras invocando o mandato do Santo Ofício, e alguns não foram tratados neste estudo. Uns, porque se arvoravam familiares sem o serem e não comissários; outros, porque apenas agiam autointitulando-se oficiais do Santo Ofício para roubar, sem assumirem o papel claro de comissários. Um bom exemplo é o do tendeiro de Celorico, António Ferreira. Este, em 1696, ao efetuar o percurso da Guarda para o Lugar de Treixedas, levou consigo uns jumentos alheios. Quando, de imediato, os donos foram atrás dele, limitou-se a dizer que os animais se destinavam a servir de meio de transporte a uns cristãos novos que iam mais adiante e como tal os tomava da parte do Santo Ofício (ANTT. Inquisição de Lisboa [IL]. Processo n.4594, f.18, 41v e seg.). Também foram excluídos os processos do teor do do Padre José Aires, natural do Recife, em Pernambuco, cura de São Bento das Balsas, Bispado do Maranhão. Sendo ele, em 1741, visitador da freguesia de Nossa Senhora do Livramento do Pernagoâ (capitania de Piauhí), por delegação do Prelado do Maranhão, mandou prender em nome do Santo Ofício – com sequestro de bens – uma mulher bígama e denunciada por feiticeira. Em Janeiro de 1745 confessou na Inquisição de Lisboa que com efeito pedira ao capitão-mor da mesma freguesia, António Gomes Leite, que encarcerasse a mulher. E explicou que “não teve ordem alguma deste Tribunal e somente entendeu, que por obrar assim não cometia culpa alguma digna de castigo em razão da sua constituição do Bispado, que é o da Baía, mandar prender a semelhantes culpados, e que sejam remetidos ao Santo Ofício” (ANTT. IL. Processo n.8059, f.45). Como a delata fugira para terras de Pernambuco, ainda acrescentou que “mandou passar precatório para o vigário da vara do Rio Grande do Sul dom Pedro José de Sousa, em que lhe

4 Da Biblioteca Nacional de Portugal (Colecção Moreira, Cód. 863-865), ANTT. Conselho Geral. Livros 433 e Biblioteca Pública de Évora (BPE) (Cód. CIV/1-43). Além de Oakley (2008). A par desta linha de investigação, viram-se com algum cuidado, sobretudo para a Inquisição de Évora, o catálogo informatizado de processos na Torre do Tombo.

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requeria também da parte do Santo Ofício a dita prisão, e sequestro de bens, e que executada fosse remetida a este Tribunal” (ANTT. IL. Processo n.8059, f.45). Prendera igualmente um clérigo, nos mesmos termos, por revelar o segredo das diligências do Santo Ofício e mandara executar os seus bens para assegurar a condução dele. Se este caso e os afins foram excluídos, consideraram-se os de indivíduos que, não se denominando abertamente de comissários, assumiram plenamente as suas atribuições. Quase sempre quando eram julgados, eram-no porque tinham vestido o papel dos comissários e tinham sido tomados como tais pelas gentes das terras, fossem ou não vítimas directas.

No seu conjunto, e até 1773 (ano do fim da limpeza de sangue e até ao qual se estendeu o estudo), estes processos não podem ser classificados de frequentes. Era mais comum alguém colocar-se na pele de familiar do que avocar a condição de comissário inquisitorial. De 1601 até 1773, encontraram-se apenas 11 processos, um dos quais estudado por Daniela Buono Calainho (2006) e James E. Wadsworth (no prelo).

Apesar de, do ponto de vista estatístico, se lidar com um “pequeno número”, facilmente sujeito a oscilações, importa destacar algumas das características destas práticas e agentes.

Inquisição Província /unidade territorial Local ou locais Ano prisão /

apresentação Falso comissário

Lisboa Entre Douro e MinhoValença do Minho; Esposende e Vila do Conde

1628 Fr. Tomás da Purificação

Coimbra Entre Douro e Minho Soajo 1637 Pe. Afonso Pereira Pimenta

Coimbra Entre Douro e Minho Guimarães; Porto 1712 Tomé Afonso

Coimbra Entre Douro e Minho Arrifana de Sousa 1739 Fernando José Gomes Pestana

Coimbra Entre Douro e Minho Porto 1755 Pe. Domingos José de Azevedo

Lisboa Trás-os-Montes Mogadouro - Sendim 1659 Fr. Domingos da Trindade

Coimbra Beira

Lugar de Gouveias, termo de Pinhel; Pinhel; Lugar de Pomares, bispado da Guarda; Casteição; Lugar Vale Verde, termo de Aguiar da Beira

1705 António Fernandes

Lisboa Algarve Mértola, Tavira, Castro Marim, Aiamonte 1673 Fr. Damião da Assumpção

Lisboa Brasil Rio de Janeiro 1669 Fr. Luís Lamberto

Lisboa Brasil Sergipe, Pernambuco 1740 Fr. Januário de S. Pedro

Lisboa Brasil Ceará Grande 1746 Fr. António da Madre de Deus

Quadro 1 - Locais de ocorrência dos processos e tribunal que o processou (1601-1773)

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Inquisição Ano prisão / apresentação Delito(s): locais de ocorrência Falso comissário Ordem Religiosa

Lisboa 1628 Valença do Minho; Esposende e Vila do Conde

Frei Tomás da Purificação

Franciscano - Capucho

Lisboa 1659 Mogadouro - Sendim Frei Domingos da Trindade

Franciscano - Ordem Terceira

Lisboa 1669 Rio de Janeiro Frei Luís Lamberto Dominicano

Lisboa 1673 Mértola, Tavira, Castro Marim, Aiamonte

Frei Damião da Assumpção

Franciscano - Província do Algarve

Lisboa 1740 Sergipe, Pernambuco, Baía, Sertão da Baía

Frei Januário de S. Pedro

Dominicano - religioso leigo

Lisboa 1746 Ceará Grande Frei António da Madre de Deus

Franciscano - Capucho

Desde logo, o Norte de Portugal e o Brasil foram as zonas mais afectadas por este tipo de impostores, todos eles considerados cristãos-velhos. O Entre Douro e Minho registou 5 destes casos e o Brasil 3 (ver Quadro 1). A área do Porto e a de Valença foram as mais visadas.

Com a investigação disponível, é possível admitir que Lisboa e praticamente todo o Alentejo (feita exceção à área de Mértola) foram territórios poupados. Se a melhoria do tratamento arquivístico das fontes não vier a revelar novos processos, pode-se dizer que a Inquisição de Évora não sentenciou nenhum destes falsos comissários. Embora um deles fosse natural de Évora e conventual de São Francisco desta cidade, fugira do cenóbio e foi sobretudo no Algarve que fez as suas diatribes (ANTT. IL. Processo n.11412).

Em matéria de tribunais foi, todavia, o de Lisboa aquele que recebeu e despachou a maioria destas situações, mesmo quando os delitos decorreram fora da sua área de intervenção. Há uma explicação plausível para este fato e não se relaciona de forma direta com a ida destes processos ao Conselho Geral. Na maioria dos casos, os delinquentes eram clérigos regulares, sobretudo Franciscanos de diferentes filiações, como se pode comprovar pela Quadro 2. Assim, estas ordens dispunham de um convento sede em Lisboa e era para aí que encaminharam às vezes o incriminado, se este entretanto não o fizera por sua iniciativa ou outra. Aliás, a mobilidade de convento em convento era assaz frequente entre estes eclesiásticos, superior ao que se tende a supor.

Quadro 2 - Elementos do clero regular processados por falsos comissários: locais de ocorrência dos delitos e Tribunal inquisitorial envolvido

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Embora, como já se referiu, as listas de autos da fé para o século XVI não ofereçam grande fiabilidade, mesmo assim é verosímil admitir que não tenham aparecido falsos comissários nesta fase. O primeiro detectado para o século XVII foi preso em 1628 (ver Figura 1). Do ponto de vista cronológico, a Inquisição de Lisboa lidou como mais processos deste teor em Seiscentos do que na centúria seguinte. No século XVIII foi a Inquisição de Coimbra que registrou mais ocorrências.

Com as devidas cautelas, é possível falar em 2 períodos com uma concentração de casos mais expressiva: a década de 1670 e sobretudo o decénio de 1740.

No que respeita ao perfil destes falsários, é de salientar que apenas 3 eram seculares e os restantes eram eclesiásticos, dominantemente regulares. Os seculares foram presos no século XVIII e todos pela Inquisição de Coimbra. Desde logo, nenhum deles tinha propriamente domicílio certo. Apresentavam um perfil de gente vadia e errante. Mesmo muitos regulares eram indivíduos que tinham fugido do seu convento e que circulavam de lugar para lugar. Onde atuavam não eram propriamente conhecidos. Essa parece ser uma característica fulcral neste delito, de outra forma o embuste podia sair rapidamente malogrado.

A grande excepção a este tópico foi constituída pelo Padre Afonso Pereira Pimenta, que nunca chegou nem a ser preso, nem a apresentar-se na Inquisição de Coimbra. Em 1637, quando começou a ser processado, era abade do Soajo, uma igreja do padroado real (ANTT. Inquisição de Coimbra (IC). Processo n.4600). Foi denunciado em 1637 porque, sem ter provisão do cargo, usava o título de comissário do Santo Ofício. Materializara esse fato em 2 documentos, que serviam de prova contra ele: gravara-o em prata, no rótulo que mandou colocar num lampadário que oferecera às religiosas do Convento de São Bento de Monção; numa procuração que assinara, em 8 de Maio de 1637.

Quando, ainda nesse ano, foi abordado sobre o assunto pelo desembargador da Relação de Braga e vigário geral da comarca de Viana e administração de Valença, a mando da Inquisição de Coimbra, teve uma reação de ataque e de fundamentação da sua prática. Prometeu deixar de usar o qualificativo de comissário do Santo Ofício, não sem antes justificar por que motivos o fazia. Nessa sequência, a Inquisição mandou riscar a expressão da citada transmissão de poderes e que um prateiro tratasse de martelar aquela zona do lampadário, de modo a borrar a expressão em litígio. No entanto, apesar de ter sido repreendido pelo vigário geral, em Valença, o Padre Afonso Pereira Pimenta insistiu numa pretensão que acalentava desde pelo menos 1627. Consistia em obter legalmente o cargo de comissário.

Com efeito, desde o último ano invocado que já se tinham feito duas vezes interrogatórios para o habilitar. Saíam sempre com alguns problemas, pois tinha alguma fama de cristão-novo, pelo lado paterno. Mesmo assim, findos os primeiros, por engano, fora-lhe passada provisão do cargo, mas que a Inquisição de Coimbra não deixou que fosse jurada. Era por essa razão e por ter recebido uma comissão, em 1630, para efectuar diligências que desde este ano passara a intitular-se como

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tal. Quando recebeu a referida comissão para prender uns cristãos-novos na Galiza, era tratado como comissário no envelope, que conservou sempre, e mostrou ao vigário geral. Nas suas palavras de Dezembro de 1637 à Inquisição de Coimbra, desde então pensara que tinha a pretensão solucionada: “e tanto que vi que essa mesa me nomeava comissário dei o negócio por feito e comecei a nomear-me por tal. Isto por me honrar como por desejar servir a essa mesa” (ANTT. IC. Processo n.4600, f. não numerado).

Não fora assim. Quando teve conhecimento que a Inquisição de Coimbra mandara apagar o seu título dos locais onde o grafara, e já depois da repreensão, escreveu ao Conselho Geral. Sentia a sua honra lesada nos espaços onde vivia: “e se riscar [o título] fica sua família infamada e ele que está hoje abade das igrejas de Soajo e perde os requerimentos e despachos que merece por suas letras e partes e é homem conhecido que foi opositor ao Colégio de S. Paulo em Coimbra (…) [enumerava oposições e lugares obtidos] e é pregador de muitos anos teólogo formado com cursos de leitura” (ANTT. Habilitação do Santo Ofício, Afonso, Maço 1, doc.9, f.13v). Orgulhoso do seu curriculum que já implicara várias provanças para certos lugares, rematava a pedir novos inquéritos de habilitação, solicitando que primeiro se efetuasse um levantamento dos seus inimigos. No seu entender ele era “cristão-velho e de geração nobre e fidalgo por pais e avós por tal tido e conhecido das pessoas mais antigas” (ANTT. Habilitação do Santo Ofício, Afonso, Maço 1, doc.9, f.13v). Aliás, até já ganhara um processo judicial contra um galego que o apelidara de judeu e supõe-se que foi a partir daí que pretendeu fazer-se comissário. Este posto podia ter essa valência de sancionar um estatuto, além do poder que dava.

Mal recebeu aviso que seria feita uma terceira tentativa e que teria de depositar dinheiro para os gastos, enviou um próprio a Coimbra com 20.000 réis e a listagem da sua genealogia. Escreveu a agradecer e alertar que se fosse necessário mais dinheiro o mesmo próprio podia ir a Ricardães, perto de Águeda, onde já fora prior, “e leve todo o dinheiro que Vossas Mercês ordenarem que lho há-de dar o prior Inácio Nunes meu pensionário e logo de um dia ao outro tornará com ele a entregá-lo como lhe for mandado. E sendo cá necessário o mesmo próprio o trará e entregará em Viana, ou Braga aonde se ordenar que em tudo quero servir e obedecer a Vossa Mercê” (ANTT. Habilitação do Santo Ofício, Afonso, Maço 1, doc.9, f.14v). Esta carta é bem expressiva do seu interesse em chegar a comissário. E desta feita teve êxito. Em 7 de Julho de 1638, 7 meses depois da sua repreensão pelo vigário geral, conseguiu a provisão efetiva que lhe permitia ser comissário do Santo Ofício. O episódio de se antecipar, não o prejudicou.

Como se pode observar pela Figura 2, este delito tendia a acontecer em indivíduos com idades abaixo dos 40 anos, quando ainda se podiam movimentar com facilidade. O caso do Padre Afonso Pereira Pimenta também do ponto de vista etário traduz a diferença, pois já tinha 48 anos quando a Inquisição lhe abriu processo.

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Em geral, a julgar pelos casos estudados, estes fingidos comissários não conseguiam atuar durante muito tempo. A farsa que montavam durava pouco. Dificilmente ultrapassava os 2 a 4 meses. Pondo de lado o Abade do Soajo, apenas no vasto Brasil se registaram casos de anos. Um deles nunca foi mesmo descoberto e só a apresentação do religioso dominicano, em 1669, bem como a inquirição subsequente, deu a conhecer o problema. Ao todo, Frei Luís Lamberto, cujo pai, casado com uma portuguesa, era natural de Hamburgo, terá passado por comissário durante quase 2 anos.

Tudo terá começado quando, estando para partir para o Brasil, e em tempo que não havia Inquisidor-geral sancionado pela Santa Sé, pediu para ser comissário em terras de Vera Cruz. Fez a solicitação ao dominicano com assento no Conselho Geral, o Padre Mestre Frei Pedro de Magalhães,5 e a Pantalião Rodrigues Pacheco, também do mesmo conselho. Terá obtido como resposta “que não havia tempo para se lhe fazerem as diligências, e que estando naquele Estado se informasse se havia algumas coisas pertencentes ao Santo Ofício, e havendo-as, avisasse delas, e então se lhe cometeriam as diligências” (ANTT. IL. Processo n.10295, f.62v). Sem mais delongas, acabaria por confessar que fez ele, Frei Luís Lamberto, um papel com essa autorização. Depois, no Rio de Janeiro, ditou-o a um noviço carmelita para que a passasse a limpo e certamente para evitar que a sua caligrafia fosse reconhecida. Neste texto, atribuía a ele próprio poder para inquirir de tudo o respeitante ao Santo Ofício no Brasil, onde quer que estivesse, e poder para eleger escrivão, com privilégios de familiar. Se passasse a Angola, também se autoapoderou com a mesma alçada. Fechou com a expressão habitual de “eu, Diogo Velho, secretário do Conselho Geral, o escrevi”6 e assinou em nome do referido Pantalião Rodrigues Pacheco, com uma letra diferente da dele por nunca ter visualizado a assinatura do ministro (ANTT. IL. Processo n.10295, f.71 e 73).

Na mesma ocasião pediu ao carmelita que escrevesse outro papel onde vinham os casos da incumbência do Santo Ofício, que copiara de um edital, e deu-lhe a entender que tal documento recebera da Inquisição para se governar na comissão que trouxera. Por fim, solicitou-lhe o traslado de um terceiro papel: era uma ordem de Diogo Velho, para que o tesoureiro do fisco do Brasil lhe desse, onde ele estivesse, 50.000 réis por ano para as suas despesas e outro tanto ao escrivão (ANTT. IL. Processo n.10295, f.74).

Foi assim que começou a apurar se havia crimes do pelouro inquisitorial, “pelo desejo que tinha de alcançar o crédito de servir o Santo Ofício” (ANTT. IL. Processo n.10295, f.62v). Deste modo passou a ser tido como comissário no Rio de Janeiro e ele assim o dava a entender. A algumas pessoas disse mesmo que o era e

5 Jurou o cargo em 2 de Janeiro de 1653 (ANTT. Conselho Geral, liv.136, f.161v).6 Diogo Velho era efetivamente o secretário do Conselho desde 1636 (ANTT. Conselho Geral, liv.136, f.150-151v); e sê-lo-ia até 1675, ano em que foi substituído por ter muita idade e já não conseguir pegar na pena, depois de 55 anos a servir o Santo Ofício (ANTT. Conselho Geral, liv.136, f.188v).

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que todas as questões deste teor lhe fossem remetidas. Tão forte foi a opinião que “nesta Quaresma passada fez um ano alguns dias antes do em que se havia de ler publicamente o edital da fé na Igreja de São Bento e dos Padres da Companhia, na Candelaria, e da Sé, advertiu, por escrito aos vigários das ditas duas igrejas, e vocalmente aos Padres da Companhia, não se lembra em particular quais eram, que se lessem os ditos editais, e no fim declarassem, que se alguém tivesse algum escrúpulo, ou que denunciar nas matérias delas o dissessem a ele” (ANTT. IL. Processo n.10295, f.63). Assim se chegou a concretizar na Igreja de São Bento (nas restantes o prelado não o consentiu). Na sequência das denúncias resultantes, ouviu a primeira testemunha e escolheu até um escrivão secular, natural de Pernambuco (António Monteiro Gerardo), tendo mostrado a ele o papel fabricado que lhe dava poderes para o efeito. Ainda na mesma época pascal, teve diferendos com o administrador eclesiástico do Rio de Janeiro, por causa de um sermão. Sabendo que o administrador o queria impedir de pregar, foi a casa dele com o familiar Diogo Correia (que habitualmente o acompanhava), e disse-lhe que não atuasse com ele deste modo, pois estava naquele território para tratar dos assuntos da Inquisição. Apesar da ameaça, o administrador retorquiu-lhe que as diligências se haviam de fazer com os seus oficiais e com o seu meirinho. Por esse fato, nesse dia foi a sua casa o clérigo do hábito de São Pedro que os Jesuítas se tinham servido em algumas ocasiões para escrever nas matérias do Santo Ofício e deu-lhe um documento que ele Frei Luís Lamberto forjara e assinara, pelo qual o criava notário do Santo Ofício; depois, mandou-o notificar o Administrador referido para que o deixasse pregar e não teve, a partir de então, mais impedimentos.

Os poderes que a si mesmo conferiu foram-lhe várias vezes úteis. Apontem-se algumas. Tendo um amigo dificuldades em cobrar uma dívida de 16.000 réis a um senhor de engenho, e tendo ele ordenado a esse amigo que o acompanhasse da parte do Santo Ofício até à Baía, escreveu ao devedor. Explicou a que mando embarcavam e António Monteiro Gerardo foi ressarcido. Já antes disso, lera a falsa provisão ao governador do Rio, dom Pedro Mascarenhas, para livrar este amigo das obrigações da milícia e teve êxito. Em outra circunstância, Gregório de Ultra, morador no Rio, fora a sua casa para bater “num moleque seu”, eventualmente um criado. Acabou ele, Frei Luís Lamberto, por chamar o agressor e por repreendê-lo. Disse-lhe que à sua casa se havia de ter respeito: não só por ser oficial do rei, mas também por estar nela e ser comissário do Santo Ofício (ANTT. IL. Processo n.10295, f.71-72v).

Apesar de ter lido o documento nuclear forjado a várias pessoas, inclusive a Jesuítas, ninguém desconfiou, embora fosse comum na época pedir-se a um eclesiástico os seus documentos (de ordens, a provisão de comissário, etc.). No navio que o trouxe até à Baía, junto com o amigo que criara notário, todos sabiam que eram elementos do Santo Ofício. Nas suas palavras também na Baía ele confitente “teve reputação de comissário” (ANTT. IL. Processo n.10295, f.71v). O certo é que evitou sempre que o documento fosse parar às mãos de terceiros. Quando o prelado do Rio de Janeiro lho pediu, respondeu-lhe altivamente que já

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lhe solicitara licença para usar dos seus ofícios, que mais nada lhe havia de mostrar, e não houve insistência. Certamente também para evitar ser descoberto inibiu-se de receber os montantes financeiros que a si mesmo impusera. No entanto, terá pago do seu bolso os 50.000 réis ao seu amigo notário para mais facilmente o aliciar a que o acompanhasse até à Baía, não obstante os seus interesses como comissário de fazendas. Também no navio para este trajeto, antes da viagem, solicitou diversas vezes ao general da frota do Brasil que lhe desse câmara separada da do seu secretário porque tinha papéis de segredo do Santo Ofício que teria que copiar (ANTT. IL. Processo n.10295, f.8-8v). Em resumo, só depois da confissão de Frei Luís Lamberto, quando chegou a Lisboa, algumas das pessoas envolvidas na história terão tomado conhecimento da ocorrência. Assim foi sobretudo depois de ouvidas testemunhas em Lisboa, onde pouco se apurou (Agosto de 1669 e Abril de 1671), no Rio de Janeiro e na Baía (1670). Este quadro tornou-se numa vantagem para o réu. Aliás, nota-se uma certa preocupação em protegê-lo porque inicialmente estava no Convento do Sacramento (de religiosas dominicanas) em Lisboa e a mando do Santo Ofício foi transferido para o cenóbio dominicano de Almada, de onde não podia sair sem ordem da Inquisição (ANTT. IL. Processo n.10295, f.85). Ali estaria mais resguardado.

Outro caso que terá durado anos no Brasil foi o de Frei Januário de São Pedro, que se terá estendido por cerca de 2 a 4 anos, muito embora às vezes se intitulasse comissário e outras familiar. O fato de ir mudando de região para região, num território extenso, facilitou-lhe a vida.

Se o referido Frei Luís Lamberto não teve necessidade de alterar a sua identidade, 6 destes indivíduos fizeram-no. No caso dos seculares a recreação era mais elaborada. Dois deles vestiram-se mesmo de clérigos e mandaram abrir coroa na cabeça para facilitar a imitação. Um deles, Tomé Afonso, natural do termo de Bragança, assim mudado, em Junho de 1712, chegou a uma estalagem de Guimarães. Ali, mandou chamar 2 familiares, dizendo-lhes que era comissário do Santo Ofício e prior de São Romão das partes de Amarante. Ordenou-lhes que fossem prender dois irmãos ourives da prata, pois antecipadamente informara-se sobre os mercadores da localidade. Tinha perguntado ao barbeiro que lhe fez a coroa se todos eram cristãos-novos e ficou a saber que, ao invés, quase todos eram familiares (ANTT. IC. Processo n.9693, f.38v). Uma vez encarcerados os dois ourives, o que causou reparo na Vila, pois ambos eram cristãos-velhos, ordenou ao juiz de fora que lhes sequestrasse e fizesse arrematar os bens. Ao mesmo tempo pediu-lhe 80.000 réis para os trazer para a Inquisição. Como o juiz de fora duvidou fazê-lo porque o comissário não lhe dera a ordem do Santo Ofício para o efeito, Tomé Afonso, que usava o nome de Gonçalo Ferreira Teixeira, passou a exigir-lhe apenas 30.000 réis. Nesta sequência, o comissário fingido ao ver a situação mal parada, ausentou-se de Guimarães e deixou os presos na cadeia.

As mulheres destas vítimas descreviam o falso comissário como alguém que parecia clérigo, “por mostrar coroa, e era baixo do corpo, ruivo de rosto, cara larga, e redonda, e sobre o preto; o vestido preto, loba comprida abotoada, e nela em

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um cordão de ouro o hábito público; capote salpicado sobre o escuro com capuz” (ANTT. IC. Processo n.9693, f.11). No entanto, outras testemunhas apenas diziam que tinha um cordão de ouro, mas não a venera do Santo Ofício. O certo é que Tomé Afonso nesta altura apenas tinha o referido colar; a insígnia veio adquiri-la posteriormente, quando chegou ao Porto. Ter a venera da instituição ou simular tê-la era uma preocupação comum a muitos falsos comissários e a falsos familiares.

No caso da rocambolesca história de Frei Januário de São Pedro, que nascera em Quito no Peru e percorrera diferentes territórios da América do Sul castelhana até chegar ao Brasil, ter obtido a venera parece ter marcado uma viragem no seu percurso de falsário. Até aí fingia-se padre “desejando muito passar para o estado de sacerdote para ser tratado com mais estimação, e descanso, como eram os sacerdotes”, segundo admitiu na sua confissão, nos Estáus em Lisboa (ANTT. IL. Processo n.3693, f.42v). Mesmo quando estava em viagem, no Brasil, levava um altar portátil e não se coibia de celebrar missa e administrar sacramentos como o batismo (ANTT. IL. Processo n.3693, f.45). No entanto, mudou de estratégia, quando passou do sertão à Baía e sabendo-se descoberto pelas autoridades e um senhor de engenho lhe deu como esmola para uma confraria de Nossa Senhora de Monserrate “uma grande venera ou hábito de familiar do Santo Ofício, o qual era de ouro esmaltado, de grande preço e havia sido do pai do dito João de Aguiar, familiar do Santo Ofício já falecido”; passou a usar a insígnia, intitulando-se ora familiar do Santo Ofício, ora comissário e como tal era reconhecido (ANTT. IL. Processo n.3693, f.47v).

Um impostor teria tendencialmente um objetivo e uma motivação. Ou seja, estas personagens não agiam propriamente ao acaso, mesmo quando vagueavam quase sem rumo. Obter dinheiro ou outros recursos materiais era um dos fins em vista, de acordo com a justificação que apresentavam quando confessavam. Este era sobretudo relevante entre os mais jovens e para os seculares (ver Figura 2). Já para os eclesiásticos, o mais importante era ganhar maior respeito dos outros, maior poder ou honra. As comunidades eclesiásticas eram hierárquicas e férteis em conflitos e rivalidades. Por isso mesmo, alguns elementos almejavam alcançar o posto de comissário como meio de usufruir de maior autoridade e, inclusive, poder intimidar. Um exemplo paradigmático foi o do padre capucho e pregador, Frei Tomás da Purificação. No Verão de 1628, estando no Convento de Caminha, por sua iniciativa tirou inquéritos sobre a qualidade e nobreza do Mestre e provincial da Província de Santo António, Frei Francisco do Rosário, dizendo que o fazia a mando do Santo Ofício. Para o efeito deslocou-se a Valença. Antes disso, a encenação que criou foi, todavia, maior. Redigiu secretamente cartas e instruções que por subterfúgios mandou lhe fossem entregues por um familiar do Santo Ofício, com uma testemunha e diante do guardião e mais frades do seu convento. O familiar António Lobo de Mesquita, sem de nada suspeitar, assim o fez, na véspera do dia de Santiago. Perante a comunidade conventual reunida para o efeito, entregou-lhe um maço, cujo sobrescrito dizia: “Ao muito reverendo Padre Fr. Tomás da Purificação em qualquer parte que estiver – Do Santo Ofício”. Como

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lhe era ordenado lavrou um auto da entrega e todos os presentes assinaram. Frei Tomás agarrou no maço e, segundo relatou na confissão inquisitorial, beijou-o e pediu ao guardião licença para o ler. Ali era-lhe mandado que fosse a Valença do Minho “e a qualquer parte onde pertencesse” e apurasse a limpeza de sangue do referido Fr. Francisco do Rosário (ANTT. IL. Processo n.9219, f.24v-25). Além desta, incumbiam-se-lhe outras pequenas tarefas, destinadas a outros processos. Foi assim que escolheu escrivão e partiu rumo a Valença, com autorização do guardião do convento. Uma vez a contas com o Tribunal inquisitorial de Lisboa, acabou por confessar que o Padre Provincial Frei Francisco do Rosário lhe tinha má vontade e que lhe negara uma vinda a Lisboa; que fizera o fingimento referido para que o Provincial tivesse medo dele e lhe permitisse essa deslocação (ANTT. IL. Processo n.9219, f.32v-33).

Também em Março de 1755, o Padre Domingos José de Azevedo confessou diante dos inquisidores de Coimbra que há um ano atrás “levado da vaidade de querer ser mais respeitado se jactara de que era comissário do Santo Ofício” (ANTT. IC. Processo n.9963, f.1v da segunda numeração).Como se pode ver pela Quadro 3, apenas um destes réus não sabia ler, nem escrever. Todos os outros tinham um nível de literacia alto para a época e muitos até teriam frequentado a Universidade ou cursos regulares nas Ordens respectivas. Tal fato não os inibia de recorrer aos fingimentos analisados. Aliás, muitos deles implicavam elevada destreza gráfica.

Para além da experiência com os editais que todos os anos pela Quaresma eram lidos nas igrejas, apenas um dos falsários revela ter tido um contato muito próximo com um efetivo comissário do Santo Ofício, que lhe servisse de espaço de

“aprendizagem”. Foi Tomé Afonso, filho de um lavrador transmontano. Fora criado do comissário de Bragança, Manuel Camelo de Morais, e depois seu sacristão durante um ano, entre 1709 e 1710. Acabou por ser corrido desta segunda ocupação exatamente por falsificar documentos e a assinatura do Abade Manuel Camelo de Morais (ANTT. IC. Processo n.9693, f.159-159v, 170).

Em matéria de penas, é possível concluir que a maioria destes indivíduos ouviu a sua sentença em um auto da fé público (ver Quadro 4). Os três seculares foram ali expostos aos olhares de todos. Nenhum foi sujeito a confisco de bens.

Como sempre na época, e mesmo em termos jurídicos, a condição social influía diretamente no tipo de pena. Assim, somente duas destas pessoas receberam açoites. Uma delas foi Tomé Afonso. A Inquisição de Coimbra, antes de se decidir por este castigo, fez notar que o réu só tinha ordens menores, não era detentor de benefício, não trazia hábito, nem tonsura, por isso podia receber esta pena ignominiosa (ANTT. IC. Processo n.9693, f.32-33 da segunda numeração). Fernando José Gomes Pestana, que em 1739 saíra num auto da fé público de Coimbra, em 1742 voltava a conhecer idêntico palco. Não só não cumprira o degredo anterior para Castro Marim, como desta vez fingira-se familiar. Na prática reincidia no tipo de delito em sentido lato: atuação contra o reto procedimento do Santo Ofício. O mesmo tribunal fixou-lhe um degredo de 7 anos para Mazagão e só não lhe

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impuseram açoites porque o pai era advogado e pelas letras do progenitor gozava de nobreza (ANTT. Inquisição de Évora [IE]. Processo n.1752, f. não numerado).7

7 É de notar que embora a cota seja da Inquisição de Évora, foi o Tribunal de Coimbra que o processou nas duas vezes.

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A Inquisição punha bem em prática o princípio que um delito público devia ter castigo diante de todos. No caso de Frei Luís Lamberto, o fato de se apresentar antes de estar delato, nem o ser depois da sua apresentação, favoreceu-o, quando a Mesa da Inquisição de Lisboa analisou o seu processo em Maio de 1671. Como o crime permaneceu oculto, nas palavras dos inquisidores e deputados

não pede pública satisfação porque ainda que os factos foram manifestos não o foram os fingimentos pois sempre o réu foi reputado por comissário sem que se soubesse que fingia que o era como consta dos exames que se lhe fizeram e das testemunhas que neste Reino e naquele Estado [Brasil] se perguntaram as quais ainda que hoje deem notícia da culpa nos termos de direito não a fazem pública porque antes de inquirida não sabiam dela e a inquirição não deve prejudicar ao réu publicando o delito que antes dele se ignorava e em tudo se deve reputar como segredo do Santo Ofício que as pessoas perguntadas não hão-de romper pois com juramento se obrigaram ao observar, e ainda quando houvesse alguma publicidade naquele Estado não havendo alguma neste Reino se devia escusar o réu da pena pública por se não dar notícia do crime adonde a não havia; dando satisfação donde faltava o escândalo; com descrédito de um religioso de uma religião tão benemérita e tão estimada do Santo Ofício. (ANTT. IL. Processo n.10295, f.91)

Este último aspecto não seria também despiciendo. Eis assim como Frei Lamberto se limitou a ouvir a sentença na mesa. E as vantagens não se ficaram por aqui. Escassos meses depois da sentença, já pedia à Inquisição de Lisboa para transitar o seu degredo do Convento de Santarém para o de Almada (onde exercera o ofício de leitor) ou para os Açores, para acompanhar o novo bispo de Angra. Este último, dom Frei Lourenço de Castro, era dominicano e por essa altura preparava-se para viajar em direção à sua diocese insular, onde terá entrado em Novembro de 1671. A Mesa pronunciou-se a favor desta segunda hipótese e de fato Frei Luís Lamberto foi cumprir mais algum tempo de degredo para a Ilha Terceira. Em dezembro desse ano, atendendo aos seus muitos achaques, já o Conselho Geral lhe perdoava o resto do tempo (ANTT. IL. Processo n.10295, f.99-99v, 103v). Ou seja, com todos os empenhos, álibis e subterfúgios terá gasto unicamente cerca de seis meses a cumprir a sua pena. Note-se que em geral os religiosos regulares era degredados para os conventos da própria Ordem e era quase sempre nestas instituições que encontravam cárcere.

Porque não se tratava de um delito de heresia, nenhum deles abjurou, exceto Frei Januário de São Pedro, certamente por também envolver dizer missa e aplicar alguns sacramentos, sem ter recebido ordens. Por fim, destaque-se a inabilidade para qualquer cargo do Santo Ofício. Pela importância da instituição nos códigos simbólicos e de distinção, esta seria uma nota que causaria grande desagrado.

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A imagem e a função do comissário

Conhecer a atuação dos falsos comissários pode constituir um contributo válido para analisar aqueles que legitimamente tinham essas funções. Com efeito, nem sempre as fontes escapam a um quadro padrão, que muitas vezes pouco refere sobre as situações do quotidiano.

Do conjunto de processos analisados é possível destacar vários tópicos. Em primeiro lugar, um comissário assinaria com esse complemento em diferente documentação, mesmo a que não dizia respeito ao Santo Ofício. Recorde-se o exemplo da procuração do Padre Afonso Pereira Pimenta. Passava a fazer parte dos títulos que identificavam um indivíduo e que lhe davam estatuto, numa sociedade sedenta de distinções.

Como não era permitido usar a venera do Santo Ofício patente no dia a dia, exceto em diligências, e no dia da festa de São Pedro Mártir,8 muitos traziam-na quotidianamente, mas sob as vestes. Tal fato facilitaria a vida a quem fingia ter o cargo, pois bastava ter uma fita ou um colar por baixo da roupa para se intuir que seria a insígnia. Em 1755, o Padre Domingos José de Azevedo explicava-o bem:

“para melhor inculcar este seu fingimento, a fita com que apertava o cabeção da volta, a metia ao depois por uma casa da batina, para assim inculcar, que trazia a venera dentro” (ANTT. IL. Processo n.9219, f.1v da segunda numeração).

É possível que muitos comissários no momento de efetuarem ou darem ordens de prisão, empunhassem a venera que traziam pendente. Em 1712, uma das vítimas de Tomé Afonso, na cidade do Porto, o negociante cristão-novo Luís Francisco, morador na Rua Nova, de 64 anos, quando foi ouvido judicialmente explicou pormenorizadamente esse mesmo gesto. Disse que, quando o falso comissário lhe pediu dinheiro para o deixar ir apresentar-se a Coimbra e ele recusou, Tomé Afonso “pegando na venera disse Vossa [Mercê] está preso da parte do Santo Ofício” (ANTT. IC. Processo n.9693, f.120). Exibir o hábito mesmo que ele estivesse até aí tapado tendia a despertar imediata obediência. Indubitavelmente identificava a personagem e sancionava e reforçava a ordem dada. Outros agentes do Santo Ofício, como os familiares, também atestavam esse mesmo fato. Por exemplo, num outro tipo de processo, em 1658, o familiar António da Rocha, barbeiro e espadeiro, morador no Porto, disse na Inquisição de Coimbra a propósito de um evento de notificação de testemunhas que tinha a insígnia tapada, mas que “na dita Igreja de Oliveira por obrigar a vir testemunhar um homem que recusava fazê-lo, descobriu o hábito e então obedeceu logo” (ANTT. IC. Processo n.414, f.43).

De salientar ainda o grau de obediência que o comissário e o Santo Ofício despertavam. Destaque-se um episódio relatado no processo do falso comissário Fernando José Gomes Pestana. Em dezembro de 1738, António Ribeiro, jornaleiro,

8 Mesmo em Castela, também era assim. Em 1713 permitiu-se o seu uso também nas festas do Corpus Christi, de São Domingos e São Pedro Mártir, e nos recebimentos de pessoas reais (Archivo Histórico Nacional. Inquisición, liv.500, f.101-102v).

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morador na freguesia de Santa Eulália, no termo do Porto, narrou como “estando ele testemunha a cear veio este homem [o comissário fingido] à sua porta que o acompanhasse da parte do Santo Ofício e o não deixou acabar de cear e o fez caminhar de trás si com as tamancas na mão, sem saber com quem ia nem o conhecer somente lhe obedeceu por ser requerido por parte do Santo Ofício” (ANTT. IC. Processo n.1752, f. não numerado).

Observe-se também que prender podia implicar recrutar pessoas e muitas vezes animais para o transporte dos réus, sem que os donos tivessem grande margem para recusar até porque seriam pagos.

Algumas vítimas destes impostores fizeram notar que, embora tenham gritado, e houvesse muita gente à sua porta, ninguém acorria. Não só o tribunal infundia respeito, como retirar um preso das mãos de um elemento do Santo Ofício era igualmente considerado crime. Quando, em 1739, Frei Januário de São Pedro prendeu e fez transportar um homem afazendado, morador no Sertão do Pilhão, durante o percurso até à Baía, houve uma tentativa de tomada do preso à força. Um primo do padecente, com um tenente de cavalos, 2 sargentos e alguns soldados, aproximou-se do cortejo de transporte, mas terá recuado. A grande comitiva que foi notificada para acompanhar o preso, que nunca terá sido inferior às 12-30 pessoas, terá levado ao abortar do assalto. Mesmo assim, Frei Januário não terá hesitado em notificar o responsável “por estorvar a actividade do Santo Ofício”, com força de armas (ANTT. IL. Processo n.3693, f.50-50v).

No começo do século XVII, segundo se relatava num dos episódios da Metrópole, gritava-se chamando não apenas o rei, mas também Deus e a Santa Inquisição. Assim fez um cristão-novo, rendeiro da comenda de Farinha Podre, junto a Coimbra, quando dois ladrões vieram ter com ele e lhe deram ordem de prisão em nome do Santo Ofício. Nesse contexto começou ele a gritar “a que de Deus e del-rei e da Santa Inquisição”, mas mesmo assim “a gente do dito lugar estava em magotes defronte deles, não ousavam de chegar a eles por eles dizerem, que eram officiais da Inquisição” (ANTT. IC. Processo n. 2606, f.6v-7).

Em todos estes processos tornou-se muito patente a rapidez com que os agentes do Santo Ofício podiam requisitar força animal de transporte, carros e barcos quando iam efetuar diligências. Teoricamente seria a troco de pagamento, mas conseguiam dispor imediatamente dos recursos. Foi assim que foi facilitado o itinerário do falso comissário, o Padre Frei Damião da Assumpção, pelo Algarve. Até o governador, Manuel de Sousa de Castro, lhe emprestou o seu próprio barco (ANTT. IL. Processo n.11412, f.47). Os comissários tinham também facilidades em alcançar alojamento e muitas vezes refeições e outros bens (roupa e até armas) nas moradas do clero das paróquias.9

9 Um bom exemplo constitui o processo do falso comissário António Fernandes (ANTT. IC. Processo n.6252).

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Obtinham acesso aos livros de registo paroquial igualmente sem obstáculos. É de notar que a mesma abertura não era praticada com os comissários das Ordens Militares.

É também de realçar a notória colaboração das autoridades locais, em especial as seculares, em matéria de prisões, inventariação e sequestro dos bens. No caso citado do Algarve, o governador até disponibilizou dois soldados para acompanharem o comissário, além do seu barco. E os soldados referidos não o deixavam sozinho.

Ao longo do estudo destes processos, foi possível constatar que com frequência os falsos comissários se vangloriavam do seu curriculum de prisões. Fernando  José Gomes Pestana ter-se-á orgulhado que com a prisão de uma mulher que ia fazer no termo do Porto completava a soma de 50 presos, dos quais só 3 tinham sido queimados. Outra testemunha referia que o mesmo dissera que vinha “para a limpar a freguesia de feiticeiras” (ANTT. IE. Processo n.1752, f. não numerado). Em 1754, também os depoimentos ouvidos em torno do Padre Domingos José de Azevedo aludiam a questões semelhantes: ao fazer-se comissário fingido, jactava-se de ter levado a Coimbra muitos cristãos-novos (ANTT. IC. Processo n.9963, f.24). Fariam os reais comissários o mesmo? É possível que sim, dada a recorrência destes tópicos.

É credível que estes agentes se autorepresentassem como verdadeiros garantes da ortodoxia nos seus locais de atuação, como acima se apontou em torno das feiticeiras. No processo de Frei Januário de São Pedro, a Mesa da Inquisição de Lisboa passou a escrito que o réu cometera os delitos, entre outras razões materiais, para se ver com a estimação de sacerdote “e com as de ministro do Santo Ofício, que nas suas terras são as pessoas que tem a primeira estimação e respeito” (ANTT. IL. Processo n.3693, f.91). Seria uma observação sobre o estatuto destes agentes que não estaria longe da realidade.

A imagem que se intui de muitos processos é que o clima de hostilidade aos cristãos-novos era grande e que muitas vezes bastava a presença do comissário para que alguns se sentissem ameaçados. O caso de Frei Domingos da Trindade, por volta de 1657, constitui um bom exemplo. Depois de ter tido uns desajustes com um cristão-novo que pretendeu especular com o trigo da Confraria do Santíssimo, em Sendim (Trás-os-Montes), e de ter protestado contra esse acontecimento num sermão, foi-lhe muito fácil amedrontar a família. Bastou-lhe chamar a mulher e mostra-lhe uns maços de papéis que simulara, dizendo-lhe que ali vinham ordens do Santo Ofício para se devassar do caso para conseguir extorquir dinheiro à família (ANTT. IL. Processo n.11413, f.20-23v, 27).

Por fim, estes processos também retratam a importância de poder escolher um escrivão. Quando não havia notário do Santo Ofício disponível na localidade, muitos comissários efetivos recebiam na sua comissão diretivas claras para escolher este tipo de auxiliar. Em geral optavam por um clérigo subalterno. Por exemplo, em 1705, o falso comissário António Fernandes, quando chegou vestido de clérigo à casa do vigário de Gouveia pediu-lhe o coadjutor daquela igreja, para que o

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acompanhasse no papel de escrivão (ANTT. IC. Processo n.6252, f.30v, e seg.). Mesmo quando os eleitos protestavam que não tinham boa letra, muitas vezes de nada lhes valia. Assim aconteceu quando o Padre Manuel Pinto Lobão foi requisitado por parte do Padre Domingos José de Azevedo. Segundo a informação da denúncia feita em Setembro de 1754, ainda que o primeiro

lhe disse, que não tinha dúvida, pois era súbdito, e obediente ao Santo tribunal; porém, que nunca tinha feito diligências  e que não escrevia capazmente ao que o denunciado lhe disse, que não tinha remédio, senão ser seu escrivão, pois ele denunciado tinha poder para eleger quem quisesse, e que lhe devia obedecer da parte do Santo Ofício, pois ele lhe ensinaria os termos. (ANTT. IC. Processo n.9963, f.3)

Nota-se também que haveria entre comissário e escrivão uma relação simultaneamente dependente e subalterna, embora muitos comissários tendessem a recorrer sempre ao mesmo indivíduo para estas funções. Para além da eventual cumplicidade, também seria uma forma de realçar o seu poder de criar escrivão.

Em suma, os episódios de falsos comissários, que em geral eram protagonizados por eclesiásticos abaixo dos quarenta anos, que tinham facilidade em deslocar-se, permitem uma melhor aproximação ao quotidiano dos agentes efetivos. Torna-se assim possível captar os modos como se processava a sua ação e como esta era enquadrada pela comunidade envolvente, que via nos reais comissários “as pessoas que tem a primeira estimação e respeito” (ANTT. IL. Processo n.3693, f.91), nas suas terras. Exatamente porque o cargo gerava poder e honra havia quem, de quando em vez, arriscasse fingir que o tinha. Eram, todavia, eventos esparsos e de curta duração, exceto em terras vastas como no Brasil, onde era fácil mudar de região para região sem ser facilmente descoberto.

Fontes

1. Manuscritas:

ARCHIVO HISTORICO NACIONAL (AHN) [Madrid]:- Inquisición, Livro 500.

ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO (ANTT): - Armário Jesuítico, Livro11.- Conselho Geral, Livros: 136, 433, 487. - Habilitação do Santo Ofício, Afonso, Maço 1, doc.9. - Inquisição de Coimbra, Processos nº: 414, 1752, 2606, 4600, 6252, 9963.- Inquisição de Évora, Processo nº 1752.- Inquisição de Lisboa, Processos nº: 3693, 4594, 8059, 9219, 10295, 11412, 11413.BIBLIOTECA NACIONAL DE PORTUGAL (BNP):

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- Coleção Moreira, Cód. 863-865.BIBLIOTECA PÚBLICA DE ÉVORA (BPE):

- Cód. CIV/1-43.2. Impressas:

- DOCUMENTOS PARA A HISTÓRIA DA INQUISIÇÃO EM PORTUGAL. Porto: Cartório Dominicano Português, Século XVI, Fasc.18, doc.XXVI.

Referências bibliográficas

CALAINHO, Daniela Buono. Pelo reto ministério do Santo Ofício: falsos agentes inquisitoriais no Brasil colonial. In: VAINFAS, Ronaldo; FEITLER, Bruno e LIMA, Lana Lage da Gama (org.). A Inquisição em xeque: temas, controvérsias, estudos de caso. Rio de Janeiro: EDURJ, 2006. pp.87-96.

LOURENÇO, Miguel José Rodrigues Lourenço. O comissariado do Santo Ofício em Macau (c. 1582-c. 1644): a cidade do Nome de Deus na China e a articulação da periferia no distrito da Inquisição de Goa. Dissertação de Mestrado em História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa. v.I. Lisboa, FLL. 2007.

OAKLEY, Joy L. (org.). Lists of the Portuguese Inquisition. 2v. Londres: Jewish Historical Society of England, 2008.

WADSWORTH, James E. Agents of the orthodoxy: honor, status, and the Inquisition in Colonial Pernambuco, Brazil. Lanham, Boulder: Rowman Littlefield, 2007.

WADSWORTH, James E. “Charlatan in the Backlands: Inquisition and imposture in Colonial Brazil”, Luso-Brazilian Review (no prelo).

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5.

A Inquisição na comarca do Rio das Mortes: os agentes 1

Aldair Carlos Rodrigues

Este capítulo tem por objetivo apresentar um panorama da relação estabelecida entre o Santo Ofício e a comarca do Rio das Mortes por meio dos agentes inquisitoriais presentes nesta região ao longo do século XVIII. A análise está articulada em duas partes. Na primeira, oferecemos um quadro geral da formação da rede de agentes do Santo Ofício na comarca, inserindo-a, sempre que for pertinente, no contexto da capitania e do império português. Além de conhecer o comportamento da curva da expedição de familiaturas e comissarias para a região, procuramos traçar o perfil desses sujeitos, privilegiando o aspecto social. Na segunda etapa do texto, recortamos a análise para a trajetória e a ação de um importante agente do Rio das Mortes: José Sobral e Souza, vigário da vara em São João Del Rei e comissário da Inquisição. Acreditamos que a atuação deste comissário, por ele estar inserido numa posição estratégica da estrutura episcopal, pode revelar a maneira como as instâncias da justiça eclesiástica contribuíam para que o tribunal de Lisboa se fizesse presente nestes confins do império português.

O estudo é subsidiado, primeiro, pela documentação resultante da burocracia necessária à criação de agentes inquisitoriais. E depois, de maneira a evidenciar a atuação dos agentes, utilizamos o conjunto documental (cadernos do promotor e correspondências) diretamente relacionado às atividades persecutórias levadas a cabo pelo Santo Ofício contra os habitantes do Rio das Mortes. A atuação do comissário enfocado na segunda parte do texto será compreendida também à luz das provisões do Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana e das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia.

1 Pesquisa realizada no âmbito do projeto Inquirir da honra: comissários do Santo Ofício e das Ordens Militares em Portugal,1570-1773 (CIDEHUS, Universidade de Évora, PTDC/HAH/64160/2006 – financiado pela FCT), coordenado por Fernanda Olival e, no Brasil, dentro do projeto temático Dimensões do Império Português (FAPESP, 04/10367-0), coordenado por Laura de Mello e Souza.

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Familiares do Santo Ofício

De acordo com os regimentos inquisitoriais, os familiares exerceriam um papel auxiliar nas atividades da Inquisição, atuando principalmente nos sequestros de bens, notificações, prisões e condução de réus. Sem abandonar suas ocupações costumeiras, eles seriam funcionários civis do Santo Ofício e, caso fossem chamados pelos inquisidores – nos locais onde havia Tribunal – ou pelos comissários, prestariam a estes últimos todo o auxílio requerido e cumpririam as ordens que lhes fossem dadas.2

O Regimento de 1640 – em vigor até 1774 – estabelecia que as pessoas que quisessem se habilitar ao cargo de familiar deveriam ser abastadas de bens, saber ler e escrever, ter capacidade para guardar segredo ao realizar diligências, não ter ascendente condenado pelo Santo Ofício e principalmente “ser limpas de sangue”. Como se vê, a Inquisição não aceitava os descendentes de judeus, mouros, mulatos no seu quadro de agentes, pelo menos até a abolição da distinção entre cristãos-velhos e cristãos-novos por Pombal em 1773.

Resumidamente, três elementos tornavam a provisão de Familiar do Santo Ofício atrativa: a prova pública de limpeza de sangue que o título oferecia, os privilégios inerentes ao posto, e o fato de os Familiares serem representantes e servidores em potencial de uma instituição metropolitana do porte da Inquisição. A distinção social oferecida pela familiatura estava ligada principalmente à perpetuação – através dos estatutos de limpeza de sangue

– da fratura na ordem social portuguesa de Antigo Regime que separava, do lado positivo, os limpos de sangue (cristãos-velhos) e, do lado negativo, os de

“sangue infecto” (sobretudo os descendentes de judeus) (Torres e Olival, 2004).Ao todo, a comarca do Rio das Mortes abrigou 81 familiares.3 Eles

estavam concentrados principalmente em São João Del Rei, local de moradia

2 Daniela Calainho (2006) foi quem realizou o primeiro trabalho de pós-graduação sobre os familiares, demonstrando a relevância do estudo desses agentes para a compreensão da reali-dade colonial brasileira e realizando os primeiros levantamentos estatísticos sobre a rede. Além deste, podemos citar aqui o estudo aprofundado sobre os familiares de Pernambuco realizado por Wadsworth (2006). Em Portugal, um estudo decisivo sobre os familiares foi realizado por José Veiga Torres (1994), o qual abriu uma nova perspectiva para o estudo dos familiares: a da promoção social.  Sobre os familiares de Minas Gerais, ver nosso trabalho (Rodrigues, 2011). Luiz Fernando Rodrigues Lopes (2009), em seu trabalho de conclusão de curso, analisou os familiares da região de Guarapiranga, termo de Mariana, principalmente na perspectiva da micro-história. O autor continua essa pesquisa em sua dissertação de mestrado na UFJF. Para uma análise dos familiares na região do Rio Grande de São Pedro e na Colônia do Sacramento, ver Kuhn (1999). 3 Estes números se referem aos familiares que declaram residir nesta comarca no momento da habilitação. Não consideramos aqui os que para ali se mudaram depois de se habilitarem em outras regiões de Minas ou do império português.

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de 39 agentes. Nenhuma das outras localidades ultrapassou uma dezena de familiaturas. A vila de São José (atual Tiradentes) teve nove, Borda do Campo (atual Barbacena), seis, Carijós, cinco, Airuoca, quatro, Prados, quatro, e Campanha contou apenas com um familiar. Em 13 casos não foi possível especificar a freguesia de residência dos habilitados (Lisboa. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo [ANTT]. Inquisição de Lisboa [IL]. Termos de Juramentos e Provisões. Somente a consulta dos 81 processos de habilitação pode revelar a localidade exata onde residiam os habilitandos).4

Quadro 1 - Habilitação de familiares na comarca do Rio das Mortes

Décadas Número de Habilitações %

1721-30 2 2,5

1731-40 3 3,7

1741-50 11 13,6

1751-60 26 32,1

1761-70 22 27,2

1771-80 11 13,6

1781-90 5 6,2

1791-1800 1 1,2

Total 81 100,0

Fonte: ANTT – Arquivo Nacional da Torre do Tombo, IL (Inquisição de Lisboa), Provisões de nomeação e termos de juramentos, Livros 104-123.

A rede de familiares da comarca do Rio das Mortes era inexpressiva até 1740, pois contava com apenas cinco agentes. No decênio seguinte, 11 pessoas se habilitaram. O pico da curva é atingido no período entre 1750 e 1760, quando foram expedidas cerca de 60 % das familiaturas desta zona.

Rio das Mortes, com 81 patentes, foi a segunda comarca que mais abrigou familiares em Minas Gerais. Em um longínquo primeiro lugar aparecia Vila Rica, com 259 habilitações. Em terceiro, temos Rio das Velhas, com 64 familiaturas e, por fim, a comarca do Serro, com 30. A curva de expedição de familiaturas segue um ritmo parecido para todas as regiões, com pico em meados da centúria (Rodrigues, 2011:154-155).5

4 É provável que os números para São João Del Rei estejam ligeiramente superestimados, por talvez englobar os habitantes de lugares mais periféricos da comarca.5 Para um grupo de 23 familiares não foi possível especificar a comarca de residência.

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Apenas seis familiares da comarca em análise eram nascidos em Minas Gerais, quatro deles na própria região do Rio das Mortes. Os demais eram todos reinóis, quase sempre do norte de Portugal, sendo a esmagadora maioria do Minho. Apesar de o número de naturais da capitania ser um percentual ínfimo, chega a ser superior ao caso do termo de Mariana, por exemplo, onde apenas um familiar havia nascido na Colônia, de um total de 111 (Rodrigues, 2011:116-169).

Quanto à ocupação, ¾ deles atuavam no comércio! A maioria (44) declarou ser “homem de negócio” nas petições apresentadas ao Santo Ofício; sete disseram ser “mercador”, e oito “vive de seu negócio”.6 Eles se dedicavam sobretudo à comercialização de escravos, fazendas secas (ambos via Rio de Janeiro) e cavalos. Este último ramo de atuação era uma das especificidades dos familiares desta região, pois estavam numa importante porta de entrada do circuito que trazia os equíneos da porção sul da Colônia para a capitania (Zemella, 1990:60-61). Além dos comerciantes, encontramos quatro mineiros, três que viviam de suas fazendas, dois sapateiros e um que vivia de suas lavouras. Em três casos não foi possível identificar a ocupação. Dada a pujança da agropecuária nesta região na segunda metade da centúria, esperávamos encontrar nela familiares envolvidos com tal atividade no momento da habilitação. Fato que não se confirmou, pois apenas um deles “vivia de suas lavouras”. A consulta de seus inventários, testamentos e respectivos processos de habilitação poderia revelar se eles apenas se dedicaram ao comércio ou se foram diversificando seus investimentos em bens de raiz, tais como terras minerais e/ou roças. Na comarca de Vila Rica, região para onde pudemos aprofundar a análise em um trabalho anterior, constatamos que após um período bem sucedido no comércio, os negociantes passavam a investir principalmente em lavras e, em menor intensidade, roças. Alguns chegavam mesmo a abandonar a ocupação mercantil (Rodrigues, 2011:179-202). A ocupação dos familiares do Rio das Mortes está em sintonia com o perfil geral do universo de 457 habitantes da capitania que obtiveram a familiatura: 76,8 % eram comerciantes.7

Na região em apreço, seguindo o quadro geral para Minas Gerais,8 os familiares eram quase todos solteiros quando se habilitaram: 66. Apenas 10 eram casados, dois eram viúvos e em três casos não foi possível identificar o estado civil. Eles acompanham também uma tendência comportamental já identificada por Júnia Furtado em Homens de Negócio (1999). Segundo este trabalho, os comerciantes de Minas tinham uma inclinação para permanecerem

6 Para uma discussão em torno dessa questão, ver Rodrigues (2009). 7 Desse total, foi possível localizar a ocupação de 436 agentes, dos quais 335 eram agentes mer-cantis (Cf. Rodrigues, 2011:179-181).8 Identificamos o estado civil para um conjunto de 450 familiares da capitania, desses 92% eram solteiros, apenas 32 casados. No caso do termo de Mariana, cruzando documentos diversos, vimos que pouquíssimos se casavam depois da habilitação, o que não significa que vivessem a castidade, pois vários tinham filhos ilegítimos com forras (Rodrigues, 2011:173-179).

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solteiros e com “altos índices de filhos naturais e enjeitados” (Furtado, 1999:155). Um dos personagens estudados pela autora, João Pinheiro Netto, atuante em Vila Rica, desejava muito o título de familiar, tendo afirmado: “nesta terra é uma das melhores honras que há” (Furtado, 1999:225).

Notários

A rede de notários da Inquisição em Minas era composta por oito agentes, todos reinóis, tendo se habilitado um na década de 1740, quatro na década de 1760 e três na de 1750. A Comarca de Vila Rica contava com três desses agentes, a de Rio das Mortes, também com três, a de Rio das Velhas e a do Serro Frio com um cada (ANTT. Habilitações do Santo Ofício [HSO]; Inquisição de Lisboa, Provisões de nomeação e termos de juramentos, liv.104-123).

O primeiro notário da região do Rio das Mortes se habilitou em 1753. Era o padre Miguel Rabelo Barbosa, morador na vila de São José (atual Tiradentes) (ANTT. IL. Provisões de nomeação e termos de juramentos, liv.116, f.174). Em seguida, no ano de 1765, foi a vez do padre Julião da Silva e Abreu, morador em São João Del Rei (ANTT. IL. Provisões de nomeação e termos de juramentos, liv.119, f.174). E, por derradeiro, Lourenço José de Almeida, em 1766, que atuava no arraial de Serranos, mais ao sul da comarca (ANTT. IL. Provisões de nomeação e termos de juramentos, liv.119, f.297v). Nenhum deles era titular de benefício colado.

Nas partes relativas aos notários, os regimentos inquisitoriais só especificam as atividades desempenhadas por esses agentes na sede dos tribunais da Inquisição: passar certidões, comissões, róis e termos diversos. Eles tinham que ser “clérigos de ordens sacras que saibam bem escrever, de suficiência e capacidade conhecida para poderem cumprir com a obrigação de seu ofício; e podendo-se achar letrados, serão os preferidos aos mais”. Além disso, teriam as mais “qualidades” exigidas a todos os agentes inquisitoriais: ser cristão-velho de boas virtudes e comportamentos. A remuneração dos notários seria de um vintém para cada selo que colocassem nos papéis do tribunal do Santo Ofício e para o que escrevessem nos processos receberiam o que pelo

“promotor lhe for contado” (Regimento de 1640, Livro I, Tit. VII, Revista do IHGB, 1996).9

Para as atividades dos notários fora das sedes dos tribunais, caso dos que se habilitaram em Minas, não temos muitas informações a respeito da legislação que as regulava. No que toca à ação, encontramos apenas um deles agindo na capitania, e uma única vez. Trata-se do padre Julião da Silva e Abreu, o qual realizou uma denúncia envolvendo proposição e superstição

9 Daqui em diante, todas as vezes que referirmos aos regimentos da Inquisição, entende-se que utilizamos a versão publicada na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

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na freguesia da Piedade da Borda do Campo, em 1778 (Lisboa. Instituto dos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo [IANTT]. IL. Caderno do Promotor, liv.319, f.24). Mesmo que não tenham agido em nome do Santo Ofício de forma expressiva, os notários eram representantes do tribunal nas freguesias em que moravam. Além disso, desfrutavam da honra de pertencer a uma importante instituição metropolitana, como era a Inquisição, e ostentavam uma prova pública de que eram cristãos-velhos, já que tinham passado pelo processo de habilitação inquisitorial.

Comissários

Esses agentes eram a autoridade inquisitorial máxima na Colônia. Dentro da hierarquia dos agentes da Inquisição, estavam subordinados diretamente aos inquisidores de Lisboa.

Além das qualidades exigidas para todos os postos inquisitoriais – ser cristão-velho, sem ascendente condenado pela Inquisição, ter bons costumes

–, a ocupação do cargo de Comissário tinha como requisitos que os candidatos fossem “pessoas eclesiásticas, de prudência e virtude conhecida, e achando-se letrados serão preferidos”.

As principais funções dos comissários eram: ouvir testemunhas nos processos de réus; realizar contraditas; coletar depoimentos nos processos de habilitação de agentes inquisitoriais; fazer prisões e organizar a condução dos presos; vigiar os condenados que cumprissem pena de degredo nas áreas de sua atuação (Dos Comissários e Escrivães de seu cargo. Regimento de 1640, liv.I, tit.XI. Regimentos do Santo Ofício [séculos XVI-XVII]). Como os comissários não atuavam nas sedes dos tribunais inquisitoriais e acumulavam o cargo juntamente com outras atividades desempenhadas na qualidade de eclesiásticos, eles integravam o grupo de agentes inquisitoriais que não recebiam um salário fixo da Inquisição. Eles ganhavam seis tostões por cada dia que trabalhassem (Dos Comissários e Escrivães de seu cargo. Regimento de 1640, liv. I, tit. XI).

Minas Gerais teve 23 comissários do Santo Ofício durante o século XVIII. Eles estavam concentrados principalmente na região de Mariana porque aí se localizava a sede episcopal. Era onde estava a elite eclesiástica da capitania, assentada principalmente no cabido10 e nos postos da administração diocesana. Até a criação do bispado (1745-1748), Minas teve seis comissários, depois desse evento mais 16 agentes foram habilitados. A comarca de Vila Rica (onde estava o termo Mariana) teve, ao todo, 13 comissários; a do Rio das Velhas cinco; a do Rio das Mortes, três, e o Serro teve apenas um comissário (ANTT. HSO. Livros de Provisões, Termos e Juramentos, f.104-123).11

10 Sobre o cabido de Mariana, ver Boschi (2011:241-327).11 Realizamos uma análise mais aprofundada sobre os comissários de Minas em Rodrigues

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Eram todos reinóis que vinham para Minas em busca de suas igrejas rendosas (em termos de emolumentos e pés de altar, dentre outros) e das vigararias que estavam sendo elevadas à natureza colativa (passando a ser vigararias coladas), portanto, com pagamento de côngruas pela Coroa.12 Outra atração eram os benefícios do Cabido e os cargos da justiça eclesiástica e da administração diocesana. Oportunidades assim atraíram um grupo de clérigos reinóis bem formados, pois 13 deles – sobretudo os da zona central da capitania

– tinham passado pela faculdade de Cânones da Universidade de Coimbra.Como foi dito, a região do Rio das Mortes abrigou três comissários. O

primeiro que se habilitou foi Feliciano Pita de Castro. Nascido em Caminha (1719), província do Minho, era “fidalgo de sua majestade”, irmão inteiro de Sebastião Pita de Castro, inquisidor de Coimbra, e sobrinho, por via materna, de Fernando José de Castro, deputado do Santo Ofício. Portanto, era oriundo de uma família bem posicionada nas hierarquias sociais e acostumada aos serviços à monarquia e à Inquisição. O processo de sua habilitação não chegou a durar um ano, começou e terminou em 1752. Isto porque a sua ascendência já era conhecida pelo tribunal em virtude da habilitação de seu irmão inquisidor, em 1740. Feliciano requereu a patente de comissário depois que foi aprovado no concurso da Mesa de Consciência e Ordens para ser colado na igreja de Nossa Senhora da Piedade da Borda do Campo, pois quisera chegar ao Brasil já habilitado (ANTT. HSO. Feliciano, maço 2, doc.18).

O segundo comissário a ser criado na comarca foi José Sobral e Souza, em 1760 (ANTT. HSO. José, maço 85, doc.1252). Por ser vigário da vara de São João Del Rei, a principal instância eclesiástica da região, e ter tido uma atuação polêmica em nome do Santo Ofício, seu caso revela aspectos importantes da presença do tribunal naquelas terras. Por isso, sua trajetória e atuação serão analisadas com mais profundidade na segunda parte deste texto.

O último clérigo que se habilitou como comissário no Rio das Mortes foi Manuel Martins de Carvalho, em 1766. Ele era natural do termo de Covilhã, nascido em 1719, filho de um moleiro que também era lavrador. Pediu a habilitação em 1760 e esta foi aprovada seis anos depois. Em Minas, ele tinha conseguido a colação na igreja de Nossa Senhora dos Prados. Em sua petição ao Santo Ofício, alegou “não haver naquelas vizinhanças outros [comissários] mais que na distância de 13/14 léguas, que é o reverendo vigário de Congonhas, e da outra 9/10 léguas, que é o reverendo vigário de Borda do Campo” (ANTT. HSO. Manuel, maço 203, doc.1150).

Foge ao escopo deste capítulo a realização de um estudo abrangente da efetiva atuação da rede de agentes inquisitoriais que ficava assim formada na

(2009).12 Sobre a criação do Bispado de Mariana, ver Trindade (1953), Boschi (1986), Kantor (1996), Fonseca (2011:82-130).

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comarca do Rio das Mortes. 13 Na próxima etapa deste texto, recortaremos a análise para um deles. Sobre o quadro maior dos agentes, seria interessante uma pesquisa nos sumários e denúncias presentes nos cadernos do promotor da Inquisição de Lisboa com o objetivo de verificar o papel deles nas atividades desenvolvidas pelo Santo Ofício nessa região. A partir da sistematização de um levantamento precioso e exaustivo realizado nos cadernos do promotor sobre os casos relativos aos habitantes de Minas Gerais, Leônia Chaves, Mayara Januário e Natália Turchetti encontraram 39 documentos (de um total de 298) referentes às vilas de São João Del Rei e de São José Del Rei (Resende, Januário e Turchetti, 2011). A maioria dos delitos encontrados pelas autoras se refere à feitiçaria (oito), proposições heréticas (oito) e bigamia (seis).14 Outra possibilidade para esclarecer a atuação dos agentes inquisitoriais na região é a consulta dos processos de réus que ali residiram, depositados na Torre do Tombo, mas digitalizados e disponíveis na internet. Os róis publicados por Anita Novinsky (1976, 1992, 2001a; 2001b) listam vários processados de Minas Gerais, sobretudo os acusados de judaísmo.15

José Sobral e Souza – vigário da vara e comissário no Rio das Mortes: nascer em Trás-os-Montes, estudar em Coimbra e habilitar em Minas Gerais

O comissário José Sobral e Souza nasceu no dia dez de agosto de 1707, na comarca de Torre de Moncorvo, Trás-os-Montes, terra de origem de sua família (ANTT. IL. Provisões de nomeação e termos de juramentos, liv.118, f.96; ANTT. HSO. José, maço 85, doc.1252). Os padrinhos de seu batismo foram Antônio de Araújo Morgado e sua mulher Maria de Araújo. Seu pai, um ferreiro que vivia de seus bens, portanto um oficial mecânico bem estabelecido, chamava-se Félix de Sobral, era casado com Inês de Sousa, natural de São Lourenço da Lousã. O avô paterno era Pedro Sobral, natural de São Pedro da Vila de Alfândega, e a avó paterna Catarina Fernandes, natural de Torre de Moncorvo. Apolinário de Souza, natural de Santa Maria Madalena, vila de Vilarinho da Castanheira, era o avô materno, este casado com Domingas Gomes, da Torre de Moncorvo.

Antes de vir para o Brasil, Sobral fora para Coimbra e ali se formou em Cânones. Não temos notícia das circunstâncias de sua vinda para a América. É provável que ele tenha se inserido em Minas através do ofício de advogado, pois, em 1740, já morando na comarca do Rio das Mortes, solicitou provisão régia para advogar nos auditórios seculares (Arquivo Histórico Ultramarino [AHU]. Manuscritos Avulsos de Minas Gerais [MAMG]. Caixa 39, doc.65).

13 Uma análise da atuação dos familiares do Santo Ofício de Minas Gerais enquanto uma rami-ficação capilar do tribunal lisboeta pode ser encontrada em Rodrigues (2010). 14 Os demais são: curas (dois) sodomia (dois), superstições (um), e outros casos (12). 15 Todos os processos dos réus da Inquisição de Lisboa, portanto a que tinha jurisdição sobre o Brasil, estão digitalizados e disponíveis para consulta no site da Torre do Tombo.

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Posteriormente, em 1748, o encontramos na vigararia da vara de São João Del Rei, instância na qual havia obtido a ocupação de promotor e procurador da mitra, cuja provisão é datada de 12 de março de 1748 e sua validade era “enquanto não mandar o contrário” (Mariana. Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana [AEAM]. Livros de Provisões, 1748-1750, f. 25v.).

Neste período, o vigário da vara da comarca era Manuel da Rosa Coutinho. Temos notícia da sua atuação neste ministério desde 1738, quando Maria da Candelária, advertida pelo seu confessor, o procurou para denunciar Brites Furtada de Mendonça, acusada de ter proferido proposições suspeitas de heresia (ANTT. IL. Cadernos do Promotor, liv.295, f.62). No ano seguinte, Coutinho continuava no posto, visto que, por via dos comissários do Rio de Janeiro, tinha sido encarregado pelo Santo Ofício da prisão de Joaquim Pereira Vertes, o qual escapara depois de ter sido preso pelos oficiais da vigararia (ANTT. IL. Cadernos do Promotor, liv.310, f.328). A última provisão de Coutinho para a vigararia da vara é datada de oito de março de 1748, concessão do bispo dom Frei Manuel da Cruz (AEAM. Livros de Provisões, 1748-1750, f.20). A vigararia da vara desta comarca, ponto fulcral no sistema comunicacional diocesano, funcionava como um ponto nevrálgico para comunicação do Santo Ofício com a região numa época em que ali ainda não existia comissário.

Sobral foi promovido de promotor para vigário da vara em 1750. Não localizamos sua provisão inicial para este posto no Arquivo da Cúria de Mariana. A data mencionada está em uns autos que ele remeteu ao Santo Ofício, nos quais já se intitula como tal. Para um período posterior, encontramos uma provisão dele no posto de vigário da vara com data de 13 de janeiro de 1764, válida por um ano (AEAM. Livros de Provisões, 1763-1764, f.198v). Foi renovada no ano seguinte, embora infelizmente não tenha sido possível determinar sua validade, em virtude do mau estado deste documento (AEAM. Livros de Provisões, 1764-1765, f.13v).

É muito provável que a boa colocação do clérigo em questão na estrutura eclesiástica de Minas Gerais tenha sido, de alguma maneira, influenciada pela proteção que ele gozava na Corte do Cardeal Patriarca de Lisboa. É isso o que deduzimos a partir da leitura de uma carta escrita, em 1751, por dom Frei Manuel da Cruz àquele Cardeal:

Tenho nesta frota a honra de receber duas cartas de Vossa Eminência protegendo em uma ao reverendo doutor José de Sobral e Souza, e em outra ao padre Antônio Soares Freire cada um em diverso sentido dignos de tão abonada proteção. (...) Ao doutor José Sobral e Souza, conservarei na vigararia da vara da comarca do Rio das Mortes, lugar de honra e proveito, e o adiantarei para outra ocupação, se a houver melhor. (Leoni [Transcrição, revisão e notas]. Copiador de Cartas Particulares do Senhor Dom Frei Manuel da Cruz, Bispo do Maranhão e Mariana [1739-1762])

Além de sua de rede relações – na qual um dos vértices do sentido horizontal era uma figura capital como o Cardeal Patriarca de Lisboa –, a passagem

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pela universidade e a posse do saber jurídico foram capitais importantes que concorreram para que Sobral conseguisse colocação na vigararia da vara de São João Del Rei. Esta era a principal instância da justiça eclesiástica na porção sul da capitania. Certamente uma das mais importantes de Minas, dada a crescente relevância econômica da região e a sua distância em relação ao centro diocesano, situado no Rio de Janeiro até 1745 e, posteriormente, em Mariana. Os habitantes dali, quando dependessem da burocracia eclesiástica, certamente tentariam resolver o máximo que pudessem na sede desta comarca.

O parágrafo 399 do título IX do Regimento do Auditório Eclesiástico do Arcebispado da Bahia define muito bem qual era o papel dos vigários da vara: “para que os Bispos possam executar com maior diligência aquelas coisas que devem com seus súditos e mais vigilantemente satisfazer as obrigações de seu pastoral ofício, é necessário que deputem, e constituam Vigários da Vara em alguns lugares de sua diocese”. Quanto ao perfil desejado desses agentes, estabelece que “sendo possível serão letrados, ou pelo menos pessoas de bom entendimento, prudência, virtude, e bom exemplo, como é bem que tenham para o tal cargo”. Esta instância da justiça eclesiástica estava situada nas sedes das comarcas eclesiásticas que compunham a diocese, e ficava diretamente subordinada à vigararia geral, esta localizada na sede diocesana.

Considerado que a vigararia da vara era uma primeira instância da jurisdição eclesiástica, de abrangência local, havia uma série de limites às funções do vigário da vara. Ficava estabelecido que ele poderia tomar conta dos testamentos de pessoas que falecessem nos meses pertencentes ao juízo eclesiástico (janeiro, março, maio, julho, setembro e novembro). Tinha poder para “passar monitório e dar sentenças em causas sumárias de ação de dez dias ou juramento de alma até a quantia de dez mil réis”. Tudo poderia ser apelado à vigararia geral ou à relação eclesiástica da Bahia. A vigararia da vara deveria mediar também os conflitos de precedência nas procissões, cuidar dos bens da Igreja, e zelar para a jurisdição eclesiástica não ser usurpada no âmbito da comarca. Em vários outros casos o vigário da vara poderia conduzir os sumários e as devassas, mas deveria enviar os autos e papéis para serem sentenciados pelo vigário geral e titular das varas adjuntas, como a do juiz dos casamentos. Por exemplo, nos processos de casamentos de forasteiros, ele fazia sumário das testemunhas e remetia os depoimentos para ser sentenciado pelo juiz dos casamentos da sede episcopal.16

As provisões para o cargo de vigário da vara eram assinadas pelo provisor do bispado – que muitas vezes era também vigário geral – e sua vigência poderia ser anual ou “enquanto não mandar o contrário”, ou seja, indefinidamente, ao arbítrio do poder episcopal. Uma das provisões de Manuel da Rosa Coutinho para vigário da vara do Rio das Mortes explicita bem as funções desse agente:

16 Todas estas informações estão no título IX do Regimento do Auditório Eclesiástico, de 1704.

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A qual ocupação servirá bem e fielmente como convém ao serviço de Deus e ao nosso, e guardando em tudo o segredo da justiça e das partes assistindo a todas as suas obrigações com zelo e cuidado que da sua pessoa esperamos. E tomará conhecimento das causas que se lhe oferecerem exceto as de nulidade de matrimônio que ad thorum et vinculum, as quais somente preparará até estarem em termos de sentença que se remeterá ao nosso reverendo doutor vigário geral para por ele serem sentenciados, porém poderá fazer sequestros da pessoa e sumário. Não concederá a pessoa alguma presa alvará de fiança, nem dispensará em banho algum para se casarem pessoas deste bispado exceto as da Bahia Pernambuco, e Reino e mais partes fora do Bispado e em todas as causas crimes apelará para o ex-ofício para o nosso reverendo vigário geral, exceto nos casos de injúria e naqueles em que não tiver lugar a justiça e vagando alguma igreja a poderá prover de pároco em clérigo atualmente aprovado por tempo de três meses dentro dos quais nos dará conta para o mandarmos prover e por esta lhe concedemos a jurisdição digo lhe concedemos jurisdição concedida aos nossos reverendos vigários da vara. (AEAM. Liv.1748-1750, t.I, f.19.)

A pujança da comarca do Rio das Mortes na segunda metade do século XVIII tornava o cartório da vigararia da vara bastante rendoso. Por exemplo, por cada rubrica do vigário da vara nos “livros das igrejas, dos batizados, casamentos, mortos e confrarias” seria cobrado o valor de 2$400 réis. Para

“quaisquer sentenças cíveis ou crimes dadas a final em qualquer quantia que seja”, a cifra era de 1$500 réis.17 Os inquisidores de Lisboa resumem que o rendimento do habilitando José Sobral e Sousa girava em torno de quatro mil cruzados anuais. Além da vigararia da vara, ele possuía uma boa fazenda de gado vacum, atividade consentânea com a vocação econômica daquela comarca, ainda mais na segunda metade da centúria.18

Sobral requereu o posto de comissário no Santo Ofício em 1755. Após os trâmites iniciais, foi enviada uma comissão para a realização das diligências extrajudiciais em Minas. O objetivo era verificar se tal clérigo tinha capacidade para ser agente do Santo Ofício. Quem cuidou da diligência foi o comissário Feliciano Pita de Castro, vigário colado na igreja de Nossa Senhora da Piedade

17 Estes valores são apenas a título de exemplo, não significa que ele ficasse integralmente com o vigário da vara. Dada a inexistência de estudos sobre as finanças e a fiscalidade eclesiástica é difícil avançar nesta questão. Os exemplos foram retirados de: [Borrão de mapa do rendimento do bispado de Mariana, das chancelarias que se pagam na Câmara e nas comarcas de Vila Rica, Sabará, Rio das Mortes, Rio Verde, Pitangui e Serro do Frio] (In: Figueiredo e Campos, 1999:743-764, vol. 1). 18 Após a década de 1760, começaram a ocorrer profundas alterações na economia das Minas: a mineração paulatinamente foi perdendo o papel dominante que ocupara até então e a agropecu-ária, desenvolvida principalmente na Comarca do Rio das Mortes, passou a se destacar como a mais dinâmica das atividades econômicas da capitania. É importante dizer que essa “mudança era gradual e a transformação de uma economia predominantemente mineira em uma de supre-macia agrícola não significava que qualquer uma delas, a primeira ou a última, jamais tivesse sido excludente em relação à outra” (Maxwell, 1978:110).

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da Borda do Campo, o qual, após consultar algumas pessoas consideradas graves, emitiu parecer favorável às aspirações de Sobral.

Uma outra etapa do processo, as diligências judiciais de capacidade, aquelas em que as testemunhas depunham em juízo sobre o habilitando, foram realizadas em Minas pelo padre Matias Antônio Salgado. Este não era agente inquisitorial, teve comissão do Santo Ofício para atuar especificamente nesta diligência, na qual foram interrogadas quatro testemunhas, todas reinóis. Quem depôs em primeiro lugar foi Vicente Ferreira Álvares Evorende, doutor, natural de Évora, casado na vila de Mirandela, comarca de Moncorvo, região de origem de Sobral. Tinha 30 anos, morava em São João Del Rei, e conhecia os parentes do habilitando. Não disse nada que comprometesse a habilitação. O segundo depoente foi Ricardo Antônio da Veia, solteiro, morador em São João Del Rei e natural de Mirandela, de 36 anos de idade. Conhecia Sobral por “assistir com ele” em São João. A terceira testemunha foi o comerciante Domingos Álvares Chaves, natural da comarca de Chaves, com 38 anos, vivia em Minas de seus negócios. O último a falar do habilitando foi João Gonçalves Branco, natural de Santo Estevão, Arcebispado de Braga e morador em São João, de 56 anos, o qual conhecia Sobral havia 16 anos. Isso indica que o candidato atuou por um tempo relevante em Minas antes de pedir a habilitação no Santo Ofício.

A habilitação de Sobral foi aprovada em 1760. As custas do processo não foram altas, ficaram em 7$921 réis, isto porque ele já tinha um irmão habilitado no Santo Ofício como familiar, o que tornava supérflua uma parte da realização das provanças para verificar a genealogia de seus ascendentes. Portanto, menos papel circulando, menos agentes trabalhando, menos custo. Para se ter uma ideia, o processo do comissário José Simões, também de Minas, ficou em 22$920 réis (ANTT. HSO, José, maç.37, doc. 589). No caso dos familiares, a maioria (cerca de 70%) dos processos dos habilitandos de Minas custaram entre 10 e 30 mil réis (Rodrigues, 2011:114-115). Ainda sobre as habilitações para familiares da capitania, a maioria das habilitações (75%) durava entre um e seis anos para uma amostra de 111 personagens (Rodrigues, 2011:113-114). Caso alguma testemunha levantasse a suspeita de que o habilitando tinha sangue cristão-novo, essa duração aumentava bastante, bem como as custas, por causa das idas e vindas necessárias à investigação dos rumores. Daniela Calainho encontrou uma média parecida de duração (seis anos) para um grupo de 44 familiares do Rio de Janeiro (Calainho, 1992:50). O de Sobral durou cinco anos.

Após o desfecho positivo da habilitação, os novos agentes recebiam uma cópia do regimento de seu cargo e a medalha do Santo Ofício.

Ser um correspondente do Santo Ofício em São João Del Rei

A partir do registro geral do expediente da Inquisição de Lisboa é possível rastrear a participação de José Sobral no sistema de comunicação estabelecido

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entre o tribunal e a região do Rio das Mortes. Entre os 118 registros de correspondências expedidas para Minas Gerais, 12 foram para a comarca do Rio das Mortes. Sobral foi o agente desta circunscrição para quem os inquisidores mais enviaram comissões, seis registros, entre 1761 e 1766; período no qual os comerciantes desta zona mais estiveram sensíveis à familiatura. Em seguida, atuando num período um pouco mais recuado, entre 1754 e 1764, surge o comissário Feliciano Pita de Castro, de Borda do Campo, destinatário em cinco casos (ANTT. IL. Registro de Correspondências Expedidas, liv.23, f.85, 110v, 185 e 264). Além dos dois, só mais uma pessoa aparece nos registros para essa região. Trata-se do padre Antônio Caetano de Almeida, pároco na sede da comarca, em 1794 (ANTT. IL. Registro de Correspondências Expedidas, liv.24, f.241v).

A maioria das diligências para o comissário José Sobral e Souza é relativa aos processos de habilitação de pessoas que habitavam a região encabeçada por São João Del Rei e queriam obter a familiatura. Portanto, ele atuaria na entrada de outros sujeitos da comarca na rede de agentes inquisitoriais à qual ele já pertencia enquanto comissário.

No primeiro registro de correspondência, datado de 1761 (ANTT. IL. Registros de Correspondências, liv.23, f.185), ele foi responsável por realizar as diligências judiciais dos processos de habilitação para familiar do Santo Ofício dos minhotos Domingos Fernandes Gomes (ANTT. IL. Livros de Provisões, Termos e Juramentos, liv.119, f.54) e Manuel Fernandes Gomes (ANTT. IL. Livros de Provisões, Termos e Juramentos, liv.119, f.60), irmãos, filhos de Manuel Gomes, todos naturais de Barcelos. O primeiro era mercador e o segundo era mestre carpinteiro.

Sobral aparece pela segunda vez no registro geral do expediente no ano de 1763 (IANTT. IL. Registro Geral do Expediente, liv.23, f.241v.), quando ficou incumbido de conduzir as diligências judiciais da habilitação do padre Julião da Silva Abreu, residente em São João Del Rei, o qual acabou se tornando notário da Inquisição em 1765 (ANTT. IL. Provisões de nomeação e termos de juramentos, liv.119, f.174, habilitado em 1765). Neste mesmo registro, além desta comissão, o comissário deveria realizar ainda as diligências extrajudiciais de João Pedro Lobo de Araújo e do padre Lourenço de Almeida. Este último era natural do concelho de Lafões, bispado de Viseu, e em Minas residia no arraial de Serranos, Aiuroca, comarca do Rio das Mortes, tendo se tornado notário do Santo Ofício em 1766 (ANTT. IL. Provisões de nomeação e termos de juramentos, liv.119, f.297v). Era um dos três notários que a Inquisição possuia ao seu dispor nessa comarca.

No terceiro registro, de 1764, havia uma ordem de soltura e levantamento do sequestro de bens de Maria da Conceição Vergará, de alcunha a Maria Magra, parda forra, e José Coelho de Souza, homem viandante, ambos presos por ordem de Sobral, sem autorização do Santo Ofício (IANTT. IL. Registro Geral do Expediente, liv.23, f.264) (este caso será melhor analisado no próximo tópico).

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No quarto registro (IANTT. IL. Registro Geral do Expediente, liv.23, f.263), também de 1764, o comissário deveria inquirir judicialmente testemunhas em São João Del Rei que atestassem a capacidade de João Caetano de Abreu, homem de negócio, natural de Braga, para ser familiar (ANTT. IL. Provisões de nomeação e termos de juramentos, liv.119, f.253).

No penúltimo item, de 1765 (IANTT. IL. Registro Geral do Expediente, liv.23, f.276v), além de quatro diligências de habilitandos ao cargo de familiar do Santo Ofício, os inquisidores solicitaram que Sobral realizasse investigação sobre o segundo matrimônio de Francisco Verno, acusado de bigamia.

Por fim, no último registro em que o comissário de São João é destinatário, datado de 1766, ele deveria interrogar testemunhas de mais quatro processos de habilitação de comerciantes daquela comarca que pretendiam incrementar a rede de familiares da região (IANTT. IL. Registro Geral do Expediente, liv.23, f.307v).

No final da centúria, já não havia mais comissários em São João Del Rei. Sendo assim, em 1794, quando a Inquisição precisou investigar uma denúncia contra Romão Fagundes do Amaral, morador na jurisdição daquela comarca, na freguesia de Santana das Lavras do Funil, teve que contar com a ajuda do vigário Antônio Caetano de Almeida Vilas Boas. Para justificar a procura pelo pároco, apesar de ele não ser comissário do Santo Ofício, os inquisidores capricharam nos elogios:

Não obstante sabermos não ser vossa mercê comissário do Santo Ofício, nós lhe cometemos por sermos bem informados de sua gravidade, probidade, inteireza e exação com que aí exerce seu ministério, qualidades estas bem atendíveis para a dita diligência se fazer com toda a cautela, circunspeção e segredo que ela requer e pede o serviço do Santo Ofício. (IANTT. IL. Registro Geral do Expediente, liv.124, f.241v)

O vigário da vara e a vontade de cooperar com o Santo Ofício: antes da habilitação

Como vimos, o cumprimento das diligências remetidas pelos inquisidores de Lisboa, sobretudo as provanças para familiaturas e notarias, foi conforme o esperado pelo tribunal. No entanto, quando Sobral exerceu atividades em nome da Inquisição – sem ter autorização oficial para tanto – por sua livre iniciativa, elas foram marcadas por uma série de abusos e atropelos. Vejamos alguns exemplos que explicitam seu impetuoso zelo pela preservação da ortodoxia da fé e a vontade de demonstrar poder no contexto onde estava inserido.

A ânsia de José Sobral e Souza em cooperar com o Santo Ofício ficou manifesta logo no início do período em que esteve à frente da vigararia da vara da comarca, no ano de 1750, quando ainda nem tinha requerido sua habilitação

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ao posto de comissário. Ele informava Geraldo José de Abranches – este vigário geral em Mariana e comissário – sobre dois casos ocorridos em sua comarca eclesiástica. O primeiro era um desacato sacrílego cometido por Joana, cigana, na freguesia de Airuoca, extremo sul da dita comarca. O outro era o segundo matrimônio de Jacome da Silva com Ana Luiza da Silva, da freguesia dos Prados. Abranches ordenou que ele fizesse um sumário de testemunhas para cada denúncia e lhe remetesse os originais. Alegando as enormes distâncias dos locais onde residiam os denunciados em relação à sede da vigararia da vara, disse que não pôde concluir as diligências. Assim, escreveu uma carta de seu punho e anexou a ela o que conseguiu concluir, enviando tudo em seguida para a sede do bispado. O comissário de Mariana não hesitou em repassar os papéis ao tribunal de Lisboa e, até onde foi possível investigar, este caso não mereceu maiores atenções dos inquisidores, portanto não redundou em processo (ANTT. IL. Cadernos do Promotor, liv.304, f.79).

Um pouco depois, entre março e abril de 1754, um novo sumário era remetido ao Santo Ofício pelo vigário da vara de São João Del Rei. Desta feita, o denunciado era José Antônio Rosa, clérigo in moribus e sacristão da matriz. Segundo os autos, José dissera “que não havia inferno, nem fogo, nem tormentos e que o dissesse que o havia era estória, e para terror, que só sim que a pena que as almas tinham era o não verem Deus”. A proposição foi proferida diante de várias pessoas na casa do oficial de sapateiro Bento Francisco, o qual repreendeu a fala do clérigo argumentando que aquilo contrariava os santos evangelhos. Ele retrucou que “nos santos evangelhos se compunha e afetavam muitas coisas demais, o que tudo foi repetido por ele várias vezes”. A conversa que complicou o denunciado, tida havia cerca de um ano da denúncia, começou por conta da figura de uma alma condenada pintada em um papel que estava na casa de Bento Francisco. Este e seus camaradas oficiais de sapateiro colaboraram para que a denúncia fosse realizada. Colaborou também o padre Julião da Silva e Abreu, futuro notário da Inquisição (1765). Como no caso anterior, os papéis foram remetidos ao comissário de Mariana e este, por sua vez, os enviou ao tribunal lisboeta, afirmando: “ainda que do sumário não resulta prova plena, o deve vossa mercê remeter ao tribunal do Santo Ofício, sem prisão ou outro qualquer procedimento contra o denunciado” (ANTT, IL, Cadernos do Promotor, Livro 308, fl. 30-35).

Em 1754, outra vítima do ímpeto de Sobral foi Maria Madalena, “mulher parda ou bastarda”. A notícia que chegou aos ouvidos de Sobral foi que ela

“tinha enterrado debaixo da terra uma imagem do senhor crucificado, obrado coisas supersticiosas e feito vãs observâncias, todas dignas de exemplar castigo”. Sendo assim, no dia 28 de abril de 1754, com a ajuda do padre Manuel Ribeiro do Vale, que atuou como seu escrivão, chamou uma série de testemunhas à sua casa para tirar sumário da denúncia. Os autos foram remetidos ao Santo Ofício, onde o promotor classificou o seu teor como “desacatos e proposições”. O caso não passou daqui. Certamente Lisboa não tomou maiores providências

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em razão de não ter encontrado no episódio indícios consistentes de heresia (ANTT, IL, Cadernos do Promotor, Livro 308, fl. 20-28). Será que Sobral já tinha a intenção de se candidatar ao posto de comissário (o que ocorreria em 1755, com desfecho positivo em 1760) e, por isso, queria demonstrar seu zelo pela ortodoxia da fé católica?

As denúncias de Sobral iam para o Santo Ofício seguindo o circuito da comunicação diocesana. Ou seja, da vigararia da vara de São João Del Rei ela seguia, num fluxo ascendente, para a vigararia geral de Mariana, sede episcopal, e daí para o Rio de Janeiro, de onde, finalmente, prosseguia parar os Estaus.

Luiz Mott, em seu interessante estudo sobre Rosa Egipcíaca, demonstrou bem como a articulação entre a vigararia da vara de São João Del Rei e a Inquisição, com a interferência de dom Frei Manuel da Cruz, foi importante para levar a sua biografada aos cárceres do Santo Ofício (Mott, 1993:97-98, 101, 108 e 599).19

Depois da habilitação

Após sua habilitação como comissário, em 1761, os excessos de zelo por parte de Sobral na condução das denúncias e sumários não foram interrompidos. Por ser vigário da vara, ele tinha ao seu dispor um grupo de agentes do auditório eclesiástico, tais como o promotor, o escrivão e o meirinho. Essa autoridade consagrada ao nível local contribuía para que ele cometesse seus abusos e excessos. Sua posição era também centrípeta na comarca eclesiástica. Quando as pessoas desejavam descarregar suas consciências, seja denunciando a si própria ou a terceiros, ele era o canal mais imediato com as autoridades que geriam a ortodoxia da fé católica. Outro fator que colaborava para a hipertrofia do poder de Sobral era a distância da sua comarca de atuação em relação à sede diocesana. Longe dos seus superiores da hierarquia eclesiástica – como o bispo, os letrados do cabido e da vigararia geral, vários deles também agentes da Inquisição – sua autoridade na comarca do sul e seu poder de arregimentar clientela que ajudasse nos seus espetáculos de demonstração de poder aumentavam (Souza, 2006).

Após recorrentes episódios de prisão seguida de sequestro de bens dos acusados em nome do Santo Ofício, sem para tanto ter autorização do tribunal, os inquisidores de Lisboa decidiram retirar a provisão de comissário do Santo Ofício de José Sobral em 1766. A gota d’água foi o processo que ele moveu

19 Nesse mesmo trabalho, o autor realiza os primeiros levantamentos sobre os familiares e outros agentes inquisitoriais de Minas. Sobre as familiaturas, Mott fala em 64 agentes para o período que vai de 1718 a 1753 (Ver Mott, 1993:103). Estes números estão bastante subestimados, pois uma pesquisa que realizamos nos livros de provisões de nomeação e termos de juramentos da Inquisição de Lisboa revelou a existência de 199 familiares para este intervalo e 457 para o século XVIII (ANTT. IL. Livros de nomeação e termos de juramentos, f.109-123).

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contra Antônio Martins Teixeira, preso e sentenciado na vigararia da vara de São João Del Rei. Enfurecidos, os inquisidores escreveram ao comissário de Mariana, Inácio Correia de Sá, ordenando que retirasse a patente de José Sobral, acusando-o de ser “indigno e incapaz de tratar as causas gravíssimas da fé”:

Não havia para que demorar na prisão ao dito Antonio Muniz Teixeira, o que participamos a vossa mercê para que se lhe não estiver preso por outro crime, o faça por em sua liberdade. E logo escreverá ao dito José Sobral e Souza, pedindo lhe da nossa parte a provisão de comissário que tem do Santo Ofício, e depois de ter em seu poder a dita provisão, intimará ao mesmo que a vista do ignorante procedimento; que praticou no dito sumário e sentença que nos remeteu, o suspendemos e havemos por suspenso do emprego de comissário do Santo Ofício, como indigno e incapaz de tratar as causas gravíssimas da Fé. (IANTT. IL. Registro Geral do Expediente, liv.23, f.309)

Sobral saiu da rede de agentes do Santo Ofício, mas ainda permaneceu na vigararia da vara por um período alargado. Em 1773, ele criou problemas o governador interino do bispado recém-empossado, Francisco Xavier da Rua (AHU/Resgate-MG, caixa 104, doc.60).

Uma das atitudes de Sobral que mais irritaram os inquisidores foi a sua teimosia em manter presas as pessoas que ele desejava denunciar ao tribunal e, ainda, sequestrar os seus bens em nome do Santo Ofício sem ter ordens de Lisboa para tais procedimentos.

Para a análise das iniciativas do agente em questão é fundamental considerar que ele era um vigário da vara antes de ser um comissário do Santo Ofício, portanto sua autoridade em São João Del Rei advinha também da sua posição na jurisdição episcopal. Sendo vigário da vara, ele era a autoridade eclesiástica máxima no âmbito local. É provável que Sobral tenha sido influenciado – para além da força de seus impulsos, arbitrariedades e sede por demonstração de poder – pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia ao cometer seus exageros.

Este corpo legislativo, quando cotejado com os regimentos do Santo Ofício, apresenta um ligeiro descompasso em relação à legislação inquisitorial no tocante ao procedimento que devia ser adotado pela justiça diocesana ao se deparar com casos suspeitos de heresia em seu campo de atuação. Como já salientou Feitler, enquanto a legislação episcopal dava uma relativa autonomia aos agentes da jurisdição eclesiástica no que tange ao envio de denúncias, presos e sumários para a Inquisição, os regimentos inquisitoriais não previam assim tantas iniciativas no âmbito da diocese (Feitler, 2007:158-180).20 Talvez esse descompasso tenha contribuído para os atropelos de José Sobral.

Vejamos alguns aspectos legais desta questão. Em alguns pontos, as

20. O autor se baseou no regimento inquisitorial de 1613.

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Constituições especificam que os agentes episcopais poderiam remeter até os próprios suspeitos ao tribunal lisboeta, como no caso da sodomia: “os remetam ao Santo Ofício com os autos de sumário de testemunhas que tiverem perguntado”. Da mesma maneira no caso da bigamia: “serão da mesma maneira remetidos ao tribunal do Santo Ofício”. Em relação à feitiçaria, a legislação episcopal tende a coincidir mais com a inquisitorial: “avisarão os nossos ministros com todo o segredo e recato aos inquisidores do Santo Ofício, para que no dito tribunal se ordene o que se há de fazer”. O grau de autonomia conferido aos agentes da justiça episcopal para atuarem em nome do Santo Ofício aparece também nos casos suspeitos de blasfêmia herética: “nossos ministros darão conta ao Santo Ofício. E o que por aquele tribunal for ordenado, se cumpra com diligência, e se no entretanto lhes parecer convém prender os culpados, assim o executem”.21

Diferentemente das Constituições, que até previam o envio dos acusados ao Santo Ofício, a legislação inquisitorial estabelecia algo diferente, sobretudo no que toca ao envio de presos por iniciativas dos agentes episcopais. Primeiro,

as denunciações, que vierem remetidas pelos ordinários, serão logo vistas em mesa; e se os inquisidores virem que a matéria delas é de qualidade, que pertença ao Santo Ofício, e que as testemunhas foram bem perguntadas as mandarão ratificar, e perguntar as referidas; e parecendo que houve alguma falta no modo, com que se perguntarão, serão examinadas de novo, e ao Ordinário escreverão, que os autos lhes ficam, e que por aquela culpa não proceda contra o denunciado; e estando ele preso, e não sendo as culpas bastantes para o ser nos cárceres do Santo Ofício lhe dirão mais, que por aquelas culpas não há para que o detenha na prisão; e se contudo acharem que o conhecimento do caso lhe não pertence, tornarão a remeter os autos ao mesmo Ordinário donde vieram, dizendo-lhe por carta, sem fazer neles assento, que pelo que toca ao Santo Ofício. (Regimento do Santo Ofício, liv.II, tít.III. De como se hão de tomar as denunciações, §8)

No título seguinte, o regimento diz que “em nenhum caso se mandará fazer prisão alguma, sem mandado por escrito assinado pelos Inquisidores” (Regimentos Do Santo Ofício Português. Revista do HGB, 1996). A atitude do comissário de São João estava em desacordo com este tópico, pois, além de prender sem ordens de Lisboa, ainda sequestrava os bens de suas vítimas.

A tensão entre o comissário Sobral e os inquisidores aconteceu não porque a justiça eclesiástica entrasse em disputa com a esfera inquisitorial. Ela

21 Os casos passíveis de serem enviados ao Santo Ofício eram os seguintes: “casados que recebes-sem Ordens Sacras, e os que, depois de ordenados, se casassem” (Liv.I, tít. LXIX, §297); “feitiça-rias, sortilégios e superstições que envolverem manifesta heresia ou apostasia na fé” (Liv.V, tit.V, §903); blasfêmias consideradas heréticas (Liv.V, tit.II); “quem disser missa não sendo sacerdote e sacerdote que celebrando não consagrar sobre coisas acomodadas para se fazerem malefícios e sacrilégios” (Liv.II, tít.X); Judaísmo (Liv.V, tit.I); Bigamia (Liv.I, tit.LXIX, §297); Solicitação e Sodomia (Liv.5º, tít.XVI, §959). Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia.

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foi resultado mais de excesso de zelo do vigário de São João e de vontade de cooperar com o Santo Ofício. Como bem demonstrou José Pedro Paiva em seu mais recente livro, tudo isso era possível porque estas relações se inseriam num quadro mais amplo no qual a Inquisição portuguesa, com a iniciativa e apoio decisivo do monarca e do respaldo papal, se fortalece e vai monopolizando a jurisdição sobre os casos de heresia. Esta configuração ganhou força e se definiu principalmente na época do Cardeal Infante dom Henrique, no século XVI. Ela fazia parte de um projeto ideológico maior de preservação da ortodoxia da fé católica e de reforço do poder da monarquia. No âmbito do Direito, as heresias ainda continuavam na alçada dos bispos, tanto é que formalmente os prelados precisavam passar procuração aos inquisidores para votarem em seu nome junto aos demais membros do tribunal nos despachos de processos contra seus súditos. Na prática, o Santo Ofício ficou com a jurisdição sobre os suspeitos de heresia e o poder episcopal estabeleceu uma sólida relação de cooperação com a Inquisição em vários níveis (Paiva, 2011).22 Foi neste cenário que José Sobral e Souza – um agente da jurisdição episcopal habilitado no Santo Ofício – se moveu e exerceu o poder que acreditava possuir na comarca do Rio das Mortes.

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22 Em Minas Gerais, como vimos, a vigararia da vara de São João Del Rei, ponto importante do circuito comunicacional diocesano, foi fundamental para o funcionamento da comunicação entre o tribunal de Lisboa e a comarca. Pois os papéis da Inquisição costumavam seguir o per-curso por onde circulava a massa escrita diocesana. Portanto, isto revela mais um dos aspectos da cooperação entre o poder episcopal e o poder inquisitorial no âmbito das periferias.

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ANTT. HSO. Livros de Provisões, Termos e Juramentos, f.104-123. ANTT. HSO. Manuel, maço 203, doc.1150.ANTT. IL. Cadernos do Promotor, liv.295, f.62.ANTT. IL. Cadernos do Promotor, liv.304, f.79.ANTT. IL. Cadernos do Promotor, liv.310, f.328.ANTT. IL. Livros de nomeação e termos de juramentos, f.109-123.ANTT. IL. Livros de Provisões, Termos e Juramentos, liv.119, f.54. ANTT. IL. Livros de Provisões, Termos e Juramentos, liv.119, f.60. ANTT. IL. Provisões de nomeação e termos de juramentos, liv.116, f.174. ANTT. IL. Provisões de nomeação e termos de juramentos, liv.118, f.96; ANTT. HSO. José, maço 85, doc.1252.ANTT. IL. Provisões de nomeação e termos de juramentos, liv.119, f.174, habilitado em 1765.ANTT. IL. Provisões de nomeação e termos de juramentos, liv.119, f.297v.ANTT. IL. Provisões de nomeação e termos de juramentos, liv.119, f.253.ANTT. IL. Provisões de nomeação e termos de juramentos, liv.119, f.174.ANTT. IL. Provisões de nomeação e termos de juramentos, liv.119, f.297v.ANTT. IL. Registro de Correspondências Expedidas, liv.23, f.85, 110v, 185 e 264.ANTT. IL. Registro de Correspondências Expedidas, liv.24, f.241v.ANTT. IL. Registro Geral do Expediente, liv.23, f.241v.ANTT. IL. Registros de Correspondências, liv.23, f.185.DOS COMISSÁRIOS e Escrivães de seu cargo. Regimento de 1640, liv.I, tit.XI. Regimentos do Santo Ofício (séculos XVI-XVII). LISBOA. Instituto dos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo (IANTT). IL. Caderno do Promotor, liv.319, f.24.IANTT. IL. Registro Geral do Expediente, liv.124, f.241v.IANTT. IL. Registro Geral do Expediente, liv.23, f.263.IANTT. IL. Registro Geral do Expediente, liv.23, f.264.IANTT. IL. Registro Geral do Expediente, liv.23, f.276v.IANTT. IL. Registro Geral do Expediente, liv.23, f.307v. IANTT. IL. Registro Geral do Expediente, liv.23, f.309. MARIANA. Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana (AEAM). Livros de Provisões, 1748-1750, f.25v.AEAM. Liv.1748-1750, t.I, f.19. AEAM. Livros de Provisões, 1748-1750, f.20.AEAM. Livros de Provisões, 1763-1764, f.198v.AEAM. Livros de Provisões, 1764-1765, f.13vREGIMENTO de 1640, Livro I, Tit. VII. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, n. 392, jul./ set, 1996. REGIMENTO do Santo Ofício, liv.II, tít.III. De como se hão de tomar as denunciações, § 8.

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REGIMENTOS DO SANTO OFÍCIO PORTUGUÊS. Revista do HGB, Rio de Janeiro, n.392, pp.495-1020, jan./dez., 1996. Tít.IV, De como se há de proceder contra os denunciados.

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6.

Mazelas do cárcere: o atendimento de médicos, cirurgiões e barbeiros aos presos da inquisição de Lisboa

Georgina Silva dos Santos

Concebida para combater a heresia e emendar hereges, a Inquisição foi o tribunal mais temido pelos portugueses na época moderna. O rigor na condução dos processos contra os acusados por crimes religiosos e a pedagogia de convencimento baseada no terror renderam-lhe a fama de juíza implacável e raramente afeita a atos de misericórdia com seus réus, a despeito de sua divisa: Misericordia et Justitia. A natureza das atividades do Santo Ofício demandou, no entanto, cuidados para garantir a sobrevivência dos detentos que a instituição produzia.

Sujeitos à vigilância do alcaide e ao ambiente inóspito do cárcere, os presos da Inquisição contavam com o atendimento de médicos, cirurgiões e barbeiros do próprio tribunal. Previsto nos regimentos inquisitoriais, este serviço de assistência aos encarcerados doentes foi, em tese, uma prova do empenho do Santo Ofício para projetar sua imagem pública como uma instituição atenta às obras de misericórdia e, por conseguinte, obediente aos preceitos da Igreja.

Embora semelhantes em vários aspectos operacionais, o auxílio prestado aos detentos da Inquisição nunca foi uma extensão do modelo desenvolvido para a assistência dos réus processados pelos tribunais régios, no alvorecer dos tempos modernos. No cerne desta questão esteve, desde sempre, a distinção entre o atendimento necessário aos presos pobres da justiça régia e o tratamento cabível aos criminosos da justiça inquisitorial.

Dois pesos e duas medidas: pobres e hereges nas malhas da justiça

Ligado, intrinsecamente, à evolução dos órgãos da justiça régia e à organização do corpus legislativo que lhe deu suporte e sentido,1 o auxílio

1 O implemento, ainda na Idade Média, dos tribunais superiores da Relação e do Cível para arbitrar querelas, punir crimes e conceder perdões, fez-se acompanhar da proibição de cárce-res privados e da condenação ao ato de bradar para obter proteção jurídica de particulares. O coroamento desta política centralizadora deu-se com a promulgação das Ordenações do Reino

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prestado aos detentos deixou de ser um ato de caridade individual para tornar-se uma ação coordenada pelo Estado, com a criação da Santa Casa da Misericórdia, em 1498. Dirigida por gente fidalga, bem nascida, mas inspirada nos parâmetros da espiritualidade medieval, que “sacralizou a pobreza” e transformou a caridade em um instrumento de redenção dos ricos (Mollat, 1989:131-151), a confraria da Santa Casa tinha como propósito realizar as sete obras corporais da misericórdia: alimentar os famintos; saciar os sedentos; vestir os nus; albergar os peregrinos; enterrar os mortos; sustentar os encarcerados e resgatar os cativos. Deste rol, a assistência aos presos foi, no início, o principal objetivo das Misericórdias portuguesas (Souza, 1998).

O foco neste trabalho assistencial, num tempo em que Portugal se deparava com um vigoroso crescimento urbano e profundas alterações econômicas devido à expansão ultramarina, não deixa dúvidas de que a intenção da Coroa ao fundar a Santa Casa era justamente a de dar suporte à máquina jurídica do poder régio. A aceleração de vagas migratórias em direção às cidades litorâneas, conjugada à inflação promovida pela entrada de metais na Europa no século XVI, levou muitos à mendicância e à vadiagem e outros tantos ao endividamento (Dias, 1995:34, 103-104 e 135).

Identificados entre homens e mulheres sem senhor ou ofício por mais de vinte dias, os pobres que perambulavam pelas ruas sem destino foram transformados em infratores e identificados como vadios. Detidos pelas autoridades competentes por serem uma potencial ameaça à ordem pública, os vadios eram punidos com açoites públicos ou o degredo por um ano nas “partes d’Além [mar]” (Dos vadios. Ordenações Manuelinas, livro V, tit. LXXII, ed. 1786). Os “pobres envergonhados”, isto é, gente conhecida nas paróquias onde residiam e vítimas de desgraça financeira, recebiam, porém, outro tratamento. Tragados pela malha judicial do poder régio, esses presos desamparados acabaram por provocar a formação de um braço assistencial do Estado para que pudessem cumprir a pena imposta pelo poder público ( Goodolphim, 1998:46-49). Para atingir este objetivo, no intervalo dos cinco primeiros anos de existência da Misericórdia de Lisboa, a Coroa emitiu pelo menos quinze leis que deram exclusividade à Santa Casa no auxílio aos presos pobres ( Sá, 1998: 46), atribuindo à confraria o monopólio de vários serviços.

Assim, desde o seu nascedouro, a Santa Casa prestava assistência médica, jurídica, alimentar, sanitária, religiosa e funerária aos presos que fossem comprovadamente pobres. Responsabilizava-se pela limpeza da cadeia e distribuía, semanalmente, pão, vinho e carne para os detentos. De acordo com “a qualidade da causa e o estado da sua prisão”, a Misericórdia arcava com os custos do processo judicial do preso; a alguns, pagava as despesas do livramento; a outros, embarcava para o degredo, juntamente com suas famílias, provendo-lhes do que tinham necessidade; aos doentes, acudia com médicos,

(Oliveira, 1998; Duarte, s/d).

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barbeiros e boticários; aos que morriam na cadeia, a confraria dava um enterro digno; por fim, aos padecentes insepultos ao pé da forca, a Santa Casa recolhia as ossadas para levá-las a um campo santo.2 Este gesto, realizado, anualmente, na véspera do dia de finados, engendrava uma procissão solene, que reunia outras irmandades e toda a clerezia.

O campo de ação da Misericórdia estava, contudo, circunscrito às cadeias, ou seja, aos estabelecimentos prisionais ou equipamentos de detenção subordinados à administração régia. Os aljubes, prisões submetidas às autoridades diocesanas, e os cárceres, espaços de detenção controlados pelo Santo Ofício, estavam à margem da política assistencial patrocinada e dirigida pela Santa Casa. Enquanto nas cadeias os “pobres envergonhados”, vítimas do endividamento, despertavam a compaixão alheia e atos extremos de devoção religiosa, como o peditório dos irmãos da Misericórdia para comprar “o pam do pobre”, os presos da Inquisição não desfrutavam da mesma atenção, embora muitos fossem desprovidos de bens de raiz e ganhassem o sustento com dificuldades. Classificados como hereges, por serem partidários de outras crenças e costumes, os presos do Santo Ofício tinham a reputação manchada, atraindo mais o desprezo e a desconfiança do que a compaixão.

Produto da intolerância religiosa que caracterizou a formação dos Estados Confessionais na Europa Moderna, a criminalização dos credos estranhos à profissão de fé declarada pelo monarca incitou, no mundo ibérico, a demonização dos grupos sociais avessos ao catolicismo e à moral tridentina. Os cristãos-novos, alvo do proselitismo antijudaico das autoridades eclesiásticas, possuíam, em particular, um histórico de hostilidades. Os acusados dos crimes de bigamia, sodomia, feitiçaria, bruxaria, apostasia e outros delitos religiosos enfrentavam também as consequências de se insurgirem contra dogmas e sacramentos da fé católica. Todos amargavam uma temporada difícil nas celas da Inquisição.

Úmido, fétido e sombrio, o cárcere era ponto de chegada e de partida dos réus enquanto estavam sob a mira do Santo Ofício.3 No cárcere secreto, os presos viviam o transcurso de seus processos, choravam o destino que a Inquisição lhes impunha, sofriam com as feridas e contusões decorrentes da tortura. Uma vez julgados, aguardavam nos cárceres da penitência o embarque para o degredo ou a comutação de suas penas. Para além da tensão provocada

2 Como se pode verificar nos capítulos “De como ham de visitar os presos”; “De como ham de visitar os envergonhados”; “De como ham de arrecadar as esmolas”; “Dos pididores de Pam”;

“Da maneira que se ade ter cõ os que padecem per justiça”, do Compromisso da Misericórdia de Lisboa, datado de 1516 (apud Goodolphim, 1998:442-443, 446-447, respectivamente).3 “Título do Alcaide do Cárcere da Inquisição. Regimento da Santa Inquisição de 1552” (Revista dos Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1839); “Do alcaide do cárcere da Santa Inquisição” (Revista dos Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro 1839); “Das Casas do Despacho, audiências, secreto, oratório, e cárceres, e das coisas que lhes pertencem” (In: Regimento do Santo Oficio da Inquisição dos Reinos de Portugal, Revista dos Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,1839).

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pelas sessões de interrogatório dos inquisidores, o segundo maior desafio imposto aos presos era o de sobreviver ao ambiente inóspito da prisão, onde era quase impossível não contrair alguma enfermidade.  

Para evitar o óbito enquanto o preso encontrava-se sob a sua guarda e para garantir que cada sentença fosse cumprida, o tribunal mantinha, em seu corpo de funcionários, médicos para diagnosticar mazelas e prescrever mezinhas, cirurgiões para extrair abscessos e curar fraturas, e barbeiros para tratar com sangrias os achaques mais simples. A participação destes profissionais no elenco de oficiais da Inquisição foi modulada gradualmente, seguindo a evolução da própria instituição, cujo ápice é, sabidamente, o Regimento de 1640 (Regimento da Santa Inquisição de 1552, cap.115; Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal de 1613, tít.VI, item XI; Regimento do Santo Oficio da Inquisição dos Reinos de Portugal de 1640, liv.I, tít.XX).

Mencionados até então no conjunto dos procedimentos a serem seguidos perante um preso doente, estes oficiais receberam um título próprio nesta edição ampliada do regimento inquisitorial. Pouca conversa com os presos, presteza no atendimento e muita precisão nos laudos, era o que se esperava destes oficiais mecânicos e liberais. E é claro, todos deveriam ser naturais do Reino, cristãos-velhos de sangue limpo, sem raça ou fama de mouro, judeu ou gentio, homens de boa fama e costumes, capazes de se encarregar de negócios de importância e segredo.

As disposições regimentais que discriminavam a função de cada um desses oficiais estiveram, entretanto, sujeitas a adaptações na dura realidade dos cárceres. Quer dizer: as obrigações dos médicos, cirurgiões e barbeiros do Santo Ofício não fazem do serviço de assistência aos seus encarcerados doentes um exemplo de pontualidade e idoneidade. Na verdade, a preocupação do Santo Oficio em aparentar a eficácia do atendimento aos seus presos era maior do que a de assegurar sua eficiência.

Mazelas e mezinhas: o atendimento médico nos cárceres

O Regimento da Inquisição de 1640 previa que médicos e cirurgiões deveriam acudir prontamente todas as vezes que fossem chamados ao cárcere. O objetivo da norma não era exatamente o de assistir o preso o quanto antes, e sim o de permitir que o alcaide pudesse acompanhar as visitas e assegurar que as conversas não ultrapassassem os limites da consulta. Entretanto, tanto cirurgiões quanto médicos eram expressamente instruídos para ouvir os sentenciados com “paciência” e tratá-los com “caridade”, de modo que os próprios presos vissem o cuidado que o Santo Ofício tinha com sua saúde. Deste modo, deveriam mandar-lhes preparar as mezinhas e remédios prescritos para aplicá-las a tempo e, caso algum detento manifestasse alguma doença grave, era imperativo comunicar de pronto à mesa do tribunal, bem como informá-

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la a respeito da evolução da enfermidade, pois se o diagnóstico indicasse a iminência da morte, o confessor deveria ser acionado o quanto antes.

Previsto em regimento, o desvelo que a equipe médica dos cárceres deveria manter com os prisioneiros defrontava-se, todavia, com a insuficiência de recursos disponíveis e com o propósito da instituição. A Inquisição produzia seus próprios doentes. Submetia os acusados por crimes religiosos a uma enorme pressão psicológica, a violentas torturas e a duras penas corporais. Os médicos e cirurgiões, que recebiam um ordenado fixo para curar os achaques dos condenados, e acresciam aos seus proventos 80 réis em cada consulta prestada a um preso rico, cujos bens não haviam sido confiscados pelo Tribunal, eram os mesmos homens que presenciavam o tormento aplicado aos réus para atestar se poderiam ou não suportá-lo (Do médico, cirurgião e barbeiro. Regimento do Santo Oficio da Inquisição dos Reinos de Portugal de 1640, liv. I, tít. XX). Por outro lado, o tratamento dispensado aos enfermos nem sempre correspondia à terapêutica idealizada pelo regimento. As receitas que pressupunham a ingestão de algum medicamento eram praticamente inexistentes. Na prática, o remédio resumia-se à sangria executada pelo barbeiro que, ao fim e ao cabo, também tratava de outras moléstias, embora fosse contratado pelo Santo Ofício apenas para sangrar e barbear.

O resultado desta prestação de serviço, que transgredia os limites do saber de um único ofício, quase nunca tinha um final feliz. Em novembro de 1643, Margarida Vaz, presa nos cárceres do tribunal de Lisboa, sofreu na carne a imperícia do barbeiro Valentim Ferreira, que lhe extraiu um dos dentes e deixou as raízes retidas em seu maxilar. Como a detenta se contorcia em dores após o atendimento, o barbeiro foi chamado novamente aos cárceres para concluir a extração. Alegando que não tinha os “ferros” necessários, Valentim foi incapaz de corrigir o malfeito. Diante do imponderável, o alcaide dos cárceres apelou para a ajuda de um saca-mola de Lisboa para realizar o trabalho. Margarida foi conduzida pelo guarda José da Silva até a casa do próprio alcaide e lá o profissional, um estrangeiro, resolveu o problema (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, [ANTT] Inquisição de Lisboa [IL], liv.2, f.14).

O episódio foi registrado no livro pelo alcaide. Mais para notificar que Margarida fora tratada fora da cela, e que retornara a ela após o atendimento, do que para questionar a habilidade do barbeiro, pois, apesar de ter sido o pivô do transtorno, Valentim continuou cuidando dos encarcerados. Mas se os inquisidores de Lisboa pouco se importaram com as peripécias deste barbeiro e sangrador, os presos, por sua vez, passaram a rejeitar o oficial mecânico. Ao que tudo indica, Valentim estava entre os tais barbeiros que desconheciam a diferença entre uma veia e uma artéria. Além de tudo, era afoito pois, mesmo sem os instrumentos adequados, dispôs-se a faturar alguns réis macerando a arcada dentária de sua paciente. Todavia, para tranquilidade geral dos detidos, Valentim não era lá tão assíduo. Por isso, desde julho de 1639, passou a ser substituído, em casos de impedimento, por Manoel Cosmo, um barbeiro

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experiente, com mais de vinte anos de ofício e que tinha uma loja na Rua das Flores.

Mestre Cosmo desmentia a fama de ignorante que, em geral, os cirurgiões atribuíam aos barbeiros.4 Embora não fosse o titular do cargo de sangrador do Santo Ofício, dominava muito bem a arte de sangrar, tanto assim que conquistou depressa a confiança dos presos. Em 1641, quando por ordens expressas da mesa inquisitorial, o barbeiro Valentim retomou suas atividades nos cárceres, passou a dividir a meias as sangrias com Manoel Cosmo, que se tornara funcionário do quadro, ainda que sem provisão (ANTT. IL, liv.2, f.29).

Apesar dos relatos escabrosos sobre a qualidade do serviço de Mestre Valentim, o Santo Ofício conservou-o em seus quadros. Esta orientação em nada feria os ideais que presidiam a concepção e inserção administrativas da Inquisição. Os oficiais de seu corpo médico, ainda que compostos por notáveis da Corte e do Hospital Real de Lisboa, tinham como principal pré-requisito de admissão a pureza de sangue, valor capaz de superar a mediocridade de qualquer profissional. Afinal, se era este o ponto de partida para o ingresso no quadro institucional, como justificar perante o oficial sua exclusão por critérios meramente técnicos? O desligamento definitivo de qualquer barbeiro dos cárceres assumiria uma conotação adversa à estampa pública da Inquisição. Membros da Irmandade de São Jorge de Lisboa, estes homens escoltavam os presos até o altar da abjuração e exibiam às gentes da cidade que seus sentenciados eram alvo das obras da misericórdia inquisitorial.5 A desqualificação pública de qualquer um de seus membros comprometeria a efígie do tribunal.

A vigilância que a Inquisição mantinha sobre a produção e manutenção de sua auto-imagem ia, portanto, muito além da etiqueta a ser observada nas aparições públicas dos inquisidores, como deixa entender Francisco Bethencourt (Bethencourt, 1994:94-103). Incidia, outrossim, sobre o cuidado com a reputação do serviço de assistência prestado por seu oficialato.

Em 1699, o cirurgião-mor Manoel de Pina Coutinho viu-se incapaz de atender sozinho os presos do cárcere e requisitou ao alcaide que lhe solicitasse um companheiro para dividir a lida, porque apresentava sinais de “pouca saude”. A Mesa do Tribunal acorreu de imediato ao pedido. Em um rol de cinco nomes, João Curvo Semedo foi escolhido por “sua idade, experiencia, bom procedimento; muitos anos de antiguidade na habilitação com que exced[ia] aos mais; e aceitação com que [era] admitido a curar ha maior parte das caras mais illustres da corte” (ANTT. IL, liv.154, f.50; itálicos meus).

João Curvo já havia assistido os enfermos do cárcere a pedido do tribunal na ausência dos outros médicos da Inquisição, segundo consta, com “cuidado e

4 É o caso do cirurgião Manoel Leitão, que escreveu o tratado sobre a arte de sangrar mais lido em Portugal na época moderna (Leitam, 1667).5 Sobre o vínculo entre os barbeiros de sangrar e a Inquisição de Lisboa ver Santos (2005).

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fidelidade”. Era um médico afamado (Santos, 2004). Mas não se pode dizer que um dos outros concorrentes, João Bernardes de Moraes, médico da Casa Real, não o fosse. Entretanto, como a habilitação deste último merecia “reparos”, porque as diligências de seu processo para familiar suscitaram algumas dúvidas, o profissional foi preterido. Na verdade, João Curvo levou uma franca vantagem sobre os demais, porque manifestara sua adesão ao Santo Ofício havia mais tempo. Fizera seu juramento de obediência ao tribunal em 23 de setembro de 1672. Era o familiar mais antigo da lista de pretendentes ao cargo de médico dos cárceres do Santo Ofício.

A ressalva do tribunal à biografia do médico João Bernardes é mais uma prova de que os critérios de admissão para os funcionários do corpo médico da Inquisição iam além do currículo profissional do sujeito, fosse um oficial das artes liberais ou das artes mecânicas. Mas não se pode ignorar que o Santo Ofício se esforçava também para constituir um quadro médico de excelência. Por ordem expressa do Conselho Geral, tinha-se por princípio “escolher (...) os medicos de maior experiência, idade e aceitação pera cujo efeito provia regularmente os partidos da Inquisição no físico mor ou medicos da camera de sua magestade quando neles não havia impedimento” (ANTT.IL, liv.154, f.50).

A preocupação do Santo Ofício com a titulação e qualidade dos médicos e, portanto, do serviço assistencial prestado aos presos, visava, na verdade, dissimular os rumores da imensa crueldade dispensada aos réus. Cooptar adesões que ampliassem seu exército de familiares e assegurassem que sua ação persecutória fosse modelada realmente pela defesa da fé católica, implicava também em fazer crer que obedecia (verbo no singular porque estou me referindo ao tribunal do Santo Ofício) os preceitos do cristianismo. Era fundamental simular que usava de misericórdia junto aos condenados, fosse reintegrando à comunidade cristã aqueles que abjuravam das crenças e atos estranhos ao repertório de práticas e dogmas do catolicismo, fosse mostrando-se sensível à enfermidade dos condenados. Para demonstrar, no superlativo, que as penas impostas aos réus não eram uma repressão inconsequente dos comportamentos desviados de seu ideário, era necessário projetar uma estampa caridosa, capaz, inclusive, de respaldar as cenas de terror que orquestrava nos autos-de-fé.

A presença de médicos renomados cuidando dos presos rendia dividendos ao Santo Ofício, mas valia de quase nada para os próprios sentenciados. Primeiro porque a recuperação dos enfermos realizava-se, muitas vezes, fora dos cárceres, nos hospitais de Lisboa ou à custa da família do sentenciado. Segundo, porque o estado lastimável dos que tinham sido condenados às galés e aos açoites invalidava, de saída, qualquer possibilidade de recuperação e, sobretudo, porque a principal terapêutica aplicada era a sangria, executada pelo barbeiro, que tanto poderia ministrá-la a contento, como causar acidentes graves.

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As inúmeras petições dirigidas pelos presos que requeriam ao Santo Ofício a comutação de penas ou a licença para curar-se fora dos cárceres são, antes de tudo, uma radiografia da ambiguidade do discurso da Inquisição. Nestas fontes em que os presos registraram as atrocidades a que estavam submetidos, a justiça inquisitorial é mesmo o algoz, e sua misericórdia, assim como a fuga, os únicos meios de garantir a sobrevida. Particularmente quando se trata dos que receberam a condenação às galés, uma sentença antiga nos códigos legislativos das sociedades mediterrânicas, a princípio aplicada em substituição à pena capital, e que durante a Época Moderna obrigou os sentenciados da Inquisição Portuguesa ao remo forçado e/ou ao trabalho braçal nas obras públicas.6

Queixas e súplicas: o drama dos presos doentes da Inquisição

De todas as penas atribuídas aos condenados da Inquisição, as galés eram a sentença mais dura de suportar. Superada apenas pelo relaxamento ao braço secular, incidia exclusivamente sobre o gênero masculino e requeria uma resistência física que a grande maioria dos sentenciados conseguia manter por pouco tempo. Em 6 de fevereiro de 1718, os condenados das galés alojados na sua enfermaria encaminharam uma petição conjunta à mesa da Inquisição de Lisboa, alegando que estavam à beira da morte. Uns estavam tísicos, outros “éticos”, alguns padeciam “de dor de pedra” e os demais de outros males decorrentes da perturbação dos humores.7 Faltavam-lhes “os remedios necessarios para os ditos achaques” e as galés eram um lugar

“inconvenientissimo” para a recuperação. Como estavam todos abalados do corpo, “em tanto desamparo”, rogavam aos “pios sensorez pelas entranhas de Jesus Christo sua Santíssima Paixão e chagas”, que lhes concedessem licença para tratamento ou lhes comutassem o tempo de permanência nas galés para que não acabassem suas vidas tão miseravelmente (ANTT. IL, liv.154, f.340).

O Santo Ofício ouviu os suplicantes. Em 15 de setembro daquele ano, ou

6 Geraldo Pieroni (2000:30) afirma que o desaparecimento das galés em virtude do progresso da navegação à vela provocou a adaptação desta pena ao trabalho forçado nas obras públicas. Mas Nogueira de Brito (s/d:200), estudioso das técnicas de navegação, afirma que o termo galés – em-barcações com um número de quinze a trinta remadores –, remete desde os tempos medievais a navios diferentes: galeaças, galeões e galeotas. As galeotas, que se serviam de doze ou vinte remeiros, foram amplamente utilizadas nos séculos XVI e XVII pelos navegadores portugueses. Portanto, os presos das galés foram utilizados como mão de obra na navegação mesmo após o uso alargado das naus. Com frequência diziam-se “quebrados da cintura”, muito provavelmente em decorrência do esforço usado para remar continuamente (Cf. Pieroni, 2000:30; Brito, s/d: 200).7 Chamava-se “tísico” àquele que tinha febre lenta, tosse, escarros de sangue e apresentava palidez e grande perda de peso; equivale ao que se entende hoje por tuberculoso; “ético”, àquele acometido por febre ética, um sintoma de alguma doença nos “bofes”, fígado ou baço; por “dor de pedra” entendia-se a dor provocada por pedra nos rins ou na vesícula (Cf. Bluteau, 1712-1728).

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seja, sete meses depois, enviou às galés o médico dos cárceres para examinar os sentenciados. Manoel da Costa Pereira atestou com seus próprios olhos que era a mais pura verdade o que diziam. Com base no seu parecer, passados oito dias, os procuradores dos presos, João Alvares e Manoel da Cunha Pinheiro, relataram o estado de saúde dos dezoito condenados e atestaram que sete homens estavam incapacitados de cumprir a sentença. Entretanto, somente Bento de Araújo Souto Mayor obteve o beneplácito do tribunal.

A despeito de ser o único beneficiado, Bento não era um felizardo. Saíra no auto-de-fé de Coimbra, de 6 de agosto de 1713, e fora condenado a açoites e a dez anos de galés por ter proferido desacatos ao Santíssimo Sacramento. Já tinha cumprido metade da pena, quando lhe foram concedidos seis meses de licença para curar-se em sua terra. Segundo Manoel da Costa Pereira, médico da Câmara de Sua Majestade e do Santo Ofício, Bento Araújo estava tísico. Na verdade, não fora poupado do trabalho forçado nas galés simplesmente porque estava doente, mas porque seu mal era contagioso e poderia gerar uma epidemia, comprometendo o cumprimento das penas de outros sentenciados.

Nestes tempos, Antonio Nunes, que cumpria pena havia quatro anos também por desacatos ao Santíssimo, embora tivesse seis longos anos de pena pela frente, já estava “falto de forças” e o médico dizia que parecia mentecapto. Os procuradores sabiam que era um homem destemperado: havia ferido o guarda dos cárceres da penitência enquanto aguardava a homologação de sua sentença. Mas, louco ou não, a misericórdia do Santo Ofício não chegou a ele e muito menos àqueles cujos pedidos os procuradores não avalizaram.

A recusa do Santo Ofício em reconhecer a deficiência física e mental dos sentenciados às galés tanto desfaz qualquer suposição de que seu quadro médico existia para oferecer realmente um tratamento adequado aos presos, como autoriza a pensar que parte da mão de obra empregada para auxiliar as esquadras que partiam em direção às conquistas do reino era composta dos condenados da justiça inquisitorial. Atados a ferros, estes sentenciados remavam nas embarcações que saíam da Ribeira até virem partir suas virilhas ou até “ficarem quebrados da cintura”, com seus braços e pernas imprestáveis (ANTT. IL. Petição de Manoel Rodrigues Camanso, 8 de outubro de 1724. Liv.155, f.297). Na verdade, estavam fadados a cumprir uma sentença de morte lenta e gradual, e suas queixas estavam longe de serem ouvidas “com caridade e paciência”, como anunciava o regimento da Inquisição.

As galés tinham uma enfermaria, mas era insuficiente para atender a diversidade dos achaques. Tratava-se, antes, de um “pronto-socorro”, onde o cirurgião fazia curativos em feridas e apostemas, e o médico só visitava se intimado. Tanto assim, que os presos precisavam deixá-la para receber tratamento noutro lugar. Mas a concessão da licença era sempre uma dificuldade. Em certos casos, a Inquisição requisitava mais de um parecer médico.

Foi o que ocorreu com o preso Gaspar Dias Fernandes (ANTT. IL. Petição de Gaspar Dias Fernandes, setembro de 1728. Liv.154, f.591-593). Em setembro

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de 1728, por ordens do tribunal, o médico dos cárceres, Roque Costa da Silva, visitou-o porque tinha uma obstrução “cirrosa no baço”, que lhe exigia cuidados especiais. Posto que não o tinha feito, o problema agravara-se e o preso expressava um “temperamento melancólico”. Doutor Roque julgou que Gaspar, realmente, estava doente e que necessitava ir a outra parte para se recuperar “porque na dita prisão da galé tinha pouca comodidade”.

O Santo Ofício decerto considerou o parecer do perito, mas não o tomou ao pé da letra. Na semana seguinte, enviou outro médico. Ao contrário do colega, Manoel Batista da Cunha examinou o preso, medicou-o, mas não afirmou que era necessário removê-lo das galés. Para usar de precisão, sequer mencionou se deveria ou não ficar na Ribeira das Naus. Limitou-se a atestar que Gaspar já tivera uma paralisia, havia algum tempo, no lado direito do corpo, e apresentava novamente uma dor “veemente” e por isso fora sangrado. Como se tratava de uma “causa quente”, o médico dos cárceres mandou sangrá-lo mais uma vez e receitou-lhe leite para equilibrar os humores.

Com pareceres quase antagônicos, e só não o são de todo porque comprovaram que o preso estava adoentado, os médicos do Santo Ofício eximiram o tribunal de qualquer culpa pela eventual morte do preso, pois lhe prestaram atendimento. Mas foi Manoel Batista quem deu à Inquisição o que o ela queria ouvir: o prisioneiro tinha condições de cumprir sua sentença sem precisar deixar os limites a que fora confinado. Gaspar, portanto, não voltou ao Porto para rever sua família e teve que se conformar com o tratamento precário da enfermaria das galés. Aliás, um espaço disputadíssimo, onde era preciso contar com a sorte de um suplicante ou o azar de um moribundo para obter uma vaga, ainda que fosse apenas para tomar as purgas e o vomitório receitados pelo cirurgião.

O caso de Gaspar ilustra muito bem porque o Santo Ofício requeria para o cargo de médico um homem de sua confiança e que fosse ligado à Coroa. Os médicos faziam um segundo julgamento do preso com o aval do tribunal. Sua opinião era decisiva para que os sentenciados conseguissem ou não a comutação de sua pena, a redução de seu tempo de degredo ou simplesmente uma breve trégua do serviço pesado das galés. A assistência dos médicos, cirurgiões e barbeiros nas prisões era, portanto, um suporte fundamental para o funcionamento da Inquisição portuguesa. Estivesse o preso na enfermaria das galés, entre as úmidas paredes do cárcere da penitência ou na cadeia do Limoeiro, lugar onde os sentenciados do tribunal aguardavam o embarque para o degredo em alguma das colônias portuguesas.

Em termos regimentais, só havia um médico, um cirurgião e um barbeiro responsável pelo atendimento carcerário. No entanto, desde o século XVII o número de “supranumerários” e de substitutos de ocasião crescia a cada dia. Esta tendência, que se manteria no século XVIII,8 pode sugerir enganosamente

8 Em 1760, a Inquisição de Lisboa mantinha cinco médicos em seu quadro de funcionários. Cada

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um cuidado redobrado com a saúde dos sentenciados. Mas na verdade, era uma resposta efetiva ao crescimento da demanda, ou seja, ao aumento do número de prisioneiros e, com toda a certeza, uma solução para o vínculo intermitente que doutores, cirurgiões, barbeiros e outros prestadores de serviço mantinham com os cárceres.

Em junho de 1722, o preso Duarte Lopes Roza teve de suportar com paciência seus achaques até que aparecesse uma nova cristaleira para assisti-lo. Os remédios que lhe foram receitados deveriam ser precedidos por uma lavagem intestinal. A fulana que costumava fazer o serviço partira em romaria não se sabe bem para onde. Duarte foi obrigado a esperar que o Santo Ofício autorizasse a contratação de outra mulher que lhe aplicasse o clister para então cumprir a medicação prescrita (ANTT. IL, liv.156, f.45), pois estava sozinho na cela. Segundo a lei oficiosa dos cárceres, se Duarte tivesse um companheiro, seria este a atendê-lo.

A combinação de um ambiente inóspito com uma dieta alimentar que alternava apenas carne e peixe fazia da prisão um antro de doenças. Para que pudessem custear suas refeições, a Inquisição dava às mulheres quatro vinténs e aos homens um tostão, sem mais acréscimos. O valor para o pagamento das refeições só excedia esta média por ordem do médico, em razão de alguma convalescência. O regime era severo e a quantia quase nunca era suficiente para pagar o despenseiro (ANTT, IL, liv.817, f.53). Mesmo que os presos tivessem recursos próprios que lhes dessem a possibilidade de engordar a dieta, a doença atingia-lhes do mesmo modo, fosse por subnutrição ou contágio.

Não espanta, portanto, que a enfermidade tenha se tornado o principal argumento utilizado pelos detentos para abandonar, temporária ou definitivamente, a prisão. Sobretudo quando aguardavam na cadeia a chamada para embarcar para as terras onde cumpririam a sentença de degredo. O Limoeiro, particularmente, tinha sua fama de maldito. Suas febres eram

“malignas” e os próprios médicos afirmavam, sem acanhamento, que nesta prisão “todas as doenças [eram] perigosas pelos seus ares infectos” (ANTT. IL. Parecer do médico Pedro Esteves Ariol para a licença de Vicente de Carvalho em 22 de julho de 1747. Liv.827, f.358).

Entre os anos de 1639 e 1782, o principal argumento utilizado pelos presos alojados na prisão do Limoeiro, para solicitar ao Santo Ofício alguma licença médica, ancorou-se em alguma moléstia.9 A pobreza e a idade avançada também estavam presentes nos requerimentos, mas em uma proporção ínfima se comparadas à descrição de um quadro doentio grave e sem esperanças de

um recebia 10#000 réis (Cf. ANTT. IL.Caderno das Ordens do Conselho Geral. Liv.158, f.2).9 Cf. ANTT. IL, liv.1, f.157; liv.2, f.14, 32, 56, 64, 65, 66, 72, 102, 104, 103, 106, 107, 109; liv.151, f.596, 640, 658; liv.155, f.303, 308, 528, 586; liv.156, f.26, 351, 585, 591, 595; liv.158, f.93, 627; 628; liv.159, f.2, 42, 46, 47; liv.190, f.119, 125, 235, 245, 254, 258, 168, 308, 317, 320, 333, 335, 337, 347, 349, 353, 361, 383, 390, 396, 400, 406, 414, 420; liv.817, f.52, 61,82, 128, 152, 171.

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melhora. Em um universo de 66 petições encaminhadas ao tribunal, a ênfase em um quadro clínico débil está em 100% das cartas enviadas ao Santo Ofício. Quando a miséria e a idade de cada condenado constavam em alguns desses requerimentos eram, na verdade, para reforçar a solicitação de licença para tratamento, a comutação da pena ou mesmo o perdão da sentença. Apenas em onze pedidos estes dados integram as queixas dos condenados, ou seja, neste universo somente 7% dos presos se dizem idosos e pobres.

Seria impróprio afirmar que todos os sentenciados eram jovens ou que tinham um bom pecúlio. Na verdade, o destaque atribuído à enfermidade nos requerimentos indica que as chances de contrair qualquer doença nas prisões era bastante alto e, justamente por isso, o quadro clínico do preso era o único argumento capaz de funcionar como um atenuante jurídico diante da Inquisição lusa. Mas se, nas galés, a concessão de qualquer licença para tratamento era precedida de um parecer médico, no Limoeiro a obtenção deste pleito só era auferida depois que as tentativas de cura realizadas no local fossem esgotadas.

A cristã-nova Ana Ribeiro, de 20 anos, condenada, em 1741, a três anos de degredo em Cabo Verde, por culpas de judaísmo, só obteve dois meses de licença para curar-se de uma febre constante fora do Limoeiro depois de ter sido sangrada doze vezes (ANTT. IL, liv.190, f.383-389). Francisca Teresa de Carvalho, viúva, também cristã-nova, e condenada, em 1737, a cinco anos de degredo em Angola, pela mesma razão, foi sangrada oito vezes antes de receber autorização para curar-se de uma febre maligna e de uma secreção viscosa e ensanguentada, fora do Limoeiro (ANTT. IL, liv.190, f. 337-339, 341, 345). Pascoal dos Rios, condenado a cinco anos de degredo em Angola, também foi sangrado inúmeras vezes para livrar-se dos problemas respiratórios. Como deitava sangue pela boca e corria perigo de vida, foi-lhe concedida a licença médica de dois meses fora da cadeia para curar-se antes de cumprir a pena (ANTT. IL, liv. 190, f. 375-381).

Com graves indícios de tuberculose, Ana, Francisca e Pascoal foram retirados da cadeia com o aval da equipe médica para evitar a propagação do mal em larga escala. Mas no Limoeiro, ao contrário do que se passava nas galés, os presos dificilmente viam seu pedido de licença para tratamento negado pela mesa da Inquisição. A condenação às galés era mesmo uma sentença de morte lenta e, portanto, nos casos em que o sujeito ainda não havia cumprido a pena inteiramente, a soltura era injustificável. A cadeia era, em tese, um espaço de passagem para um preso da Inquisição. Além do mais, era um território onde o cuidado aos detentos era gerenciado pela Misericórdia de Lisboa, que também os presos do Santo Ofício.

Ana, Francisca e Pascoal não foram atendidos por um barbeiro da Inquisição, e sim por um mestre de sangria da Santa Casa. Os pareceres que foram encaminhados à Inquisição, recomendando o afastamento da cadeia para recuperação da saúde, foram assinados por Pedro Esteves Oriol, médico da Santa Casa, da Ordem Terceira de São Francisco e da enfermaria do Limoeiro. Pode-

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se supor que, nestes casos, a doença tenha falado por si mesma, uma vez que a ideologia da caridade presidia a Confraria da Misericórdia. Nestes casos, os presos foram vistos apenas como infratores doentes e não como hereges enfermos.

Izabel Josefa não teve a mesma sorte (ANTT. IL, liv.190, f.254, 279, 283-285, 287). Condenada ao degredo em Angola por culpas de judaísmo, adoeceu gravemente depois de algum tempo no Limoeiro. Deitando sangue pela boca, muito magra e sem forças, pediu a mesa do Santo Ofício para curar-se na casa de suas irmãs, pois se via incapacitada de cumprir o degredo. Manoel Nunes Costa, médico do Santo Ofício na prisão do Limoeiro, Roque da Costa e Silva, cavaleiro professo da Ordem de Cristo e médico dos cárceres do Santo Ofício, Manoel da Cunha, médico da Câmara da Casa Real, da Câmara dos Infantes e dos Cárceres do Santo Ofício e Manoel da Costa Pereira, médico da Câmara de Sua Majestade e Dos Cárceres do Santo Ofício, emitiram pareceres. Este último foi a favor da licença, confirmado o estado lastimável da presa. Um dos outros três, apesar de atestar a extrema debilidade da prisioneira, recordou à mesa da Inquisição, que se tratava de uma “judia” criminosa da religião católica.

Apesar da observação, bem ao gosto da ideologia inquisitorial, o Santo Ofício foi obrigado a deixar a moça recuperar-se fora da cadeia, pois precisava mantê-la viva para que cumprisse a pena fosse onde fosse. Mas o episódio mostra como os médicos eram porta-vozes da instituição que representavam. Logo, antes de ser tísica, Isabel Josefa era uma herege e ao invés de compaixão, despertava ódio e animosidade.

Considerações finais

Concluir, no entanto, que os presos da justiça régia, assistidos pelos médicos da Santa Casa, eram mais bem tratados do que os da justiça inquisitorial, seria um grande equívoco. Basta recordar os relatos sobre o ambiente de doenças da cadeia do Limoeiro e o tipo de terapêutica indicada para os detentos enfermos, tanto nos cárceres como na cadeia: a sangria. Embora fosse a técnica de cura mais recomendada e utilizada à época,10 o excesso de aplicações, em detrimento de outros remédios, coloca sob suspeita a suposição de um zelo extremado da Santa Casa com os prisioneiros. Mas é fato que seus médicos atendiam os presos usando apenas critérios técnicos.

Presente já nos primeiros tempos do tribunal e claramente definida no século XVII, a preocupação da Inquisição de Lisboa em formar uma equipe médica idônea para cuidar dos hereges doentes que pretendia recuperar, visava, na verdade, avalizar as práticas de tortura usadas nos interrogatórios

10 Usada para prevenir e remediar, a f lebotomia era empregada como anestésico, antiinflama-tório, antibiótico e até como abortivo. Com um amplo leque de recomendações, que incluíam desde simples cefaléias a tumores e hemorragias (Cf. Santos, 2005:269-276).

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e o tipo de confinamento que impunha aos seus réus. Ao oferecer, em tese, o melhor atendimento médico existente na cidade, o tribunal mascarava a responsabilidade sobre o doente que ele mesmo produzia, transferindo para o próprio preso a culpa da sua enfermidade e a autoria de sua debilidade física, moral e psicológica. Paradoxalmente, os mesmos homens destinados a manter a sobrevida dos prisioneiros nos cárceres e na cadeia, eram os únicos capazes de libertá-los do confinamento.

Fontes

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7.

Negócios entre “afins”? Penitenciados do Santo Ofício e agentes do Tabaco (Séculos XVII e XVIII)1

João de Figueirôa-Rêgo

Tabaco e Inquisição

O negócio do tabaco esteve na origem de um intenso trato comercial europeu, sobretudo a partir de finais da centúria quinhentista. Nesse pressuposto, os governos ibéricos aperceberam-se rapidamente que a aplicação de receitas fiscais, pela intervenção direta no tráfico através do sistema de monopólio,2 poderia propiciar um caudal financeiro não negligenciável.3

Contudo, tal fato, entendido pela historiografia “como rasgo típico del mercantilismo estatal” (González Enciso, 2008:), trouxe consigo outras realidades de cariz social, político e até confessional.

A 28 de Junho de 1721, dom João V atribuiu 500 mil réis anuais do Estanco do Tabaco às Inquisições de Lisboa, Coimbra e Évora (LISBOA. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo [ANTT]. Conselho Geral do Santo Ofício [CGSO], liv.42, f.76.). O Rei ampliava, assim, certa mercê anterior, datada de 31 de Outubro de 1718, precisando que “este aumento se pagará no rendimento do contrato do tabaco ou na Alfândega dele. Terá natureza de tença”. Esta prodigalidade do Magnânimo vinha, também, no seguimento de outra benesse atribuída ao Santo Ofício, em 1720, referente ao pagamento de propinas aos ministros e oficiais da Inquisição de Lisboa, por ocasião do auto da fé no Estanco do Tabaco (ANTT. CGSO, liv. 363, fólio não numerado, data: 1720/07/12).

No entanto, os primórdios da relação da Inquisição Ibérica com o tabaco estiveram longe de ser pacíficos. O Santo Ofício cedo entendera que o hábito do fumo era pernicioso e, nessa suposição, terá condenado os fumadores,

1 Trabalho elaborado no âmbito dos projectos: IRSES (Call: FP7-PEOPLE-2012-IRSES), PTDC/HIS-HIS/118227/2010 e HAR2012-34535.2 Veja-se, a propósito González Enciso (2006) e Ferri (2006).3 Num período de aproximadamente duzentos anos (1600-1800), terá rendido cerca de 426 mi-lhões de cruzados à Coroa de Portugal (Cf. Nardi, 1987:73).

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impondo severo e exemplar castigo  “a todo aquel cristiano que con maléficas artes inhale y expela humo por cualesquiera de sus orificios naturales, utilizando para ello la planta del tabaco” (Aspell, 2006). Para o tribunal tal procedimento andaria associado a práticas de feitiçaria e afins, como já foi sublinhado por alguns autores (Cf. ANTT. Inquisição de Lisboa [IL]. Caderno do Promotor, 129, liv.318, f.490 a 494 apud Souza, 2009:80; ANTT. IL. Processo n.13325 apud Cruz, 2010).

Talvez por isso, as recomendações para que se procedesse no seio da Igreja católica com toda a decência suscitaram a atenção de vários arbitristas e prelados. Caso de dom Sebastião de Matos de Noronha, Arcebispo Primaz das Espanhas – antes Inquisidor de Coimbra (1617) e Deputado do Conselho Geral do Santo Ofício (1622), mais tarde presidente do Desembargo do Paço

– que nas suas disposições de 1637 (A.D.B. Livro das Cartas dos Arcebispos de Braga, 1426-1725. T.7, s/n [carta datada de Fevereiro de 1640]) e a 1 de Junho de 1638, por ocasião de uma visitação ao Mosteiro de São Salvador da cidade de Braga, alertou os membros da comunidade religiosa para que “não tragam facas, armas nem tomem tabaco” (A.D.B. Livro das visitações das religiosas do mosteiro de Salvador desta cidade de Braga, 1620/1808, f.31).

As próprias relações entre a Inquisição, as hierarquias diocesanas, os gerais das ordens monásticas e a administração dos tabacos, tanto em Portugal como em Espanha, conheceram atritos recorrentes, a suscitar mesmo a intervenção de Roma (ANTT. Junta da Adminstração do Tabaco [JAT]. Consultas, maço 1, doc.92). Tudo isso por culpa do descaminho praticado pelos membros do clero (regular e secular)4 que, a despeito de ordens régias em contrário e da ameaça de sanções severas, produziam tabaco nas cercas conventuais. Situação essa fortemente penalizante para os interesses de contratadores e estanqueiros, com reflexo evidente nas receitas fiscais das fazendas régias.

Contudo, para lá das questões de reserva levantadas pelos magistrados inquisitoriais, o aparelho do Santo Ofício não deixava de tirar partido de outras conveniências associadas ao movimento tabaqueiro. Assim, por exemplo, “o transporte de tabaco para a África, Índia e Europa serviu como alternativa para envio de correspondências e presos [da Inquisição] da Bahia para outros pontos do Império Ultramarino Português e vice-versa”, conforme atestam inumeros recibos passados por capitães de navios (ANTT. Inquisição de Lisboa [IL], Avulsos, maço10, doc.23 e doc.31 apud Souza, 2009:80).

4 O contrabando praticado pelos eclesiásticos foi amplo e diversificado, a título de exemplo, veja--se Barreiro Mallón (2009).

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Os Fumos da suspeita…

“Desde sábado pasado, 11 de éste, ha preso la Inquisición en esta corte 17 familias de portugueses (…) Lunes 13 a media noche prendió la Inquisicion 14 portugueses tratantes, hombres de negocios, en particular dos tabaquistas (…)

Tienese por cierto que no hay portugués ni alto ni bajo que no judaize en Madrid. (…).

No queda tendero de tabaco en Madrid que no lo prenda la Inquisición. Estos días han llevado dos familias enteras, padres e hijos y otros (…)

Miércoles 14 (…), prendió la Inquisición cuatro portugueses que tenían tiendas de tabaco.”

Avisos de Don Jerónimo de Barrionuevo, 1654-1658  (15 e 18 Setembro, 23 Outubro de 1655 e 21 Março de 1657)

Madrid, Atlas, 1968:191, 210, 232, , t. I.

Como se infere dos Avisos de Barrionuevo deixados na epígrafe, o temor inquisitorial não se ateria aos consumos, mas sim aos perfis confessionais dos negociantes de tabaco. Como decorrência disso, até a procedência geográfica contribuía para alimentar a desconfiança. Ser português era ser suspeito de judaizante, ainda que, na realidade, não se tivessem antecedentes judaicos ou sequer antepassados processados pelo Santo Ofício.

Em boa verdade, entre 1634 e finais da centúria, o predomínio de portugueses entre os contratadores das rendas reais parece coincidir com o teor das listas dos processados pela Inquisição.5 Situação que nos remete para a intensa mobilidade conversa vivida desde finais do século XVI e protagonizada por mercadores, negociantes e financeiros. De fato, “La Unidad Ibérica realizada en 1580 les ofreció una oportunidad que no fue desaprovechada, muchos emigraron con familias y bienes a Madrid, Sevilla, y otros grandes centros mercantiles” (Dominguez Ortiz, 1971:62). Ocorrência que, decerto, não escaparia à percepção dos centros políticos ibéricos. Tanto mais que estes estariam particularmente conscientes do papel crucial desempenhado por esse importante núcleo de homens de negócio (Silva, 1957:5, n. 27).6 Até porque

“esta situación alcanzó su punto culminante con Felipe III y más aún con Felipe IV y Olivares” (Sánchez Lora, 2011). Prova disso são as numerosas “‘pretensiones de vecindad, legitimaciones y naturalezas’ correspondientes a la villa de Madrid” (Archivo Villa de Madrid [AVM]. Secretaria, legajos 2-346, 2-347, 2-348 y

5 No cômputo geral, tendo por base a ação do tribunal inquisitorial de Llerena entre 1630 e 1679, cerca de 66,9% dos processados eram originários de Portugal ou tinham essa ascendência. 6 Nesse sentido, “Portugal era la cuna de un colectivo muy dinámico que había sido capaz de tejer una amplia red comercial por todo el mundo y de generar los suficientes excedentes de capital para convertirse en arrendatarios de las rentas de la Corona lusa, es decir los judeoconversos” (Carrasco Vázquez, 2005:8).

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2-349 apud Pulido Serrano, 2003). O que terá a sua lógica justificativa numa constatação encontrada pela historiografía: é que “a los intereses económicos

- primordiales - se unían las facilidades que tenían en Castilla para lograr el ascenso social por medio de la compra de cargos públicos e, incluso, les podía ser más fácil conseguir la limpieza de sangre” (Miralles Martínez, 2003:505). Apesar do desconcertante reflexo do apoio dado a Olivares, a partir de 1628, pelos conversos portugueses sediados em Sevilha, os quais “a través de sus redes comerciales, praticaran un intenso contrabando” tabaqueiro (Luxán Meléndez; Gárate Ojanguren, 2010:158).7 Não obstante isso, a influência desses núcleos mercantis era uma realidade incontornável desde 1600/1606 e “de ella se hacía eco el Duque de Lerma, quien en una carta al archiduque-cardenal Alberto de Austria habla del sustento que los mercaderes portugueses daban a la economía europea”(Pérez, 2005:89). De fato, como bem precisa Joseph Pérez,

“las autoridades sabían que la economía de los conversos portugueses podía jugar un papel relevante si se les daba un mayor protagonismo del que hasta la fecha habían alcanzado durante el reinado de Felipe II” (Pérez, 2005:89).

Tratava-se, portanto, de um naipe de matérias sensíveis e a justificar intenso cuidado no modo como eram abordadas. Isto, muito especialmente nos períodos de maior aperto financeiro.8

Fosse como fosse, a conveniência político-econômica não casaria inteiramente com a condição jurídica dos conversos (em especial com a dos cripto-judaizantes). Nesse pressuposto, o Santo Ofício, que se regia em função dos seus ritmos e interesses, mantinha uma vigilância constante em torno da mobilidade de grupos mercantis, em particular, daqueles que circulavam entre as zonas fronteiriças e os portos marítimos. Era o caso dos agentes do tabaco. O tribunal suspeitava que, atrás de cada estanqueiro, se escondesse um seguidor da fé mosaica e que as redes de negócio estimulassem uma dinâmica proselitista.

Contudo, a Inquisição, ao perscrutar e registrar a atividade dos suspeitos estava, sem o saber, a cartografar a estrutura da renda do tabaco. Ainda que, na realidade, o universo global dos agentes do fumo possa ser um pouco distinto daquele estereótipo alardeado por Barrionuevo, depois veiculado pela historiografia9 e a que o próprio tribunal não ficava imune. É que a aparente conexão entre portugueses, contratadores de tabaco e cristãos-novos (leia-se judaizantes), embora marcante, talvez não fosse tão absoluta quanto a imagem veiculada à época.

Por esse motivo importará sondar os meandros judiciais dos processos

7 Veja-se a propósito Hanson (1982).8 Para um olhar global sobre este período veja-se Serrano (2007); para a questão inquisitorial ver López-Salazar Codes (2010).9 Sobre os judeo-conversos de origem portuguesa, assentistas de rendas reais na Espanha, ver Ortiz (1983:121-133).

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levantados aos suspeitos na Fé, assim como averiguar de que forma se articulavam com a construção de alegadas redes sócio-confessionais em torno do tabaco.   O que, desde logo, não se prefigura tarefa fácil. Pois, de acordo com Pilar Huerga (1994), as migrações na zona de fronteira entre Portugal e Castela implicaram sempre certa dose de desagregação. Segundo aquela autora, os fatores econômicos, a par dos confessionais, teriam sido determinantes no trânsito entre os dois principais reinos ibéricos.

No entanto, arrisque-se pensar que essa pressentida dispersão territorial de parentelas acabava, na prática, por conduzir ao alargamento das suas próprias redes de influência. Aliás, para muitos cristãos-novos, Castela teria sido, apenas, um primeiro passo rumo a outras paragens. Tal circunstância não anula o fato de, num dado momento, Madrid e Sevilha terem constituído destinos prioritários no êxodo dos homens de negócio portugueses, de origem conversa (Domínguez Ortiz, 1960; Aguado de Los Reyes, 2005). Em relação à cidade andaluza acrescente-se que “la estructura del comercio judeoconverso no era muy distinta del resto de las comunidades extranjeras que se movían en Sevilla durante este período, si bien podría apuntarse una especial dedicación al tabaco o a la trata de esclavos” (Aguado de Los Reyes, 2011). Essa situação coaduna-se com a circunstância de, a breve trecho, tais atividades terem passado a estar interligadas. De fato, em 1637, os holandeses, apoderaram-se de uma possessão portuguesa na África ocidental, a antiga feitoria de São Jorge da Mina, passando a controlar o tráfico mercantil naquela região. Nos termos do tratado de Haia, assinado em 1641, Portugal viu-se inibido de comercializar certas mercadorias, já que a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais chamara a si o monopólio do comércio de produtos europeus. À referida interdição escaparam apenas os rolos de tabaco da Bahia e alguns gêneros menores. Em consequência disso, o fumo passou a ser o principal instrumento de troca no escambo dos escravos na Costa da Mina.10 Outra particularidade do dito tratado assentava no fato dos súbditos do Príncipe de Orange não

10 No século XVIII, teriam sido levados do Golfo do Benim para a Bahia e Pernambuco cerca de 575 mil africanos escravizados, principalmente em troca de tabaco, em mais de 1400 viagens, cifrando-se em mais de 8 milhões de arrobas o tabaco transacionado (Cf. Alencastro, 2000:324). Veja-se ainda Verger (1987:19-20 e Schwartz, 1998:109). Também o Rio de Janeiro participou neste escambo, como se depreende da seguinte missiva: “Faço saber a vos Dom Manoel Rolim de Moura, Governador e Capitão General da Capitania de Pernambuco que se viu o que me reprezentastes em carta de seis de dezembro do ano passado que a esse Porto tinhão ido três Embarcações do Rio de Janeiro buscar carga de tabaco para irem à Costa da Mina negociar, e du-vidando vós dar-lhes licença para se porem à carga, vos fora apresentada uma carta minha, que se acha registada na Camara, pela qual sou servido que nesse Porto carreguem para a dita Costa, ser serem obrigados a dar fiança” (Lisboa, 19 de outubro de 1724; Cf. “Sobre se nam levar Tabaco para a Costa da Mina senão de ínfima espécie. Informação Geral da Capitania de Pernambuco (1746)”, Revista da Biblioteca Nacional, 1908:203).  Na verdade, a melhor variedade de folha, que vinha da região de Cachoeira, terá produzido em 1726 cerca de 20.000 rolos, reputados como sendo os melhores e destinados a Portugal, além de outros tantos de qualidade inferior, os quais deviam ser exportados para a Costa da Mina e empregues no trato dos escravos.

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poderem ser levados perante a Inquisição por motivo da sua confissão religiosa. Contudo, como notou Ronaldo Vainfas, “vale dizer que os tais súditos da Casa de Orange protegidos pelo acordo eram basicamente os judeus portugueses transferidos de Amsterdã para o Brasil” (2009:87).

No seguimento do que foi dito sublinhe-se que a articulação do negócio tabaqueiro – que estabeleceu triangulações privilegiadas entre Portugal, Espanha e Holanda – e a mobilidade conversa rumo aos principais centros mercantis hispânicos, adquirem, por esta via, o seu nexo justificativo. Num contexto econômico e político muito específico, note-se (Cf. Alloza Aparicio, 2003; 2009; López Belinchón, 2001). Sem esquecer outro aspecto, já sublinhado por outros autores, o da ramificação dessas redes mercantis conversas não só à Holanda (Cf. Anaya Hernández, 2007)11 – não obstante os particularismos inerentes (Cf. López Martín, 1998) – como à América hispânica12 e, por via dos estados italianos, rumo ao Levante (Cf. Schmidt, 2007:43-63).13 Apenas um exemplo a ilustrar tal realidade: o dos Fernandes Gramaxo, cristãos-novos portugueses passados a Cartagena de Índias. Estribados em afinidades vagamente parentais, desenvolvem uma atividade que “no sólo prueba algunas prácticas fraudulentas para introducir negros sin registro, sino también operaciones comerciales en tabaco con otros Gramajos de Caracas o de Trujillo” (Ruiz Rivera, 2002:24, n. 33).14 Escolheu-se este caso, não de modo aleatório mas por, á época, ter configurado um problema sério para alguns setores. De fato, segundo uma relação de 1630, dos cerca de 184 estrangeiros residentes em Cartagena, 154 seriam portugueses (Ruiz Rivera, 2002). Situação cujas eventuais implicações foram denunciadas de forma um pouco alarmante pela própria Casa de la Contratación em carta ao Consejo de Índias: “En Cartagena de Índias y en otros muchos lugares de ellas hay tanto número de portugueses, y tan ricos y poderosos y con sus mañas tan dueños de las voluntades de los gobernadores y demás ministros, que se puede temer muy grandes daños” (Domínguez Ortiz, 1971:141).

Segundo a mesma fonte, aqueles homens não se limitavam apenas ao fomento mercantil (especialmente escravos e tabaco), mas promoviam o contrabando de gêneros, com manifesto prejuízo dos direitos reais e do comércio em geral. E, talvez ainda pior do que isso, interagiam de modo incisivo com as comunidades em que se integravam, e “son regidores y vecinos de asiento en los lugares y en particular en Cartagena son alcaldes ordinarios, alguaciles mayores y menores y depositarios” (Domínguez Ortiz, 1971:141).

Fatos e acusações que incomodavam, igualmente, a ortodoxia vigilante.

11 Ver também o clássico Mendes Dos Remedios (1911).12 Veja-se, por exemplo, Reparaz (1976), Navarrete (2003), León (2007), Broens (1989). 13 Agradece-se ao Prof. Pedro Cardim, da FCSU/ UNL o conhecimento do texto deste autor.14 Reportando-se a um trabalho inédito de Antonino Vidal Ortega, “Portugueses negreros en Cartagena, 1580-1640”.

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Em Maio de 1602, o arcebispo do Reino de Nova Granada dirigiu um apelo ao rei de Espanha no sentido de ser ali instalado um tribunal do Santo Ofício, dada a proliferação de portugueses supostamente observantes da lei de Moisés. Face às pressões da hierarquia eclesiástica, a que se teriam somado as das ordens religiosas, o centro político viria a consentir na criação, em 1610, da Inquisição de Cartagena, cuja atividade persecutória foi fortemente direcionada contra os conversos portugueses, em especial na década de 1626 a 1636 (Navarrete, 2003:80).

O eterno jogo entre o gato e o rato…

Portanto, a ser assim, os receios da aludida dispersão das parentelas, a que atrás se fez referência, longe de constituir um imbróglio para a historiografia, poderá ajudar a revelar dinâmicas negociais, além de expor outras tendências de carácter social, e até motivações políticas e de natureza confessional. Também, deixará transparecer solidariedades entre as ditas parentelas e toda uma malha de coadjuvantes. Em especial no contexto peninsular. No seu conjunto tratava-se de gente cuja estratégia era privilegiar, como lugar de morada, locais perto da fronteira para, desse modo, conseguir maior mobilidade de um reino a outro, em função dos ritmos das respectivas inquisições. Esta tendência terá assumido, no correr do século XVII, especial relevância nas regiões da Estremadura espanhola e Andaluzia (Rubio Merino, 1980, pp.329-350, em especial 1980:330-339).15

Neste último domínio virá a propósito mencionar que transpor a fronteira era, na maioria das vezes, um ato sub-reptício. Nesse pressuposto, seria emoldurado pelo temor da denúncia e pelo medo de ser preso, o que, a seu modo, poderá encontrar paralelo nos roteiros de descaminho do tabaco, mais, até, do que à primeira vista se possa pensar.

É que ambos configuravam rotinas de fuga e tinham muitos pontos comuns, tanto no conhecimento das particularidades geográficas, como na necessidade de dominar infraestruturas organizadas e de, através destas, iludir a vigilância. Em qualquer das duas situações tornava-se essencial contar com cumplicidades, locais e outras, para lá das próprias fronteiras. A argúcia, tal como a agilidade e rapidez seriam fatores determinantes para o sucesso, ou insucesso, de tal empresa.

Por altura da sua prisão pelo Santo Ofício, em 1657, Diogo Lopes Franco, mercador cristão-novo, que tinha efetuado carregamentos de tabaco destinados a Hamburgo, Holanda e França, contava beneficiar da rede instituída (ANTT. IL. Processo n.1965). Não seria para si, mas para as mulheres da sua família, quando se tornara evidente a necessidade de fuga.

15 Veja-se também Sanz Sampelayo (2003:101-120).

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Rapidamente foram acionados os mecanismos de saída, rumo a Bayonne (França) (ANTT. IL. Caderno do Promotor 36, liv.235, f.510-511v), contando-se com a cumplicidade de outro cristão-novo, Manuel Rodrigues Franco, administrador do tabaco no partido de Valladolid e irmão de Diogo de Aguilar, administrador do mesmo gênero na província espanhola da Estremadura (os quais viriam, mais tarde, a ser processados pelo Santo Ofício) (Madrid. Archivo Historico Nacional [AHN]. Inquisición, leg.131, exp.9).

Como se infere do exemplo grafado, os fundos inquisitoriais prestam-se a poder responder a muitas das inquietações do investigador. Contudo, haverá que tomar certas cautelas, em particular, quando se pretenda sistematizar os dados recolhidos.

Desde logo, ter bem presentes os limites da informação disponibilizada. É que, entre a certeza do quotidiano processual e a exatidão dos elementos fornecidos pelas partes vai, por vezes, uma grande distância. Daí a necessidade de complementar o levantamento com outras fontes, sejam estas do foro privado (correspondência,16 atos notariais) ou institucionais (caso do fundo arquivístico da Junta de Administração do Tabaco).

Por outro lado, os testemunhos obtidos no âmbito jurídico dos processos inquisitoriais (fossem da responsabilidade do réu ou de terceiros) escondiam certos ardis, sobretudo no domínio da posse material. Na verdade, durante a sessão de inventário, os suspeitos tentavam, sempre que podiam, subtrair-se à propriedade de bens passíveis de sequestro, alegando serem meros depositários de terceiros.17

Como, aliás, se poderá deduzir do teor de vários depoimentos nos quais os réus insistiam que muitas das fazendas e dinheiro encontrados na sua posse, na altura da detenção, eram pertença de outrem, ou por se encontrarem afetos à satisfação de encargos creditícios18 ou para honrar compromissos comerciais anteriores. Outro dos recursos presumido pelos réus seria o de atribuírem à parentela alargada o domínio patrimonial. Gaspar Lopes Pereira, natural de Mogadouro e morador em Madri, onde, em 1666, detinha o estanco do tabaco, além do arrendamento do estanco de Granada, comerciando em Roma, Livorno e Amsterdã, era filho do mercador de tabaco cristão-novo Francisco Lopes Pereira. As tias estavam casadas com Diogo Lopes do Vale, Francisco Lopes Penha e Francisco Rodrigues Lopes,

16 Sobre procedimentos metodológicos para a análise de redes sociais a partir da correspondên-cia epistolar, veja-se Imizcóz (2004). 17 Dos livros particulares de penitenciados com confisco de bens, relativos a cerca de 13 pessoas processadas pelo Santo Ofício, só um corresponde a um estanqueiro do tabaco (Diogo Soares, ANTT. Inquisição de Coimbra [IC], liv.779). 18 Caso de Bento Bravo da Silva, importante homem negócio, ½ cristão-novo, natural de Aljubarrota, morador em Lisboa. Viajou por Castela e Brasil, manteve contatos comerciais com Cabo Verde, Itália, França e Inglaterra. Quando foi preso pelo Santo Ofício, em 1676, disse que devia ainda 400 mil réis de uma partida de tabaco (200 rolos) avaliada em 1.109.752 réis (ANTT. IL. Processo n. 11267).

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todos eles com fortes interesses no negócio do fumo, tal como seu irmão, Manuel de Aguilar e seu cunhado Pedro Maldonado de Medina. Quando se encontrava em Lisboa, em 1675, em pleno trato tabaqueiro, caiu sob alçada do Santo Ofício que o prendeu com sequestro de bens. Antes fora processado pela Inquisição de Toledo, sendo considerado suspeito na de Valladolid. No momento em que o encarceraram trazia consigo uma caixa de tabaco de prata, duas pequenas caixas de osso para o mesmo fim, além de peças e moedas de ouro. Quanto a outros bens, disse nada ter de seu, porque “tudo era pertença dos negócios de família” (ANTT. IL. Processo n.2744). Tal estratégia era, também, seguida em território hispânico.

O fato de as parentelas atuarem em rede permitia-lhes transferir para terceiros os recursos financeiros e a gestão dos negócios, sempre que estes perigassem na sua integridade. Como se encontravam geograficamente dispersos, dificilmente poderia existir uma ação concertada contra todos os membros da família, em simultâneo.19 Mesmo que tal acontecesse podiam recorrer a coadjuvantes ou parentes afastados. A própria estrutura negocial do tabaco, como se viu antes, facilitava amplamente tais artifícios.20 Nesse intuito, apontavam-se preferencialmente, como credores, homens de negócio ainda insuspeitos na fé ou, pelo menos, não tão vulneráveis. Assim terá sucedido, por exemplo, com Henrique da Paz Pinto. Este importante mercador cristão-novo, que mantinha negócios em Veneza, Amsterdã, Brasil e Angola, viu-se preso (pela segunda vez) pelo Santo Ofício, em 1672. Por essa época possuía já fortuna considerável, tanto em joias como em pintura e mobiliário. Não obstante, mitigou o valor do patrimônio e, no inventário de bens, confessou-se devedor, entre outras coisas, de 6.000 cruzados de tabaco a Severino Correia da Paz (ANTT. IL. Processo n.10651). Para lá do valor em causa e da eventual veracidade da dívida, a escolha do alegado credor não se presume indiferente. Este último, cujo filho António Correia da Paz veio a receber em 1709 o foro de capelão-fidalgo da Casa Real (ANTT. Registo Geral de Mercês [RGM],

19 No exemplo apontado, Francisco Lopes Pereira fora julgado pela Inquisição de Toledo (1661), vivendo depois em Sevilha e Madrid, onde morreu; Diogo Lopes do Vale era administrador do tabaco em Córdova, Francisco Lopes Penha foi processado antes, em Coimbra (1651) e Toledo (1661), Francisco Rodrigues Lopes vivia em Málaga, onde geria o estanco do tabaco; Manuel de Aguilar vivia no Norte de Portugal, onde, entre 1696/8, foi contratador do tabaco das comarcas de Guimarães, Lisboa, Porto e Viana, vindo em 1710 a arrematar o contrato geral do tabaco pela exorbitante soma de 1 milhão e 555 mil cruzados, morrendo em 1703 (ANTT. JAT, Avisos, maço 56). Por fim, Pedro Maldonado de Medina, veio a ser preso em 1687, pela Inquisição de Granada, mas a filha e o genro, Gabriel Lopes Pinheiro, também contratador de tabaco, só foram encarce-rados pelo Santo Ofício em 1702 e 1704, respectivamente (ANTT. IL. Processos n.2348 e n.4690).20 Um bom exemplo da complexidade destas tramas no volumoso processo (623 fls.) referente ao “Pleito fiscal de Francisco Suárez Pimentel, vecino de Santiago, por si y en nombre de Ambrosio Rodríguez del Valle, administrador del tabaco en Galicia, con el fiscal y receptor de la Inquisición de Santiago, sobre la pertenencia del tabaco. El juez de bienes confiscados de Santiago condenó al dicho Francisco a pagar, como fiador del dicho Ambrosio, cuatrocientas cincuenta libras de tabaco, que al tiempo de la prisión de Manuel Fernández de Andrade y de su mujer, Isabel García, reconci-liados, se hallaron entre sus bienes y lo habían dado en la fianza” (AHN. Inquisición, 4552, exp.13).

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D. João V, liv.3, f.173), estava integrado num patamar que oferecia maiores garantias de não ser ainda incomodado, apesar das gotas de sangue judaico que lhe corriam nas veias.21 Henrique Paz Pinto viria no entanto a ser absolvido e solto, considerando-se o excessivo tempo em que estivera preso e o seu estado de saúde. A esta benignidade não seria alheia a suspensão do Santo Ofício, ocorrida em 1674.

Ocasionalmente, os suspeitos podiam remeter-se a um alegado desconhecimento, com base em “provas” tão inconsistentes quanto ingênuas. Seria o caso do estanqueiro do tabaco António Rodrigues Dias, natural do Sabugal e cristão-novo. Acusado de judaísmo e processado em 1664 (aos 80 anos), disse não ter bens de raiz. Quanto à posse de móveis de casa ignorava, por estar cego, e, que soubesse, também não teria dinheiro, ouro ou prata. Mesmo assim, pela sentença dada em auto-da-fé privado (04.04.1666), foi-lhe imposto o confisco de bens além de penitências religiosas. Porém, nessa época, o réu estava já defunto (ANTT. IL. Processo n.807).

Outra das estratégias defensivas, em termos patrimoniais, poderia ser a de protelar o recebimento de créditos, de forma a pô-los ao abrigo da cobiça do fisco. Luís de Sola Mendes, quando foi preso, em 1703, fez constar do inventário que ainda lhe era devido muito dinheiro do contrato do tabaco (ANTT. IC. Processo n.1718).22 De resto, afirmou não possuir bens de raiz e, quanto a móveis, só mencionou alguns de pouco valor, além de quatro cordões de ouro (que empenhara a um padre), talheres de prata, um cavalo e um jumento. Era cristão-novo, filho de um advogado, irmão de outro e de um capitão de cavalos. Bem relacionado, tinha por padrinho de um dos seus filhos o corregedor Cristóvão Rodrigues Barradas.23 Não se sabe, ao certo, os meios a que terá recorrido, mas foi escuso de sair em auto-da-fé público, sendo-lhe passados termos de soltura e segredo e de ida e penitências em 1706. Porém, em 1710, estava já a viver em Amesterdão. Uma vez naquela cidade revelar-se-ia grande mercador e banqueiro, além de assumido praticante da fé mosaica (Kemper, 1999).24

21 Estratégia que nem sempre resultaria, muito embora pudesse mitigar os efeitos. O cristão--novo inteiro André Correia Bravo, apesar de ser cavaleiro do hábito de Cristo (ANTT. RGM, Ordens, liv.4, f.304) – pelos serviços de seu pai, o mercador António Correia Bravo, deputado da Junta do Comércio (1673/80) o qual fora tomado no foro de Fidalgo-cavaleiro da Casa Real em 1662, pelos seus serviços (ANTT. Matrícula de Moradores da Casa Real, liv.IV, f.257) –, também casado com uma cristã-nova, foi acusado de judaísmo pelo Santo Ofício e processado em 1683. Era, à época, possuidor de grande fortuna, com interesses no estanco do tabaco, mas só foi sujei-to a abjuração de leve, cárcere a arbítrio, penas e penitências espirituais e pagamento de custas (ANTT. IL. Processo n.5418).22 Fora acusado de ser judaizante, pelo contratador Gaspar Mendes Henriques e pelo rendeiro Luís Rodrigues Correia, mas nunca confessou. Outros parentes foram, também, processados pelo Santo Ofício, caso do advogado Luís de Sola Teles, ligado aos Chacon e outras parentelas cristãs-novas (ANTT. IL. Processo n.97).23 Que, em 1694, recebera o hábito da ordem de Cristo (ANTT. RGM. D. Pedro II, liv. 9, f.128).24 Os Sola Mendes, cuja parentela em Portugal também assinava Sola Teles e mais tarde Castro

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Por este naipe de motivos, os indícios de ocultação perante o Santo Ofício, de que sobejam exemplos, contrastam, em alguns casos de modo desconcertante, com os dados conhecidos relativos aos circuitos econômicos da chamada renda do tabaco. O que se poderá compreender em função dos interesses e risco associado.

Ciente disso, a Inquisição tentava, ela própria, eximir-se aos artifícios “auto proteccionistas” dos seus interlocutores e explorava, quase ao limite, todas as linhas de um extenso emaranhado que agregava contratadores/estanqueiros de tabaco e pessoas a montante e jusante destes.25 Nesse sentido, haverá que precisar que o sistema estava assente numa estrutura piramidal, encabeçada pelo administrador geral da renda (ou seja o contratador), seguido pelos administradores (ou rendeiros) das províncias e, por fim, na base de tudo, os estanqueiros locais.

Contudo, apesar da aparente simplicidade orgânica, a realidade configurava-se bem mais difusa. Até porque, como a informação era fragmentada e precária e o sistema de pagamentos das rendas do tabaco

“poliédrico” – existindo uma multiplicidade de mecanismos de arrendamento, subarrendamento, “testas de ferro”,26 fiadores27 e distribuidores locais –, tornava-se difícil descartar qualquer elo de ligação. Tanto mais que, como sugere Sabino Lizana referindo-se à correspondência entre dois importantes contratadores, Luís Mendes Henriques e Diogo Gomes Salazar,28 parecia existir “’un sindicato del tabaco’ en el que estaban especializados algunos mercaderes portugueses”.29

Nesse pressuposto, os inquisidores incitavam confissões amplas, em que as faltas cometidas valiam pelo enumerar biográfico e assertivo dos circunstantes que se lhes pudesse agregar. Ora, como a sociabilidade dos rendeiros e estanqueiros incidia fortemente sobre núcleos parentais e redes de negócio (muitas vezes interligadas num emaranhado labiríntico, crivado de homonímias e com ampla cobertura geográfica), a realidade revelar-se-ia bastante complexa.

e Solla, disseminaram-se por Inglaterra, Jamaica, Estados Unidos. 25 Refira-se, a título de exemplo, o inventário e sequestro de bens de Diogo Gomes Salazar, a pretexto do qual, foi rastreado todo o conjunto das rendas do tabaco, respectivos valores e arren-datários, do ano de 1656 (AHN. Inquisición, leg.1886, exp.7).26 Para o século XVIII português veja-se Pedreira (1995). 27 “É possível, por exemplo, identificar grupos de negociantes actuando uns como fiadores dos outros e apontar a constituição de redes e de uso intenso de práticas informais no controle dos contratos”. Nesse sentido convém lembrar que “Fiadores são indivíduos que assumem a condi-ção de devedores solidários em relação a uma obrigação, no nosso caso em relação aos valores a serem pagos à Fazenda Real em decorrência do estabelecimento de contratos de direitos e de tributos régios. Estavam sujeitos no caso de não quitação do contrato à execução de seus bens e fazendas” (Araújo, 2008).28 AHN, Inquisición, Leg. 3766-3771.29 Ver Lizana Fernández (1999:300, n. 23).

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Porém, teoricamente, seria todo um segmento econômico que ficava exposto e à mercê do aparelho inquisitorial. Segmento esse, que, em larga medida, resultava de estratégias endogâmicas e de mecanismos de solidariedade parental e coadjuvante.

De fato, muitas dessas “parentelas de negócio”, ainda que transfronteiriças, provinham de troncos comuns e forjavam alianças duradouras e coesas, seladas, ou não, pelo vínculo confessional. A mobilidade geográfica, a amplitude mercantil e o relacionamento - ora ambíguo ora incisivo - com as hierarquias e estruturas inquisitoriais, conformam um traço descritivo constante. Cite-se apenas um exemplo: o do cristão-novo Manuel Rodrigues Isidro. Natural de Torre de Moncorvo, dedicou-se aos contratos do tabaco, em Castela, arrastando quase toda a família direta e parentela colateral para aquela atividade. Foi preso pelo Santo Ofício, em 1618, acusado de praticar a Lei de Moisés. Absolvido, em 1623, por insuficiência de provas, passou à Holanda. Logo após, já manifesto judaizante, sob o nome de Immanuel Baruch, tornou-se um dos fundadores do banco de Hamburgo, cidade onde veio a morrer em 1642. O genro, também cristão-novo, Álvaro Nunes Velasco, viveu em Salamanca, Ávila e Madrid (1648), sendo contratador de rendas do tabaco quando morreu em Sevilha (Schreiber, 1994:147 e 159-161 apud Almeida, 2009:722). Gaspar Velasco, irmão do anterior, detinha o monopólio do tabaco em Segóvia, por volta de 1650. Curiosamente, apesar de tido por judaizante, nunca foi incomodado pela Inquisição e a filha veio a casar com um cristão-velho castelhano. Já o sobrinho homônimo Gaspar (Isidro) Velasco, filho do citado Álvaro Nunes, depois de ter passado por Antuérpia e Amesterdão, foi presente à Inquisição de Cuenca, em 1671.30

Por fim, um neto homônimo, administrador do estanco real do tabaco em Sevilha, viu-se acusado de judaísmo. Preso em 1658, seria sentenciado em 1660, sujeito a confisco de bens, excomunhão maior e relaxado à justiça secular (ANTT. IL. Processo n.6707).

Entre o queijo e a ratoeira…

Em todo este intrincado jogo de artifícios e desconfiança mútua, opondo conversos e Santo Ofício, tornava-se essencial não só garantir a posse da informação, como, sobretudo, poder antecipá-la e agir em conformidade. Mas, nesse confronto de interesses, a despeito da presuntiva vantagem da estrutura inquisitorial, nem sempre era o elo mais forte a extrair todas as vantagens. Ainda que, obviamente, isso pudesse vir a ter consequências para a outra parte envolvida e inevitáveis danos colaterais. O advogado cristão-novo Gaspar Henriques Castro, contratador de tabaco do Algarve, de 1687 a 1692, foi, entre

30 Irmão de Álvaro Isidro Velasco e de Manuel Isidro Velasco, ver Gotthell (1903:182-250).

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1699 e 1702, alvo de processo inquisitorial, acusado de ser fautor de hereges e de impedir o livre ministério do Santo Ofício. Isto, por ter beneficiado da sua posição e ajudado à fuga de familiares e parentes, prevenindo-os, antes de estes serem presos. Lograra o intento mas acabaria desterrado para Almeida (ANTT. Inquisição de Évora [IE], prococesso 10482). Um seu irmão, Gaspar Dias de Castro, também contratador de tabaco no Algarve entre 1693 e 1695, foi, na mesma ocasião, acusado de conivência e cobertura, respondendo igualmente perante aquele tribunal (ANTT. IE, prococesso 10353).

Contudo, na maioria das vezes, era, de fato, o elo mais fraco a sucumbir ante a pressão inquisitorial. Nessa altura, a geografia do tabaco, perigava e, com ela, os arrendatários do gênero. Muito embora, diga-se, que com a investigação disponível essa correlação pareça ter sido mais evidente em Castela do que em Portugal. Manuel Dias Pereira, estanqueiro de tabaco com parte de cristão-novo, natural de Soutelo Verde, Reino da Galiza, mas morador em Torres Novas, tinha 30 anos de idade quando foi acusado de judaísmo. Preso em 05.12.1702, conheceu a sentença em 09.09.1703. Viu-se condenado a confisco de bens e a sair no auto-da-fé, com abjuração em forma, cárcere e hábito penitencial a arbítrio (ANTT. IE, prococesso 150). No correr dos interrogatórios acusou, de práticas mosaicas, António de Leão e António Ribeiro. O primeiro dos incriminados, cristão-novo, mercador e estanqueiro de tabaco, era natural do Bispado de Málaga, Reino de Castela, mas morador em Salvaterra de Magos. Quando foi detido, em 1703, disse ter, em sua casa, cerca de 9 arráteis de tabaco, outros 16 de simonte e 7 de fumo, pertença de António Ribeiro, contratador de Santarém, o qual lhe devia 200 mil réis de caução de fiança da renda do tabaco. Ora, este era, precisamente, o segundo dos acusados na confissão de Dias Pereira.

Não obstante os três homens terem negócios entre si, redisseram-se mutuamente, tanto no domínio das inculpações como na atribuição da propriedade de bens. Por outras palavras, denunciaram-se em circuito fechado e sem comprometerem eventuais dinâmicas de negócio. Além disso, António de Leão era genro de Manuel Lopes Laguna (filho do contratador Francisco Lopes Laguna), administrador do contrato do tabaco em Santarém, também ele implicado na acusação de judaísmo. Este último, seria alvo de excomunhão maior e confisco de bens. Todavia sem grande efeito prático, uma vez que, ausente na Holanda, fora julgado à revelia e relaxado em estátua à justiça secular tendo já os bens salvaguardados. Como se infere, todos eles detinham evidentes conexões com redes transfronteiriças, mas estas nunca correram risco sério de desarticulação.

Diferente, como se disse, seria a conjuntura em Castela. Ali, ainda que aparentemente similar, enfermava da sua própria configuração geo-negocial. O encadeamento mercantil, as afinidades parentais, os vínculos estabelecidos e os nexos em conformidade – embora dispersos por vários quadrantes – representavam uma certa unidade territorial dentro da fronteira hispânica. Tal fato, do ponto de vista estratégico, poderia traduzir-se em desvantagem.

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Bastará atentar num caso sucedido na Estremadura espanhola, no qual a delação facultada pelo réu originara a queda em cascata, não tanto de presumíveis judaizantes, mas de toda uma rede comercial estabelecida (Lizana Fernández, 1999:291, n. 5).

Os elos resultantes de uma relação mista (negocial e parental ou coadjuvante) desempenhavam, pelo menos em teoria, uma função agregadora. Contudo, reconheça-se, passível de inúmeras limitações. Já que essa unidade aparente podia ser mais simbólica do que real. Como lembrou Pilar Huerga, a propósito de uma rotura familiar em meio converso, “el pariente pobre puede ser un criado fiel, pêro también puede servir el enemigo” (Huerga Criado, 1989:106). Assim, também, o sócio despeitado, ante uma afronta ou um dano à sua honra.

Nesse pressuposto, teremos de considerar como mera delação (ainda que estribada em fatos verídicos) e não como estratégia defensiva, certos depoimentos incriminatórios, tecidos perante o Santo Ofício. Na verdade, algumas das confissões, rastreadas nos processos inquisitoriais, disfarçariam um azedume entre denunciado e delator. Fosse com base em atritos de negócio ou por questões de honra.

António Soria, cristão-novo nascido em Chacim em 1604, tesoureiro de Múrcia, arrendatário da diocese de Placência e primeiro contratador do tabaco na Espanha em 1637 teve sérias pendências com o seu antigo associado Diogo Gomes Salazar, depois tesoureiro-geral da renda do tabaco em Madrid.31 Este último era, também, de ascendência cristã-nova e filho do mercador português Gonçalo Mendes (de Aldeia do Bispo). Ora, no relacionamento de ambos, com (e ante) o Santo Ofício, terá pesado mais o fator de desfeita/injúria do que a afinidade mosaica, ou mesmo o elo negocial. Isto porque o genro de Salazar, o rico contratador Tomás de Aguilar Rondón, fugira para França com a amante a qual era, nem mais nem menos, mulher de Soria (Cuenca. Archivo Diocesano de Cuenca [ADC]. Inquisición, leg.502-6645, f.39r-43r, apud Lizana Fernandes, 1999:305, n. 37). Acabaram ambos penitenciados pela Inquisição,32 recriminando-se mutuamente e fazendo, com isso, perigar a própria estrutura do arrendamento do tabaco.

Os conflitos econômicos, o orgulho ferido e, até, as pugnas parentais influíam no domínio da acusação e eram habilmente exploradas pelo tribunal da Fé. Esta tendência demonstra, uma vez mais, que a luta travada entre aquela

31 Sobre este ver Caro Baroja (2005). Para o sequestro dos seus bens, ver AHN. Inquisición, leg.1886, exp.7; sobre a livraria arrolada no dito sequestro ver Loupias (1987).32 Soria saiu em auto-da-fé, na Igreja de S. Pedro de Cuenca, desterrado para 12 léguas de Madrid e Cuenca, por três anos, multado em cerca de 300 ducados (ADC. Inquisición, leg.492-6573, f.81r apud Fernandes, 1999:306, n. 41). Barrionuevo deu conta desse episódio: En Cuenca há habido auto particular. Hubo 8 penitenciados, casi todos de por acá, residentes en Madrid, y un tal Soria, que habia cuarenta años que judaizaba (Avisos de Don Jerónimo de Barrionuevo, 1654-1658, 1968:261; Carta L, Madrid, 27 de enero de 1654.

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magistratura e os conversos não beneficiou, somente, da cumplicidade do Santo Ofício com os sectores mais ortodoxos. Alimentou-se, também, das roturas de solidariedade que grassaram no meio cripto-judaico. Nesse sentido, os meandros do negócio tabaqueiro não constituíram excepção. Pelo contrário, chegaram mesmo a induzir um replicar de processos no seio das inquisições ibéricas.

É que, muito embora não tenha existido uma posição única e corporativa dos Santos Ofícios nessa matéria, aquelas magistraturas, tanto em Portugal como na Espanha, não escusaram intercâmbios informativos, mesmo que pontuais. Como se colhe, aliás, da leitura de muitos dos processos infligidos aos negociantes do fumo. Além disso, beneficiavam de um arquivo cuidado e de uma rede de agentes (familiares, notários, comissários) cuja ação contribuía fortemente para a gestão da informação inquisitorial.33 Por esse motivo, muitos dos agentes do tabaco, experimentaram as agruras de um duplo rigor, ao serem confrontados com depoimentos incriminatórios que remetiam para anteriores processos num reino vizinho.

Portanto, o ter-se sido denunciado num dos lados da fronteira não impedia que, do outro, se viesse a experimentar destino análogo. Nesse domínio as rivalidades, zangas e malquerenças assumiam um caráter, por vezes, determinante. Francisco Lopes Penha, reputado mercador cristão-novo e estanqueiro do tabaco, cunhado de Diogo Lopes Pereira, de Francisco Rodrigues Lopes e de Diogo Lopes do Vale, todos eles com interesses nos negócios do fumo, desentendeu-se com o sócio, Francisco Lopes Pereira, também ele seu cunhado. Na base da dissensão estaria o fato deste último ter incriminado o primeiro. Alegadamente, Lopes Penha participara (como mentor) no assassinato de António Lopes Pereira, na circunstância primo do denunciante. Na sequência da acusação Penha viu-se forçado a fugir pelo que foi enforcado em estátua na praça de Mogadouro (Guimarães e Andrade, 2005). Por sua vez, Francisco Lopes Pereira, que já fora objeto de um processo às mãos da Inquisição de Coimbra (ANTT. IC. Processo n.6790), em 1651, tornou-se alvo do ódio dos Penha tendo-se refugiado em Castela. Ali viria, em 1653, a comprar o arrendamento dos direitos do tabaco da cidade e reino de Granada, por cerca de 215 mil réis. Porém, em 1658, seria preso e presente ao tribunal inquisitorial de Toledo (AHN. Inquisición de Toledo [IT], leg.161, n.491, 496). Vários depoentes, talvez industriados pelos Penha (uma vez que o réu alegou essa inimizade capital nas contraditas apresentadas), tinham-no tornado alvo de suspeita de judaísmo reincidente.

O teor de muitos dos processos consultados indica ainda que a Inquisição estava atenta aos percursos transfronteiriços, e a todos os outros sinais de mobilidade dos suspeitos, de que viesse a ter conhecimento, independentemente da ocorrência de eventuais mudanças onomásticas. Os nexos mercantis e

33 A esse propósito, para o caso português, veja-se, por exemplo, Vaquinhas (2010).

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as redes estabelecidas pelos protagonistas seriam, em muitas das situações, determinantes para o Santo Ofício fixar a sua verdadeira identidade. Recupere-se, a esse propósito, o caso de Gonçalo Vaz de Paiva, curioso pela singularidade do seu percurso e modus actuandi. Cristão-novo de origem portuguesa, embora natural do reino de Múrcia, ali viveu alguns anos passando depois a Ciudad Real e Villanueva de los Infantes, viajando ainda por Portugal e Andaluzia.

Denunciado à Inquisição, em 1654 (Willense, 1974), e sentenciado com pena de dois anos de desterro, veio a ser solto em 1657. Resolveu passar a Roma, onde tinha um parente poderoso (Francisco Nunes Sanches), mas, ao chegar a Bayonne, teve notícia de que havia peste em Génova e Roma. Deixou-se ficar naquela cidade francesa, onde assumiu o judaísmo fazendo-se circuncidar. Alegadamente, um frade tê-lo-á feito cair em si, pelo que decidiu passar a Madrid e apresentar-se ao Santo Ofício. Contudo, desistiria do intento ao conseguir ser nomeado administrador de los Millones, de Medina del Campo, a coberto de um nome falso (dom Gonzalo Pacheco de Luna). Porém, em 1659, acabaria por ser preso em Valladolid. Confessou as culpas, mas como mostrou piedade e arrependimento viu a pena ser-lhe comutada em 1661, mas voltaria a ser processado em 1664. Próximo de Tomás de Aguilar Rondón, de quem foi cúmplice no envio de correspondência cifrada (dos cárceres inquisitoriais para a corte de Madrid), viu-se denunciado por um parente, Gaspar Torres Paiva e por Diogo de Aguilar, administrador do tabaco da Estremadura. Não se deixou abater e conseguiu aliciar mediante suborno os agentes da Inquisição de Toledo e Cuenca, além do próprio verdugo, para que este simulasse os procedimentos de tortura. Ciente de que encontrara um nicho de mercado introduziu hipnóticos na prisão, de modo a que os supliciados adormecessem durante as sessões de tormentos, conseguindo assim bons lucros com tal atividade.34

Com base nos pressupostos enunciados, infere-se facilmente que a teia de conflitualidade tecida entre os tribunais da Inquisição e os agentes do fumo foi evidente e constante.35

Mas teria sido suficiente para ameaçar seriamente os próprios interesses dos centros políticos Ibéricos?

Ritmos inquisitoriais e negócio do fumo: entre nexos possíveis e perfis conhecidos…

Para Rafael Escobedo, embora considere atrativa a possibilidade de estabelecer laços de causalidade entre grandes perseguições de judaizantes

34 Fatos descritos por Caro Baroja (2005:491 e seg.).35 Ocasionalmente poderia até alimentar dissensões e embustes no seio do próprio aparelho inquisitorial, em função de promiscuidade de interesses entre as partes ou devido a subornos (cf. AHN. Inquisición, 2148, exp.1, Proceso criminal de Juan Moreno de Almarza y Araoz. . .).

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e o processo de estatização da renda do tabaco, não parece existir evidência disso, “ni siquiera insi nuada”. Segundo o autor, que se centra na observação da realidade hispânica:

Lo único que podemos afirmar es que se trató de un hecho traumá tico para el estanco que obligó en, primera instancia, a articular un engo rroso sistema de concordias con el Santo Oficio para garantizar la conti nuidad de las administraciones embargadas. Más tarde se proscribió seve ramente el arrendamiento a cualquier sospechoso de tener ascendencia hebraica, y todo esto por último hizo tal vez sopesar seriamente la necesidad de que el Estado asumiese la gestión, es decir, la propiedad directa y sin matices, de sus propios recursos de financiación. (Escobedo Romero, 2008)

Em relação a Portugal poder-se-á dizer o mesmo? Com base na investigação disponível e numa amostragem relativa a

118 processados pela Inquisição, com ligações ao tabaco, observamos uma menor incidência de casos no século XVII (50)36 do que no XVIII (67); não obstante o fato de, para a 1ª centúria, contarmos somente com dados a partir de 1629. Contudo, pese embora puderem existir outros processados nas três décadas iniciais de seiscentos, a verdade é que representariam um número pouco significativo. Isto, tendo em conta, que os negócios de fumo eram ainda incipientes e os contratos de arrendamento do monopólio português foram uma realidade tardia.

Assim, para o século XVII, verifica-se um pico de acusações em 1669 e em 1672 (cerca de cinco em cada), sendo os restantes anos relativamente regulares (em média entre 1 a dois casos). Já para a centúria seguinte, podemos registar um ano particularmente destacado, o de 1703, com 11 encarcerados, a que se somariam outros 4 no ano seguinte e, depois, uma relativa tranquilidade até à 2ª metade da década de 20, em que, de 1725 a 1729, haverá a notar 21 processados. Recorde-se que 1703 foi o ano do envolvimento português na Guerra da Sucessão de Espanha e que os anos imediatos são marcados por este conflito

Para lá dos números que, por si só, valem o que valem, interessa mais buscar no referente humano a chave do seu possível significado.

O perfil dos suspeitos judaizantes que conformaram o período mais crítico do século XVII, entre 1669 e 1672, aponta, na sua maioria, para estanqueiros locais ou contratadores menores. A proveniência geográfica repartia-se, no essencial, entre Trás-os-Montes e Alentejo, duas regiões consabidamente conotadas com o elemento converso. Porém, analisando criteriosamente os suspeitos, haverá que dizer que nem todos evidenciariam o mesmo grau de importância e alguns seriam, talvez, pretexto para visar mais alto. Do grupo

36 Deve ser ressalvada a circunstância de, três daqueles processos, dizerem respeito a acusações de sodomia e não de judaísmo como os restantes.

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destacavam-se, do ponto de vista social e econômico, dois elementos da parentela dos Mogadouro, além do importante assentista Manuel Rodrigues da Costa, cuja ação em prol dos interesses portugueses em Angola e Brasil foi referenciada por David Grant Smith (1974). Tratava-se de um núcleo restrito, mas relevante, tanto do ponto de vista patrimonial como na óptica das redes mercantis estruturadas.

António Rodrigues Mogadouro, por exemplo, valeria de per si o esforço de uma condenação. Era um importante mercador cristão-novo, com negócios em Londres, Brasil, Angola, Goa e Livorno, e a sua atividade comercial envolvia não só tabaco, como âmbar, diamantes, louças, açúcar, escravos, sedas e especiarias. A sua dimensão mercantil era, aliás, sublinhada pelo fato de manter frota própria. Aquando do inventário de bens, realizado após o encarceramento em 1672, às mãos da Inquisição de Lisboa, Mogadouro não pode fugir a enumerar as riquezas que acumulara. Entre estas, sobressaiam contadores da Índia, mesas e cofres de pau-santo, escrivaninhas de pau-brasil, alcatifas da índia, doze painéis de pintura flamenga, bacias, salvas e talheres de prata, além de quatro sacos de moedas de ouro. Era um patrimônio que, no cômputo geral, ascenderia a cerca de 1.534.600 réis (ANTT. IL. Processo n.5412).

Quanto a existências do foro negocial, propriamente dito, fez saber que tudo corria por conta de seu filho Diogo. Não deixou, todavia, de salientar, a existência de muitos negócios pendentes e um rol de débitos, além de vários créditos. Tinha bom relacionamento com o conde de Castelo Melhor e vários outros fidalgos, tendo mesmo indicado como testemunhas abonatórias, um comendador da Ordem de Cristo e o irmão deste, pessoas que a Inquisição nunca chamaria a depor.

Em contraste com a natureza desses possíveis testemunhos, o filho Diogo, também ele preso e processado (ANTT. IL. Processo n.11262),37 apontava a existência de inimigos capitais. Seriam cerca de 42 pessoas, com as quais subsistiam desavenças de natureza pessoal e/ou negocial. Caso de Francisco Lopes Franco, grande mercador cristão-novo, que detinha o monopólio da importação do tabaco do Brasil. Como Diogo Mogadouro não tivesse respeitado as condições expressas nos direitos daquele arrendamento, passando ele próprio a exportar para a Índia, Itália e Norte da Europa, Lopes Franco intentara denunciá-lo. Tratava-se de uma matéria grave e que faria o transgressor incorrer em multa que ascenderia a cerca de 10 mil cruzados. Porém, Mogadouro, que conseguira a intercessão favorável do conde de Sarzedas e do marquês de Távora, escapou à sanção. Outro dos inimigos apontados foi o riquíssimo financeiro cristão-novo Fernão Rodrigues Penso.38

37 Veja-se uma descrição mais pormenorizada dos processos a que foi sujeita esta parentela em Andrade (2009).38 Também ele veio a ser preso pelo Santo Ofício (ANTT. IL. Processos n.2332 e n.2332-1).

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O mesmo que seria escolhido pelo fisco para administrar os negócios do açúcar e tabaco, quando o governador do Maranhão Luís Magalhães se viu afastado do cargo. Rodrigues Penso, credor do Marquês de Niza, do conde da Ribeira, da marquesa de Castelo-Melhor, do conde de Figueiró e da condessa de Sarzedas e cuja filha era afilhada do marquês de Marialva, possuía o hábito de Cristo39 e o foro de Fidalgo da Casa de Sua Majestade, do qual seria riscado, por sair em auto-da-fé (ANTT. IL. Processo n.2332). Quanto a António Rodrigues Mogadouro, morreu no cárcere (1679) tendo-lhe sido feito confisco de bens.

O ano de 1672 foi, viu-se já, relevante no contexto da perseguição movida aos contratadores cristãos-novos. Aliás, não seria por acaso que, no mês de Maio, se publicara um decreto do Inquisidor-Geral dom Pedro de Lencastre, interditando aos réus de judaísmo o uso das sedas, jóias e outros objetos de luxo assim como andar de cavalo e de coche, o exercício de cargos honoríficos, comendas, hábitos e o serem arrendatários de impostos e rendas reais (Azevedo, 1989:293). Note-se que o perfil dos principais suspeitos, como adiante se verá, encaixava plenamente no estereótipo do inimigo a abater. Importa perceber porquê.

O clima político era de tensão, face ao famigerado roubo de hóstias do sacrário da igreja de Odivelas, atribuído aos conversos (Martins, 2002). e a uma série de boatos em torno de um possível Perdão Geral a ser negociado em Roma. Tal quadro despoletou forte celeuma e excitou, ainda mais, a sanha anti-judaica, de que é exemplo a obra de Roque Monteiro Paim,  Perfidia Judaica, Christus Vindex Munus Principis; Ecclesia Lusitania ab apostatis liberata. Discurso Iuridico è Politico... Madrid: s.n, 1671.  

Alegadamente, as negociações estavam a ser financiadas pelo núcleo duro dos grandes mercadores (à semelhança do que já antes acontecera) (Pulido Serrano, 2006) e estes andariam bastante empenhados na tarefa de denegrir, junto da Santa Sé, o aparelho inquisitorial, acusando-o dos maiores atropelos. Conjuntura que teve eco literário numas Notícias Recônditas do modo de proceder da Inquisição contra os seus Presos (1673)40 e que culminaria na suspensão do Santo Ofício a partir de 1674. Mas não seriam estes os únicos elementos de fricção entre bandos rivais. Os efeitos da controvérsia em torno da extinção da Companhia Geral do Comércio do Brasil - questão assertivamente tratada por Leonor Freire Costa (Monteiro, 2005, cap.5) – também não devem ser dissociados deste estado de coisas. Por último, haverá que registar a desconcertante atitude das Ordens Militares face aos conversos. Num cenário peculiar e sem paralelo com procedimentos anteriores, como explicou Fernanda Olival, haviam sido concedidos, entre 1658-1667, numerosos hábitos a cristãos-novos (Olival, 2001:290). Esta situação conheceria no último quartel do século um recuo flagrante.

39 Em 28/08/1663 tivera Alvará do Hábito de Cristo, com promessa de 80$000 réis de pensão (ANTT, RGM, Ordens, liv.4, f.409v).40 Publicado por Cidade (1951:139-244, apêndice).

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É, neste contexto, descrito a traço largo, que deve ser buscada a explicação para o zelo persecutório. Não se tratava de atingir a estrutura do contrato do tabaco, ou a essência do monopólio, em si mesmo. Porém, a ação punitiva, ao dirigir-se contra os contratadores, inibia toda uma dinâmica que, em boa parte, assentava na vigilância direta por eles exercida. Tanto assim que, coincidência irônica, no preciso ano de suspensão do tribunal inquisitorial, uma outra magistratura, a Junta da Administração do Tabaco, em consulta datada de Lisboa a 31 Julho 1674, queixava-se amargamente sobre os abusos e descaminhos relativos àquele gênero, o qual navegava ou por mão de estrangeiros ou por sua conta (ANTT. JAT, consultas, maço 1, doc.1).

Já o segundo período de maior incidência de processos levantados a gente do tabaco (1725-1729), coincide, de acordo com os dados recolhidos por José Veiga Torres (1994:129), com uma época de notória retração quer do número de familiaturas quer de sentenciados. Esta seria, contudo, no contexto da 1ª metade do século XVIII, uma década relevante. Marcava, também, o início de uma escalada numérica de familiaturas do Santo Ofício ancoradas em homens de negócio, tendência que atingiria o seu máximo entre 1761-1770, com cerca de 922 cartas de familiar atribuídas a negociantes (contratadores e mercadores). O estigma hebraico, assacado a muitas dessas parentelas, ia-se diluindo paulatinamente e a insígnia de familiar adornava gente que, uma centúria antes, não teria transposto com sucesso as habilitações de limpeza de sangue.

De qualquer modo, tendo presente os perfis daqueles sentenciados de final da 3ª década de setecentos, não se vislumbra entre eles notoriedade expressiva, tanto do ponto de vista social como do econômico-financeiro. Tratava-se, na sua maioria, de subcontratadores ou estanqueiros locais.

Por seu turno os tabaqueiros cristãos-velhos, reconhecidos como tal pelo santo Ofício e feitos familiares, não parecem ter protagonizado papel relevante no contexto dos processos levantados a conversos judaizantes. No inquérito realizado não se encontrou, até ao momento, rasto de uma participação efetiva na denúncia e detenção desses réus ou sequer no desenrolar dos processos. Da sondagem feita não consta nenhuma coincidência entre depoentes ouvidos pela Inquisição e pessoas dependentes dos réus na cadeia negocial. Pelo contrário, as testemunhas chamadas a declarar foram, maioritariamente, os seus pares, ou seja, outros contratadores e rendeiros cristãos-novos tidos como cúmplices na fé mosaica. Mesmo, quando os acusados indicavam ao tribunal nomes de cristãos-velhos, que poderiam depor favoravelmente, o Santo Ofício ignorava a sugestão. O motivo parece evidente. Não eram os “apenas” envolvidos no negócio, insuspeitos de heresia, que interessava comprometer, mas sim aqueles cujo perfil se inferia incriminatório e, nesse sentido, potenciador de novas detenções. Quem, alegadamente, participava em cerimônias de rito judaico seriam os que pelo sangue e fé se tinha como prováveis heréticos. Logo, mais vulneráveis e predispostos a apontar cumplicidades. Estratégia essa que

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configura uma tipologia de procedimentos recorrente no aparelho inquisitorial, a despeito de possíveis insinuações de carácter persecutório com base na essência do negócio do fumo.

Em suma, a Inquisição teria sido instrumento dos mais variados interesses, mas, como bem notou Leonor Freire Costa, parece “demasiado simples reconhecer-lhe uma actuação sistematicamente adversa dos interesses das cliques de negociantes” (Monteiro, 2005:127). fossem eles – acrescentamos nós – contratadores do tabaco ou de outras rendas da Coroa. Embora a avidez do Santo Oficio em relação à posse de capitais seja um dado frequente na historiografia, bem como os mecanismos de pressão e chantagem que usava para obtê-los, a verdade é que essa circunstância foi favorecida por um contexto de crise geral imperante nas monarquias ibéricas.

Por outro lado, saliente-se que uma base de confiança, assente em crença mosaica comum, parece ter facilitado elos mercantis e redes de solidariedade entre os agentes do tabaco e parentelas afins. No entanto, tal condição não se prefiguraria como essencial ou determinante, podendo mesmo ser suscetível de rotura no confronto com interesses estritamente pessoais.

Como nota final, dever-se-á sublinhar que os grupos econômicos, em torno do monopólio tabaqueiro, foram muito mais heterogêneos do que o usualmente referenciado. A presença de numerosos conversos em toda essa dinâmica, ainda que relevante, como acabamos de ver, não foi exclusiva. Pelo que a historiografia não deve ater-se somente a critérios de distinção social, com base na destrinça de credos, quando pretenda olhar de perto a realidade humana daquele que foi um dos negócios axiais da Modernidade Europeia.

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Parte III - O Tribunal do Santo Ofício e a perseguição aos cristãos-novos

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8.

Do outro lado da vida: a construção do discurso marrano

Anita Waingort Novinsky

Os estudos sobre o marranismo têm despertado nos últimos anos o interesse de várias áreas das ciências humanas. As ideias e a complexa personalidade dos marranos, que foram capazes de viver, durante séculos, uma dupla vida, formulando de um lado um discurso religioso ortodoxo, e de outro cético e heterodoxo, saem das empoeiradas prateleiras dos arquivos, para trazer vida, e revelar uma “outra” sociedade brasileira praticamente desconhecida até os nossos dias.

O Brasil recebeu a maior número de refugiados marranos portugueses. Entretanto, só nas últimas décadas começaram a ser pesquisados os documentos referentes ao Brasil, que têm revelado a existência de uma cultura sobre a qual a historiografia clássica havia silenciado – a “cultura do segredo”. Foi essa “cultura do segredo” que moldou a mente dos portugueses, tanto cristãos novos como cristãos velhos, durante séculos, e que levou os marranos a construírem um discurso crítico, subterrâneo e secreto que punha em xeque os valores da sociedade. O medo que o Tribunal da Inquisição incutiu em todo o povo português criou uma estratégia como defesa – o segredo.

Muitos cristãos novos viviam dia a dia a lembrança de que foram forçados a se batizar, e em segredo procuravam resguardar suas tradições, os cristãos velhos amedrontados cochichavam o que sabiam, porque qualquer ato poderia servir de prova de heresia.

O marrano, segundo o filosofo francês Miguel Abensour (2003), tornou-se um “pária”. Porém um “pária” especial que ao mesmo tempo se encontrava “dentro” e “fora” da sociedade. As Leis discriminatórias os faziam “outsiders”, mas seu “status” de “homens de negócios”, com cargos políticos e administrativos, proprietários de terras, engenhos, os colocavam em posição central. Os cristãos novos viviam assim uma condição contraditória. Odiavam a Igreja, que identificavam com Inquisição, pois muitas vezes o próprio Bispo era Inquisidor. Mas durante a primeira infância o catolicismo foi incutido em seu ser, que na vida adulta emergiu um sentimento de culpa perante o judaísmo, a ponto de produzir neuroses e desajustamentos.

Durante o período em que os holandeses ocuparam o nordeste brasileiro (1630-1654), muitos cristãos novos que ansiavam “pertencer”, converteram-se ao judaísmo. Deu-se então um fenômeno curioso, que Abensour denomina

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“fluctuatio animi”. Os cristãos novos oscilaram de uma religião para outra, convertendo-se uma, duas, três vezes, sem saber a quem deviam pertencer. Abensour (2003:108-139) lembra que Spinoza se referiu a esse sentimento que não possibilitava os marranos adaptarem-se à comunidade judaica liderada pelos rabinos ortodoxos, o que produziu nas suas mentes uma confusão e uma angústia que fazia sofrer.

O mundo dos convertidos rompeu-se com a conversão ao catolicismo, e muitas vezes encontramos cristãos novos luso-brasileiros aderindo às mais exóticas seitas. Espalharam-se pelo mundo, muitos conseguiram chegar à Itália, ao Levante, a Grécia, a Holanda, etc. Burlavam as leis, pagavam somas exorbitantes aos piratas e aproveitavam as redes secretas criadas pelos judeus sefaradis para fazer suas transações financeiras. Ficaram-nos várias obras em português, escritas na Holanda, obras literárias, polêmicas que nos permitem avaliar o caminho conflituoso que tiveram de seguir para salvar-se da Inquisição.

A conversão forçada de todos judeus ao catolicismo criou nos seus descendentes uma nova visão de mundo, e iniciou-se a “Era dos cristãos novos”. A violência com que se deu a conversão, na época moderna, não seguiu o mesmo modelo da Idade Média, pois depois de convertidos, não se tornaram cidadãos portugueses plenos, nem em Portugal, nem no Brasil. Novas leis discriminatórias marcaram o lugar que deviam ocupar na sociedade e um racismo institucional passou a rotulá-los nos séculos seguintes. O “converso” de origem portuguesa foi considerado um estrangeiro na sua própria pátria.

Miguel Abensour mostra em seu artigo como esse dúbio sentimento fazia os marranos se debaterem numa angústia com um sentimento de ódio e amor, ao mesmo tempo em que levava os indivíduos a não saberem o que odiavam e o que amavam. Os conversos recusavam a identificação total com as normas da sociedade dominante, padronizada por moldes cristãos, mas também não conseguiram se adaptar à comunidade judaica, para a qual muitos voltaram.

Para entender o mundo dividido em que passaram a viver os judeus convertidos é preciso mergulhar na história, estudar o que significava para eles, viver em uma terra que consideravam sua pátria e que amavam, descenderem de portugueses judeus que a habitavam há mais de 15 séculos e, de um dia para outro, serem considerados estrangeiros e, como judeus, serem proibidos de viver na sua terra. A religião judaica que portugueses professavam há séculos, foi considerada uma fé herética e proibida em toda Península Ibérica e seu império, sob pena de morte. Não foi considerado pelos eruditos espanhóis, nem pelos Reis católicos o papel fundamental que os judeus tiveram no desenvolvimento da ciência náutica, na criatividade literária, na filosofia, nem na difusão do humanismo renascentista, traduzindo, em conjunto com os árabes, Aristóteles e os pensadores gregos (Kayserling, 2009). O Alto Clero católico encarregou-se de demonizar os cristãos novos, acusando-os de fraudes e traições e construindo uma propaganda inspirada no antijudaísmo já presente no Direito Canônico e nas leis Visigóticas (Sankovsky, 2008).

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A saída da Espanha foi a mais dolorosa experiência vivida pelos judeus depois da perda da pátria, em 70 d. C., e foi lamentada pelos judeus como um segundo exílio. O abandono de suas casas, suas terras, seus negócios, seus amigos, suas famílias e o partir. Para onde?!... Esse foi um fenômeno sem paralelo na vida de qualquer povo. Entretanto, o mundo civilizado e culto da Renascença e os famosos humanistas não se compadeceram da sorte dos judeus, ao contrário, louvaram os atos dos reis católicos. Maquiavel referiu-se à expulsão dos judeus da Espanha como a realização de uma “Santa Cruzada”, pois, atirando fora uma parte de seu povo, os reis deram exemplo de uma piedade “mais digna e mais singular” (Poliakov, 1990:155).

A Europa, no início da era Moderna, estava fechada para os judeus e a sua única esperança era Portugal, cujo rei D. João II, mediante pagamento por cabeça, os deixou entrar. As condições eram claras: autorização para permanecer por oito meses, depois dos quais o rei prometeu que os ajudaria a partir. Os judeus foram enganados pelo rei da Espanha, foram enganados pelo rei de Portugal dom João II e foram enganados pelo rei dom Manoel I, que os obrigou a se converterem em massa ao Catolicismo.

Foi quando caíram os muros da Judaria, e foi imposta uma só religião a todo o império, que o ódio contra os convertidos tornou-se mais feroz do que quando praticavam a religião judaica. Os convertidos foram atirados à margem da sociedade e assim viveram até o século XX.

Obrigando todos os judeus a serem católicos, dom Manuel não lhes tirou apenas a religião. Tirou-lhes os costumes, as festas, os rituais, tirou-lhes as escolas, a sinagoga, os livros. Tirou-lhes o idioma, tirou-lhes os nomes. Despiu os judeus de sua identidade. O que significou para milhares de pessoas terem de usar um nome falso, apagar suas raízes, esquecer que tiveram mãe, pai, avós? Esvaziados dos seus mais caros valores, de algumas práticas religiosas, os marranos começaram a construir uma segunda vida, carregando, da antiga, a memória e a saudade. Tiveram de construir uma nova identidade, que não era nem cristã nem judia; passaram, assim, para um “outro lado” da vida, o lado em que eram “nada”.

O mundo dos convertidos rompeu-se e o seu “ego”, durante gerações, jamais se reconstruiu integralmente. Na medida do possível, burlando leis, pagando somas exorbitantes aos piratas, aproveitando redes secretas criadas pelos cristãos novos que conseguiram alcançar a Itália, o Levante, a Grécia, conversos portugueses iniciaram seu êxodo da pátria que amavam, passando, nos séculos seguintes a peregrinar pelo mundo. Aqueles cristãos-novos que, em fins do século XVI, foram para Amsterdã, escreveram várias obras literárias, discursos críticos, memórias, obras polêmicas, que nos permitem avaliar o caminho conflituoso do retorno ao Judaísmo ou seu afastamento completo da religião (Remédios, 1911).

O Brasil foi o lugar de refúgio predileto dos convertidos, pela facilidade de transporte, pois muitos pilotos eram cristãos novos e os embarcavam

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clandestinamente. A chegada ao Novo Mundo era penosa, naufrágios, fome, doenças e piratas punham em risco suas vidas. A instalação na nova terra também oferecia aos cristãos-novos enormes desafios, facilitados, algumas vezes, por parentes e amigos, já anteriormente estabelecidos. É bastante surpreendente a capacidade de adaptação dos conversos, que, em pouco tempo, passaram a considerar o Brasil a própria Terra Prometida (Novinsky, 1992).

A vida, no Brasil como em Portugal, continuou a ser dupla e clandestina. Foram organizadas sociedades secretas, e os cristãos-novos se reconheciam por códigos indecifráveis para os estranhos do grupo.

A história das ideias dos séculos XVII e XVIII começa hoje a ser mais conhecida devido à abertura de uma nova fonte: a “literatura clandestina”. Num regime totalitário, como o da Espanha e o de Portugal, a dissimulação marcou a psicologia e o comportamento dos portugueses, cujo pensamento não podia ser livremente expresso. Leo Strauss nos ensinou a ler entre as linhas, porque a perseguição afeta a arte de escrever. Todos nós, diz Strauss (1988) com razão, e não só os marranos, aprendemos a fazer apenas o que é aceitável. Corriam, em todo império lusitano e em toda Europa, textos manuscritos clandestinos, que hoje estão sendo divulgados e publicados, revelando críticas e contestações que nos permitem descortinar um novo cenário no campo das ideias. As grandes contestações se davam no nível religioso, pois era em nome da religião que se reprimia o livre pensamento e a livre crítica. Uma obra recentemente publicada, que revela uma coragem e irônicos comentários a todas as crenças foi Os Três Impostores, que mostra que Moisés, Jesus e Maomé vieram ao mundo só para enganar os homens (Charles-Daubert, 1999 apud Popkin, 1992:135).

A luta clandestina dos marranos em Portugal e no Brasil, contra a religião católica imposta à força e contra a cultura dominante, se manifestou, principalmente, em dois campos opostos: no criptojudaísmo e no ceticismo, isto é, na descrença completa em todas as religiões. Sobre as práticas secretas dos marranos em Portugal e no Brasil muito se escreveu, mas sobre os cristãos-novos descrentes, agnósticos, ateus, sabemos pouco. O que dificulta o conhecimento da intensidade da crença dos cristãos-novos é o fato de que, fossem quais fossem as expressões céticas ou as blasfêmias proferidas, para os Inquisidores eram sempre classificadas como Judaísmo.

No século XVII houve uma seita que tomou enorme vulto entre os cristãos-novos: o Milenarismo. Ergueu-se num vivo e combatente movimento contra o Ceticismo, que se havia alastrado por toda a Europa. Temos alguns exemplos significativos: Francisco Sanchez, cristão-novo do Porto, considerado um precursor de Descartes deixou Portugal para fugir das perseguições da Inquisição, os filósofos Montaigne, Spinoza, Juan de Prado, cortaram seus vínculos com o Judaísmo. Mas, foram, principalmente, as controvérsias religiosas, entre a Reforma e a Contra Reforma, que influíram no aumento do Ceticismo europeu, que havia nascido na Grécia, com Pyrro (Popkin, 1992:90).

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Foi provavelmente um francês, judeu, Isaac de La Peyrère, que atacou as bases que sustentavam, nesse período, o Cristianismo e o Judaísmo. Criticou as Sagradas Escrituras, afirmando que Moisés não tinha escrito o Pentateuco e que a Bíblia não estava correta, nem contava a história de toda a humanidade, mas apenas a do povo judeu. La Peyrère construiu um mapa da Palestina, onde mostrava que pertencia aos judeus todo o oriente Médio, do Nilo até o Tigre. Peyrère foi preso, sua obra queimada e só o libertaram depois que se converteu e pediu perdão ao Papa. O universalismo de La Peyrère defendia que todos os indivíduos podiam salvar-se, independentemente de sua crença (Popkin 1992).

É interessante confrontar algumas ideias do padre Antonio Vieira com as de La Peyrère. Acredita Antonio José Saraiva (1992:89-93) que Vieira deve ter-se encontrado com La Peyrère, quando esteve na França e talvez tenha sofrido sua influência, pois existem vários pontos em que suas ideias se encontram.

Para os Inquisidores, qualquer ideia expressa por um cristão novo era considerada Judaísmo. No Edital que costumavam colocar às portas das Igrejas, para que o povo ficasse sabendo como reconhecer um herege judeu, estava textualmente escrito que todos aqueles que afirmassem que “não há nada mais do que nascer e morrer”, eram judeus. (Novinsky e Carneiro, 1992:11-34).

Também era considerado “Judaísmo” negar a existência do inferno e do purgatório, defender o casamento dos clérigos, permitir relações sexuais com moça solteira e, principalmente, negar a imortalidade da alma.

Houve cristãos-novos que se tornaram tão descrentes de qualquer religião, que levaram os Inquisidores a rotulá-los como ateus. Morreram, assim, na fogueira, como bem disse o padre Antonio Vieira, cristãos novos inocentes que, absolutamente, nunca haviam judaizado. (Netanyahu,1995).1

Para os portugueses cristãos-novos, adeptos do movimento cético, nenhum conhecimento era possível. Nesse período, o “Milenarismo” da Europa se transferiu para a América (Levine, 1991). Encontramos documentos que falam da existência de um movimento milenarista na Bahia, do qual faziam parte o padre Antonio Vieira e um grupo de cristãos-novos, inclusive seu grande amigo, o marrano Manoel Mendes Monforte.

Analisando o fenômeno brasileiro, sobre os cristãos-novos e marranos, deparamos com um vazio na historiografia, tanto no que se refere à sua mentalidade como quanto à sua visão crítica do mundo. As fontes inquisitoriais contêm uma enorme riqueza de informações sobre a descrença e a irreligiosidade e comprovam terem os cristãos-novos erguido uma verdadeira muralha contra todo tipo de crença, contra o fanatismo e os dogmas da Igreja. Nos processos inquisitoriais abundam as denúncias contra a imortalidade da alma, contra a trindade, a virgindade de Maria. Todos os dogmas soavam, para os cristãos-novos, como superstições e idolatria.

1 O autor prova que o Tribunal da Inquisição na Espanha foi estabelecido por razões sociais, políticas e econômicas e não por motivos religiosos, pois os conversos estavam já cristianizados.

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Os cristãos-novos também não acreditavam na integridade do Tribunal, na honestidade do processo, na moralidade dos Inquisidores. Como cristãos-novos não podiam participar de uma vida judaica ortodoxa plena, acompanhando as leis judaicas, passaram a sentir uma quase identidade interior com o judaísmo e a “herança judaica” tornou-se mais importante do que a observação das leis, cerimônias e orações. Muitos não seguiam ritual algum, mas quando inquiridos, durante seu julgamento, respondiam que não faziam cerimônia alguma, mas que se identificavam com a Lei de Moisés.

Os cristãos-novos se tornaram experts em “manipular” para poder sobreviver numa sociedade rodeada de espiões, mas uma parte conseguiu realmente ser absorvida pela sociedade ampla.

Mas há uma pergunta a fazer: como podiam ver o mundo os judeus que foram expulsos de sua pátria em 1492? Como podiam ver o mundo homens que foram despojados de seus valores, sua identidade, sua dignidade?

A memória de séculos de sofrimento e as contínuas perseguições reforçaram, como já dissemos, cada vez mais, a resistência contra o catolicismo e um descrédito contra todas as religiões. As dúvidas, descrenças e, principalmente, um discurso altamente crítico em relação ao fanatismo da época, colocaram os cristãos-novos na vanguarda do pensamento moderno.

Havia, no Brasil, nas Minas Gerais, cristãos novos com alto nível de cultura, possuidores de fartas bibliotecas, graduados na Universidade de Coimbra, homens que liam, escreviam e faziam versos. Temos um exemplo curioso em Antonio Ferreira Dourado, que vivia em Vila Boa de Goiás, considerado o primeiro poeta goiano, que escreveu uma Ode à América, infelizmente desaparecida (Processo no. 6268 INATT) e Dr. José Pinto Ferreira, também morador de Goiás, que possuía uma ampla biblioteca com as mais diversas obras (Araújo Júnior, 2002: 319-337).

Em Ouro Preto vivia o cristão-novo Diogo Nunes Henriques, também suspeito de judaísmo e de reunir amigos para lerem juntos. Foi preso e levado para Portugal. Em suas ideias mesclavam-se as mais esclarecidas visões sobre a liberdade de pensamento e sua casa em Ouro Preto era o quartel general de uma sociedade secreta, que congregava a elite intelectual mineira, onde se encontravam cristãos-novos céticos, descrentes e também os judaizantes, mesmo compartilhando destinos diferentes. As denúncias contra Diogo Nunes o acusavam de ler muito e chegaram a afirmar que nunca o viram rezar ou ensinar a seus escravos a doutrina da fé cristã, ao contrário, lhes ensinava práticas heréticas. Nunca o viram com um rosário nas mãos e desafiava as regras da Quaresma. Sua revolta contra o fanatismo levou-o a dizer que “cada pessoa deveria viver e morrer de acordo com a Lei que melhor conviesse à sua consciência”, o que o levou para as masmorras dos cárceres de Lisboa (Processo n.7488, INATT).

O vizinho que o “vasculhava”, sabendo que era cristão-novo, contou ao padre que, quando estava cansado, Diogo exclamava “Oh! Deus!” e nunca

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pronunciava o nome de Jesus. Diogo provavelmente era judaizante, e reunia-se com o grupo marrano de Ouro Preto para as leituras clandestinas.

Outro personagem que chamou a atenção dos espiões que rondavam Ouro Preto foi Domingos Nunes, que teve um trágico destino. Foi realmente um fiel seguidor do Judaísmo, o que lhe custou a vida. Foi queimado no ano de 1731 (Processo n.1779, INATT).

Duas diferentes mentalidades se confrontaram nas Minas, na luta contra o Catolicismo fanático da colônia e contra o sistema intolerante inquisitorial: os cristãos-novos judaizantes e os cristãos-novos agnósticos, céticos ou ateus. Para estes últimos as religiões tinham perdido totalmente o sentido, mas ambos os grupos mantinham seu pensamento em “segredo”. O “segredo” fazia parte tanto do mundo dos marranos judaizantes como dos céticos e descrentes. A reconstrução de seu universo mental é difícil, uma vez que só temos como fonte os registros inquisitoriais, que, quase sempre, são suspeitos. Quando buscamos outras fontes, nos deparamos com a cultura portuguesa do “segredo” e as técnicas de funcionamento do tribunal, que obrigavam todos os réus a confessarem-se culpados, sob pena de sentenças mais severas.

Ser chamado de judeu, em Portugal e no Brasil, não significava sempre ser judaizante. É importante ter em mente que a identificação do cristão-novo como descrente era para os Inquisidores o mesmo, como dissemos, que chamá-lo judeu.

Cristãos-novos portugueses foram precursores do homem secular. Pouco se importavam com o mundo do além e com a salvação da alma ou com a redenção divina. Esses homens tinham por lema o “aqui’ e o “agora”.

Paralelamente, com a evangelização, nasceu no Brasil um movimento crítico de “descatolização”, fruto da desenraização dos cristãos novos do mundo religioso de seus ancestrais e da sua postura crítica frente o dogmatismo e fanatismo cristão. Os cristãos-novos aprenderam a adaptar-se às situações adversas e ao mundo profano. O sentido da vida deixou de ser transcendental para concentrar-se no mundo mesmo (Novinsky, 2001:8-15).

As representações que os marranos construíram sobre o mundo tiveram uma influência profunda sobre o pensamento crítico do século XVII e na filosofia spinozista. O mundo real, palpável, o mundo da imanência abriu o fantástico caminho que prenuncia a Ética de Spinoza.

Reconstruir o universo mental dos cristãos-novos brasileiros é uma tarefa, como já disse, extremamente difícil. Mergulhados numa sociedade regida por uma “cultura do segredo”, vivendo sob solo movediço, ameaçados sempre em sua segurança, sofrendo gerações após gerações o estigma do judeu diabolizado, tendo continuamente de dissimular e fingir, se mascarou o pensamento. Cada indivíduo, naquele tempo, estava enquadrado em uma categoria definida, enquanto os cristãos-novos debatiam-se entre a tradição e a incredulidade. Não raras vezes enlouqueciam, como provam os Livros de Presos que enlouqueceram na Prisão ou tiravam sua própria vida, cujo nome

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os Inquisidores mandaram registrar nos Livros dos Presos que se mataram na Prisão. Muitas vezes, mergulhados em dúvidas, passaram de uma religião para outra, sem se convencer de nenhuma. Manoel da Costa, por exemplo, quando falava com judeus, dizia que era judeu e quando falava com cristãos, dizia que era cristão, e quando falava com luteranos, dizia que era protestante (Processo n.1831, INATT). Da Paraíba foi para a Holanda, retornando a Recife e, por fim, voltou a Portugal, onde foi preso e penitenciado. A que religião pertencia? O que era? No seu mundo confuso, Deus não respondia mais a seu apelo. Os descendentes de judeus deixaram, em Portugal e no Brasil, de “ser” e

“pertencer”. Foram necessários séculos de doutrinação, de perigos e repressão para que a população brasileira se uniformizasse no Catolicismo. Sérgio Buarque de Holanda escreveu que nunca foi muito ortodoxo o Catolicismo na colônia. E o ceticismo relativo dos cristãos-novos ainda persiste no século XIX, nas palavras expressas pelo regente Feijó “é preciso descatolizar o Brasil” (Holanda, 1964:42-45).

Contar sobre Martinho da Cunha de Oliveira Pessoa, antepassado de Fernando Pessoa, é dar vida aos personagens pessoanos. Criado no Fundão, pertencia a uma numerosa família de tradicionais marranos judaizantes e clandestinos. A partir dos 13 anos, idade em que os cristãos-novos revelavam aos filhos o “grande segredo”, Martinho passou a viver duas vidas: a de “fora” e a de “dentro”. Viveu um “outro” e tentou continuamente ser esse “outro”. Talvez essa dualidade tenha levado Martinho a se tornar artista de teatro. Participou da

“sociedade secreta” dos marranos no Fundão até os vinte anos, quando, em 1713, a Inquisição o prendeu. Passa então a viver uma nova farsa: se dobra perante os Inquisidores, pede perdão, simula seu arrependimento e é reconciliado no auto de fé de 6 de agosto desse mesmo ano. (Processo n.8106 INATT).

Sonhou então em fugir, procurar outros mundos e veio para o Brasil, onde viveu 25 anos em Ouro Preto, em companhia de dois irmãos, Manoel Pereira da Cunha e Miguel da Cunha. Ingressou na “sociedade secreta marrana”, que já era numerosa e onde Martinho encontrou amigos e parentes do Fundão. Tira então a máscara de reconciliado e volta à sua antiga vida de judeu secreto. Fez fortuna no negócio de diamantes, andou por distantes e desertos sítios, mas, um dia, lhe apertou a saudade e resolveu, outra vez, partir. Voltar! Voltar para o Fundão! No lugar de Feixoso e na Vila de Covilhã montou fábrica de tingir panos. E no teatro do Fundão representava comédias onde trocava novamente as máscaras. Dois anos depois de ter voltado para o Fundão, uma nova onda de prisões levou a família, irmão, amigos para os cárceres da Inquisição.

Os cristãos-novos sabiam que uma vez que alguém da família era preso, outros o seriam em seguida. Martinho só tinha um caminho, outra vez: Partir! Partir! Planeja tudo. Avisa os amigos, avisa os membros da família ameaçados, trata com o cônsul de Hamburgo em Lisboa. Pagou alta soma a um piloto português para transportar todo um grupo até uma nau estrangeira, que os levaria para onde “pudessem ser livres para seguir a religião de seus pais”, que ainda carregavam em seus corações.

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Em uma noite, lá pelas oito ou nove horas, 26 pessoas, entre homens, mulheres e crianças, reuniram-se no sítio de Bela Vista, levando seus trastes, baús com roupas, móveis, camas e outros pertences. O piloto português, Antonio da Silva, fragateiro, devia transportá-los até fora da Barra, onde os esperava uma nau estrangeira. Mas o destino mudou-lhes os planos. Um barqueiro de Seyxal os denunciou, e quando já se encontravam na direção das Torres, foram todos presos e obrigados a voltar. Faziam parte do grupo, entre outros, André Nunes, mercador, com sua mulher e três filhos, Teodósio, José e Manoel, todos do Fundão. Uma família de Benavante: Manuel Nunes Sanches, com um sobrinho homônimo, outra família do Fundão, cuja mulher se chamava Ana Pereira, solteira, irmã de Branca Pereira, a viúva de João Cruz, sapateiro e seus filhos, Antonio Cruz, fundidor, Francisco da Cruz.

Viram-se, assim, os pobres fugitivos do Fundão, novamente, lançados à terra, suas arcas arrombadas pelos barqueiros que levaram seus bens, extorquiram-lhes o dinheiro, os enganaram e, por fim, os abandonaram. Foram todos levados para os cárceres inquisitoriais, onde Martinho da Cunha de Oliveira Pessoa deu entrada em 2 de Março do ano de 1646.

Martinho da Cunha de Oliveira Pessoa foi acusado do mesmo crime do qual sua família vinha sendo acusada havia dois séculos: ser judeu. Procurou enganar os Inquisidores e, nas diversas sessões que com ele fizeram, negou sempre ser judaizante. Apresentou contraditas, nomeou gente de prestígio, todos cristãos velhos, que, quando consultados, confirmaram que Martinho fora bom cristão, praticara todas as obrigações da Igreja, dava dádivas à Igreja e era Mordomo e irmão na Igreja de São Pedro, na Vila de Covilhã. Martinho procurou provar que todos o acusaram falsamente. Nada lhe valeu. Pesavam sobre ele gravíssimas acusações: era “relapso”, tentara “fugir” e era “fautor” de hereges, isso é, encobria seus cúmplices (Pérez, 2005:89).

Vencido pelas ameaças e pelo medo, Martinho acabou “assumindo” o crime e confessou que praticara a religião judaica desde os 13 anos de idade, tendo sido ensinado por um parente, Manoel Neves. Seguiu a Lei de Moisés no Fundão, em Castelo Branco, em Idanha Nova e também nas Minas Gerais, nos sítios dos rios Jequitinhonha, Guarapiranga, Minas dos Fanados, Serro Frio, Sítio do Tijuco, onde fazia parte da “sociedade secreta” dos Marranos, frequentada também pelos seus irmãos Miguel da Cunha e Manuel Pereira da Cunha e ainda por João Matos Henriques, Antonio de Sá Almeida, Luís Mendes de Sá e outros cristãos-novos, prisioneiros de Minas (Pérez, 2005:89).

Um de seus amigos de Minas Gerais que, para salvar-se, o denunciou, Luís Mendes de Sá, foi marcado por um destino estranho: nasceu nos cárceres da Inquisição de Coimbra e morreu queimado, 30 anos depois, no auto de fé de Lisboa de 18 de outubro de 1739.

Os juízes consideraram Martinho da Cunha convicto, relapso, negativo e pertinaz. Ordenaram que lhe fossem confiscados todos os seus bens, que foram repartidos entre os cofres da Coroa e da Igreja. No dia 22 de abril de 1747, o réu

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recebeu, no cárcere, o Licenciado Tomás Feio Barbudo, que lhe notificou, em nome dos senhores Inquisidores, que, no domingo próximo, que se conta 24 deste mês, iria ao Auto público ouvir sua sentença, pela qual estava “relaxado à justiça secular”, isto é, seria queimado. Os guardas do cárcere lhe ataram as mãos. Martinho da Cunha de Oliveira Pessoa foi queimado em 24 de abril de 1747, depois de passar um ano, um mês e 22 dias nos cárceres da “Santa” Inquisição.

Os processos da família de Fernando Pessoa revelam a persistência de uma velha tradição fundoense: o Judaísmo. Esse Judaísmo se caracterizava, muitas vezes, por um amargo ceticismo, mas marcado por uma forte identidade judaica que, durante gerações, foi transmitida aos seus descendentes. Nas sextas-feiras, enchiam-se de festa as casas do Fundão, quando se acendiam as candeias com

“trouxinhas de estopa” pelas almas de seus queridos que foram sacrificados pela Igreja. As tradicionais cerimônias judaicas eram seguidas sempre no interior de suas casas, transformadas em Templo: o jejum, no chamado “Dia Grande” (Yom Kipur), que caia no mês de setembro, quando lavavam todo o corpo, cortavam as unhas dos pés e das mãos, vestiam roupas novas. Também guardavam os sábados, não comiam carne de porco, não acreditavam nos dogmas da Igreja, esperavam o Messias, “como os judeus esperam”. Os Pessoa do Fundão conheciam as orações judaicas e sempre louvavam a um só Deus:

Desde o Nascente até o PoenteSeja Deus louvado para todo sempreA quem servirei que me dê bom pago?A Deus do céu bendito e louvadoDeitei os olhos a Deus do campoLouvado seja Deus, que tudo é Santo. (Processo n. 8106, IANTT)

Para compreendermos o marranismo é preciso entender o que foi, realmente, o fenômeno, em termos de existência e de “sentimento do mundo”. Podemos ver na extraordinária criatividade inventiva de Fernando Pessoa o

“ser” marrano, no sentido em que o foram Santa Tereza de Jesus, Montaigne e Spinoza.

As múltiplas personalidades em que se dividiu Fernando Pessoa refletem as múltiplas vidas que tiveram os cristãos-novos. Seu mundo fragmentado foi o mundo de todos os portugueses que tinham origens judaicas, vivendo aos pedaços, sem nunca poderem ser “eles mesmos”.

Em que medida Fernando Pessoa não se inspirou na sua própria história e de seus antepassados para criar seus personagens e seus heterônimos? É uma questão que permanece.

Ler sobre a vida de Martinho da Cunha de Oliveira Pessoa é fazer viver um personagem pessoano. Estava sempre a representar, a jogar na vida, como no palco. O marrano tinha sempre de jogar, como Ricardo Reis, jogar com a

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sorte, jogar com as palavras, jogar com os Inquisidores. Desde cedo ensinava seus filhos a jogar. E tinha de ganhar sempre, pois perder lhe seria fatal.

Para o cristão novo ou o marrano, o que ele “era”, lhe pesava como um estigma. Tinha sempre de “parecer”, mas no fundo era “nada”. Passava de uma terra a outra, Espanha, Holanda, França, Itália, Brasil, mas o abismo o atraía e, muitas vezes, acabava voltando para a pátria, como Martinho Pessoa, para morrer:

Não posso estar em parte alguma. A minha pátria é onde não estou. (Lopes, 1985:337)

Quem entendeu e penetrou tão profundamente na alma marrana como Pessoa?

O mundo dividido de Fernando Pessoa não é o mundo dividido de seus avós, bisavós, tetravós? Os cristãos novos estavam sempre à procura de seu Deus. Onde encontrá-lo?

Há em cada canto de minha almaUm altar a um Deus diferente. (Lopes, 1985:345)

Forçados a viver em um mundo sem fazer parte dele, os cristãos novos tornaram-se aquilo que os Inquisidores queriam que eles fossem, judeus. Assumiam sempre a culpa, mesmo quando inocentes, como a história do índio Zuni, mencionado por Levi Strauss (Levi-Strauss, 1970:191), que foi acusado de ser feiticeiro. O índio nega, nega sempre ter poderes mágicos, até que, vendo-se perdido e ameaçado pelos juízes, resolve assumir o crime e confessa: “sim, eu era um feiticeiro”! Os juízes, satisfeitos o absolvem. Mas, em que medida, pergunta Levi Strauss, o índio Zuni não se tornou deveras um feiticeiro? Quantos cristãos-novos inocentes, depois de penitenciados, se tornaram, realmente, judeus?

Tereza Rita Lopes, em sua obra sobre Pessoa, caracterizou os personagens sob os quais Álvaro de Campos se revelou como o ator e o espectador, o que vive e o que se vê viver, e que, muitas vezes, se deixa levar pelo papel que ele representa e se identifica à ficção que ele está para criar. Para o marrano, a fuga de si mesmo é impossível:

Não se pode fugir, não se pode fugir, não se pode fugir. Eu sou o que sempre quer partirE fica sempre, fica sempre, fica sempreAté a morte fica, mesmo que parta, fica, fica, fica... (Lopes, 1985:388)

Na solidão da cela o marrano se debate sobre: o que dizer? o que confessar? a quem acusar? Pede audiência, denuncia pais, irmãos, amigos. Volta à cela, a consciência o tortura, pede nova audiência e nega tudo o que disse. Pede nova audiência e torna a revogar o que havia dito. Quantas vezes hesita e oscila entre esse ir e vir? O Livro dos Presos que se mataram na Prisão lembra:

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Se te queres matar, por que não te queres matar? (Lopes, 1985:367)

E o pobre Martinho, marrano, eternamente a se despedir... “de mãos atadas”, a subir no queimadeiro, foi perpetuado por seu descendente, Fernando Pessoa:

adeus, adeus, adeus, toda a gente que não veio despedir-se de mimMinha família abstrata e impossível....Adeus dia de hoje, adeus apeadeiro de hoje, adeus vida, adeus, vida... (Lopes, 1985:378)

Fonte

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9.

Trajetórias carto-geográficas de uma família de cristãos-novos dos sertões das Gerais aos cárceres da Inquisição: o caso dos irmãos Nunes1

Júnia Ferreira Furtado

Em fins da década de 1740, o cartógrafo francês, Jean Baptiste Bourguignon D’Anville, em estreita colaboração com o embaixador português dom Luís da Cunha, então residindo em Paris, meticulosamente, preparava um mapa da América do Sul. O embaixador esperava que, uma vez pronto, o mesmo servisse de base para as negociações com a Espanha, que então ocorriam em Madrid, acerca das fronteiras do Brasil. Tratava-se da Carte de l’Amérique méridionale, impressa em 1748 (Paris. Bibliotéque Nationale de France [BNF]. Département des Cartes et Plans [DCP]. Ge C 6149, impressa, 1748).2 Para estabelecer a geografia de parte do território da América portuguesa que se estende entre Salvador da Bahia e o coração das Minas Gerais, um roteiro,3 intitulado Noticias das minas da América chamadas Geraes Pertencentes a El rei de Portugal, relatada pellos tres irmaos chamados Nunes os quaes rodaraó muytos annos por estas partes (Stuttgart. Robert Bosch Collection [RBC] n.229, doc.555 [1]), foi a fonte principal utilizada pelo cartógrafo. O cotejamento entre as informações contidas nesse documento e a conformação geográfica desse território no mapa de D’Anville revela a correspondência evidente entre os dois. De fato, o próprio cartógrafo atestou, nas Memórias, que, pouco depois, escreveu sobre o processo de produção de sua carta, que, nesse trecho, se baseou nesse documento (D’anville, 1750), e, no livro que publicou, em 1777, para aprimorar o estudo da geografia, reafirmou que “um itinerário de cerca

1 A pesquisa na qual esse capítulo se insere foi financiada pelo CNPq (Bolsa de Produtividade em Pesquisa) e FAPEMIG (Programa Pesquisador Mineiro) e resultou no livro Oráculos da geo-grafia iluminista: Dom Luís da Cunha e Jean-Baptiste Bourguignon D’Anville na construção da cartografia do Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.2 O mapa foi confeccionado em três partes e corresponde a três folhas separadas. Versões pos-teriores mantiveram a mesma data de impressão, mas apresentam alterações, correções e acrés-cimos.3 A primeira análise que fiz sobre esse documento resultou na publicação conjunta, com meu colega Neil Safier de artigo de nossa autoria (ver Furtado e Safier, 2006). Muitas das análises que então propusemos são retomadas aqui de forma mais vertical. Também utilizei esse documento no livro Oráculos da geografia iluminista (2012), especialmente nos capítulos 8 e 9.

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de 250 léguas, me conduziu, partindo da Baía de Todos os Santos, até Vila Rica” (D’anville, 1777:67).

Este capítulo investiga o roteiro dos irmãos Nunes a partir de algumas questões: Do que trata esse documento e quem seriam seus supostos autores? Como ele chegou às mãos de D’Anville? Foi por meio de dom Luís da Cunha? Quem seriam os Nunes e o que os teria levado à escritura desse roteiro e como este nos permite aproximar da concepção geográfica que formularam dos territórios que percorreram, o que intitulo de uma geografia vivida? Como se verá, eles eram cristãos-novos, e, por esta razão, interessa discutir de que maneira sua transumância nos permite esboçar uma trajetória carto-geográfica da saga errante de uma família de marranos no espaço atlântico.

O roteiro Noticias das minas da América chamadas Geraes é constituído de quatro partes: a primeira descreve o caminho que, a partir da cidade de Salvador na Bahia, dividindo-se em duas rotas distintas – a Travessia de João Amaro e a Travessia de dona Joana –, alcançava o rio São Francisco e daí, seguindo sua margem direita, subia o rio das Velhas e atingia Vila Rica já nas Minas; a segunda trata-se de um relato da Guerra dos Emboabas, conflito que opôs, entre 1708 e 1711, os paulistas e os recém-chegados, apelidados genericamente emboabas (Romeiro, 2008), pelo controle da área; a terceira descreve o caminho para a região das esmeraldas e a quarta é um rol sucinto de tribos indígenas encontradas ao longo do rio Doce.

Os irmãos Nunes

Os próprios autores do roteiro se autodenominaram no texto como sendo “os irmãos Nunes”.4 Eles eram três e chamavam-se respectivamente Diogo, João e Sebastião Nunes, tendo sido possível identificá-los a partir do rol dos culpados oriundos do Brasil, levantado por Anita Novinsky (1992:28, 58, 103), junto aos arquivos da Inquisição. Portugueses, cristãos-novos, naturais da vila de São Vicente da Beira, parte do Concelho de Castelo Branco, Bispado da Guarda, próxima à fronteira espanhola, os irmãos Nunes eram descendentes de famílias de judeus que haviam fugido das perseguições inquisitoriais na Espanha e foram convertidos à força ao catolicismo em Portugal, no final do século XV.

Seus pais eram Diogo Nunes, natural de Proença,5 e Clara Henriques,

4 Segundo eles, eram “chamados os três irmãos, que são os de quem se teve esta Relação e se chamam Nunes de sobrenome” (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes... n.229, doc. 555 [1], f.1, f.6).5 Há aqui uma dúvida, pois existem duas Proenças nas Beiras. Proença-a-Velha faz parte do Concelho de Idanha-a-Nova e Proença-a-Nova faz parte do Concelho de mesmo nome, mas o mais provável é tratar-se da primeira.

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nascida em São Vicente da Beira (Lisboa. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo [ANTT]. Inquisição de Lisboa [IL]. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro).6 Logo após o matrimônio dos dois, o casal estabeleceu-se junto à família de Clara, em São Vicente, onde os três meninos nasceram. Sem que se possa ter certeza da ordem em que vieram ao mundo, parece que João foi o primogênito, seguido de Diogo, que nasceu por volta de 1675, e de Sebastião, o caçula. Depois que os filhos cresceram, a família mudou-se para Idanha-a-Nova, reduto onde moravam muitos outros membros da sua parentela. Eram gente humilde. O velho Diogo, como seus três filhos, dedicaram-se ao pequeno comércio, identificando-se todos como tratantes (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Perguntas de genealogia realizadas a 7/11/1729).7 Os tratantes serviam como comissários, realizando negócios, transportando mercadorias ou cobrando dívidas, agindo sempre, sob comissão, a serviço de terceiros (Furtado, 1999:327-32). A itinerância marcava seu modo de vida. Era uma profissão arriscada, muitos morriam nas viagens perigosas que eram obrigados a fazer ou assassinados por maus pagadores ameaçados pelas cobranças que estes eram encarregados de realizar (Furtado, 2006:165-192).

Os três irmãos Nunes eram filhos do segundo casamento do velho Diogo. Por essa razão tinham três meio-irmãos desse primeiro matrimônio do pai, que se chamavam, respectivamente, Diogo Henriques, Manoel Mendes e Francisco. Esses meio-irmãos também moravam em Idanha-a-Nova, onde eram sapateiros, assim como grande parte dos tios e primos dos três rapazes. Mas havia alguns indivíduos da família que estavam ascendendo socialmente, deixando o mundo dos ofícios mecânicos ao qual pertencia a maioria de seus membros,8 para ingressarem no das artes liberais, como era o caso dos primos Diogo Nunes Ribeiro e Antônio Ribeiro Sanches,9 médicos, e Antônio Nunes, que estudava medicina (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Perguntas de genealogia realizadas a 7/11/1729).

Como os três irmãos, a maioria família residia na Beira, entre São Vicente, Idanha-a-Nova, Covilhã e Proença, mas havia parentes espalhados por todo o império português, como também pela França, Holanda e Inglaterra. Em fins da década de 1720, Diogo Nunes Ribeiro e Antônio Ribeiro Sanches10 estavam

6 Todas as informações sobre os irmãos foram retiradas desse processo.7 Sobre seus avós, só soube informar o nome de um deles. Tratava-se de Diogo Gomes, que vivia de sua fazenda, morador em São Vicente da Beira, provavelmente pai de sua mãe.8 Nas sociedades de Antigo Regime, como era o caso de Portugal e demais países europeus por essa época, as profissões cindiam-se em dois grandes universos: as artes liberais e as artes me-cânicas. Nas primeiras se enquadravam os médicos e nas últimas os pequenos comerciantes e os sapateiros. Enquanto as primeiras eram honrosas, as segundas eram desonrosas. 9 O famoso médico português cujo nome completo era Antônio Nunes Ribeiro Sanches. 10 Sobre Ribeiros Sanches, Dom Luís da Cunha que o conheceu na Universidade de Leiden, em 1730, assim descreveu seu périplo: “havendo estudado em Coimbra, se formou em Salamanca, depois estudou em Pádua, depois em Londres, e ultimamente estuda debaixo de Boerhaave, e estudará ainda três anos para se crer perfeito nesta ciência, a fim de ir praticar em Paris” (Lisboa.

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em Londres, assim como a prima Clara, que ali era professora de judaísmo; os primos Diogo Nunes Henriques e Miguel Nunes estavam em Minas Gerais onde eram tratantes; José Nunes de Miranda era comerciante no Rio de Janeiro; Gaspar Henrique, capitão de navio, morava em Salvador; Luís Lopes, cirurgião, morrera a caminho da Índia (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Primeira confissão realizada a 7/09/1729 e Perguntas de genealogia realizadas a 7/11/1729), e Ana Nunes estava em Haia, nos Países Baixos (ANTT. Ministério dos Negócios Estrangeiros [MNE]. Caixa 1, maço 1, doc.39. Correspondência de Dom Luís da Cunha com Marco António de Azevedo Coutinho. Bayona 22 de março de 1729).

O contato dos três irmãos Nunes com o judaísmo de seus antepassados se deu ainda na infância. Como comumente ocorria entre as seguidas gerações portuguesas de cristãos-novos, os três meninos foram instruídos pela mãe no recôndito do lar, situado nos arredores de São Vicente da Beira. Como deve ter ocorrido com os demais, Diogo recebeu os primeiros ensinamentos aos 13 anos (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Primeira confissão realizada a 7/09/1729 e Auto de questionamento da fé realizado a 7/11/1729), coincidindo com seu Bat Mitzvah, quando, pelas crenças judaicas, os rapazes se tornam responsáveis por seus atos. O que sua mãe lhes ensinou durante esse rito iniciático como necessário para salvar suas almas, os irmãos mantiveram como crença por toda a vida, norteando também as cerimônias que praticavam, secretamente, entre si e com outros judaizantes que encontravam em suas andanças. Diogo contou que quando rezavam o Padre Nosso não mencionavam Jesus no final, não crendo nele, já que ainda aguardavam a vinda do messias; também não criam nos mistérios da Santíssima Trindade, nem nos sacramentos da igreja, ou no poder da confissão para a salvação de suas almas; guardavam “os sábados de trabalho como se fossem dias santos” – o Shabbat; não comiam carne de porco, lebre, coelho e peixe de pele; e acreditavam que só existia o Deus do céu. Comemoravam a Páscoa e faziam o jejum do Dia Grande (o Yom Kippur) e o da rainha Ester (Purim), que caía entre os meses de janeiro e fevereiro. No calendário hebreu, o Yom Kippur começa no crepúsculo que inicia o décimo dia do mês hebreu de Tishrei (que coincide com os meses de setembro ou outubro, pois é realizado anualmente no décimo sétimo dia do sétimo mês do ano), continuando até ao seguinte pôr do sol. “Representa o dia do ano em que o homem tenta servir Deus como um anjo” (Fernandes, 2000:148) e os três rapazes, como era o costume, ficavam “desde a véspera, depois de sair a estrela, até o dia seguinte, às mesmas horas, sem comer nem beber e ceia[vam], então, o que se lhe oferecia”. Segundo o Santo Ofício, esses hábitos e crenças eram todos indicativos de adesão ao judaísmo e esses eram os mesmos indícios usados por eles, onde quer que estivessem, para, ao iniciarem uma conversação, identificar seus semelhantes (ANTT. IL. Processo n.7488,

Biblioteca Nacional de Lisboa. [BNL]. Reservados. Maço 61, n.2, doc.10).

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Diogo Nunes Ribeiro. Confissões realizadas a 7/09, 3/11 e 7/11/1729 e Auto de questionamento da fé realizado a 7/11/1729).11

Muito se tem discutido sobre a veracidade ou não dessas confissões, porque ou eram arrancadas a força por meio da prática da tortura, ou eram rapidamente reveladas para que, sobre o confidente, recaíssem as penas mais leves, pois “embora a confissão não significasse culpa, o réu tinha de se culpar, se arrepender e pedir perdão para não ser considerado negativo” (Fernandes, 2000:146). Creio ser um debate estéril partir do pressuposto que esses réus eram inocentes, o que se observa, como no caso dos Nunes, é que, a partir do edito português que transformou todos os judeus em cristãos-novos em fins do século XV, e ao longo dos séculos seguintes, os que, como eles, teimavam em judaizar tinham que realizar as suas práticas de maneira secreta, e o que acabou sendo preservado era uma pálida lembrança do judaísmo de seus antepassados. Os Nunes judaizaram, disso não se pode ter dúvidas, assim como todos os que com ele se encontraram secretamente para celebrarem as cerimônias judaicas. O que considero importante é compreender que o próprio Santo Ofício contribuiu para conformar as práticas judaizantes que sobreviveram ao longo do tempo. Ao encerrar o criptojudaísmo em um conjunto de ritos e cultos exteriores, mais fáceis de serem identificados, a própria Inquisição moldou uma pedagogia judaica que sobreviveu a sua própria intenção de extermínio dessa crença e a conformou. Ou seja, a Inquisição produzia judaizantes em série. Não porque estivesse apenas interessada em seus bens, mas porque esses eram subprodutos do discurso que continuamente produzia acerca da fé judaica e sobre os ritos que os cristãos-novos professavam em segredo, contribuindo para memorizar (ainda que de forma fragmentada) aquilo que pretendiam fazer esquecer.12 A confissão dos Nunes revela não apenas que seu judaísmo estava circunscrito a práticas fragmentadas da religião que abraçavam, como eram esses mesmos indícios que utilizavam para identificar seus semelhantes.

Mas para manter as aparências junto à comunidade e ficarem a salvo dos longos braços da Inquisição, ainda em São Vicente, os três irmãos Nunes foram batizados pelos pais e, mais tarde, crismados, já em Indanha-a-Nova. Diogo teve como padrinhos Francisco Lopes e Manoel Rodrigues, respectivamente (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Perguntas de genealogia realizadas a 7/11/1729). Onde quer que se encontrassem nos vastos territórios do império português, os três frequentavam a igreja católica e se confessavam. Mas eram apenas formalidades, pois não seguiam os seus preceitos nem revelavam ao confessor o que sabiam serem, segundo o catolicismo, erros de fé, já que não acreditavam que a confissão fosse capaz de perdoar seus pecados

11 Neusa Fernandes conclui que os ritos e práticas são muito semelhantes entre os judaizantes em Minas e chama a atenção “a preservação dos elementos religiosos essenciais” (2000). 12 É a partir desses mesmos princípios que Ginsburg (1990) analisa o culto dos Benandanti na Itália.

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(ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Confissões realizadas a 7/09, 3/11 e 7/11/1729 e Auto de questionamento da fé realizado a 7/11/1729).

Com cerca de 21 anos, Diogo casou-se com Leonor Henriques, provavelmente parente sua, já que o sobrenome da mãe dele também era Henriques, e mudou-se para a Vila de Covilhã, onde a moça residia. Ali continuou a participar secretamente de ritos judaicos, tanto na casa de sua sogra, Brites Henriques, quanto na de sua prima, Ana Nunes, casada com seu cunhado, Antônio Vaz (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Primeira confissão realizada a 7/09/1729). João permaneceu solteiro por toda a vida e Sebastião casou-se com a filha de André de Siqueira, ambos cristão-novos e judaizantes. Nenhum dos três deixou descendência legítima ou ilegítima.13

A saga dos três irmãos entre o Reino e as Minas Gerais

Por volta 1707, quando Diogo tinha perto de 31 anos, ele e João resolveram deixar o reino para buscar tirar proveito das oportunidades comerciais em outras praças marítimas do império português. Por essa época, João era solteiro, mas Diogo, já casado, deixou para trás a esposa (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Segunda confissão realizada a 3/11/1729). Primeiramente, fixaram residência em Luanda e se envolveram no trato negreiro. No entanto, não ficaram muito tempo por lá. Logo perceberam que as oportunidades do outro lado do Atlântico, na América portuguesa, polo completar deste comércio bipolar com a África (Alencastro, 2000; Costa e Silva, 2003), eram mais promissoras e, em menos de um ano, aportaram em Salvador da Bahia, com a intenção de se estabelecerem no Brasil. Possivelmente concretizaram essa ideia nas longas conversas que mantiveram na casa de Diogo, em Luanda, com Manoel Nunes Bernardes, que era comerciante no Rio de Janeiro. Judaizante como eles, enquanto estiveram juntos, os três praticaram em segredo cerimônias e ritos judaicos (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Primeira confissão realizada a 7/09/1729). Não se sabe se Sebastião foi com os dois para a África, mas é certo que os encontrou na Bahia, sem que se saiba quem chegou antes de quem (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Primeira confissão realizada a 7/09/1729).

Durante toda a permanência dos irmãos no Brasil, a partir dos contatos estabelecidos em Luanda, os três mantiveram-se envolvidos no comércio de escravos, em seus diversos desdobramentos. É o que revela o exame dos relacionamentos deles, que mesclavam negócios, relações familiares e o

13 Pelo menos até o ano de 1729, quando se perde o rastro de Sebastião e Diogo, sendo que João já havia morrido (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Perguntas de genealogia realizadas a 7/11/1729).

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exercício secreto do judaísmo. Cite-se José da Costa, que era capitão de navios com destino a Angola (Novinsky, s/d:154-157; ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Primeira confissão realizada a 7/09/1729);14 Antônio Roiz Campos, que era lavrador de tabaco e proprietário de um curtume no Recôncavo Baiano, sendo que o fumo e o couro eram comercializados na África (Novinsky, 1992:52; ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Segunda confissão realizada a 3/11/1729); e Manoel Mendes Monforte, médico, que enviava carregações de pano para serem vendidas em Luanda – todos cristãos-novos e judaizantes (Novinsky, 1992:198-206; ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Primeira confissão realizada a 7/09/1729).

O comércio negreiro, entretanto, não se resumia apenas ao intercâmbio estabelecido entre as praças marítimas africanas e brasileiras. Ao longo do século XVIII, o crescimento da produção de ouro e diamantes fez interiorizar as trocas entre o porto de Salvador e a região mineradora. As Minas exigiam cada vez mais a presença do braço escravo e tornaram-se o destino final da maior parte dos cativos que chegavam aos portos brasileiros, conectando esta região interior ao comércio negreiro transatlântico. Calcula-se que, de Salvador, cerca de 40% dos recém-chegados da África, nesse período, foram redirecionados para a área mineradora (Goulart, 1975:165), o que teria representado uma média de cerca de 1.560 cativos ao ano (Ribeiro, 2005:195).

Apesar da complementaridade comercial entre a Bahia e as Minas e do dinamismo das atividades mercantis estabelecidas entre as duas regiões, logo no início do século XVIII, o trato negreiro para a área mineradora foi proibido. Seguidas leis foram editadas visando restringir as trocas nessa rota apenas ao gado vacum e cavalar, que era, em boa parte, criado nos sertões entre as duas capitanias.15 Segundo os Nunes, “só era permitido que passassem os mercadores que levavam bois, ou outros alimentos”, e “em Sete Alagoas, [era] onde [ficavam] os visitadores, [qu]e confiscam as fazendas”. Para resistirem às ordens régias, “os mercadores que viajam se juntam no Maquiné, e se preparam para se defender, porque os visitadores são muitos, e bem armados” (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes... n.229, doc. 555 [1], f.1, f.6). Mas, apesar dessas restrições, da Bahia, continuaram a sair mercadorias de toda a natureza com destino às Minas, não só os valiosos escravos, como também louça da Índia, toalhas, roupas, tecidos, bebidas, medicamentos, entre outros, produtos

14 “José da Costa tomara um navio emarrendamento, comandando-o ele próprio, e então diri-giu-se a Angola” (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Primeira confissão realiza-da a 7/09/1729). Foi preso em 1728 (Salvador, 1992:93).15 O argumento é que dessa forma se evitava os descaminhos de ouro. Providências nesse senti-do estiveram contidas nas ordens e bandos do governador da Repartição Sul, Dom Artur de Sá e Menezes, de 23 e 25 de setembro e 20 de dezembro de 1701, medidas que foram reforçadas pela carta régia de 9 de dezembro de 1702. Estas leis foram renovadas pelo governador seguinte, Dom Álvaro de Silveira Albuquerque, em atos de 16 e 25 de setembro de 1702, e de 10 e 13 de março de 1703 (Anastasia e Furtado, 1999; Furtado, 2006).

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manufaturados, oriundos tanto do reino, quanto da Europa, da África e do oriente. Os Nunes atestaram o dinamismo desse comércio e contaram que, em fins da década de 1720, “El Rei, [deu] permissão para que tudo passe, pagando os direitos reais, os quais estão arrendados em setenta e cinco arrobas de ouro, em cada um ano” (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes... n.229, doc.555 [1], f.1, f.6). Mas esse não era um movimento unidirecional. Os viandantes, no caminho de volta, levavam para o porto de Salvador produtos das fazendas da região – sertão e recôncavo –, principalmente o couro e o tabaco, que eram essenciais para a realização do comércio negreiro na África (Verger, 1964; Furtado, 2012). Considerado pelos portugueses como sendo de terceira qualidade, esse fumo, embebido em melaço e envolto em couro para impedir que ressecasse ou perdesse o aroma, caiu no gosto da nobreza da costa do Benin, que o recebia como parte do pagamento pelos escravos (Verger, 2004:43).

Como era comum entre as famílias que se dedicavam ao comércio no império luso-brasileiro,16 os três irmãos se associaram para usufruir desse rendoso circuito comercial (Furtado, 2012). Inicialmente, sem grandes créditos para se envolverem diretamente no comércio de escravos ou na compra de mercadorias que vinham do reino, os três perceberam que o melhor era se colocarem a serviço de terceiros e, como tratantes, trilhar o caminho que ligava o porto baiano às Minas Gerais. No caso desse eixo comercial,

a figura do tratante tornava-se fundamental porque grande parte das vendas se realizava a grandes distâncias dos [grandes] comerciantes, já que [estes] se encontravam nos portos litorâneos ou nas vilas mineiras, [e dos fazendeiros que ficavam no] sertão. O costume de comprar fiado também tornava a figura do tratante essencial para a cobrança de dívidas. Por costume, o tratante recebia as mercadorias para transportá-las, delas tornava-se devedor a quem lhe contratara, passando-lhe documento escrito. Uma vez vendidas, geralmente pelo sistema de crédito, o tratante tinha que receber o pagamento, o que durava vários anos. De posse do dinheiro, as contas eram acertadas, recebendo o tratante uma porcentagem sobre as vendas. (Furtado,1999:327)

Assim, no ano seguinte após chegarem a Salvador,17 os três seguiram pela primeira vez para as Minas, iniciando a viagem em outubro de 1709.18 Adquiriram alguns cavalos19 que carregaram as mercadorias que levavam.

16 Os casos dos Pinto de Miranda e de Francisco Pinheiro e seus agentes são examinados em Santos (1994).17 É o que se depreende examinando a cronologia e a geografia reveladas nas três confissões de Diogo junto ao Santo Ofício (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro).18 “Achávamo-nos na Bahia de Todos os Santos, no mês de outubro, em 1709, quando resolvemos fazer [uma] viagem para as Minas Gerais; assim chamadas por estarem no meio daquelas con-quistas” (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes... n.229, doc.555 [1], f.1).19 Os cavalos eram essenciais para o transporte das mercadorias. Domingos Nunes, tratante nas Minas, tinha para tanto três cavalos. (Novinsky, 1992:96-97). Manoel Madureira Pinto, que em

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Tomaram o Caminho da Bahia, que também era chamado de “Caminho dos Currais”, devido às inúmeras fazendas dispostas ao longo de seu traçado e pelas inúmeras boiadas que, constantemente, por ele transitavam, indo abastecer de carne a população mineradora; ou ainda “Caminho do Sertão”, devido à natureza agreste de grande parte da região que cortava.

Pelo fato de estarem sempre a serviço de terceiros, era forçoso que os tratantes estabelecessem redes de negócio que abarcavam amplos espaços e que se misturavam com laços familiares, de amizade e de fé. Assim, por onde passaram os irmãos Nunes encetassem relações comerciais com membros da sua parentela e com os irmãos de fé. Como eles, vários membros das famílias Nunes, Henriques e Mirandas, todos cristãos-novos, muitos deles judaizantes, exploraram essa rota entre as Minas e a Bahia e frequentemente se associaram para esse fim.20 Numa ponta, ficavam os que dispunham de crédito e financiavam as atividades comerciais dos pequenos comerciantes da família. Diogo de Ávila Henriques, por exemplo, estabelecido em Salvador, tinha acesso a letras de crédito recambiadas do Porto e de Lisboa para a Bahia (Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência. Casa do Pilar. Testamento de João Gonçalves Batista, cód.67. Auto 802, à página 81). Com esse capital, tornou-se grande importador de negros de Angola que, em parte enviava, por mãos de terceiros, como João Lopes Álvares e Jerônimo Rodrigues, para vender em Minas (Novinsky, 1992:79-84). Também mandava comprar couro no sertão, que entregava a Antônio de Miranda, dono de curtume na Bahia, para ser beneficiado (Novinsky, 1992:50-53). Uma vez curtido o couro, parte era transformada em solas que eram enviadas para a cidade do Porto, para serem comercializadas por seu pai Jorge Henrique Moreno; outra parte mandava vender nas Minas; e ainda outra era revertida para o comércio negreiro em Angola.

Também grande homem de negócio da família foi o primo Diogo Nunes Henriques, natural de Pinhel, arcebispado de Vizeu. Os três Nunes tiveram intenso contato com ele em Minas, onde primeiramente se estabeleceu no Curralinho, e mais tarde mudou-se para as Minas de Itacambira, todas localidades dispostas no Caminho da Bahia (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Primeira confissão realizada a 7/09/1729). Nunes Henriques adiantava créditos a negociantes volantes, como era o caso dos três irmãos ou de Cristóvão João, e também comprava gado do sertão que mandava conduzir e vender nos açougues das vilas da região mineradora (Novinsky, 1992:89-91).

1733 encontrava-se na Bahia de partida para as Minas, possuía para seu comércio uns “cavalos e seus trastes” (Sabará. Museu do Ouro [MO]. Casa Borba Gato [CBG]). Testamento de Manoel Madureira Pinto, L2[6], f.80v-83). Lucas Pereira do Lago, natural da Bahia, declarou em seu testamento que estava “para seguir viagem para as Minas e levo em minha companhia escravos, cavalos e os mais produtos necessários para o caminho e negócio” (MO. CBG. Testamento de Lucas Pereira do Lago, L6 [12], f.127-132).20 Para mais detalhes, ver Furtado (2006; 2012).

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Os três Nunes frequentaram também a casa que ele possuía em Vila Rica. Esta se tornou uma verdadeira “sinagoga”, onde amigos e parentes realizaram vários ritos judaicos. Ali se reuniam ainda “David Mendes, Domingos Nunes (sobrinho de Diogo Nunes Henriques), o senhor de engenho Domingos Rodrigues Ramires que tinha residido no Rio de Janeiro, João da Cruz, o mercador de panos David de Miranda, Francisco Nunes, Duarte Rodrigues, Manuel Nunes de Paz (filho de Diogo Henriques), Manuel Nunes Sanches e muitos outros, todos vizinhos” (Novinsky, 2001). Negócios, amizade, parentesco e a prática do judaísmo se mesclavam nas relações que se estabeleciam entre eles.

Na outra ponta dessas complexas redes comerciais, ficavam os tratantes, como era o caso dos três irmãos Nunes. Como exemplo, um parente deles, Fernando Gomes Nunes era contratado por várias pessoas para fazer carregações da Bahia às Minas e dispunha de quatorze cavalos para o negócio, além de duas pistolas e dois revólveres para se proteger dos perigos dos caminhos. Era credor de muitos moradores nas Minas pelas fazendas secas e molhadas que vendia. Entre seus devedores estava o cirurgião-barbeiro Luís Gomes Ferreira, autor do Erário Mineral (Ferreira, 2002), um caixeiro no Serro do Frio e um padre em Guarapiranga que tinha a alcunha de Quatro Olhos.21 Por sua vez, Fernando devia a várias pessoas na Bahia que lhe tinham dado as mercadorias para vender nas Minas, entre eles alguns comerciantes, proprietários de engenhos, um oficial da Casa da Moeda e um médico que veio da Índia e lhe passou produtos que trouxera de lá (Novinsky, s/d:105-107). Pouco antes de morrer, estava no Caminho do Sertão com três cavalos carregados com mercadorias pertencentes ao comerciante Manoel Sampaio de Freitas e ao senhor de engenho Diogo Henriques Ferreira. Também na Bahia, devia por empréstimos ao mercador Antônio Gonçalves Maciel e a um oficial da Casa da Moeda (Novinsky, s/d:105-107). Outro foi Domingos Nunes, tratante também para as Minas, para o que dispunha de três cavalos. Como resultado de sua atividade mercantil devia a Joseph Ferreira da Silva, comerciante, as fazendas que tinha comprado, mas tinha créditos nas mãos de vários devedores pequenos, provenientes das vendas que realizara (Novinsky, s/d:96-97). Como tratantes, os três irmãos Nunes envolveram-se em todas as pontas em que se desdobrava o trato negreiro realizado entre as praças africanas e a região mineradora: conduziam os escravos chegados no porto de Salvador, como também comercializavam couro, tabaco, tecidos e outros produtos que eram vendidos em Angola. Como era o costume, a maioria dessas mercadorias eram consignadas, sendo financiadas por terceiros. Muitos dos seus parceiros nessas atividades eram seus parentes, cristãos-novos e judaizantes como eles. Mais tarde, Diogo Nunes se declarou homem de negócio e não mais tratante (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro, folha de rosto). Homens de negócio era como se denominavam os comerciantes mais

21 Trata-se do padre Manoel da Silva. Mau pagador, só acertou a dívida depois de executado judicialmente (Salvador, 1992:39).

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ricos, envolvidos em múltiplas atividades mercantis, principalmente financiando a atividade dos comerciantes menores (Furtado, 1999:197-272). Era sintoma do seu enriquecimento no trato mercantil, que só as Minas Gerais, como nenhum outro ponto do império português no século XVIII, foram capazes de proporcionar (Furtado, 1999; Stumpf, 2009; Rodrigues, 2011).

Entre a América portuguesa, a Inglaterra e a França

Os três irmãos permaneceram cerca de 15 anos em Minas Gerais, entre 1709 a 1724, circulando anualmente entre esta capitania e Salvador. Durante esse período foram testemunhas de muitos dos acontecimentos que convulsionaram os primeiros tempos do povoamento da região, como a Guerra dos Emboabas (Romeiro, 2008). Da pena deles sobreviveu um dos raros testemunhos coevos, não oficiais, do conflito (RBC. De como os Paulistas foram dominados, n. 229, doc. 555 [2], f.11-17). As razões do embate foram várias e se revelam na própria etimologia da palavra “emboabas”, que é incerta e cujo significado é flexível. Por vezes, era utilizada para designar apenas os portugueses; em outras, englobava todos os que não fossem paulistas, como portugueses, baianos, pernambucanos, etc. Foi empregada ainda para diferenciar os que tinham aberto as minas, identificados como paulistas, e os recém-chegados, que eram acusados pelos primeiros de não terem contribuído para seu desbravamento e de apenas usufruírem suas riquezas; ou para indicar todos os que utilizavam o Caminho da Bahia, em oposição aos que chegavam de São Paulo.22 Os paulistas se autodenominavam “naturais do solo”, “filhos da terra” e se opunham a todos os forasteiros, que eram chamados “emboabas por desprezo, que na sua língua quer dizer galinhas calçudas, o que imitavam pelos calções que usavam de rolos” (Códice Costa Matoso, 1999:206, Vol. 1).23 A clivagem que os irmãos Nunes estabelecem opõe, de um lado, como era de costume, os paulistas, mas de outro, se referem aos europeus, esses últimos, por vezes, qualificados por eles como brancos e portugueses. Estabeleciam entre os dois grupos diferenças de cor – europeus brancos e paulistas mestiços – e também culturais – os primeiros eram honrados e civilizados, os segundos bárbaros, irracionais, traiçoeiros.24 Até a formação militar de ambos grupos

22 Como exemplo, nos textos da época: “todos os reinóis e os mais não sendo paulistas” (Códice Costa Matoso, 1999:198, Vol. 1), “levantamento e sublevação universal dos naturais do reino de Portugal contra os paulistas e naturais de toda a Serra Acima” (Códice Costa Matoso, 1999:193, Vol. 1), “logo paulistas e taubateanos, também tidos por paulistas, como todos naturais de Serra Acima” (Códice Costa Matoso, 1999:230, Vol. 1). Ver também: Russell-Wood (1999: 100-118) e Romeiro (2001:195-197).23 “Emboabas chamavam aos do Reino, palavra que quer dizer galinha com calças” (Códice Costa Matoso, 1999:202, Vol. 1).24 Ao descreverem os que se envolveram na guerra dizem: “aquele Europeu era homem honrado

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era distinta e refletia as diferenças entre eles. Sobre os paulistas os Nunes dizem que “esta gente marchava sem ordem alguma, todos em bando” e vinham “já matando e roubando os portugueses que encontravam”. Já o líder emboaba, Manuel Nunes Viana, dispôs “sua gente em boa ordem militar. Armou toda sua gente de boas armas. Formou companhias, fez oficiais de cavalaria e infantaria, com suas trombetas e tambores. Marchou esta gente mandada por um official, ficando Viana de reserva” (RBC. De como os Paulistas foram dominados, n.229, doc. 555 [2], f.14). De fato, enquanto os portugueses mimetizavam a organização e as táticas da guerra europeia – honrosa ao olhar dos Nunes –, os paulistas mamelucos – desonrosos –, utilizavam as técnicas de guerrilha indígena. O que foi denominado de guerra brasílica, a tática dos paulistas era caracterizada por emboscadas e assaltos, oposta em tudo à guerra europeia, que era realizada pelo embate dos exércitos, com formação tradicional, “amparados por rigorosa hierarquia de postos e funções”, no campo de batalha, onde realizavam grandes manobras (Romeiro, 2008:180).

Na esteira de uma visão emboaba do conflito (Furtado, 2005:277-295), como era de se esperar devido à sua origem reinol, os três irmãos posicionaram-se a favor dos portugueses e contra os paulistas. Não por acaso, o título que deram à parte do texto em que descrevem os acontecimentos foi De como os Paulistas foram dominados. Na visão deles “eram estes paulistas homens arrogantes [e] facinorosos. Matavam sem piedade, [e sem] nem admitir razão alguma (...). E cada um [era] um régulo. (...) E, muitos daqueles régulos se julgavam soberanos”. Segundo os irmãos, os paulistas também eram responsáveis, com suas arbitrariedades, de desorganizarem o comércio, especialmente pelo Caminho da Bahia, de que os três tinham interesse direto disto e disto se ressentiam. Mas, diferentemente de grande parte de seus compatriotas, os Nunes tinham uma visão favorável de Borba Gato, paulista, genro de Fernão Dias Pais Leme, que fora nomeado, pelo rei, superintendente das Minas, responsável por distribuir as lavras e manter a ordem nos tumultuosos primeiros tempos da exploração aurífera. Segundo eles, o Borba era “homem de cabeça, mais inclinado a fazer bem, que mal. Assim, favorecia [o] quanto podia aos mercadores, que com tanto trabalho faziam viagens tão longas” (RBC. De como os Paulistas foram dominados, n.229, doc. 555 (2), f.11-12). Por se colocar ao lado dos comerciantes e tentar apaziguar os instintos erráticos dos paulistas, ao Borba eram conferidos valores iguais aos dados aos europeus.

e tinha razão no que dizia”; já Manuel Nunes Viana era “homem de muito bem”, “homem de bom e grande coração”, “homem de valor e satisfação”, o “aborreciam mentiras e enganos”, “ca-pitaneava ele esta gente, e a sua, (…) entre os quais havia alguns brancos de Europa”. Em relação aos paulistas dever-se-ia ter “sempre o cuidado do que aqueles ânimos cavilosos podiam pre-meditar”, eram “soberbos e presumidos”, cometiam crimes atrozes, como degolar os portugue-ses que achavam. Valentim Pedroso, paulista, era “homem afamado em arrogância e crueldade” (RBC. De como os Paulistas foram dominados, n.229, doc.555 [2], f.11-16).

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Uma vez em Minas, Luís Nunes adquiriu a fazenda da Chapada, ao pé da Serra Vermelha, sem que se possa localizar com exatidão essa propriedade (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc.555 [1], f.6). Pouco depois, os três se fixaram no chamado “sítio (...) dos Três Irmãos” (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc.555 [1], f.6). Segundo eles, esta propriedade ficava depois do Curral do Borba; a seguir ao Roteador das Pedras de Luis Nunes; nas proximidades da lagoa da Itaubira, logo na saída da mata que circundava esse povoado, junto aos Campos de mesmo nome, a pouca distância de Vila Rica (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc.555 [1], f.6). Tratava-se de Campos de Itaubira, que é hoje a cidade de Itabirito. Reafirmando esta atribuição, Diogo afirmou que esta sua casa ficava a 6 léguas (cerca de 40 km) de Vila Rica. Para atingi-la, contou que “bastava ir até a Bocayna, e atravessar o Passa-dez, que é um rio, que se passa dez vezes” (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Primeira confissão realizada a 7/09/1729). As terras deveriam ter umas capoeiras, alguns campos e limitados matos”, como a que Bartolomeu Alves da Silva pediu que fosse confirmada na mesma região (Arquivo Histórico Ultramarino [AHU]. Manuscritos Avulsos de Minas Gerais [MAMG]. Caixa 87, doc.15. Requerimento de Bartolomeu Álvares da Silva..., 1765). Ali eles descobriram as minas do “Varão, [situadas] onde faz barra o rio da Itaubira”. Nesse local, apenas um dos irmãos possuía “dez ou doze possessões [de lavras], em mais de uma légua de terra, de que era senhor”. Segundo eles, estavam localizadas em uma das muitas minas de que se compunha a região aurífera, chamada “da Conquista, pelo bom sítio e matos em que está, [e] se julga a melhor das Minas Gerais” (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc.555 [1], f.9).

Campos de Itaubira era um dos distritos da freguesia de Cachoeira do Campo, pertencente ao termo de Vila Rica e, nos seus arredores, vários locais receberam a denominação da vegetação de campos que cobriam a região. Assim, o sítio dos irmãos ficava nos campos do Curralinho (AHU. MAMG. Caixa 87, doc.15). Ali os Nunes eram vizinhos de Diogo Nunes Henriques (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Primeira confissão realizada a 7/09/1729). Apesar de estar continuamente em trânsito, passou a considerar este seu local de residência.25 Cachoeira do Campo foi uma das localidades mais antigas de Minas Gerais (Barbosa, 1995:63-64), e palco de alguns dos conflitos da Guerra dos Emboabas. Acredita-se que na igreja de Nossa Senhora do Nazaré, a matriz, tenha sido o português Manuel Nunes Vianna empossado governador pelos insurgentes. Como os demais pequenos arraiais que surgiam entre e nas fazendas dispostas ao longo dessa rota, Campos de Itaubira, cuja

25 No processo ele é identificado como “morador no Curralinho, distrito das Minas de Ouro Preto, Bispado do Rio de Janeiro” (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro, folha de rosto).

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igreja principal era dedicada a Santo Antônio, padroeiro de Portugal, mesclava características entre o urbano e o rural. O povoado ficava distante do centro da região mineradora, cravado nos confins dos sertões, mas, ao mesmo tempo, era local de trânsito intenso de viajantes, que ali pousavam caminho de Vila Rica. Por essas duas características, era ponto estratégico para o estabelecimento de uma comunidade de refugiados, como era o caso dos cristãos-novos, muitos deles envolvidos com o trato mercantil, como acontecia com os Nunes e vários membros da sua parentela.26 Não por acaso, pelo menos 25 membros da família foram aí se estabelecer no primeiro quartel do século XVIII.27 Dispersa em Portugal, os parentes se reuniam nos perdidos sertões das Gerais.28

Entre 1716 e 1719, Diogo e João também realizaram viagens ao Rio de Janeiro, passando a explorar outro importante eixo comercial que ligava as Minas Gerais ao porto carioca, que se dinamizava cada vez mais. Na primeira viagem que fizeram, pouco depois de saírem de sua casa, em Itaubira, se encontraram com um parente, chamado Miguel Nunes, tratante como eles. Miguel era sobrinho de David de Miranda (Novinsky, s/d:77), outro cristão-novo, também tratante do Caminho da Bahia, que se especializara em comprar panos em Salvador, com os quais fabricava roupas que eram vendidas nas Minas. Os três, então, como era o costume, viajaram juntos, protegendo-se mutuamente dos perigos do trajeto (Ver Furtado, 2005:192-205), como também aproveitaram para se conhecer melhor e acabaram revelando uns aos outros que, secretamente, professavam o judaísmo (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Terceira confissão realizada a 7/11/1729). Nas diversas estadas dos dois irmãos no Rio de Janeiro, como sempre faziam, buscaram estabelecer contatos com outros cristãos-novos judaizantes, com os quais pudessem se associar no trato mercantil, encontrar proteção e pouso na cidade e ainda realizar os ritos judaicos costumeiros. Tal ocorreu com Manoel Dias (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Segunda confissão realizada a 3/11/1729); Manoel Nunes Bernardes, que já conheciam de Luanda, e que fora quem provavelmente os aconselhara a se envolver no comércio com a praça carioca (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Primeira confissão realizada a 7/09/1729); e Ana Roiz, viúva de Damião Roiz, advogado (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Terceira confissão realizada a 7/11/1729).

26 De acordo com Augusto de Lima Jr., “os judeus e cristãos-novos (…) atiraram-se para as terras ultramarinas, buscando a fortuna e a redenção na largueza dos sertões infindos, onde dificilmente chegariam as importunações do Santo Ofício, por essa razão, segundo o autor, a migração para as Minas constituiu-se principalmente de “emigrados de Portugal, e de outras partes da Europa, onde predominavam os cristãos-novos ou mesmo judeus, vindos da Holanda, que até 1720 eram quase exclusivamente homens solteiros” (Lima Jr., 1978:35 e 75).27 Levantamento realizado a partir de Novinsky (s/d).28 Em 1765, quando Bartolomeu Alves da Silva pediu a confirmação da sua sesmaria no Curralinho, ainda eram seus vizinhos Domingos Nunes da Silva e João Nunes Pereira (AHU. MAMG. Caixa 87, doc.15).

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Uns dos pontos da capitania de Minas, situada fora das rotas para a Bahia e do Rio de Janeiro, que chegaram a atingir em suas andanças foi Pitangui, reduto onde os paulistas se aglutinaram depois da Guerra dos Emboabas (Cunha, 2009). Ali se reuniram, por volta de 1716, na casa do cristão-novo, Antônio Roiz, originário do Fundão, onde, com mais um sobrinho deste e um mineiro de quem não se sabe o nome, cumpriram os ritos judaicos (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Terceira confissão realizada a 7/11/1729). Apesar das rivalidades entre europeus e paulistas, Pitangui parece ter sido um dos grandes redutos dos cristãos-novos em Minas (Lima Jr., 1978:79). Outro foi a região do Serro do Frio, onde, de acordo com os Nunes, encontrava-se a “paragem ad’onde (sic) se acham muitas esmeraldas”. Um deles conheceu a região por causa de um paulista a quem devotava amizade e, com ele, chegou até Itacambira. Segundo o Nunes, a viagem começou em Antônio Dias, distrito de Ouro Preto, inicialmente “buscando o poente”. Quando se atingia o rio Preto, a viagem passava a ser feita em canoa e seu curso era percorrido até desaguar no Jequitinhonha. Seguindo a vazante desse rio, chegava-se às Minas de Araçuaí e finalmente, um pouco mais ao norte, a Itacambira (RBC. Da paragem ad’onde se acham muitas esmeraldas, n.229, doc.555 [3], f.19).

Mas a praça mercantil mais importante para suas atividades foi Salvador, onde os irmãos iam anualmente comprar e vender mercadorias. A viagem era iniciada sempre no mês de outubro, quando começavam as chuvas, essenciais para suprir de água os viajantes e seus cavalos que se aventuravam por uma região em grande parte marcada pelo agreste da natureza (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc.555 [1], f.1). Nos vastos sertões que se estendiam entre as duas capitanias, os Nunes se abasteciam de tabaco, tendo como um dos seus fornecedores Antônio Roiz Campos, de alcunha o Romão, lavrador nas proximidades de Santo Amaro, no Recôncavo Baiano (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Terceira confissão realizada a 7/11/1729). Também realizavam negócios com Manoel Mendes Monforte, já mencionado, que passara a ser proprietário de um engenho, o sítio do Salgado, perto da vila de Cachoeira, a 3 léguas de Salvador; com outra proprietária de engenho na região, Isabel Luiza de Pina; e com o lavrador de cana, Luís Nunes de Castro (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Primeira confissão realizada a 7/09/1729). Em Salvador, se relacionavam com vários homens de negócio, alguns deles chegando a financiar suas atividades, como Antônio do Vale Sarmento, Domingos Nunes Penacor, João Roiz Nogueira, sendo que este último, apesar de ter a base de seus negócios na cidade, morava nas Minas. Na companhia destes – cristãos-novos e judaizantes como eles – cumpriram secretamente os ritos judaicos (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Terceira confissão realizada a 7/11/1729). Como era típico nessa época, a identidade religiosa e familiar contribuindo para a realização dos negócios (Furtado, 1999:57-72).

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Por volta de 1724, os três Nunes resolveram deixar o Brasil e retornaram a Salvador, onde tomaram um barco de volta ao reino. As minas da Itaubira foram repartidas entre “quatro amigos, os quais [ainda] ficaram tirando ouro mais de ano e meio” depois (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc. 555 [1], f.9). É muito provável que resolveram fugir quando os longos braços da Inquisição chegaram ao Curralinho. De fato, do total de 51 cristãos-novos denunciados ao Santo Ofício como judaizantes, em Minas Gerais, na primeira metade do século XVIII (Novinsky, 2001:215-241), 25 indivíduos eram oriundos dessa localidade, vários deles chegando a ser presos e enviados a Lisboa. Do total, 3 eram mulheres, os demais do sexo masculino, sendo que 9 tinham o sobrenome Nunes. Parece que a prisão de Francisco Nunes Miranda, médico, aparentemente o primeiro cristão-novo preso no século XVIII na capitania, deu início à perseguição e descoberta dos demais familiares e amigos que, como pedras de um dominó, eram descobertos a partir dos depoimentos dos já encarcerados (Fernandes, 2000:97). Tudo indica que os Nunes deixaram a cidade em companhia de Diogo Fernandes Cardoso, a esposa deste, Branca Lopes, a mãe dela, Brites Lopes e duas cunhadas dele (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Primeira confissão realizada a 7/09/1729).

Diogo contou que resolveu voltar a Portugal porque recebera no Brasil uma carta na qual sua prima, Ana Nunes, o marido dela, Antônio Vaz, e os filhos destes ameaçavam que, se ele não retornasse ao reino para fazer a vida com sua mulher, Leonor Henriques, iriam denunciá-lo à Inquisição (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Segunda confissão realizada a 3/11/1729). Não se sabe se tal carta existiu mesmo, podendo tratar-se apenas de uma desculpa, já que os três, e não apenas Diogo, resolveram partir juntos, deixando para trás suas propriedades e seus rendosos negócios. O mais provável é que, a essa altura, a fé que verdadeiramente professavam estava prestes a se tornar pública, já que o número de judaizantes com quem haviam partilhado crenças e ritos era amplo e muitos deles já estavam presos. Era apenas uma questão de tempo para que as denúncias arrancadas nos cárceres do Santo Ofício apontassem para os três irmãos.

Ao desembarcarem em Lisboa, os Nunes não ficaram parados por muito tempo. Como era característico dos tratantes, os negócios exigiam viagens regulares. Começaram frequentando várias feiras no Alentejo, onde aproveitavam para falar a todos os cristãos-novos que se ofereciam sobre suas crenças íntimas, alargando seus laços de sociabilidade e negócios com a comunidade secreta de judaizantes. Também buscavam quem pudesse lhes ajudar a organizar uma fuga do reino – a Inquisição era uma ameaça real e cada vez mais próxima (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Perguntas de genealogia realizadas a 7/11/1729). Numa dessas viagens foram até a vila de Almada, no além-Tejo, onde visitaram Maria Ayres de Pina, viúva do médico Manoel Mendes Monforte, amigo e antigo parceiro de negócios nas Minas (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Primeira

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confissão realizada a 7/09/1729). Na casa de Maria Ayres, encontraram ainda vários amigos da Bahia (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Terceira confissão realizada a 7/11/1729), entre eles, parece, estavam Diogo Fernandes Cardoso e Miguel Nunes, com quem realizaram ritos judaicos. Tudo indica, no entanto, que o motivo principal da reunião foi acertarem os planos da fuga, já que, no ano seguinte, em 1727, todos estavam residindo em Londres, onde continuaram a se relacionar. Diogo contou que se encontrava com Miguel Nunes na sinagoga (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Terceira confissão realizada a 7/11/1729), visitava frequentemente a família de Diogo Fernandes Cardoso (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Primeira confissão realizada a 7/09/1729) e ajudou Maria Ayres de Pina a se instalar, emprestando-lhe dinheiro para seu sustento inicial (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Quarta confissão realizada a 14/11/1729).

Na Inglaterra, os três Nunes passaram a circular na comunidade de judeus portugueses ali exilados, entre eles, vários Nunes, como seus primos, os médicos Diogo Nunes Ribeiro (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Primeira confissão realizada a 7/09/1729) e Antônio Ribeiro Sanches, além de sua prima Clara. Por essa época, os dois últimos sobreviviam como professores de judaísmo (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Perguntas de genealogia realizadas a 7/11/1729). Como os demais, os irmãos aproveitaram a tolerância religiosa ali praticada e puderam professar abertamente a religião judaica. Frequentavam regularmente a sinagoga e, para externar sua verdadeira devoção, a conselho do primo Diogo Nunes Ribeiro, resolveram se circuncidar. A circuncisão de Diogo ocorreu em cerimônia “com todas as solenidades com que os judeus costumam em semelhantes ocasiões” (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Primeira confissão realizada a 7/09/1729). A profunda conversão à religião de Moisés e o domínio de suas crenças por parte dos irmãos se revela no fato de que, em Londres, Diogo e Sebastião se tornaram professores de judaísmo (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Perguntas de genealogia realizadas a 7/11/1729).

Mas, em 1728, os três Nunes se separaram, tornando, pela primeira vez, bastante distintos os destinos de cada um. Sebastião, por essa época já casado, resolveu permanecer em Londres com a esposa, e Diogo e João partiram para a França. É provável que, como era costume entre as famílias envolvidas no comércio, e como os três já haviam feito anteriormente, resolveram se distribuir por diferentes praças mercantis. Os dois foram morar em Dunquerque, ao norte de Calais (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Perguntas de genealogia realizadas a 7/11/1729). Ali, a morte inesperada de João e as notícias de que se tornara viúvo, o que parecia afastar as ameaças dos parentes de denunciá-lo à Inquisição, levaram Diogo a decidir retornar a Portugal.

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Os sinuosos trajetos do roteiro dos irmãos Nunes

Mas vamos deixar nos afastar um pouco do périplo dos três irmãos Nunes e nos debruçar sobre o roteiro que escreveram e seus significados. Não se sabe a data exata em que ele foi escrito, mas o próprio relato deixa entrever algumas pistas. (Não se pode deixar de mencionar que Diogo era analfabeto, sendo capaz apenas de assinar/desenhar seu nome, e muito provavelmente o mesmo se pode dizer de seus irmãos [ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Primeira confissão realizada a 7/09/1729].) O texto inicia advertindo que os Nunes se encontravam em Salvador, em 1709, quando resolveram ir às Minas, sugerindo ao leitor que é esta viagem que vai ser descrita. No entanto, à medida que a leitura se desenvolve, observa-se que vários trajetos possíveis de serem percorridos entre esses dois pontos extremos da estrada são descritos com acuidade e riqueza de detalhes. Tal conhecimento só pode ter sido reunido em inúmeras viagens e não apenas em uma só, como eram as que os Nunes realizavam anualmente entre Minas e Salvador, o que aponta para o fato de que o relato foi escrito num período bem posterior, reunindo informações tomadas em diferentes ocasiões. Outros elementos apontam na mesma direção: a referência a duas enchentes do rio São Francisco, uma ocorrida em 1712 e a outra em 1721; ao estabelecimento das casas de fundição em Minas, que se dá somente em junho de 1724, no governo de dom Lourenço de Almeida; a transferência da capital de Mariana para Vila Rica, que ocorre nesse mesmo ano; a menção ao fato de que o governador manteve sua residência na Vila do Carmo, no palácio utilizado até então por seus antecessores, o que ocorreu no governo de dom Lourenço de Almeida; ao fato de que Manoel Nunes Vianna se recolhera ao reino depois da Guerra dos Emboabas, onde ainda se encontrava corrido o ano de 1726; por fim, a informação do retorno dos Nunes a Portugal, que ocorre por volta de 1724, e de que as lavras da Itaubira que lhes pertenciam, foram deixadas a quatro amigos que continuaram fazendo-as render por mais um ano e meio após a sua partida, recuando a data do documento para perto de 1728. Portanto, pelo menos essa versão final (não se pode descartar que outras versões anteriores tenham existido), parece datar do fim da década de 1720, após a volta dos irmãos a Europa, coincidindo com a chegada deles na Inglaterra.

Se é inequívoco que esse documento serviu de fonte para que Jean Baptiste Bourguignon D’Anville estabelecesse, na Carte de l’Amérique meridionàle, a geografia dessa região, menos evidente é a forma como esse documento foi parar nas mãos do geógrafo francês. O que se sabe com certeza é que foi o embaixador português, dom Luís da Cunha, que lhe forneceu esse documento. Mas quais trajetos esse interessante documento percorreu entre a pena dos três irmãos, a mão do embaixador e o estúdio do geógrafo em Paris?

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Não se pode deixar de atentar que, em qualquer dos lugares por onde dom Luís serviu na Europa, ele entrou em contato com cristãos-novos portugueses exilados no exterior. Com eles exercitou a tolerância em relação às diferentes religiões e, apesar de ter sempre mantido a aparência de bom católico, se tornou um defensor da liberdade de culto e um severo crítico da Inquisição. Sempre sequioso de encontrar informações recentes e confiáveis sobre a geografia do interior do Brasil, para nortear as negociações diplomáticas que participava sobre os limites entre Portugal e Espanha na América, o embaixador buscou entre os cristãos-novos, cujas redes extensas se espraiavam desde o Brasil, informações geográficas sobre a conformação do seu território que lhe poderiam ser úteis. O roteiro dos irmãos Nunes encaixava-se como uma luva, pois possibilitaria que, nas mãos de D’Anville, com sua aguda habilidade para representar cartograficamente as descrições de trajetos de viagens, a região mineradora fosse situada com mais precisão. Não se pode esquecer que, na concepção de dom Luís da Cunha, esta região era um dos bens mais preciosos a serem mantidos sob o domínio da Coroa portuguesa. Era “o bem que a velha tem” (Rio de Janeiro. Arquivo do Itamaraty. Ofícios de Dom Luis da Cunha, 1719-1723, f.41, Madrid, maio de 1719), e era necessário saber sua posição exata

– se intra ou extra-Tordesilhas – para nortear adequadamente as negociações de limites a serem conduzidas com a Espanha.

Se não se pode traçar com certeza o momento em que o roteiro dos Nunes chegou às mãos de dom Luís, se pode rastrear os contatos que estabeleceu, nas diversas cortes em que atuou, com membros da ampla comunidade de cristãos-novos portugueses exilados no exterior que poderiam ter-lhe fornecido o documento. Na Inglaterra, serviu na embaixada entre 1697 e 1712, e experimentou duas curtas estadas, respectivamente em 1717 e 1719. Quando em Londres, conviveu com os médicos cristãos-novos portugueses Fernão Mendes da Costa, que o assistiu nas suas enfermidades (ANTT. Ministério dos Negócios Exteriores [MNE]. Correspondência entre diplomatas portugueses e secretários de Estado. Correspondência de Dom Luís da Cunha. Livro 779, f.347v.), e Jacob de Castro Sarmento, que comercializava um famoso medicamento, a Água da Inglaterra, à base de quina, que o embaixador adquiriu várias vezes para dom João V (Furtado, 2011:53). Sarmento chegou a ser rabi da mesquita londrina e, mostrando-se conhecedor da geografia da região mineradora, inseriu em seu livro de medicina, datado de 1735 e intitulado Matéria Médica, Físico-Histórica-Mecânica, Reino Mineral, descrições sobre as regiões auríferas e diamantinas de Minas Gerais (Sarmento, 1735:2-15 e 148-154).29 Não parece ser mero acaso o fato do livro ter sido redigido na mesma época em que os irmãos Nunes desembarcaram em Londres. De fato, no apêndice da obra, o autor anexou uma carta de próprio punho, endereçada

29 Sobre Jacob de Castro Sarmento ver Cardozo (1971:153-154, 165-167).

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ao Secretário da Royal Society, da qual era membro, onde conta que “teve a oportunidade de conversar, com um senhor, recomendado a mim, que veio das Minas de ouro do Brasil, pertencentes ao rei de Portugal, e que trouxe muitos diamantes de considerável valor, recentemente encontrados naqueles lugares” (Sarmento, A letter from Jacob de Castro Sarmento, M.D. and F.R.S. to Cromwell Mortimer, M.D. Secr. R.S. concerning Diamonds lately found in Brazil, apud Sarmento, 1735:199). A carta pode ser datada entre 1731 e 1732 e o texto se refere a acontecimentos ocorridos até o ano de 1728, pouco depois dos irmãos chegarem a Londres. Seria esse senhor um dos irmãos Nunes? Não é improvável, pois, como se verá, há vários elementos em comum na visão que tinham das Minas.

Durante as estadas do embaixador em Haia, entre 1713 a 1714, quando participou das negociações do acordo de Utrecht; em 1718; e entre 1728 a 1736, quando representou Portugal junto aos Países Baixos, se tornou amigo do judeu Álvaro Nunes da Costa, que era financista da corte portuguesa e adiantava largas somas de dinheiro para o pagamento das despesas da embaixada (Cluny, 1999:149-152). Dom Luís chegou a comparecer ao casamento do filho dele ocorrido na mesquita da cidade. Na casa que comprou em Haia e nomeou Mon Plasir, ainda teve como criada Ana Nunes (ANTT. MNE. Caixa 1, maço 1, doc.39, Bayona 22 de março de 1729). Seria essa Ana Nunes a mãe ou uma irmã de Antônio Ribeiro Sanches? Não é de todo impossível, visto que o pai deste, Simão Nunes, era flamengo.30 Se assim o for, ela era prima dos irmãos Nunes e, quando em Portugal, residia em Penacor (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Perguntas de genealogia realizadas a 7/11/1729). Dom Luís depositava nela intensa confiança e, quando tratava de assuntos sigilosos e poucos ortodoxos em sua casa, Ana Nunes cuidava de manter a porta bem fechada e sob estreita vigilância, para que o embaixador pudesse falar com inteira liberdade (ANTT. MNE. Caixa 1, maço 1, doc.39, Bayona 22 de março de 1729). Indício de que ela era de fato de uma parenta de Antônio Ribeiro Sanches ocorreu em 1730, quando o embaixador foi encarregado pelo Cardeal da Mota, secretário de dom João V, de compor “um catálogo dos melhores autores que escreveram assim da filosofia como da medicina moderna, ajuntando-se os de que se necessita para entender e praticar o que eles ensinam” (LISBOA. Biblioteca Nacional de Lisboa [BNL]. Reservados. Maço 62, n.2, doc.210, Relação de Dom Luis da Cunha, caderno 1, f.2v-3, Haia, 29 de junho de 1730). Para levar a cabo a tarefa, resolveu ir à Universidade de Leiden, onde Antônio Ribeiro Sanches estudava. Este o ajudou a compor um pequeno tratado de como reformar o estudo da medicina em Portugal e quais seriam

30 Simão Nunes era vendeiro e, na década de 1720, pelo menos dois dos seis ou sete filhos dele já se encontravam fora de Portugal. Antônio e Manoel moravam em Londres, onde o primeiro era professor de judaísmo e estudava medicina e o segundo para ser boticário (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Perguntas de genealogia realizadas a 7/11/1729).

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os livros necessários para tanto (BNL. Reservados. Maço 61, n.2, doc.10). O embaixador ficou tão impressionado com a capacidade intelectual do médico que o recomendou vivamente a dom João V. Desse momento em diante, os dois estabeleceram uma amizade fraterna, reencontrando-se em Paris, na década de 1740, quando Ribeiro Sanches tornou-se seu médico pessoal, acompanhando-o nas mazelas de velhice e amparando-o em seu leito de morte (ANTT. MNE. Correspondência da Legação Portuguesa em Paris. Caixa 562, f.229, 10 de outubro de 1749).

Durante as estadas de dom Luís da Cunha em Paris, que ocorreram em 1712, onde esteve de passagem a caminho de Haia; entre 1720 e 1725, enviado como emissário português para participar do Congresso de Cambrai; e entre 1736 e 1749, já como embaixador junto à corte francesa, novamente se colocou em contato com os judeus portugueses ali exilados. Tal foi o caso de Pedro Nolasco Couvay, grande financiador das despesas do rei de Portugal na França. Couvay não era apenas um homem de negócios, também “era renomado por seu intelecto, seu espírito, seu gosto e suas luzes” (Avertissement. In: Catalogue des livres de la bibliothèque de feu Mr. de Couvay, chevalier des ordres du Roi de Portugal. Paris: Chez Damonneyville, 1755, f.iv). Como um savant de sua época, possuía significativa biblioteca, com 3.731 obras, na qual dispunha de uma coleção “considerável de livros espanhóis e portugueses” (RB. n.539 [2]. Second Mémoire concernant l’Amérique méridionale, d’Anville, 31 Aout 1779, f.13-14),31 como também mapas e “manuscritos os mais curiosos”, que fazia dela “única na Europa” (Catalogue des livres de la bibliothèque de feu Mr. de Couvay, 1755, p.v.). Entre estes últimos havia preciosas descrições das Minas Gerais, que a Coroa portuguesa tentava a todo custo manter desconhecidas das demais nações europeias que cobiçavam suas riquezas. Dom Luís, sempre atento em recolher documentos e mapas sobre o Brasil, valeu-se várias vezes da coleção que Couvay reunia para municiar D’Anville de informações geográficas sobre o Brasil. O embaixador não se descuidou ainda de acompanhar as movimentações das comunidades de judeus portugueses estabelecidas em Bordeaux e Dunquerque, importantes portos franceses, chegando a ter contato com alguns deles. Não se pode esquecer que, por volta de 1728, João e Diogo residiam nessa última cidade e lá podem ter fornecido o roteiro a quem quisesse se aventurar pelas Minas.

Por meio de todos esses contatos, estabelecidos em diferentes cortes e em momentos distintos, o embaixador pode ter tido acesso ao texto dos Nunes. Mas, se é impossível precisar exatamente a partir de qual deles teve acesso ao documento, são inequívocos os indícios que o itinerário foi escrito para

31 “Sr. Pierre Nolasque Couvay, secretário do rei, cavaleiro das ordens do Rei de Portugal, nasci-do a Lisboa & morto à Paris em 1751 com 65 anos, viveu 40 anos nesta cidade & ele é renomado por suas grandes riquezas, seu espírito, seu gosto & suas luzes” (Catalogue des livres de la biblio-thèque de feu Mr. de Couvay, 1755, p.v.)

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que servisse de roteiro a outros cristãos-novos que os Nunes tiveram contato em Portugal,32 na Inglaterra ou na França – cortes nas quais o embaixador desfrutou de contatos diretos ou indiretos com vários judeus portugueses ali exilados. A descoberta das Minas de ouro e o significativo fluxo populacional que lhe seguiu, inclusive o de cristãos-novos, provocou uma produção intensa de roteiros e de mapas, hoje relativamente raros, que descreviam as formas de entrada e acesso à região. É no contexto da corrida do ouro e dos diamantes e da busca das sonhadas esmeraldas, no coração das Minas Gerais, que se situa a Notícia dos Nunes. O roteiro é o que podemos chamar de um mapa mental, já que não adquire a forma de representação pictórica, mas sim de um texto com informações geográficas. Aos mapas mentais pode-se imprimir uma dimensão cartográfica, que foi o que D’Anville fez com os dois roteiros dos irmãos Nunes, que utilizou para configurar o território minerador e situar sua distância em relação à costa brasileira.

Desde o início do século XVIII, o Conselho Ultramarino, principal órgão em Portugal de gestão política das conquistas do ultramar, se preocupou com o fato de que a descoberta do ouro poderia acarretar o aumento das invasões estrangeiras no Brasil, e se alarmava com a circulação de informações mais detalhadas sobre a área. Esse temor se ampliou com as tentativas de invasão francesa no Rio de Janeiro, ocorridas em 1709 e 1711, exatamente a mesma época que os Nunes chegavam às Minas. A descrição desses caminhos e a exata localização de cada um deles eram informações preciosas que, do ponto de vista da Coroa, deveriam ser mantidas fora do domínio público, com o intuito de garantir a soberania portuguesa sobre as riquezas minerais. O cuidado das autoridades, a fragilidade destes documentos e o fato de, quase sempre, terem circulado de forma secreta fizeram com que a maioria desses roteiros e mapas não chegassem até nossos dias, ainda que se especule ter sido um tipo de documento extremamente comum à época. Como exemplo, parece ter tido ampla circulação um mapa anônimo, atribuído ao mestre-de-campo Felix de Azevedo Cunha, que era acompanhado de um manuscrito que descrevia os caminhos para as Minas, e anotava acidentes geográficos, roças, lavras e localidades do trajeto. O mapa hoje se encontra desaparecido, mas o manuscrito que o acompanhava sobreviveu e teve algumas impressões mais recentes (Derby, 1897). Outro foi roteiro geográfico redigido por Francisco Tavares de Brito, publicado, em Sevilha, em 1732 (In: Códice Costa Matoso, 1999:898-910, Vol. 1),33 baseado no mapa de Felix Azevedo Campos. Trata-se de um folheto, sem licença régia, nem do Santo Ofício, publicado por tipógrafo clandestino, que se

32 “Os cristãos novos que desde o primeiro instante correram para as Minas (…) organizavam roteiros para os que necessitavam fugir de suas terras da Europa, e atingirem as terras do ouro e dos diamantes” (Lima Jr., 1978:133). 33 Cópias do manuscrito podem ser encontrados em: COIMBRA. Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. Ms.148. f.6v-8v. e Lisboa. Biblioteca da Ajuda. Ref.54-XIII-4, n.24.

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autointitula Antônio da Silva. Ambos descrevem mais pormenorizadamente os caminhos a partir de São Paulo e Rio de Janeiro. Este último era, até então, o único roteiro remanescente conhecido, produzido claramente com vistas a orientar cristãos-novos até as Minas (Lima Jr., 1978:133), o que torna o texto dos irmãos uma fonte rica e instigante.

O éden minerador

A recorrência de elementos que exaltavam a natureza animal, vegetal e mineral da região, aproximando-a do novo éden, ainda propício à ocupação, é aspecto que se observa de uma simples leitura do texto dos três irmãos. A descrição favorável da natureza da área mineradora – com abundância e diversidade de frutos e alimentos – não estiveram circunscritas apenas ao relato dos Nunes, mas decorria do papel central que a região passava a ocupar na cosmologia de muitos portugueses da época: era o próprio paraíso terrestre à espera e reservado para a ocupação portuguesa. Em vários trabalhos venho apontando para esse aspecto que tenho chamado de uma visão emboaba das minas (Furtado, 2005), e que decorre da percepção de que a região estava destinada para e pelos portugueses, em oposição às reivindicações dos paulistas, os verdadeiros descobridores.

Se, desde o século XVI, o Brasil recorrentemente é descrito com motivos edênicos (Holanda, 1994; Souza, 1986), a partir do início do século XVIII, este imaginário se desloca para as Minas Gerais.34 Essa ideia da centralidade das Minas, como um espaço destinado aos reinóis, era compartilhada não apenas por indivíduos dos círculos populares, como é o caso dos irmãos Nunes, mas também por membros da elite e da administração luso-brasileira, como o próprio embaixador dom Luis da Cunha (Furtado, 2010:373-400).35 A região, a partir de então, passou a ser descritas em vários relatos coevos, principalmente entre portugueses que percorreram a área, a partir de elementos do maravilhoso. Os homens eram perfeitos e bem dotados, a caça e a pesca eram abundantes, como eram cristalinas as águas que formavam caudalosos rios e as florestas que forneciam madeiras de todos os tipos. O mato era alto e virgem e as soberbas serras chegavam às nuvens. Ora, tudo confluía, inclusive os astros, para uma natureza exuberante e farta, coroada pelo ouro, a prata e outros metais (Abreu, 1739:514-528, t.2).

34 Para análise da fusão do mito do Eldorado ao do paraíso terrestre e seu deslocamento pro-gressivo para as Minas ver Furtado (1999:445-458). 35 Em Dom Luis não se observa um caráter edenizador das Minas, mas é seu pragmatismo que o leva a reconhecer a importância e centralidade da região para a economia portuguesa, chegando nas suas Instruções Políticas a sugerir a mudança da corte para o Brasil, com vistas a melhor assegurar o domínio português sobre a região mineradora.

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Como os Nunes, Jacob de Castro Sarmento compartilhava dessa mesma visão paradisíaca. “De Londres, fazia a propaganda d[as Minas como] o novo ‘Eldorado’” (Lima Jr., 1978:133), cujas riquezas, infindas, não cabiam mais na capitania e “apenas há lugar na Europa” (Sarmento, 1735:11). Como bom propagandista, inicia seu livro descrevendo as virtudes terapêuticas do ouro e já na página 9 anuncia que “de todas as Minas de Ouro, as que se conhecem mais ricas, e abundantes no mundo, são as Minas Gerais”. Isso ocorria porque, enquanto nas demais jazidas, como as da “Alemanha, Hungria, Transilvânia Boêmia [e] Peru”, o ouro geralmente era encontrado misturado a outros metais, “nas Minas Gerais (...) raramente se acha o ouro de outro modo, que puro” (Sarmento, 1735:11). O autor, como os três irmãos, expressa uma visão negativa dos paulistas que, apesar de descobridores, “sem fazer uso algum dos ditames da razão, ou da diligência, largaram o sítio e se retiraram à sua pátria” (Sarmento, 1735:9-10). Em contrapartida, o contínuo exercício e observação de trabalhar nas Minas, (...) cheios de diligência e método próprio” fizeram com que tirassem “os Portugueses em tanta abundância o Ouro, que, parece, por não caber já dentro de casa” (Sarmento, 1735:10-11, itálicos do autor). A visão distinta dos dois grupos – negativa dos primeiros e positiva dos últimos

– aparece inclusive na forma como ele grafa as palavras. Enquanto escreve paulistas em letras minúsculas, Portugueses e Europa aparecem com a primeira letra em maiúscula e grifada em itálico.

As raízes desse discurso edenizador podem ser encontradas na tradição cristã-católica de crença na existência de um paraíso terrestre e no próprio milenarismo português.36 O que é curioso no relato do relato dos três irmãos é que podemos conectar o fenômeno e recuá-lo à tradição judaica, também fortemente presente na cultura popular portuguesa, devido à forte presença dos cristãos-novos nessa sociedade, com sua crença na terra prometida – o jardim das delícias anunciado por Deus e revelado por Moisés aos judeus em sua fuga do Egito. As imagens edênicas que os irmãos associam às Minas podem assumir novos significados quando compreendemos a sina errante à qual os marranos portugueses eram submetidos naquele momento, remontando ao Êxodo bíblico experimentado pelos judeus na Antiguidade e vários elementos que eles associam à região podem ser relacionados aos que Deus apontou a Moisés, quando este guiou os judeus do Egito em direção à terra prometida:

Em primeiro lugar, dizia Moisés que Deus lhe revelara que esta se encontrava próxima a um rio, o Jordão. No roteiro dos irmãos também é um rio, o São Francisco, o elemento geográfico central que orienta os viajantes a encontrar seu destino. (Não nos esqueçamos aqui da importância que a travessia do rio Nilo também ocupa na fuga para o Egito). Portanto, logo no início do roteiro, os Nunes advertem o viajante que, “para ir da Bahia às Minas

36 Para o milenarismo português como base para a edenização de Minas Gerais ver Romeiro (1997).

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Gerais, é necessário ir buscar o rio de S. Francisco” (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc.555 [1[, p.1), pois é ele que orienta os caminhantes. Só nesse trecho gastava-se entre 25 a 30 dias pelo caminho mais curto, podendo o viajante utilizar algumas variantes (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc.555 [1], p.1). O leito do São Francisco era navegável por longo trecho que ia de Salto, localizado próximo à foz, pouco depois da Cachoeira de Paulo Afonso, até a barra do rio das Velhas, já na capitania de Minas Gerais. Apesar disso, essa rede fluvial servia mais de referencial geográfico, já que permitia a ligação espacial de territórios sertanejos descontínuos, do que como meio de transporte. A maioria dos transeuntes se deslocava em cavalos ou mulas por trilhas que margeavam o leito dos rios, mas em alguns trechos se usavam canoas. Estas eram amarradas

“de duas em duas, emparelhadas, e presas uma a outra para que a corrente não vire” (Abreu, 1739:517 e 520-521, t.2), cuidado necessário porque as águas do São Francisco em certos trechos eram muito fortes. Os Nunes usavam os dois meios de transporte – possuíam cavalos e uma canoa, o que, em certa feita, permitiu o fato de que “repousaram numa das ilhas” do rio (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc. 555 [1], f.9).

Em segundo lugar, como na região à qual os judeus se deslocaram após cruzarem o rio Nilo em seu êxodo, a vegetação que cobria o sertão do rio São Francisco era toda hostil à presença humana. A caatinga, típica do semiárido, que se estende por grande parte da região, constitui-se de vegetação rala, baixa, espinhosa e seca durante a maior parte do ano. Segundo os Nunes, em meio à caatinga, abriam-se uns “campos muito dilatados” que eram chamados de Gerais (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc.555 [1], f.3). O termo sertão, em português do século XVIII, significava região distante do mar e de todas as partes, ou ainda que se situa “entre as terras” (Bluteau, 1739:613).37 Referia-se, então, a qualquer região interior, distante do litoral, mas que, por associação, era ao mesmo tempo incerta, desconhecida, longínqua, inculta. No relato dos Nunes, o sertão do São Francisco adquire essa dimensão de espaço interior, distante e primitivo. Configura-se como uma fronteira aberta, em grande parte, é verdade, exterior à civilização – ocupado por animais selvagens, índios ferozes, paulistas incivilizados e escravos fugidos

–, mas ao mesmo tempo interna a ela, pois se trata de territórios à espera de serem integrados à colonização que os portugueses edificavam na América. Os cristãos-novos europeus, não-paulistas, que buscavam um lugar seguro para se abrigarem da perseguição inquisitorial, seriam arautos da civilização. Nesse sentido, o sertão estava fora, mas ao mesmo tempo estava dentro, pois que destinado ao império luso-brasileiro. (Não se pode esquecer que, por essa época, intensificaram-se as negociações entre Portugal e Espanha pelas terras

37 Locais cobertos de árvores densas e vegetação, ou seu oposto, de deserto também podiam aparecer associados ao termo sertão.

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do interior do continente e a Coroa portuguesa buscava garantir o domínio máximo de territórios a oeste).

Uma das grandes ciladas que os viajantes encontravam pelo caminho era a angústia da sede e, também por essa razão, buscar os rios da bacia do São Francisco era tão importante. Logo no início do relato, os Nunes, que já tinham empreendido a viagem inúmeras vezes, alertavam aos que iam se aventurar pelo Caminho do Sertão que “o maior trabalho nesta viagem é buscar água”. Por esta razão, “em viagem tão dilatada (...) se começa[va] a caminhar em outubro”, quando, “então, favorecem as chuvas aos caminhantes”. Em Minas Gerais, as estações não são bem marcadas, existindo basicamente um período de seca, que vai de abril a setembro, e outro de chuvas, que se estende de outubro a março, quando então as últimas águas fecham o verão. Enquanto a exploração do ouro, por ser feita principalmente nos leito dos rios, era realizada na estação da seca, a viagem no sertão deveria aproveitar-se da estação chuvosa, para facilitar o abastecimento de água, pois grande parte do percurso cortava área de vegetação escassa e rala.

Mesmo aproveitando-se da chuva, cuidados e estratégias eram necessários para se conseguir água em volume suficiente para garantir a sobrevivência ao longo do caminho. Advertiam os irmãos que, num lugar chamado Boqueirão, próximo a uma das primeiras fazendas, chamada Serrinha, que se atingia logo depois de deixar Salvador e atravessar a baía de Todos os Santos, havia água limpa, própria para o consumo humano, e os viajantes deveriam se abastecer, acondicionando-a em odres de couro, levados “em cargas, sobre os cavalos, (...) feitos de dois meios de solas”. Logo depois no riacho Seco, que como a maioria dos cursos d’água da região não era perene, era necessário abrir covas ou buracos mais profundos, “que na língua da terra se chamavam cacimbas”, de onde se tirava água para dar de beber aos cavalos (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc.555 [1], f.1-2), pois esta vinha misturada com o barro. Dessa forma, poupava-se a água potável estocada no começo da viagem para os caminhantes. Poções era outro local de abastecimento cujo “nome se lhe deu porque neste lugar se acha água, no mais tempo do ano” (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc.555 [1[, f.4). Era o rio São Francisco e sua bacia que garantiam o abastecimento, a partir dos inúmeros riachos, córregos, poções, lagoas conectados num sistema fluvial que o viajante precisava buscar durante a viagem.

Em terceiro lugar, a Bíblia descreve que, a despeito da paisagem agreste, o leito do rio Jordão estava pontilhado de ilhas de fartura, repletas de melancias

– um paraíso em meio ao deserto. Da mesma forma que o Jordão bíblico, o rio São Francisco era responsável por um ecossistema diverso e rico que garantia não apenas a água, mas mantimentos aos viajantes. Contam os Nunes que, em uma de suas ilhotas, “que está defronte da Malhada Grande, e não está povoada, tem uns areais (...). Seu terreno compreende [de] três a quatro léguas”. Nela, sem haver necessidade de plantar, “se criam melancias das

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mais excelentes”. Estas estavam sempre ao alcance dos transeuntes famintos, pois eram abundantes na ilha, já que bastava deixar as sobras das que foram comidas, sem que houvesse necessidade de serem semeadas. Apenas os irmãos Nunes colheram de uma única vez trinta e seis dúzias. No entanto, dever-se-ia ficar atento, pois eles informam que “em 1712 e 1721 se inundou esta ilha”. Mas não havia necessidade de muito alarde, acalme-se o leitor, porque isso “sucede muito poucas vezes” (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc. 555 [1], f.11). Joan Nieuhof, que viajou pelo nordeste do Brasil alguns anos antes, chegando em 1640, quando da invasão holandesa, apontou também que entre os vegetais que proliferavam naturalmente no Brasil havia o papaia, que “os Americanos apelidam Mamoeira e Pinoguaçu; [e] os nossos às vezes chamam de árvore de melão dada a semelhança de seu fruto com o nosso melão” (1981:328). O paraíso brasileiro se revelava, como seria de se esperar, na fartura da terra, em grande parte ainda desabitada, que não precisava do suor e do trabalho humano para dar alimento e repasto a quem tem fome.

Ao longo do relato, os Nunes dão notícias de várias outras frutas que cresciam graças à prodigalidade do rio, como o Jenipapo, “que é uma árvore, que dá uma fruta parecida com o marmelo. (...) O Jenipapo fica um ano na árvore, antes que se possa comê-[lo]”. Informam sobre os alimentos encontrados pelo caminho que podiam saciar a fome do viajante. São eles “milho, feijão, frutas da terra, inhame (que se planta), e mandobim,38 que nasce nas raízes, ao revés das outras plantas; [e] tem alguma semelhança com as favas. Esta planta não cresce mais alto que dois palmos” (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc.555 [1], f.7). Outro indicativo da fartura que o rio provia era a Lagoa dos Patos, que encantou os irmãos Nunes e ainda deslumbrava os viajantes estrangeiros que por ali passaram no século XIX, como foi o caso do prussiano von Martius, que intitulou a gravura que fez do local de Lagoa dos Pássaros (São Paulo. Fundação Maria Luiza e Oscar Americano. Carl Friedrich Phillip von Martius [atribuição]. Lagoa das Aves no rio São Francisco).

Apregoam também os irmãos que “por todos estes sertões há variedade de aves, como patos de asa branca e pena avermelhada; outros de crista vermelha; marrecos; jacu, que é do tamanho de uma perua e é muito saboroso; jacotinga; assuã, que é do mesmo tamanho, é um pássaro negro com as barbas vermelhas; papagaios; araras (...), emas; seriemas [e] outras muitas sortes”. A diversidade era tanta que “é impossível relatar todas”. Alguns animais se assemelhavam aos europeus, como os muitos veados de vários tipos e tamanhos, com ou sem galhadas; já outros eram nativos da região. Esses últimos tiveram que ser descritos em minúcias, o que denota que o leitor a que o texto se destinava não estava familiarizado com eles (mais um indício de que se tratava de um público europeu). Os Nunes se referem às antas; “pacas, que são maiores que um cordeirinho, são de cor avermelhada, e são muito gostosos. [O] Tatu, do

38 Mandobim: o mesmo que amendoim ou feijão cru.

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tamanho como uma lebre de cor parda, e [que] tem uma concha em dadinhos; estes não correm muito e, às vezes, matam-nos com um pau. [As] Capivaras, que são como grandes porcos e são anfíbios; são pardas escuras, têm dentes curvos e tamanhos como o dedo de um homem – toda a dentadura é igual –, e são estes animais tão fortes, que atravessam um rio de três léguas andando”. Toda essa diversidade animal, que podia matar a fome do viajante faminto, reforçava o caráter edênico do sertão.

Mas o paraíso encravado brasileiro podia se configurar até mesmo como mais proveitoso do que a terra prometida do Antigo Testamento, pois a Bíblia narra a longa luta entre os judeus recém-chegados para expulsar as populações residentes na Palestina e os irmãos ao descreverem algumas ilhas no meio do São Francisco apregoam que muitas delas “ainda não têm dono”, ou seja, podiam ainda ser ocupadas pelas hordas de judeus-portugueses que por essa época andavam errantes pelo mundo. Também advertem que a ilha de Itaparica, também chamada de “Ilha do Medo, [apesar de] toda a borda do rio, até à Cachoeira, é povoada, a Ilha [em si] não é povoada”. Os que se aventurassem a ir povoá-la podiam tomar seu sustento pelas muitas baleias que ali eram pescadas (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc.555 [1], f.2). No século seguinte, de fato, a pesca da baleia nas proximidades de Salvador tornou-se atividade costumeira e rentável, sendo retratada por Hippolyte Tauney (1822) por volta de 1818. Segundo os Nunes, as sesmarias que eram distribuídas na região tinham “três léguas de terra, em longo; [posto] que, no largo, cada um possui [o] quanto pode cultivar”. Isto ocorria “porque, na largura, não tem fim o que está por descobrir, deste sertão” (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc. 555 [1], f.3), reafirmando mais uma vez a posição desse espaço interior como desocupado, sem fim – a terra prometida por Deus para os eleitos –, nesse caso os cristãos-novos portugueses europeus. Representados como vazios, estes sertões eram, na verdade, habitados por índios que ainda resistiam à civilização, por isso considerados selvagens ou bravios – os tapuias (Neves, 2007:9-10), que os Nunes descrevem como sendo “da cor de cereja, com grande cabelo, muito corredio” (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc. 555 [1], f.5).

Um quarto ponto a destacar da visão edênica que os Nunes construíram das Minas diz respeito ao papel que ela representaria na redenção econômica dos portugueses que para ali emigrassem. Para eles, enquanto os reinóis eram diligentes, pobres, desejosos de buscar fortuna (RBC. De como os Paulistas foram dominados, n.229, doc. 555 [2], f.11-12); os paulistas eram “Régulos, se julgavam soberanos” (RBC. De como os Paulistas foram dominados, n.229, doc. 555 [2], f.12), possuidores de “léguas de conquistas que fizeram seus antepassados” (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc. 555 [1], f.3). Essa clivagem entre pobres – portugueses – e potentados

– paulistas – permeou os discursos emboabas da época, principalmente os

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concernentes à guerra dos emboabas (Romeiro, 2008:86-88; Andrade, 2008:287-290). Os Nunes, como emboabas que eram, viam nas Minas espaço paradisíaco destinado pelos e para os portugueses, especialmente os mercadores, como eles, “que, com tanto trabalho, faziam viagens tão longas” (RBC. De como os Paulistas foram dominados, n.229, doc. 555 [2], f.11).

Em meio a essa disputa, os Nunes, como muitos reinóis, encampam a visão que Manuel Nunes Viana produzia de si mesmo como redentor e justiceiro dos pobres. “No discurso de Viana, o sertão – sobretudo o sanfranciscano, onde estava localizado a [fazenda] da Tábua [que administrava] – aparece como o lugar mítico que as justiças de El-rei não conseguem alcançar” (Romeiro, 2008:168). Lugar propício para o estabelecimento dos cristãos-novos que esperavam que em tão remotas terras e sob a proteção de Viana, os longos braços da Inquisição não pudessem lhes alcançar. Como protetor dos emboabas que sofriam com os desmandos dos régulos paulistas, ele “favorecia muito a pobreza”; os guardas, que “o temiam, fechavam os olhos, deixando passarem “os ditos [mercadores] com bois”; “a toda pessoa que comprasse em seu arraial, não somente respondia pela fazenda, mas que assegurava a pessoa”; nem os paulistas, nem os guardas “se atreviam a executar coisa alguma contra as pessoas que o dito Viana favorecia”; “tinha de sua parte todos os queixosos, que eram mais que os contentes”; administrava com sabedoria a justiça, dirimindo as diferenças ente os dois partidos; e “meteu muitos em prisão, muito apertada, por crimes muito atrozes que haviam cometido” (RBC. De como os Paulistas foram dominados, n.229, doc.555 [2], f.12-16). E como um verdadeiro Messias, a exemplo de Moisés, que recebeu de Deus as tábuas da lei com os 7 mandamentos, Viana, em nome de dom João V, garantiu a ordem nas Minas, submeteu os paulistas e lhes “impôs as leis seguintes: Que haviam de obedecer a todos os ministros reais; consentir nas imposições das ordenanças d’El Rei; pagar os direitos; não resistir à justiça; que havia de haver Bispo e Governador, que fossem do reino postos por El Rei; que reconheciam ser vassalos”. A ordem foi estabelecida a partir desses 6 mandamentos, pois

“a nenhuma dessas cláusulas consentiam antes, sujeitando-os, Viana, enfim” (RBC. De como os Paulistas foram dominados, n.229, doc.555 [2], f.17).

Sabe-se que essa visão edênica associada ao São Francisco não era um elemento totalmente novo, pois o rio, desde o século XVI, já era descrito a partir de imagens associadas ao paraíso terrestre (Sousa, 2000:2). Era comum dizer que o rio tinha um sumidouro, que fazia desaparecer aquele mar de água, que só reaparecia a bastante distância e também que seu curso, em extenso trecho, percorria uma rota circular (Abreu, 1739:519, t. 2). Se essa geografia fantástica não aparece no relato dos irmãos Nunes, sem dúvida o rio é a fonte da fartura, garantindo o sustento dos viajantes em suas margens. Não só fornecia a água, como o alimento aos andarilhos cansados e apontava a rota a ser seguida. Podemos ver nessa associação que os irmãos fazem da região em torno do rio São Francisco ao paraíso terrestre, e mais propriamente à terra prometida, um

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dos elementos sublineares do mapa mental que eles produziram e, ainda que o roteiro tivesse como objetivo primeiro orientar os viajantes – principalmente os cristãos-novos – em seu deslocamento na região, ele se insere e revela elementos que compunham o imaginário coletivo que se produzia na época sobre a área mineradora – ela era o próprio paraíso terrestre.

Uma geografia vivida

Dois aspectos evidenciam que o roteiro não era apenas uma descrição com fins geográficos, mas efetivamente se destinava a orientar alguém que se dispusesse a percorrer a mesma trilha. De um lado, o texto alinhavava os cuidados e perigos que poderiam ser encontrados, bem como as fontes de água e alimentos necessários ao caminhante para prosseguimento da viagem; de outro, descrevia cuidadosamente o trajeto, apontando os melhores trechos e as formas de percorrê-lo.

Arriscado e penoso, o Caminho da Bahia cortava uma região mais plana, em comparação à geografia mais íngreme com que se defrontavam os viajantes que partiam de São Paulo e do Rio de Janeiro, e que tinham que cruzar as escarpas da Serra do Mar e da Serra da Mantiqueira, percorrendo o Caminho Velho e o Caminho Novo respectivamente (Anastasia e Furtado, 1999:33-53). Ainda assim, muitos dos seus trechos não eram totalmente planos, e, nas proximidades da vila de Sabará, já no território minerador, havia um ribeirão que foi chamado de Inferno, “porque para atravessá-lo era preciso passar por uma ponte de menos de 20 pés de comprimento, correndo o rio por baixo por mais de duzentos de profundidade” (Brito, 1732, In: Códice Costa Matoso, 1999:905), formando um horroroso precipício. Já nas proximidades do Recôncavo Baiano, os andarilhos se defrontavam com a serra da Chapada, que exigia três jornadas para se atravessar. No primeiro dia, dormia-se ao pé dela, no “seguinte, se vai dormir no meio da dita Serra, onde se chama Jiboia [e], no seguinte, no fundo” dela (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc. 555 [1], f.2).

Apesar da geografia desse espaço sertanejo, em geral, facilitar o deslocamento humano, a vegetação, seca grande parte do ano, era toda contrária à penetração. Por todo o percurso, era constante a ameaça da fome e da sede, de animais selvagens e peçonhentos, de bandos de negros fugidos ou de índios, alguns antropófagos, que atacavam de surpresa, o que tornava imperativo que a viagem fosse realizada em grupos fortemente armados. Havia ainda inúmeras febres malignas que acometiam muitos viajantes. Como grande parte dos que percorriam esse trajeto, o cirurgião Luís Gomes Ferreira ficou doente no caminho, permanecendo cinco meses na barra do rio das Velhas atacado de febres altas, sem saber ao certo a natureza do mal, mas sim de estar perto da morte. Tinha delírios seguidos e proferia frases desconexas.

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Contou em seu livro, Erário Mineral, que as sezões que infestavam a região do São Francisco eram as piores de que tinha notícia e a maleita39 e não poupava os que transitavam na região. Descrevendo essa rota, um morador das Minas contou que a viagem era demorada e “tudo era feroz e contrário à penetração humana nessas terras misteriosas e sinistras” (Furtado, 1999:190).

Um ex-voto, dedicado à Nossa Senhora dos Remédios, depositado no convento de São Bento na Bahia nos mostra os perigos mais comuns que havia no caminho, que foram os mesmos que os Nunes encontraram e advertiram seus leitores que desejassem realizar o trajeto. O quadro retrata Agostinho Pereira da Silva saindo de Portugal, vestido galantemente e montado em seu cavalo. Como numa história em quadrinhos, ao vagar pelo sertão, este português recém-chegado vai encontrando diversos perigos: é atacado por uma cobra e dois outros animais peçonhentos (jacarés?), por índios e também pelos paulistas; fica desorientado e sobe em uma árvore, buscando avistar a rota correta. Como resultado das agruras que, por vários meses, o rapaz enfrentou, ao fim da viagem, não tem mais sua montaria, suas roupas estão em farrapos, está descalço e sem chapéu, todos esses antigos símbolos de sua distinção e importância no reino. A vida dura do sertão, ao fim e a cabo, igualava a todos, até mesmo nos parcos modos de trajar, tornando-os todos pobres e expostos às intempéries da região e aos desmandos dos paulistas.

O ex-voto configura-se como uma ilustração das mesmas dificuldades encontradas pelos irmãos, o que revela como essas eram comuns aos que se aventuravam por esse caminho. Os Nunes também foram atacados por animais. A um deles “sucedeu que, havendo feito [alto] em um caminho, foi buscar água em uma lagoa. Pôs o pé sobre uma terra movediça e, retirando-se, o pôs onde lhe pareceu estar um grande pau seco. Indo, escorregando, se ajudou de uma mão, [e] a pôs sobre uma cobra, a qual chamam sucuri ubá”. Para advertir o leitor do grande perigo que resultava do ataque dessa serpente, o relato descreve que “este animal cinge um boi, ou cavalo, e o serra de qualidade que lhe esmigalha os ossos e o chupa”. Mas o rapaz conseguiu se safar porque, muito depressa, pegou “um alfanje, [e] deu-lhe um golpe”. Para sua surpresa,

“não ficando mais que ferida, a cobra voltou a cabeça sobre os lombos, fincou neles os dentes e [a] língua, de sorte que ali morreu” (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc. 555 [1], f.9).

Mas esse não foi o único ataque de cobras que os Nunes enfrentaram. De outra feita, estando um deles “dormindo a sesta, com seus camaradas, à sombra de uma árvore. Um dos quais lhe advertiu que “não se meneasse, porque tinha uma cobra coral na joelheira da bota, (...) onde a coral reluzia como o mais fino rubi”. A reação do rapaz foi se levantar para pegar o animal pelo rabo, “porém, temendo [que] lhe escorregasse, bateu com o pé na terra, ainda que receando

39 Sezão, maleita ou febre maligna era como se chamava a malária (Furtado, 2002:293-294, Vol. 1).

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ser mordido”. A mordida da serpente geralmente era fatal, “pois logo rebenta o sangue pelos olhos, dedos e nariz, e se morre incontinente”. Precavido, os três traziam consigo o contraveneno para sua picada mortal. Segundo Guilherme Piso (1648), “das próprias víboras [se] prepara antídoto contra elas, o qual se defende de todos os venenos e de todas as coisas envenenadas”. No caso da coral, “cura-se com emplastro preparado com a cabeça da serpente e aposto eficazmente”. Ao mesmo tempo devia-se pingar na ferida “o pó da planta nhambi, [bem] como o suco das folhas da caapeba e da caiatia, [pois] extraem o veneno” (Piso, 1648:49, itálico do autor). Devem ter sido esses os antídotos que os irmãos levavam consigo. Mas não foi necessário utilizá-lo, porque, ao se levantar, “no movimento que fez com o pé, saltou a cobra fora da bota, e um escravo do dito Nunes a matou, com um varapau verde; [pois] que se fora seco, podia [se] quebrar, e corria[-se] perigo de vida”. Escaldados, os Nunes contam que as cobras venenosas do sertão eram muitas: “uma se chama caninana; há a jararaca; a cascavel; outra coral; a cipó. Outra de duas cabeças” (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc. 555 [1], f.8). Em relação a esta última, fica evidente, como era comum na época, que o estatuto do ver tinha a mesma importância do ouvir, por isso aparecem nos relatos a descrição de criaturas fantásticas, como essa cobra de duas cabeças.

Animais selvagens ou ferozes estavam por todo lado e podiam surpreender o viajante descuidado. Os Nunes advertiam que “o maior perigo é a onça, e outro (...) o gato dos montes. (...) Havia também muitos tigres, e outra espécie de onça, chamada suçuarana, que é quase alaranjada” (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc. 555 [1], f.7-8). Também “nestes caminhos se encontram uns porcos monteses, ruivos de cor, que [se] lhes chamam de queixada branca; os quais, sendo muitos em tropa, em vendo um homem, o acometem. Fazendo-lhe um cerco, o matam e o comem”. Certa feita, um dos irmãos viu, “à borda de uma lagoa, uma tropa de mais de vinte mil”. Era necessário redobrar o cuidado nas épocas de muita estiagem, pois “toda a caça, bichos e animais, quando há grande seca, saem dos matos, para buscar água, e se juntam, infinitos em número” (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc. 555 [1], f.9). Por essa razão aproximar-se das fontes de água para se abastecer podia resultar em experiência perigosa e devia-se tomar os cuidados necessários. Porém, como a natureza – sábia – sempre tem dois lados, ao caçador experiente o ajuntamento de tantos animais podia resultar em benefício para aplacar a fome em espaço tão dilato e longe dos núcleos urbanos.

Os animais peçonhentos podiam se constituir numa ameaça não apenas ao viajante distraído, mas à própria colonização que se queria edificar no sertão. Foi o que ocorreu na fazenda do Paulista, cujo nome, contam os Nunes, se devia ao fato de que foi, “em outro tempo, povoada por um destes homens. E, tendo ali muito gado, resolveu-se desampará-la, pela muita quantidade de onças e morcegos que [ali] havia, e lhe matavam o gado. Hoje se descobrem ainda,

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nesta paragem, ruínas de casas e de currais desta povoação” (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc.555 [1], f.4).

Outros animais pareciam mais ameaçadores do que verdadeiramente o eram. Tal foi o caso do tamanduá e, temeroso, “um dos Irmãos Nunes, encontrando no mato este animal, que ainda não conhecia, lhe deu com um pau”. Mas, logo descobriram que “este, se o não [o] atacam, não acomete a ninguém”. E foi o que aconteceu, pois “o animal se foi, sem o acometer”. Para que o leitor pudesse ter uma imagem do animal, fazem a seguinte descrição:

[É] do tamanho de um cachorro ordinário. (...) Este Tamanduá não corre, sempre anda de trote; as suas garras têm três unhas, [e] é da cor de um urso. Porém, no rabo tem tanto pelo, que o trazendo estendido a direito, arrasta-lhe pelo chão. Este bicho, em vendo uma onça, se abraça com ela de tal sorte que, fincando-se um ao outro as garras, não se separam; assim morrem ambos juntos. (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc.555 [1], f.7)

Presença fugidia e difícil de detectar nos sertões eram os índios, paulatinamente exterminados para dar lugar às fazendas de gado ou reduzidos à condição de escravos, cujos rastros de sua existência os historiadores têm buscado recuperar (Resende, 2003; Langfur, 2006). Genericamente chamados de Tapuias pelos portugueses e pelas tribos Tupis aliadas a estes, pouco se sabe sobre eles. Sabe-se que o termo Tapuia, com o qual eram nomeadas diversas tribos, em tupi, significa “o bárbaro” ou “o contrário”, denotando a visão que tinham desses índios, considerados incivilizados e hostis e muitas vezes acusados de serem antropófagos (Santos, 2010:44). A região do São Francisco recebeu no século XVIII um contingente significativo de índios de áreas próximas que fugiam das guerras de extermínio empreendidas pelos paulistas, desde fins do século XVII, conhecidas em seu conjunto como a Guerra dos Bárbaros (Puntoni, 2002). Pelo perigo que representavam às fazendas de gado que se estabeleciam no sertão, novas guerras foram por sua vez deslanchadas contra eles a partir de então. Tal ocorreu, por exemplo, com as tribos Araraos e Taboiaras, que vieram a se instalar junto ao rio das Velhas, tributário do São Francisco (Santos, 2010:81). Encurralados entre conquistadores poderosos, esses tapuias foram progressivamente dizimados ou escravizados. Índios bravios, tenazes e resistentes, o encontro com eles era perigo a ser evitado. Os Nunes contam que, perto de Morrinhos, ficava “uma aldeia [subordinada ao paulista] Januário Cardoso, povoada de Tapuias” (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc. 555 [1], f.5). Numa feita, quando Sebastião Nunes se aproximou dela para pedir água, “como ninguém o entendia, o quiseram matar. Chegou, então, um coronel, seu camarada, que sabia a língua da terra, e lhe salvou a vida” (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc. 555 [1], f.5-6). Aqui, observa-se outra informação importante para os viajantes: o papel daqueles que podiam se

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comunicar com os nativos, chamados “os línguas”. A chamada Língua Geral havia sido criada pelos missionários jesuítas para facilitar a comunicação e a conversão dos indígenas e era amplamente falada no sertão, inclusive pelos paulistas, muitos deles mamelucos. Para os Nunes, os paulistas se igualavam aos selvagens não só pelas alianças estabelecidas entre eles, mas também pelo fato de se comunicarem na mesma língua, diferenciando-os dos cultos europeus, que falavam o português. A linguagem tornava-se sintoma do grau de civilidade de uma sociedade, e, no caso da dos nativos, desde o início da colonização, diversos cronistas salientaram que não possuíam nem “l”, nem

“f ”, nem “r”, o que significativa que seus falantes – fossem índios ou paulistas – não tinham nem lei, nem fé, nem rei, pilares da civilização reinol de que os emboabas eram portadores.

Os Nunes chegaram às Minas no auge dos conflitos entre portugueses e paulistas, que culminaram na Guerra dos Emboabas. Essa foi interpretada pelos irmãos, da mesma forma que em outros relatos coevos, como resultante das desavenças entre os régulos do planalto e os pobres do reino, pois os dois grupos disputavam as oportunidades – tanto no setor mineral, quanto no mercantil – abertas com as descobertas de ouro e diamantes. Ao tomarem, no texto, o partido emboaba, os irmãos advertem seus leitores que o ataque dos paulistas – sempre traiçoeiros e desleais – era outro perigo a se acautelar. Esses eram acusados de desestabilizarem o comércio empreendido ao longo do Caminho do Sertão, que constituía o modo de vida dos Nunes e da maioria dos que, como eles, percorriam continuamente essa rota. Por essa razão os três se queixavam de que, por causa desses déspotas e de suas tiranias, “não faltavam discórdias, de que se originavam mortos”, perturbando os “mercadores que, com tanto trabalho, faziam viagens tão longas” (RBC. De como os paulistas foram dominados, n.229, doc. 555 [2], f.11-12). Para eles, os paulistas eram

“uma gente [que] marchava sem ordem alguma: todos em bandos”, sendo que a maioria desse contingente era constituído de escravos seus, “homens negros, e mulatos” (RBC. De como os paulistas foram dominados, n.229, doc. 555 [2], f.15 e 12).

O relato revela que os nomes dados às localidades e acidentes geográficos encontrados ao longo do percurso espelhavam as vivências cotidianas desses viajantes que se embrenharam pelo sertão, marcadas por perigos, é verdade, mas também pelo paradisíaco. A fazenda de Santo Antônio do Urubu era assim chamada porque ali se encontrava o “urubu que é um pássaro como um corvo”. Rancho da Fome, Urtigas, Agreste eram denominações que remontavam a difícil jornada do viajante numa natureza agreste. Olho d’Água da Serra, Lagoinha, Boqueirão, Canudos, Poções, Lagoa do Junco e a dos Patos, tanto registram a luta cotidiana contra a sede, quanto exaltam os valiosos postos de abastecimento de água em meio ao sertão. O rancho das Cabras, da Ovelha, a Cabeça do Touro, o riacho dos Porcos, das Araras, o rio das Rãs, do Peixe e do Papagaio nos contam da fartura animal ali disposta. Já outros locais, como

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o arraial das Formigas, o rancho do Jacaré e a Serra das Jiboias remontam as pragas e feras que o infestavam. A fazenda das Jabuticabas, do Cocal, o rancho das Canavieiras, o riacho das Canabravas, a Vargem das Palmeiras, o Campo Grande, a fazenda das Urtigas Mortas, a Gameleira40 e o Imbuzeiro41 eram testemunhas das plantas e frutas encontradas no caminho ou da dureza da vegetação do sertão (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc. 555 [1], f.1-20).

Outros que deixaram seus nomes gravados no próprio caminho, batizando vários de seus trechos ou as localidades e fazendas nele dispostas, foram os homens que desbravaram os sertões, fossem paulistas, baianos ou portugueses. A Coroa portuguesa considerava a região “um país habitado de homens poderosos que não conheciam outra lei que a da força”, que a qualquer preço deveriam ser submetidos “à boa ordem e sujeição à justiça” (“Motins do sertão. Carta de Martinho de Mendonça de 29 de junho de 1736 e 17 de outubro de 1737”, Revista do Arquivo Público Mineiro, 1986:649 e 662). Mas, ainda que vistos com desconfiança pelas autoridades, eram esses régulos que sustentavam a colonização portuguesa nos confins do sertão. Seu nomes ficaram inscritos na paisagem como na Travessia da Dona Joana, na de João Amaro, no arraial de Matias Cardoso, no do padre Curvelo, no Curral do Borba, nas Lages do Sargento Queirós, na aldeia de Januário Cardoso, no Saco do Correia, no Rodeador das Pedras de Luiz Nunes, na fazenda da Viúva, na do Coronel Salvador Cardoso, na do Paulista, na do Pedroso e ou na dos Três Irmãos Nunes.

Mas, se a razão principal pela qual os Nunes apontaram esses perigos foi o de acautelar o viajante, eles acabam por reforçar mais uma vez a leitura paradisíaca que os irmãos, como os demais emboabas ilustrados,42 faziam do sertão. O paraíso não era algo que se encontrava facilmente, mas somente era alcançado pelos eleitos e apenas depois de enfrentarem muitos percalços. Essa dificuldade de atingi-lo era elemento essencial da escatologia judaico-cristã-ocidental sobre o paraíso terrestre. Desde o período medieval, o éden, ora situado em terra firme, ora numa ilha, estava sempre cercado por “por barreiras naturais, água e fogo; montanhas intransponíveis; animais perigosos” (Assunção, 2000:35; Holanda, 1994:15-34 e 185-246). Seria mera coincidência

40 Árvore grande, cuja madeira macia é muito utilizada para fazer utensílios; produz-se látex de sua casca.41 Árvore própria do semi-árido brasileiro, cujas raízes têm tubérculos reservadores de água, sendo os frutos, bagas comestíveis, muito apreciados.42 Um desses emboabas ilustrados foi o médico português José Rodrigues Abreu, que também esteve nas Minas Gerais durante a Guerra dos Emboabas, acompanhando o governador Antônio de Albuquerque; também escreveu um relato edenizador das Minas. É muito significativo o fato de que as imagens da capitania que sustentam o paraíso do autor são muito semelhantes ao dos irmãos Nunes: a riqueza mineral, a conformação edênica do rio São Francisco, a presença da serpente e o fechamento do espaço minerador (Furtado, 2005:277-295).

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que o animal que mais aterrorizou os três irmãos fosse a cobra, o mesmo que guardava o paraíso e tentou Adão e Eva? É também a toponímia que revela que a intervenção divina era frequentemente invocada por esses homens à medida que desbravavam o sertão, nomeando vários espaços, inserindo-os na dimensão do sagrado. Tal sacralização se inicia com a denominação do próprio rio de São Francisco, e continua na capela do Rosário, no Hospício dos Frades do Carmo, no arraial de São Pedro Novo, na Mata de São João, no Rancho da Páscoa, nas fazendas de São Eusébio, de Santo Onofre, de Santo Antônio do Urubu e de Santo Antônio do Retiro. Afinal, um dos pilares que sustentavam a colonização era a cruz, o outro, a espada.

Os caminhos do sertão

Se o relato advertia sobre todos os perigos que podiam ser encontrados na viagem, sua principal função era dar a ver a rota a ser trilhada, uma vez que a desorientação acometia frequentemente os viajantes. Assim, os Nunes sublinham os vários acidentes geográficos que deviam ser buscados ao longo do percurso. Alguns, como o arraial de Mathias Cardoso, que ficava a “meio caminho das Minas”, servia de ponto de orientação, mas também devia ser buscado pelos comerciantes porque era ali que “vinham alguns mineiros fazer negócios com a gente que [chegava] de Pernambuco e da Bahia, [e] que traziam negros, armas, cavalos, sal, açúcar, vestidos feitos, camisas, bois, pólvora, balas, [e] chumbo de toda sorte” (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc. 555 [1], f.5). O mesmo ocorria com “Capuame, onde há uma grande feira de gados” (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc. 555 [1], f.3). Outros eram essenciais para guiar o transeunte. Por essa razão, a partir da “barra da Bahia”, era necessário buscar e seguir uma serra que ali nasce, “que vai tomando o nome das partes por donde passa, e continua o caminho, de sorte que estes três Irmãos a tiveram à vista, pela parte esquerda, [por] setecentas léguas de caminho; e, no fim, vai entrar nas terras de Castela, pela parte ocidental” (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc. 555 [1], f.9).

A viagem pelo Caminho da Bahia era realizada em jornadas, marchando “a paulista”. Isto é, acordava-se bem cedo e caminhava-se somente até por volta do “meio-dia, quando muito, até uma ou duas horas da tarde, assim para se arrancharem, como para terem tempo de descansar e de buscar alguma caça ou peixe” (Antonil, 1982:182). A exceção era o trecho entre o Agreste e o rio das Rãs, pois como a distância era muito grande e não havia abrigo seguro entre os dois pontos, os viajantes tinham que partir à meia-noite e somente na noite seguinte iam pernoitar no Curral Falso (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc. 555 [1], f.3). A viagem era feita a pé, em lombo de burro, ou em redes carregadas por escravos ou índios, e alguns trechos

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podiam ser vencidos em canoas. O comerciante Antônio Mendes da Costa, por exemplo, vinha pelo caminho, “muito devagar, por trazer sua mulher em uma rede em todo o estado, e buscando índios para a carregarem às costas” (Lisanti Filho, 1973:336, Vol. 1). As dificuldades eram tantas que os cavalos e animais de cargas eram valorizados, mesmo sendo forçoso desmontar nos locais mais perigosos ou nas passagens dos rios.

Cientes de tudo o que ocorria nas estradas, os comerciantes preferiam se deslocar em grupos e, para isso, organizavam comboios bem armados com o objetivo de se autoprotegerem. Quando um dos Nunes foi atacado pela cobra coral, por exemplo, ele estava acompanhado de seus camaradas e de seus escravos. Um comerciante português, chamado Francisco da Cruz, foi testemunha exemplar do cotidiano dos caminhos, pois, como os Nunes, frequentemente transitava por eles vendendo seus produtos e realizando suas cobranças. Para se ter ideia do tamanho dessas comitivas, contou que ele, seu

“cunhado e dois amigos [juntavam] uma tropa de quarenta negros e quatro homens brancos” para enfrentar uma dessas viagens (ANTT. Testamentária de Francisco Pinheiro. Carta 167, maço 29, f.271). O armamento era essencial para garantir a segurança do grupo. Os Nunes tratam se alertar o leitor de seu roteiro que “nas cabeceiras do rio Verde, se acham pederneiras para as espingardas, muito boas; e [d]as grandes, que servem para os bacamartes [e] valem meia oitava de ouro, cada uma” (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc. 555 [1], f.9).

Mas, aos poucos, ao longo da jornada, foram se estabelecendo fazendas e roças, além de algumas poucas estalagens e dos raros arraiais, que serviam de abrigo para os viajantes e pasto para os animais. A viagem pelo Caminho do Sertão era ordenada de modo que ao final de cada marcha chegava-se a um local de pouso, mais comumente uma fazenda. O Mapa do território da Capitania da Bahia, compreendido entre o rio São Francisco, rio Verde Grande e o riacho chamado Gavião, de 1759, mostra a rede de fazendas regularmente dispostas ao longo desse trecho, proporcionando pouso aos viajantes, e dividindo o trajeto em jornadas médias de cerca de 37 léguas, distância que podia ser transporta em um dia de viagem de marcha à paulista (LISBOA. AHU. Mapoteca, n.167/980). É dessa mesma maneira que os Nunes ordenam a viagem. Muitas das fazendas que descrevem foram os locais onde pararam para descansar e, sob a rede protetora dos cristãos-novos ali residentes, algumas serviram também de locais de culto e de exercício dos ritos judaicos. Isso ocorreu, por exemplo, no sítio do Salgado, na Roça de Antônio Roiz Campos, esta última distante cerca de 15 léguas de Salvador, ambas localizadas nas proximidades da Vila de Cachoeira.

Mesmo após a proliferação dos arraiais e pousos ao longo do trajeto, a viagem no sertão continuou a depender prioritariamente do abrigo das fazendas próximas. Os pousos, quando existiam, eram incômodos e sujos e compunham-se, em geral, de apenas umas casinholas e uns barracões, onde eram estocadas

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as mercadorias que eram descarregadas dos lombos dos burros, para que os animais pudessem descansar e pastar. Na maior parte do trajeto, pernoitava-se com muito pouco conforto. Os comerciantes, precavidos, comumente traziam

“consigo sua cama e seus utensílios de cozinha, [e] não deixam nunca os animais” se distanciarem (Mawe, 1978:109). No início do século XIX, o inglês John Mawe recomendava os viajantes “a se munirem de camas e cobertas, de uma provisão de chá, açúcar, velas, aguardente, sal, sabão, duas marmitas, [além de] um chifre para água” (1978:118). Na Parateca, a primeira localidade a ser atingida junto ao rio São Francisco, podia-se buscar abrigo no “Hospício dos Frades do Carmo, onde habitam três ou quatro frades” (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc. 555 [1], f.3).

O Caminho da Bahia era na realidade um conjunto de estradas e picadas que, com variações, ligavam Salvador na Bahia, a Sabará e Vila Rica, nas Minas Gerais. O viajante que saía de Salvador, na Bahia, atravessava de barco a Baía de Todos os Santos, margeando a ilha de Itaparica, seguindo até o outro lado até a vila da Cachoeira, distante 12 léguas, porta de entrada do Recôncavo Baiano. Ali ele podia pegar várias variantes. Os Nunes descrevem duas delas. A primeira chamava-se Travessia de João Amaro e era uma longa trilha que, a partir de São Pedro o Novo, cruzava o rio Paruassu ou Paraguaçu e atingia a vila de João Amaro, que dava seu nome a essa ramificação do trajeto, o mais curto até as Minas. A partir da vila de João Amaro, passava-se a fazenda da Tranqueira, a Serra da Chapada, os Campos Gerais, o rio das Contas Pequeno e o Grande, o hospício dos Frades do Carmo, o rio das Rãs, até a fazenda da Parateca, na confluência com o rio São Francisco. Por essa rota, o viajante gastava cerca de 30 dias de viagem até atingir a margem do São Francisco (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc. 555 [1], f.1-2). Era ali, na Parateca, que a Trilha de João Amaro se encontrava com a segunda ramificação que os irmãos descreveram a partir de Salvador, denominada Travessia da Dona Joana, assim chamada porque por essa rota a maioria das fazendas que o viajante era obrigado a atravessar ou pousar pertencia a Joana da Silva Guedes de Brito. Joana e sua mãe, Isabel Maria Guedes de Brito, herdaram um sem número de fazendas no sertão. Segundo os Nunes, só as de Isabel importavam

“novecentas léguas de conquistas, que fizeram seus antepassados”. Como residiam em Salvador, aforavam suas terras a terceiros e “neste [seu] tão grande distrito há infinitas herdades, [pelas] quais lhe pagam de foro os habitantes dez mil reis, [a] cada um ano, por cada três léguas de terra, em longo” (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc.555 [1], f.3). Mãe e filha eram descendentes de uma índia com Antônio Guedes de Brito, famoso apresador de índios, que por seus serviços, acumulou uma enorme quantidade de sesmarias na região.

Ainda de acordo com os Nunes, a partir da Parateca, que era o marco fundamental nesse trecho da rota, um único caminho acompanhava o curso do rio, até a foz do rio das Velhas. Dali, passava-se pela vila da Cachoeira, pelo

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arraial do Cardoso, pela aldeia dos Tapuias, cruzavam-se os rios Giguitay e Rosário, até a barra do rio das Velhas. O rio tomou esse nome porque os índios o chamavam guaimi, termo que no tupi-guarani significava “mulher velha” (Costa, 1997:218). Depois de atravessar o rio Ricudo, o rio Fondo, a Serra Vermelha e Itacambira, atingia-se Vila Rica. Nesse trecho o caminho tomava o nome de Estrada Real,43 e ao longo do tempo a Coroa procurou aumentar o controle sobre esse trecho, não só para dar mais segurança aos viajantes, mas também para efetivar a cobrança de vários tributos. Por estas duas razões determinava-se que os viajantes transitassem apenas por ela, evitando embrenhar-se nos matos ou usar picadas clandestinas. Ao longo da Estrada Real, foram construídos registros, onde era feito o controle de entrada e saída de pessoas e mercadorias e a cobrança dos impostos, como as entradas – sobre todas as mercadorias a serem comercializadas na capitania – e as passagens – que incidiam sobre os viajantes pela travessia dos rios caudalosos. Esses eram guardados por destacamentos militares, que tinham a função de fazer o giro dos territórios próximos em busca de contraban distas, e, inclu sive, encontrar e destruir picadas clandestinas. Em geral, os registros não tinham localização fixa, mas variavam conforme as necessidades estratégicas e situavam-se em lugares do caminho onde, por algum acidente geográfico, havia dificuldade para os extravia dores buscarem outra rota. No caso do Caminho da Bahia um dos registros mais importantes ficava na barra do rio das Velhas, pois sua travessia era obrigatória para atingir a região mineradora. Os Nunes dão conta que o primeiro que se estabeleceu para regular essa travessia ficava onde assistia Luis Dias. Mas que a “passagem que agora se pratica neste rio das Velhas” ficava um pouco mais a frente entre as Porteiras de Cima e as Lages do Sargento Queirós (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc.555 [1], f.5).

O espectador que se debruça sobre o mapa percorre, diferentemente do que está escrito no roteiro dos três irmãos, apenas duas entre as várias possibilidades de caminhos que, a partir de Salvador, podiam ser tomadas para se atingir as Minas Gerais. Os próprios irmãos abrem o roteiro informando o viajante de que havia “três Minas diferentes” e de que cada uma podia ser atingida, a partir de Salvador, por caminhos distintos: “a que fica mais perto está a quinhentas léguas de caminho, indo pela Travessia de João Amaro. Outra a oitocentas, pela travessia de Dona Joana. [E] a terceira, sendo de seiscentas [léguas], com pouca diferença, é a do Morro do Chapéu. Estas três Minas eram, até agora, as mais distantes da Bahia” (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc. 555 [1], f.1). Mas, à medida que o texto se desenrola, várias bifurcações se apresentam para além desses três

43 “E, logo, à [Parateca]. Aqui se encontra a Estrada Real, junto ao Rio de São Francisco, onde se mete o Rio das Rãs, e acaba esta travessia de João Amaro” (RBC. Noticias das minas da América chamadas Geraes..., n.229, doc.555 [1], f.3).

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caminhos principais. Na página 3, fica-se sabendo que, na Parateca, também “fina o Caminho das Contas Pequeno”, que atravessa as fazendas de Isabel Maria Guedes de Brito. Já na página 4, o leitor é informado de que a Travessia de Dona Joana é o caminho que leva à fazenda do Rio do Taparacu das Porteiras pela “Carreira Direita, saindo da Bahia até a fazenda da Jatobá”. O que significa que havia também uma “Carreira da Esquerda”, que não é descrita por eles.

O caminho do Morro do Chapéu atingia o rio São Francisco na altura da fazenda de Santo Antônio do Urubu, depois de atravessar o rio das Contas Pequeno e o Grande. Após o primeiro dia de caminhada ia-se dormir na fazenda das Palmas e, no dia seguinte, na das Palmas, logo depois do rio das Contas e um pouco adiante o Morro do Chapéu que dava nome à trilha. Depois que se atingia o São Francisco, seguia-se o seu leito, cruzando o rio das Rãs e o rio Verde até o arraial de Matias Cardoso. Logo depois se chegava à fazenda de Januário Cardoso, que era um grande potentado da região e, em meio à catinga, era proprietário das fazendas de Angicos e Joazeiro onde, como o costume, criava-se gado vacum. Dali seguia-se num único trajeto, que margeava o rio das Velhas, até Sabará, passando pela fazenda da Jaguara, por Fidalgo e Santa Luzia.

Do sertão das Gerais aos cárceres da Inquisição

Diogo chegou a Lisboa em 1729, sem que se saiba exatamente o mês. A morte de sua esposa parecia afastar o perigo de que “os filhos de seu meio irmão Manoel Mendes, os de sua prima, Ana Nunes, e os do meio-irmão Diogo Henriques, que são seus inimigos”, todos moradores de Idanha-a-Nova, o denunciassem (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Segunda confissão realizada a 3/11/1729). Mas parece que, tão logo chegou, percebeu que a ameaça que o fizera partir do reino continuava a pairar sobre sua vida e que se enganara ao achar que o perigo de cair nas mãos da Inquisição havia passado.

No início de setembro, foi dar à porta do Palácio dos Estaus, prédio que abrigava o Tribunal do Santo Ofício. Resolveu se apresentar “espontaneamente”, estratégia comum aos que tentavam minimizar suas penas. Nos meses que se seguiram, foi chamado por quatro vezes perante os inquisidores para confessar seus desvios de fé. A primeira ocorreu a uma hora da manhã do dia 7 do mesmo mês. Certamente estava entre sonolento e assustado quando foi retirado pela primeira vez da sua exígua cela e levado à 1a Casa das Audiências para o interrogatório com o inquisidor Philippe Maciel. A estratégia de intimidação parece ter surtido o efeito esperado, Diogo começou contando como se deram os primeiros ensinamentos, recebidos em casa de sua mãe. Mas, apesar da intensa convivência com sua parentela, em São Vicente da Beira e

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Idanha a Nova, onde certamente praticavam o judaísmo, os Nunes que ainda habitavam o reino quase não são citados em seu depoimento. Centrou a sua confissão nos anos passados no Brasil, certamente sabedor de que vários dos seus amigos, judaizantes como ele, já estavam encarcerados pelo Santo Ofício e, provavelmente, já haviam feito referência às cerimônias de que haviam participado juntos. Era melhor dizer o que já era, muito provavelmente, do conhecimento dos inquisidores, mantendo a estratégia de aparente colaboração e, dessa forma, preservar sua vida e seus bens. O primeiro que denunciou foi Manoel Mendes Monforte, seu grande amigo na Bahia, que já estava morto por essa época, e sua mulher, Isabel Luiza de Pina, que se encontrava a salvo em Londres. Outros a que se referiu foram seus irmãos. No entanto, João já havia morrido e Sebastião vivia em Londres, como também seu primo Diogo Nunes Ribeiro, o segundo a mencionar no depoimento. Começou então a desfiar um enorme rol de cristãos-novos com quem judaizara ao longo do tempo, como Diogo Nunes Henriques, tratante como ele, morador do Curralinho, Francisco Ferreira Isidro, Domingos Nunes, Manoel Nunes Bernar e sua esposa, Diogo Fernandes da Costa, Gaspar Henriques, entre outros, mas todos já haviam sido presos nos anos anteriores (Novinsky, 1992; Novinsky, s/d). O último a se referir foi David da Silva que foi levado para o Estaus na mesma época que ele, cujo primeiro depoimento ocorreu no mesmo dia 7. Os dois incriminaram um ao outro. A análise da confissão evidencia a estratégia de relatar aos inquisidores apenas o que já era de seu conhecimento, mantendo a aparência de colaboração de forma a minimizar sua pena. Terminou contando a cerimônia de sua circuncisão ocorrida em Londres. Apesar de analfabeto, assinou seu depoimento e, ainda que com letra trêmula, foi capaz de desenhar as letras de seu nome (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Primeira confissão realizada a 7/09/1729).

Diogo permaneceu confinado em sua cela nos dois meses seguintes – era forma de mortificar o corpo e a alma e dos inquisidores analisarem cuidadosamente seu depoimento. Com certeza percebeu que confessara ainda não era suficiente e, assim, a 3 de novembro pediu para ser levado novamente a 1a Casa de Audiência para sua segunda confissão, frente ao mesmo comissário. Começou repetindo a estratégia anterior. Contou que, na Bahia, havia quatro anos, realizara ritos judaicos com Antônio Cardoso Porto, e sua mulher. Os dois já estavam encarcerados desde 1727. Os inquisidores certamente o pressionaram para entregar algum nome novo e ele falou de Luis Froes, Manoel Dias de Carvalho e Diogo de Paiva. Devia saber que os três se encontravam a salvo, pois a despeito da sua e de várias outras denúncias, nenhum deles caiu nas garras do Santo Ofício. Terminou contando que a denúncia era vingança dos familiares de sua esposa por não ter feito vida com ela, de forma a se colocar na posição de vítima. O depoimento foi curto e rápido (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Segunda confissão realizada a 3/11/1729).

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Parece não ter levado muito tempo para perceber que essa estratégia não seria convincente, pois pediu uma terceira audiência apenas quatro dias depois, na manhã do dia 7 de novembro. Começou contando sobre uma das últimas cerimônias de que participara no Brasil havia quatro anos, nos Campinhos da Cachoeira, na roça de Antônio Roiz de Campos, situada a 14 ou 15 léguas da Bahia. Este havia chegado preso aos Estaus havia poucos dias e, no dia 3, dera seu primeiro depoimento. Tudo indica que, a partir da comunicação entre os presos, apesar de proibida, Diogo ficara sabendo da prisão do amigo e, sem conhecer o conteúdo da sua confissão, resolvera falar dos ritos judaicos que realizaram juntos. Depois se referiu a outros judaizantes como ele, repetindo a estratégia anterior: todos os que se referem ou já estavam presos, como Antônio do Valle, seu sobrinho Manoel, David de Miranda, Miguel Nunes, Ana Roiz, Manoel Mendes e Diogo Fernandes Cardoso, que em 1727 foi enviado dos cárceres para o hospital de loucos; ou eram defuntos, como o marido desta última, Damião Roiz; ou não foram processados pelo Santo Ofício, apesar de já denunciados por outros presos, como Domingos Nunes Penacor, João Roiz Nogueira, Francisco Nunes de Miranda e João Roiz, morador em Pitangui, o que significa que já estavam mortos ou refugiados no exterior (Novinsky, 1992; Novinsky, s/d). Sua assinatura, cada vez mais trêmula e borrada, era sinal evidente da decadência física que experimentava nos cárceres (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Terceira confissão realizada a 7/11/172).

Apesar de ter oferecido aos inquisidores praticamente o que já era do seu conhecimento, sua estratégia parecia se encaminhar a contento e seu processo começou a se mover, anunciando um final próximo. A uma da tarde foi convocado pela primeira vez pelo comissário Phillipe Maciel, encarregado do seu caso, para, na 2a Casa de Audiência, responder às perguntas de genealogia e, logo em seguida, foi questionado nas suas crenças, confessando sua adesão à fé judaica, as práticas e os ritos judaizantes que praticara (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Perguntas de genealogia realizadas e questionamento de suas crenças realizados a 7/11/1729).

Novamente percebeu que o que confessara ainda não satisfizera seus algozes. A estratégia dos inquisidores, no qual os processos corriam em segredo, era estímulo para que os encarcerados contassem tudo que sabiam, pois uns não sabiam exatamente o que os demais haviam dito sobre eles. Colaborar significava aliviar a consciência de todos os pecados que cometera, pois somente dessa maneira o perdão poderia ser alcançado. Assim, a 14 de novembro, pediu nova audiência para continuar sua confissão. À tarde, foi levado mais uma vez frente a Phillipe Maciel na 2a. Casa das Audiências. Porém, manteve-se alinhado à estratégia que traçara desde o primeiro dia. Centrou-se em pessoas e acontecimentos passados em Londres, nas festas judaicas que comemorara, que já eram do conhecimento dos inquisidores a partir das suas próprias confissões, e insistiu na tese de que a denúncia inquisitorial era resultado da vingança de alguns dos seus parentes. De fato, convenceu seus inquisidores, ao

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final do depoimento, o escrivão Manoel de Figueiredo, por ordem do inquisidor, concluiu o processo e o enviou “nestes termos para os Senhores Inquisidores lhe houvessem de diferir de seu mandado” (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Quarta confissão realizada a 14/11/1729).

Demorou cerca de 15 dias para que os inquisidores decidissem sobre seu destino. A 5 de dezembro, foi levado frente à Mesa da Inquisição para ser reconciliado junto à fé católica. A estratégia de colaboração havia sido bem sucedida e, no escopo da amplitude de penas à disposição do Santo Ofício, a sua foi bastante leve. Por unanimidade dos juízes da Mesa não teve que se expor a humilhação pública de sair em um Auto de Fé, nem de ter que usar permanentemente o sambenito e não teve seus bens sequestrados, o que significava que poderia viver com dignidade. Finalmente, no dia 10 do mesmo mês, apresentou-se à Casa do Despacho para receber sua penitência: foi instruído na fé católica, confessado, comungado e castigado com todo o rigor (afinal, acreditava-se, um pouco de mortificação do corpo era essencial para limpar os pecados da alma) (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Reconciliação na Mesa realizada a 5/12/1729 e Leitura da Pena realizada a 10/12/1729).

Os inquisidores consideraram os autos do processo verossímeis, pois o réu confessara atos de judaísmo que não haviam sido delatados ao Santo Ofício. De fato, somente em 1731, Diogo Nunes receberia duas denúncias de judaísmo. Uma de David Mendes da Silva e outra de Marcos Mendes Sanches (Novinsky, 1992:28). Sobre o primeiro, Diogo não havia feito nenhuma menção, já o segundo foi dos poucos a que se referiu que ainda não havia sido preso e que seu depoimento, o segundo entre outros tantos que se seguiram (Novinsky, 1992:89), ajudaram a incriminar. Ainda que não houvesse fornecido seu nome completo, Diogo contou da celebração judaica que os dois haviam realizado, havia 11 anos, em na sua roça, localizada na saída de Itaubira, juntamente com seu irmão, João Nunes, Manoel Nunes Sanches e João Lopes Alvares (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Primeira confissão realizada a 7/09/1729). Marcos foi preso a 12 de outubro de 1730 e o depoimento de Diogo ajudou os inquisidores a incriminá-lo. Teve menos sorte que o amigo, pois saiu no Auto de Fé de julho de 1732 e teve todos os bens sequestrados (Novinsky, s/d:215).

Nos meses que passou nos Estaus, Diogo permaneceu, em grande parte, confinado na sua pequena cela. Os espaços que percorreu no interior do imenso palácio até a 1a e a 2a Casas de Audiência, onde prestou seus depoimentos, eram bem mais exíguos que os vastos sertões das Gerais, aos quais sonhava ansiosamente voltar. No dia 20 dezembro, já em liberdade, suplicou que pudesse voltar às Minas, no Estado do Brasil, onde era morador. Apesar dos vários anos ausente, sentia falta do Curralinho, pois aquela era a sua casa, conforme atestou aos inquisidores (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Petição para voltar a sua morada apresentada a 20/12/1729). As autoridades

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não atenderam seu pedido. Seria mais fácil vigiarem-lhe os passos no reino do que nas infinitas brenhas dos sertões das Gerais e, dessa forma, garantir que

“com a vida desse mostras de bom e fiel católico. Isso significava, de acordo com o entendimento dos inquisidores, realizar atos públicos que atestassem sua reconversão ao catolicismo. Diogo deveria comparecer publicamente todos os anos às quatro festas principais do calendário católico – Natal, Páscoa, Espírito Santo e Assunção – e rezar, semanalmente, na igreja, o rosário à Virgem. Mas ainda havia outras contrições a serem cumpridas no espaço privado. Em casa, semanalmente às sextas feiras, deveria rezar cinco Padres Nossos e cinco Ave Marias (ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Leitura da Pena realizada a 10/12/1729). Livrara-se das estreitas paredes da prisão dos Estaus, mas jamais dos olhos vigilantes das autoridades inquisitoriais.

Em 1729, os três Nunes se encontravam em situações muito diferentes. João morrera na França e Sebastião, casado, vivia em Londres, onde podia professar abertamente o judaísmo. Enredado nas malhas do Santo Ofício, Diogo era um penitente no reino.44 Mas parece que conseguiu voltar às Minas. Em 1732, as autoridades inquisitoriais, depois de examinar as confissões de David Mendes da Silva e de Marcos Mendes Sanches, presos no ano anterior, resolveram mandar expedir um mandado de prisão “contra Diogo Nunes, cristão-novo, (...), morador do Campo do Curralinho”. Ele foi então, “avisado pelo reverendo doutor José Pacheco Pereira, vigário da freguesia de N. Sra. de Nazareth da Cachoeira, da parte do Santo Ofício, que se apresentasse na igreja de Santo Antônio do Campo” (ANTT. Inquisição de Lisboa. Cadernos do Promotor. Caderno 104, Livro 296[1721; 1732-1746], f. 0841-0842, doc. 360).45 Mas, a partir daí seu rastro se perde. Se apenas Diogo conseguiu a trilhar de volta os caminhos que separavam o porto de Salvador das Minas, o roteiro que os três irmãos Nunes produziram descreve, minuciosamente, a quem mais desejasse seguir-lhes os passos, a rota a percorrer nos vastos sertões e campos até Vila Rica. Aos historiadores, legaram um documento precioso que permite reconstruir a saga errante experimentada por uma família de cristãos-novos no coração das Gerais.

Fontes

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44 Todas essas informações foram retiradas de ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro.45 Ver listagem em anexo, neste volume, produzida por Maria Leônia Chaves de Resende.

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ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Perguntas de genealogia realizadas e questionamento de suas crenças realizados a 7/11/1729.ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Perguntas de genealogia realizadas a 7/11/1729. ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Petição para voltar a sua morada apresentada a 20/12/1729.ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Primeira confissão realizada a 7/09/1729.ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Primeira confissão realizada a 7/09/1729 e Perguntas de genealogia realizadas a 7/11/1729. ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Reconciliação na Mesa realizada a 5/12/1729 e Leitura da Pena realizada a 10/12/1729.ANTT. IL. Processo n.7488, Diogo Nunes Ribeiro. Terceira confissão realizada a 7/11/172.ANTT. Inquisição de Lisboa. Cadernos do Promotor. Caderno 104, Livro 296[1721; 1732-1746], f. 0841-0842, doc. 360.ANTT. Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE). Caixa 1, maço 1, doc.39. Correspondência de Dom Luís da Cunha com Marco António de Azevedo Coutinho. Bayona 22 de março de 1729.ANTT. Ministério dos Negócios Exteriores (MNE). Correspondência entre diplomatas portugueses e secretários de Estado. Correspondência de Dom Luís da Cunha. Livro 779, f.347v.ANTT. MNE. Caixa 1, maço 1, doc.39, Bayona 22 de março de 1729.ANTT. MNE. Caixa 1, maço 1, doc.39, Bayona 22 de março de 1729.ANTT. MNE. Correspondência da Legação Portuguesa em Paris. Caixa 562, f.229, 10 de outubro de 1749.ANTT. Testamentária de Francisco Pinheiro. Carta 167, maço 29, f.271.ARQUIVO HISTÓRICO DO MUSEU DA INCONFIDÊNCIA. Casa do Pilar. Testamento de João Gonçalves Batista, cód.67. Auto 802.ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO (AHU). Manuscritos Avulsos de Minas Gerais (MAMG). Caixa 87, doc.15. Requerimento de Bartolomeu Álvares da Silva, morador na freguesia da Cachoeira do Campo. Termo de Vila Rica, pedindo carta de confirmação de sesmaria de meia légua em quadra, na paragem chamada Curralinho, 1765. BNL. Reservados. Maço 61, n.2, doc.10.CATALOGUE des livres de la bibliothèque de feu Mr. de Couvay, chevalier des ordres du Roi de Portugal. Paris: Chez Damonneyville, 1755, f.iv. CÓDICE COSTA MATOSO. Coord. de Luciano Raposo de Almeida Figueiredo e Maria Verônica Campos. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1999, v.1.COIMBRA. Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. Ms.148. f.6v-8v. e Lisboa. Biblioteca da Ajuda. Ref.54-XIII-4, n.24.FERNANDES, Neusa. A Inquisição em Minas Gerais. Rio de Janeiro: Ed.UERJ, 2000.

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10.

A família Vale: do reino às Minas

Lina Gorenstein

Introdução

Transferindo-se para o Novo Mundo, a Inquisição portuguesa continuou, através de seus agentes, a investigar a conduta dos cristãos-novos. Os Estatutos de Pureza de Sangue fundamentavam a ação inquisitorial: o cristão-novo era sempre suspeito de heresia, uma vez que o Judaísmo chegava até ele pelo sangue.

Essa legislação, promulgada em Toledo em 1449, discriminava os indivíduos por sua origem étnica, e era dirigida exclusivamente aos judeus convertidos ao Cristianismo. A distinção era feita basicamente pelo sangue, que trazia a religião judaica e impedia a assimilação do converso e sua igualdade diante dos cristãos velhos.

Enquanto judeus, eram sujeitos às suas próprias leis. Como conversos, podiam competir sem restrições com os cristãos. Medidas cruéis foram elaboradas para impedir os conversos de se inserir na sociedade.

A “sentencia-estatuto”1 foi ao mesmo tempo um julgamento e uma legislação contra os conversos. Foi uma medida baseada em motivos econômicos, porém disfarçada por pretextos religiosos. Acusava todos os conversos de serem judeus secretos, de serem maus cristãos. Não fazia diferença o que os conversos faziam. O Judaísmo estava em seu sangue. E eles o bebiam no leite de sua mãe (Lisboa. Institutos dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo. Inquisição de Lisboa [IAN/TT,IL]. Processo de Antonio Rodrigues Mogadouro, n.5412, carta do Padre Francisco Paes Ferreira, anexada ao processo). Foi a primeira legislação institucional racista no mundo moderno desde as leis canônicas. Os conversos – ou cristãos-novos – não eram iguais aos cristãos-velhos, uma vez que carregavam no sangue as sementes da “impureza”, as sementes do Judaísmo.

Essa política contra os conversos tornava todos suspeitos de serem falsos cristãos. Foi um fenômeno social e urbano, que dividia a sociedade em “puros”

1 A “sentencia-estatuto” tem sido estudada por muitos historiadores, que discutiram as razões que levaram a essa situação. Entre eles, ver Sicroff (1958), Netanyahu (1995), Contreras (1993), Stallaert (2006). Ver ainda Gorenstein (2010).

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e “impuros”, assegurando e exclusão dos conversos. E mais tarde, ampliou para outras etnias – muçulmanos, negros, ciganos e índios – a classificação de

“impuros”.Essa legislação ofereceu a base para uma nova instituição que foi

introduzida na Espanha em 1487 e em Portugal em 1536: o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição. O conceito da “pureza de sangue” foi usado pelo regime inquisitorial e aplicado eficazmente por três séculos (Novinsky, 1972:43).

Os cristãos-novos garantiam à Inquisição sua base econômica (Novinsky, 1972). Os conversos, como um grupo econômico e social, independentemente do envolvimento religioso, eram a matéria do Tribunal. Podemos dizer que a Inquisição nos países ibéricos foi introduzida como resultado do antissemitismo crescente desde os massacres de 1391. É importante saber que a Inquisição se baseava na pesquisa genealógica para encontrar a origem étnica dos cristãos-novos (Novinsky, 2007:31).

No Brasil, essa característica fica clara ao examinarmos os processos das famílias perseguidas. Tomando como exemplo a família Vale, do Rio de Janeiro, podemos segui-la durante mais de um século e meio em sua trajetória nos cárceres inquisitoriais.

No decorrer desse período, esse grupo apresentou diversos sobrenomes. Nas sessões de “genealogia” dos processos, o sobrenome Vale foi o mais presente entre os mais de 50 membros condenados pela Inquisição no século XVIII.

A família Vale – Portugal e Rio de Janeiro

As origens da família remontam a Portugal, e temos notícias de presos pela Inquisição desde meados do século XVI. Garcia Ribeiro, mercador e contratador das rendas reais, sua mulher Isabel Gomes e uma irmã, Branca Gonçalves, moradores na vila de Lagos (Algarve), foram presos em 1560, acusados de Judaísmo (IAN/TT. IL. Processos de Garcia Ribeiro n.8489, Isabel Gomes n.3118 e Branca Gonçalves n.6895).

No século XVII foram presos em Lisboa Gabriel Ribeiro da Costa, contratador (filho de Garcia Ribeiro), e seu filho Tomas Rodrigues, em 1609 e soltos em 1611 em atendimento ao Perdão Geral (IAN/TT. IL. Processos de Gabriel Ribeiro [da Costa] n.8056 e Tomas Rodrigues n.1354). A prisão era de ambos era de conhecimento comum. Soltos, fugiram para a Turquia. Corria a notícia que Gabriel fugira de Lisboa e que o Turco mandara empalar (IAN/TT.IL. Processo de Izabel Mendes, n.5436. Depoimento à Inquisição do Visitador Luis Pires da Veiga). Uma testemunha, de passagem para a Índia, o encontrara em Damasco, usando um chapéu amarelo e, ao perguntar do que se tratava, Gabriel Ribeiro havia lhe respondido que era para saber em que lei se havia de salvar.

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Uma das características desses presos em Portugal é que a família, embora cristã-nova, ocupava cargos importantes na fazenda real. Garcia Ribeiro era contratador das rendas reais, o que significava que ele gozava de confiança dos governantes, e dava continuidade a antigas funções desempenhadas antes por judeus, muitos encarregados da cobrança de impostos desde o “tempo dos judeus” (ver Kayserling, 2009). O casamento de uma filha com um contratador da alfândega, cristão-velho, mostra também o prestígio de que a família gozava em Portugal.

Tudo indica que a família de Gabriel fugiu de Portugal e no início do século XVII Gregório Mendes de Cea e Izabel Gomes (filha de Gabriel Ribeiro) estavam estabelecidos no Rio de Janeiro (IAN/TT. IL. Processo de Izabel Mendes, n.5436). O patriarca Gregório de Cea declarou ser cristão-velho; natural de Aveiro, fora contratador da alfândega; seu pai, Gaspar de Cea, fora provedor da Misericórdia de Viana. Quando chegou ao Rio de Janeiro, provavelmente dedicou-se à mercancia, como tantos outros recém-chegados.

Tiveram três filhas: Izabel Mendes, Messia Barbosa e Beatriz da Costa. As três se casaram com mercadores cristãos-novos e deixaram descendência. Beatriz da Costa uniu-se ao espanhol Duarte Ramires de Leão no Rio de Janeiro em 1617 (Rheingantz, 1965:299, Vol. 2). Duarte tinha também o nome judaico de Binyamin Benveniste, como indica seu parente Ishack de Mathatia Aboab no manuscrito Livro e Nota de ydades Reduzido por my Ishack Aboab e copiado por my Mathatia do senhor Ishack Aboab (Revah, 1961).2 O documento lista dez filhos do casal e aponta um parente importante: don frey Francisco de Vitoria, Bispo de Tucumã e Arcebispo de Mexico (Revah, 1961:298).

No século XVII, poucos cristãos-novos foram presos no Rio de Janeiro. Mas continuando a saga familiar das prisões, Isabel Mendes foi enviada para ser julgada em Lisboa em 1627, pelo Visitador Luis Pires da Veiga.

Ao chegar a Portugal, Isabel ficou internada por quatro anos no Hospital de Todos os Santos por ser considerada insana. Consta que sofria de “gota coral” (provavelmente uma espécie de epilepsia). Quando voltou para os cárceres da Inquisição, foi submetida a longos inquéritos e foi torturada. Saiu no Auto de fé de 2 de abril de 1634, condenada a cárcere e hábito penitencial a arbítrio dos Inquisidores.3

2 Aboab diz que o casal teve dez filhos; Izabel Mendes relaciona apenas seis, mas é possível que os outros tivessem nascido após sua prisão. Izabel Mendes teve dois filhos e sua Irma Messia, não sabemos se deixou descendência. 3 Cárcere e hábito penitencial a arbítrio dos Inquisidores – sentença na qual o réu deveria viver no cárcere ou em lugar designado pelo Tribunal do Santo Ofício, em Lisboa ou em alguma aldeia distante. Periodicamente o penitenciado devia apresentar-se perante o Tribunal. Deveria também usar o “habito penitencial” ou o “Sambenito” o “sambenito”, uma capa que devia man-ter sobre suas vestes, que indicava sua condição de condenado por heresia. Esta pena podia ser perpétua, ou “a arbítrio”, ou seja, os inquisidores poderiam suspendê-la. A grande maioria dos cristãos-novos teve todos os seus bens confiscados, e após a prisão estavam reduzidos à miséria.

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Isabel foge ao comum das mulheres luso-brasileiras. Sabia ler e escrever, e em sua confissão afirma conhecer latim e hebraico. Quando a prenderam, encontraram escondido em seu travesseiro papel e pena e um texto escrito de seu próprio punho – as “contraditas “(defesa do réu negativo – que negava ser culpado – afirmando que as testemunhas que contra ele depuseram eram falsas por serem seus inimigos). Izabel Mendes possuía alguns livros, todos sobre a doutrina cristã: Flos Sanctorum, Peregrino em sua Pátria, Conquistação de Jerusalém, Templo Militante e um livro (provavelmente o catecismo) de frei Bartolomeu de Los Mártires. É curioso que Izabel conhecesse diversos trechos da história judaica. Considerava a “Lei de Moisés” como sendo a mais perfeita. No Rio de Janeiro, frequentava a sinagoga, espaço onde se reuniam cristãos-novos todas as sextas-feiras, sob o pretexto de um jogo de cartas ou simplesmente encontros (Ver Gorenstein, 2005:91 e seg e IAN/TT, IL, Processo de Izabel Mendes, n.5436).

Descendentes de Izabel Mendes foram presos no século XVIII. Notamos então que ficaram pálidas lembranças do Judaísmo. Izabel Gomes da Costa, sobrinha-neta de Izabel, confessou conhecer orações judaicas que lhe foram ensinadas quando tinha 13 anos por sua avó. Nessas orações percebemos confusões que fazia com personagens bíblicos. Em uma das orações cita 25 personagens da Torá, entre eles Amão e o Faraó. Ela os retrata como “santos” do Judaísmo (Gorenstein, 2005:340 e seg.).

Um sobrinho de Isabel Mendes, Gregório Mendes de Leão, morou em Amsterdã e Lisboa e em 1660 casou-se no Rio de Janeiro (IAN/TT. Cadernos do Promotor n.36, f.327-328 e 591-595).4 Já havia sido denunciado à Mesa do Santo Ofício em 1656, por um capitão de navio que declarou tê-lo encontrado em Amsterdã, onde tinha um nome judeu – Nicolas Hermans – e professava a Lei de Moisés (IAN/TT. Cadernos do Promotor n.36, f.327). Outra denúncia envolvendo Gregório e um cunhado, Manoel do Vale, foi feita na mesma época. Ao saber que um homem nobre do Rio de Janeiro chamara Manoel de “judeu”, Gregório Mendes dissera “que não fizera o dito homem afronta ao dito Manuel do Vale em lhe chamar de judeu pois o era” (IAN/TT. Cadernos do Promotor n.36, f.591-595 [1658]).

Família de criptojudeus que durante o século XVII manteve contato

4 Ver Rheingantz (1965:586). Ver também IAN/TT, IL. Processo de Elena do Vale, n.1179, Confissão de 3 de julho de 1711 e Genealogia 15 de novembro de 1710 – O casal foi denunciado ao Santo Ofício por uma sobrinha, Elena do Vale, em 1711 que disse que há 12 anos, pouco mais ou menos, na fazenda dela confitente no Rio de Janeiro, se achou com Gregório Mendes, cristão-

-novo, lavrador, casado com Ines de Lima, e com a mulher do mesmo, Ines, cristã-nova, filha de Francisco da Costa, lavrador de cana e Ana Barreta e se declararam como crentes na Lei de Moisés - porém não foram presos, nem seus filhos denunciados e os outros membros da família não os mencionaram; a própria denunciante não relatou o parentesco. Elena do Vale declarou que Gregório Mendes havia sido seu padrinho de batismo o que mostra que devia haver convi-vência entre os núcleos familiares.

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com os judeus de Amsterdã, mercadores que viajavam com frequência para a Europa. O Judaísmo que permanecera nesta família desde a época em que foram batizados em pé em Portugal (1497) transformara-se em religião secreta desde o século XVI.

Família de burocratas e mercadores que logo se ligaram à terra: Izabel Mendes, quando foi presa em 1627, vivia em um engenho, onde tinha um partido de cana e uma olaria; seu marido era também mercador; seus sobrinhos foram mercadores e senhores de engenho.

Outros núcleos familiares apresentaram trajetórias semelhantes no decorrer dos seiscentos. Em geral, os homens recém-chegados iniciavam suas carreiras na mercancia e, seguindo o padrão de colonos abastados de outras regiões da Colônia, investiam em engenhos e escravos. O tipo ideal de fidalguia, descrito por Antonil, fez parte dos anseios do grupo.5

Desde o final do XVII a família Vale era senhora, entre outros engenhos, de um grande engenho na freguesia de São Gonçalo, o “Golambandé da Invocação de Nossa Senhora de Montesserte”, de um engenho em São João do Meriti, outro em Jacutinga, além de partidos de cana em Irajá, Iguaçu e São Gonçalo (ver Gorenstein, 1995, cap. 3).

5 “O ser senhor-de-engenho é titulo a que muitos aspiram, porque traz consigo o ser servido, obedecido e respeitado de muitos. E (...) bem se pode estimar no Brasil o ser senhor-de-engenho, quanto proporcionalmente se estimam os títulos entre os fidalgos do Reino” (Cf. Canabrava, 1967:75).

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As propriedades da família Mendes Vale

Senhores de engenho Freguesia Donos de partido Freguesia

Manoel do Vale da Silveira Gregório Mendes

Duarte Rodrigues de Andrade e Ana do Vale

São Gonçalo “Golambandé da Invocação de Nossa Senhora”

Domigos Rodrigues Ramires #

São Gonçalo

Manoel do Vale da Silveira # João Soares de Mesquita #

São Gonçalo

Simão Rodrigues de Andrade #

Diogo Bernal da Fonseca #

São Gonçalo

José Ramires do Vale # João da Fonseca Bernal #

São Gonçalo

João Soares Pereira (séc. XVII)

Francisco de Campos Silva #

Iguaçu

Alexandre Soares Pereira # São João do Meriti João Rodrigues do Vale #

Irajá

João Rodrigues do Vale# Jacutinga Manoel Gomes Pereira #

João Nunes Viseu #

Diogo Lopes Flores #

Antonio Soares de Oliveira Jacutinga Rodrigo Mendes de Paredes #

Irajá

Dados dos processos da Inquisição de Lisboa; # significa que o cristão-novo foi preso no século XVIII

A Inquisição no século XVIII – Rio de Janeiro

O Rio de Janeiro, desde o final do século XVII, sofreu significativas mudanças na sua conjuntura econômica. A cana-de-açúcar continuava sendo produto importante, mas a descoberta das jazidas de ouro na região das Minas Gerais mudou o cenário brasileiro, levando à imigração em massa, tanto de Portugal como de outras regiões do Brasil. Foram então desviados da agricultura para a mineração investimentos e escravos. Esse fato transformou o Rio de Janeiro em verdadeiro entreposto comercial de escravos e mercadorias para a região das minas.

O ouro foi explorado pelos portugueses reinóis e trouxe fausto e riqueza para a Metrópole, mas deixando os nativos na miséria (Gorenstein, 2005:35 e seg.) As notícias das riquezas do Brasil atraíram a atenção dos Inquisidores, que agiram sem piedade contra todos os portugueses cristãos-novos. Mais de

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mil pessoas foram denunciadas no Rio de Janeiro, e registradas nos livros da Inquisição. Cerca de trezentos e vinte e cinco, entre homens e mulheres, foram presos e enviados para Lisboa.

Poucos cronistas nos deixaram notícias sobre a demografia colonial. Segundo alguns, a população total da cidade do Rio de Janeiro no início do século XVIII abrangia 20.000 habitantes, sendo 8.000 residentes no Recôncavo. Outros presumem para o mesmo período, cerca de 10.000 pessoas na cidade além de 10.000 no Recôncavo. Esse número parece coincidir entre a maioria dos cronistas contemporâneos (Beauchamp, 1815 :396, Vol. 3 apud Lobo, 1978:34, Vol. 1; Pita, 1976:65; Gorenstein e Calaça, 2002:99 e seg.). É difícil precisar exatamente o número de brancos, negros e índios que habitavam a capitania. Segundo as fontes de que dispomos, a comunidade cristã-nova constituía, possivelmente, 24% dos brancos e livres do Rio de Janeiro. Um viajante francês que passou pelo Rio de Janeiro em 1695 ficou tão impressionado com o elevado número de cristãos-novos, que chegou a afirmar que três quartos da população branca eram de origem judaica (Froger, MDCXCIX :74-75).

Uma parte dos cristãos-novos vivia na cidade. Cerca de 50% dedicava-se à atividade agrícola, principalmente ao cultivo da cana e à comercialização do açúcar. Outros viviam de negócios, eram mercadores, profissionais liberais, médicos e advogados. Havia também artesãos, mestres-escolas, militares, caixeiros, alfaiates, músicos, carpinteiros e padres (Gorenstein, 1995:41 e seg.).

Suas moradias ficavam situadas no centro da cidade, nas mesmas ruas em que habitava a elite colonial. Ocupavam principalmente o quadrilátero das freguesias da Sé, Candelária e São José. Residiam na rua Direita (uma das principais ruas do Rio de janeiro, de grande movimento comercial), na rua da Misericórdia, rua da Quitanda, rua do Rosário, rua das Flores. Essas ruas, das mais populosas da cidade do Rio de Janeiro, se desenvolvem consideravelmente a partir do século XVIII. Nas suas proximidades vivia o governador e o bispo, com os quais os cristãos-novos socializavam, equiparando-se ao seu status.

Os principais engenhos e partidos de cana-de-açúcar pertencentes a cristãos-novos estavam localizados ao redor da cidade do Rio de Janeiro, nas freguesias de Irajá, Jacarepaguá, São Gonçalo, São João do Meriti e Jacutinga. Eram terras boas para o cultivo, banhadas por vários rios, que se localizavam em um raio de 5 a 10 léguas do centro urbano. Na época, entre os cerca de 101 engenhos existentes na região, identificamos 21 pertencentes a cristãos-novos, o que representaria 20% das grandes propriedades da região. Também plantavam milho, arroz e mandioca e se dedicavam paralelamente à criação de gado. A mão de obra utilizada era constituída de escravos negros, e em alguns engenhos seu número ultrapassava uma centena.

Os cristãos-novos menos favorecidos economicamente, com muita frequência, arrendavam terras dos senhores de engenho, dos quais eram aparentados, integrando uma rede solidária de parentesco (Gorenstein, 1995:59 e seg.; Gorenstein, 2005:11 e seg.). Entre os engenhos estavam os já

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mencionados pertencentes à família Vale. Vamos nos deter aqui no núcleo familiar dos proprietários do Golambandé, situado em São Gonçalo. Ana do Vale, viúva na época de sua prisão, sua irmã Elena e seus filhos e sobrinhos.

Estavam entre os presos da terceira leva do Rio de Janeiro, em 1709. Ana e Elena foram entregues nos Estaus6 em outubro de 1710 e ficaram nove meses nos cárceres, saindo no Auto de fé de 26 de julho de 1711 (IAN/TT.IL. Processo de Ana do Vale, n.4151. IAN/TT.IL. Processo de Elena do Vale, n.1179).

Ana fora denunciada por cento e cinco testemunhas e, junto com a irmã, inaugurou o ciclo familiar de delações. No auto seguinte, praticamente toda a família Vale lá estava, comprovando que a teia de delações envolvia antes de tudo a família.

Sua irmã Elena, casada com o homem de negócios português Antonio do Vale Mesquita (apesar de ter casa na cidade, assistia no engenho da irmã) foi denunciada por mais de noventa testemunhas. Submetidas à tortura, denunciam dezenas de cristãos-novos, inclusive parentes já mortos. Condenadas a cárcere e hábito penitencial perpétuo com confisco de bens, saem em Auto de Fé em 26 de julho de 1711. Filhos, filhas, genros, noras netos, todos presos, também foram penitenciados pela Inquisição.

Concentremo-nos em um dos filhos de Ana, casado com uma das filhas de Elena, que deram origem aos Vale que foram para as Minas, Domingos Rodrigues Ramires e Angela de Mesquita. Antes de ser preso, Domingos administrava, junto com a mãe e os irmãos, o grande engenho de São Gonçalo. Além da casa grande onde morava a família, o engenho possuía ainda quatro casas utilizadas para o fabrico do açúcar, pastos para 120 bois, cavalos, canaviais e matos. Mais de 120 escravos trabalhavam a terra e cerca de 20 serviam à família como escravos domésticos (Gorenstein, 1995:60). Era também dono de um partido de cana no mesmo engenho, e quando foi preso, em 1710, tinha 18 escravos que trabalhavam na lavoura, 5 escravos domésticos, 3 cavalos, 2 caixas de açúcar mascavo e 10 formas de açúcar (IAN/TT.IL. Processo de Domingos Rodrigues Ramires, n.6517. Inventário).

Domingos Rodrigues foi preso em 1710, aos 30 anos. Apesar de ter feito várias confissões e denunciado muitas pessoas, foi considerado diminuto, por não ter denunciado seu “primo como irmão Manoel do Vale Guterrez”, e, de acordo com os Inquisidores, não por esquecimento, mas “antes o encobre, por não saber que já está preso” (IAN/TT.IL. Processo de Domingos Rodrigues Ramires, n.6517. Sentença de tormento de 11 de março de 1711). Foi por isso condenado ao tormento. Após conseguir contentar o Tribunal, foi penitenciado e condenado a cárcere e hábito penitencial perpétuo com confisco de todos os bens.

Ângela de Mesquita do Vale tinha 14 anos quando se casou na capela do engenho da família em 1704. Seu primeiro filho, Duarte, nasceu em 1705. Nos

6 Palácio onde ficava a sede da Inquisição, em Lisboa.

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anos seguintes, Ana e Elena. Domingos e Ângela, primos-irmãos, reforçam a ideia da endogamia que presidia as relações familiares cristãs-novas no Rio de Janeiro. Essa mesma situação repetia-se entre vários irmãos e primos, tanto entre os Vale como nas demais famílias fluminenses.

Ao ser presa, com 20 anos, já era mãe de cinco filhos. Declarou em seu inventário ser dona de um partido de canas no engenho de Manoel do Vale da Silva, seu cunhado, na fazenda de São Gonçalo, e lá tinha 11 escravos que trabalhavam na lavoura. Para o serviço doméstico, disse ter 4 escravos, mais um mulato e ainda 6 crianças escravas, o maior com 6 anos. Podemos ver que o casal declarou posses muito próximas, o que mostra que Ângela conhecia os bens familiares. Ao receber licença para voltar ao Rio de Janeiro, após ser penitenciada em Lisboa, tinha 28 anos. Com ela, voltou ao Brasil o marido. O casal ali ficou por um tempo, contando com a solidariedade de familiares que não chegaram a ser presos, ou que, depois de presos, também voltaram ao Rio de Janeiro, como Manoel do Vale da Silveira, irmão de Ângela, de quem Duarte (filho do casal) faz referências em seu processo. Encontramos a família de Domingos Ramires Rodrigues e Ângela Mesquita do Vale vinte anos mais tarde, vivendo nas Minas.

A Inquisição7 nas Minas e a família Vale

A Inquisição havia confiscado todos os bens da família Vale: engenhos, escravos, açúcar, enfim, tudo – e, ao voltarem para o Rio de Janeiro, eles nada tinham. Mas, de alguma maneira, conseguiram se sustentar e foram para as minas – onde estava a riqueza. E onde a Inquisição, até então, não estivera. Não temos a data exata de quando lá chegaram. Mas é certo que em 1725 já ali se encontravam (IAN/TT.IL. Processo de Duarte Rodrigues de Andrade, n.4219, confissão de 4 de novembro de 1734).

Domingos é referido como sendo senhor de um engenho no Ribeirão8 dos Foles, no sitio da Cachoeira, termo de Vila Rica de Ouro Preto,9 bispado da mesma cidade. Não temos dados que indiquem como conseguiu essa propriedade. A família morava com ele – a esposa e os seis filhos. As duas mais velhas, Elena e Ana do Vale, já moças feitas, assim como o rapaz, Duarte Rodrigues de Andrade, que assistia ora nas Minas, ora no Rio de Janeiro.

Embora a grande maioria dos recém-chegados às Minas tenham ido

7 Para a ação inquisitorial em Minas Gerais ver Novinsky (2005).8 A denominação “ribeirão” era, na maioria das vezes, referente a uma pequena vila, arraial, ou distrito (ver Barbosa [1871], 1971:402-403).9 José Gonçalves Salvador (1992) considera que o “sítio da Cachoeira” onde estava localizado o engenho de Domingos Rodrigues Ramires ficava na Bahia. Porém, como está indicado no pro-cesso das filhas Ana e Elena do Vale e do filho Duarte, “sitio da Cachoeira, termo do distrito da Vila Rica”, é mais provável que ficasse nos arredores da cidade de Vila Rica (Salvador, 1992:22).

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como comerciantes, muitos também se dedicavam a outras atividades, como a mineração, agricultura e pecuária (Furtado, 2006:18 e seg.). Cristãos-novos que já estavam no Brasil há tempos, e outros que vieram de Portugal, foram para as minas esperando enriquecer, enquadrando-se perfeitamente neste padrão.

No Rio de Janeiro, encontramos senhores de engenho, lavradores, advogados e médicos cristãos-novos se envolveram na atividade mineradora. Alguns se identificaram como “mineiros”, um como “contratador para as minas”; outros tinham roças de feijão e milho e casas na região. Enviam também “carregações” para a região, e entre as mercadorias que vendiam encontramos chapéus, camisas, calções de pano de algodão, panos de linho, roupas em geral; aguardente, sal, açúcar, queijos e peixe seco, além de cavalos e escravos (Gorenstein, 1995:66).

Podemos inferir que a família Vale nas Minas continuou a tradição familiar tanto na agricultura como também no comércio, uma vez que as viagens constantes de Duarte entre as Minas e o Rio de Janeiro o parecem indicar, tendo conseguido reconstruir suas vidas após a primeira investida inquisitorial do século XVIII.

A inquisição tinha preferência clara por regiões onde se encontrava a riqueza. E não demorou por perceber onde deveria lançar novamente suas garras. Em 1718 foi preso nas Minas Diogo Nunes Henriques, coletor de impostos, natural de São Vicente da Beira (bispado de Lamego), morador nas minas de Ouro Preto. Sete anos depois a segunda prisão: Manuel Nunes da Paz, espanhol, morador em Curralinho, homem de negócios, seguido por Francisco Ferreira Izidro (ou Izidoro), natural de Freixo do Nemão, também bispado de Lamego, morador na Vila do Carmo, mineiro em 1726. Já em 1728, cinco presos. E assim foi até 1751, quando foi preso o último dos réus mineiros (Novinsky, 2009). A maioria das prisões concentrou-se na década de 1730 e ali se inserem as da família Vale.

As pesquisas indicam que cerca de cinquenta e sete cristãos-novos de Minas Gerais foram processados pela Inquisição, e oito deles foram queimados (Novinsky, 2005:173). Somente três mulheres foram presas na região das Gerais: as irmãs Vale e Izabel Gomes Palhana, que pertencia a uma família de mercadores, também originária do Rio de Janeiro, todos presos pelo Tribunal Inquisitorial (Gorenstein, 2005:90 e 158).

Em 1734 foram presos os três irmãos Vale. Por que não foi preso o pai, Domingos Rodrigues Ramires? Na época ele tinha 54 anos. A resposta mais evidente é que não houve, até onde pudemos investigar, denúncias contra ele. Mesmo os filhos, em suas confissões, não mencionaram o pai. E os Inquisidores não perguntaram sobre ele, o que causa certa estranheza, uma vez que era um reconciliado, um cristão-novo que fora um judaizante reconhecido por sua própria confissão.

No mesmo ano, falecera a mãe, Ângela de Mesquita. E foi a ela que os filhos atribuíram toda a culpa do Judaísmo que eles haviam aprendido. A ordem de

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prisão para os três irmãos fora emitida em outubro de 1733, e em agosto do ano seguinte estavam presos. Haviam sido denunciados por duas testemunhas, David Mendes da Silva e Francisco Ferreira da Fonseca, ambos homens de negócios moradores nas minas. Duarte fora ainda denunciado por Manuel Nunes Viseu, seu primo, homem de negócios, morador no Rio de Janeiro e por Manuel de Albuquerque Aguilar, homem de negócios, morador nas Minas. Elena e Ana, além dos citados, haviam também sido denunciadas pelo irmão Duarte, e uma denunciara a outra. Nenhuma das duas denunciou Duarte (IAN/TT.IL. Processo de Duarte Rodrigues de Andrade, n.4219; Processo de Ana do Vale, n.6989, Processo de Elena do Vale, n.4220).

Conseguiram, entretanto, satisfazer a prova da justiça, denunciando vários cristãos-novos. Os três irmãos deixaram os Inquisidores satisfeitos ao dizerem que haviam comunicado a Lei de Moisés com cerca de vinte e cinco pessoas (Ver anexo ao final deste capítulo), número muito superior ao que as haviam denunciado. Nos três processos da família, encontramos os principais nomes dos presos de Minas Gerais: de mercadores, homens de negócios, donos de lojas, caixeiros, roceiros, mineiros, médicos, de Francisco Izidro a Manoel de Albuquerque, de Miguel da Cruz a Manoel de Matos, de Diogo a Domingos Nunes.

A Inquisição procurava sempre a riqueza, e era na sessão do “inventário” que ficava sabendo dos bens do acusado, que no caso dos cristãos-novos eram sequestrados no momento da prisão e – caso condenados – o que ocorria na grande maioria dos casos – confiscados. Os irmãos Vale, cujos bens familiares já haviam sido confiscados na primeira investida inquisitorial de 1710, declararam nada ter – só algumas dívidas tinha Duarte; as moças, nada tinham.

Foram acusados do mesmo crime que os outros cristãos-novos: a heresia judaica. Para os Inquisidores, além das denúncias, era também importante o ensino – quem havia transmitido a Lei de Moises?

Ana, Elena e Duarte contaram a mesma história, usando as mesmas palavras: a mãe, Ângela, os ensinara:

– Que haverá 18 anos, na cidade do Rio de Janeiro,(...) e casa de seus pais, com sua mãe Angela do Valle (...), que tinha sido reconciliada pelo Santo Oficio,(...) ambas sós, lhe disse a dita sua mãe que se ela confitente queria salvar a sua alma cresse na Lei de Moisés e não na de Cristo Senhor Nosso na qual não havia salvação, e que por sua guarda e observância rezasse a oração do Padre Nosso sem dizer Jesus no fim, fizesse o jejum do Dia Grande e não comesse carne de porco, lebre, coelho nem peixe de pele, porque ela e a dita sua mãe que isto lhe dizia e ensinava também vivia na dita lei e por sua observância fazia as ditas cerimônias. (...)E parecendo-lhe a ela bem o que a dita sua mãe lhe dizia, e como tal a encaminhava pelo caminho mais seguro para a salvação de sua alma, se apartou logo ali da Lei de Cristo Senhor Nosso de que tinha suficiente noticia e instrução e se passou para a crença na Lei de Moisés. (IAN/TT.IL. Processo de Elena do Vale, n.4220. Confissão de 31 de agosto de 1734)

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Além do que confessou que aprendeu com a mãe, Elena e seus irmãos disseram que também faziam o jejum da rainha Esther, em que ficavam sem comer nem beber senão à noite, quando ceavam coisas que não fossem de carne; que guardavam os sábados de trabalho como se fossem dias santos, vestindo às sextas-feiras camisas lavadas, e comunicavam todas estas práticas e crenças com pessoas de sua nação também apartadas da Fé, com as quais se declaravam por crentes e observantes da Lei de Moisés.

O processo dos três irmãos foi concluído em menos de um ano e os três saíram no Auto de Fé de 24 de julho de 1735, condenados a cárcere e hábito penitencial a arbítrio dos inquisidores com confisco de todos os bens. Não sabemos o que aconteceu com eles após a prisão. Foram os únicos Vale que foram presos nas Minas. Seu pai e irmãos menores (Luiza, Gracia e Domingos) continuaram na região e provavelmente ainda há por lá descendentes, assim como no Rio de Janeiro. A continuação da pesquisa genealógica iniciada por Carlos Rheingantz poderia mostrar onde estão agora.

Considerações finais

Os inquisidores estavam sempre interessados nas denúncias, pois estas lhes trariam novos réus. É muito difícil precisar a veracidade das confissões. Nenhuma generalização é possível: havia aqueles que eram fiéis católicos, os que eram criptojudeus e ainda os que assumiam com orgulho sua nova categoria sócio-religiosa – eram cristãos-novos. A maioria tinha um comportamento dúbio – praticavam, de um lado, a religião que haviam aprendido em segredo, de outro o Catolicismo. Como muitas vezes as práticas judaicas e católicas se confundiam, podemos dizer que emergiu uma nova religião – que Cecil Roth (1974) denominou “religião marrana”.

Essa “religião marrana” não foi uniforme nem no tempo nem no espaço. Sua essência pode ser resumida na crença em um único Deus – Criador do Universo, e na salvação que só poderia ser alcançada através da Lei de Moisés.

A conversão forçada ao Cristianismo de todos os judeus portugueses em 1497 criou uma nova categoria de gente e uma nova religião: os cristãos-novos e o criptojudaísmo. Isolados do Judaísmo (proibido em todo o Império português) e imersos em um mundo cristão, sua crença sofreu alterações profundas. Tinham que ser católicos praticantes; não tinham livros judaicos, ninguém para instruir seus filhos no hebraico, sem as tardes de sábado para o estudo e debate; o Judaísmo que chegava até eles não era profundo nem ortodoxo, mas uma transmissão oral de conhecimento daqueles que lembravam melhor as tradições judaicas. Na realidade a religião dos cristãos-novos era uma religião secreta que não foi uniforme nem no tempo nem no espaço (Giglitz, 1996:99).

O criptojudaísmo foi se formando e transformando com o passar do tempo; fosse vivenciado na prática, fosse transmitido como instrumento de

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sobrevivência, tinha que ser secreto. Heresia real, ou heresia instrumental – mas sempre heresia e como tal deveria ser mantida longe dos olhos inquisitoriais. Todos os cristãos-novos eram criptojudeus – ou todos os cristãos-novos tinham que conhecer o criptojudaísmo – de qualquer modo, o criptojudaísmo fazia parte da realidade e do cotidiano de todos os cristãos-novos. Criptojudaísmo que existiu sempre acompanhado e fomentado pela discriminação de que eram alvo os cristãos-novos: a pureza de sangue, que os manteve como cristãos

“novos”, diferentes dos “velhos” por quase três séculos.Alguns aspectos podem ser destacados na análise dos processos da família

presa em Minas Gerais. O primeiro deles é a continuidade desta “religião secreta”, desta “cultura do segredo” que perdurou por mais de 150 anos na família Vale, sempre acompanhada pelo Tribunal da Inquisição que de 1560 até 1734 perseguiu e prendeu seus membros, de Portugal às Gerais.

Examinando os nomes denunciados pelos irmãos, percebemos que, curiosamente, não denunciaram a maioria dos presos que tinham raízes na Bahia e no Rio de Janeiro, fixando suas denúncias naqueles recém-chegados de Portugal, o que sugere um sentido de proteção àquelas famílias que – como eles – tinham sua história ligada à colônia.

A maioria das pessoas que conheciam eram mercadores, homens de negócios, donos de lojas e alguns – poucos – roceiros. Muitos haviam pousado em sua casa, durante as viagens pelas minas. Alguns, haviam lá morado por algum tempo. Tudo indica que havia uma certa familiaridade com a família Vale, e a casa era um ponto de encontro de cristãos novos, sugerindo que era também parte integrante da sociedade clandestina imaginada por Anita Novinsky, na qual o segredo era fundamental.

Fontes

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Anexo10

Antonio Rodrigues Garcia (tratante)David Mendes da Silva (homem de negócios)Diogo Nunes (tinha loja, mercador)Domingos Nunes (loja no Serro Frio, tratante e andava na carreira das minas)Fernando Gomes (meirinho)Manoel Gomes (escrivão)Francisco Ferreira da Fonseca (homem de negócios)Francisco Ferreira Izidro – ou Izidoro (homem de negócios)José Rodrigues (vivia com seu pai em uma roça e andava cobrando nas Minas)Jerônimo Rodrigues (vivia em uma roça)Marcos Mendes (roceiro, lavrador de mantimentos e homem de negócios)Manoel de Albuquerque Aguilar (loja de fazendas e homem de negócios)Miguel (caixeiro de Diogo Nunes, fazia a carreira das Minas)Manuel Nunes Viseu (homem de negócios, Rio de Janeiro)Manoel Mendes Sanchez (roceiro)Manuel Nunes Sanchez (homem de negócios)Manoel Nunes Viseu (escrevente Rio de Janeiro)Miguel da Cruz (tratante, Minas e Bahia)Manoel de MatosManoel da CostaManoel DiasManoel Dias (médico)Manoel do Vale (sem oficio, Minas)Pedro de Miranda (vive de sua loja)Agostinho de Paredes (médico, Rio de Janeiro)Sebastião de Lucena (músico, Rio de Janeiro)

10 Nomes retirados dos processos inquisitoriais de Ana do Vale, n.6989; Ana do Vale, n.6989, Duarte Rodrigues de Andrade, n.4219

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11.

A Torá nos caminhos do ouro: cristãos-novos e criptojudeus em Minas

Angelo Adriano Faria de Assis

Introdução

Nas últimas décadas, as transformações vivenciadas pela historiografia brasileira permitiram que temas até então desconhecidos ou pouquíssimo visitados ganhassem nova atenção por parte dos pesquisadores e admiradores de Clio. Um conjunto de motivos tem colaborado para estas mudanças, como o surgimento e consolidação dos programas de pós-graduação por todas as regiões do país; o aumento do mercado editorial e a publicação de livros até então difíceis de serem encontrados nas livrarias nacionais; a valorização do diálogo da História como outros campos do conhecimento; o avanço tecnológico e a democratização do acesso à informação; a disponibilização de acervos documentais de arquivos e bibliotecas de todo o mundo pela internet... Somados a outros elementos, estes acontecimentos acabaram por revolucionar a noção de fonte e, principalmente, o modo como trabalhá-la, abrindo ao historiador uma infinidade de possibilidades de análise impensável até então.

Exemplos desta modificação no devir do historiador podem ser percebidos, por exemplo, tanto na expansão das áreas de atuação profissional – curadorias, pareceres técnicos, consultorias – quanto na variada oferta de revistas que possuem a História como mote à venda nas bancas de jornal do país, ajudando a divulgar novas leituras sobre o passado resultantes de pesquisas acadêmicas recentes, agora, alcançando um público mais amplo e diverso ao romper com os limites da Academia.

Da mesma forma, a disponibilização online de acervos documentais, como o recente e bem-vindo processo de digitalização e divulgação de fontes referentes ao Tribunal do Santo Ofício de Portugal oportunizou o acesso a informações que até então estavam em boa parte limitadas à consulta apenas daqueles que tinham a possibilidade de atravessar o Atlântico e frequentar o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, onde se encontram depositados milhares de documentos referentes à Inquisição lusa ao longo de seus duzentos e oitenta e cinco anos de funcionamento, entre 1536 e 1821.

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Assim, desde as primeiras experiências no trato com a pesquisa histórica, ainda na graduação, o aluno interessado nas questões relativas à Inquisição portuguesa tem hoje a oportunidade de consultar via web uma considerável parte do vasto arquivo do Tribunal, composto, entre outros documentos, de confissões, denúncias, correspondência interna e externa, negociações com a Igreja e a Coroa, cadernos do promotor, livros de visitações, listas de Autos de fé, regimentos do Santo Ofício e milhares de processos movidos contra os réus alcançados pelo braço da Misericórdia e Justiça, incentivando uma maior proximidade com as fontes para suas investigações. Resultado desse acesso facilitado à matéria-prima para o fazer história pode ser visto na recorrência de pesquisas de iniciação científica, monografias, dissertações e teses em desenvolvimento ou já defendidas nas universidades brasileiras nos últimos anos que utilizam esta documentação como referência para suas análises. Nota-se, desta forma, um crescente interesse dos estudiosos na compreensão da presença e atuação do Tribunal da Inquisição no Mundo português (e no Brasil colonial, em especial) e seus desdobramentos. Longe se encontram, porém, de serem temas já esgotados – muito pelo contrário, estas fontes e suas possibilidades de leitura são, no melhor sentido, um verdadeiro “saco sem fundo”, ainda há muito a ser desvelado e rediscutido! –, como deixa claro a recorrência do assunto e a diversidade de recortes nos trabalhos mais recentes.

Ao longo do tempo, os estudos sobre a Inquisição no Brasil foram sofrendo modificações em seu foco e formas de análise. Inicialmente concentraram-se, em boa parte, nas discussões de casos específicos, como os processos movidos pelo Santo Ofício contra indivíduos e grupos praticantes ou suspeitos de qualquer sorte de comportamento que fugisse às normas impostas pelo catolicismo da época. Dentre estes, chama a atenção o número de cristãos-novos apontados, em diferentes graus e maneiras, como judaizantes, repetindo-se o que também ocorria em outros espaços do império, tornando-se os cristãos-novos o grupo mais perseguido, denunciado e processado pela Inquisição portuguesa. Mas não só: também encontramos casos de comportamento sexual desviante; práticas de feitiçarias; desrespeito aos símbolos sagrados, datas religiosas e panthéon católicos; ocorrência de amancebamentos e bigamias; despreparo e abuso dos religiosos, além de toda uma sorte de elementos constituintes do cotidiano brasílico, que tão bem ilustram a atmosfera de miscibilidades cultural e religiosa vivenciada na luso-América, tão distinta do que preconizava a Igreja, assemelhada, como retrataram trabalhos clássicos de nossa historiografia a um teatro de vícios, trópico de pecados1 – talvez justificando a famosa frase de Frei Vicente do Salvador, que atribuía às bem tramadas artimanhas do demônio o esquecimento do nome do santo lenho do martírio crístico com que se batizara inicialmente a terra, em prol de outra denominação, em referência à madeira distinta, muito menos nobre do ponto de vista religioso, de cor abrasada,

1 Refiro-me aos títulos das obras clássicas de Vainfas (1997) e Araujo (1997).

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sinônimo, para nosso franciscano, do desfilar de heresias que misturavam na colônia práticas cristãs, judaicas, mouriscas, pagãs, indígenas, africanas, desconhecimento e descompromisso com a fé vigente, demasiada intimidade com o sagrado, interpretações equivocadas das questões de fé, laicização da crença, padres por vezes mal preparados, enfim, tudo colaborando para criar uma religiosidade popular e multifacetada que saltaria aos olhos dos representantes do Santo Ofício em suas andanças pelo trópico (Salvador, 1975).2

Os estudos foram se refinando, valendo-se da consulta de novas fontes, estratégias inovadoras de análise e metodologia, do diálogo com outros campos do conhecimento que permitissem enxergar o mundo da Inquisição pelos mais variantes ângulos. Atualmente, as pesquisas envolvendo o Santo Ofício e seus personagens contemplam interesses os mais diversos: funcionamento e lógica de atuação do Tribunal; denúncias, confissões e processos contra suas vítimas; cotidiano dos cárceres; estratégias de interrogatório; estrutura administrativa; biografias, formação e trajetórias de funcionários e vítimas; visitações e representantes do Santo Ofício espalhados pelos espaços do mundo ibérico e colonial; discursos e ações de aliados e críticos da Inquisição; monitórios, correspondência interna e externa; regimentos e documentação administrativa em geral; especificidade de atuação dos diferentes tribunais no tempo e no espaço; listas de Autos de Fé; representações iconográficas; didática e lógica de penalização dos culpados; formas de tortura física e psicológica dos réus; causas para o surgimento e impactos da presença do Santo Ofício nos diversos locais de sua atuação; consequências, desdobramentos, rupturas e continuidades num mundo pós-Inquisição; novas leituras e revisões de questões, temas e casos já analisados pela historiografia. Enfim, uma infinidade de possibilidades de estudo sobre uma instituição muito comentada e ainda pouco conhecida, tanto em sua organização e atuação nos espaços metropolitanos quanto nas possessões ultramarinas.

Hoje, já podemos, inclusive, falar de gerações de estudiosos do Santo Ofício e das questões que dele deviram ou o envolvem. As pesquisas sobre a Inquisição portuguesa, suas estruturas de funcionamento, simbologias, representantes e funcionários, regimentos e toda sorte de documentação produzida, tipos de heresia e comportamentos considerados desviantes que eram perseguidos, bem como de suas vítimas e das penalidades a que eram submetidas são temas já bastante recorrentes entre os interessados na Negra Casa do Rossio.

Embora os primeiros estudos remontem, no Brasil, ao início do século XX, onde cabe ressaltar a importância e o pioneirismo da publicação, por Capistrano de Abreu e Rodolpho Garcia, na década de 20, dos livros de denúncias e confissões coletadas durante a primeira visitação ocorrida na

2 Uma das obras de referência no estudo da religiosidade popular na Brasil dos primeiros séculos é o trabalho de Souza (1986).

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última década do Quinhentos, é a partir dos anos 1960 e 1970 que os estudos sobre a Inquisição e seus personagens ganhariam maior espaço no interesse dos pesquisadores preocupados em compreender o Brasil dos primeiros séculos através das fontes do Santo Ofício. Em linhas gerais, estes trabalhos abordam a presença e atuação inquisitorial na América portuguesa a partir dos indivíduos denunciados e dos que procuravam demonstrar boa vontade com o tribunal ao confessar seus erros ou delatar terceiros. E aqueles que mais preencheram as páginas inquisitoriais foram as principais vítimas da Inquisição portuguesa

– os cristãos-novos, insistentemente acusados durante as visitações iniciais ao Brasil.

Alguns estudiosos iniciariam toda uma série de publicações que, em alguns casos, tiveram desdobramentos em outros estudos que se estendem até os nossos dias. Em 1969, Elias Lipiner seria um destes pioneiros, ao publicar Os judaizantes nas capitanias de cima, em que o autor busca recuperar a história de alguns dos cristãos-novos que viveram no Brasil nos séculos XVI e XVII – alguns dentre eles denunciados nas visitações de 1591-1595 (Bahia, Pernambuco, Itamaracá e Paraíba) e de 1618-1621 (Bahia) –, revelando, em minúcias, um rico panorama do “viver em colônias”, das relações sociais entre neoconversos e cristãos velhos, dos negócios e ofícios, das carências e dificuldades de adaptação ao novo mundo, dos medos e anseios generalizados, do impacto (por vezes permanente) da passagem do Santo Ofício nos laços de amizade e até de parentesco por conta do que era relatado aos representantes da Inquisição.

Mas a obra que definitivamente despertou a atenção para o tema da Inquisição e dos cristãos-novos no Brasil foi, sem dúvida, Cristãos novos na Bahia, de Anita Novinsky, lançada em 1972, e que continua sendo leitura obrigatória aos que desejam enfrentar o assunto. Nele, a autora trouxe à tona o papel dos judeus batizados e seus descendentes na formação brasílica, das perseguições que sofreram pelos representantes do Santo Tribunal no trópico, bem como dos preconceitos sociais de que eram vítimas. Apresenta, ainda, o conceito do cristão-novo como um “homem dividido”, equilibrando-se entre o que pensavam dele e o que julgava ser, repartido entre a fé que fora proibido de seguir (o judaísmo) e que cada vez era menos conhecida pelas novas gerações, e a religião que não o aceitava como igual (o cristianismo), embora tenha sido obrigado ao batismo, conceito este que seria vastamente debatido e revisitado por outros pesquisadores.

A Inquisição, sua organização, estruturas de funcionamento e atuação no Brasil seriam tema de Sonia Siqueira, que publicaria em 1978 o importante A Inquisição portuguesa e a sociedade colonial, das primeiras obras lançadas no Brasil (se não a inaugural) tendo o Santo Ofício como tema, em que a autora aborda sua presença e atuação na colônia, seja através do envio de visitações esporádicas, seja a partir da presença constante de seus representantes, como familiares e comissários. Sonia Siqueira, cabe aqui lembrar, já havia dado

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imensa contribuição ao publicar no início da década de 1960, em conjunto com o professor Eduardo França, as confissões referentes à segunda visitação do Santo Ofício ao Brasil, iniciada em 1618,3 obra há pouco reeditada (Cf. Siqueira, 2011) – iniciativa que merece ser louvada, visto serem ainda raras as publicações recentes destas fontes, tão caras ao estudiosos do assunto.

Também merece destaque a vasta bibliografia produzida por José Gonçalves do Salvador4 e José Antônio Gonsalves de Mello,5 autores de numerosos estudos acerca da Inquisição e seus personagens, mormente as vítimas preferenciais do Santo Ofício português – os cristãos-novos sefarditas

–, analisando a participação destes na ocupação e colonização do Brasil, sua inserção no mundo colonial e as perseguições que sofreram por conta de suspeitas (por vezes fundamentadas) de praticarem em (nem sempre) segredo o judaísmo que lhes fora impedido. Obras que desvendam o cotidiano dos neoconversos em minúcias e que, vale dizer, têm despertado ao longo dos anos o interesse de novos pesquisadores para o tema.

A partir dos anos 1980, uma nova geração de historiadores, influenciados pelos trabalhos inaugurais de Lipiner, Novinsky, Siqueira, Salvador e Gonsalves de Mello, bem como pela Nova História, desenvolveram pesquisas que, embora nem sempre tivessem a Inquisição e seus réus como foco, utilizavam a documentação relativa ao Santo Ofício para ajudar a traçar um panorama do significado do “viver em colônias”. Destaque, neste sentido, para os trabalhos de Laura de Mello e Souza (1986), Ronaldo Vainfas (1997) e Luiz Mott (1993).

A partir dos anos 1990, uma terceira leva de pesquisadores aprofundaria os debates sobre o Santo Ofício. Embora ainda seja forte o peso dos estudos de caso nestas análises, como pode ser comprovado pelo trabalho de Lina Gorenstein (1995) sobre os cristãos-novos no Rio de Janeiro setecentista, outras pesquisas passaram a focar seus interesses no tribunal propriamente dito, sua lógica organizacional e de funcionamento, e na atuação de seus representantes oficiais, como se pode verificar nos trabalhos de Daniela Calainho (2006) e Bruno Feitler (2007).

Na Academia, uma nova geração de pesquisadores e de trabalhos que usam a Inquisição e suas fontes como interesse de análise tem auxiliado na renovação do tema, apontando novos rumos e abordagens para a pesquisa sobre o Santo Ofício e seus personagens. Iniciativa que merece ser valorizada, neste sentido, é o Guia de fontes e bibliografia sobre a Inquisição (Calainho, Tavares e Campos, 2005), cujos autores fazem um precioso apanhado sobre o que vem sendo produzido sobre o Tribunal da Inquisição na Academia, e mapeando os acervos documentais e bibliográficos presentes nos arquivos e bibliotecas brasileiros.

3 Cf. Segunda visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo inquisidor e visitador o licenciado Marcos Teixeira (1963).4 À guisa de exemplo, conferir Salvador (1969; 1976).5 Ver, dentre outras obras do autor, Mello (1996).

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Um pequeno exemplo desta riqueza de interpretações e da recorrência atual do tema pode ser verificado em algumas das dissertações e teses defendidas nos últimos anos em várias universidades de norte a sul do Brasil.6

Com relação específica a Minas Gerais, também encontramos trabalhos, tanto sobre a presença inquisitorial como a respeito dos cristãos-novos originários, que por lá passaram ou habitaram a região. Embora sejam poucas, se comparado a outros espaços por onde o Santo Ofício se fez atuante, como o Nordeste dos dois primeiros séculos, estas obras procuram dar conta da presença dos representantes do Santo Ofício, de processos envolvendo indivíduos de alguma forma ligados à região alcançados pela justiça inquisitorial ou que, ao contrário, escolheram (nem sempre com sucesso) Minas como refúgio.

Um dos primeiros trabalhos foi Os cristãos-novos em Minas Gerais durante o ciclo do ouro (1992), em que José Gonçalves do Salvador aborda a presença neoconversa em Minas, auxiliando na povoação da região, nas atividades econômicas, como membros importantes da economia extrativista e no comércio, tanto de subsistência quanto de exportação. Além disso, a última parte da obra é dedicada à ação do Santo Ofício no Rio de Janeiro e nas Minas Gerais, apontando as especificidades do tribunal nestas áreas.

Em Um herege vai ao Paraíso (1997), Plinio Gomes apresentou, em exercício de microanálise, a cosmogonia criada por um lisboeta que vivera no Brasil e acreditava que o paraíso terreal encontrava-se por estas bandas. Pedro de Rates Henequim, seu personagem, vivera cerca de vinte anos nas Minas, onde conhecera as histórias, crenças e tradições da região. Acabaria, anos mais tarde, por identificar na natureza exótica das serranias da luso-América os indícios celestes, sendo preso e condenado à fogueira pelo Santo Ofício.

Neusa Fernandes, por sua vez, estudou a presença dos cristãos-novos nas Minas Setecentistas, em seu A Inquisição em Minas Gerais no século XVIII (2000), baseando-se na análise de alguns processos inquisitoriais de comerciantes neoconversos entre 1712 e 1763. Mas identificou uma presença maior de pessoas, de cerca de cinco centenas de neoconversos ligados às Minas denunciadas ao Santo Ofício. Em sua pesquisa, a autora procurou compreender o papel dos cristãos-novos na descoberta das rotas auríferas, na ocupação e na economia da região, as relações sociais no espaço minerador, as estratégias de disfarce e ocultação de comportamentos tidos como heréticos, bem como as agruras enfrentadas por alguns cristãos-novos perante a Inquisição.

6 É o caso – para limitarmo-nos apenas à última década – dos trabalhos de Hoshi (2001), Cavalcanti (2001), Tavares (2002), Severs (2002), Assis (2004), Santos (2004), Monteiro (2005), Monteiro (2011), Bogaciovas (2006), Barbosa (2006), Vieira (2007), Silva (2007), Alves (2007), Ribeiro (2007), Ribeiro (2007), Vicente (2008), Machado (2008), Scudeler (2009), Mattos (2009), Souza (2009), Gomes (2010), Oliveira (2010), Assumpção (2010), Silva (2010), Monteiro (2011), Oliveira (2012), Lopes (2012), Silva (2012), Rodrigues (2012). A maior parte destas pesquisas, vale dizer, está publicada em livros ou encontra-se disponibilizada para consulta on-line em platafor-mas variadas, acessíveis numa rápida pesquisa à rede mundial de computadores.

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Já Aldair Rodrigues, em trabalho recente, mapeia, em Limpos de sangue: familiares do Santo Ofício, Inquisição e sociedade em Minas colonial (2011), a extensa rede de familiares do Santo Ofício presente nas Gerais, traçando o perfil sociológico dos candidatos, recuperando as questões de poder e prestígio social envolvidas e as negociações para a habilitação no cargo, num claro sinal de que a Inquisição ainda despertava certo fascínio e exercia grande influência em alguns setores da sociedade mineira, num período em que perdia espaço e já se fazia fortemente contestada no reino.

Apesar das abordagens variadas, o certo é que ainda são poucas as obras que tratam especificamente da presença e atuação do Santo Ofício e daqueles que foram, de alguma forma, alcançados pelo braço inquisitorial nas Minas Gerais.7 O ainda pequeno número de trabalhos sobre Minas, se comparado aos estudos sobre outras regiões e períodos também alcançados pela ação do Tribunal, talvez esteja ligado, entre outros fatores, à falta de visitações inquisitoriais e ao menor número de processos de indivíduos ligados às Minas envolvidos com a Inquisição, bem como pelo fim da diferenciação entre cristãos velhos e novos em Portugal na segunda metade do XVIII, esvaziando o foco da caça à pureza religiosa.

Com relação aos perseguidos, Anita Novinsky (2002) aponta ter encontrado, dentre os 1076 prisioneiros que a autora elenca feitos pela Inquisição no Brasil, sessenta deles como indivíduos moradores das Minas Gerais, representando pouco mais de cinco por cento do total, sendo cinquenta e cinco homens e cinco mulheres, o que, pelas pesquisas da autora, coloca a região como a quarta que mais teve moradores presos pelo Santo Ofício, atrás apenas da Bahia (345 pessoas), Rio de Janeiro (249) e Pernambuco (135). Obviamente, estes números não correspondem à totalidade dos indivíduos de alguma forma ligados às Minas Gerais e que foram denunciados, confessaram suas culpas ou que acabaram processados pela Inquisição, o que modificaria significativamente as indicações acima. De todo modo, os cristãos-novos aparecem com destaque, seja entre os prisioneiros das Minas, seja entre os denunciados ao Santo Ofício por seus comportamentos vistos como inadequados e ameaçadores ao monopólio cristão. Sinal de que o grupo neoconverso estava fortemente fixado à região, e que seu comportamento era observado e vigiado pela população, pelas autoridades e pela Igreja.

7 Longe estamos, que fique claro, de querer limitar os trabalhos sobre Minas aos que aqui foram apresentados. Outros autores dedicaram artigos, livros e capítulos de livros ao assunto. Dentre estes, citamos trabalhos não referenciados ao longo do texto, mas que merecem atenção dos que se interessam pelo assunto: Figueiredo (1987) e Leite (2007).

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Os primórdios, do reino à colônia

O surgimento do problema neoconverso está ligado aos acontecimentos que, em finais do Quatrocentos, inicialmente na Espanha e, passados poucos anos, em Portugal, puseram fim aos séculos de relativo bom convívio entre mouros, judeus e cristãos na Península Ibérica, principalmente se levarmos em conta o que ocorria em outros reinos da Europa, de onde os judeus foram seguidamente perseguidos e expulsos.

Em 1492, a Reconquista espanhola pelos Reis Católicos seria completada na tomada de Granada e implementação da unidade religiosa na região, com a expulsão de muçulmanos e judeus. Aproveitando-se da proximidade territorial, do secular contato comercial e das semelhanças culturais entre as comunidades sefarditas localizadas nos dois reinos e dos conhecimentos que mantinham há séculos, por conta das trocas comerciais e circulação de pessoas entre as vilas luso-hispânicas, bem como da longa fronteira seca entre eles, muitos judeus que não aceitaram a conversão ao cristianismo migraram em direção a Portugal. O drama dos judeus espanhóis seria descrito por cronistas da época, a narrarem o desespero que acometeu as famílias ao terem que abandonar suas terras e residências, deixando para trás animais, plantações, negócios, bens pessoais, mobiliários, enfim, tudo que não era possível ou que estavam proibidos de carregar. Muitos, idosos ou doentes, ficaram pelo caminho, derrotados pelo cansaço, enfraquecidos pela viagem estafante. Foram vítimas de roubos, ataques, ofensas e humilhações de todo tipo na rota de diáspora em direção a novas terras, deixando para trás a região que outrora ficou conhecida como Espanha das três religiões.

Apesar das restrições monárquicas com relação ao número de judeus que teriam permissão para ingressar em terras lusas, o fato é que muitos indivíduos conseguiram atravessar a fronteira e colaboraram para aumentar consideravelmente a comunidade então existente. Estima-se que, com o reforço dos judeus espanhóis, Portugal tenha chegado, em fins do século XV, a cerca de cem a cento e cinquenta mil indivíduos de origem hebraica num total que beirava o milhão de almas. Porcentagem elevada, alcançando por volta de dez a quinze por cento da população lusitana. Viviam em várias cidades do reino, nem sempre habitando os limites das judiarias, com leis próprias e proteção monárquica, rabinos instituídos, direito a celebração de festas e datas sagradas, frequentando sinagogas, realizando a leitura dos textos da Antiga Lei, adaptados à vida portuguesa e ocupando espaços nas mais variadas funções da vida cotidiana.

Contudo, passados poucos anos da chegada da leva de judeus espanhóis, interesses que ligavam o monarca português à Coroa hispânica – um contrato matrimonial com a infanta filha dos Reis Católicos – acabaram por levar ao mesmo processo de monopólio da fé, obrigando os judeus a uma nova diáspora:

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em dezembro de 1496, dom Manuel fixaria um prazo de dez meses para que deixassem o reino. Ciente, contudo, da importância dos judeus para o processo de expansão marítima vivenciado por Portugal, e das perdas abruptas – seja de capitais, seja de intelectuais e mão de obra especializada – que o reino teria com a partida da comunidade judaica, o monarca tentaria, ao longo do período concedido, convencer o maior número possível deles a se converterem ao catolicismo em troca de vantagens e, claro, da possibilidade de permanecerem em terras lusitanas, desde que aderissem à fé de Cristo e abandonassem os ensinamentos da Torá.

Findo o prazo estipulado, os judeus que optaram por permanecer fiéis à crença dos antepassados foram ordenados a seguir para Lisboa, de onde embarcariam em direção a outros reinos que ainda os aceitassem. Poucos, porém, conseguiram. Ao invés disto, acabaram batizados em pé e à força, transformados contra a vontade em cristãos, desobrigados, agora já que oficialmente católicos, de deixar a Lusitânia. A medida resolvia o impasse criado com os reis de Espanha: ao mesmo tempo, Portugal proibia o judaísmo e expulsava seus fiéis com a implantação do monopólio religioso católico, mas conseguia manter os judeus e os interesses do reino, transformando-os oficialmente em ovelhas de Cristo. Mas seriam rotulados de cristãos-novos, para que fossem diferenciados dos outros cristãos, considerados puros, de origem imaculada, descendentes de famílias católicas e sem qualquer nódoa sanguínea.

Junto com o judaísmo, proibiam-se quaisquer componentes de sua liturgia: a existência de rabinos e sinagogas, a leitura e posse dos livros sagrados, as celebrações de festas e jejuns; o uso de todo tipo de elementos que identificassem a “detestável origem”. Ao mesmo tempo em que se criava oficialmente o monopólio da fé, o reino via nascer um catolicismo cindido, entre os considerados cristãos verdadeiros e aqueles batizados contra a vontade. Não tardaria para que fossem considerados uma real ameaça à pureza religiosa, herdeiros diretos dos preconceitos outrora destinados aos judeus, suspeitos de manterem em segredo, no oculto do lar, longe dos olhares públicos, a crença dos antepassados. Eram, por isso, denominados de judeus ocultos ou criptojudeus.

O aumento desta suspeita de falta de sinceridade ao catolicismo e de manutenção das crenças dos antepassados (diga-se de passagem, muitas vezes – e em graus que variavam de caso a caso –, verdadeiras) fez com que fosse implantado, em 1536 – logo, quatro décadas após o processo formal de expulsão dos judeus do reino – o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição em Portugal, tendo como principal causa para o seu surgimento as suspeitas sobre a veracidade da conversão e da prática cristã dos antigos judeus agora batizados. Não por acaso, seriam os cristãos-novos o principal grupo perseguido pela Inquisição, responsáveis pela imensa maioria dos processos movidos em nome da fé.

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Com a estruturação da Inquisição, não tardaria o aumento das perseguições e das pressões sociais sobre os cristãos-novos, e a ameaça de ter os bens confiscados e passar o restante da vida nos cárceres inquisitoriais ou, no limite, arder nas fogueiras armadas em praças públicas, fez com que muitos optassem por deixar Portugal em direção a regiões cada vez mais distantes, onde se sentissem menos ameaçados pelo Santo Ofício para recomeçar a ida: norte da Europa, Índias, Macau, Malaca, Japão, África, ilhas atlânticas, América. Acabariam por encontrar abrigo em espaços variados mundo afora, adaptando-se a culturas e sociedades diversas, desenvolvendo e diversificando seus contatos e atividades, tornando-se negociantes, atravessadores, produtores, fornecedores, onzeneiros, senhores de terras, comerciantes. Nestes lugares, muitas vezes judeu, mercador e português foram termos utilizados como inônimos. O Brasil, que coincidia o início efetivo do processo de colonização com o momento de instauração da Inquisição no reino, rapidamente transformar-se-ia num dos destinos preferidos destes cristãos-novos.

Espalhados pelos quatro cantos do globo, acabavam por se relacionar através de rotas de comércio e de contato com a terra de onde saíram, recebendo e fazendo circular notícias, cartas, documentos, acertos de contas, contratos de negócios, enfim, informações variadas sobre parentes, amigos, conhecidos que possibilitavam a continuidade do convívio social, tomando ciência dos problemas do cotidiano e, também, dos que eram alcançados pelo braço inquisitorial (Sousa, 2009).

Saídos de Portugal, onde ainda, não raro, mantinham laços, circulavam produtos e capitais entre a cabeça do reino e o restante da Europa, mais possessões e regiões de comércio da África, Ásia e América, permitindo uma circulação de mercadorias entre o Oriente e o Ocidente até então impensável. Abasteciam o comércio metropolitano com materiais dos mais diversos tipos e locais de origem, vendendo e cooptando novos produtos a cada porto em que realizavam paragem: especiarias, tecidos e essências indianos; porcelanas e sedas da China; açúcar, frutas, aves, madeira e aguardente provenientes do Brasil; escravos coreanos, mobiliário e prata provenientes do Japão; rum caribenho; marfim, animais exóticos e negros da África. Tudo resultado das redes compostas, em grande parte, por comerciantes sefarditas.

A situação do Brasil, rapidamente transformado em peça-chave da economia portuguesa por conta do açúcar produzido no Nordeste, somado ao fato de não haver um tribunal inquisitorial estabelecido na luso-América (que ficava sob os cuidados e vigilância do Tribunal de Lisboa), contribuiu para que os cristãos-novos enxergassem a Terra de Santa Cruz como oportunidade de recomeçar a vida longe das pressões e perseguições vigentes na metrópole. Aqui, chegariam já nas primeiras embarcações como navegadores e técnicos, línguas, marinheiros, homens de negócio. Investiriam na exploração da terra desde os primeiros tempos – o grupo de neoconversos liderado por Fernão de Loronha que em 1503 arrendou por cerca de dez anos o território para

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exploração do pau-brasil, do comércio de escravos e outras mercadorias é exemplo disto –, acumularam postos de importância no governo, na Igreja e na sociedade, financiaram expedições, ajudaram com capitais, cavalos, armas e homens na pacificação dos espaços em conflito, tornaram-se senhores de terras e mercadores poderosíssimos, refratando o estigma social de que eram vítimas com um convívio mais ameno entre os cristãos separados pelo sangue. Em pouco tempo, tornaram-se os proprietários da maior parte dos engenhos e monopolizavam o comércio de uma gama de produtos, negociando em vários idiomas, aproveitando as redes sefarditas de alcance mundial para investirem seus capitais e diversificar os negócios, acostumados com a linguagem do mercado.

Os neoconversos tiveram, sem dúvida, papel fundamental na formação da sociedade brasileira desde os primórdios da colonização, envolvidos com os rumos dos negócios, mantendo relações com os principais da terra, provendo os interesses da Coroa, reunidos por laços matrimoniais com importantes famílias cristãs velhas, ocupando espaços na sociedade, na administração e até mesmo no clero, influenciando a economia, a cultura e a sociedade luso-americanas. Fruto deste bom convívio é que, no Brasil, em linhas gerais, os cristãos-novos sofreram menos perseguições e pressões sociais do que no reino, onde a Inquisição estabelecida e onipresente aumentava as cobranças e o grau de vigilância geral. O número maior de casamentos entre cristãos velhos e neoconversos também aponta para este convívio mais harmônico, miscigenando-se os batizados em pé com as principais famílias da terra, colaborando para diminuir as desconfianças que pairassem sobre a fiel adoção do cristianismo. Aqui, distanciados por um oceano do Santo Ofício e onde a presença da Igreja se fazia mais fluida, havia preocupações mais urgentes, como os riscos à sobrevivência em ambiente inóspito, a carência de víveres, os perigos de ataque de animais selvagens, as doenças tropicais, o medo da ameaça de indígenas ou de piratas, problemas que antes uniam os que aqui chegavam, deixando em segundo plano as questões de fé, embora longe estivesse esta situação, não há dúvida, de uma convivência em perfeita harmonia.8

Todavia, os momentos de presença inquisitorial, seja com as visitações a partir de fins do Quinhentos, seja com a atuação dos familiares e comissários, colaboraria para acabar, mesmo que momentaneamente, com o ambiente de relativa tranquilidade. Não foram poucos os neoconversos, inclusive, que adentraram os sertões coloniais fugindo da anunciada chegada dos representantes do Santo Ofício, auxiliando na ocupação de regiões até então desabitadas, criando vilas, abrindo caminhos, aumentando os limites territoriais do domínio português na América, na busca de uma vida – como se possível fosse – sem Inquisição. Com a partida dos visitadores ou sem a ação pontual de seus representantes que vasculhavam o território à procura

8 Para as relações entre cristãos velhos e neoconversos no Brasil colonial, conferir Assis (2011).

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de comportamentos considerados desviantes, o cotidiano, para a maior parte da população, voltava ao seu ritmo normal, mas é claro que a passagem do Tribunal pelas terras brasílicas deixaria feridas irrecuperáveis, no convívio, nos negócios, nas relações, nas práticas do dia a dia, nas memórias.

Cristãos-novos nos arraiais de Minas

Quando Minas nasceu, em fins do século XVII, os cristãos-novos também estiveram entre os seus primeiros desbravadores e habitantes. Atribui-se a um deles, Antônio Rodrigues de Arzão, originário da região paulista de Taubaté, a descoberta de ouro. Fizeram parte das expedições, entradas e bandeiras que atravessaram em viagens longas e desconfortáveis o território à procura de minerais, abriram trilhas e caminhos, vencendo morros, serras, rios, matas fechadas, chuvas torrenciais, frio e calor intensos, enfrentaram os temores de assaltos, de indígenas pouco amistosos, de doenças tropicais, de animais perigosos. Estiveram entre os responsáveis pela demarcação das rotas e estradas e construção dos primeiros arraiais, fundaram povoados e lugarejos, criaram pontos de paragem para as longas viagens que cortavam o “mar de morros”, levantando habitações muitas vezes precárias em busca da exploração da riqueza mineral que os obrigava a manter por vezes vida quase nômade, dispostos, a qualquer notícia ou indício de nova descoberta, a partir de imediato em direção ao veio precioso.

A procura do ouro levou para as Minas cristãos-novos da Bahia e de outras regiões do Nordeste, mas também de São Paulo, do Espírito Santo, do Rio de Janeiro, e de outros espaços do vasto império português. Criava-se uma sociedade mista, multifacetada, formada por gente de todos os tipos e classes: jovens, idosos, ricos, pobres, mulheres, crianças. Atuavam não apenas na exploração mineral, mas também no seu entorno, com o suprimento de mantimentos, produtos, ferramentas e carências outras, oferecimento de serviços de terceiros necessários à região. Trabalhavam como médicos, advogados, professores, eram artesãos, homens de negócio e comerciantes, proporcionavam crédito, traficavam escravos e animais para transporte e lida, criavam gado, porcos, galinhas e demais animálias para consumo, desenvolviam lavouras de subsistência onde produziam mandioca, feijão, arroz, milho, cana-de-açúcar, hortaliças e outros alimentos; contribuíram na criação daquilo que viria a transformar-se na tradicional e renomada culinária e doçaria mineiras. Num mundo marcado por contrabandos, tráfico ilegal de produtos e riquezas, artimanhas, fraudes e roubos, eram, tal qual os cristãos velhos, ora vítimas ora culpados de falcatruas. Erguia-se, nas Minas, uma sociedade de múltiplas características, e o elemento neoconverso, tal qual os demais, era parte integrante e fundamental nesta formação.

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Espalharam-se, rapidamente, pelo território, sertão adentro. Ao longo do século XVIII, Minas foi uma das regiões mais procuradas pelos cristãos-novos que deixavam Portugal e seus domínios de além-mar, sonhando com a prosperidade do ouro, embora esta, na prática, se limitasse a uns poucos. De acordo com Neusa Fernandes (2000:89), dos neoconversos que vieram da Bahia, muitos se concentraram nas regiões das atuais cidades de Serro Frio, Pitangui, Sabará, Mariana, Ouro Preto, mas também nas entradas das vilas, nas estradas e nos caminhos, apresentando grande mobilidade. Foram, par e passo, mapeando o território, dando nomes aos lugarejos, acidentes geográficos, rios e serras, permitindo seu controle, ocupação e conhecimento, criando as especificidades do ser mineiro.

José Gonçalves do Salvador demonstra como os neoconversos estavam capilarmente inseridos na economia da região – nada que diferisse, é bem verdade, do que já haviam desempenhado no Nordeste dos dois primeiros séculos. Faziam parte, com funções e papéis variados, de uma economia com braços espalhados por outros espaços da colônia, ligando Minas ao restante do mundo português:

Eles andavam metidos em tudo. Nada que parecesse vantajoso escapava aos seus intentos. Vendiam, compravam, financiavam, davam a juros, emprestavam a simples crédito, faziam hipotecas, e assim sucessivamente. Negociavam em nome próprio, e para si, mas também como intermediário de terceiros, estabelecidos no Rio de Janeiro, Salvador, Recife e Portugal. Como, igualmente, procediam numerosos lojistas. Eram muitos os que trabalhavam a troco de comissões. (Salvador, 1992:48)

No cotidiano, adaptavam-se aos costumes gerais. Aprendiam as orações, frequentavam as missas, celebrações e festas da Igreja católica. Mas nem todos pareciam confortáveis com relação à fé: enquanto uns se esforçavam para demonstrar serem bons cristãos, alguns se laicizavam, desinteressados das questões religiosas e mais interessados na sobrevivência (e se possível, no enriquecimento) material; já uma outra parcela destes cristãos-novos insistia em respeitar as tradições dos antepassados, procurando manter, dentro dos limites do segredo e das condições possíveis, os costumes judaicos que eram repassados de pais para filhos, por gerações. Na prática, cada cristão-novo mantinha uma fé particular, fruto de suas crenças pessoais, tradições familiares e situações de risco ou pressão que vivenciavam; mais ou menos próxima do catolicismo, carregada em intensidades e com significados diversos da tradição judaica, em alguns casos fiel a Cristo, noutros à Torá, noutros ainda ao dinheiro, de acordo com as possibilidades e conveniências, duvidando de tudo e de todos.

Como os neoconversos judaizantes de outras regiões, acabavam por abandonar práticas e evidências mais denunciadoras de seu judaísmo por costumes menos conhecidos, tornando-se o lar, embora nem sempre oferecesse a privacidade necessária, o espaço fundamental da resistência. Nele, reinava

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a figura da mulher, catapultada ao papel de grandes baluartes da resistência, repassando aos filhos a crença dos antigos, rememorando a história dos antepassados, enquanto ensinavam as primeiras letras, preparavam os alimentos, arrumavam a casa, conversavam sobre os problemas e alegrias do dia a dia, ou sonhavam com a loteria do enriquecimento pelo ouro. É interessante observar que várias destas mulheres eram letradas, o que se comprova pelos inventários e testamentos disponíveis para consulta no Arquivo Público Mineiro, alguns deles atestando os conhecimentos femininos na escrita, inclusive atribuindo a estas mulheres incumbências nos negócios administrativos e comerciais dos maridos, numa época em que o domínio do saber ler e escrever era ainda privilégio de poucos – entre as mulheres, então, uma parcela mínima possuía instrução! –, provavelmente mantendo indícios da tradição do judaísmo livre, em muito baseado na cultura letrada.

Mais do que a manutenção da crença judaica, posto que nem todos os neoconversos eram judaizantes, pairava sobre a comunidade cristã-nova uma identidade comum, o marranismo, sinônimo da aproximação menos pela religião do que pela exclusão social (variante caso a caso) que sentiam. De acordo com Anita Novinsky:

As diversas sociedades marranas secretas que se criaram em Minas Gerais acompanharam a rota do ouro. Em cada vila do ouro ou arraial que se fundava, organizavam-se imediatamente os encontros clandestinos. Essas reuniões secretas se realizavam principalmente em algumas casas de Ouro Preto, Tijuco (a zona dos diamantes), Rio das Mortes, Ribeirão do Carmo. Aí se articulavam os negócios e se confirmava a confiança e aí também se construiu, ao mesmo tempo, uma força de resistência aliada e um sentimento do mundo, que foi o Marranismo. Dessa sociedade subterrânea faziam parte cripto-judeus, laicos, céticos, homens que se identificavam não sempre pela fé ou comportamento, mas pela sua condição de excluídos e por suas críticas à religião católica. Essas sociedades secretas das Minas, com seus cripto-judeus e seus descrentes, não foi um fenômeno novo, mas a continuidade de um longo processo, já amadurecido depois de dois séculos de experiências vividas e transmitidas no Brasil. Nasceu com a formação dos primeiros núcleos populacionais, logo após o descobrimento do Brasil, em S. Vicente, São Paulo, na Bahia, em Pernambuco e se espalhou pela colônia a medida em que era desbravado o território e chegavam os novos colonos, aventureiros, fugitivos das perseguições inquisitoriais de Portugal. (Novinsky, 2001:172)

Era preciso, contudo, atenção redobrada e disfarçar certos comportamentos para evitar suspeitas e acabar denunciado ao Santo Ofício. Em Vila Rica, por exemplo, durante o auge da mineração, alguns cristãos-novos comprometidos com a comunidade judaica planejaram a criação de uma irmandade. Para a sede, escolheram um imóvel vizinho à Capela de Bom Jesus dos Perdões, onde se instalariam os “Fiéis de Deus” – alusão aos “seguidores do Profeta Eliseu que,

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em meio à idolatria de Israel, proclamavam sua fidelidade a Yaveh” (Bandeira, 1957:11).

Também o jeito de manter as tradições, muitas delas já desfiguradas ou esvaziadas de seu conteúdo e significado originais, não era distante do que se fazia nos outros espaços de presença neoconversa no Brasil e no restante do luso império, ganhando cores e significados locais, de acordo com as dificuldades e especificidades que encontravam. O que existia era uma continuidade deste processo de resistência, esvaziado pelas leis proibitivas, pela distância temporal do tempo de livre fé, pelas perseguições do Santo Ofício e pelo olhar vigilante da população: realizavam não mais a crença em seus limites tradicionais, mas o judaísmo diminuto, adaptado e possível em momento de proibição:

As práticas judaicas em Minas Gerais mencionadas nos processos inquisitoriais, aparecem revestidas de um forte simbolismo. As comunicações secretas eram feitas muitas vezes através de códigos. De uma maneira geral as cerimônias eram as mesmas que as praticadas pelos cristãos-novos em Portugal e na América Espanhola ou em outras regiões do Brasil: vinham calcadas nas tradições com algumas omissões e alguns sincretismos. Concentravam-se principalmente nos jejuns do Yom Kipur, na guarda do sábado, na comemoração da Páscoa e na festa chamada da “rainha Ester”, acompanhadas de algumas restrições alimentares. A idéia de um Deus Único, criador do Universo e as rejeições da salvação pela lei de Cristo, das imagens e da confissão, completam o quadro da religiosidade marrana (Novinsky, 2001:173).9

Embora possuísse limitações práticas, foi este judaísmo de exceção que, embora resumido e adaptado, permitiu sua sobrevivência. Mais do que a crença na lei dos antepassados, o que imperava era um sentimento de pertença a um grupo que não era aceito pelos cristãos dito puros, reafirmando uma identidade marrana, perseguida, vilipendiada, mas que lutava por sua resistência. Para a autora, uma das grandes contribuições dos cristãos-novos na formação de Minas foi a crítica religiosa, mesmo que esta crítica se mantivesse secreta na maior parte das vezes, pois permitiu a manutenção de uma identidade ciente de sua exclusão social, discriminados por descenderem dos judeus, inclusive aqueles conversos que não poupavam esforços para demonstrar serem verdadeiros devotos da Igreja de Cristo e nada conhecessem, na prática, do judaísmo:

Em Minas Gerais como no restante do Brasil, ser acusado de judaísmo não se resumia apenas em seguir algumas leis dietéticas, observar os jejuns, abster-se do trabalho aos sábados, ou obedecer alguns outros preceitos ordenados pela religião judaica. O marranismo entre os portugueses no Brasil foi em grande parte uma atitude mental, um sentimento, uma postura frente a vida. Se a maioria dos cristãos-novos no Brasil conseguiu ultrapassar as barreiras discriminatórias legais impostas pela

9 Sobre o marranismo, conferir ainda Novinsky (1972).

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sua origem e sangue, ou a discriminação social, e se diluir na sociedade ampla, houve uma parte que permaneceu marginal e se manteve fiel a tradições, mesmo que apagadas, herdadas dos seus antepassados. A transmissão da memória de uma história vivida e sofrida durante séculos, juntamente com a exclusão legal e social a que estavam sujeitos, reforçou entre os cristãos-novos a resistência na adoção dos preceitos da Igreja, e criou entre eles uma postura crítica frente à religião católica. A crítica religiosa foi a grande contribuição que os cristãos-novos no Brasil deram ao pensamento ilustrado do século XVIII. (Novinsky, 2001:170)

Apesar das dificuldades na manutenção judaica, esta existiu, e gerava um imaginário sobre o comportamento dos neoconversos que apontava determinadas práticas como indício de judaísmo, embora nem sempre o que era entendido como sinônimo de continuidade hebraica realmente o fosse. Estes indícios eram encontrados não apenas nos episódios e comportamentos considerados heréticos que chegaram ao conhecimento da Inquisição, mas também em outros tipos de documentos. Já em 1711, por exemplo, uma correspondência enviada à capital do reino detinha-se no grande número de habitantes das Minas envolvidos com a Inquisição por contra de práticas apontadas como heréticas – em boa parte, ao que parece, envolvendo comportamentos identificados como criptojudaicos:

Esquecia-me de dizer-lhe que a quantidade de gente que se havia preso pelo Santo Ofício que cuido passam de cem pessoas: e por não individuá-los, digo que é o resto dos cristãos-novos que Vme. cá conhecia. (apud Salvador, 1992:178-179)

Na historiografia, alguns trabalhos já chamaram a atenção para a sobrevivência do judaísmo durante o Setecentos mineiro. O detalhado levantamento de prisioneiros inquisitoriais do Brasil feitos por Anita Novinsky (2002) mostra que vários neoconversos da região foram seguidamente acusados de manter crenças e costumes da lei mosaica e, por isso, processados. Mas não apenas a documentação do Santo Ofício traz estes sinais de continuidade da fé de Israel: muitos dos cristãos-novos que não foram alcançados pelo Tribunal tiveram suas práticas vasculhadas e relatadas em outras fontes, tanto religiosas quanto laicas. A partir dos casos que chegaram à Inquisição como suspeitos de judaísmo, podemos ter uma ideia, em linhas gerais, dos supostos comportamentos vistos por seus denunciantes e pelos representantes da Inquisição como mostra de pertinácia nos antigos costumes da religião dos antepassados. A seguir, uma breve lista de alguns destes processos referentes a cristãos-novos ligados a Minas que foram presos e processados pelo Santo Ofício por culpas de judaísmo presentes nos arquivos da Torre do Tombo, e disponíveis para consulta:10

10 Baseamos nossos exemplos na lista de mineiros processados pelo Santo Ofício apresentada por Novinsky (2002).

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Francisco de Lucena Montarroyo, 26 anos, natural do Rio de Janeiro e morador no Rio e em Minas, casado com Inácia Gomes Ribeiro, cristã velha, mineiro, preso em 1712, processado por judaísmo e condenado a hábito penitencial perpétuo mais cárcere, em Auto de fé de 9 de julho de 1713. Teve mãe, irmãos e sobrinhos penitenciados pelo Santo Ofício (Arquivos Nacionais da Torre do Tombo (ANTT). Inquisição de Lisboa (IL). Processo 1340).

Inácio Cardoso de Azeredo, 35 anos, natural do Rio de Janeiro e morador das Minas Gerais e do Rio de Janeiro, casado, acusado de judaísmo, sentenciado a cárcere, hábito perpétuo e confisco de bens, em Auto de fé de 9 de julho de 1713. Teve a família penitenciada (ANTT. IL. Processo 5447).

Francisco da Costa, homem de negócio, morador em Paraty e Minas, sobrinho de Miguel Teles da Costa, capitão-mor de Paraty, preso em 1714 por culpas de judaísmo (ANTT. IL. Processo 682).

Izabel Gomes Palhana, 27 anos, natural do Rio de Janeiro e moradora nas Minas Gerais, casada com o capitão Simão Alves Motinho, cristão velho e mercador, presa em 1715 por judaísmo, sentenciada a cárcere e hábito penitencial perpétuo, com confisco de bens, em Auto de Fé de 16 de fevereiro de 1716. Seus irmãos, mãe e sobrinhos também foram penitenciados (ANTT. IL. Processo 4953).

Antonio Pereira de Araújo, homem casado, lavrador de mandioca, natural da cidade de Braga e morador em Minas do Rio das Mortes, seria preso em 1723 por crimes de judaísmo, aos 62 anos de idade, condenado a cárcere e hábito penitencial perpétuo, com degredo de seis anos para os Açores, além de confisco de bens, em Auto de Fé de 10 de outubro de 1723. Faleceu no mesmo ano, nos Hospitais Reais (ANTT. IL. Processo 3583).

Diogo Henriques, 63 anos, natural de Viseu e morador em Minas de Ouro Preto, homem de negócios, processado por judaísmo, condenado a cárcere e hábito perpétuo, com confisco em bens, tendo saído no Auto de fé de 13 de outubro de 1726.

Francisco Ferreira Isidoro, 41 anos, natural de Lamego e morador na Vila do Carmo, solteiro, mineiro e tratante, acusado de judaísmo e sentenciado a cárcere e hábito perpétuo, com confisco de bens, em Auto de fé de 25 de agosto de 1728 (ANTT. IL. Processo 11965).

José da Cruz Henriques, 26 anos, natural de Viseu e morador em Minas de Ribeirão do Carmo, solteiro, dizimeiro, acusado de judaísmo, sentenciado a cárcere e hábito penitencial perpétuo, mais confisco de bens, no Auto de fé de 26 de outubro de 1729 (ANTT. IL. Processo 10004).

Diogo Nunes, 53 anos, natural da Guarda e morador em Curralinho, viúvo, homem de negócios, processado por judaísmo e sentenciado em Auto de fé de 9 de dezembro de 1729 a abjurar em forma, mais penitências espirituais (ANTT. IL. Processo 7488).

Manoel da Costa Espadilha, 40 anos, natural de Penamacor e morador em Minas Gerais, casado, tendeiro, processado por judaísmo e sentenciado a

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cárcere e hábito penitencial perpétuo, com confisco de bens, saindo no Auto de Fé de 17 de junho de 1731. Teve primos e tios penitenciados (ANTT. IL. Processo 1813).

Miguel de Mendonça Valladolid, natural de Valladolid, Espanha, e morador entre São Paulo, Minas e Bahia, casado, homem de negócios, preso em 1729 por judaísmo, seria relaxado à justiça secular, com confisco, em Auto de fé de 17 de junho de 1732. Teve pais e tios penitenciados em Castela (ANTT. IL. Processo 9973).

José Rodrigues Cardoso, jovem de 23 anos, solteiro, natural da Bahia e morador na Bahia e Curralinho, Minas, tratante e mineiro, preso em 1729 por acusações de judaísmo e sentenciado a cárcere e hábito penitencial perpétuo, com confisco de bens, em Auto de fé datado de 6 de julho de 1732. Teve também sua mãe, Guiomar da Rosa, penitenciada pela Inquisição (ANTT. IL. Processo 19).

João de Matos Henriques, 30 anos, natural da Guarda e morador em Minas de Ribeirão do Carmo, solteiro, tratante, acusado de judaísmo e sentenciado a cárcere e hábito penitencial a arbítrio dos inquisidores, mais confisco de bens, em Auto de Fé de 18 de junho de 1741 (ANTT. IL. Processo 3752).

David Mendes da Silva, cristão-novo, solteiro, homem de negócios, 41 anos, natural de Vila Nova de Foz Côa e morador em Minas do Serro do Frio, preso em 1730 por judaísmo, condenado em Auto de Fé de 17 de junho de 1731 a cárcere e hábito penitencial perpétuo, mais confisco de bens (ANTT. IL. Processo 2134).

Luís Miguel Correa, 26 anos, natural de Viseu, solteiro, lavrador de roça, acusado de judaísmo, preso em 1730 e relaxado à justiça secular, juntamente com seu pai, que era morador em Vila Rica, em Auto de Fé de 6 de julho de 1732, com confisco de bens. Teria ainda uma irmã presa pelo Santo Ofício (ANTT. IL. Processo 9249).

Domingos Nunes, 38 anos, solteiro, tratante, natural de Viseu e morador nas Minas Gerais, preso em 1730 por culpas de judaísmo, relaxado à justiça secular, com confisco de bens em Auto de Fé ocorrido em 6 de julho de 1732 (ANTT. IL. Processo 1779).

Diogo Correa do Vale, 58 anos de idade, médico, viúvo, natural de Castela e morador nas Minas de Ouro Preto, preso em 1730 por culpas de judaísmo, acabaria relaxado à justiça secular em Auto de Fé datado de 6 de julho de 1732, além de ter filhos, primos e sobrinhos penitenciados pelo Santo Ofício (ANTT. IL. Processo 821).

Antonio Carvalho Oliveira, 37 anos, homem de negócios, natural de Miranda e morador em Minas, preso em 1731 por crimes de judaísmo; seria sentenciado, em Auto de Fé de 6 de julho de 1732, a cárcere e hábito penitencial perpétuo, com confisco de bens. Toda a sua família acabaria também penitenciada (ANTT. IL. Processo 10474).

Diogo Dias Fernandes, 35 anos, solteiro, homem letrado, médico, natural

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do Porto e morador em Minas do Ribeirão do Carmo, preso em 1732 por judaísmo e sentenciado a cárcere e hábito penitencial perpétuo, mais confisco de bens, em Auto de Fé de 20 setembro de 1733 (ANTT. IL. Processo 8187).

Henrique Fróes, 37 anos, natural da Covilhã e morador em Minas de Ouro Preto, solteiro, mineiro, acusado de judaísmo, sentenciado a cárcere e hábito penitencial a arbítrio dos inquisidores, com confisco de bens, em Auto de Fé de 24 de julho de 1735. Teve os tios penitenciados (ANTT. IL. Processo 426).

Ana do Vale, 26 anos, solteira, natural do Rio de Janeiro e moradora em Minas do Cachoeiro, presa em 1734 por judaísmo e condenada a cárcere e hábito penitencial a arbítrio dos inquisidores, com confisco de bens, saindo no Auto de fé de 24 de julho 1735. Os irmãos, pais e avós também foram penitenciados (ANTT. IL. Processo 6989).

Elena do Vale, solteira, 26 anos, irmã de Ana do Vale, natural do Rio de Janeiro e moradora nas Minas Gerais, presa em 1734 por culpas de judaísmo, sentenciada a cárcere e hábito penitencial a arbítrio dos inquisidores, em Auto de Fé de 24 de julho de 1735 (ANTT. IL. Processo 4220).

Manoel da Costa Ribeiro, cristão-novo de 24 anos, solteiro, natural da Guarda e morador em Minas de Vila Rica, lavrador de roça e milho, preso por judaísmo em 1734 e relaxado à justiça secular, com confisco de bens, em Auto de Fé de 10 de setembro de 1737 (ANTT. IL. Processo 1361).

Manoel Matos Dias, 32 anos, natural da Guarda e morador na Vila Rica das Minas Gerais, solteiro, caixeiro, acusado de judaísmo e sentenciado a cárcere e hábito penitencial perpétuo, com confisco de bens, saindo no Auto de Fé de 10 de setembro de 1737 (ANTT. IL. Processo 1518).

Antonio Sá de Almeida, 28 anos, natural de Lamego e morador nas Minas do Serro Frio, solteiro, mineiro, acusado de judaísmo, preso em 1734 e condenado, no Auto de Fé de 18 de outubro de 1739, a cárcere e hábito penitencial perpétuo, sem remissão, com confisco de bens (ANTT. IL. Processo 8025).

Agostinho José de Azevedo, casado, de idade de 40 anos, natural do Rio de Janeiro e morador em Minas do Rio das Mortes, preso em 1741 por culpas de judaísmo, condenado a cárcere e hábito penitencial a arbítrio dos inquisidores, com confisco de bens e saída em Auto de Fé em 1542, com vários membros da família penitenciados pelo Santo Ofício. Após o processo, o réu voltou para Minas (ANTT. IL. Processo 8670).

Antonio José Cogominho, natural de Évora e morador nas Minas Gerais, onde atuava como fiscal da Intendência das minas de Sabará, casado, acusado de judaísmo, preso em 1743 e sentenciado em Auto de fé de 1744 a fazer abjuração de veemente.

Martinho da Cunha Oliveira, 52 anos, natural da Guarda e morador nas Minas Gerais, casado, tratante de diamantes e mercador, acusado de judaísmo, preso em 1746, relaxado à justiça secular no Auto de fé de 24 de setembro de 1747. Já havia sido preso inicialmente em 1713, condenado a hábito penitencial

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retirado no Auto de Fé, transferindo-se para a região das Minas em 1718 e voltando a Portugal em 1733. Em 1746, numa tentativa de fuga para a França, seu navio seria interceptado pelas autoridades e entregue ao Santo Ofício (ANTT. IL. Processo 8109).

João Henriques, 27 anos, natural da Guarda e morador em Minas de Paracatu, solteiro, boticário, acusado de judaísmo, preso em 1747 e sentenciado à justiça secular, com confisco, em Auto de Fé de 20 de outubro de 1748 (ANTT. IL. Processo 8378).

Antonio Ribeiro Furtado, cristão-novo, natural de Bragança e morador em Minas do Serro Frio, homem de negócios, solteiro, 32 anos, preso em 1751 por judaísmo, submetido a tormento e sentenciado, em Auto de Fé realizado em 24 de setembro de 1752, a cárcere e hábito penitencial a arbítrio dos inquisidores, com confisco de bens (ANTT. IL. Processo 2801).

Como se pode perceber, uma substancial lista de indivíduos, das mais diversas origens, profissões e posições sociais, todos acusados, em graus, modos e por motivos diferenciados, de manter fidelidade aos costumes, crenças, tradições e fé dos antepassados, acabando por serem alcançados pelo Santo Ofício. Logo, embora a Inquisição nunca tenha enviado uma visitação formal à região das Minas, isto não significa dizer que não caçou hereges nem causou problemas, ou que não estava atenta ao que ocorria na região, através dos seus representantes. Tratava-se, antes, de estratégia organizacional do Tribunal, que mantinha uma vasta rede de informantes oficiais, prontos a colher as primeiras informações e denúncias sobre os suspeitos e mandá-las – inclusive junto com os suspeitos, se assim se fizesse necessário – ao Tribunal de Lisboa, onde eram entregues ao Conselho Geral para serem processados.

Uma bem montada rede de representantes, diga-se de passagem, onde o status de pertencer às fileiras da Inquisição era também sinônimo de distinção social, de origem imaculada, sem qualquer mancha de sangue infecto a correr nas veias. E mais: pertencer aos quadros da Inquisição abria portas, incentivava contatos e concedia vantagens, fazendo com que muitos indivíduos, mesmo que despreparados, tentassem conseguir sua habilitação ao cargo, não raro procurando burlar impedimentos legais ou mesmo fraudar documentos, aliciando testemunhas, chantageando fornecedores de informações. Também há casos de indivíduos que se faziam passar por representantes legais do Tribunal sem de fato o serem, o que poderia lhes valer consequências seríssimas, caso fossem descobertos. Aldair Rodrigues (2011), em importante pesquisa sobre os representantes do Santo Ofício em Minas Gerais, mapeou a presença e atuação destes, encontrando oito notários, vinte e três comissários e cerca de quinhentos familiares, número que demonstra o interesse e preocupação reservados pelo Santo Ofício em vigiar o que ocorria nas Minas.11

Na segunda metade do século XVIII, em épocas de dom José e do

11 Sobre a rede de representantes inquisitoriais em Minas e sua atuação, cf. Rodrigues (2011).

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Marquês de Pombal, a crise do sistema minerador, o fim da distinção sanguínea e da diferenciação entre cristãos velhos e novos, e as medidas tomadas que levaram ao limite de ação e certo abrandamento ou domesticação da Inquisição em Portugal acabaram por impedir que outros cristãos-novos (e não só eles) terminassem seus dias na fogueira. Mas os representantes da Inquisição continuavam ativos na região, espalhando o medo, incentivando a delação, investigando boatos, ouvindo testemunhas, amealhando relatos de comportamentos suspeitos de heresia, prendendo indivíduos, confiscando bens, enviando várias denúncias coletadas e indivíduos suspeitos para Lisboa.

De todo modo, a ação do Santo Ofício mostra que a presença neoconversa nas Minas não serviu apenas para abrir caminhos, povoar espaços, encontrar ouro e produzir riquezas. Conseguiram, como os cristãos-novos de outras regiões e épocas, driblar as perseguições sociais e a caça de hereges feitas pela Inquisição – embora alguns tenham sido alcançados –, mantendo, dentro do possível, a crença na lei de Moisés, adaptada às dificuldades e falta de liberdade religiosa, tendo as mulheres à frente na divulgação aos filhos. Aquela mesma fé em que muitos afirmavam querer viver e morrer, plantando, em solo mineiro, a semente da crença dos antepassados e a esperança de novos tempos, em que as diferenças religiosas não acendessem mais o fogo da intolerância.

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ANTT. IL. Processo 426.ANTT. IL. Processo 6989.ANTT. IL. Processo 4220.ANTT. IL. Processo 1361.ANTT. IL. Processo 1518.ANTT. IL. Processo 8025.ANTT. IL. Processo 8670.ANTT. IL. Processo 8109.ANTT. IL. Processo 8378.ANTT. IL. Processo 2801.

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12.

Inquisição, cristãos-novos e Arqueologia (Minas Gerais - século XVIII)1

Carlos Magno GuimarãesJuliana de Souza MolMariana Gonçalves MoreiraCamila Fernandes de MoraisThaís Monteiro de CastroWill Lucas da Silva Pena

Embora nas três últimas décadas venham sendo realizados estudos sobre a Inquisição e os cristãos-novos nas Minas Gerais, percebe-se ainda uma carência destes, dada a relevância que esta categoria social teve no processo de formação da sociedade mineira colonial. Segundo Anita Novinsky, “Minas Gerais foi no século XVIII uma das regiões mais procuradas pelos cristãos-novos portugueses. Cada nau que saia do Tejo trazia refugiados ou aventureiros cristãos-novos para o Brasil” (2011:162).

Tendo como um de seus objetivos a montagem de um banco de dados com informações sobre os cristãos-novos e criptojudeus que vieram para Minas Gerais (em consequência das atividades da Inquisição na Península Ibérica), o Projeto Inquisição em Minas Gerais no século XVIII: do Banco de Dados à Arqueologia vem sendo desenvolvido desde 2010 através de uma parceria entre o Laboratório de Arqueologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais e o Instituto Histórico Israelita Mineiro.

As informações produzidas e processadas permitem o rastreamento de cristãos-novos e criptojudeus que, perseguidos pela Inquisição, migraram para as Minas no período colonial. Os dados fornecem subsídios para identificar/localizar sítios arqueológicos remanescentes de antigos assentamentos onde se estabeleceram aqueles perseguidos. Busca-se, neste caso, o desenvolvimento de uma arqueologia relacionada ao tema.2

A pesquisa arqueológica abre a possibilidade para que critérios metodológicos sejam desenvolvidos e permitam identificar elementos da

1 Agradecemos a todos aqueles que de alguma forma contribuíram para a realização deste tra-balho. Ao Instituto Histórico Israelita Mineiro, nosso parceiro neste projeto; e às estagiárias Anna Luiza Rezende Ladeia e Ludmila Machado Pereira de Oliveira Torres, do Laboratório de Arqueologia da Fafich/UFMG.2 Não se trata de uma Arqueologia da Inquisição porquanto não tem o objetivo voltado para a instituição em si, embora a mesma seja um ponto de referência por ser integrante daque-la realidade e também do projeto de pesquisa. Uma denominação mais adequada seria uma Arqueologia dos perseguidos pela Inquisição.

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cultura judaica naqueles sítios que foram ocupados por cristãos-novos. É neste aspecto que a pesquisa pode acrescentar caráter inovador, quando se considera que tal perspectiva ainda não foi adotada para estudos relacionados à temática da Inquisição e/ou dos perseguidos por ela.

Este capítulo pretende evidenciar as linhas de desenvolvimento da pesquisa e as potencialidades por ela já evidenciadas.

***

A etapa inicial do projeto consistiu no levantamento e organização de material já publicado e relacionado à temática em questão (bibliografia especializada, obras teóricas, documentação, iconografia etc.).

No levantamento/fichamento das obras impressas e documentos históricos, a preocupação foi adotar critérios para processar os dados visando a sua utilização pela arqueologia. Nesta perspectiva, adquirem relevância quaisquer informações relacionadas à vida material, das edificações à louça de uso doméstico.

Este levantamento contemplou, inicialmente, obras que tratam da Inquisição na sua origem. Esta literatura, seja na Península Ibérica3 ou no Brasil, tem centrado seu foco de análise em aspectos que, dentre outros, vão do antissemitismo4 à hierarquia social,5 passando por questões ligadas à heresia,6 à bruxaria,7 à sexualidade8 e à limpeza de sangue,9 dentre outros. Isto evidencia a complexidade do tema e do contexto no qual ele se inseria, incluindo as especificidades do Brasil Colônia como destino de uma parte dos perseguidos.10

Implantada primeiramente na Espanha e, em seguida, em Portugal, em princípios do século XVI, a denominada Inquisição moderna, segundo Antonio José Saraiva (1956:10), encontrou um “novo combustível” na categoria dos cristãos-novos que de forma recorrente eram acusados de práticas judaizantes.

3 Dentre as obras de abordagem mais geral sobre a implantação do aparelho inquisitorial na Espanha e em Portugal ver Bethencourt (2000), Grigulevich (1976), De Los Rios Y Serrano (1973). Sobre a Inquisição Portuguesa, ver Herculano (s/d.), Azevedo (1975), Kayserling (1971), Saraiva (1969). Sobre a Inquisição espanhola, ver Kamen (1966), Testas e Testas (1968), Turberville (1949).4 Uma análise do anti-semitismo em seus vários aspectos, onde a Inquisição é tratada como mais uma de suas manifestações, encontra-se em Szekel (1940).5 Da estrutura inquisitorial uma categoria que vem se destacando como tema de estudo é a dos Familiares, objeto de análise em Calainho (2006), Rodrigues (2007).6 Ver Gomes (1997), Silva (1995).7 Ver Mello e Souza (1989), Novinsky e Carneiro (1992).8 Ver Bellini (1989), Lima (1991), Mott (1988), Vainfas (1989).9 Ver Calainho (2006), Kamen (1966), Novinsky (1972), Salvador (1976). 10 Sobre a atuação da Inquisição no Brasil Colonial, onde se considera a especificidade da co-lonização, ver Grinberg (2005), Lapa (1978), Lipiner (1969), Novinsky (1972), Salvador (1969; 1978), Wiznitzer (1960). Uma coletânea de trabalhos mais recentes são os Anais do III Encontro Nacional do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro (2003). E sobre as Minas Gerais do século XVIII, Novinsky (1992).

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Hoje os estudos sobre a Inquisição no Brasil Colonial são muitos, mas, para os objetivos deste projeto, merecem referência especial aqueles que de alguma forma trataram da realidade das Minas coloniais. Nesse sentido, destacam-se Anita Novinsky (1976),11 Flavio Mendes Carvalho (1992) e Egon e Frieda Wolff (1986).

Obras como A Inquisição em Minas Gerais no século XVIII, de Neusa Fernandes (2000), e Os cristãos-novos em Minas Gerais durante o ciclo do ouro (1695-1755): relações com a Inglaterra (1992), de José G. Salvador, abordam aspectos relacionados às maneiras como os cristãos-novos se organizavam, lidavam com a ação inquisitorial e se inseriam na sociedade mineira colonial. Trazem, ainda, informações a respeito da vida cotidiana, incluindo a participação de cristãos-novos em expedições à procura do ouro, na construção das primeiras vilas e na extração de minérios. É importante mencionar que os cristãos-novos participavam de atividades variadas, como: a medicina (os precursores na Capitania), a advocacia, as artes, os cargos públicos, além do comércio e de atividades rurais. Apesar dos poucos registros sobre o cotidiano dessa população, era significativo o número de cristãos-novos e criptojudeus na vida social e econômica da Capitania.

No que se refere à Inquisição, devem ser citadas obras como Inquisição: rol dos culpados (1992) e Inquisição: prisioneiros do Brasil – séculos XVI-XIX (2002), de Anita Novinksy, Efemérides mineiras de José Pedro Xavier da Veiga (1998) e Raízes judaicas no Brasil: o arquivo secreto da Inquisição (1992), de Flávio Mendes Carvalho. De diferentes maneiras, e cada autor a seu modo, trazem informações importantes sobre os perseguidos e/ou atingidos pelo Tribunal do Santo Ofício, como nome(s), origem, local de moradia, atividades que desenvolviam, estado civil, acusação, motivo de condenação, sentença, data do Auto de fé, idade, deportação, parentesco, nomes das testemunhas que o denunciaram, etc.

Já foi citada por sua importância como obra de referência Inquisição: inventários de bens confiscados a Cristãos Novos (1976), de Anita Novinksy, com informações sobre bens dos cristãos-novos confiscados pelo Santo Ofício. Eles incluíam propriedades rurais, bens semoventes, residências urbanas, propriedades comerciais e até a tralha doméstica (garfos, roupas de cama, baú, armas, etc.). Tudo que o réu possuía era sequestrado no ato de sua prisão, antes mesmo que sua culpa fosse formada.

Por não ter sido implantado na colônia um Tribunal do Santo Ofício,12 ocorriam as Visitações com a colaboração de Eclesiásticos e de oficiais (do Santo Ofício) como os familiares, os comissários e os notários que atuaram na colônia.

11 Desta mesma autora é a obra: Inquisição: rol dos culpados: fontes para a História do Brasil/século XVIII. Rio de Janeiro: Expressão Cultura, 1992.12 Afirmativa questionada diante de dados obtidos a partir da pesquisa que resultou no presente capítulo.

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Mas não só de fontes inquisitoriais procedem as informações que abastecem o banco de dados. Minas Gerais possui arquivos públicos (como o Arquivo Público Mineiro, em Belo Horizonte; a Casa dos Contos, em Ouro Preto; a Casa Setecentista, em Mariana, etc.) onde se encontra um imenso acervo documental que permite ampliar e enriquecer o banco de dados com informações provenientes de testamentos, inventários, cartas de sesmarias, etc. O cruzamento de dados destas várias fontes permite maior consistência das informações, ampliando sua eficácia quando utilizadas pela Arqueologia.

Ao acervo acima referido deve ser acrescentado ainda outro importante conjunto documental. A Direção Geral de Arquivos de Portugal está disponibilizando, via internet, documentos relacionados aos processos inquisitoriais, que se encontram na Torre do Tombo, contemplando o período de 1536 a 1821. Esta base de dados permite checar informações divulgadas por outros pesquisadores, bem como enriquecer o universo existente.

Além das atividades desenvolvidas pelo Laboratório de Arqueologia da Fafich/UFMG, a parceria com o Instituto Histórico Israelita Mineiro tem permitido o avanço no conhecimento de aspectos da cultura judaica, indispensável para a identificação de vestígios relacionados aos diferentes âmbitos da vida cotidiana.

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O armazenamento, a organização e o acesso às informações através de um Banco de Dados contemplam sua disponibilização futura através da internet.Página inicial do Banco de Dados. Fonte: Acervo do Laboratório de Arqueologia da Fafich/UFMG.

O levantamento/fichamento já realizado permitiu identificar a natureza das informações, disponíveis nas obras pesquisadas, que serviram de base para a definição dos campos e estruturação do banco de dados.

Para o caso dos cristãos-novos, foi elaborada uma ficha que contempla campos para inserção de informações, como: condição; testemunha; nome; n° do processo; acusação; idade; origem; moradia; sesmaria; bens da sesmaria; ocupação; estado civil; data de nascimento; local de nascimento; pai; mãe; data do inventário; data do início do processo; data da prisão; data do Auto de fé; sentença; bens; fontes bibliográficas, etc. Para os oficiais do Santo Ofício foram feitas adequações na ficha, sendo alguns dos campos suprimidos (por não serem aplicáveis) e outros incluídos, como a data de habilitação.

Concluída a montagem deste instrumento de pesquisa, sua alimentação vem se dando de forma contínua, tornando-o uma ferramenta cada vez mais rica ao longo do tempo.

O Banco de Dados foi concebido e estruturado de forma a possibilitar o cruzamento de informações de diferentes fontes, dando subsídios para o rastreamento de vestígios arqueológicos com o recurso do geoprocessamento.

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O desenvolvimento do projeto já evidenciou situações diversificadas, múltiplas perspectivas a serem exploradas e questões a serem resolvidas. As dificuldades surgidas e os desafios a serem superados têm atuado como estímulos.

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Em meio urbano, um dos casos identificados é a irmandade Fiéis de Deus, suposta comunidade criptojudaica que teria existido na Vila Rica setecentista.

É notória a participação e o agenciamento das Irmandades leigas no processo de formação da sociedade mineira colonial. Diferentemente da inserção em outras capitanias, e também no Reino, a particularidade dessas agremiações na região das Minas deu a elas um forte papel na sociabilidade e religiosidade local (Boschi, 2007). Tamanha importância liga-se aos mecanismos restritivos à fixação de congregações religiosas na Capitania. Parte do papel comumente atribuído às congregações, e fomentado por um Estado presente, tornou-se atribuição das Irmandades, Confrarias e Ordens Terceiras.

Na região das Minas, a expansão e proliferação das associações leigas se deram simultaneamente à ampliação de sua autonomia. A Coroa adotou medidas para reduzir sua liberdade, criando um processo regulatório e buscando maior grau de sua submissão às autoridades civis e eclesiásticas. Essas medidas, contudo, não foram muito eficazes.

Enquanto em Portugal as invocações, os oragos, guardavam direta relação com as ocupações profissionais de seus adeptos, nas Minas, a escolha dos santos padroeiros decorria da identificação dos grupos de fiéis com as perplexidades e simbolismos neles retratados. Enquanto em Portugal a função social das irmandades tinha caráter essencialmente beneficente e mutalistas, nas Minas Gerais se apresentavam como organismos sociais multiformes, que proporcionaram aos seus membros, entre outros benefícios, um espaço de convívio social. Aliás, foram elas veículo e instrumento de manifestações sociais, sobretudo paras as camadas subalternas. (Boschi, 2007:64)

Foi nesse contexto que, segundo Augusto de Lima Jr., teria surgido uma sociedade secreta judaica disfarçada sob a aparência de uma irmandade leiga:

Em Vila Rica, meados do século dezoito, havia uma comunidade judaica muito bem disfarçada, que tentou organizar-se numa falsa irmandade, com o título de ‘Fiéis de Deus’. Como se sabe, assim se intitulavam os seguidores do profeta Eliseu que, em meio da idolatria de Israel, proclamava sua fidelidade a Yaveh. Chegaram a ocupar uma casa junto da atual Capela de Bom Jesus dos Perdões, então em construção, e enganaram o bispo de Mariana, que somente depois de muito tempo desconfiou dessa confraria e resolveu dissolvê-la. (Lima Jr., 1965:138)

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Entretanto, Lima Jr. não cita a origem, bibliográfica ou documental, de suas informações, o que dificulta, se não impossibilita, confirmá-las. Em outra perspectiva, o autor faz considerações sobre a incorporação de costumes judaicos à realidade mineira, decorrentes da grande migração de cristãos-novos para o Brasil, devido a sua expulsão de Portugal e da Espanha.

Referência aos Fiéis de Deus também se encontra na obra de Neusa Fernandes, A Inquisição em Minas Gerais no século XVIII (2000). Esta autora não acrescenta novas informações, além daquelas citadas por Lima Jr.; entretanto, aponta como fonte da informação o Guia de Ouro Preto, de Manuel Bandeira. Mas, neste guia, não há qualquer referência a tal comunidade judaica. Tratar-se-ia, supostamente, de uma edição diferente da citada por Neusa Fernandes, podendo a informação ter sido suprimida na edição aqui utilizada.13

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O guia de Manoel Bandeira, desencontros à parte, possibilitou a localização da Capela de Bom Jesus dos Perdões, conforme mencionado na citação de Lima Jr., tendo sido a mesma acoplada à Igreja de Nossa Senhora das Mercês e Perdões (Mercês de Baixo) em 1770 (Bandeira, 1957:110-111).

Ao lado da referida Igreja, existe uma casa em estilo colonial, que abriga atualmente uma “república” de estudantes da Universidade Federal de Ouro Preto, denominada Sinagoga.14 A localização e a denominação remetem à possibilidade de ser o local que (coincidentemente?) estaria relacionado à sociedade secreta do século XVIII, caso esta tenha existido de fato.

A atual “República Sinagoga” foi criada em 1949. A edificação apresenta cobertura de telhas do tipo meia-cana; janelas e portas de madeira; pilares de sustentação de pedras e assoalho de madeira. O porão apresenta paredes e piso de pedras e seu uso atual como espaço de lazer implicou em inúmeras intervenções que certamente alteraram sua configuração original. Possui alicerce de pedras elevado do solo para nivelar o piso, uma vez que a edificação foi implantada em área de declive. O quintal da moradia, parcialmente de terra batida, encontra-se em área íngreme, com pedras deslocadas em superfície e escada de pedras em processo de arruinamento. Ainda que de pequenas dimensões, existe uma área de descarte, sendo um espaço favorável para intervenções arqueológicas, evidenciando potencial de ocorrência de vestígios. Embora tenha passado por reformas ao longo do tempo, a edificação parece preservar parte de suas características originais.

Ainda que não tenham sido identificados dados conclusivos a respeito da irmandade, o prosseguimento da pesquisa pode conduzir a resultados mais

13 Embora a versão do Guia de Ouro Preto aqui utilizada também seja datada de 1957, como a citada por Neusa Fernandes, não foi produzida em São Paulo pela Gráfica Carioca, mas no Rio de Janeiro, pela Livraria-Editora da Casa do Estudante do Brasil. 14 Anteriormente, informações a respeito da “república” foram repassadas à equipe do Laboratório de Arqueologia pelo Instituto Histórico Israelita Mineiro.

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consistentes. Embora não mencione os Fiéis de Deus, Fritz Teixeira de Salles indica uma fonte de pesquisa que não deve ser descartada:

O fato de as irmandades religiosas do século XVIII serem obrigadas a remeter seus estatutos a Lisboa, para aprovação da Coroa, fêz com que estas corporações cuidassem carinhosamente dêsses livros de compromissos, o que contribuiu para a sua conservação até aos nossos dias. São hoje numerosíssimos, constituindo um valioso manancial. (Salles, 1963:12)

Outros arquivos não podem ser descartados, como o da Arquidiocese de Mariana e o da Casa Setecentista, localizada na mesma cidade.

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O desenvolvimento do projeto apontou ainda para outra possibilidade em meio urbano: um provável escritório do Tribunal do Santo Ofício, na cidade de Paracatu, também remanescente do denominado Ciclo do Ouro.

A história tradicional da Instituição não registra a implantação do Tribunal do Santo Ofício em território brasileiro. As acusações e os crimes praticados no Brasil deveriam ser encaminhados e julgados no Tribunal de Lisboa. A ação inquisitorial fora do Reino não era por isso menos impactante; estava enredada em uma malha diversificada e de razoável eficiência, valendo-se de agentes específicos, do método das denúncias e das Visitações de além mar.

Apesar de nunca ter sido implantado no Brasil como em Portugal, o Tribunal da Inquisição esteve presente e atuante na Colônia. Os Livros dos Culpados, a Memória dos Autos-de-fé, bem como os processos inquisitoriais revelam que, até o século XIX, cerca de dois mil brasileiros foram presos, julgados e condenados em Portugal. (Fernandes, 2000:107)

Contrários a esta versão histórica, que pode ser considerada oficial, existem alguns indicadores que apontam para a possível existência de um escritório do Santo Ofício nas Minas de Paracatu. Quem se refere ao fato, com alguns detalhes, é Oliveira Mello, em várias de suas obras sobre a cidade.

Quando foi construída a Igreja Matriz, por volta de 1750, como seu anexo foi também construída a sede do Tribunal do Santo Ofício, atrás do grande templo, com ligações subterrâneas ocultas. Nessa época o padre Mendes contava com mais de 20 sacerdotes auxiliares. Tinham que obedecer rigorosamente à pesada disciplina e guardar segredo do que se fazia, principalmente com referência às masmorras. (Oliveira Mello, 2005:80)

Igreja Matriz de Paracatu. Fonte: Acervo do Laboratório de Arqueologia da Fafich/UFMG.

O autor associa essa edificação principalmente ao famoso Padre Antônio Mendes Santiago. Também são citados como agentes do suposto escritório o Padre Viríssimo Rodrigues Rangel, enquanto Visitador Geral do Santo Ofício,

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o Padre Manuel Gomes Bravo, chefe das torturas, e o Padre Izaú Diniz de Carvalho, escrivão. Do que se depreende das esparsas informações, teria sido uma estrutura análoga à dos tribunais inquisitoriais ibéricos.

Oliveira Mello (2005) cita ainda alguns presos no suposto edifício inquisitorial acusados do crime de judaísmo: eram os cristãos-novos Antônio Ribeiro Sanches e João Henriques.

Antônio Ribeiro Sanches era médico, solteiro, originário de Monforte, em Portugal, filho de Manuel Nunes Ribeiro, lavrador, e Ana Nunes. Foi acusado e condenado por judaísmo (Processo n.11.603). Preso em 30 de outubro de 1747, a data do Auto de fé foi 20 de outubro do ano seguinte. Sua sentença foi cárcere e hábito penitencial perpétuo, com confisco de seus bens (1 mulato e 1 mulata de 6 anos, Botica). Este médico teria instalado um consultório em Ouro Preto com o colega Diogo Correa do Vale, associado a João Henriques (Salvador, 1992:18, 53; Veiga, 1998:913; Grinberg, 2005:184; Novinsky, 2002:64; Wolff, e Wolff, 1991-1992:54; Fernandes, 2000:98, 135).

João Henriques era boticário, solteiro, originário de Vila de São Vicente da Beira, Guarda, no Reino de Portugal, filho de João Henriques, também boticário, e de Maria Gomes, cristã-velha. Acusado e condenado por judaísmo (Processo n.8.378), foi preso em 25 de janeiro de 1747 e seu Auto de fé foi o mesmo citado anteriormente (20 de outubro de 1748). Segundo a sentença, teria sido relaxado à justiça secular, com confisco de seus bens (Botica, baú) (Fernandes, 2000:98, 120; Novinsky, 2011:169; Novinsky, 1976:135; Wolff e Wolff, 1986:93, vol. 1; Novinsky, 2002:123, 124; Grinberg, 2005:173, 184; Veiga, 1998:913). Para José Gonçalves Salvador (1992:53), seus serviços prestados à população de Paracatu teriam sido de inestimável valor, até ser detido e penitenciado pelo Santo Ofício.

Estes dois condenados são nomes citados, de forma recorrente, em listas de cristãos-novos da cidade de Paracatu, em associação com a notícia da instalação de uma estrutura inquisitorial em terras mineiras.

O Padre Antônio Mendes Santiago, personagem central nesse enredo, era uma figura de grande renome nas Minas, particularmente na microrregião Sanfranciscana de Januária. Teve, junto à família Cardoso, participação proeminente nos Motins do Sertão, revolta ocorrida em 1736 contra a tentativa da Coroa de implantar a capitação. A revolta teria sido também uma tentativa de enfraquecer a autoridade do Estado colonial na região do São Francisco, então dominada por grandes famílias (Vasconcelos, 1948).

A revolta fracassou, em parte disso devido à impaciência do próprio Padre Santiago, que não aceitou esperar reforços apoderando-se de São Romão. Porém, em apenas três dias, suas tropas foram expulsas por Domingos Alves Ferreira Maciel, chefe do Acari. O padre não recebeu qualquer punição, apesar de uma ordem de prisão vinda do Rei. A impunidade parece indicar sua inserção em uma vasta rede clientelista naqueles sertões. Segundo Marcos Spagnuolo Souza (2002), teria sido a relação com o bispo de Pernambuco a origem da imunidade

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do Padre. Este não teria sofrido as consequências de um crime que levou à cadeia e ao degredo outros membros da elite do São Francisco.

Houve, portanto, o que se diz anistia; e tanto que em relação ao Padre Santiago, a quem Sua Majestade mandara, por carta de 9 de abril de 1733, prender como chefe sedicioso, também o vemos livre e continuando em suas proezas como vigário de S. Romão e do Paracatu, sem o menor embaraço a todo tempo. (Vasconcelos, 1948:168-169)

Sobre a vida particular do Padre Santiago, “tipo clerical de seu tempo, no sertão” (Vasconcelos, 1948:353), há um conjunto de informações nas obras de Oliveira Mello, Diogo de Vasconcelos, e no trabalho de Marcos Spagnuolo Souza. Entretanto, nosso foco, para além da vida do clérigo, está no Tribunal do Santo Ofício, em tese administrado por ele nas Minas Gerais do século XVIII. No Arquivo Nacional da Torre do Tombo existe a Diligência de Habilitação de António Mendes Santiago (Padre) (Arquivos da Torre do Tombo. Código de Referência: PP/TT/TSO-CG/A/008-001/2943). Refere-se a uma diligência requerente do cargo de Comissário do Santo Ofício, a função inquisitorial de maior hierarquia na Colônia, estando ela submissa apenas a dos Inquisidores de Lisboa. As outras funções próprias da Colônia eram os “notários”, cristãos velhos, com o encargo de redigir termos e certidões, e os “familiares”, que atuavam de forma auxiliar, na notificação e confisco de bens, entre outras atividades.

Na ausência de um visitador, o comissário tinha grande autonomia no tocante aos crimes contra a Igreja. Talvez por isso, ao Padre tenha sido dada a possibilidade de edificar e administrar um Tribunal em Paracatu. Seria esse, contudo, um evidente caso de abuso de poder. No campo de atuação dos comissários, não cabia fazer julgamentos de crimes contra a Igreja, e certamente a instalação de um Tribunal também não consistiria numa atribuição legal.

A aceitação do Padre no rol de Comissários da Colônia, embora não comprove a existência de um Tribunal, pelas razões expostas, acrescenta ao caso de Paracatu mais um dado intrigante: o Padre Antônio Mendes tinha, de forma concreta e manifesta, uma ligação com o Santo Ofício. Levantar mais dados sobre este caso é necessário, embora difícil, já que historiadores não têm se preocupado com as informações esparsas sobre o padre Santiago e suas práticas inquisitoriais nos sertões do São Francisco. De fato, é difícil crer em uma história que contraria toda a abordagem já consagrada e, além disso, muitas das evidências que poderiam confirmar a existência do mencionado escritório teriam se perdido com sua destruição:

Por ordem do marquês de Pombal, em 1772, o padre José Ribeiro de Assis mandou demolir a sede do Tribunal do Santo Ofício, fazendo com que não permanecesse nenhum vestígio de tão odienta construção. O bacharel José Gregório de Moraes Navarro, ao chegar a Paracatu, em dezembro de 1799, para criar a Vila, um dos seus primeiros atos foi visitar onde se edificava o famigerado Tribunal, a fim de mencionar

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em seu relatório. Nada encontrou a não ser informações dos mais antigos. (Oliveira Mello, 2005:80)

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Transferindo o foco do meio urbano para o meio rural, merecem registro propriedades (fazendas, pousos, estalagens) que pertenceram a cristãos-novos e que, por suas localizações, possuem potencial favorável à preservação enquanto vestígios ou sítios arqueológicos.

Afirma José Gonçalves Salvador, quando trata da relação entre “os cristãos-novos e a economia interna das Minas Gerais”, que:

Entre os primeiros sesmeiros sabemos de Garcia Roiz Pais e de seu cunhado Manoel Borba Gato, diversos dos Pedroso Barros e dos Bicudos, além de Lucas de Freitas de Azevedo, cunhado do pe. Mendanha; Joseph Ventura de Mendanha Soto Maior; Baltazar, Gaspar e Francisco de Godoi Moreira; os Rendon; o sargento-mor Manoel Lopes Medeiros, casado com Maria Rendon; Bartolomeu Pais de Abreu. José Rodrigues Betim, Diogo Bueno da Fonseca; Francisco de Arruda de Sá, descendentes dos Fernandes, de Sorocaba, e dos Correa do Vale, do Rio de Janeiro, o cristão-novo Manuel Nunes Bernal (1720), junto ao Rio Bocaxá. (Salvador, 1992:37; itálico nosso)

A condição de cristãos-novos dos dois primeiros citados encontra-se na listagem de cristãos-novos residentes nas Minas Gerais, entre 1712 e 1763, feita por Neusa Fernandes (2000, anexo), segundo quem é

importante assinalar que vários dos mais conhecidos bandeirantes e entradistas, descobridores do ouro e de pedras preciosas, eram meio cristãos-novos, como Garcia Rodrigues Paes, ou cristãos-novos inteiros, como Antônio Rodrigues Arzão, Manoel Borba Gato, Duarte Nunes, Bartolomeu Bueno da Silva e Antônio Raposo Tavares. (Fernandes, 2000:88, itálico nosso)

É sobejamente conhecido o fato de Garcia Rodrigues Paes e Manoel Borba Gato, na condição de bandeirantes, estarem presentes (juntamente com Fernão Dias) em importantes acontecimentos das Minas Gerais, relacionados, principalmente, à descoberta / exploração de metais e pedras preciosas e ao povoamento do território mineiro em fins do século XVII e princípios do século XVIII.

O famoso Fernão Dias Pais, apesar de velho, largava São Paulo à procura das esmeraldas, levando em sua companhia, além de outros paulistas e grande números de índios, o filho Garcia Rodrigues Pais e o genro Manoel de Borba Gato. Isto a 21 de julho de 1674. Andaram pelo sertão durante anos, parando aqui e ali, para o plantio de roças, que, posteriormente, deram origem a alguns povoados. Chegaram até Serro Frio, âmago do Brasil, local exato da Sabaráboçu tão encantada. (Salvador, 1992:276)

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Em função de serviços prestados e de suas conquistas, o filho de Fernão Dias obteve títulos de fidalgo e guarda-mor das Minas. Entretanto,

apesar de todo o prestígio de Rodrigues Pais, foi-lhe recusado ser membro da Ordem de Cristo por “impedimento de sangue”, em virtude de suas origens judaicas. Foi denunciado à Inquisição. (Bromberg, 1984:91)

Ao contrário de seu cunhado, a condição de cristão-novo de Borba Gato, “filho de João de Borba e de sua mulher Sebastiana Rodrigues e foi casado com Maria Leite” (Franco, 1989:182), não é consensual, embora a de sua esposa seja mais evidente. Maria Leite era irmã de Garcia Rodrigues Paes, e a família de ambos

estava entrelaçada com outras da progênie cristã-nova, como a dos Betim (Beting) e a dos Vaz de Barros. Seu progenitor foi o notável sertanista Fernão Dias Pais, Governador das Esmeraldas, casado com Maria Garcia Betim, a qual, por sua vez, procedia dos Fernandes de linhagem hebréia, conforme revelam diversos documentos, a exemplo de um processo de habilitação à Ordem de Cristo, em 1710, onde se lê que honraria lhe foi negada por achar-se ‘infamado de christão novo por parte de sua Avó materna por fama constantes’. (Salvador, 1992:7)

Supostamente relacionados aos bandeirantes em questão, existem dois sítios arqueológicos com grande potencial para pesquisa.

Um deles, a Estalagem da Lavrinha, segundo a tradição oral da região, teria pertencido aos “irmãos Garcia” (filhos de Fernão Dias) dos quais se destaca Garcia Rodrigues Paes.

O nome “Lavrinha” é uma alusão à existência de lavras minerais na região, cujos vestígios ainda hoje são observados nas imediações das ruínas da fazenda. A origem da estalagem remonta pelo menos ao século XVIII, tendo sido representada na Carta Topographica do Termo de Villa Rica, em q’ se mostra os Arrayaes das Catas Altas da Noroega, Itaberava, e Carijós lhe ficarão mais perto, q’ ao da Villa de S. José e a q’ pertencem, e igualmente o de S. Antonio do Rio das Pedras, q’ toca ao do Sabará, o q’ se mostra, pela Escala ou Petipe de léguas, de Cláudio Manoel da Costa e datada de 1766 (Costa, 2005:222).

No século XIX são poucas as referências à localidade. Johann Pohl, em passagem pela região, menciona a venda ali existente e uma pequena lavra de ouro: “Chegamos à Venda Lavrinha, no Ribeirão Mata-Cavalos, onde há uma pequena lavra de ouro” (1976:409). O engenheiro Demerval Pimenta, ao pesquisar o itinerário da Estrada Real, no início da década de 1970, menciona Lavrinhas como ponto de referência em um dos trajetos: “continua até o Alto do Morro, na Serra do Ouro Branco, Lavrinhas, e vai ao Pouso do Chiqueiro” (1971:27-28).

O conjunto de vestígios que constitui o sitio arqueológico Estalagem da Lavrinha foi identificado pelo projeto Levantamento Histórico-Arqueológico

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da Estrada Real no trecho de Ouro Branco a Ouro Preto/MG financiado pela FAPEMIG e desenvolvido no ano de 2007 pelo Laboratório de Arqueologia da Fafich/UFMG.

O sítio está localizado no alto da Serra do Ouro Branco, no segmento da estrada que dava acesso a Ouro Preto. Os vestígios remetem à existência de edificações e muros de pedra, em terreno levemente inclinado em meio à mata secundária, além de segmentos de estradas antigas com arrimos de pedras e vestígios de lavras minerais.

Informações orais indicam que as edificações da Estalagem entraram em arruinamento há muitos anos e, na década de 1980, parte das pedras que as compunham foram retiradas e utilizadas na reforma de uma fazenda da região, transformada em pousada. Atualmente, os vestígios são alvo constante de vândalos, sendo frequentes a derrubada de árvores e a retirada de pedras do local.

Outro sítio arqueológico com potencial está localizado no município de Baldim, onde a tradição oral identifica uma fazenda como tendo pertencido a Borba Gato.

Limitada em parte pelo Rio das Velhas e atualmente conhecida como Fazenda da Chácara, a propriedade apresenta vestígios de estrada cavaleira (antiga), açude e canais escavados no terreno, além de uma grande cava de mineração com montes de rejeito (cascalho). Vestígios da sede original poderão possivelmente ser identificados em área de um antigo pomar, onde ocorrem jabuticabeiras centenárias.

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Outro bandeirante e cristão-novo a merecer referência é Lucas de Freitas de Azevedo. Sua condição aparece na Listagem de Cristãos-Novos residentes nas Minas Gerais entre 1712 e 1763 (Fernandes, 2000:170).

Paulista, filho do capitão-mór Domingos de Freitas de Azevedo (...) Lucas de Freitas de Azevedo aparece em Serro-Frio, logo após o seu descobrimento (...) em 1701. Ali minerou ouro e fundou uma fazenda de criar, obtendo uma sesmaria, dada pelo governador d. Brás Baltazar da Silveira, em 24 de janeiro de 1717. (...). Foi casado nas Minas-Gerais, com Isabel Mendanha Soutomaior, irmã do primeiro vigário encomendado da então vila do Príncipe, o padre Antônio de Mendanha Soutomaior. (Franco, 1989:52, 53)

A Carta de sesmaria de Lucas de Freitas de Azevedo, datada de 1717, está publicada na Revista do Arquivo Público Mineiro (1988:68), e nela merecem destaque as referências à Vila do Príncipe, na comarca do Serro Frio, e ao rio Jequitinhonha.

As informações da Carta de Sesmaria remetem à cartografia do século XVIII, que às vezes permite a localização de grandes propriedades rurais,

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bem como de estalagens, igrejas e núcleos urbanos que eram utilizadas como referências por cartógrafos e viajantes.

A propriedade de Lucas aparece nesta cartografia antiga em exemplares de 1731 e de 1804 – o que demonstra a permanência da propriedade ao longo do tempo e a sua importância nos dois momentos; em que pese o fato de sua localização não ser precisa quando se compara um mapa com o outro.

O primeiro mapa, de 1731, é a Carta Topographica das Terras entremeyas do sertão e destrito do Serro do Frio com as novas minas dos diamantes. offerecida ao Eminentissimo Senhor Cardeal da Mota. Por Jozeph Rodrigues de Oliveyra, capitão mandante dos dragões daquelle Estado (Costa, Renger, Furtado e Santos, 2002); o segundo é a Carta Geographica da Capitania de Minas Geraes (Costa, Renger, Furtado e Santos, 2002), datada de 1804 e de autoria de Caetano Luiz de Miranda. Em ambas, a propriedade de Lucas é representada na comarca do Serro Frio, próxima ao rio Jequitinhonha. Cabe registrar o elemento de imprecisão: cada um dos mapas coloca a propriedade em um lado diferente do rio Jequitinhonha.

Segundo Francisco de Assis Carvalho Franco (1989:52), Lucas de Freitas de Azevedo era cunhado do Padre Antônio de Mendanha Soutomaior, distinto por ser o primeiro vigário encomendado do Arraial de Vila do Príncipe. Era figura conhecida, tanto por sua fortuna em escravos e fazendas, quanto por seu pai, o Capitão Luiz Vieira de Mendanha Soutomaior, um dos grandes produtores de açúcar do Brasil Colonial.

Sobre o Padre Antônio de Mendanha Soutomaior, diz Francisco Klors Werneck (1957-1958), baseado em documentos referentes a habilitações da Ordem de Cristo (Torre do Tombo, maço 12, n.27), que ele não foi aceito pela Ordem por suspeita de sangue judeu. Grande parte dos inquiridos aponta seu avô pelo lado paterno, João Vieira de Carvalho, como cristão-novo. Também é sabido que seu irmão, Luiz Vieira de Mendanha (homônimo do pai), era casado com uma cristã-nova, assim como o próprio padre, que, antes de se tornar clérigo, fora casado com uma: Maria da Fonseca Coutinho. Werneck revela ainda que algumas das filhas do Capitão Luiz Vieira (pai), irmãs do Padre, foram casadas com cristãos-novos. Uma delas era Isabel de Soutomaior, casada com Lucas Freitas.

Apesar das suspeitas sobre a família Mendanha, é necessário relativizar as informações. A recusa ao pedido de habilitação do Padre é um forte indício, bem como os matrimônios envolvendo cristãos-novos. Há, porém, documentos inquisitoriais onde o Capitão Luiz Vieira de Mendanha (filho) é citado como cristão velho (PP/TT/TSO-IL/028/05340; PP/TT/TSO-IL/028/06887; PP/TT/TSO-IL/02804089), condição que se estenderia possivelmente a seu irmão, o Padre Mendanha, e à esposa de Lucas, Isabel de Mendanha. José Gonçalves Salvador, em Os cristãos-novos em Minas Gerais durante o ciclo do ouro (1695

- 1755): relações com a Inglaterra (Salvador, 1992:18-20, 40, 162), cita o Padre Mendanha como um clérigo cristão-novo, embora não esclareça a fonte da informação.

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Ainda entre as possibilidades de pesquisa no meio rural, merecem citação as ruínas de Macabelo.

Informações importantes sobre Macabelo foram identificadas inicialmente através da pesquisa Cristãos-novos na Estrada Real: subsídios para um roteiro interpretativo realizada pelo Instituto Histórico Israelita Mineiro, sob coordenação da professora Maria Antonieta Amarante de Mendonça Cohen (2003). Seu objetivo era levantar informações históricas relativas à presença judaica e/ou cristã-nova em trechos da Estrada Real (da microrregião de Conselheiro Lafaiete a Sabará), através de pesquisa com documentação escrita, em arquivos, paróquias, museus e também através de trabalhos de campo. Os resultados evidenciaram referências ao local denominado Macabelo tanto em mapas atuais como antigos (da região que hoje corresponde ao município de Santana dos Montes), além de cartas de sesmarias e de um roteiro de viagem publicado no início do século XVIII.

Cabe ressaltar que foram identificadas variações na forma da escrita e a análise do topônimo (através de fontes escritas e orais) revelou a alternância entre as formas: Macabelo, Mau Cabello, Mau Cabelo, Macabello, Mão Cabelo e Má Cabelo. Sobre o termo, Lima Jr. afirma que

esse nome Macabelo quer dizer cristão novo judaizante e disposto a enfrentar o Santo Ofício. Da relação publicada por Warnhagen, de judeus remetidos á Inquisição de Lisboa nesse tempo, constam vários de Vila Rica. Um deles deverá ter sido esse corajoso que deu nome ao lugar. Macabelo deriva de Macabeu. (Lima Jr., 1978:135)

Foi identificada, disponível no Arquivo Público Mineiro, a carta de sesmaria concedida a Joseph Duarte, possuidor de um sítio denominado mao cabello, datada de 1717 (Revista do Arquivo Público Mineiro, 1988. Fonte Documental: APM, SC12, f.5v/6r, 1988) e a carta de sesmaria doada a Manoel dos Reyes, datada de 1757, na qual a referência é à paragem chamada má cabello (Revista do Arquivo Público Mineiro, v.II. Fonte Documental: APM, SC119, f.17v/18r).

Por sua vez, a denominação Macabelo encontra-se em publicação editada em Sevilha, no ano de 1732, de autoria atribuída a Francisco Tavares de Brito, denominada Itinerário geográfico com a verdadeira descripção dos caminhos, estradas, rossas, citios e serras que há da cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro ate as Minas do Ouro (Brito, 1972). Nessa obra, o autor menciona Macabello no Caminho Novo, cuja implantação remonta a princípios do século XVIII.15

O Itinerário atribuído a Tavares de Brito é um roteiro a ser usado por

15 Cabe ressaltar que o cristão-novo Garcia Rodrigues Pais “foi responsável pela organização da primeira expedição desbravadora e fundadora de Minas Gerais, construindo o chamado

‘Caminho Novo’, conhecido também como ‘Caminho do Comércio” (Novinsky, 2011:163).

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aqueles que se deslocassem para a região das Minas, seguindo o trajeto chamado de Caminho Novo (atualmente identificado como um segmento da denominada Estrada Real), com indicações dos recursos de infraestrutura e abastecimento à disposição dos viajantes.

A condição de cristão-novo de Tavares de Brito e seu objetivo de facilitar a fuga de outros cristãos-novos, com a elaboração do Itinerário, é proposta por Lima Jr.:

Os cristãos-novos que desde o primeiro instante correram para as Minas, fugindo das fogueiras do Santo Ofício, organizavam roteiros para os que necessitavam fugir de suas terras da Europa, e atingirem as Minas de ouro e dos diamantes. Deles, além das informações de Jacob e de Castro Sarmento, médico judeu português, que de Londres fazia a propaganda do novo “Eldorado”, existe um trabalho escrito e publicado secretamente em Sevilha, pelo cristão novo Francisco Tavares de Britto e cautelosamente distribuído aos interessados em escapar das purificações dos frades pregadores. (...) O folheto não tem Licença Régia nem do Santo Ofício. É publicação clandestina e o aparente tipógrafo, Antônio da Silva, é nome de cristão novo. (Lima Jr., 1965:133)

No atual município de Santana dos Montes, na micro-região de Conselheiro Lafaiete, existem ruínas, cuja denominação vai de Macabelo a Mau Cabelo, sendo amplamente conhecidas pela tradição oral da região. A localização é compatível com as referências do Itinerário geográfico de Tavares de Brito, considerando que este remete ao Caminho Novo, conforme mencionado anteriormente.

O sítio arqueológico foi identificado inicialmente pela equipe do Instituto Histórico Israelita Mineiro e recentemente recebeu visita da equipe do Laboratório de Arqueologia da Fafich/UFMG.

Foram identificados vestígios de um moinho com base de pedras (sobre o qual foi construída uma edificação recente reaproveitando a estrutura antiga), segmentos de estradas cavaleiras antigas além das ruínas de uma antiga e grande edificação rural, da qual restaram os alicerces de pedras.

Após a identificação desta localidade e das ruínas referidas, surgiu, no contexto da pesquisa, uma outra possibilidade a ser registrada.

Como o texto de Tavares de Brito faz referência a três possibilidades de roteiro, a confrontação entre eles e alguns mapas antigos levantam a possibilidade de que Macabelo se refira a mais de um lugar, como anteriormente também já foi sugerido também pela professora Antonieta A. M. Cohen (2003), do Instituto Histórico Israelita Mineiro.

Assim, teria existido um Macabelo hoje localizado no município de Santana dos Montes (divisa com Conselheiro Lafaiete) e outro localizado entre Vila Rica e Ouro Branco, ao pé da serra de Itatiaia. Um mapa da região de encontro entre estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, do século

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XVIII, permite a identificação desta segunda localidade (Costa, 2007:118). O cruzamento destas informações aponta para uma maior plausibilidade no que diz respeito a identificar, de forma mais consistente, a segunda localidade com aquela referida no texto atribuído a Tavares de Brito. A pesquisa arqueológica por certo poderá resolver a questão.

Segundo Fábio Honorato de Paula, a localidade Macabelo, situada possivelmente entre Conselheiro Lafaiete e Ouro Branco, em Minas Gerais

“requer estudos mais aprofundados, uma vez que foi considerada como pouso seguro para os cristãos-novos fugitivos da inquisição, em 1731” (Paula, 2002). A referência, embora vaga, também parece remeter à segunda localidade.

***

À guisa de considerações finais, o desenvolvimento dos trabalhos permite algumas ponderações. Os resultados atingidos podem ser considerados consistentes do ponto de vista metodológico na medida em que permitem a definição de estratégias para a continuação da pesquisa. Na primeira fase, foram concluídos o desenvolvimento da versão 1.0 do banco de dados; o levantamento bibliográfico preliminar; a alimentação sistemática do banco de dados com as informações levantadas e o cruzamento (filtros) das informações, o que permitiu a identificação de potenciais sítios arqueológicos, a serem trabalhados na segunda fase do projeto.

A quantidade de informações produzidas permitiu uma avaliação razoavelmente precisa do potencial destas, uma vez que foi grande o número de cristãos-novos e criptojudeus que participaram, efetivamente, do processo histórico-social de formação da Capitania das Minas Gerais. Cabe ressaltar a inegável participação dos cristãos-novos na “cultura mineira”, que apresenta, ainda hoje, significativa quantidade de elementos, originários da cultura judaica.

Os resultados atingidos confirmam a possibilidade de localizar sítios arqueológicos remanescentes de ocupação por parte de cristãos-novos. Este estudo pode contribuir para a ampliação do conhecimento a respeito do cotidiano de uma expressiva parcela da população que participou do processo de formação das Minas Gerais no século XVIII.

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Parte IV - Heresias do Novo Mundo

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13.

Catolicismo ilustrado e feitiçaria no mundo português1

Evergton Sales Souza

Portugal e o mundo português jamais conheceram verdadeira caça às bruxas. Entre nós a caça foi mesmo aos cristãos-novos, ainda que possamos detectar, em menor escala, a perseguição a outros grupos sociais. José Pedro Paiva mostrou com muita competência esta realidade em seu Bruxaria e superstição (1997). Isso, entretanto, não quer dizer que teólogos portugueses e o próprio Santo Ofício não tenham se preocupado com questões relativas à feitiçaria e à bruxaria. Registros inquisitoriais e textos diversos mostram que o mundo lusitano não esteve alheio ao problema da bruxaria.2 A ausência de uma literatura portuguesa específica sobre bruxaria e demonologia não deve ser entendida como desconhecimento ou menosprezo dos teólogos em relação a estas questões. Ela é um forte indício, isso sim, de que o problema não se constituía em uma preocupação central para a sociedade portuguesa. Entretanto, o conhecimento dos tratados sobre o assunto, bem como de demonólogos como Nicolas Remy, Martin Del Rio, Jean Bodin, Torreblanca Villalpando e outros é atestado pelas frequentes citações desses autores por intelectuais portugueses que abordaram o assunto em obras de caráter mais geral, bem como nas referências feitas aos mesmos autores em várias constituições sinodais.3 Ainda que não tenham sido tão numerosos os casos qualificados pelo Santo Ofício como bruxaria,4 não há dúvida de que, durante

1 Este artigo é fruto de pesquisas que contam com apoio da Fapesb e do Cnpq. Sou muito grato ao colega Pedro Villas Boas Tavares, da Universidade do Porto, pelos valiosos comentários e sugestões feitos a uma versão preliminar deste artigo.2 Há uma importante bibliografia que trata do assunto. Vale destacar, dentre outros, os traba-lhos de Laura de Mello e Souza (1986; 1993), Francisco Bethencourt (1987), Daniela B. Calainho (2008) e Luiz Mott (2006).3 Veja-se, dentre outras, as Constituições primeiras do arcebispado da Bahia (1719), que na parte em que trata de feitiçaria e pacto diabólico (§§ 894 a 902), em suas notas, faz referência a autores como Martin Del Rio e Torreblanca Villalpando (Cf. Feitler e Souza, 2010). 4 Uso, neste caso, uma definição mais restrita do conceito de bruxaria que não pode ser disso-ciada do pacto com o demônio. É importante, entretanto, salientar que, no mundo português, a perseguição às práticas mágicas nem sempre se prendeu à dimensão do pacto diabólico. Foi comum a perseguição à feitiçaria como resultado de práticas supersticiosas. Ver sobre o assunto o verbete de José Pedro Paiva, “Stregoneria in Portogallo” (2010:1530-1533).

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muito tempo, a ideia do pacto não sofreu maiores contestações em Portugal.5

Em países como a França e a Inglaterra, nota-se nos meios intelectuais, já a partir da segunda metade do século XVII, o refluxo das teorias demonológicas.6 No mundo português o quadro é diferente, pois foi necessário esperar até a segunda metade do século XVIII para encontrar um questionamento aberto à realidade da bruxaria.7 Exemplo da permanência das teorias demonológicas em Portugal, nas primeiras décadas dos setecentos, encontra-se no verbete Feiticeiro, do Vocabulário português e Latino de Bluteau, publicado em inícios do século XVIII. Lê-se que é feiticeiro aquele “que com arte diabólica, e com pacto explícito ou implícito faz cousas superiores às forças da natureza. Contra a obstinação de certos incrédulos, ou ateus que por não confessarem que há Deus no mundo, negam haja Demônios, e pelo conseguinte não admitem feitiços temos provas e certeza deles na razão, na experiência e na Sagrada Escritura” (Bluteau, 1712–1728:64, vol. 4).

Pode-se, igualmente, observar a permanência da crença na materialidade dos pactos diabólicos – e dos seus desdobramentos – em processos inquisitoriais que explicitam a lógica condutora do pensamento dos inquisidores. Eis um exemplo. No inverno de 1719, a jovem sóror Joana Maria da Nazaré, religiosa professa na primeira regra de Santa Clara, do convento das flamengas de Alcântara, em Lisboa, era atendida pelo Santo Ofício em seu desejo de confessar humildemente suas culpas e manifestar seu arrependimento em relação aos graves pecados que dizia ter cometido. Tratava-se do início do segundo processo contra esta freira de 20 anos, que dois anos antes já havia confessado culpas similares àquelas em que novamente teria incorrido. Em sua confissão, dizia que

sentira de noite pôr-se-lhe um peso sobre o Corpo, que pela repetição das vezes, que a afligio tivera alguma presunção de ser obra do Demônio; e que a este invocara muitas vezes vendo-se gravemente oprimida de estímulos sensuais dizendo “Demônio aparece-me, e consegue-me este apetite seja como for”, de que rezultara experimentar, que sobrevindo-lhe o dito peso a penetrara com venérea deleitação que sentia, como

5 A insistência dos inquisidores em indagar aos réus acusados de práticas mágicas sobre a reali-zação de pacto diabólico, bem como a presença do assunto nas confissões dos réus em processos inquisitoriais que se estendem do século XVI ao XVIII, denota a difusão e aceitação dessas idéias no mundo português. 6 Para o caso francês ver, entre outros, Alfred Soman (1992), que combate, corrige e completa trabalhos mais antigos como o de Robert Mandrou (1968) e o de Robert Muchembled (1979). Para a Inglaterra ver o clássico de Keith Thomas ([1971] 1991) e J. A. Sharpe (1996). Para uma notícia mais abreviada acerca do declínio da perseguição às bruxas nesses e noutros países ver também Bengt Ankarloo e Stuart Clark (1999:3-94 e 191-218 especialmente). 7 Do ponto de vista da doutrina geral sobre o assunto, o quadro fica inalterado até meados do século XVIII. Mas pequenas mudanças observadas no procedimento dos inquisidores ao longo do século XVII e primeira metade do século subsequente apontam para uma tendência mais racionalista na abordagem da questão – ainda que esta tendência não seja compartilhada por todos. Ver, notadamente, José Pedro Paiva (1997:81-86).

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se com pessoa do sexo masculino tivera ajuntamento carnal”. (Arquivo Nacional da Torre do Tombo [ANTT], Tribunal do Santo Ofício [TSO], Inquisição de Lisboa [IL], processo 08281-1, f. 38)

Atormentada e tomada por desejos lascivos, a jovem religiosa, usando seu próprio sangue, escreve um bilhete ao demônio no qual oferecia uma mecha de seus cabelos em sinal de que lhe pertencia e prometia que se lhe mudasse o seu sexo de feminino em masculino tornar-se-ia sua escrava. Não cabe aqui acompanhar e analisar detalhadamente o caso dessa pobre freira. Trazê-lo à tona é, todavia, necessário a fim de melhor compreendermos a posição dos inquisidores num caso envolvendo suspeita de pacto diabólico, real objeto de nosso interesse. Após ouvirem a ré várias vezes, os inquisidores chegaram à opinião de que os atos torpes confessados por ela não eram frutos de sua imaginação, mas de ação do demônio incubo. Para eles, todos os indícios apontavam para a existência de agente diabólico e exterior “que causava os tais efeitos em corpo fantástico” (ANTT, TSO-IL, proc. 08281-1, f. 39). Notam, nesse sentido, que a religiosa só veio a experimentar a penetração após ter invocado o demônio para conseguir o seu intento, sensação que se repetiu mais vezes depois que lhe escreveu o bilhete. O fato, por exemplo, de a ré afirmar ser o corpo que sentia sobre si umas vezes frio e outras cálido, era visto como sendo “conforme às disposições da matéria elementar, de que forma o Demônio o dito corpo, quando com ele não representa determinada pessoa como diz Torreblanca, e os mais autores que cita” (ANTT, TSO-IL, proc. 08281-1, f. 39). Não deixa de ser interessante observar que os inquisidores também criam no poder do demônio para mudar o sexo da pessoa8 – crença que encontrava amparo em autores como Paolo Zacchia (1660), Martin Del Rio (1603), Torreblanca Villalpando (1678) e Anselmo Dandini (1703).9

8 Sobre a mudança de sexo que Joana Maria da Nazaré queria alcançar, dizem os inquisidores se devia reputar bem mais “o dito animo por acto de hua vontade depravada, do que por erro do entendimento”. “Além do que o animo da Re não foi puro, e absoluto, senão condicional, e só no cazo que o Demonio lhe mudasse o sexo, termos em que como faltou a condição não se chegou a aperfeiçoar o acto, como era necessário para haver herezia formal, que conforme dizem os DD. Se constitue por acto perfeitam.te consumado, o que se não pode verificar de hum condicional, que por falta da condição não chegou a ser puro e completo, como o não foi o animo da Ré: Nem tão bem obsta o dizer a Re que entendia que o Dem.o lhe podia mudar o sexo, porq.to admittindo os DD. Com Paulo Zaquiae nas questoens Legaes, Delrio, e Torreblanca haver já socedido se-melhante mutação procedida das dispoziçoens do corpo humano, concedem o mesmo Delrio e Dandino, que a dita mutação não excede o natural poder do Demonio sendo do sexo femenino p.a o masculino, que como para mais perfeito ajuda a propenção da natureza” (ANTT, TSO-IL, proc. 08281-1, f. 40). Como assinala o inquisidor, a possibilidade da transformação do sexo feminino em masculino é aceita por vários autores (teólogos, juristas e médicos). O mesmo não acontece com a possibilidade de transformação de homens em mulheres. Veja-se, por exemplo, Isaac Cardoso (1673:461-464, lib. 6, quaest. XIV) que parece bem resumir as posições dos demo-nólogos a este respeito.9 No Caput. II, Sectio II, Subject. II, § 12, escreve: “Potest etiam Dæmonis ope sexus mutari, ut videtur sentire Del Rio loco cit. Quaest. 22 pag. 155. Litt. B, si intelligatur de conversione fæmina

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Poderíamos multiplicar os exemplos que denotam a crença, nos meios letrados, no poder do demônio e na materialidade dos efeitos de sua invocação, bem como do caráter verdadeiro dos efeitos nefastos oriundos do pacto estabelecido entre um ser humano e o demônio. Entretanto, isso se faz desnecessário, tendo em vista que há uma vastíssima literatura sobre o assunto (Clark, 2006, Bengt e Clark, 1999, 2002).10 Importa, agora, passar ao exame de outro momento, cujo traço marcante é o do estabelecimento de uma nova concepção nos meios letrados acerca dos efeitos materiais da intervenção demoníaca, que decorreria da invocação do demônio ou de um suposto pacto. De modo mais geral, pode-se dizer que se trata de uma mutação no modo de compreender a realidade dos poderes e práticas mágicas, que eram concebidas como tendo relação direta com o demônio, pois, como afirmava Gabriel Pereira de Castro, “omnes enim magicae operationes initiuntur pacto cum daemone celebrato” (1673:146, cap. LIII, § 23).

O novo Regimento do Santo Ofício da Inquisição, impresso em 1774, é um sinal claro dessa mudança.11 Nele, ficava patente o estabelecimento de uma nova maneira de pensar o problema do pacto diabólico, mostrando que no seio mesmo do Santo Ofício os ventos do racionalismo não deixaram de soprar. Ao tratar dos feiticeiros, sortilégios, adivinhadores, astrólogos judiciários e maléficos, o Regimento de 1774 esvazia a crença de que eles fossem dotados de poderes mágicos advindos dos pactos e de que pudessem, por tal meio,

“romper as leis fundamentais da ordem da natureza”. Do contrário, diz o mesmo, “ninguém escaparia aos estragos do ódio genial” dos espíritos malignos e “ninguém poderia refrear a péssima índole de todos os malvados que com eles se dizem conspirar, porque logo que todos eles se achassem livres quereriam alistar-se debaixo das bandeiras de Satanás para em causa comum extinguirem todos os viventes racionais” (Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal... 1774: 118-119, Livro III, Tit., XI). Há passagens do Regimento que são ainda mais explícitas a respeito da ruptura com o antigo modo do tribunal tratar o assunto. Numa delas pode-se ler que muitas pessoas aplicadas a estudos metafísicos e matemáticos, a fim de se fazerem reconhecer junto aos seus soberanos ou

para outros fins humanos e carnais, procuraram disseminar as especulações maravilhosas e os fatos preternaturais com que, abusando da inocência dos povos e

in Marem” (Dandini, 1703). Sobre este manual de inquisidores ver o verbete de Andrea Errera, “Manuali per inquisitori” (2011:975-981). 10 Em cada uma dessas obras há uma imensa bibliografia referida. Juntem-se a isso os verbe-tes e a bibliografia referida em Adriano Prosperi (2010), no qual se encontra o que há de mais relevante e recente na bibliografia sobre essa questão, inclusive com muitas referências sobre o mundo português.11 Ver sobre o assunto José Pedro Paiva (1997:88 e seg.). Ver também o excelente artigo de Pedro Vilas Boas Tavares (2002), sobre a posição do Regimento da Inquisição de 1774; em relação à feitiçaria ver Tavares (2002:190-191).

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fomentando neles a ignorância, acenderam no público aquele ardente fanatismo..., como praticaram, por exemplo, na Alta Alemanha, Fr. Henrique Institutor e Frei Diogo Sprenger, pela publicação da obra intitulada Malleus Maleficarum, na Baixa-Alemanha, o denominado jesuíta Martinho Del Rio, na outra obra intitulada de Magia, em Itália, Fr. Jerônimo Savanorola... em Portugal, o outro famoso jesuíta Antônio Vieira, abusando todos eles da escuridade dos tempos em que se liam com grande atenção quantas imposturas sonharam Nicolau Remigio, João Nider, Nicolau Jaquério e outros muitos sofistas e fanáticos da sua mesma índole. (Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal... 1774:120, Liv. III, Tit. XI).12

Assim, no decorrer de um parágrafo, o Regimento levava o tribunal a abjurar sua crença em opiniões de autores que, por praticamente dois séculos, foram tidas e havidas por corretas.

Os tempos eram outros. A pouca estima pelos demonologistas de outrora se vinculava à adoção de concepções mais racionalistas. Foi nessa conjuntura que se publicou, em 1775, uma obra traduzida do italiano pelo padre José Dias Pereira, vice-reitor do Colégio dos Nobres, intitulada Defesa de Cecilia Faragó, accusada do crime de feitiçaria, escrita pelo calabrês Giuseppe Raffaeli (1775).13 Era a primeira vez que um livro desse caráter circulava livremente em Portugal. E já em seu prefácio, provavelmente escrito pelo tradutor, ficava patente a força do ataque a ideias que até pouco tempo antes de sua publicação eram majoritariamente aceitas nos meios intelectuais, em particular eclesiásticos, portugueses. Segundo seu autor, a feitiçaria, assim como as histórias de fantasmas e lobisomens, fazia parte do arcabouço das superstições. E diz com todas as letras: “Passaram os tempos, em que se rendia cega, e profunda idolatria às extravagantes Disquisições Mágicas de Martinho Del-Rio. As grandes luzes que atualmente ilustram a Pátria afortunada, não consentem que só os Católicos da França e da Itália, leiam na língua materna as verdades do primeiro e terceiro capítulo desta Obra. Deve chegar a todos esta verdade, fundada nas santas escrituras” (1775, “Prefação”, s/p).

Antes, entretanto, de chegar ao público, o livro foi submetido ao crivo da censura portuguesa. Não foi no Santo Ofício que se decidiu a sorte da tradução publicada em 1775, mesmo porque, àquela altura, nada mais lhe competia em matéria de censura de livros. No ano anterior, o livro foi objeto de um longo

12 Sobre alguns dos autores e obras referidos na passagem acima, consultem-se os verbe-tes “Malleus maleficarum”, “Heinrich Kramer (Institor)”, “Jakob Sprenger”, “Johannes Nider”,

“Martín Anton Del Rio”, “Girolamo Savonarola” e “Demonologia” em Adriano Prosperi (2010). Sobre Nicolas Remy pode-se ver com utilidade o já centenário artigo de Christian Pfister (1907). Acerca de Nicolas Jacquier ver Matthew Champion (2009).13 O original italiano é Difesa de Cecilia Farago, inquisita di fattucchieria (Napoli, 1770). Sobre este caso ver Mario Casaburi (1996). José Pedro Paiva (1997:89), assinala a publicação desta obra como parte do movimento de racionalização que se desenvolve em Portugal, notadamente a partir dos anos 1750.

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parecer do dominicano Fr. José da Rocha,14 deputado da Real Mesa Censória, tribunal com jurisdição exclusiva, desde sua criação, em 1768, sobre o exame e censura dos livros no reino de Portugal. Desconheço documento mais significativo sobre o novo modo de conceber a feitiçaria em Portugal neste último quarto do século XVIII. Pretende-se, aqui, apenas descrever e analisar algumas passagens deste parecer que contribuem para a compreensão de importantes aspectos dessa mudança de sensibilidade religiosa e de paradigmas teológicos no mundo português da segunda metade do Setecentos.

Assinale-se, desde já, que as propaladas “grandes luzes” que então ilustravam Portugal, não foram suficientes para que o livro passasse sem qualquer problema pela Real Mesa Censória. Com efeito, embora tivesse sido concedida a licença para que se imprimisse, provavelmente pelo primeiro censor encarregado do exame da obra, a mesa julgou ser indispensável que se fizesse exame mais amplo e rigoroso, tendo em vista a delicadeza do tema. Ao defender a inexistência da arte mágica e tratar como enganos as maravilhas atribuídas aos feiticeiros, imputando sua causa à natureza ou à fábula, a obra poderia causar espanto àqueles que tinham por indubitável a existência da magia, pensavam alguns. Por isso, durante várias sessões foram discutidos os argumentos favoráveis e contrários à publicação do livro, tendo-se enfim concluído por “pluralidade de votos” que se devia deixar imprimi-lo (Cf. ANTT, Real Mesa Censória [RMC], cx. 8, censura 43 [1774], à página 1).15 Portanto, sequer entre os deputados da Real Mesa Censória essa nova concepção era unanimemente aceita.

Mudanças de pensamento não resultam, normalmente, de um decreto baixado pela autoridade governamental. No presente caso, embora possamos perceber a vontade estatal de transformação de certos aspectos do pensamento religioso lusitano, é preciso lembrar que há um substrato favorável à implantação de novas maneiras de pensar, sobretudo em determinados setores da sociedade letrada. Resistências às mudanças, entretanto, são inevitáveis. Uma sociedade não passa de um sistema de crença a outro sem recalcitrância, sem que grupos mantenham-se fiéis ao que sempre acreditaram como inquestionável verdade. Nesse sentido, o discurso que exalta os novos tempos tão plenos de luzes escamoteia uma realidade ainda fortemente presente no país e faz sentido, sobretudo, como propaganda de um grupo que aderiu a um amplo projeto de reforma da sociedade. No plano prático, as mudanças ocorriam mais lentamente.

Tome-se como exemplo o procedimento da Inquisição frente a alguns casos de feitiçaria e/ou pacto diabólico no período imediatamente anterior

14 Não disponho, infelizmente, de maiores informações sobre o Fr. José da Rocha. Sabe-se que, em 1762, presidiu ao “círculo de lógica minori” e ao círculo de “Lógica majori”, no Real Convento de S. Domingos de Lisboa. Ver António Alberto Banha de Andrade (1966:356). 15 As páginas do manuscrito não estão numeradas.

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à reforma do Regimento. Durante a visitação do Santo Ofício ao Grão-Pará, foram examinados vários casos de feitiçaria. Um deles foi o de Manuel Pacheco de Madureira, homem de 44 anos, sem ofício, que disse ter invocado o diabo por duas vezes, na intenção de abrandar o coração de certa mulher, além de ter feito um sortilégio com um balaio para tentar descobrir quem teria roubado uma camisa “a certa índia do seu serviço”. Diante deste caso o Inquisidor visitador não parece ter tido dúvida quanto à existência de pacto implícito com o demônio e, em momento algum, associa os fatos à ignorância ou superstição do réu. Tendo em vista, contudo, as circunstâncias atenuantes do caso, o réu foi condenado a abjurar de veemente, submeter-se a algumas penas espirituais e pagar as custas do processo (Cf. ANTT, TSO-IL, proc. 02697). Noutro processo, o índio Anselmo da Costa, 14 anos, carpinteiro, morador de Benfica, no Pará, confessou, em 1764, ter tirado alguns corporais e sanguinhos, juntamente com um bocado de pedra de ara com o intuito de, pendurando estes elementos em seu pescoço, proteger-se de ataques de onças e cobras. Embora o visitador tenha visto nisso razão para manter o pobre índio preso por mais de quatro anos e enviá-lo para o reino, os inquisidores de Lisboa, ao analisarem o processo, em 1768, não viram no réu ânimo para delinquir e imputaram seu gesto à falta de instrução. Para eles, tais culpas não pediam maior castigo, pois se achavam despidas “de fatos que a qualifiquem de supersticiosa, e em que interviesse pacto, ou suspeita dele, com invocações e outros atos indubitavelmente protestativos do apartamento da Religião, e abuso das cousas sagradas para fins contrários aos deveres da mesma Religião” (Cf. ANTT, TSO-IL, proc. 00213, f. 31). Vê-se que, embora haja clara percepção de que a ignorância seja causa motora dos pecados cometidos pelo índio, os inquisidores ainda não rejeitaram as teorias demonológicas e, com elas, a crença na materialidade do pacto diabólico.

Em 1772, ano que, do ponto de vista das políticas reformadoras, é marcado pela publicação dos novos Estatutos da Universidade de Coimbra, sobe à Inquisição de Lisboa uma denúncia que, provavelmente, motivou um processo contra Antonio Francisco, preto livre, habitante do Dongo, em Angola, acusado de praticar malefícios (Cf. ANTT, TSO-IL, proc. 02475). O capitão de artilharia Joaquim da Costa Barros denunciou Antonio Francisco – nalgumas partes do processo também nomeado por Antonio Pedro –, de apelido Caquende, por ter “voluntariamente, sem temor divino, nem humano” enfeitiçado e “morto muita gente do povo do dito Dongo, com mágicas, envenenando os poços de água em que as criaturas bebem, em lavouras, cujas águas e mantimentos ficam tão diabolicamente infestadas, que repentinamente tem morrido as criaturas racionais e irracionais”. Por conta de sua magia maléfica, segundo o denunciante, muitos lugares estavam despovoados. Narra ainda, em sua denúncia, alguns casos que denotam o maléfico poder do tal Caquende. Dentre eles o mais grave seria o de certo dia ter mandado dizer a um preto chamado João Diogo, em uma terça-feira, que lhe enviasse a escrava Luzia, que era sua concubina, ameaçando-o de que se não o fizesse morreria no dia seguinte e

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seria enterrado na quinta-feira. João Diogo se negou a entregar sua escrava a Antonio Francisco e, no dia seguinte, adoeceu e faleceu, tendo sido enterrado na quinta-feira. O denunciante diz-se testemunha ocular do ocorrido, que caracteriza como um caso extraordinário e diabólico. E, por fim, justifica sua denúncia dizendo-se “compadecido dos clamores dos povos, que o Demônio pelas invocaçõens do suplicado tem, e vai devorando” (Cf. ANTT, TSO-IL, proc. 02475, f. 4).

Por estes e outros processos e denúncias do último quartel do século XVIII, percebe-se que as concepções que o livro de Giuseppe Raffaeli e a maioria dos deputados da Real Mesa Censória entendiam combater continuavam bem ancoradas no imaginário de parte considerável da sociedade portuguesa – inclusive dos próprios agentes inquisitoriais. Os casos dos réus paraenses, ambos datando dos anos 1760, mostram claramente a permanência de certos pressupostos demonológicos entre os inquisidores. É igualmente importante notar que o fato de o angolano António Francisco ter sido remetido à Inquisição lisboeta, em 1772, sugere que o tribunal continuava a conceder importância à repressão desses desvios. E, a levar em consideração as sentenças de outros processos consultados, pode-se supor que o tribunal ainda não havia abandonado o paradigma do omnes enim magicae operationes initiuntur pacto cum daemone celebrato. Contudo, o processo – na verdade apenas constituído pelos autos de denúncia que levaram ao envio do réu para Lisboa – não permite saber se o tribunal continuava a procurar traços de vínculos entre tais práticas e o pacto diabólico. Vínculos que, aliás, aparecem de modo expresso na denúncia. O que se sabe ao certo é que dois anos depois, em 1774, o Regimento alteraria significativamente o entendimento do tribunal em matéria de feitiçaria. Dali em diante, ela seria tratada como superstição. Do ponto de vista prático, os réus suspeitos de crimes de feitiçaria deixavam de ser inquiridos sobre possíveis pactos com o Diabo, e passavam a ser inquiridos sobre o porquê de inventarem e maquinarem os fingimentos e imposturas de que se diziam capazes.16 O novo Regimento mostra que o Santo Ofício posicionou-se ao lado do racionalismo cético para combater crendices e superstições, assumindo claramente a posição de que em século tão iluminado “seria incompatível com a sisudeza e com o decoro das Mesas do Santo Oficio, instruírem volumosos processos com formalidades jurídicas e sérias a respeito de uns delitos ideais e fantásticos, com a consequência de que a mesma seriedade com que fossem tratados continuasse em lhes fazer ganhar maior crença nos povos, para neles multiplicarem tantos sequazes das doutrinas de terem verdadeira existência os sobreditos enganos e imposturas quantos são os pusilos e ignorantes; quando pelo contrário, sendo desprezados e ridiculizados, virão logo a extinguir-se como a experiência tem

16 Note-se que a novidade reside, sobretudo, no fato de deixar-se de inquirir os réus sobre a existência de pacto diabólico, pois, no período anterior, nunca se deixou de inquirir e qualificar determinadas práticas mágicas como sendo fruto de fingimentos, embustes e imposturas

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mostrado entre as nações mais polidas da Europa” (Regimento do Santo Ofício da Inquisição..., 1774:122, Livro III, Tit. XI).17 Assim, o Santo Ofício assumia, também nesta parte, uma posição sintonizada com as políticas reformadoras de Pombal, embora não saibamos se houve, sobre este assunto, resistências no interior do tribunal, cujo Inquisidor Geral, D. João Cosme da Cunha, era homem inteiramente submisso ao Marquês.

É hora de retornar ao parecer de Fr. José da Rocha e à posição assumida pela Real Mesa Censória em relação ao problema da feitiçaria. Num longo parecer de 46 páginas, que também é assinado pelos deputados Fr. José Mayne18 e Fr. Luis de Santa Clara Póvoa,19 o deputado relator, tendo em vista que as opiniões sobre o tema não tendem ao consenso, procura fazer um parecer no qual sejam cuidadosamente repertoriados os principais argumentos dos que se opõem ao ponto de vista defendido no livro de Giuseppe Raffaeli, bem como os argumentos daqueles que o apoiam. Após uma breve introdução, o deputado consagra dez páginas à descrição dos fundamentos daqueles que creem na realidade da arte mágica. Esses alegados fundamentos são retirados das Escrituras, da Tradição, dos Santos Padres, Concílios, Doutores da Igreja, da Autoridade Pontifícia, do Penitencial e do Ritual Romanos, do Direito canônico e civil, além de historiadores e autores da Antiguidade clássica.20 As páginas subsequentes constituem a crítica a cada um dos argumentos apresentados anteriormente, buscando, com alguma moderação, expor suas debilidades enquanto provas persuasórias acerca da realidade da magia. Veja-se, por exemplo, o que diz a respeito de certas passagens da Sagrada Escritura das quais se presume o fundamento para a realidade da magia:

17 Essa passagem também é citada por José Pedro Paiva (1997:88).18 José Mayne, nascido no Porto, em 1723, foi o primeiro geral da congregação religiosa da Terceira Ordem da Penitência. Foi confessor de D. Pedro III, marido da rainha D. Maria. Sócio da Academia Real de Ciências, legou a essa instituição várias coleções que viriam, mais tarde, proporcionar a construção do Museu Maynense. Para mais dados biográficos sobre José Mayne ver Elogio do senhor frei Jozè Maine, 17 Janeiro de 1793, (Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, Lisboa [IAN/TT], Arquivos Particulares, Abade Correia da Serra, Caixa 2B, A 43, 5f., online em http://chcul.fc.ul.pt/correia_da_serra/transcricoes/IAN-TT_Arq_Part_Correia_da_Serra.Cx_2B-A43.1793.pdf). 19 Trata-se de um procedimento regimental: todo parecer ou censura deve ser apresentado por uma comissão formada por um deputado relator e dois adjuntos. São pouco frequentes os casos de discordância entre o relator e os adjuntos. Quando isso ocorre, normalmente, são apresen-tados dois ou mais pareceres ao pleno da RMC que deve tomar a decisão. Sobre a RMC ver Evergton Sales Souza (2004:316-334) e Maria Teresa E. P. Martins (2005). Fr. Luis de Santa Clara Póvoa, frade menor da Observância de São Francisco, foi provincial de sua ordem entre 1775 e 1777. Infelizmente, não disponho de maiores informações sobre este deputado.20 Note-se que na ordem dos fundamentos não aparecem os célebres demonologistas. A única vez em que um deles – Martín Del Rio – é citado, o é por conta da menção que o relator faz da obra de Girolamo Tartarotti, Congresso notturno delle lammie (1749), na qual refutava as posi-ções de Del Rio. Esta ausência é um sinal manifesto de que no seio da RMC não se dava mais crédito a esses autores e obras. A existência da magia não era refutada por todos, mas ninguém parecia disposto a fundamentar seu ponto de vista nos tratados e escritos dos antigos demono-logistas.

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Começando pela Sagrada Escritura, sim vejo que Ela proíbe debaixo das mais graves penas o exercício da Magia, da adivinhação etc, e que por consequência supõem a verdade da sua existência: Porem que Magia será esta? Será porventura uma arte, que tem princípios e regras, nos quais instruída qualquer pessoa, obra com o socorro do Demônio, em razão do pacto com ele contratado, efeitos admiráveis? Nada menos. Porque, pelo contrário, descrevendo Deus, por boca de Salomão no Cap. 17 do Livro da Sabedoria, a cegueira do Egito, (onde foi o berço de todas aquelas artes que proíbe aos Israelitas nos Livros do Levítico e Deuteronômio) persuade no v. 7 e no 8 que a Magia e suas obras são uma quimera, e matéria de escárnio.

Mas para ficarmos totalmente persuadidos de que a Sagrada Escritura não faz menção da Magia como de arte que tenha existência verdadeira, He muito digno de reflexão que em todos os lugares em que fala de Aríolos, Adivinhadores, Magos, Maléficos etc, não diz uma só palavra a respeito do seu poder, nem sobre efeitos que se lhe atribuam. Logo a Magia que supõem, são as abominações, e supersticiosos exercícios que praticavam os cananeos; são as relíquias da Idolatria, de que deseja livre o seu povo: E por isso, quando lhes proíbe lembra-lhe juntamente, que por semelhantes práticas foram tão gravemente punidos os mesmos cananeos. (ANTT, RMC, 1774:12 e 13, cx. 8, cens. 43)

Nota-se a atitude cética em relação à realidade das artes mágicas e, ao mesmo tempo, a enorme distância que Fr. José da Rocha toma das interpretações anteriores, em particular daquelas realizadas por autores de tratados de demonologia, acerca das mesmas passagens veterotestamentárias. Na crítica dessas passagens fica patente o desejo de persuadir que nada há nas Escrituras que comprove a existência de arte mágica. O mesmo intuito fica explícito quando trata dos cânones conciliares, bulas papais, da ordem de exorcista, do Ritual Romano e do direito canônico e civil. Entretanto, ao abordar o problema nesses outros campos o censor avança algumas explicações que esclarecem bem o novo estatuto que deverá justificar a repressão aos praticantes de artes mágicas. Para ele, ao examinar bem o espírito das legislações contra tais práticas torna-se evidente “que o seu empenho consiste em desterrar idolatrias, abolir superstições, proscrever embustes, e castigar delitos, que de sua natureza chegam a ilaquear as consciências, e são capazes de perturbar o sossego público e a felicidade dos Estados” (ANTT, RMC, 1774:18, cx. 8, cens. 43). Nesse passo fica clara a filiação de Fr. José da Rocha ao universo de ideias compartilhado pelas correntes do pensamento católico-ilustrado lusitano. Também fica patente sua preocupação com a manutenção da ordem social e política, pois era neste terreno que os “embustes” poderiam produzir efeitos bem reais.21 Portanto, o

21 “E quem duvidará que sem haver Arte mágica naquele sentido em que falão os Theologos, e que tantas vezes temos expendido, e sendo enganos todas as obras que se lhe attribuem, tendo por cauza ou a natureza ou a fabula, ou a imaginação, aquellas praticas que observam os cha-

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fim da crença na realidade da feitiçaria, do modo como pensava o censor, não conduzia diretamente ao fim dos procedimentos judiciais – eclesiásticos ou civis – a esse tipo de desvio.

O último ponto refutado no parecer é o do pacto diabólico. Após afirmar que as palavras, sinais, círculos, aplicação de ervas e outras coisas naturais de que usavam os chamados mágicos não tinham capacidade para obrigar os demônios a qualquer ação, por serem desprovidos de toda eficácia, o censor escreve:

Bem sei que os Patronos da opinião do vulgo, obrigados desta dificuldade, recorrem para o pacto feito com os Demonios, e só em atenção a ele é que concedem faculdade aos Magos, para os obrigarem pelo exercício da fingida Arte, a socorrê-los com o seu poder todas as vezes que dele necessitarem. Mas este recurso de nada lhes pode valer, primeiramente porque o dito pacto é uma invenção dos Teólogos escolásticos desconhecida na antiguidade: como se fará evidente todas as vezes que atendermos que sendo muitos os SS. Padres que falaram da Magia diabólica, e alguns que patrocinaram a sua existência, não há um só entre eles que discorra sobre o dito pacto. (ANTT, RMC, 1774:18, cx. 8, cens. 43)

Assim, ao submeter a noção de pacto diabólico ao crivo crítico, Fr. José da Rocha esboça, na passagem citada, um tipo de argumento que merece uma análise mais atenta. Com efeito, a qualificação do pacto como uma invenção dos teólogos escolásticos e, portanto, “desconhecida da antiguidade”, é indicativo, ao mesmo tempo, do seu pouco apreço pela escolástica e de sua sintonia com o projeto reformador tocado em Portugal sob a égide do Marquês de Pombal. É, igualmente, mais um testemunho da valorização da Antiguidade cristã, traço que pode ser encontrado amiúde entre homens de letras do catolicismo ilustrado português.22 Entretanto, ao contrário de outros autores e textos, esse gosto pela Antiguidade parece ser um pouco menos intenso no parecer de José da Rocha, o que talvez possa ser explicado pelas circunstâncias do próprio tema abordado. De fato, a existência, entre os Santos Padres, de doutrinas que poderiam contrariar a tese de que jamais houvera arte mágica possivelmente contribuíram para que o censor fizesse algumas ressalvas sobre a validade dos textos patrísticos nessa matéria. Isso motivaria, por exemplo, sua afirmação de que tais textos teriam maior valor se o problema da magia interessasse à fé, aos costumes ou à disciplina. Como não se trata disso, o deputado considera ter argumentos suficientes para poder “sem receio algum afirmar que nunca existiu Arte Magica, ainda que a doutrina dos SS. Padres pareça contrária a esta resolução” (ANTT, RMC, 1774:24, cx. 8, cens. 43).

mados Mágicos, Feiticeiros, Advinhadores etc, são capazes de semilhantes effeitos [perturbar o sossego público e a felicidade dos Estados]?” (ANTT, RMC, 1774:18, cx. 8, cens. 43).22 Para uma visão mais geral sobre as características do catolicismo ilustrado em Portugal ver Evergton Sales Souza (2010:359-402). Ver também Zulmira C. Santos (2000).

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Outro argumento desenvolvido pelo censor ao tratar do pacto diabólico consiste em afirmar que “um tal pacto serviria de alguma utilidade àquelas pessoas a quem o vulgo imputa haverem-no feito: o que jamais chegou a verificar-se, pois não obstante serem sempre as mesmas pessoas pobres, ignorantes e perseguidas, nunca vimos que aquele contrato as fizesse sábias, as enriquecesse, as vingasse de seus inimigos, e as livrasse das mãos dos executores da Justiça”. Trata-se de traço bastante característico do pensamento das luzes católicas – e, neste caso, mesmo das luzes tout court. Para além do racionalismo cético patente nessa passagem, fica explicitada outra questão: o uso e a crença na eficácia de tais superstições vinculam-se ao universo dos pobres e ignorantes. O desejo de enquadramento religioso dos fiéis, que tomou proporções cada vez maiores após as reformas protestante e católica, teve nas luzes católicas do século XVIII mais do que uma continuidade, um reforço. Nesse sentido, como bem mostrou Louis Châtellier, em seu excelente A religião dos pobres (1995), a reação eclesiástica contra crenças populares tornou-se mais e mais severa, em nome de uma racionalização da religião que não vai sem lembrar o que Marcel Gauchet, na esteira de Weber, mas ampliando bastante o sentido original da expressão, chamou de “desencantamento do mundo”.23

Que não se enganem, contudo, os que, apressadamente, tendem a ver nesse tipo de atitude as marcas de uma clara secularização da sociedade portuguesa, ou de um projeto estatal de secularização. Não é crível que os mentores das reformas pombalinas tivessem tanta clarividência sobre o assunto. No presente caso, aliás, fica patente, pelo contrário, o cuidado demonstrado pelo censor em não cair numa posição radicalmente cética, que pudesse ser confundida com um movimento de saída da religião.24 Com efeito, em suas conclusões, Fr. José da Rocha afirmava peremptoriamente:

1. Que existem demônios, os quais por altíssimos fins da Providência, fazem com permissão divina sugestões na Imaginação dos homens, de que resultam algumas perturbações: porém nunca obram tais efeitos obrigados pelas criaturas em razão da arte, comércio e conversação, praticada e entendida voluntária, e reciprocamente entre si, e os mesmos homens.

2. Que independente de tudo isto, não obstante as tempestades, trovões, raios, e outras calamidades que costumam afligir as criaturas, serem efeitos das causas naturais; os

23 Se em Weber a expressão tem o sentido de eliminação da magia enquanto técnica de salvação, em Gauchet ela ganha a acepção mais ampla de “esgotamento do reino do invisível” (Cf. Gauchet, 1985:I-II). 24 Não nos reportamos aqui à instigante hipótese sustentada por Marcel Gauchet de compre-ender o cristianismo como religião de saída da religião. Trata-se apenas de sustentar o caráter improvável de uma ação ou projeto político, no Portugal do período pombalino, que atentasse contra os fundamentos religiosos da sociedade.

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Demônios têm servido por algumas vezes, e ainda podem servir extraordinariamente de instrumento à divina omnipotência, para alterarem e aplicarem as mesmas causas segundas à produção dos sobreditos efeitos.

3. Que excluído todo o concurso da mesma Arte Mágica, permite Deus, posto que muito raras vezes, que hajam objetos e possessos, para que as criaturas atormentadas, deste modo pelos Demônios, conheçam os muitos e diversos perigos a que nesta vida estão expostas; deem verdadeiras notas da sua fé; fiquem persuadidos da grande dependência que tem da proteção do omnipotente; e satisfaçam finalmente aos altos e incompreensíveis fins da sua Providência. (ANTT, RMC, 1774:45-46, cx. 8, cens. 43)

Como em outras ocasiões, a Real Mesa Censória cumpre seu papel de importante instrumento das políticas reformadoras tocadas no reinado de D. José. O tribunal jamais parece ter perdido de vista a relevância de sua tarefa, daí a sua constante busca por uma atitude moderada, que ao mesmo tempo abrisse caminho para novos pensamentos que se coadunassem com o projeto reformador, mas que não permitisse a difusão de ideias que colocassem em risco a paz pública do reino. Assim, ao debruçarem-se sobre o problema da feitiçaria, os deputados não só discutiram o conteúdo das doutrinas sustentadas no livro examinado, mas também calcularam os riscos de chancelar a publicação de uma obra que, em perfeita sintonia com o pensamento católico ilustrado, negava a existência da feitiçaria.

O problema, entretanto, não se esgota aqui. É preciso indagar sobre os diferentes significados dessa transformação no pensamento dos setores dominantes da elite letrada. Como já foi dito, a mudança não representou necessariamente uma maior tolerância em relação a essas práticas, mas atenuou sua gravidade enquanto desvio do ponto de vista religioso, em particular teológico, retirando-a do campo da heresia. Note-se, contudo, que, como mostraram os trabalhos de Francisco Bethencourt (1987) e de José Pedro Paiva (1997; 1992), nunca houve por parte das autoridades diocesanas e inquisitoriais, em Portugal, uma atitude de radical intolerância em seu confronto com o mundo mágico popular. A passagem de uma concepção demonizada da feitiçaria a outra que a trata como superstição, embuste e ignorância, teria representado algum ganho em termos de liberdade de consciência? A crítica à noção de pacto diabólico teria causado algum impacto sobre a percepção da ação e poder do demônio no mundo?

Antes de mais nada, é necessário reafirmar que as crenças arraigadas no fundo das consciências humanas não constituem terreno propício a viragens bruscas. Levou bastante tempo para que a elite letrada portuguesa pudesse aceitar e produzir um discurso cético em relação às artes mágicas. Não seria, portanto, da noite para o dia que grupos menos letrados e a grande massa de iletrados iriam mudar suas concepções sobre o assunto. O desejo de depuração da fé do qual estavam imbuídos em maior ou menor nível os católicos ilustrados

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não desembocou numa política bem-sucedida de desterro das “crendices” e superstições do universo dos fiéis.25 As denúncias e processos contra acusados de feitiçaria, bruxaria e superstições continuaram a alimentar o trabalho dos inquisidores por muitos anos. Institucionalmente a mudança de procedimento é clara, tendo em vista que os inquisidores passaram a se guiar pelo disposto no Regimento de 1774. Mas do ponto de vista dos denunciantes ou daqueles que procuravam o Santo Ofício para confessar suas culpas nota-se a permanência de antigas e cristalizadas ideias sobre a realidade e eficácia da feitiçaria e do pacto diabólico.

Em 1780, Domingos, natural de Angola, e Gonçalo, natural da Costa da Mina, ambos escravos de Manoel Rodrigues de Sena, natural do bispado de Braga e comerciante na cidade do Recife, em Pernambuco, foram denunciados pelo seu próprio senhor, por terem lançado feitiços contra si e contra vários dos seus escravos. Durante cerca de três anos Manoel Rodrigues de Sena esteve adoentado e chegou a ser desenganado pelos médicos. Ao buscar remédios espirituais na Igreja viu melhorar o seu estado de saúde. Certo dia descobriu, por meio do testemunho de Maria, uma escrava cozinheira, que Domingos e Gonçalo lançavam uns pós enfeitiçados em sua comida e que estes eram a razão de seus males. Foi, então, que um frade capuchinho, que havia presenciado sua doença, lhe aconselhou a prender aqueles escravos e dar parte deles ao Santo Ofício. Para o senhor de Domingos e Gonçalo não havia dúvida de que se tratava de malefício e sua parte com o demônio ficava demonstrada na medida em que sua saúde melhorou com os remédios da Igreja “e passa melhor com os exorcismos da Igreja, vendo com os seus olhos as imundícies que lançava quando o dito Padre Fr. Fidelis lhe dava alguma contra” (Cf. ANTT, TSO-IL, proc. 03825, f. 38). A crença na eficácia dos feitiços era tanta que Manoel Rodrigues não tinha dúvidas de que eles haviam matado com feitiços a pobre escrava Maria que os delatara, além de outros cinco escravos do mesmo senhor (Cf. ANTT, TSO-IL, proc. 03825, f. 38). Tomado pelo medo, o comerciante resolveu remeter Domingos “à sua custa para os cárceres desta Inquisição em que se acha, fazendo o gasto da passagem e obrigando-se a pagar tudo o que adiante se fizesse” (Cf. ANTT, TSO-IL, proc. 03825, f. 2).

Em 1784, Ana Maria da Esperança, donzela de 32 anos, habitante de Tomar, foi testemunha no processo de Micaela Simões, moradora da mesma vila de Tomar, acusada de superstições, feitiçaria, bruxaria, blasfêmia e práticas de curandeirismo. Em seu depoimento relatou que estando sua irmã enferma, sofrendo com grandes dores e outras moléstias, Micaela Simões lhe persuadiu a fazer com que sua irmã solicitasse o auxílio de seu cunhado chamado Pascoal, que ela dizia ter virtude especial para curar todas as enfermidades. Tomando o pulso à doente, Pascoal lhe disse

25 Sobre o assunto ver Evergton Sales Souza (2010).

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que para tudo tinha remédio, e com a cláusula que haviam consentir em todas e quaisquer ações nefandas e abomináveis torpes e provocativas da ultima sensualidade se quisessem conseguir saúde, e que de outro modo não aproveitariam os remédios que lhe aplicasse, nas quais ações a dita irmã consentiu persuadindo-a a isto a tal Micaela Simões, dizendo-lhe muitas vezes que todas estas ações não eram pecaminosas, menos na ultima ação que mancha a virgindade na qual nunca consentiu a dita enferma, porem suportou que lhe assoprasse fisicamente na sua boca, e vários toques em partes mais delicadas, de que experimentava funestos efeitos, diabólicos e terríveis, perdendo os sentidos totalmente por espaço de tempo considerável. (Cf. ANTT, TSO-IL, proc. 01962, f. 15)

Em fins de 1792, Catarina Bernarda do Sacramento, recolhida no Recolhimento de Jesus Maria José, na cidade de Angra, nos Açores, escrevia uma carta desesperada a João Nunes de Souza, notário do Santo Ofício, na qual dizia que seu confessor lhe havia recusado a absolvição devido à gravidade dos seus pecados e lhe rogava para que arranjasse confessor que a absolvesse. Em sua resposta à recolhida o notário lhe disse que para ser absolvida ela precisava se denunciar ao Santo Ofício. Seguindo o conselho de João Nunes de Souza, a recolhida envia-lhe por escrito uma carta a ser remetida àquele Tribunal na qual se denunciava pelos desejos que tantas vezes sentiu de ser feiticeira e que se não conseguiu seu intento foi por não saber como fazê-lo e por não ter quem a ensinasse. Catarina do Sacramento também desejou ter quem lhe ensinasse “cousas do demônio” e que o demônio lhe ajudasse ou lhe desse meios “por artes para falar e ver ao pé de mim aquelas pessoas com quem eu tinha amizades ilícitas”. Sem dar maiores detalhes, a recolhida julgava ter feito pacto com o demônio e tinha sua consciência escrupulizada por não ter denunciado algumas pessoas que ela pensava serem feiticeiras. Uma dessas pessoas ter-lhe-ia dito numa ocasião em que estavam a sós que “o demônio galava as feiticeiras como os galos as galinhas”, e, noutro momento, ensinou-lhe a fazer uma mesinha para alcançar o desejo dos homens que ela quisesse (ANTT, TSO-IL, proc. 04326).

A carta de Catarina Bernardo do Sacramento é um verdadeiro festival de pecados que vão sendo desfiados ao longo de quatro páginas escritas de seu próprio punho. Para além dos feitiços e pactos com o demônio, a recolhida confessava ter dúvidas em relação aos mistérios da fé, ter ódio a Deus, pensamentos de blasfêmia etc. A profusão de pecados e sua confusão dão azo à suspeita de que a pobre mulher não devia estar em seu estado normal de consciência, embora o notário não tenha levantado essa hipótese em sua correspondência com o tribunal do Santo Ofício. Entretanto, na resposta do tribunal lisboeta ao notário lê-se que, atendendo ao conteúdo da confissão e seu contexto, ajuizaram, por ora, que a recolhida fosse “acometida talvez de alguns intervalos de doudices, ou aliás dotada de uma consciência mui timorata e nimiamente escrupulosa” (ANTT, TSO-IL, 008/0024 – Livro de Registo de Correspondência Expedida, fls. 225 rº e 225 vº).

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Os três casos aqui mencionados são oriundos de espaços diferentes do Império português. Do ponto de vista social também apresentam personagens diversos. O caso brasileiro envolve escravos e um comerciante com algum poder econômico. Já Micaela Simões, seu cunhado Pascoal e Ana Maria da Esperança, moradores de Tomar, eram todos rudes e pobres que viviam naquela cidade. Por fim, Catarina Bernardo do Sacramento, vivendo num recolhimento da cidade de Angra, era, seguramente, proveniente de um meio social mais abastado e seu estatuto de recolhida lhe proporcionou o domínio da escrita. Não obstante a notória diferença entre as três histórias, todas elas apontam para a permanência de um sistema de crenças que a elite letrada lusitana havia decidido, no último quartel do século XVIII, ser irreal e supersticioso. Tendemos a ver nisso menos o fiasco do catolicismo ilustrado do que o sucesso do longo trabalho de disciplinamento realizado pelas gerações anteriores. Como lembra Adriano Prosperi (2009:X-XI), as diversas confissões do cristianismo europeu estiveram empenhadas, a partir do século XVI, em interceptar e atacar delitos e pecados para edificar uma sociedade obediente e moralizada em seus traços exteriores, e, sobretudo, em suas normas interiorizadas de autodisciplina. A reação aterrorizada do comerciante do Recife ante os diabólicos feitiços de Domingos e Gonçalo, o testemunho de Ana Maria da Esperança sobre os diabólicos efeitos que causavam em sua irmã as ações de Pascoal, os terríveis escrúpulos da açoriana Catarina Bernarda do Sacramento, tudo faz parte de um mesmo arcabouço de ideias que foram interiorizadas graças à ação das autoridades eclesiásticas (inquisidores, confessores, missionários), cristalizando-se no fundo das consciências devidamente instruídas sobre o que temer e como reagir à transgressão.26 A passagem para um discurso mais racionalista e, portanto, cético quanto à eficácia dos feitiços e de seu vínculo com o demônio, não altera o escrúpulo das consciências. A repressão à feitiçaria continuará, não mais, é certo, por ser um desvio herético relacionado à adoração do demônio, mas por colocar em risco o sossego público, a ordem social e política. A perseguição, décadas mais tarde, no Brasil, aos cultos afro-brasileiros – anteriormente reprimidos por motivos religiosos e posteriormente por atentar contra a ordem social –, parece ilustrar bem como essa concepção se desenvolveu historicamente, numa trajetória que levaria do diagnóstico do pecado àquele do crime. Com efeito, o disciplinamento não serviu apenas aos objetivos da Igreja, o Estado também soube beneficiar-se dele. E assim, a preponderância cada vez mais destacada do Estado sobre a Igreja não implicou, ao menos em médio prazo, em maior liberdade para as consciências.

26 Evidentemente, não me reporto aqui à crença na magia, que assenta suas raízes em tempos imemoriais, mas à interiorização das idéias que associaram as práticas mágicas ao demônio.

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14.

Dois profetas, um levante e um outro Portugal:

O sonho emboaba do Quinto Império nas Minas Gerais1

Adriana Romeiro

Um dos aspectos mais fascinantes sobre o universo cultural que se formou nas Minas Gerais, durante as primeiras décadas do século XVIII, relaciona-se à difusão, ali, das formulações messiânico-milenaristas que, desde os fins da Idade Média, impregnavam o imaginário português, e, em especial, o reavivamento das profecias do padre Antônio Vieira.2 Alguns indícios desse fenômeno podem ser vistos nos autos da Inquisição de Lisboa em que figuram como réus indivíduos que viveram parte de suas vidas na região mineradora. Ainda que se tratasse de casos extraordinários, suas ideias e proposições permitem esboçar a tese sobre a existência, em pleno sertão mineiro, de círculos altamente eruditos, versados em matérias sofisticadas como a cabala, configurando portanto um polo de reflexão profética ainda insuficientemente estudado.3

O caso mais conhecido é, sem dúvida, o de Pedro de Rates Henequim, personagem complexa e obscura, que, depois de uma longa passagem pelos cárceres do Santo Ofício, encontrou a morte num Auto da fé de 1744, executado por culpas de heresia.4 Apesar das dimensões incomuns de seu processo inquisitorial – mais de mil folhas –, a sua trajetória ainda permanece um mistério aos estudiosos. Foi nas Minas, entre os anos de 1702 e 1720, que articulou, a partir de múltiplas referências eruditas e populares, uma visão de mundo tanto mais original quanto heterodoxa. Fortemente influenciado pela obra de Vieira, da qual era leitor contumaz, profetizou que o Quinto Império teria como palco não Portugal, mas o interior do Brasil, onde, junto a umas serranias, estaria localizado o Paraíso Terrestre. Retomando os antigos mitos edênicos, postulava que Adão havia sido criado no Brasil, e que os índios

1 Agradeço a FAPEMIG e ao CNPq, que, por meio de uma bolsa do Programa Pesquisador Mineiro e Produtividade em Pesquisa, respectivamente, concederam-me recursos para o desen-volvimento da pesquisa aqui apresentada.2 Sobre o sebastianismo, ver Hermann (1998), Azevedo (1947) e Dias (1960). 3 Uma rara exceção são os estudos de Luiz Carlos Villalta (1999; 2007). 4 A trajetória e as ideias de Pedro de Rates Henequim foram estudadas por mim (ver Romeiro, 2001) e por Gomes (1997).

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americanos, vermelhos como ele, eram os seus descendentes. Afirmava ainda que a árvore da vida e a árvore da ciência – mencionadas no Gênesis – eram, na verdade, bananeiras, em cujas folhas Adão havia escrito mensagens aos homens. Quanto aos rios do Paraíso, ele os identificava como os rios São Francisco e Amazonas, entre outros, numa apropriação marcadamente americana das passagens do Gênesis.5

As profecias de Henequim também anunciavam um longo período de felicidades aos portugueses que viviam na América. Uma das provas da eleição da gente lusitana seria o fato de que a língua portuguesa, original e pura, era a língua falada por Deus e pelos anjos. Segundo ele, o ano de 1734 inauguraria os novos tempos, quando as tribos perdidas de Israel, que andavam espalhadas por toda a América, se reencontrariam.

A prisão, porém, em 1740, interrompeu os seus planos grandiosos. Suas crenças e profecias chocaram os inquisidores, que confessaram jamais ter visto algo parecido. Afinal, suas formulações não se encaixavam nas heresias conhecidas, e os juízes concluíram que ele havia criado, como fizera Calvino e Lutero, uma nova heresia.

Um dos aspectos mais surpreendentes na história de Henequim é o fato de ter sido nas Minas, em contato com letrados eruditos, dentre os quais figurariam estudiosos da cultura hebraica, que ele pôde desenvolver uma cosmologia incomum. Basta lembrar, que a cabala, da qual era adepto, constituía um conhecimento transmitido através da iniciação realizada por um mestre, frequentemente um rabino, o que autoriza supor a sua presença na região.6 Ali, a especulação milenarista em curso nos colégios da Companhia de Jesus na Bahia pôde fundir-se às formulações mais populares, resultando numa cultura profética complexa e original.

Henequim não foi o único profeta saído das Minas em direção aos cárceres do Santo Ofício. Pouco depois de ele aportar em Lisboa, outro indivíduo com pretensões muito semelhantes trilharia trajetória quase idêntica. Em 1720, depois de poucos meses como pároco na vila do Ouro Branco, o padre Manuel Lopes de Carvalho, ex-aluno da Companhia de Jesus da Bahia, se lançaria numa viagem a Lisboa, cujo desfecho seria a morte na fogueira. Em sua missão junto à corte, o padre Manoel Lopes de Carvalho apresentava-se como o instrumento da boa nova que Deus havia escolhido para denunciar os erros da Igreja Católica, reservando a dom João V a tarefa de extingui-los para que se realizassem as profecias anunciadas por Vieira e renovadas por ele, seu zeloso discípulo. Vaticinava um Quinto Império de Cristo – um novo tempo, depois da destruição de Roma por causa de seus pecados, quando o judaísmo e o cristianismo seriam uma só fé, concretizando a profecia de unum ovile, et

5 Estas proposições encontram-se em: LISBOA. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo (ANTT). Inquisição de Lisboa (IL). Processo n.4864. 6 Sobre a cabala, ver principalmente Scholem (1972; 1988).

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unus Pastor, sob o cetro de dom João V. Deus instalaria então seu trono na terra, inaugurando um tempo de glória, quando ninguém mais morreria. A dom João saudava como o rei em cujo “reinado há de o Mundo ver que toda a glória de Salomão não tem que admirar-se com a de Vossa Majestade” (ANTT. IL. Processo n.9255).

Preso nos cárceres do Santo Ofício, o padre Manuel Lopes de Carvalho causou estupefação nos juízes e inquisidores, posto que as suas crenças pareciam embaralhar as referências tradicionais de qualificação dos delitos de fé e desvios da doutrina. Apenas um deles soube divisar a origem delas, observando que era ele “inclinado às cousas do padre Antônio Vieira”. Que a obra vieriana constituiu a influência mais marcante, o próprio padre o admitiu reiteradas vezes, especialmente num memorial oferecido ao rei, que principiava com a dedicatória a Vieira, “a melhor luz de todos os teus Pregadores, de que por isso padeceu tantos trabalhos”.

As proposições do padre Manuel Lopes de Carvalho não passavam da ponta de um imenso iceberg em que se ocultava o clima de especulação milenarista que se alastrara pelos colégios da Companhia de Jesus em Salvador e em Cachoeira. Jesuítas como o astrólogo Valentim Estancel e o italiano Mateus Faletti haviam transformado o legado vieiriano numa fonte de inspiração para inúmeras obras proféticas, ao mesmo tempo em que se empenharam em divulgá-la sob a forma de cópias manuscritas que, rapidamente, ultrapassaram os muros dos colégios.7

Recusando-se a abandonar suas ideias, qualificadas por heréticas, o padre baiano foi, finalmente, condenado à fogueira, no ano de 1726, num dos autos mais célebres da época, causando escândalo e constrangimento ao Santo Ofício, às voltas com um religioso acusado de judaísmo e heresia.8

O Quinto Império nos trópicos

As ideias de Henequim sobre a localização do Paraíso terrestre remetem para o deslocamento tardio das projeções edênicas para o cenário das Minas, como apontaram Sérgio Buarque de Holanda e Plínio Freire Gomes.9 Em sua

7 Sobre a circulação das cópias manuscritas da obra de Vieira, ver Romeiro (2002).8 O concorrido Auto de fé em que foi queimado vivo o padre baiano, foi presenciado pelo natu-ralista francês Merveilleux: “Antes de o queimarem, arrancaram-lhe a pele das pontas dos dedos com que havia tocado a Sagrada Forma. Sofreu o fogo e não disse mais que estas palavras: É uma grande infâmia e uma enorme vergonha tratar deste modo a um homem que morre por afirmar que há um Deus verdadeiro. Deus vos castigará, desgraçados, por de tal maneira o ofenderdes” (1989:178-179).9 Para Sérgio Buarque de Holanda, a edenização em pleno limiar do século XVIII é mais a exce-ção do que a regra: “não só a supremacia crescente do saber racional ou empírico, mas também um caudal maior de conhecimento acerca das antigas terrae incognitae, fazem desbotar-se ou alterar-se uma fantasia herdeira de tradições milenares, que se infundiu nas almas dos navegan-

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leitura do Gênesis, o português afirmava que “o Paraíso Terreal, em que Adão foi criado, está na América debaixo da Linha Equinocial, e perpendicular ao lugar em que Deus tem o seu trono no céu; e o prova de nesta nova terra se achar tudo o que a Escritura diz dele, porque nela se acha o fruto da árvore da vida, que são as bananas compridas, e o da Ciência, que são as bananas curtas, e frutas, rios, e delícias; e de Adão se chamar vermelho como se chamam os filhos do Brasil”.10

A edenização ou a apropriação das tópicas relativas ao Paraíso terrestre acabou por ser ofuscada pelo teor profético de suas ideias, que guardavam grande afinidade com as formulações então recorrentes no imaginário de euforia milenarista reinante nas Minas: foi antes a utopia do Quinto Império, e não o lugar geográfico do Gênesis, que alimentou um conjunto de leituras sobre o significado dos descobrimentos como o umbral de um novo tempo.

Mas, afinal, o que havia em comum entre Henequim e Lopes de Carvalho, para além do destino trágico? Será possível divisar em suas ideias a atmosfera cultural e política reinante nas Minas nas duas primeiras décadas do século XVIII? Apesar das diferenças que o separavam, ambos tinham por objetivo anunciar a iminência de um Quinto Império para os portugueses da América. Talvez seja em Henequim que a centralidade dos portugueses e sua cultura tenha adquirido contornos ainda mais acentuados: não só os portugueses, mas também a língua portuguesa, reputada por ele a língua mais pura e perfeita, aquela falada por Deus durante a criação do mundo, constituíam objeto de uma defesa inquebrantável.11

Diferentemente do padre Manuel Lopes de Carvalho, que fora anunciar em Lisboa um Quinto Império português, como o era o de Vieira, Henequim operou um deslocamento significativo nessas formulações, invertendo o significado original das teses vierianas, de vez que já não se tratava mais de todos os portugueses, mas tão- somente dos portugueses que viviam na América. A estes contrapunha ele os “cafres dos sertões da América”, aos quais imputava o fato de a língua portuguesa ser aviltada e esquecida.

Dos pequenos fragmentos disponíveis sobre a sua passagem pelo território mineiro, um dado é bem revelador: durante o brevíssimo governo emboaba, ele ocupou o cargo de escrivão das execuções da Superintendência das minas do

tes e de quantos homens largaram a Europa na demanda de um mundo melhor, ao contato com os bons ares e boas terras do novo continente. E que, mesmo passado o deslumbramento inicial, ainda se mantém longamente por força dos costumes e da inércia, conseguindo sobrepor-se tranquilamente aos primeiros desenganos” (1992:XXIII).10 Um excerto das teses defendidas por Henequim se encontra em Gomes (1997:154-170). 11 Sobre a língua portuguesa, Henequim dizia que “foi a primeira que se falou no mundo, e a que ensinou Deus a Adão no Paraíso logo que o criou, e as vinte e oito letras do A, B, C, com que ela se escreve em toda a sua perfeição, e nela lhe participou todas as ciências, e esta língua se falou até a confusão de Babilônia” (ANTT. IL. Processo n.4864). Acrescentava ainda que “a língua portuguesa é a mais perfeita de todas, e aquela que Deus falou com as pessoas divinas, e com os seus cortesãos no céu” (ANTT. IL. Processo n.4864).

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Sabará. De fato, seu nome figura num dos autos de execução e confisco, quando foram presos Antônio Pinto de Queiroz e João Ferreira Brandão, que seguiam pelo Caminho da Bahia, levando contrabando (RIO DE JANEIRO. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro [BNRJ]. Casa dos Contos [CC], ref. 25.26.4. Autos de denunciação e tomadia feito contra Antônio Pinto de Queiroz e João Ferreira Brandão). Desafortunadamente, seu nome desaparece por completo das fontes da época, do que resulta um silêncio sobre a extensão das suas ligações com o partido emboaba. De qualquer forma, era ele um emboaba, e isso fica ainda mais evidente, quando se coteja a natureza de suas convicções proféticas com o discurso político elaborado pelos seguidores de Manuel Nunes Viana durante o conflito.

Não resta dúvida quanto ao fato de que a defesa de um Quinto Império para os portugueses da América coadunava-se à perfeição com as formulações políticas em curso nas Minas Gerais. Durante o conflito armado que opôs paulistas e forasteiros, entre os anos de 1708 e 1709, um dos esteios de justificação ideológica do levante contra os paulistas residiu na defesa intransigente dos valores portugueses contra a barbárie e rusticidade representadas pela gente de São Paulo. Num alentado estudo sobre o assunto, aventei a tese de que a emergência do vocábulo emboaba estava longe de refletir um sentimento de oposição aos portugueses, contrariando assim uma tradição analítica que remontava ao século XIX, e para a qual o conflito exprimiria antes uma conotação nativista, filiando-se ao processo mais amplo da Independência brasileira (Romeiro, 2008).12

Inspirada pelas considerações de Frederik Barth (1976) sobre etnicidade, argumentei que o termo “emboaba” seria antes a expressão linguística da alteridade do paulista em relação àquele que não o era, demarcando uma linha de separação entre um grupo étnico e os outros. Assim, tanto quanto uma experiência de alteridade, “emboaba” expressaria a identidade coletiva compartilhada pelos paulistas, definindo-a e afirmando-a em relação aos grupos locais, num contexto muito favorável ao recrudescimento dos caracteres identitários (Poutignat e Streiff-Fenart, 1998; Barth, 1976).

Cumpre notar que se tratava de uma percepção recíproca: se os paulistas consideravam os não-paulistas como um grupo distinto, do qual se distanciavam pelos seus padrões históricos e culturais, não é menos verdade que os outros, fossem eles portugueses, baianos, fluminenses ou pernambucanos, também os percebiam como uma categoria igualmente distinta.

A esta alteridade vinha se juntar, porém, um outro elemento importante: a interpretação do processo histórico de descoberta e povoamento das Minas, cindida em duas temporalidades bem delimitadas. Emboaba assumia então uma conotação mais específica, designando não somente o outro, mas o adventício, isto é, todo aquele que havia chegado aos sertões mineiros depois

12 Sobre as leituras nativistas da Guerra dos Emboabas, ver Silva (1997).

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dos descobridores, aos quais coubera a missão histórica de devassar a terra para inscrevê-la no âmbito do Império português, submetendo-a à sua órbita política. Não é por outra razão que o vocábulo “baiense”, do qual os estudiosos pouco se ocuparam, circulou como sinônimo de “emboaba”, tendo sido utilizado frequentemente para designar aquele que havia chegado à região através do caminho da Bahia – sem dúvida, a maior via de acesso à zona mineradora por aqueles tempos. Tratava-se, portanto, de categorias temporais e não geográficas. Baiense e, portanto, emboaba constituíam epítetos imputados aos forasteiros, estabelecendo assim uma temporalidade entre o descobridor, o primeiro a desbravar a região, conquistando-a ao gentio, e o adventício, que havia chegado depois.13

Pode-se, pois, concluir que emboaba constituía uma categoria étnica mergulhada na própria historicidade das Minas, carregando um sentido que ultrapassava a mera dimensão do outro, para lhe conferir um traço ostensivamente negativo: não apenas o outro, o estranho, mas também o invasor, numa palavra, o forasteiro. É nesta acepção mais complexa que o termo traduzia a interpretação que paulistas elaboraram acerca de sua atuação histórica nas Minas. Evidentemente, tal modelo guardava implicações mais amplas, de modo que o ato de descobrir sobrepunha-se, valorativamente, ao ato de povoar; o ato de descobrir, por sua vez, garantia o direito de conquista; o forasteiro era movido pela ambição e ganância, e não pelo amor à monarquia; aquele que vinha depois se apropriava indevidamente dos frutos do trabalho de descoberta, sendo, por isso mesmo, um espoliador; a relação entre o descobridor e o adventício estruturava-se em dois polos desiguais: de um lado, o que acolhe e recebe, do outro, o ingrato e mesquinho.14

Mergulhada nesse complexo campo de significações, a palavra emboaba articulava-se com uma matriz interpretativa que conheceria, no decorrer do século XVIII, uma fortuna duradoura, despontando, por exemplo, num autor como Cláudio Manuel da Costa, assumidamente pró-paulista. Além disso, a sua origem etimológica ajustava-se bem ao gosto paulista por nomes e apelidos de raiz indígena, bem exemplificado na toponímia, onde predominou

13 Veja-se um trecho do relato de Borba Gato: “isto seja castigo de Deus com evidência se mostra, porque qual havia de ser o Baiense por mais poderoso que fosse que entrasse cá nestas Minas senão fora o amparo que tinham nos Paulistas, que eu com meu pajem o não confiscasse, nem qual era o pobre que chegava aqui para poder estar com sossego se não fosse valer do arraial de algum paulista” (LISBOA. Arquivo Histórico Ultramarino [AHU]. Rio de Janeiro [RJ]. Castro Almeida, cx.15, d.3214. Carta de Borba Gato ao governador da capitania D. Fernando Martins Mascarenhas de Lencastre. Minas do Rio das Velhas, 29 nov.1708).14 Segundo Bento Fernandes Furtado, eram estes os “ingratos filhos da Europa”, que haviam se valido dos haveres descobertos pelos paulistas, dos quais haviam recebido favores, e con-tra os quais, invejosos, se levantaram. Aduzia ele: “não há dúvida que entre muitos paulistas que observavam pacíficos, humanados ao bom trato e favor dos reinóis, recolhendo-os em suas companhias, favorecendo-os em tudo e aumentando-os dos baixos princípios com que às Minas chegavam” (Códice Costa Matoso, 1999: 177 e 193,Vol.1).

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a tendência de se respeitar e acatar a terminologia indígena original (Dick, 1996:21). Mesmo os apelidos pareciam seguir o mesmo gosto, como mostra a Nobiliarquia Paulistana, de Pedro Taques, abundante de alcunhas de origem indígena, a exemplo de Bartolomeu Bueno da Silva, conhecido por Anhanguera (Leme, 1980).

Os mais fiéis vassalos de Sua Majestade

A deflagração do conflito entre paulistas e emboabas operaria uma alteração radical no sentido original do termo emboaba, que assumiria, doravante, uma acepção francamente antilusitana, transformando o conflito entre paulistas e emboabas numa rebelião contra os portugueses, seus valores, seu rei e sua Coroa. Apesar de liderado por um português, o partido emboaba caracterizava-se por uma intensa heterogeneidade, refletindo, por isso mesmo, a diversidade étnica do vasto contingente demográfico que se deslocou para a região entre os fins do século XVII e primeiras décadas do século XVIII (Ramos, 1972; 1973).

Baianos, pernambucanos, fluminenses, europeus... – o grande desafio que se impôs ao partido emboaba foi o de criar uma identidade comum, capaz de sobrepujar as diferenças e a diversidade dos interesses, de modo a galvanizar os ânimos em direção a um inimigo comum. E foi precisamente o sentimento lusitano, entendido como a fidelidade incondicional à Coroa, que logrou estabelecer a fronteira entre emboabas e paulistas. Tratava-se de um identidade construída a partir da alteridade, contrapondo-se, como um espelho invertido, aos vícios e defeitos atribuídos aos adversários. E qual era afinal o mais terrível vício dos paulistas? A falta de fidelidade ao rei, a ausência de amor à Coroa, do que resultava a conduta política suspeita e duvidosa.

É bem verdade que a persistente legenda negra que, desde o início do século XVII, vinha sendo projetada sobre a gente do Planalto forneceu um vasto repertório para a detração dos paulistas: vícios como a barbárie, a inconstância, o nomadismo, a desobediência, a natureza rebelde e indômita convergiam para a figura do mau vassalo, pouco zeloso dos interesses da Coroa, capaz de se aliar, por conveniência, ao inimigo externo.15 É no interior deste imaginário negativo

15 Um dos que expressaram grande preocupação com o comportamento político dos paulistas foi o governador-geral dom João de Lencastro, que escreveu a respeito: “Bem diferente, porém, era a visão que Lencastro tinha dos paulistas, os quais, segundo ele, “têm deixado em várias ocasiões, suspeitosa a sua fidelidade, na pouca obediência com que observam as leis de Vossa Majestade e ser gente por sua natureza absoluta e vária e a maior parte dela criminosa, e sobre-tudo amantíssima da liberdade, em que se conservam há tantos anos quantos têm de criação a mesma vila.” Verdadeiro perigo interno, tanto mais suspeitosos se tornavam quanto mais po-derosos se faziam; e as riquezas das minas impunham um problema de natureza estratégica: era preciso contê-los, porque “são capazes de apetecer sujeitar-se a qualquer nação estrangeira”

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que a natureza e o sentido do conflito adquiriram inteligibilidade: se, nas Minas, os paulistas inauguraram um regime de anarquia e tirania, subvertendo a obra de colonização e colocando em risco os domínios portugueses na América, coube aos emboabas, os mais fiéis vassalos de Sua Majestade, empreender uma resistência formidável, protagonizando um movimento de restauração, nos mesmos moldes daquela de 1640.16

Assim, aos emboabas não foi empresa difícil articular um discurso de legitimação do levante contra os paulistas, para justificar o uso da violência, a deposição das autoridades locais e a sua destituição dos postos de mando. Como já foi dito, eles mobilizaram as principais tópicas da legenda negra, refinando-as e particularizando-as para o contexto específico das Minas, extraindo delas os fundamentos de uma construção ideológica bem-sucedida que selaria, definitivamente, o ocaso dos paulistas da cena política. À matriz interpretativa da ação histórica dos paulistas opuseram outra, francamente inspirada na Restauração de 1640, estruturada em duas formulações-chave: em primeiro lugar, a inadequação dos paulistas para a empresa de colonização; em segundo, a legitimidade de um levante contra a tirania.17

A narrativa heroica e grandiosa da descoberta do ouro nos sertões dos Cataguases já vinha sendo posta em causa por aqueles que consideravam o evento um desserviço prestado pelos paulistas à monarquia. De todos os lados, reflexões pessimistas sobre o descompasso entre o alto investimento exigidos pela colonização do território e escassez dos recursos da Coroa, aliavam-se a ponderações acerca da superioridade da agricultura sobre a mineração, aos temores diante do abandono dos canaviais e engenhos e o êxodo da mão de obra escrava, entre outros, lançando uma sombra funesta sobre o grande feito dos paulistas.18 E não faltaram mesmo aqueles que compararam a descoberta do ouro a um verdadeira caixa de Pandora...

Francisco E. Andrade, num estudo importante sobre o bandeirismo, chamou a atenção para o fato de que uma das estratégias dos emboabas consistiu em provar que as ações dos sertanistas paulistas “não se revestiam de verdadeiros feitos de descobrimentos” (2008:124), porque,

para começar, as entradas de bandeiristas de São Paulo não teriam como desígnio fundamental o descobrimento dos tesouros auríferos, mas sim o apresamento (indigno ou ilegal) de índios. Com isso, o achamento de ouro toma a conotação de uma ação ocasional, fortuita, de puro jogo da fortuna, como fica sugerido por Antonil. (...) Ademais, o que descobriam não eram minas verdadeiras – com betas subterrâneas e constantes –, mas lavras de rendimento efêmero, à flor da terra e nos leitos dos

(Carta de D. João de Lencastro ao rei. Bahia, 7 jan. 1700 apud Derby,1899-1900:279-295).16 A inspiração da Restauração de 1640 nos movimentos políticos da segunda metade do século XVII e primeiras décadas do século XVIII foi analisada por Figueiredo (2001).17 Sobre o direito dos povos de resistir à tirania, ver Torgal (1981).18 Sobre o assunto, ver Romeiro (2008:35 e seg.).

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ribeiros, onde se extraía, sem maior trabalho, o suspeitoso, por fraude e qualidade variável, ouro de lavagem, na forma residual de pó ou de grânulos. (Andrade, 2008:124)

Ainda que se reconhecesse a grandeza dos feitos dos descobrimentos, havia ainda uma outra objeção ao papel histórico almejado dos paulistas, que se traduzia na questionamento de sua vocação para o povoamento das regiões por eles descobertas. A desqualificação dos homens de São Paulo como povoadores ancorava-se na ideia de que eram naturalmente nômades e andejos, incapazes de se fixarem em arraiais e vilas. Esse era um clichê da legenda negra, presente já nos primeiros relatos dos jesuítas quinhentistas, que atribuíam tal característica à proximidade com o universo indígena, de onde haviam sorvido o gosto pelas incansáveis perambulações.19 Este aspecto viria a estabelecer uma diferença cultural fundamental entre os paulistas e os emboabas: fautores da civilização, estes últimos ocupavam-se em fundar arraiais e capelas, estabelecendo-se em núcleos estáveis, capazes portanto de promover o povoamento dos sertões, enquanto que os paulistas mantinham o velho hábito sertanista de se embrenhar pelos matos, vivendo como feras, de forma improvisada e precária. Veja-se esta passagem sobre a repartição do ribeiro de São Francisco Xavier, na região do Rio das Mortes: feita a distribuição das datas minerais, “cuidaram logo os emboabas de formar arraial e fazer ranchos, ditas assim as casas de vivenda por serem levantadas de taipa de mão com cobertura de palha e, ao mesmo tempo, erigiram sua capela, construída dos mesmos materiais, que se dedicou a Nossa Senhora do Pilar”. Os paulistas, por sua vez, “por se afastarem da vizinhança dos homens, porque só as faziam com as feras, pela semelhança dos corações, se arrancharam pelo arrabalde em moradas de espaços varandas, a fim de ostentarem os seus grandes cabides de armas, fatos indicantes das suas dissimuladas proezas” (História do distrito do Rio das Mortes, sua descrição, descobrimento das suas minas, casos nele acontecidos entre paulistas e emboabas e ereção das suas vilas. In: Códice Costa Matoso, 1999:231, Vol.1). Fundadores de arraiais e construtores de capelas, os emboabas constituiriam assim a civilização, os únicos que poderiam levar a cabo a tarefa de colonizar, posto que já não era mais questão de desbravar, mas de amanhar e cultivar a terra.

O eixo central das formulações emboabas girou, acima de tudo, em torno da questão da obediência ao rei e do seu correlato, o direito de resistência à tirania, como expressão de fidelidade à Coroa. Era esta a virtude que, em última instância, definia a própria identidade lusitana. Daí a centralidade da noção

19 O jesuíta francês Charlevoix (1975:130-133) chamou a atenção para o aparente paradoxo do modo de vida dos paulistas: apesar da riqueza das terras de São Paulo de Piratininga, eles se recusavam a se tornar sedentários, preferindo as correrias pelos sertões. Por essa razão, Charlevoix concluiu: “assim não por outro motivo, que pelo espírito de libertinagem, e pelos atrativos da pilhagem, é que eles por longo tempo correram com fadigas incríveis, e contínuos perigos” (1975:130-133).

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histórica de Restauração para explicar e conferir um sentido à luta contra os paulistas, posto que a empreendiam em nome do rei de Portugal, com o único objetivo de garantir o seu domínio sobre os sertões mineiros. À medida que se alinhavam aos interesses portugueses, todos os atributos e caracteres derivados da origem portuguesa, foram investidos de um significado político original. Assim, a identificação dos paulistas como homens bárbaros e rebeldes teve como corolário a afirmação da superioridade moral dos filhos de Portugal, os guardiães zelosos dos interesses régios em meio aos sertões distantes, dispostos a destituir as autoridades locais e a empunhar armas para defendê-los. Daí as referências à velha familiaridade dos portugueses com os valores políticos do Antigo Regime, o hábito da vida em civilização, o apego à figura do rei e à monarquia – tudo aquilo, enfim, que os tornava os mais aptos a tomar para si a gigantesca obra de colonização das Minas.

Ao elaborar tal versão ideológica, o partido emboaba, a despeito de sua heterogeneidade étnica, e, em grande medida, por causa dela, introduziu critérios de discriminação a um só tempo culturais e políticos, excluindo os paulistas daquilo que caracterizava o modelo do fiel vassalo. Lançando mão de uma espécie de classificação das populações coloniais, tendo sempre como referência os padrões políticos portugueses, os emboabas transformaram o epíteto pejorativo criado pelos paulistas em sinônimo de superioridade étnica, cultural e política, demarcando um campo de conflito e tensão que sobreviveria por todo o século XVIII, como revela a toponímia local, com a proliferação de territórios povoados exclusivamente por paulistas.20

É bem verdade que os forasteiros jamais se valeram do apodo pejorativo “emboaba” para se definirem como grupo: afinal, se a identificação dependia, fundamentalmente, da diferenciação do outro, era a este que se reservava um nome específico, nesse caso, paulista. E examinando-se os nomes dos indivíduos escolhidos para formar o governo emboaba, fica evidente que a naturalidade portuguesa não era um critério de seleção legítimo. A adoção do epíteto “emboaba” significaria endossar todas as acepções originalmente contidas nele, incorporando a perspectiva detratora dos adversários. De qualquer modo, porém, ao se reconhecerem como um grupo distinto dos paulistas, conformaram o conflito numa experiência de alteridade.

A emergência de antagonismos de natureza étnica no contexto do levante emboaba coloca em questão a aparente homogeneidade das populações que formavam o Império português – homogeneidade que, para alguns autores, seria a expressão do sentimento de pertencimento ao corpo político da monarquia e da inexistência de estatutos diferenciados entre portugueses e não-portugueses.21 Em chave diametralmente oposta à tradição historiográfica

20 A exemplo do Arraial dos Paulistas, em Vila Rica (Borrego, 2005:70).21 A noção de um sentimento de pertença ao Império foi proposta por Fragoso, Gouvêa e Bicalho (2000).

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que fez do antagonismo entre colonizadores e colonizados, a pedra de toque de sua interpretação do passado colonial brasileiro, as novas perspectivas teóricas solapam, em alguns casos, as possibilidades de um conflito étnico, preferindo antes a imagem de um Império sedimentado em torno de um estatuto comum, em que os seus habitantes, fossem eles nascidos em Goa, no Recife ou em Luanda, seriam reputados todos igualmente vassalos do mesmo rei, respeitando-se os critérios de diferenciação social típicos do Antigo Regime. No limite, equivale a dizer que nos vastos domínios portugueses, não importava o local de nascimento, mas tão-somente a mera condição de vassalo da Coroa portuguesa.

Nas Minas, bem diversa era a realidade. Alvo de intenso preconceito, por parte tanto dos chamados forasteiros, quanto das autoridades locais e metropolitanas, os paulistas amargaram a destituição dos cargos que ocupavam antes do levante emboaba, e, depois da chegada de Antônio de Albuquerque – que jamais escondeu o pouco apreço pela gente do Planalto, que considerava especialmente bárbara e perigosa −, um crescente ostracismo que culminaria no redirecionamento das atividades de descoberta em direção aos sertões de Mato Grosso e Cuiabá (Taunay, 1975). O peso da discriminação pode ser apreendido nos inúmeros incidentes em que as diferenças se manifestavam, trazendo à tona os ódios mais profundos, e aspectos aparentemente prosaicos, como o modo de falar, caminhar e se comportar em público, causaram perplexidade entre os emboabas, pouco familiarizados com os hibridismos intrínsecos à cultura paulista. Se muitas vezes o resultado foi a galhofa ou o escárnio, como aconteceu quando os paulistas dividiram com os emboabas os assentos das câmaras recém-criadas, e nas palavras de um contemporâneo,

“não durou muitos anos que, como os paulistas eram poucos os que ficaram, e ainda estes estranhavam a vizinhança daqueles, em que achavam diferentes costumes e desconfiavam que se rissem dos seus, foram desertando” (Relação de um morador de Mariana e de algumas coisas mais memoráveis sucedidas. Códice Costa Matoso, 1999:207, Vol. 1), não raro estas diferenças assumiram uma conotação mais explosiva, desencadeando incidentes mais violentos – como foi o próprio levante emboaba. Que os paulistas se viam como vassalos da Coroa portuguesa, prova-o a forma como conduziram seus pleitos junto ao rei, apelando para os centros de poder. Entretanto, havia uma grande distância entre sentir-se pertencente ao Império e ser visto como parte integrante dele. Se do ponto jurídico não gozavam de um estatuto diferenciado, na prática, o peso da legenda negra, suscitando desconfiança e receio, conspirou para que fossem alijados dos postos mais importantes. E não foram poucas as vezes que o Conselho Ultramarino deu instruções bem precisas sobre o que julgava ser o melhor desfecho para o levante emboaba.

Se é verdade, como afirma Mafalda Soares da Cunha, que o Império “era constituído por territórios de desigual valor para a Monarquia” (2005:72), sendo hierarquizado e classificado a partir do seu peso econômico, militar e

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simbólico, é legítimo afirmar que assim também o eram as populações que o habitavam, obedecendo a critérios tão diversos quanto o local de nascimento, a proximidade com a civilização ou a barbárie, o apego ou desapego aos valores políticos tradicionais, para além dos costumeiros critérios de diferenciação social.22 É curioso observar que, mesmo aqueles que pareciam aderir por completo a uma identidade portuguesa, não estavam a salvo do olhar suspeito e superior dos nascidos no Reino. Foi o que aconteceu com o padre Manuel Lopes de Carvalho. Apesar de baiano, ele sorveu com sofreguidão o acervo das crenças profético-messiânicas que reservava a Portugal, o papel central na iminência e condução do Quinto Império. Como leitor e discípulo de Vieira, acalentou a convicção de que o Imperador dos últimos dias não poderia ser outro a não ser o próprio rei português – e foi na figura de dom João V que ele identificou o eleito de Deus para o advento de uma nova era. Mas, a recepção desalentadora em Lisboa, frustrando as suas expectativas otimistas, fê-lo indagar sobre as razões do insucesso. Chegou mesmo a se surpreender com a indiferença do padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, como ele também nascido na América e ex-aluno do Colégio da Companhia de Jesus de Cachoeira. Em suas palavras, julgou que o padre voador compreendesse as desconfianças que o fato de ser “estrangeiro”, vindo do Brasil, “donde vinham muitos judeus”, suscitava entre os moradores do Reino. Na corte, a pena cáustica dos satíricos escarnecia dos que vinham do Brasil em versos como esse: “Chegou do sul, afetando/ Ser do Brasil um mazombo,/ E mostra nos arremedos/ Quem vem da terra dos monos?” (Citado por Dines, 1992:606).

Um outro Portugal

De tudo o que foi dito, pode-se concluir que, para o partido emboaba, tratava-se de pôr à prova a capacidade dos paulistas em fazer das Minas “um outro Portugal”, na expressão consagrada de Fernão Cardim (1978:176), em fins do século XVI. Como observou, com razão, Antônio Hespanha, a maioria dos colonizadores não buscava criar nos trópicos um mundo diferente daquele que conheciam no Reino; ao contrário, “essas pessoas não queriam romper seus laços com a metrópole, onde suas famílias ainda viviam, assim como seus amigos e parceiros comerciais” (2010:72). Talvez as características tão peculiares do povoamento das Minas, com a emigração maciça e rápida de aventureiros de toda sorte, muitos dos quais originários das regiões rurais do Norte de Portugal, tanto quanto o cenário de rivalidades locais, derivado das disputas com os descobridores paulistas, tenham favorecido ali um recrudescimento

22 Sobre os critérios de classificação social vigentes no Antigo Regime português, ver o belo estudo de Olival (2001).

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dos vínculos com a metrópole e de um sentimento mais exasperado de uma certa identidade portuguesa, como resposta à ameaça política representada pelos paulistas.

Para Henequim, “um outro Portugal” significava também preservar a língua portuguesa, mantendo-a depurada das contaminações das línguas indígenas, impedindo que sucumbisse à corrupção que os paulistas vinham secularmente praticando. Não é difícil imaginar o cenário de diversidade linguística que predominou nas Minas Gerais em seus primeiros tempos. Verdadeira torre de Babel, com as suas línguas e dialetos de procedência variada, criando um espaço de intercâmbio étnico-linguístico de proporções inéditas no Brasil. As multidões de negros de origem africana tornaram ainda mais perturbador este imenso cadinho multilinguístico, solapando as possibilidades de um “outro Portugal” nas Minas. Neste cenário, o sonho de uma língua portuguesa pura e original estava fadado a ser uma utopia – e bem o percebeu Pedro de Rates Henequim ao fixar no advento do Quinto Império o renascimento do português. Suas preocupações com a restauração do idioma expõem a condenação dos modos de falar dos paulistas, ecoando mais uma das tópicas da legenda negra, bem ilustrada pelo célebre comentário do bispo de Pernambuco sobre Domingos Jorge Velho: “este homem é um dos maiores selvagens com que tenho topado: quando se avistou comigo trouxe consigo língua, porque nem falar sabe, nem se diferencia do mais bárbaro tapuia mais que em dizer que é cristão” (Ennes, 1938:126-127, Vol. 1). Ao contrário do que supunha o bispo, o bilinguismo – e não apenas o domínio exclusivo das línguas indígenas – consistia numa prática disseminada entre eles, como notou com argúcia o governador Antônio Pais de Sande, observando que “os filhos primeiro sabem a língua do gentio, de que aprendem a materna” e só depois aprendem a língua portuguesa (AHU. RJ. Castro Almeida, doc.1837, s/d. RELATÓRIO do Governador Antonio Paes de Sande...).

Não era apenas a diversidade linguística que punha em xeque a reprodução do mundo português nos trópicos. A natureza conflituosa das relações entre forasteiros e paulistas, as diferentes percepções sobre o mundo a ser construído na região mineradora, a heterogeneidade étnica e cultural das suas populações, os antagonismos derivados do caráter irreconciliável das concepções políticas em jogo, entre outros, foram fatores que minaram as possibilidades de um outro Portugal, certamente acalentado pela massa de emigrantes vindos do Reino.

Neste contexto, o sonho do Quinto Império, o desejo de uma terra de portugueses para os portugueses, a união de todos os filhos do Reino de Portugal, revelam o quão distante e inverossímil se afigurava ali uma América exclusivamente portuguesa. Utopia que só podia se realizar plenamente no plano do sobrenatural, mediante a intervenção divina, como uma profecia projetada para um futuro distante, inscrito numa temporalidade transcendental – como anunciaram, com tanta convicção, Pedro de Rates Henequim e Manuel Lopes de Carvalho.

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VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo Ilustrado, censura e práticas de leitura: usos do livro na América Portuguesa. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1999. (Tese, doutorado em História).

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15.

Cartografia gentílica: os índios e a inquisição na América Portuguesa (século XVIII)1

Maria Leônia Chaves de Resende

Quando as epidemias grassaram sobre as Américas, dizimando em uma guerra bacteriológica boa parte das populações indígenas; quando a exploração dos colonos sobre o trabalho dos nativos levou à escravização indiscriminada; quando a atuação das ordens religiosas reduziu os índios nas missões: ainda assim esses não foram todos os desafios que se abateram sobre os povos indígenas no Brasil. Outro ainda estava por vir: a atuação do Tribunal do Santo Ofício.

Este capítulo tem justamente o propósito de apresentar um mapeamento das denúncias contra os índios e seus descendentes, no que considerei ser uma cartografia gentílica da Inquisição na América Portuguesa durante o século XVIII, justificada não só porque foi caso único nas Américas,2 mas também

1 Este trabalho é resultado de pesquisa que contou com o apoio da Bolsa de Produtividade (CNPq) e Programa Pesquisador Mineiro (FAPEMIG).2 Embora a Inquisição de Lisboa não tenha se ocupado precisamente das populações nativas, de fato implicou os índios e/ou seus descendentes nas denúncias e processos, situação que, para a perspectiva da história indígena, tem toda relevância. Vale ressaltar que, além dos casos da Santidade do Jaguaripe, no século XVI, há também denúncias contra índios e seus descendentes no século XVII. Em um levantamento preliminar nos Cadernos do Promotor, localizei 33 casos contra índios e 6 contra mestiços. Só para dar alguns exemplos, vejam-se as denúncias contra Brígida, em 1639, acusada de pacto demoníaco; contra a índia Iria por feitiçaria, em 1686; contra Domingos [Fernandes?] e Isabel Pereira, por bigamia e o caso renomado do Principal Lopo de Sousa Guarapauba, denunciado por Pe. Antonio Vieira em 1661. Ver respectivamente, ver ANTT, Caderno 27, Livro 226 [1638-1645] [mic.5195 e 5196], f ls. 313- 317; ANTT, Caderno 71, Livro 265 [1692-1700], f ls. 214- 216; ANTT, Caderno 72, Livro 266 [1697-1701] [mic.4411], f ls. 217-230; BN (Biblioteca Nacional de Portugal). Coleção Pombalina, “Papéis vários relativos à mesa e consci-ência e ordem [1608-1755], Traslado de registro de uns papéis que em forma e instrumento vieram da cidade de São Luiz do Maranhão e se acham em um livro velho de registros da Câmara deste cidade de Belém do Pará os quais dizem respeito ao Principal que foi da Aldeia do Maracanã Lopo de Souza e seu teor e forma é seguinte”. PBA 645, [mic.1633], fols. 525-535. No México, em contraste, a execução pública de dom Carlos, cacique de Texcoco, em 1539, retirou os índios da jurisdição do Santo Ofício por Felipe II em 23 de fevereiro de 1575. Os índios ficaram sob a juris-dição episcopal, ainda que seja considerada tão severa quanto a ação inquisitorial (Kamen, 1973; Greenleaf, 1995; Traslosheros, 2002). Ver, neste volume, o capítulo de Bruno Feitler, “A ação da Inquisição no Brasil: uma tentativa de análise”, e o de James Wadsworth, “Uma nova invenção da bruxaria diabólica: a Jurema e a Inquisição”.

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porque, a despeito da recente contribuição das pesquisas sobre a atuação do tribunal no Brasil, poucos estudos abordaram propriamente a temática indígena, salvo raras exceções.3 Do que sabemos sobre o que se passou com os índios e seus descendentes, o foco recaiu sobre a Terceira Visitação e com primazia no Grão-Pará. No entanto, a riqueza das fontes, que abarca todo o século, é um manancial primoroso para dar conta da experiência vivida por essas populações, de diversas regiões e procedências étnicas, frente à presença do Santo Ofício em todo o território da América Portuguesa.4 Ao cobrirem um amplo e diverso cenário geográfico étnico-cultural, a documentação de natureza inquisitorial é admirável e ilustrativa, já que, através dela, podemos acompanhar os dilemas culturais dos índios impostos pelo contato interétnico com portugueses, luso-brasileiros e africanos, recuperando sua maneira de

“viver em colônia”. Essas fontes são fragmentos de um leque de infrações em que os índios foram protagonistas, retratando suas trajetórias, suas práticas e experiências cotidianas no Novo Mundo. Por meio desses relatos é possível, assim, acompanhar a complexidade de formas de inserção das populações indígenas em contextos históricos e regiões específicas na colônia, como no caso das Minas Gerais setecentistas, que tomo como contraponto em partes deste capítulo.

Cartografia gentílica: um panorama dos pecados nativos

Entre os finais do século XVI e início do século XIX, dos 1076 prisioneiros do Brasil sentenciados pela Inquisição, 33 homens (4,24%) e 7 mulheres (2,69%) eram índios ou mamelucos (Novinsky, 2002:33). Vale lembrar, no entanto, que as denúncias registradas nos Cadernos do Promotor redimensionam as acusações feitas contra as populações indígenas, ampliando significativamente os implicados.5

3 Refiro-me aos trabalhos pioneiros de Vainfas (1995), Sommer (2000), Carvalho Jr. (2005), Medcalf (2005), Mott (2006a; 2006b), Wadsworth (2006), Oliveira (2010), Schwartz (2009), Cruz (no prelo). De minha autoria, Resende (2005; 2007). Ver ainda sobre a atuação da Terceira Visitação em Campos (1995); ver ainda Domingues (2001) e Mattos (2009).4 Há uma extensa documentação de natureza inquisitorial. Afora os livros das três visitações, há a série dos Cadernos do Promotor e os respectivos processos. Neste texto, recorro aos dados da Terceira Visitação (1763-1769), liv.785 (mic.5221), publicados por Amaral Lapa (1979:81-105), e as denúncias registradas nos Cadernos do Promotor e seus 4 índices, relativos ao século XVIII, depositados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Na parte “Qualificação das pessoas cujo nome aparece no Livro da Visitação do Santo Ofício da Inquisição no Grão-Pará” estão arro-lados 55 índios, 17 mamelucos, 6 cafuzos, totalizando 78 implicados de procedência indígena. Maria Olindina Oliveira apresenta 86 denunciados para o período da Terceira Visitação, com-preendida, segunda a autora, entre os anos de 1763 a 1771 (Oliveira, 2010:75). 5 É importante notar que nem todas as denúncias dos Cadernos do Promotor, como chama a atenção Bruno Feitler, de fato, foram levadas adiante pelo tribunal inquisitorial (Feitler, Lima e Vainfas, 2006:44).

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Durante todo o século XVIII, o Santo Ofício acolheu 273 denúncias contra índios, em graus e situações distintas de contato, como resultado de um longo processo de conquista e colonização, que envolvia desde índios recém-contactados pelos descimentos (que sequer falavam o português), os índios neófitos aldeados nas missões pelas ordens religiosas e os descendentes mestiços, já destribalizados e incorporados ao dia a dia colonial. Desse cômputo, localizamos 168 denunciados identificados como índios, de diferentes origens: Jê, ocupantes de uma vasta área do planalto central; Tupi-guarani, habitantes da costa atlântica e bacia amazônica, Aruaque, às margens dos rios Negro e Orinoco, ao longo do médio Amazonas e nas cabeceiras do Madeira. No entanto, nesses registros, raramente a procedência étnica é definida, constando apenas algumas poucas referências a etnômios6 ou alguns esparsos grupos, nomeadamente Tabajara, Gueguê, Baré, Paiacu, Caipós, Curumariá, Pataxó, Nhambiquara. Na grande maioria, aparecem sob a forma de termos genéricos que definem a procedência indígena, como “gentio da terra”, “carijó” ou “tapuia”. Há ainda o caso de outros 105 denunciados que são nomeados por designações mestiças, tais como caboclo, mameluco, cafuzo, indicando a descendência indígena.

A esses designo de “índios coloniais”, ou seja, índios e/ou seus descendentes, destribalizados por diversas razões, de várias origens étnicas ou procedências, muitos nascidos “dentro” da sociedade colonial, que foram incorporados à vida sócio-cultural das vilas e povoações.7 Apesar da adscrição nitidamente indígena – porque assim se identificavam e eram também reconhecidos como tal pelos outros – experimentaram um contato intenso com os colonos e foram integrados à sociedade colonial, o mais das vezes na condição de mestiços. Mesmo assim, nas vilas e lugarejos, compuseram um grupo específico que demarcou diferenças de outros componentes dessa sociedade (brancos, negros, mulatos) – justamente pela ascendência indígena que definiu sua inserção. Tributários de um legado comum – o de ser ou ter origem no “gentio da

6 As designações que aparecerem nas fontes, em geral, não são propriamente de etnias, mas etnômios, que são nomeações atribuídas no processo de contato, em que pese a reorganização de grupos fragmentados pela guerra, pela redução aos aldeamentos, ou por outras razões nos di-ferentes processos históricos, como ensina a literatura histórica e antropológica. Um bom exem-plo é o caso de Tabajara, muito frequente na documentação, e que é uma categoria classificatória dos Tupi para denominar os grupos com os quais podiam estabelecer relações de reciprocidade ou de conflito (Oliveira, 1999). Sobre isso ver ainda Schwartz (1987; 1996) e Boccara (1999).7 Empregamos o termo “índios coloniais” dentro da conotação de “hibridação e mestiçagem” de Serge Gruzinski (2001) para designar as misturas que ocorreram tanto dentro das populações de origem indígena como com outras origens – pretos e brancos – em “uma mesma civilização ou mesmo conjunto histórico”, tal qual ocorre na Minas Colonial. Tomo aqui o termo mestiça-gem, referindo-me ao processo objetivo em que pese “a consciência que tem deles os atores do passado, podendo essa consciência se expressar tanto nas manipulações como nas construções que elaboram” (Gruzinski, 2001:62).

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terra” – também se distinguiram de outros índios, isto é, daqueles que não foram “domesticados”, os “índios bravos”, que viviam nos sertões. Esses “índios coloniais”, “integrados” ao mundo colonial, construíram uma “distintividade”

– ainda que “descaracterizados” e distantes de um “padrão tradicional” em função de seu isolamento decorrente do processo de destribalização dos diversos grupos de origem, reconheciam-se como herdeiros de uma origem indígena. Em boa parte, pelo seu perfil e pela sua condição, que oscilava entre a escravidão e a liberdade, vão exercer um papel significativo nas relações escravistas e hierarquizadas da época, demarcando um espaço bastante particular para aqueles que eram ou descendiam do “gentio da terra”.

Portanto, todos esses termos “mestiços” marcavam a adscrição identitária indígena, numa profusão de situações de contato que redimensionam e ampliam significativamente o mosaico cultural dos denunciados, trazendo implicações importantes para se compreender a dimensão da atuação da inquisição no que se refere aos índios do Brasil. A mais importante é reconhecer que, ao tratar o material inquisitorial na perspectiva da história indígena, temos de buscar o sentido das denúncias dentro da historicidade própria das diferentes culturas e identidades étnicas construídas nos variados processos de contato aos quais os povos indígenas foram submetidos. Implica, portanto, tomar os delitos inquisitoriais na dimensão das especificidades e múltiplas experiências, vivenciadas pelos nativos no amplo território do império português.

Seja como for, o alcance da inquisição não isentou os índios e mestiços de sua alçada, já que acabou por adotar os mesmos procedimentos de praxe levados a cabo contra os outros colonos. Via de regra eram os missionários ou padres que acolhiam as delações no ato da confissão dos índios e, com licença para não ferir o sigilo (nem sempre expresso do confitente), se incumbiam de encaminhá-las ao comissário que, por sua vez, o enviava à apreciação da mesa do tribunal.8 Alguns desses relatos implicavam até mesmo os próprios religiosos, em especial, nos casos escandalosos de solicitação. Esse foi o pecado do célebre Frei Henrique de Populo, capucho da província de Santo Antônio, na Vila de Santa Maria do Icatu, no Maranhão, delatado pelo frei João de Vilar, da Companhia de Jesus. A despeito das constantes discórdias entre as ordens religiosas que, muitas vezes, davam azo a intrigas, segundo o testemunho estarrecedor dado ao comissário do Santo Ofício, a índia Maria fora solicitada pelo frei Populo, que “a deitou no chão da sacristia e com ela tivera cópula, para seu pavor e terror de se ver assim tratada em ato tão sagrado” (Arquivo Nacional da Torre do Tombo [ANTT]. Inquisição de Lisboa [IL], liv.275, f.75-78; f.426; e f.438). A solicitação ad turpia, transgressão durante o ato sacramental da confissão, foi prática corriqueira da qual também não escaparam as nativas. Por

8 No Brasil, os jesuítas cumpriram papel decisivo como interlocutores do Santo Ofício. Como as ordens religiosas foram proibidas de se instalarem em Minas Gerais, os comissários do Santo Ofício ali foram recrutados entre o clero secular (Rodrigues, 2007:21-23).

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certo, a defesa corrente de que a fornicação com índias e mulatas não era pecado estendeu-se pelas igrejas e templos sagrados, endossada por alguns religiosos que apregoavam, com liberalidade e impertinência, como o fez frei Antonio da Trindade, em Minas, que toda mulher que tinha comunicação ilícita com algum religioso receberia indulgência plenária, “botando essa cisma entre o gentio” (ANTT. Cadernos do Promotor, liv. 268, f.0994, doc. 487).9 Soa aos ouvidos ter sido uma boa justificativa “em consciência” para muitos sacerdotes claudicantes no ofício que sequer poupavam as donzelas encarceradas nos recolhimentos, atacadas que foram pelos apetites sexuais de seus vorazes confessores. Isso é o que testemunha a índia Custódia Maria da Piedade, carijó, que, na flor da juventude, então com seus 22 anos, fora solicitada não apenas por um, mas por vários padres, como o padre Antônio Álvares Pugas, o padre João da Costa, o padre Manoel Pinheiro de Oliveira, o padre João Luis Brado – todos eles seus confessores nos dez anos em que esteve trancafiada no Recolhimento de N. Sra. da Conceição das Macaúbas (ANTT. IL. Processo n.256).10

Se sobre a solicitação recaía o peso de ser um crime de natureza inquisitorial, porque feria o sacramento da confissão, muitos outros delitos implicaram o clero, a cujos ministros o discurso moralizador da Igreja nem sempre tocou profundamente. Vários padres foram acusados por terem “vida dissoluta” com as índias. Em Minas Gerais, 24 padres, 2 clérigos in minoribus e 3 freis caíram nas redes das visitas diocesanas por viverem em concubinato com índias carijós (Resende, 2003:268). Outros ainda foram delatados por descumprirem suas obrigações do ministério sacerdotal. Era o próprio padre Francisco Fernandes Guimarães, coadjutor em São José del-Rei, hoje Tiradentes, que era obrigado a reconhecer as faltas do Vigário Ferraz, por ter deixado morrer “Braz da Costa, carijó, sem administrar os devidos sacramentos”. Costumava também proceder ao batismo de adultos sem os examinar se estavam bem instruídos nas coisas da fé e admitia, na quaresma, vários casados ausentes de sua mulher, como a Francisco Rangel, “que vivia com uma carijó”.11 Afinal, não era para menos.

9 Para Vainfas (2010), os solicitantes não cultivavam doutrinas heréticas, eram padres mal afei-tos ao voto de castidade e que aproveitavam de momento de intimidade da confissão para sedu-zir mulheres. Sobre a discussão da fornicação, ver Vainfas (2010:79-89).10 Padre Antônio Álvares Pugas, capelão do Recolhimento de Macaúbas, foi denunciado em 1741, preso em 1742 e ouvido nos cárceres da inquisição em 1743. Sobre a solicitação no Brasil colonial, ver Lana Lima (1990), que informa que 403 mulheres denunciaram 425 padres por so-licita no Brasil, entre 1610 e 1810. Para tentar descaracterizar o delito inquisitorial, os padres Antônio Álvares Pugas e Manoel Pinheiro de Oliveira tentaram se beneficiar do fato de que, no Recolhimento, não havia confessionário e as confissões aconteciam nas grades do parlató-rio (Lima, 2001). No recolhimento das Macaúbas, viveram 147 mulheres entre 1720 e 1822 (Cf. Algranti, 1993).11 Além do caráter de ilegitimidade, o termo bastardo tem outra acepção: “Nascimento e des-cendência de ajuntamento ilícito”. Ou ainda “filho de uma mulher pública, nascido de incesto, de mãe não casada”, “gerados de diferentes espécies que, por conseqüência, degeneram de sua natureza”. Daí “bastardear é degenerar” (Bluteau, 1712:63-64, Vol. 2, t. I). Por isso mesmo, foi prática corrente usar o termo “bastardo” para designar índios e, por extensão, seus filhos.

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Sua negligência ou deslize sugere ter ele acobertado a si próprio, pois, segundo diziam as línguas soltas e ferinas à época, andava amancebado com “uma viúva com casta da terra”, ou seja, com uma descendente de índios (Mariana. Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana [AEAM], liv.31. Devassa, f.231v). Isso sem mencionar os padres que, “vagando pelos matos”, cometiam verdadeiros “desatinos”. O Padre Antônio Soares, em Barbacena, havia anos que estava amancebado com uma bastarda forra, Maria Pais, com quem tinha filhos, vivendo nas partes do Sapucaí, “apartado no mato, parecendo mais bruto que clérigo”. Preso, foi remetido ao Rio de Janeiro (AEAM, liv.31, Z1. Devassa 1738, f.146-148v). Esses casos, entre outros que envolviam índios, embora não fossem da alçada do Santo Oficio, foram frutos das devassas levadas a cabo nas Minas Gerais setecentista, conhecidas como uma “pequena inquisição”.12

De toda forma cabe ressaltar que as denúncias de feição inquisitorial que comprometiam os índios alcançaram toda a colônia e foram parar na mesa inquisitorial. Salta aos olhos o fato de alçarem os lugares mais recônditos, circunscrevendo praticamente todo o território.

Região – Século XVIII

Denúncias / região Quant.Amazonas 06América 02

Bahia 06Ceará 16

Maranhão 11Mato Grosso 01Minas Gerais 14

Pará 128Paraíba 03

Pernambuco 20Piauí 10

Rio de Janeiro 14Rio Grande do Sul 01

São Paulo 18Tocantins 01

12 Sobre os índios que foram denunciados nas devassas ver Resende (2005). Sobre propriamente as devassas, como ficaram conhecidas as visitas pastorais ou diocesanas, ver os trabalhos de Vidal e Costa (1982, t.39), Souza (1984, v.33), Figueiredo (1987), Boschi (1987), Figueiredo (2007).

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Não consta 18Não localizado 01

Total 273

Fontes: ANTT, Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor [1700-1802]

A concentração das denúncias no Pará e na década de 60 sugere que a repercussão da Terceira Visitação do Santo Ofício no Grão-Pará estimulou, com sua presença, as delações em um território “infestado” por índios, mas, conforme indica o Gráfico a seguir, esses dados, se comparados no espectro temporal para todo o século XVIII, mantém uma curva acendente desde a década de 40.

Vários historiadores frisam que o papel da Terceira Visitação, interpretada por alguns como extemporânea, esteve atrelado ao contexto das reformas pombalinas, cujo projeto político para a região foi pautado na “segurança e conservação do território, na valorização da agricultura e na civilização dos índios” (Mattos, 2009:20; Oliveira, 2010:78). Civilizar os índios significava, a partir do Diretório dos índios (1757), promover sua conversão ao cristianismo, reforçado pelo ensino da língua, adoção de nomes e hábitos portugueses, para transformá-los em vassalos do Rei. Se, de fato, a presença da Terceira Visitação foi um esforço, por excelência, de instrumentalização pombalina, visando à normatização da fé e dos costumes, na região estratégica do Grão-Pará (o que justificaria a atenção sobre as populações nativas naquelas partes), ressalte-se que o alcance das denúncias projeta a ação inquisitorial para um período anterior, e ainda que sua atuação estendeu-se por todo o território, com mais da metade das denúncias difusas por outras regiões. Além disso, sabemos que a política pombalina foi adequada e adaptada a diferentes realidades e contextos, nem sempre consoantes com o espírito dessa lei, como foi o caso de Minas Gerais, em que o então governador, Lobo da Silva, distorceu frontalmente sua aplicação (Langfur, 2002; Resende, 2003).

Em Minas, a máquina inquisitorial associada ao poder episcopal concorreu juntos para o controle social em seu território com o mesmo vigor, valendo-se de seus aparatos e reforçada pela rede de agentes do Santo Ofício, por meio da atuação dos familiares e comissários, cujas habilitações aumentaram sensivelmente nesse período.13 Nessa estreita relação de cumplicidade, as visitas episcopais cumpriram o papel de colher as denúncias e, após as averiguações costumeiras, enviaram as de cunho inquisitorial para apreciação da mesa no Palácio dos Estaus em Lisboa. Sob o comando do bispo José Geraldo Abranches, que atuou em Minas durante 50 anos – no que foi

13 O ápice foi atingido no período de 1721 a 1778, quando alcançou 1011 habilitações. No caso de Minas, o levantamento indica 23 comissários (ver Rodrigues, 2007:21).

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considerado um “ensaio” (Figueiredo, 2007:114) para o seu papel de Visitador no Pará anos mais tarde – os índios e seus descendentes também foram objeto de atenção. Das Minas provem 14 denúncias inquisitoriais contra índios e seus descendentes que prontamente foram encaminhadas: superstição (3); partícula consagrada (3); feitiçaria (2); pacto demoníaco (2), diabruras (2), desacato (1), carta de tocar (1).

No que diz respeito ao Brasil como um todo, os motivos das delações contra os índios e mestiços, registradas nos Cadernos do Promotor, foram os mais diversos, segundo o critério do secretário que se incumbia de anotar a seu juízo, no cabeçalho do documento, a natureza do delito posteriormente enquadrado pelo promotor nos moldes do Regimento Inquisitorial. Não é difícil, portanto, supor a generalização do crivo inquisitorial. Sem dar conta de responder a amplitude e a dimensão dos desvios à ortodoxia católica relatados nas denúncias, diante da profusão de delitos, parece que, em vez disso, a mesa definiu um espectro de ação, numa plataforma geral sobre a qual atuou.

Motivo da Denúncia – Século XVIII

Motivo da Denúncia QuantidadeBigamia 78Feitiçaria 63Mandinga 31Cartas de tocar 09Pacto com demônio 11Superstição 11Curandeirismo 12Proposição herética 03Fingir confissão 06Adivinhação 06Descer demônios 04Partícula consagrada 05Blasfêmia 04Benzedura 02Bestialidade 02Desacato imagem 02Embusteiro 02Malefício 02Tratos torpes com demônio 02

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Andar mandingado 01Apanhar partícula sagrada 01Apóstata 01Beber jurema em circunstâncias supersticiosas 01Culto ao demônio 01Cunhadagem 01Desacato 01Diabruras 02Invocar demônios 01Não comungar em jejum 01Não satisfazer o preceito de ouvir missa 01Tirar Santíssimo Sacramento no sacrário 01Usar venenos e vender uma índia 01Não consta 04Total 273

Fontes: ANTT, Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor [1700-1802]*conforme indicação da fonte

E, segundo os princípios do regimento, poderíamos enquadrar estes delitos nos seguintes parâmetros:

Século XVIII

Motivo da Denúncia segundo Regimento de 1774 Quantidade

Título VII - Apóstatas, arrenegados e hereges 01Título VIII - Blasfemos e dos que proferem proposições heréticas, temerárias ou escandalosas.

14

Título IX - Dos que desacatam o Santíssimo Sacramento ou as imagens sagradas ou recebem o mesmo Santíssimo Sacramento não estando em jejum

11

Título XI - Dos feiticeiros, sortílegos, adivinhadores, astrólogos judiciários e maléficos

158

Título XII - Dos bígamos 78Título XVIII - Dos que impedem e perturbam o ministério do Santo Ofício

01

Título XXII - Dos que cometem o nefando crime de sodomia 02

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Outros 04Não consta 04Total 273

Fontes: ANTT, Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor [1700-1802]

Mas cabe aqui uma pergunta crucial: na perspectiva da história indígena é possível que a natureza dos delitos gentílicos possa ser simplesmente enquadrada, tratada e compreendida na mesma dimensão que as de outras populações? Definitivamente restrita a ótica inquisitorial, esse modelo foi incapaz de dar conta da natureza e especificidade dos delitos americanos. Somente uma leitura atenta das denúncias, em que pese um olhar sobre as experiências particulares dos grupos indígenas e no contexto regional da aplicação das diferentes políticas indigenistas, é possível esclarecer a verdadeiro sentido das delações. Quero dizer com isso que a tipologia dos crimes, a natureza das infrações açambarca um largo espectro de significados, resultado do grau ou não de proximidade e intensidade do contato com a sociedade colonial, imprimindo uma gama de sentidos muito mais complexos do que rotula a mesa seguindo os cânones do regimento inquisitorial. É preciso inscrever essas denúncias na cadência dos diversos e diferentes processos históricos regionais a que essas populações estiveram submetidas e, para tanto, é fundamental cruzar as informações de diversos fundos e arquivos, para recompor as chaves do entendimento sobre os diferentes processos que experimentaram os povos indígenas ao longo de sua história.14 Cabe, portanto, aos historiadores, compreender essas práticas ameríndias dentro das múltiplas e dinâmicas formas de inserção dessas populações ao mundo colonial.

Sem poder aprofundar aqui a discussão, cabe ressaltar que os estudos sobre a identidade tomam o contato interétnico entre índios e a sociedade em sua multiplicidade de perspectivas, marcada por interações sócio-culturais dinâmicas e diferentes. É justamente dentro dessa complexa relação que as identidades indígenas se reconstroem constantemente, a partir de trocas e apropriações culturais que se reproduzem, se recriam, se renovam no processo histórico. Portanto, há de se abandonar a ideia de uma pretensa unidade ou essência atribuída à cultura, construída a partir da visão de uma tradição arcaica, monolítica, estática e a-histórica das sociedades indígenas de forma a sempre enfocar uma arqueologia dos ritos indígenas como sendo intocáveis e imutáveis. Essas sociedades estão distantes de serem “frias, sem história e intrinsecamente opostas ou resistentes a mudanças”. Ao contrário, eram “fluidas e maleáveis” como já mostraram vários

14 Para dar um somente um exemplo, desde 1996, o Arquivo Público do Pará publica um re-pertório de documentos da Amazônia colonial relativo a 348 códices em que se agrupa a Correspondência de Diversos com o Governo, em uma pluralidade e diversidade de fontes es-sencialmente regionais e que não são conhecidos pelos historiadores. Veja-se, como exemplo, a riqueza que oferecem os Autos da devassa (Castro, 1997).

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estudos (Boccara, 2002; Geler & Sanchez, 2005; Almeida & Ortelli, 2011). Os índios, portanto, eram atuantes e capazes de responder aos desafios dos diferentes agentes coloniais, promovendo mesclas e adaptações culturais.

Nessa perspectiva as denúncias contra os índios e seus descendentes é um caleidoscópio dessas intensas experiências de troca e contatos culturais. Interessantes e muito pouco estudadas são as ideias e comportamentos heterodoxos para os quais chama atenção alguns estudos sobre o mundo luso-hispânico (Ver Schwartz, 2009; Vainfas, 2010:309-355). Não muito distantes destas são as denúncias que implicaram os índios nos casos de desacato às imagens sagradas como o da índia Isabel, “do trato de Thomas Luis Teixeira”, por ter, segundo ela, a mando do seu senhor, atirado do sobrado onde moravam “um vaso de imundícies fétidas” com tal ímpeto sobre o andor da procissão que a imagem se espatifou no chão e as pessoas, todas cobertas da sujeira, gritavam em alvoroço: Judeu, judeu! Caso semelhante ao de Cristina, carijó, de Itaverava, Minas Gerais, também acusada junto com seu senhor, Domingos Morato, de atear fogo na imagem de Cristo, de Verônica e no rosário (ANTT. IL, liv.297, f.241v-253). No Rio Grande do Norte, em 1739, Antonio Vasconcelos, acusado de ser judeu, fazia adivinhações de “quibando” com seu ficho “mameluco” (ANTT. IL, liv.296, f.253). Denúncias que acenam para práticas judaizantes dos colonos, mas também que podem sugerir cumplicidades construídas no convívio doméstico entre índios e seus administradores cristãos-novos, manifestadas por esse tipo de comportamento ainda pouco investigado.

Outros casos “bons para pensar” são as denúncias de feitiçaria e práticas mágico-religiosas contra os índios por estarem envolvidos em roubo, venda e negócios de partículas consagradas para a produção de amuletos, as populares bolsas de mandinga que, atadas ao pescoço, “fechavam o corpo”, ou pelas “cartas de tocar”, usadas como magia amorosa para “seduzir e atrair a vontade do amante”; práticas de origem africana e presentes em Portugal e no Brasil. Esse tipo de relato traz, por excelência, a convergência de heranças ameríndias e africanas, próprias do convívio colonial, em que os recursos à magia indígena, cristã e africana se fundiram para alcançar maior poder e eficácia (Calainho, 2008:156). Práticas que circulavam entre índios e africanos e descendentes, numa escola de ofício de magias que atravessaram todo o território – como no caso do índio Anselmo da Costa, do bispado do Grão-Pará, acusado de mandinga em 1764 (ANTT. Processo n.213), desembocando em Minas Gerais, em 1799, com João, outro índio sacrílego que cosera uma bolsa, logrando, com isso, “uma boa relíquia de guarda-corpo para livrar-se de mordeduras de cobras, ferro e porretadas” (AEAM, Juízo Eclesiástico [JE], n.2783, [1800]). Vale frisar que, embora parte da historiografia reconheça essa prática com procedente de ritos africanos, em vários casos, foram os índios que, no universo colonial, na condição de verdadeiros mestres destas práticas mágicas, “ensinaram” – e friso aqui exatamente esse sentido – às populações de origem africana ou aos colonos luso-brasileiros tais artes, reeditando e acrescentando outros elementos, num amálgama e fusão de práticas religiosas e que se constituíam em disputa ou partilha do domínio sobre o sagrado na profusão

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de matrizes culturais na colônia. O emprego de plantas, objetos, orações, mediado por adivinhações, sortilégios e conjuros confirmam a importância dessas práticas para os índios, quando recorrendo, reelaborando e reeditando as suas práticas e também a dos outros, procuravam, à sua maneira, burlar as adversidades do cotidiano, conferindo no espaço colonial maior autonomia, poder e liberdade (Souza, 1986:221-224).

Outro bom exemplo é o malefício com bonecos, encantamento muito empregado e amplamente documentado nos arquivos da inquisição, com uso de terra de sepultura, cabelos, unhas e ossos – cuja procedência se atribui às tradições africanas, mas que também foram reapropriadas pelos “índios coloniais”. Narcisa, índia, foi justamente acusada de fazer um malefício, na forma de uma boneca, com cabelos, ossos de peixes, com retalhos de roupas rotas e amarrilhos, tudo cravado com agulhas e alfinetes. Ao desmanchar a boneca, uma irmã da enferma teve suas mãos feridas em chagas sem que houvesse curativo, senão com exorcismos e azeite bento (ANTT. Processo n.13202).

Contracenando com esses índios, havia outros que, por virtuosismo, descobriam os malefícios com adivinhações, por meio de quibando, nomeavam seus malfeitores e desenterravam as velhacarias. Ainda faziam presságios e curas extraordinárias, para o assombro de muitos colonos que a eles frequentemente recorriam. Caso célebre foi o de Sabina (ANTT, Processo 15.969 [mic. 6726]; ANTT, Caderno 125, Livro 315 [1754-1762], fls.445-454. Caderno 121, Livro 313 [1750-1760] [mic 1444], fl.224 [numeração truncada]). Essa índia atuou por cerca de 20 anos, em Belém e arredores, atendendo do populacho às autoridades, inclusive o próprio governador, João de Abreu Castelo Branco, de quem tirara das pernas três bichos vivos e moles depois de assoprar a fumaça de seu cachimbo. Em José Bitencourt, borrificou-lhe fumaças nas narinas, proferindo orações católicas. Logo a seguir, introduziu a língua no olho dele e vomitou um bicho com forma de lacrão e uma vespa morta. Recomendava ainda que o enfermo seguisse com exorcismos e lavasse os olhos com água benta.

Respondendo ao exame dos inquisidores, Calisto José de Andrade, implicado em uma dessas denúncias de curandeirismo, detalhava o ritual da cura: dava ao doente cinco dias de fumadouros de ervas. A cerimônia, explicava, era sempre ao cair da tarde, durante três dias, quando o enfermo, nu, enrolado em um lençol, era

“defumado” com uma porção de três folhas de urucum, três de malaguetas, três penas de acauã e [jutaysica?], raspa de tacoara de ponta de flecha. Tudo aumentado proporcionalmente a cada dia. Ao final, seguiam-se mais três dias de lavagem com nove raízes de ervas, as quais arrolou minuciosamente. O doente tinha ainda de prometer não ter cópula e jejuar por três dias, tomando somente água de São João Batista. E, naturalmente, todo o exorcismo deveria ser acompanhado de orações, boa confissão e comunhão, sem o qual nada teria eficácia. Tão logo fosse localizado o feitiço, deveria ser queimado ou lançado ao mar. Justificou-se, dizendo que tudo fazia por “comiseração e miserável consternação de tantos doentes” (ANTT, Caderno 121, Livro 313 [1750-1760]. [mic. 1444] fls. 231-234 [numeração truncada]).

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Esses casos deixam transparecer, nas entrelinhas, a correlação de forças no dia a dia ao fazerem convergir dois universos simbólicos que se misturavam nas suas práticas o catolicismo popular e o nativo, que amalgamaram crenças no cotidiano colonial. Ao mesmo tempo em que utilizava a fumaça, sucção e ervas para curar – característica da tradição indígena – também afirmavam o valor dos exorcismos, gestos e orações cristãs, como já mostrou o estudo de Almir Carvalho Jr. (2005). Mesmo assim, não se transigiu com eles e foram todos devidamente penalizados.

Mais rigoroso o tribunal foi com aqueles que consumavam o “pacto demoníaco”. Antonio Barroso, índio tapuia delatado da aldeia de Corema, na Paraíba, em 1753, confirmava essas práticas. Em sua confissão, denunciava-se arrependido, espontânea e voluntariamente pelos erros que cometera contra a santa fé católica. Sua confissão é riquíssima porque congrega toda sorte de delações que recaía sobre os índios. Contava “que desde menino tinha feito pacto com o demônio a quem visivelmente trazia consigo abraçado pelo lado esquerdo e que, em presença do mesmo demônio, tinha feito doação de seu corpo e alma, arrenegando a Deus, a Santíssima Trindade, Jesus Cristo, Maria Santíssima, todos os anjos, santas, e santos do céu. Tudo comprovado por um papel escrito com o seu sangue que o demônio lhe tirara de seu corpo, fazendo-lhe uma cesura, como sinal de sua subserviência. Passou, então, a adorá-lo por seu senhor e deus verdadeiro. E disse ainda que, muitas e repetidas vezes, tinha tido atos torpes com o demônio, ajuntamentos nefandos e sodomíticos, tomando o demônio a figura de negro, outras vezes de bode (ANTT. Caderno n.114, liv. 306, f.95, doc. 211-214). Antônio Álvares Guerra, comissário do Santo Ofício, logo o reputou com apóstata.

Outros foram acusados de se consagrarem em verdadeiros rituais satânicos. A delação contra Cecília Rodrigues e Josefa, tachadas de “mestras de feitiçaria”, no Maranhão, em 1758, dá dimensão da extensão e alcance dessas cerimônias (ANTT, Caderno 119, Livro 301 [1743-1750], fls.464-476). Em um “congresso”, no dia de São João, reuniram-se mulheres trazidas de várias partes e terras distantes, de todas as cores e castas, para um verdadeiro “comércio com o demônio”. Ali se puseram nuas, invocando “Funda”, e nas covas de defuntos, na “postura de quatro pés”, foram seviciadas em torpíssimos e nefandos atos, “beijando-lhes os pés e partes pudentes da figura demoníaca que, umas vezes era homem, outras animal imundo, outras cachorro, outras bode ou cabrão, outras cavalo”. A cerimônia era entoada por ladainhas, blasfêmias heréticas, arrenegações da fé e adorações, clamando o diabo por Deus e entregando-lhe corpo e alma. Na Vila do Icó, as índias Juliana Dias e Rosa de Araújo contaram que ainda raparigas foram ensinadas e induzidas por uma Polucênia Roiz, índia, para que ambas tivessem atos torpes como demônio (ANTT, Caderno 119, Livro 311 [1743-1750], fls.464-476). Todos os dias, junto à margem do rio na fazenda Tapera, se encontravam com uma figura horrenda, afogueada, de preto, com pés de pato. Ali tomavam sangue em um caco e comiam bichos medonhos como lagartixas e calangos. Policência se punha de joelhos diante deles, relatava Juliana, e com cada um fazia desonestidade, dando-lhe com o sêmen na boca e tendo cópula, tudo diante delas. E daí por diante,

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sempre nas mesmas horas, todos os dias, continuaram todas as três, por muitos anos, cometendo as mesmas infâmias. De um lado, parece que estamos face a um sabá genuíno – posto repetir rigorosamente muitas das cerimônias congêneres documentadas em Portugal e noutras regiões da Europa, como ponderou Mott (2006a). Repetem-se nos sertões de Piauí os mesmos elementos do ritual sabático: a cerimônia de adoração do Diabo, o beijo simbólico em suas partes pudendas, o repisar ad nauseam de blasfêmias e impropérios heréticos contra Cristo e Maria Virgem, a arrenegação da fé católica, tudo isto arrematado com a prática de orgias abomináveis com Satanás e seus sequazes infernais. Por outro lado, o congresso de diabos da Mocha revela certas especificidades decorrentes do sincretismo luso-afro-ameríndio, demonstrando sua plasticidade em adaptar-se a situações socioculturais específicas do Novo Mundo. De fato, não se trata propriamente de um sabá nos moldes de outros processos da inquisição. Desses rituais escaparam significados importantes – fundamentais para quem os praticava – e que para os inquisidores, induzidos pela leitura do imaginário cristão, foram percebidos como atos demoníacos como na tradição europeia (Cruz e Santos, 2010).

Esse é o caso dos “descimentos de demônios”, tão mais espantoso aos ouvidos dos inquisidores. Vários índios foram acusados de participar em “congressos” sabáticos, regados a beberagens da “jurema”, enquanto o mestre, tocando o maracá, entoava a dança embalada pela cantoria indígena. Os que provavam da bebida caíam ao chão e tinham visões dos mortos – num cenário macabro descrito como uma possessão coletiva (ANTT. Liv.299, f.381-382). Foi justamente de uma dessas descrições que, em 1720, dom Souza e Castro, índio Principal e governador de sua nação dos Tabajaras, da aldeia da serra de Ibiapaba, foi dar conta pessoalmente à Mesa do Santo Oficio, em Lisboa (ANTT. Liv.286, f.585-593). Contava por meio de seu intérprete,15 o padre Antônio de Souza Leal, que a índia Antônia Guiragasu

“invocava os demônios que lhe respondiam várias perguntas do outro mundo”. Para isso, “tomava umas grandes fumaças de tabaco de cachimbo até ficar como fora de si”. Denúncia colhida e traduzida por um intérprete do depoente que sequer falava o português. Diante do exposto, o despacho da mesa, em Lisboa, determinava que Pe. João Guedes, da Companhia, ou o Pe. Francisco de Lyra, Superior da Missão de Ibiapaba, deveriam fazer as diligências do caso. Após novo interrogatório, confirmou-se tudo e até mesmo o sacerdote que missionara ali por 18 anos reiterou o depoimento. Escandalizava-o mais o fato de algum desses

“feiticeiros” nem sempre serem das missões, mas “filhos de índios com mulatos, criados fora da aldeia, como Pedro de Mendonça e Bento Teixeira”, ambos temidos e denunciados pelo mesmo oficio de descer demônios. De fato, estes rituais gentílicos persistiram em detrimento do trabalho árduo da conversão e ultrapassavam os limites dos aldeamentos. Como se vê, as tais cerimônias envolviam os índios

15 Quando os índios não sabiam falar o português, a mesa inquisitorial convocava um língua ou intérprete que se obrigava, por um “termo de intérprete”, a realizar a tradução (Ver ANTT. IL. Maço 47. Formulários do termo de redução e intérprete).

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principais e sua parentela, como na denúncia contra Afonso, índio ancião da aldeia de Maracanã (ANTT, Caderno 114, Livro 306 [1742-1745], fl.255), mas também outros colonos e mestiços que com os índios aldeados mantinham contato. Meio século depois, Deluvina e sua filha, Inácia da Encarnação, seguiam descendo os demônios, entoando canções, ao som do maracá, “falando rouco e mudando o tom da voz” (ANTT, Caderno 120, Livro 312 [1738-1750], fls.336-341). Todas essas práticas ancestrais circulavam e eram, portanto, tomadas em novos sentidos num processo dinâmico de re-semantização de tradições culturais diversas no caldeirão cultural no século XVIII. Os casos de feitiçaria e práticas mágicas delineiam bem o panorama da cultura popular ao abranger diferentes signos e diversos grupos sociais que se fundem, mesclam e se reinventam.

Infelizmente, não temos descrições mais detalhadas e profundas das crenças que inspiraram esse ritual, mas, sabemos que não se tratou de denúncias isoladas. Espraiaram-se num “culto diabólico” do Ceará até a Paraíba, tratando-se, pela convergência dos relatos, de um amplo movimento, como demonstrou James Wadsworth (2006). Impossível é não associar alguma dessas denúncias como um rastro dos rituais de beberagens tão comuns nos relatos etnográficos que atravessaram as paisagens e os tempos coloniais, reprisadas no enredo sabático que, sob a ótica dos inquisidores, se repetia aqui pela inspiração e transmigração do imaginário demoníaco do além-mar (Cruz, no prelo). Aos olhos da inquisição, tratava-se de uma perversão perigosa e herética, num intricado jogo, que enredava a ação do tribunal, entre o imperativo de reprimir esses rituais gentílicos e a pressão das autoridades coloniais temerosas de que uma correção severa provocasse uma instabilidade desastrosa na região.

Razão do vozerio e de futricas que tomavam as ruelas dos lugarejos, as denúncias de bigamia foram uma das infrações mais delatadas. Por se constituir em uma violação à união sacramentada pela Igreja, a bigamia foi responsável pela avalanche das delações. De fato, era tão costumeira, que, não por acaso, a razão alegada pelos delatores quase sempre era o modo de vida típico do gentio, como reminiscência de práticas poligâmicas, como quis sugerir o senso comum e o discurso da Igreja à época (Cf. Resende, 2003:221; 2005). No entanto, se tal justificativa foi reproduzida acriticamente, há de se entender melhor o sentido dessas uniões para os índios, que assumiu feições e interpretações próprias – com significados que extrapolam o sentido banal e episódico, corriqueiramente atribuídos aos relacionamentos com as índias (Vainfas, 1997:231).

Em Minas, por exemplo, não foi a bigamia a pecha que recaiu sobre a população indígena, mas o predomínio das uniões não sancionadas pela Igreja, como fica patente nas devassas das visitas episcopais.16 Por escapar aos ditames

16 Para uma discussão sobre concubinato e casamento na colônia, ver Silva (1984), Lewkowicz (1992, 2007:531-547, Vol.2) Figueiredo (1997), Torres-Londoño (1999), Brügger (2007). Mais es-pecificamente no caso dos índios em Minas Gerais colonial, ver Resende (2003, em especial capítulos 3 e 4).

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prescritos pela Igreja, o concubinato foi sobejamente denunciado nas devassas como crime contra a família,17 envolvendo 660 denúncias contra os índios por ocasião das visitas episcopais nas Minas durante o século XVIII (ver Resende, 2005:14).

Esses dados sugerem uma vez mais a especificidade da natureza dos delitos em Minas Gerais que se justifica ao menos em parte pela forma de inserção das populações indígenas no mundo colonial. Em descompasso com a política de casamentos interétnicos, em 1755 e implementada pela Lei do Diretório dos Índios, de 1758, que favorecia aqueles que se casassem com as índias (ver Almeida, 1997; Domingues, 2000:51-169), em Minas Gerais, imperou longa distância entre a pena da lei e o costume, colocando em xeque a ideia de que a política pombalina foi eficiente e sua aplicação imperativa em toda a colônia. A tentativa de garantir essa equidade foi aqui um fracasso, onde a animosidade em relação às uniões com as índias espelhava a dificuldade da sociedade mineira em aceitar o casamento entre desiguais.18 Cessadas as fase de ocupação e povoamento da região mineradora, procurou-se, em razão mesmo da intensa mistura racial que se produziu e que tornava as fronteiras sociais mais maleáveis e imprecisas, delimitar e vincar as distâncias, de forma a definir uma sociedade hierarquizada no espaço social. Por isso, muitos parentes não hesitaram em recorrer às autoridades eclesiásticas para impedir os casamentos mistos, por malvistos na capitania, ao colocarem várias restrições ao matrimônio entre seus parentes brancos e mulheres nativas. Diante disso, não foi incomum a interposição de toda a sorte de obstáculos aos nubentes, por parte de familiares descontentes com os enlaces.19 Em contrapartida, a ideia de uma vida licenciosa com as índias esconde uma realidade diversa, qual seja, o valor afetivo que essas relações ilícitas, compartilhadas no cotidiano das Minas, concorreram com o casamento como relacionamento estável e, tornando-se, por isso, motivo ainda de maior de escândalo (Ver Resende, 2011). Não por acaso, vários colonos foram delatados justamente por “estimarem demais” e “tratarem com

17 Segundo Luna e Costa, constituíam-se “crimes contra a instituição da família: incesto, biga-mia, concubinato, sodomia, bestialidade, noivos que coabitassem antes do casamento, casamen-to em grau proibido sem legítima dispensa, pais ou maridos que consentissem que suas filhas ou mulheres ‘fizessem mal de si’, casais que vivessem apartados sem causa justa, marido que desse má vida à mulher” (1980).18 Ronald Vainfas (1997:238-239) considerou que os preconceitos raciais – tão bem colocados em expressões como “limpeza de sangue”, “raças infectas” – não se ancoravam na escravidão de ne-gros e índios, já que tais preconceitos seriam anteriores, transplantados de Portugal para o Brasil. Dentro da realidade colonial, seriam os preconceitos de cor – este derivados do colonialismo escravista – os que vitimavam as negras, mulatas e índias. Em Minas, era recorrente a má repu-tação dos índios. Para dar apenas um exemplo, Adão Magnão foi denunciado por proposições e, entre outras idéiass, defendia que “o gentio não era gente”, Minas Gerais (ANTT. Cadernos do Promotor, liv.319, doc.390, s/d).19 Tais decisões paternas eram amparadas pela Igreja, que reputava os esponsais clandestinos celebrados sem a anuência dos pais e, na falta destes, dos tutores ou curadores. Ver, por exemplo: AEAM, Processo Matrimonial (PM), José da Costa Silva e Ana Joaquina (1793), Barra Longa, armário 4, pasta 486, Processo 4852; José Gonçalves Bastos e Agostinha Joaquina de São José (1789), Conselheiro Lafaiete, armário 5, pasta 510, Processo 5098.

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apreço” suas consortes indígenas. Alguns sequer se pejavam de expor publicamente suas consortes, causando grande constrangimento aos mais pudicos. O renomado capitão Matias Barbosa foi duramente criticado por seu comportamento acintoso: trazia sua índia concubina “à missa calçada, bem vestida, de manto e com outras escravas” (AEAM, liv.23, Devassa, f.121). Parece que a indignação dos mais ardorosos, além do fato ser “público e notório”, devia-se justamente ao desvelo e à afeição que muitos acabavam devotando às suas concubinas, sobretudo, nos casos de adultério, em prejuízo dos laços consagrados pelo matrimônio. Produzia-se, assim, uma inversão da ordem socialmente consagrada: as concubinas assumiam o lugar de esposa, dignamente vestidas e amparadas, enquanto as esposas padeciam de injúrias, misérias e vexames. Situação qualificada tão oportunamente como

“escandalosa”, por representar claro desafio aos ditames da Igreja, sempre invocados pelos delatores e reforçados pelo Juízo Eclesiástico.

De todo modo, a bigamia foi alvo fácil por ter sido um comportamento corriqueiro entre os índios coloniais – como, de resto, para boa parte dos colonos. O que podemos inferir dessas denúncias é que a Igreja cumpria o papel de enfatizar um discurso desqualificador dos indígenas, baseado nas raízes do “gentio da terra”, que, aos seus olhos, se constituíam no principal motivo, senão na principal justificativa de tamanha “devassidão e promiscuidade”. Nesse sentido, a Igreja naturalizava um discurso de que a origem autóctone imporia certo comportamento, maculado pela libidinagem, disseminando tal ideia por todos os recantos. Reprovando essa conduta e imputando um comportamento lascivo àqueles de origem nativa, procurava-se escamotear o cotidiano colonial, imerso em uma vivência bastante distante dos padrões ditados durante as visitações.

Grassando solta como um rastilho, a bigamia foi mesmo razão de preocupação para a mesa inquisitorial.20 Para tentar escapar ao controle, os índios recorreram a toda sorte de artimanhas: mentira sobre o estado civil, afirmando-se solteiro ou viúvo, informando notícias da morte do cônjuge, apresentando testemunhas falsas, mudando o nome – todos ardilosos expedientes corriqueiramente adotados por outros bígamos. Mas, em especial, chama atenção a tentativa frequente de inocentarem-se sob a alegação de que não sabiam que “cometiam pecado”.

Esse pretexto não só marca a sagacidade dos índios em impingir a responsabilidade aos seus evangelizadores, mas parece refletir o espírito de um debate acalorado à época sobre a inocência presumida dos índios, baseado no princípio de sua “ignorância invencível”.21 Segundo essa tese, os índios, pela

20 Das denúncias vertidas em processos, há 24 de bigamia (sendo que o de Felícia Ana está fragmentado em três processos), há 17 sem sentença final, seja por serem apenas fragmentos ou estarem de fato inconclusos; outros 6 foram tomado como “casos extraordinários de absolvição” e apenas uma condenação de Custódio da Silva.21 No século XVIII, essa tese é referida como exemplo das atrocidades dos jesuítas. “Pela mesma razão, um gentio que ignorar invencivelmente o verdadeiro Deus, não pecará formalmente adorando a ídolos. Da mesma forma, não pecará de forma alguma aqueles que, por ignorância invencível, seguir o anti-cristo” (Compêndio Histórico do Estado da Universidade de Coimbra,

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ignorância invencível da lei natural, cometiam apenas pecado moral. Apesar da gravidade de seus pecados, não se podia considerar como ofensa intencional a Deus e, por isso, não cabia castigo eterno. Este foi, portanto, um importante contra-argumento levado a cabo pela Escola Peninsular da Paz, partilhado por Francisco de Vitória e padre Antônio Vieira, e que parece ter tocado ao menos alguns membros da mesa pelo teor dos julgamentos. Isso poderia ajudar a explicar as sentenças discordantes e contraditórias em delitos da mesma natureza inquisitorial. Difícil é não ver aqui dissenso de opiniões.

Fato é que a “ignorância” e “desconhecimento” foram amplamente instrumentalizados pelos índios na voz de seus procuradores. Essa foi justamente a alegação de Antônio da Silva, índio, natural da missão dos capuchinhos, bispado de Pernambuco, com 24 anos de idade. Fora denunciado e condenado por haver se casado pela segunda vez, estando viva sua primeira e legítima mulher. O missionário frei Antônio de Nazaré mandou prendê-lo e, na cadeia, ele amargou dois anos até ser embarcado para Lisboa. Em sua confissão, alegara que cometera a culpa “por ignorar o grande mal que fazia”, atribuindo à ineficiência da doutrinação a razão de seu delito (ANTT. IL. Processo n.6275). Mas, de toda forma, o índio Antônio sequer teve tempo de ser ouvido. O alcaide dos cárceres secretos comunicou aos inquisidores que falecera pouco tempo depois de uma hidropsia grave. Outros sequer sobreviveram à viagem, como Nazário Gonçalves, da aldeia de São José, em São Paulo, que se casara pela segunda vez, depois de mudar de nome, passando a chamar-se José Pacheco. Foi preso em Minas Gerais, onde vivia, e conduzido para ser entregue ao Santo Ofício. Destino que não se cumpriu, pois faleceu de uma obstrução no ventre agravada por uma febre ardente durante a travessia atlântica (ANTT. IL. Liv.314, f.213-225. ANTT. Liv.818, f.227-263). Alguns nem chegaram a ser implicados. Em 1756, em Minas Gerais, uma carijó casada havia cometido “superstições”, mas fora “aliviada de ser penalizada” porque fora “sem pacto, por simplicidade, pois é gentia da terra que mal conhece a Deus” (ANTT. Cadernos do Promotor, liv.308, f.0380-0382, doc.151-152).

Felícia Ana, procedente do rio Negro, em 1751, enredava a mesa pelo seu desconhecimento da doutrina, pois, segundo o depoimento, “não sabia o que era céu, nem inferno, dizendo que ninguém a havia instruído” (ANTT. IL. Processo n.2911). Rosaura, índia Japurá, mostrava seu descaso. Fora asperamente repreendida e obrigada a fazer vida marital com o seu primeiro esposo, tendo sido anulado o

1771; II Centenário da Reforma Pombalina, por Ordem da Universidade de Coimbra, 1972, no Apêndice ao capítulo Segundo da Segunda Parte, à página 19, parágrafos 40 a 48). Vieira de-fendia essa tese na Clavis contra Suárez e São Tomás de Aquino; ambos, baseados em S. Paulo, entendiam que todos os pagãos tinham inscrita no seu coração a lei natural, que ensina a dis-tinguir o bem do mal e a amar a Deus, razão por que os pagãos não estavam isentos de desculpa (Calafate, no prelo; ver em especial o tópico “A questão do pecado filosófico nos povos ameri-canos: fora da igreja pode haver salvação”). No tocante à salvação, a teologia católica não era unânime, ver também Schwartz (2009:65-66).

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segundo matrimônio que contraíra. Na verdade, contraíra não um matrimônio, mas três, conforme apurou o inquisidor (ANTT. IL. Processo n.222).

Muitos, recorrendo a marombas e alegando o desconhecimento da doutrina, procuraram assim se justificar. A crítica implícita ao papel evangelizador dos missionários e à ineficiência da doutrinação religiosa de que os índios dão conta é também usada na alegação de que o casamento fora contra a vontade, expediente sagaz que colocava em cheque a validade do matrimônio, segundo os próprios termos das Constituições do Arcebispado da Bahia e da própria doutrina cristã. Inquirido se sabia que incorrera em bigamia, o índio Custódio informava que tinha se “casado obrigado pelo seu missionário, o padre Bento da Cruz, e por essa razão, julgou “ignorantemente que o seu primeiro casamento fora nenhum e podia casar livremente a segunda vez” (ANTT. IL. Processo n.6689). Ao que parece não era tão ignorante nos assuntos da fé e maquinou em seu favor. Foi, enfim, admoestado e solto.

Esses argumentos parecem ter sido considerados e sobre essa questão a mesa inquisitorial se debruçou, favorecendo sentenças mais brandas, “atendendo a ignorância, grande rusticidade e falta de instrução” dos índios. Ao final, as decisões retratam uma “interpretação benigna” por ser o índio “pobre e miserável, que nasceu e se criou nas trevas da gentilidade e do paganismo, não teve instrução alguma na doutrina e mistérios da fé e mais coisas necessárias para a salvação nem saiu da lamentável ignorância e total rusticidade que são propriamente ordinárias dos índios!” (ANTT. IL. Processo n.2703) – justificativas repetidas no enredo dos despachos finais.

Caso único e extraordinário de condenação por bigamia foi a de Custódio da Silva, índio, denunciado pelo frei de São José de Santa Teresa, em 1741 (ANTT. IL. Processo n.11178. ANTT. IL. Maço 31, s/n).22 Tinha 28 anos, era carpinteiro, natural da Aldeia do Menino Jesus da Igreja do Igarapé Grande, distrito do Pará. Filho de Manoel e Polônia Maria, naturais e moradores da dita aldeia, Custódio tinha sido batizado na aldeia e crismado na Sé do Pará. Como podemos ver, Custódio da Silva era mais um de tantos índios que se tornara, assim, um “cristão”. Custódio se casou com a índia Cezilia, na Aldeia do Menino Jesus, sua primeira esposa, com quem não teve filhos. Segundo seu depoimento, ela andava “mal encaminhada com outro índio” e, diante desse fato, decidiu ausentar-se da aldeia e abandonar sua esposa, passando para Marajó, onde trabalhava na roça de Dionísio Campello. Ali conheceu a índia Maria, com quem terminou por se casar uma segunda vez na Igreja de Santa Ana. Levou vida marital com a dita índia por alguns anos, até

22 Na “Lista impressa das pessoas que saíram condenadas, que tiveram sentenças, que se leram no auto publico da fé que se celebrou na Igreja do Convento de São Domingos desta Cidade de Lisboa, em 26 de setembro de 1745 sendo inquisidor geral o eminentíssimo e reverendíssimo Senhor Nuno da Cunha, presbítero cardeal da Santa Igreja de Roma do título de Santa Anastásia do Conselho do Estado” consta o nome de Custódio da Silva, índio, carpinteiro, natural da aldeia do Menino Jesus do Igarapé grande morador na Roça do Marayo, bispado do Pará, pro-cessado por bigamia e condenado a açoites e 5 anos para as galés.

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que uma vez mais decidiu ausentar-se para a aldeia de Araticu, onde foi preso pelo Tribunal do Santo Ofício, acusado de bigamia. Situação nada excepcional como em muitos outros casos recorrentes na errância dos índios… No entanto, no processo de Custódio salta aos olhos uma particularidade. Nem Custódio nem sua primeira esposa sabiam falar português. Ele prestou seu depoimento por meio de um intérprete, o padre Aires. Se o objetivo do inquisidor ao analisar os meandros do delito era vasculhar a consciência do delinquente, a fim de descobrir suas “verdadeiras” intenções ao incorrer no crime, é difícil não reconhecer a complexidade em penetrar no propósito de Custódio (e de tantos outros índios), que sequer falava a língua portuguesa. Não parece improvável que tendo sido re/interpretado por uma terceira pessoa não tenha havido ali muitos mal-entendidos nessa tradução cultural.23

Foi julgado e qualificado como bígamo. Condenado, abjurou de leve, por ser suspeito da fé católica. Instruído nos mistérios da fé, cumpriu as penas e penitências espirituais que lhe foram impostas. Sob o olhar de uma multidão, fez Auto da fé na forma costumeira. De carocha e sambenito, foi açoitado citra sanguinis effusionem pelas ruas públicas de Lisboa até a Igreja de São Domingos, onde, na presença do rei dom João V, o Príncipe e os infantes dom Pedro e Antonio, inquisidores, mais ministros e toda a nobreza foi sentenciado ao degredo por cinco anos para trabalhar nas galés de Sua Majestade.

Como explicar a disparidade das sentenças, o rigor do tribunal nesse único caso e a complacência nos outros, se a natureza do delito da bigamia era a mesma? A bigamia, considerada como delito de foro misto, tinha jurisdição partilhada entre a justiça civil, episcopal e o tribunal inquisitorial, o que poderia levar a conflitos interpretativos e de competência (Drumond, 2004:309). A alçada inquisitorial atuava ora severamente nos casos em que os réus se “sentiam mal” do sacramento do matrimônio, atentando contra a doutrina cristã e, por consequência, contra a Igreja; ora mais complacente tomando em conta as circunstâncias atenuantes, julgando que não se tratava propriamente de assunto de fé (Drumond, 2004:309; Vainfas, 2010:322-327). Neste caso, caberia aprofundar as tensões e rivalidades interpretativas do pensamento sobre o quanto a “ignorância invencível” dos índios reverberou na mesa. De toda forma há de se considerar que crimes de natureza muito semelhantes foram apreciados diferentemente, segundo a época ou o juízo da mesa, demonstrando que o tribunal não seguiu o regimento rigorosamente, como já assinalaram Bethencourt e outros autores. Por isso a análise dos casos e de suas sentenças é reveladora, quando comparadas no tempo e nas diversas regiões, por sugerir interpretações e decisões destoantes tomadas pelos agentes inquisitoriais. Em muito desses casos, resvalam, nas entrelinhas, uma instituição limitada por conflitos de competência, crítica à eficiência da ação evangelizadora, arremedo dos índios sobre a ignorância da doutrina, incapacidade de controle

23 Sobre as dificuldades nas traduções “culturais”, por causa da língua, ver Alonso (2008), Barros (1986).

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de imensos territórios e suas gentes, a “tropicalização da consciência” do clero, a reticênca das autoridades coloniais e o próprio enfraquecimento do Tribunal – todos motivos que concorreram para uma ação que pendeu entre a austeridade na aplicação da lei e a realidade ameríndia de cada porção do grande e distinto Brasil.

Talvez por isso mesmo, no estertor dos últimos anos da atuação do Santo Ofício, a mesa reconhecia em parecer, de 1810, o fracasso da ação inquisitorial diante da persistência das superstições dos índios que seguiam assolando a colônia (ANTT. IL. Maço 28, doc. 19. Carta da mesa em resposta a consulta de Marcos Pinto Soares). Consultada sobre essas práticas e outras “frivolidades”, recomendava que, “ainda que os referidos fatos de simples superstição sejam pertencentes ao conhecimento do Santo Ofício, contudo atendida a ignorância e materialidade com que são obrados, V. M. poderá absolver os penitentes compreendidos em semelhantes culpas, (…) impondo-lhes as penitências espirituais que julgar necessárias para a emenda”. Ou seja, dentro da política geral que seguiu o Santo Oficio naquela altura, com a flexibilização do Regimento de 1774 sobre as práticas mágicas, o Tribunal finalmente se rendia também à esterilidade deste território para as vinhas do Senhor.

Enfim, as denúncias inquisitoriais aqui relatadas se destacam por colocar a perspectiva indígena ao inscrever as diferentes percepções que construíram sobre os desafios que vivenciaram. Para a compreensão desse amplo cenário, o entendimento da identidade e cultura indígenas deve ser, então, matizado por uma atuação mais flexível, fluida e relacional analisada em cada contexto histórico na ampla paisagem das múltiplas experiências das populações indígenas na colônia, como ensina a nova história indígena em que pese as reconstruções de identidades e culturas nas várias situações de contato envolvendo índios e seus descendentes. Este capítulo foi um esforço nessa direção. Ao tentar adotar este ponto de vista, procurei contemplar nessas narrativas inquisitoriais um enredo nativo, um cenário ainda tão pouco conhecido das nossas Minas indígenas e, por extensão, do nosso Brasil ameríndio!

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ANTT. Processo n.13202.ANTT. Processo n.213. ANTT.IL. Processo n.11178.

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16.

Uma nova invenção da bruxaria diabólica: a Jurema e a Inquisição1

James Wadsworth

Um novo culto, envolvendo o consumo ritual de uma bebida alucinógena feita a partir das raízes da planta Jurema, chamou a atenção das autoridades coloniais na Paraíba, na década de 1730. Ao contrário de outros cultos indígenas, que se desenvolveram no contexto das invasões coloniais, o Culto da Jurema não representou uma resposta sincrética ou milenarista à conquista. Era, ao contrário, uma reformulação da tradição indígena com o intuito de afirmar sua identidade e procurar o divino de maneira familiar. Apesar dos esforços iniciais para suprimir o culto, ele persistiu por causa da resistência dos índios, da incompetência dos líderes religiosos e políticos locais, da sua capacidade em atrair tanto participantes indígenas, quanto não-indígenas e da falta de vontade inquisitorial em processar as heresias dos índios.

Apesar da Inquisição nunca ter excluído os índios de sua jurisdição, ela também não fez muito esforço em persegui-los (Siqueira, 1996). Claro que existem grandes processos, como o do Culto de Jaguaripe mas, em geral, os índios nunca foram parte importante dos perseguidos pela Inquisição portuguesa. À primeira vista, isso pode parecer estranho, uma vez que sabemos que os índios continuaram a praticar suas religiões indígenas no Brasil, muitas vezes misturadas com o catolicismo e com os sistemas religiosos africanos. Podia-se esperar que este real potencial para heresia tivesse atraído o interesse da Inquisição. Mas isso não aconteceu. Vários fatores podem ser apontados como responsáveis por isso.

Em primeiro lugar, a maioria dos índios conquistados do Nordeste do Brasil vivia em aldeias missionadas, onde permaneciam sob a jurisdição dos missionários, que lidavam eles próprios com os lapsos religiosos de seus neófitos. Em segundo lugar, debates internos às ordens religiosas, sobre a melhor forma de converter e civilizar a população indígena, enfraqueciam seus esforços de aculturação desses povos e permitiam certa quantidade de tolerância. Em terceiro lugar, a maioria dos

1 Esta pesquisa foi publicada, primeiramente, no meu artigo intitulado “Jurema and batuque: Indians, Africans, and the Inquisition in Colonial Northeastern Brazil”, no v. 46, n.2, da revista History of Religion (November 2006, p.140-161). O presente capítulo é uma atualização e revisão desse trabalho. Gostaria de agradecer a Maria Leônia Chaves de Resende por me ter gentilmente fornecido várias denúncias sobre a Jurema, que foram aqui incorporadas.

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oficiais da Inquisição residia na estreita Zona da Mata, situada ao longo da costa, muito distantes do interior onde estava o grosso da população nativa. Desta maneira, a maioria dos inquéritos do interior, quando chegavam a se realizar, tinham que ser conduzidos por clérigos de fora do aparelho inquisitorial (Wadsworth, 2004). Em quarto lugar, nem os donos de escravos, nem os missionários solicitavam normalmente a interferência de oficiais que poderiam restringir sua própria autoridade. Em quinto lugar, nem todos os desvios religiosos representavam uma ameaça real para a sociedade colonial, que justificasse o esforço e a despesa da repressão. Finalmente, nos casos em que a repressão pudesse degenerar numa desastrosa instabilidade local, tentativas inquisitoriais de controle poderiam ser impedidas pelas próprias autoridades coloniais, que não estavam dispostas a arriscar perigosas convulsões sociais.

Os índios que aparecem nos registros inquisitoriais foram, na maioria das vezes, denunciados por bruxaria, superstição e bigamia. Alguns poucos foram denunciados por sodomia e blasfêmia.2 No Auto de fé, realizado em Lisboa em 26 de setembro de 1745, o índio Custodio da Silva foi condenado a ser açoitado e mandado às galés por cinco anos, pelo crime de bigamia.

Bruxaria parece ter sido estreitamente associada pelos colonos brasileiros aos negros, índios ou mestiços, uma vez que muitas das denúncias de bruxaria culpavam indivíduos de uma dessas etnias. Isso sugere que esses crimes foram fortemente associados a esses grupos étnicos, embora certamente não se limitassem a eles.

Deve-se também lembrar que tanto as religiosidades indígenas quanto as africanas haviam sido, pelo menos desde o século XVI, associadas, nas mentes dos clérigos europeus, a atividades demoníacas.3 Se essas práticas eram demoníacas ou não, não é tão importante quanto o fato de que elas foram percebidas como tal. No Brasil, as formas de expressão religiosas africanas e indígenas misturavam-se com o catolicismo português popular, todos com fortes tradições espiritualistas, que buscavam controlar, ou pelo menos influenciar, o sobrenatural. Quando estas tradições se misturavam, elas, frequentemente, criavam inversões sincréticas da moral cristã, incomuns, que contestavam a cultura portuguesa dominante, como o famoso culto no final do século XVI da Santidade de Jaguaripe, na Bahia.

Esse culto da Santidade combinou elementos cristãos, indígenas e africanos. Ronaldo Vainfas afirma que ele representava uma forma de idolatria insurgente que buscava resistir ao colonialismo português. Alida Metcalf (1999) sugeriu, mais recentemente, que era, mais adequadamente, “um movimento milenarista de escravos” (Ver também Vainfas, 1995). De qualquer maneira, o movimento do Jaguaripe passou a ser visto como uma ameaça grave à sociedade

2 Ver Arquivo Nacional-Torre do Tombo (ANTT). Inquisição de Lisboa (IL). Livro 299, f.381--382v; ANTT. IL. Livros 327-329; ANTT. IL. Maço 27, n.30; ANTT. IL. Maço 30, n.11.3 Laura de Mello e Souza (1986, 1993) lidou extensivamente com religiosidade popular, sincretis-mo religioso e bruxaria no Brasil.

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colonial e foi completamente reprimido através dos esforços combinados de oficiais coloniais e da Inquisição.

O Culto da Jurema do século XVIII está em gritante contraste com a repressão bem-sucedida do movimento do Jaguaripe. Ele se difundiu cada vez mais, foi intensamente vivido, e jamais chegou a ser reprimido com sucesso. A primeira denúncia à Inquisição ocorreu na década de 1730 e depois, periodicamente, até que uma investigação formal foi ordenada somente na década de 1780. O atraso em si não é surpreendente, dado que nem os índios, nem as práticas de bruxaria estavam na lista das prioridades da Inquisição nas colônias. Mas o atraso e o eventual fracasso em investigar e suprimir o uso da Jurema permitem compreender a natureza e a extensão do poder da Inquisição nas colônias, bem como a capacidade de resistência das tradições espirituais indígenas.

A Jurema

Na década de 1730, os missionários da Paraíba começaram a tomar conhecimento de uma “nova invenção” de “bruxaria diabólica”, que acontecia nas aldeias indígenas em torno de Mamanguape, situada na capitania da Paraíba, no Nordeste do Brasil. A Junta das Missões, de Pernambuco, cuidou do assunto em 8 de setembro e, novamente, a 19 de setembro de 1739.4 A Junta das Missões funcionava como um órgão consultivo do bispo e a ação contra o Culto da Jurema estava, pois, dentro das responsabilidades do bispado de policiar a ortodoxia de seu rebanho. A Junta decidiu punir severamente os líderes do movimento como um exemplo para o restante dos índios missionados. Ela também ordenou que os missionários examinassem todos os índios sob sua jurisdição que haviam participado do culto, repreendendo-os severamente e que informassem tudo à Inquisição (AHU. Pernambuco. Caixa 56, doc.4884. Registro da Junta das Missões de Pernambuco. 19 de setembro de 1739). Eles poderiam agir porque o bispo possuía plenos poderes para proceder contra as heresias dentro de sua diocese.

Em 1743, o padre José de Calvatam, da Missão dos Coremas, na Paraíba, seguiu as ordens da Junta e denunciou o culto à Inquisição. Ele alegou que este havia se espalhado para as aldeias do Panaty, do Jacoca, das Pegas e todas as outras na região (ANTT. IL. Livro 299, f.381-382v. Carta do padre Felix Maria de Melo ao promotor do Tribunal de Lisboa. Recife, 15 de fevereiro de 1743). Em 1755 e novamente em 1759, o padre da missão da Cariris,5 perto da cidade de

4 A Junta incluía o bispo, o ouvidor geral, o provedor da fazenda, e os prelados de varias ordens religiosas. O relato de 1739 vem de uma série de documentos achados no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU). Pernambuco, caixa (cx) 56, documento (doc) 4884. Recife, 1o. de julho de 1741. Muitos dos documentos foram severamente danificados e, em alguns casos, estão comple-tamente ilegíveis.5 A família de línguas Cariris se estende do Ceará e Paraíba até a Bahia. Os Tupi da costa se referiam ao povo do interior como Tapuias, que significa “inimigos opostos”. Os portugueses

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Paraíba do Norte (João Pessoa), também reclamou à Inquisição que os índios de sua missão continuavam a praticar o novo culto e que este estava se espalhando mais rapidamente porque os índios não estavam mais confinados a suas aldeias sob a tutela dos padres. Ele se referia às mudanças na política de aldeamentos indígenas após a expulsão dos jesuítas, em 1759, e à criação do Diretório Geral dos Índios. Em 1756, frei Graciano de Santo Domingos informou que a Jurema estava sendo usada em rituais diabólicos na Aldeia do Apody, no Maranhão (ANTT. IL. Livro 310, f.55-56). Por todos esses relatos percebe-se que o novo Culto Jurema estava se espalhando rapidamente. Como isso se explica?

Devemos, primeiramente, olhar para a estrutura e para os valores das comunidades indígenas. As tribos costeiras brasileiras compartilhavam várias características comuns que ajudam a entender suas respostas à conquista colonial. A unidade básica de organização dos índios costeiros era a vila multifamiliar. Cada aldeia possuía um chefe, cujo sucesso no campo de batalha, alianças de casamento favoráveis e habilidades de oratória sustentavam a influência que exercia na comunidade. No entanto, sua autoridade sempre foi limitada pelo consentimento dos aldeões. Essas comunidades acreditavam fortemente na eficácia do costume antigo e, muitas vezes, se recusavam a mudar uma longa tradição que os portugueses achavam ofensivas, tais como a bigamia e o ritual de sacrifício e canibalização de prisioneiros.

Os chefes eram responsáveis por proteger as tradições da aldeia, juntamente com os xamãs ou pajés. Os xamãs mediavam a relação da comunidade com o divino e mantinham o conhecimento coletivo de cura, de interpretação dos sonhos e de proteção contra as forças sobrenaturais, como demônios e espíritos. Os pajés exploravam uma vasta gama de plantas e animais que possuíam poder espiritual e simbólico. Música, dança, transe, fumo e drogas alucinógenas faziam parte da sua panóplia de poder. Profetas errantes ou caraíbas muitas vezes apareciam com uma mensagem messiânica de renovação e regeneração, levando seus seguidores a peregrinarem a uma “terra sem mal”.

Com tudo isso, a guerra desempenhava um papel central na vida da aldeia. Os índios buscavam a guerra para se vingarem de erros reais ou supostamente cometidos por comunidades vizinhas, para adquirirem prisioneiros para o sacrifício e para o que poderíamos chamar de razões geopolíticas associadas a alianças intertribais (Monteiro, 1999).

Em meados do século XVIII, as comunidades indígenas da Paraíba haviam passado por um longo processo de conquista, ocupação e evangelização, que havia começado no início do século XVI. Até o final desse século, os povos indígenas do litoral paraibano haviam sido derrotados e colocados em assentamentos missionários. A invasão e a ocupação holandesa (1630-1654) de grande parte do Nordeste, no início do século XVII, desestabilizaram toda a região e permitiram

se apropriaram do termo e aplicaram-no a todas as pessoas do interior (Ver Dantas, Sampaio e Carvalho, 1998).

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que as comunidades indígenas reafirmassem sua independência. Muitas ainda se aliaram aos holandeses.

Os últimos quinze anos da guerra holandesa também coincidiram com a guerra portuguesa para independência da Espanha. Tudo isso significou que organizar, financiar e realizar um trabalho missionário na região tornou-se difícil e intermitente. Em 1681, a Junta de Missões foi criada no Bispado de Pernambuco para tentar controlar mais eficazmente a evangelização dos índios, distribuindo suas aldeias entre as várias ordens religiosas.

A nova expansão dos portugueses sobre o território indígena, após o fim das guerras holandesas, levou a um período prolongado de instabilidade que ficou conhecido como a Guerra dos Bárbaros. A guerra na Paraíba durou entre meados de 1680 até meados de 1720. Foi uma revolta geral em toda a região nordeste. Ela atingiu todos os grupos que, mais tarde, foram denunciados à Inquisição pelo uso da Jurema (Xukuru, Pega, Panaty, Korema, Tapuia, etc.) As guerras finalmente terminaram com a pacificação brutal dos índios, realizada com a ajuda de combatentes indígenas especializados trazidos do sudeste do Brasil, sob o comando de antigos bandeirantes paulistas. Embora a população indígena da Paraíba tivesse, tecnicamente, sido pacificada, isso não significou que eles foram completamente dominados. Rebeliões e distúrbios locais persistiram, em diferentes áreas do Nordeste, até o século XX (Dantas, Sampaio e Carvalho, 1998:437-446; Pires, 1990).

É neste contexto contínuo de contestação à dominação colonial e interação violenta entre índios e colonos que devemos contextualizar a ascensão do Culto da Jurema. Na década de 1730, quando o culto foi notado pela primeira vez pelas autoridades coloniais, o antigo sistema missioneiro, em que os religiosos das Ordens Primeiras, especialmente os Jesuítas, eram responsáveis pelos assuntos temporais e espirituais das aldeias, estava sendo questionado. O programa missionário normalmente incluía a conversão dos chefes, na esperança de que aldeões seguissem os mesmos passos, a instrução religiosa das crianças e o deslocamento dos xamãs como líderes religiosos da comunidade. Em 1755, esse sistema foi substituído por um novo, no qual o governo temporal das aldeias foi entregue aos chefes

“principais”. Isso durou apenas até as reformas pombalinas, quando, em 1759, a criação do Diretório Geral dos Índios permitiu a exploração mais efetiva do trabalho indígena e das riquezas pelas autoridades seculares.

Até o final de meados do século XVII, praticamente todos os índios do litoral Nordeste viviam em aldeias missioneiras ou haviam vivido nelas. Mas isso não significou que eles tenham sido aculturados com sucesso. As interrupções frequentes nas atividades missionárias causadas por guerras, doenças, deslocamentos, instabilidades política, fomes, resistências e rebeliões limitavam a amplitude da assimilação e da aculturação. As comunidades indígenas da Paraíba experimentaram longos períodos de relativa independência do controle colonial. Assim, apesar de graves perturbações e de mudanças reais na vida

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indígena, a sua cultura e a sua religião persistiram e mantiveram-se disponíveis para serem reafirmadas e reinterpretadas.

O Culto da Jurema do início do século XVIII retirou seu ritual, seu simbolismo e seu significado dessa tradição indígena. Este novo culto girava em torno do consumo de uma mistura alucinógena chamada Jurema, do uso ritualístico do fumo de tabaco e da dança.6 A mistura da Jurema era feita a partir da casca da raiz da árvore espinhosa com o mesmo nome que era comum em todo o litoral. Também podem ter sido incluídas as raízes de um tipo de junco.

As duas espécies da planta da jurema mais comuns são a Jurema Preta (Mimosa hostilis) e a Jurema Branca (Mimosa verrucosa). Estudos etnográficos modernos têm mostrado como os índios do século XVIII poderiam ter processado a planta. A casca é arrancada desde a raiz e batida para remover a sujeira e a casca exterior. A casca pulverizada é fervida ou embebida em água e pressionada repetidamente até que sobre apenas um líquido espesso avermelhado (Lima, 1946). Os índios da missão de Cariris também acrescentavam raízes da planta junco. O ingrediente ativo na jurema é, aparentemente, a DMT (dimetiltriptamina). Não se sabe o que mais possa ter sido adicionado à mistura, embora práticas mais recentes sugerem que pode ter sido mel, acrescentado para deixá-la doce (Ver Schultes e Hofmann, 1992:50, 70-71; Mota, 1997).7

Em 1743, o Culto da Jurema havia desenvolvido seu conjunto próprio e distinto de rituais e crenças, pelo menos na Paraíba, cuidadosamente descritos pelo padre José de Calvatam, muitos dos quais ainda persistem entre as tribos indígenas do Nordeste e em religiões afro-brasileiras. Infelizmente, o padre Calvatam não foi capaz de descrever as crenças espirituais mais profundas que inspiraram o movimento e davam-lhe sentido. Ele via o culto como uma perversão diabólica e, então, descreveu apenas as práticas e crenças que achava perigosas, ameaçadoras ou heréticas.

Segundo o Padre Calvatam, aqueles que queriam beber a jurema e participar do culto tinham primeiro que ser “curados”. Os índios acreditavam que participar da Jurema, sem primeiro ser curado, poderia levar à morte. A cura ocorria em uma clareira onde havia sido feito um incêndio que deixava brasas acesas. Uma mistura de várias raízes era lançada nas brasas para criar uma fumaça espessa. A pessoa a ser “curada” deveria deitar-se na clareira para que seu corpo recebesse toda a fumaça, que iria curá-lo para sempre. Padre Calvatam informou que os índios alegavam que aqueles que bebessem a jurema não morreriam. Mas aqueles que não bebessem a mistura e depois se casassem ou se deitassem com uma mulher que havia bebido, iriam emagrecer lentamente até que “morressem de magro”.

6 O ritual associado à maioria das danças indígenas no Nordeste incluía o consumo de algum tipo de bebida (Ver Pinto, 1938:274, Vol. 2).7. José de Alencar descreveu uma alucinação induzida pela jurema em seu livro Iracema (2000:53-54).

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Os participantes também precisavam de um maracá (chocalho). Enchia-se o maracá com pedrinhas ou com a casca seca da raiz da jurema, misturadas com folhas de tabaco. Aqueles que sabiam como fazer a Jurema e que, consequentemente, se tornaram líderes do movimento, eram chamados de mestres da jurema. Eram eles que misturavam a bebida enquanto cantavam (provavelmente cantando uma música original para a jurema) e agitando seus maracás. Estes mestres provavelmente ocupavam o papel tradicional dos xamãs ou dos profetas errantes. Atualmente, eles são chamados de pajés. Seja qual for o caso, eles se encaixam claramente numa categoria mais ampla de líderes espirituais. Também parece provável que os mestres fossem responsáveis pela difusão do culto para outras comunidades indígenas.

Assim como outros rituais indígenas e africanos, o consumo da jurema incluía a dança. Os participantes dançavam, aparentemente em um círculo, até que desmaiassem e caíssem no chão como se estivessem mortos. Eles não podiam se levantar até que o maracá fosse balançado em seu rosto, enquanto uma canção era cantada.

Este ritual é muito parecido com o que Oswaldo Gonçalves de Lima testemunhou, em 1942, entre os Pancaru, em Pernambuco. A diferença é que os Pancaru utilizavam uma mistura sincrética de tradições religiosas. Entre eles, Lima encontrou o mestre fazendo o sinal da cruz com o fumo do tabaco e invocando os nomes de Jesus Cristo, de Deus, da Mãe de Deus, da Nossa Senhora, do Pai Eterno e do Padre Cícero. Nenhuma das descrições da Jurema do século XVIII indica qualquer sincretismo no culto (Lima, 1946:47). Em vez disso, vemos o uso tradicional da fumaça do tabaco, dos maracás, do canto, das danças em círculo e da encarnação de espíritos, induzidos pelas drogas que permitiam o contato com seus antepassados.

Esta evidência de mistura sincrética fez com que os estudiosos modernos, como Lima, recuassem esse sincretismo no tempo e argumentassem que ele representou uma parte fundamental do “complexo da Jurema” (Ver, por exemplo, Mota e Barros, 2002:21; Mota, 2005:222 e 227). O uso generalizado da jurema em religiões afro-brasileiras também levou alguns a questionarem se a planta e o ritual eram de origem africana. Os registros da Inquisição demonstram claramente que o Culto da Jurema se inspirou na prática religiosa e farmacopeia indígenas.

O aspecto do ritual mais perturbador para os sacerdotes que denunciaram o culto foi a aparente incidência de atividade demoníaca. Segundo os missionários, quando todos os participantes estavam bêbados, o diabo aparecia na forma de um anjo e adivinhava eventos futuros. Ele também aparecia na forma de uma cabra e ficava no meio deles, enquanto todos dançavam em torno dele. O bode também falava com o mestre, que era o único capaz de o entender. Outro informante declarou, no entanto, que nunca vira uma cabra, mas apenas um pequeno veado.

Essa ênfase sobre a natureza demoníaca das atividades que envolvem a utilização da jurema aparece na denúncia, de 1756, do índio Gaudêncio da aldeia do Apody, no Maranhão. Gaudêncio foi acusado de usar feitiçaria para matar

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pelo menos cinquenta pessoas. Quando ele queria usar da feitiçaria, ele bebia a Jurema. Quando o fazia, demônios lhe apareciam em variadas formas, incluindo alguns com “cabelo grosso, e barbas como de uma cabra, outros com chifres de bode, cascos divididos, e orelhas de cão, e alguns na forma de mulheres, com as quais ele se engajou em ato carnal”. Gaudêncio também poderia voar quando ele queria (ANTT. IL. Livro 310, f.55-56). Claramente, esta descrição se assemelha mais às superstições clericais do que às crenças indígenas. O bode, com chifres e cascos fendidos, nunca foi mencionado pelos participantes, mas somente por aqueles que achavam o ritual perigoso.

Calvatam informou que a droga, muitas vezes, produzia alucinações tão terríveis, que deixava alguns tão assustados a ponto de não tomarem novamente a bebida. Alguns relataram ter visto cadáveres com bocas abertas e cabelos que pareciam cobras. Outros afirmaram ter visto coisas bonitas, como palácios, pinturas, e igrejas. Alguns afirmaram ter visto o céu se abrir e os mortos se levantarem, para se sentarem ao lado deles sem conversar.

Em 1743, o Padre José de Calvatam informou que os índios não acreditavam no céu ou no inferno, mas que todas as almas dos mortos vagavam pelos campos e eram elas, os fantasmas que viam vagando durante a noite. Alguns índios também se recusavam a aceitar os sacramentos e não acreditavam que Cristo estava na Eucaristia. Os índios mais velhos eram os mais obstinados, afirmou ele, e interrompiam a cerimônia da comunhão, gritando para os sacerdotes enquanto eles a executavam (ANTT. IL. Livro 299, f.381-382v. Carta do padre Felix Maria de Melo ao promotor do Tribunal de Lisboa. Recife, 15 de fevereiro de 1743).

Uma leitura superficial da denúncia de 1743 do padre Calvatam poderia levar a crer que um aspecto importante do culto era a rejeição ao catolicismo. Mas uma análise mais cuidadosa mostra que seus comentários sobre a resistência indígena foram feitos generalizando os índios das missões e não, especificamente, dirigidos àqueles que participavam do culto.

Pai Calvatam claramente via o Culto Jurema mais como uma manifestação da infidelidade de seu rebanho e de sua perigosa tendência a persistir em seus caminhos pagãos. Contudo, não podemos concluir que o próprio culto foi criado, destinado ou usado para se opor ao empreendimento colonial. Infelizmente, não temos nenhuma voz indígena para nos dizer o que eles acreditavam que os rituais significavam.

Mas o culto havia claramente saído do controle do pequeno número de missionários que, por essa época, serviam na Paraíba. Eles começaram a procurar fontes externas de poder para ajudá-los a lidar com o movimento, que consideravam perigoso e ameaçador. Em 1743, o missionário capuchinho italiano, José de Calvatam, da aldeia indígena de Coremas, situada no sertão do Pinhanco, Paraíba, denunciou à Inquisição 10 índios de sua aldeia. Em 1759, o padre José Ferreira Passo reenviou sua denúncia sobre o culto na missão da Cariris, porque ele supôs que a primeira havia sido destruída no terremoto de Lisboa, em 1755

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(ANTT. IL. Maço 40. Carta do padre José Fereira Passo para o Tribunal de Lisboa, 12 de Fevereiro de 1759).

Apenas 12 indivíduos da Paraíba foram denunciados como líderes ou participantes do culto e somente um do Maranhão, embora os missionários fossem muito claros ao afirmar que o alcance do movimento era enorme e sempre crescente. Mas a Inquisição não tomou nenhuma providência. Eles haviam enviado uma investigação na década de 1720, para o Ceará, onde Antônia Guiragasu era acusada de convocar demônios para falar com ela. Sobre ela diziam que era capaz de voar em círculos, de atravessar o telhado da casa em que estava sem destruí-la e depois descer de novo para a mesma casa. Ela alegou também invocar demônios em seus rituais de cura e de ser capaz de falar com os mortos. Os inquisidores ordenaram uma investigação em agosto de 1720, mas a mesma ou não ocorreu, ou seu registro foi perdido (ANTT. IL. Livro 286, f.585-593). Não está claro se Antônia usava a jurema, pois não há menção na denúncia, mas as semelhanças no comportamento da acusada com os denunciados no Maranhão, em 1756, sugerem que ela poderia ter usado – embora isto possa significar apenas similaridades nas práticas xamânicas indígenas.

Em 1739, a Junta das Missões decidiu tomar uma posição contra a Jurema e prender um mestre do culto na esperança de assustar os demais para que interrompessem suas atividades. Devemos notar, no entanto, que os pajés e os mestres da Jurema serviam como concorrentes nos esforços cristãos de evangelizar o rebanho indígena. Missionários frequentemente procuravam deslegitimar os líderes religiosos indígenas, como forma de aumentar sua influência nas sociedades indígenas. Neste caso, a tentativa não deu certo. A Junta das Missões estava agindo de acordo com a sua própria declaração de que iria contra os índios que bebessem a jurema e divulgou, em todas as aldeias indígenas, que estava pronta para agir. Ela ordenou que o inspetor, doutor Feliz Machado, se dirigisse a Mamanguape, e prendesse os líderes do culto.

A duas léguas de Mamanguape, na aldeia indígena onde viviam conjuntamente Tapuias e Xucurus, vivia um conhecido “feiticeiro” (provavelmente um mestre da Jurema ou um pajé) que havia sido denunciado à Junta. O doutor Machado ordenou ao capitão local que fizesse a prisão em seu lugar e também nomeou o padre Inácio Gonçalves Requião, conhecido por ser um rebelde encrenqueiro, como o novo missionário dos índios. Machado não possuía a autoridade necessária para mandar cumprir nenhuma das duas ordens. Para piorar a situação, ele não informou o capitão-mor da Paraíba da prisão. Mais tarde, devido a esses erros, foi repreendido e deposto de seu posto (AHU. Pernambuco. Caixa 56, doc.4884. Nota de margem em uma carta de D. João V para Henrique Luís Pereira Freire, 22 de Setembro de 1742).

Dez soldados acompanharam o missionário e o capitão até a aldeia indígena e, para ajudá-los na captura, recrutaram, no local, pelo menos quatro índios Xukuru, que eram inimigos dos Tapuias. Os soldados cercaram a aldeia e ordenaram que os índios entregassem o “feiticeiro” em nome do governador (que não tinha

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dado a ordem) e em nome do Santo Ofício (também sem associação com a ação). Mas os índios haviam recebido a notícia do ataque iminente, devido aos muitos atrasos na mobilização dos dez soldados e dos sacerdotes, e já estavam armados e preparados para resistir.

Quando o capitão viu que eles tinham a intenção de resistir, ordenou que seus homens atirassem. Eles mataram entre 6 e 9 índios, incluindo uma mulher, e feriram outros três. Os índios da aldeia retaliaram, atacando os quatro índios Xukuru que estavam junto com as tropas, matando um deles, sem ferir, no entanto, nenhum dos soldados brancos. O governador relatou o abuso à autoridade da Coroa cometido pelo doutor Machado, e recomendou que o caso fosse enviado à Inquisição (AHU. Pernambuco. Caixa 56, doc.4884. Carta de Henrique Luís Pereira Freire para Rei D. João V, Recife, 26 de Novembro, 1740).

Estas tentativas casuais de reprimir o movimento fracassaram devido à incompetência das autoridades locais e à resistência dos índios. Quando denunciados à Inquisição, os inquisidores preferiram não se ocupar do problema. Na escala de perigo, o Culto da Jurema não se classificava num patamar suficientemente alto para justificar novas tentativas de reprimi-lo, especialmente quando os índios, dispostos ao longo das fronteiras da colonização portuguesa, pareciam dispostos a oferecer resistência armada. O culto, então, persistiu, apesar de algumas afirmações de que tinha desaparecido por volta do final do século XIX. Da mesma maneira, não há nenhuma evidência nas décadas de 1730, 40 e 50 e de que o uso da Jurema estivesse se espalhando entre a população não-indígena. Por estas razões, o culto recebeu muito pouca atenção da Inquisição.

Mas a Jurema já havia se espalhado geograficamente e racialmente, na década de 1780. Em 1781, a Inquisição recebeu outra denúncia, sobre um lugar chamado Camalião, perto da cidade de Una, no extremo sul de Pernambuco (ANTT. IL. Processo 6238). A denúncia afirmava que o capitão-mor da vila, Francisco Pessoa, e outros índios cozinhavam uma imagem de Cristo na água “da raiz da jurema”, bebiam a água e, em seguida, colocavam a imagem no chão e saltavam sobre ela e dançavam em torno dela. Em seguida, eles a envolviam em uma folha da planta pacavira e a armazenavam na chaminé da casa de Francisco. Dessa feita, a Inquisição ordenou uma investigação devido ao evidente desrespeito à imagem de Cristo e da clara evidência de sincretismo religioso.

As testemunhas revelaram que os participantes muitas vezes falavam de coisas milagrosas que viam nos céus e até falavam com os demônios. Eles disseram que havia um mestre de Jurema para preparar a mistura e que aqueles que bebiam eventualmente caíam como mortos e aqueles que não continuavam a dançar e a cantar. As testemunhas também revelaram que os brancos, pardos e mulheres participavam regularmente das cerimônias. Uma testemunha afirmou, provavelmente com algum exagero, que esta prática era comum entre todos os índios da região e que eles faziam isso todos os dias.

O comissário Antonio Teixeira Lima trabalhou durante um ano para tentar levar a cabo a investigação que lhe havia sido atribuída, mas passou por algumas

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dificuldades. Ele não podia ir até Camalião interrogar as testemunhas porque acreditava que desta maneira estaria exposto e em risco de sofrer uma violência grave. Então, ele tentou fazer com que as testemunhas viessem a Sirinhaém. Elas resistiram com a ajuda de algumas autoridades locais e, no final, Antonio Teixeira interrompeu a investigação após coletar o depoimento de, somente, sete testemunhas. Ele relatou à Inquisição que as testemunhas eram vacilantes e que ele simplesmente não poderia conseguir as informações necessárias. A Inquisição decidiu encerrar os trabalhos do comissário porque o principal acusado, o capitão-mor Francisco Pessoa, morrera antes mesmo de a investigação ter começado e porque não conseguiam encontrar “provas legítimas” da acusação.

Claramente, o uso da jurema se encontrava muito mais disseminado ao fim do século XVIII.  A novidade é que estava começando a ganhar seguidores entre os pardos e a população branca, e deve ter sido a partir desses novos grupos de seguidores que, eventualmente, se espalhou para as religiões afro-brasileiras. Semelhanças em rituais, incluindo o uso do tabaco, o transe induzido por drogas e a dança, apontam que essa ligação não somente foi possível, mas provável. Assim, o uso religioso da jurema continuou e ressurgiu no século XX como uma expressão da identidade cultural indígena no interior das organizações religiosas afro-brasileiras.8

Estes documentos, efetivamente, põem em cheque antigos equívocos no que diz respeito à história do uso da jurema e apoiam algumas das suposições feitas ao longo do caminho. Oswaldo Gonçalves de Lima argumentou, em 1946, que o primeiro uso documentado da Jurema datava de 1768, na Amazônia, e que, antes dessa época, era utilizada apenas esporadicamente por tribos do Nordeste (Lima, 1946:59-60, 64-67). Já Sangirardi Jr. alegou, em 1983, que não existiam relatos desse uso anterior da Jurema pelos índios do Nordeste e que as descrições posteriores das cerimônias que usavam a jurema revelavam influências sincréticas das tradições religiosas africanas, indígenas, católicas e espíritas (Sangirardi Jr., 1983:193).

Hoje em dia é possível documentar o uso regular e ritual da Jurema na década de 1730, na Paraíba, e na década de 1780, em Pernambuco. Ela provavelmente se espalhou para a Amazônia na década de 1760, como supôs Lima. É possível que a prática tenha chegado à Amazônia já em meados do século XVI, quando vários grupos Tupinambá fugiram dos conquistadores de Pernambuco e da Paraíba, em direção ao interior do Ceará e para a Amazônia (Monteiro, 1999:1010-1011).

A mistura do simbolismo cristão com o Culto da Jurema começou claramente no final do século XVIII. A partir de então, essa mistura foi, então, elaborada até que Oswaldo Gonçalves descobriu e descreveu uma cerimônia profundamente

8 Várias tradições religiosas afro-brasileiras utilizam a jurema para induzir o transe. O espírito divino mais comum a receber o nome de jurema é o Caboclo Jurema. O Candomblé utiliza a jurema desde, pelo menos, 1905. Praticantes do Candomblé misturam o extrato de jurema com

“mel, ervas e álcool” e, às vezes, com sangue de animais. A jurema foi servida originalmente em potes de madeira com penas ao redor indicando sua origem indígena (Ver Mota e Albuquerque, 2002; Wafer, 1991:75-80).

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sincrética na década de 1940. Parte do ímpeto para que esta mistura religiosa ocorresse pode ter originado da perseguição generalizada aos usuários da Jurema. Já em 1816, Henry Koster relatou que os índios da área de Itamaracá continuavam a praticar rituais da Jurema escondidos, com medo de serem punidos. Eles usavam maracás e dançavam em círculo em torno de um jarro de barro cheio de Jurema. Quando Koster pediu aos índios que identificassem a planta, todos alegaram não saber o que ele queria dizer, embora os olhares em seus rostos o fizessem acreditar que eles estavam mentindo (Koster, 1816:313-314; Cascudo, 1978:27-28; Ferreira, 2009:3-4; Grünewald, 2005:244-245).

A história do uso da Jurema continua a ser importante porque se tornou uma ferramenta para autenticar as alegações de “indianidade”. Os descendentes atuais das tribos que criaram o culto no século XVIII ainda praticam seu culto. A tribo Truxá, de Rodelas, e a dos Kariri-Xocó, ambas situadas ao longo do rio São Francisco, utilizam a Jurema como uma manifestação pública de sua identidade indígena e como uma ferramenta de exclusão (Mota e Barros, 2002:38, 53; Reesink, 2002:87; Grünewald, 2002:120; Mota, 2002:220). Os Xukurus também empregam a planta em suas cerimônias. Até agora não foram encontradas fontes que demonstrassem quando a jurema passou a ser usada regularmente nos cultos indígenas e como as autoridades coloniais reagiram ao seu uso.

Como o peyote entre os índios nativos americanos dos Estados Unidos, cujo uso se generalizou apenas em meados do século XIX, a jurema (não o tabaco) tornou-se um símbolo-chave da “indianidade” no Nordeste do Brasil (Stewart, 1987). Isto é verdade, embora sua utilização ritual tenha se desenvolvido e se espalhado apenas em meados do século XVIII. Tanto a jurema quanto o peyote ganharam popularidade num momento em que as sociedades indígenas enfrentavam transformações radicais e tensões que ameaçavam sua coesão social e até mesmo sua existência.

Por que, então, as autoridades coloniais falharam em suas tentativas de suprimir o culto e por que a Inquisição não agiu mais vigorosamente a partir das denúncias que recebeu? No contexto da contínua instabilidade social na Paraíba durante a primeira metade do século XVIII, as autoridades locais simplesmente não possuíam os recursos necessários para policiarem o comportamento religioso da dispersa população indígena. Juntamente com a incompetência dos oficiais e da resistência dos próprios índios, isso significou que o culto não poderia ser suprimido sem a assistência de instituições que tivessem acesso a maiores recursos. As autoridades locais apelaram à Inquisição como uma dessas instituições. Mas a Inquisição não respondeu a essa demanda, em grande parte porque, como aconteceu com o batismo dos escravos, ela provavelmente via isso como uma questão da alçada do bispado – deixando a questão para essa alçada até que envolvesse sacrilégio e a população não-indígena. Então, as rodas da burocracia inquisitorial começaram a girar, mas a Inquisição falhou, mais uma vez, por causa da resistência indígena, embora desta vez passiva, e da morte do líder acusado.

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Além disso, durante a primeira metade do século XVIII, a Inquisição já estava focada na perseguição à população de cristãos-novos da Paraíba. Esta população tinha se imiscuído nas antigas e proeminentes famílias cristãs-velhas por meio do casamento, misturando, assim, seu sangue “contaminado” e seu potencial para heresia com o rebanho “puro” de Cristo. O perigo real de infiltração de cristãos-novos parecia muito mais importante que se meter com neófitos indígenas.

Desde pelo menos 1590, as autoridades coloniais temiam a presença da “quinta coluna” dos cristãos-novos que havia explorado as oportunidades econômicas e a ausência da ação inquisitorial que as colônias brasileiras ofereciam (ANTT. IL. Livro 216, f.45-48). Por essa razão, antes do alvorecer do século XVIII (1591-1595 e 1618-1620), a instituição enviou dois tribunais temporários, chamados Visitas, ao Nordeste do Brasil, com o intuito de lidar com essa questão (Mello, 1991).9 A Inquisição também enviou uma Visita à Paraíba em 1619, mas não se sabe se ela realmente atuou na ocasião (Ver ANTT. CGSO. NT4149).

Durante as primeiras quatro décadas do século XVIII, a Inquisição manteve-se focada no contágio que os cristãos-novos podiam representar. Entre 1709 e 1728, a maioria das pessoas oriundas do Brasil, punidas nos Autos de Fé, em Lisboa, eram cristãos-novos, residentes no Rio de Janeiro.10 Entre 1729 e 1741, pelo menos 141 cristãos-novos que viviam na Paraíba foram denunciados à Inquisição por judaizar, e pelo menos 51 foram presos e enviados à Lisboa para serem julgados (ANTT. IL. Livro 21, f.347-347v; ANTT. IL. Maço 31, n.2).11

Enquanto a atenção da Inquisição permanecia focada sobre o que achava ser a perigosa ameaça dos cristãos-novos na Paraíba, ela tinha pouco tempo, ou interesse, em perseguir um ritual indígena obscuro, que não estava se espalhando para o seu rebanho católico. Quando medido na escala de perigo à ordem colonial, o Culto da Jurema não justificava o esforço e a despesa que sua repressão teria gerado. No final do século XVIII, quando pareceu representar uma ameaça mais grave, a Inquisição já estava lutando para se manter em um clima político, intelectual e até mesmo cultural, cada vez mais difícil. O comissário que estava a serviço na região não poderia mesmo aventurar-se na área, por temer por sua própria segurança.

Assim, o Culto da Jurema permaneceu livre para rearticular antigas práticas religiosas, rituais e tradições farmacológicas dos índios, o que permitiu que os povos indígenas da época alcançassem o divino como seus antepassados haviam feito por milênios. 

O Culto da Jurema nos diz várias coisas sobre a Inquisição e sobre o sistema colonial do século XVIII. Esse caso revela que os índios estavam longe de ser vítimas

9 Ver também Abreu (1922; 1925), Garcia (1927; 1929), Mello (1970), França e Siqueira (1963) e Lapa (1978).

10 Lina Gorenstein Ferreira da Silva estudou os cristãos-novos do Rio, incluindo este grupo em Silva (1995).11 Um breve estudo desse episódio em Lustosa (2000:84-109). Bruno Feitler (2003) estudou este episódio detalhadamente.

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passivas do sistema colonial. Eles trabalhavam dentro dos limites de sua própria tradição cultural, para criarem e controlarem sua própria identidade e afirmarem seus próprios métodos de alcançar o divino. O Culto da Jurema representou uma reformulação das práticas, rituais e crenças tradicionais dos índios, no contexto de uma invasão cultural, para reafirmar a identidade e a cultura indígena.

No entanto, o Culto da Jurema, ao fim do período colonial, era muito distinto do que fora no seu início. A sua nova configuração foi, provavelmente, resultado da necessidade constante de reagir às pressões e negociar as oportunidades que a vida colonial oferecia e de resistir às tentativas periódicas das autoridades de suprimir as expressões religiosas indígenas. No longo prazo, o culto absorveu aspectos das crenças religiosas alternativas, que estavam disponíveis no momento, e que foram compatíveis com suas necessidades e interesses por meio de um processo contínuo de transformação cultural e de recriação. É necessário resistir à tentação de ler essas criativas recriações de trás para frente, no registro histórico, e impô-las sobre pessoas, lugares, eventos e sistemas de crenças ao qual não pertencem. Os índios insistiam sobre o privilégio de controlar sua própria espiritualidade e, quando necessário, tentaram ganhar acesso ao poder espiritual de outros povos.  Nem o clero católico, nem as autoridades coloniais poderiam controlar quando, como, ou o que eles acreditavam. Como todos os povos que enfrentam sérios desafios, os índios “inovaram a fim de manter o familiar” (Taylor, 1996:61).

O mais importante é que este caso demonstra as reais limitações do poder e das autoridades inquisitoriais. A Inquisição manifestou pouco interesse no que parecia ser um ritual puramente indígena e falhou em apoiar as tentativas locais de suprimi-lo. Outras limitações resultaram das atividades de homens poderosos e de organizações do império luso-brasileiro.

Para entender as fracas tentativas da Inquisição e das autoridades coloniais em suprimir o Culto da Jurema, devemos lembrar que o poder inquisitorial não era exercido num vácuo. A Inquisição tinha que escolher quais batalhas lutar, especialmente no Brasil, onde grandes distâncias, populações diversas, jurisdições concorrentes, infraestruturas frágeis e uma sociedade multicultural restringiam o exercício do seu poder e a capacidade das autoridades coloniais de disciplinar o comportamento social e religioso os colonos. A Inquisição tinha que avaliar as ameaças em potencial, os custos relativos e a necessidade de exercer sua autoridade em uma situação de poderes concorrentes e de disputas jurisdicionais altamente contestáveis. Ela tinha que escolher com cuidado onde iria gastar seu capital político e religioso onde fosse possível alcançar o maior retorno possível. Bruxaria entre os índios simplesmente não valia o custo e as dificuldades para persegui-la.

Ao focarmos o interesse acadêmico nos episódios e grupos que estão fora do espectro mais comum da atividade inquisitorial, ganhamos uma visão diferente e mais complexa dessa instituição. Não podemos mais ver a Inquisição como a monolítica e estereotipada instituição todo-poderosa, que reinou como uma autoridade sem controle, reprimindo a todos aos desvios morais com sucesso absoluto. A necessidade de cumprir suas obrigações, justificar e perpetuar sua

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existência, além de economizar seus recursos, impunha restrições, tanto internas, quanto externas, a seu poder. Isto nos surpreende apenas porque nos acostumamos a ver a Inquisição a partir da perspectiva do mito e do estereótipo. Lançar um olhar mais atento aos casos inquisitoriais fora do comum pode nos ajudar a nos libertarmos das amarras da hipérbole e do estereótipo e que acabam por revelar a Inquisição como uma instituição que sempre teve que se reinventar e reafirmar sua autoridade.

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Convertidos na Verdadeira FéOs indígenas, os missionários católicos e os predicantes: análises comparativas sobre a América Portuguesa no século XVII1

Maria Paula Paes

Introdução

O texto que aqui se apresenta não constitui uma pesquisa acabada, ainda que se possa considerar impossível afirmar que qualquer pesquisa deva ser assim considerada. De fato, trata-se de investigações preliminares que integram um projeto de investigação bem mais vasto sobre o período do governo de Maurício de Nassau (1737-1745) à época da ocupação neerlandesa no nordeste da América Portuguesa.2

Conquanto nos dias atuais os estudos comparativos sejam elaborados de forma mais intensiva não foi esse o motivo que conduziu as produções historiográficas que tenho publicado e/ou apresentado ao longo dos dois últimos anos. Na verdade, as investigações sobre os indígenas do século XVII surgiram como uma quase obrigatoriedade para a apreensão de importantes aspectos do período da ocupação neerlandesa no Brasil como se discutirá mais adiante. Caso muito diferente caracteriza os estudos acerca da missionação jesuítica em meio aos indígenas

1 Algumas questões apresentadas no presente texto também integram um outro texto intitula-do “Religious resistances and social-cultural adaptations of the Natives in Portuguese America

– Seventeenth and Eighteenth Centuries”, enviado para publicação no The Journal of Social History Society, London, University of London/University of Oxford, UK.2 Projeto de Pós-doutoramento, financiado pela FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Portugal –, intitulado Um governo “humanista”: pragmatismo religioso ou prudência política no Domínio Neerlandês da América Portuguesa – Século XVII. Ao contrário da maior parte da bibliografia, sobretudo em língua portuguesa, que emprega a expressão ‘dominação holande-sa’ para se referir àquele período optou-se, aqui, pela utilização do termo ‘neerlandesa’ com o objetivo de ressaltar o fato de que a Holanda foi, no século XVII, apenas uma das províncias da República das Províncias Unidas dos Países Baixos do Norte. Seguindo o mesmo critério, tam-bém se usa a palavra ‘neerlandês’ em substituição ao holandês, com relação à língua daqueles conquistadores. Não se trata de qualquer arcaísmo, uma vez que, ainda na atualidade, essa é a designação da língua oficial dos Países Baixos (Nederlands) tal como se encontra indicado no site da Comunidade Europeia (CE): www.europa.eu/index_pt.htm

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durante o século XVI, que se constituiu como um dos capítulos mais relevantes do texto apresentado como tese de doutoramento no ano de 2006 (Paes, 2006). Daí à ideia de pensar uma análise comparativa foi um pequeno passo.

Quase nenhuma parte da documentação utilizada para a elaboração deste texto é inédita, com exceção de pequenos trechos de documentos, mas nem por isso menos interessante. Isto se explica por, pelo menos, duas razões: em primeiro lugar, no que se refere à atuação missionária dos jesuítas na América Portuguesa é preciso ressaltar uma, digamos, certa predileção pela releitura de fontes já estudadas.3 Em outras palavras, acredito que as fontes, ainda que bastante investigadas, sempre contêm algo novo se re-analisadas sob diferentes chaves de interpretação. Trabalhei, aqui, majoritariamente com as correspondências jesuíticas.

Em segundo lugar, cabe destacar que as fontes neerlandesas utilizadas para as análises que integram este texto, pesquisadas no Arquivo Nacional de Haia (Nationaal Archief in Den Haag), referenciadas em interessantes trabalhos de história comparada sobre o tema,4 são pouco citadas na bibliografia brasileira e/ou portuguesa. De fato, constituíram-se em uma grande novidade porque as pude transcrever dos documentos em escrita gótica do século XVII e traduzi-las para o português com o objetivo de vislumbrar outras interpretações mais afeitas ao meu projeto de investigação. Para além disso, devo confessar que diante da minha humilde pretensão de erudição compreendi-as como inéditas no sentido em que demandaram dedicação e empenho necessários ao aprendizado do neerlandês do século XVII, dos aspectos propriamente paleográficos relativos à escrita gótica daquela época. Foram analisados neste texto, em maior medida, o Corpus Dagelijkse Notulen do Concelho Político em Recife,5 algumas das correspondências enviadas aos superiores hierárquicos na

3 Tal foi o caso das investigações da dissertação de mestrado, intitulada O Teatro do controle. Prudência e Persuasão nas Minas do Ouro (2000). A dissertação apresenta análises diferenciadas daquelas até então produzidas à época sobre as práticas de domínio da sociedade mineradora através do estabelecimento de “laços de identificação” entre os colonos e o conjunto de valores politico-religiosos e sociais da sociedade metropolitana durante a primeira metade do século XVIII a partir de releituras das correspondências enviadas e recebidas entre os governadores da Capitania das Minas e D. João V, os relatos de Simão Ferreira Machado, Triunfo Eucharistico do Divinissimo Sacramento da Senhora do Pilar em Vila Rica, Corte da Capitania de Minas, impresso em Lisboa no ano de 1734; e o relato anônimo do Áureo Throno Episcopal, mandado imprimir em Portugal por Francisco Ribeiro da Silva. A respeito do estabelecimento dos “laços de identificação” entre aquelas sociedades, ver Furtado (1998).4 Cabe destacar, sobretudo, o trabalho de Meuwese (2003). Para a elaboração de uma história comparada acerca da missionação jesuítica e dos processos de assimilação/re-apropriação do ca-tolicismo junto aos indígenas nas Américas, para além da América Espanhola, faz-se necessário apontar o interessante trabalho de Greer (2005). 5 Em uma tradução muito literal, Dagelijkse Notulen significaria ‘minutos diários’. Entretanto, no sentido em que se compõem são anotações cronologicamente ordenadas relatando aspectos, regulamentações, emolumentos recebidos por alguns daqueles que ocupavam diferentes encar-gos no Nordeste sob a dominação dos neerlandeses, acontecimentos do cotidiano colonial, etc.

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República das Províncias Unidas dos Países Baixos pelo missionário protestante Vicente Joachim Soler.6

Também se apresentam neste texto algumas reflexões, ainda que suscintas, acerca de alguns dos aspectos que se relacionam aos indígenas que mantiveram alianças com os protestantes durante o período da ocupação neerlandesa no Nordeste da Colônia (1630-1645), como também no que se refere à manutenção de práticas do protestantismo após a expulsão dos conquistadores. Nesse caso, as análises têm como base correspondências enviadas pelas autoridades políticas e religiosas na Colônia para seus congêneres na Europa. Conquanto não sejam mais do que alguns poucos documentos, possibilitam inferir resultados que investigações aprofundadas poderão proporcionar.

A título de conclusão, procedi a uma breve discussão sobre as questões mais relevantes do que poderíamos denominar “religiosidade” indígena, no registro das reinterpretações e outras utilizações resultantes das diferenciadas práticas evengelizadoras empreendidas por católicos e protestantes que passaram a integrar seus conjuntos de valores sócio-religiosos. O objetivo foi sempre o de apreender as práticas de vivência cotidiana, as crenças cosmológicas daqueles indígenas aos quais poucas vezes nos foi possível “ouvir” diretamente. Neste sentido, são discussões sobre inferências no limite do que pode ter acontecido.

Finalmente, resta elucidar o ponto de encontro entre o tema deste livro e este texto porque não se trata das Minas e/ou da Inquisição no que concerne à ação inquisitorial, suas práticas, seus aspectos hierárquicos, seus agentes, dos que sentiram o peso de um processo, de um julgamento, de uma condenação. Este texto analisa a religiosidade – especificamente “religiosidade” indígena nos séculos XVI e XVII, mas não só – em face da sua importância no contexto do Antigo Regime, portanto, no processo colonizador do Novo Mundo. Nesse sentido, passa a significar um prelúdio do que se seguiu em meio à sociedade, às práticas administrativas e políticas – seja dos colonos ou dos colonizadores e, obviamente, aos aspectos da religiosidade na América Portuguesa durante o século XVIII. Então, espaço e tempo se diluem na tentativa de apreensão de um todo maior.7

6 Na versão transcrita, traduzida e publicada em Teensma (1997). 7 Durante o curso de mestrado me dediquei, tal como mencionado acima, ao estudo da socie-dade mineradora na primeira metade do século XVIII. Nesse trabalho defendi a tese de que o domínio metropolitano sobre as Minas só foi possível porque, a partir de uma matriz neoto-mista, a Coroa portuguesa pôde estabelecer uma teologia política que, funcionando como uma

“Razão de Estado”, pressupunha a utilização da prudência e da persuasão – no sentido aristoté-lico dos termos como instrumentos de governo, controle e domínio. Então, na condução dos negócios das Minas foi necessário prudentemente retroceder e aguardar ocasião mais favorável para avançar. Com relação ao domínio da sociedade propriamente dito, a ideia central foi a de compartilhar com os súditos coloniais o mesmo conjunto de valores éticos, morais e religiosos da sociedade metropolitana através da (re)apresentação simbólica deste conjunto de valores nas celebrações – a um só tempo políticas e religiosas – das alegorias dos altares das igrejas, dos monumentos, etc., ou seja, o controle pela persuasão. Entretanto, para que tal tese pudesse ser

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Conversão dos brasis: Ad Majorem Dei Gloriam ou na Verdadeira Fé

O processo evangelizador na história da América Portuguesa envolveu diferentes agentes: católicos e protestantes. Estes últimos, marcadamente, nas áreas ocupadas pelos conquistadores neerlandeses no Nordeste Brasileiro durante a primeira metade do século XVII. A ideia de que era necessário cristianizar indígenas, cooptá-los, torná-los “aliados” foi central para a legitimação e para a consolidação do processo colonizador português tanto quanto para a manutenção das áreas conquistadas pelos neerlandeses. Para tanto, diferentes, mas não muito, projetos e pedagogias de evangelização foram implementados pelos agentes religiosos católicos e prostestantes. A esses métodos de evangelização não faltaram resistências e adaptações que fundiram antigas crenças e práticas aos rituais cristãos.

Para além da necessidade de evangelizar os indígenas, há que se apontar também a significativa convivência entre estes e os colonos. A distância da Metrópole, as exigências cotidianas imprevistas da vida no além-mar ocasionaram um distanciamento dos colonos em relação aos preceitos do catolicismo e o relaxamento dos preceitos cristãos foram constantes.8 Colonos e indígenas estabeleceram laços de sociabilidade que se refletiram em reinterpretações, reapropriações de símbolos e rituais, seja do catolicismo seja do calvinismo, nas suas próprias práticas religiosas (Ver Paes e Resende, 2010).

Frente às muitas formas de resistência seguiram-se esforços de parte dos evangelizadores no desenvolvimento de práticas mais eficazes para garantir a cristianização aos indígenas, ora por atuação e pedagogia pouco ortodoxas ora por processos repressivos. Por isso, não raro, o avanço da cristianização dependeu de prudentes retrocessos com vistas a avanços posteriores, no caso do catolicismo e da adoção de ações mais pragmáticas da parte dos calvinistas. Nesse sentido, o objetivo maior das análises que se seguem é o de discutir se a relativa eficácia da prudência jesuítica e o pragmatismo dos predicantes calvinistas foram eficazes na tentativa de concretizar a cristianização dos indígenas na América Portuguesa (Paes, 2009).

sustentada foi imprescindível retroceder ao primeiro século do processo colonizador no Brasil e, em termos teóricos, até a leitura de textos escritos no século VIII. Não foi por acaso que es-crevi a tese de doutoramento cronologicamente marcada pelo período do reinado de D. João III. Mas, então, já se tratava de demonstrar alguns dos aspectos que determinaram a formação do Império e a fundação da América Portuguesa no registro de uma teologia política que, pouco a pouco, constituiu-se como uma Razão de Estado no Império Português dos quinhentos em diante (Ver Paes, 2000). 8 De todo modo, o mencionado “relaxamento” não pode ser somente relacionado à distância da Metrópole e ao cotidiano do viver em colônias. A recente produção historiográfica tem demons-trado que mesmo em meio à sociedade metropolitana os pressupostos dogmáticos e a adoção dos preceitos de conduta católica que resultaram do Concílio de Trento (1543-1563) encontravam-se em um processo de reafirmação no Reino e nas áreas coloniais do Além-Mar (Ver Palomo del Barrio, 2000; Schwartz, 2009; Vainfas, 2010).

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Em relação ao catolicismo, o protagonismo dos missionários jesuítas no âmbito do processo evangelizador na América Portuguesa não suscita discussão. A chegada do primeiro-governador-geral do Brasil, Tomé de Sousa, em 1549, marcou também a chegada da Missão jesuíta. O processo de evangelização pretendido pelos jesuítas junto aos indígenas apresentou-se, logo no início, como uma tarefa completamente nova no sentido em que os naturais da terra significaram um enigma a ser decifrado.9 As primeiras informações de Manuel da Nóbrega, o Superior da primeira Missão dos jesuítas que foram enviados ao Brasil, já relatava as diferenças de costumes dos nativos. Nóbrega demonstrava nas cartas enviadas, tanto aos membros da Companhia como às autoridades no Reino, um otimismo marcante em relação à conversão dos indígenas – levando-se em consideração que os relatos se tornavam públicos e deveriam refletir exatamente esse otimismo, além do fato de que muito da correspondência dos missionários jesuítas tinha como objetivo animar os irmãos na Europa e nas outras missões do ultramar.

Os missionários jesuítas que vieram ao Brasil, nos tempos que se seguiram, aqui chegaram com a sensação otimista de que os indígenas tinham um “aparelho ... para se muito converterem” e pretendiam convertê-los através da “palavra” tal como prescrevia a bula Sublimus Dei promulgada pelo papa Paulo III, em 1537, “os tais Índios e outros povos devem ser convertidos à fé de Nosso Senhor Jesus Cristo pela pregação da palavra de Deus e pelo exemplo de uma vida boa e sagrada” (Bula Sublimus Dei. Papa Paulo III).10 Entretanto, assim como os Tupiniquins, a maior parte dos indígenas que habitava a costa brasileira pertencia ao tronco linguístico Tupi e possuía formas de organização da comunidade muito semelhantes.11 Dentro do tronco Tupi, os principais

9 “Pour les jésuites, il manque à ces Indiens les deux dimensions essentielles, politique et religieuse, qui structurent la culture des Européens du XVIe. Siècle, et qui son pécisément fondent le projet missionnaire outre-mer. Les conversión, dont le sens évoque un complet changement de vie, im-plique donc 1ª la fois de transformer les coutumes des Indiens et de leur apprendre les éléments essentiels du dogme chrétien” (Castelnau-L’estoile, 2000:11) Em tradução livre : “Para os jesuítas, os índios não têm as duas dimensões essenciais, politica e religiosa, que estruturam a cultura dos europeus do século XVI e que são precisamente a base do projeto missionário de além mar. As conversões, cujo significado evoca uma completa mudança de vida, implicam em primeiro lugar transformar os costumes dos índios e de que eles aprendam os elementos essenciais do dogma cristão”. 10 Minha transposição para o português a partir do texto traduzido para o inglês consultado http://listserv.american.edu/catholic/church/papal/boniface/paul3.slavery.html.11 Eram tribos, no geral, semissedentárias, compostas por algumas centenas de indivíduos que viviam da agricultura, caça, pesca e coleta. Reconheciam três formas de autoridade: chefes, curandeiros ou pajés e um concelho de anciãos. Na comunidade dos Tupinambás, a autoridade estava relacionada com a constante atividade guerreira dos nativos. A guerra era ritualizada e, no geral, empreendida com o pretexto de vingar a morte de antepassados. O canibalismo, por exemplo, era um dos rituais mais importantes. Só eram canibalizados os prisioneiros de guerra. Durante o período de guerra, o chefe assumia a autoridade máxima, conquanto em tempos de paz não houvesse uma marcante estratificação do poder, a quem cabia a liderança nos conflitos. O conselho de anciãos tinha a função de julgar os conflitos internos e decidir sobre as declara-

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grupos eram os Tupiniquins da Bahia, os Tamoios do Rio de Janeiro e os Tupinambás do sul. Outros grupos menores, como os Caetés, que ocupavam as florestas da costa atlântica do nordeste brasileiro, falavam línguas diferentes do tupi e eram considerados pelos jesuítas como muito perigosos. A primeira dificuldade inerente à pregação pela ‘palavra’ encontrou-se, então, justamente na diferença da língua.12

Nos primeiros tempos, os jesuítas utilizaram para conversar com os indígenas o conhecimento da língua dos poucos portugueses que sabiam a língua daqueles nativos da terra. No entanto, sabiam que essa era uma situação precária e, portanto, provisória. Logo se puseram a ensinar português aos nativos e, mais, a aprender tupi. Os jesuítas decidiram que, para além das pretensões de conversão, para aprenderem a língua nativa seria melhor morar entre os indígenas. Influenciados pela tradição humanista própria da sua educação (O’malley, 2004:362-371), os jesuítas consideravam que aprender a língua nativa era necessário e belo. Elogiavam a musicalidade e a riqueza da língua tupi e, não raro, comparavam-na com as línguas da Europa (Carta ao P. Simão Rodrigues. Lisboa, Baía. MB, 1956-1960:114, v.I. Carta aos Padres Irmãos de Portugal, São Vicente. MB, 1956-1960:306, v.III. Anchieta, 1933:433).

Ao que tudo indica, as pregações em tupi exerceram importantes efeitos sobre os indígenas. Os tupis tinham grande respeito pelos membros da comunidade que detinham o poder de retórica – ‘senhores da fala’ – e o domínio da oratória pelos jesuítas foi um poderoso instrumento para a conquista de alguma autoridade perante os naturais da terra. Não obstante o esforço generalizado no aprendizado da língua tupi, alguns irmãos dependiam de intérpretes para se comunicarem com os indígenas. Nesses casos, utilizava-se, no mais das vezes, a ajuda de crianças indígenas às quais os padres já haviam ensinado o português.13 Com o objetivo de auxiliar o ensino da língua aos

ções de guerras contra outros grupos (Ver Florestan, 1963; Metraux, 1928). Quando a reputação curadora do pajé se tornava muito grande, ele passava a viver afastado da comunidade – eram chamados caraíbas ou pajés-guaçu – e, tratados como profetas pelos grupos de uma mesma região, atendiam doentes em várias comunidades. Existem relatos de caraíbas liderando mi-grações em massa de tupis em busca de um paraíso terrestre, a “terra-sem-mal” (Clastres, 1995).12 Os jesuítas diziam que o fato da língua tupi não ter as letras R, L e F explicava a própria ausên-cia de Lei, Rei e Fé entre os tupis. Ver Carta aos padres e irmãos em Coimbra, MONUMENTA Brasiliae (In: Monumenta Historica Societatis Iesu, 1956-1960: 252, v.II, p., v.4). Doravante, essa fonte será referenciada como se segue: MB.13 Diante das dificuldades de conversão dos adultos – em função da impossibilidade de lhes reti-rar os maus hábitos – Nóbrega optou preferencialmente pelas crianças. Não descuidou dos mais velhos, mas privilegiou a educação dos mais novos e chegou a afirmar que, no Diálogo sobre a conversão do gentio, os filhos dos “índios”, quando educados na forma cristã, eram capazes de apresentar melhores resultados do que os condiscípulos brancos na compreensão da doutrina (Leite, 1955:239). Doravante, essa fonte será referenciada como se segue: OP, 1955. Tal fato foi con-firmado pelo padre Luís de Grã. Carta ao P. Diogo Mirão. Lisboa, Baía. MB, 1956-1960:147, v.II).

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irmãos, os missionários jesuítas no Brasil compuseram gramáticas daquela que acreditavam ser a “língua geral”, falada por todos os indígenas que habitavam a costa atlântica.14

A importância do domínio da língua tupi pelos missionários jesuítas também pode ser compreendida através da constatação de que o esforço empreendido no aprendizado da língua tupi possibilitou uma apreensão mais acertada acerca de aspectos relevantes da ‘religiosidade’ e dos costumes dos indígenas. Os irmãos da Companhia de Jesus no Brasil puderam conhecer as crenças e os rituais dos nativos, o que acarretou processos de adaptabilidade com relação à prática de evangelização e, ainda, o desenvolvimento de estratégias de persuasão capazes de otimizar a eficiência das pregações e das conversões.15

A partir de uma interpretação, evidentemente cristianizada, dos mitos e crenças dos indígenas, os jesuítas puderam estabelecer relações entre as crenças cristãs e aquelas que integravam a cosmologia dos nativos, elaborando (re)interpretações que se tornaram instrumentos para a conversão. Os jesuítas compreenderam os mitos dos indígenas através do registro greco-romano-judaico-cristão, o que os levou a relacionar o paraíso terrestre – a “terra-sem-mal” – com o conceito cristão de céu,16 o espírito do mau Anhangá com o demônio (Vasconcelos, 1865:136-139), a inundação que se seguiu à criação do mundo com o dilúvio narrado no Velho Testamento e o mito de Sumé – um ancestral dos tupis que peregrinou pelo Brasil – com o apóstolo São Tomé.17 Os aspectos destoantes entre a crença dos nativos e os preceitos e histórias cristãs foram considerados pelos missionários jesuítas como imperfeições inerentes à transmissão oral das histórias com o decorrer do tempo.

14 A primeira gramática da língua tupi foi escrita por José de Anchieta e intitulada Artes da gra-mática da língua mais usada na costa do Brasil. O texto foi publicado em 1595, mas circulara por muitos anos na Colônia em forma de manuscrito (Vasconcelos, s/d:63). Os missionários jesuítas também escreveram textos em tupi com o objetivo de auxiliar a própria atividade missionária. Os primeiros foram os manuais de doutrina cristã, guias práticos para auxiliar a atividade de envangelização contendo os principais fundamentos da doutrina cristã, tais como os manda-mentos de Deus e da Igreja, os nomes das virtudes cardeais e teológicas, os artigos da Fé, os pecados venais e mortais, além de algumas palavras em tupi que deviam ser proferidas durante os ritos litúrgicos. Pero Corrêa elaborou a Summa da Doutrina Cristã em tupi (1552) e outra, do mesmo período, foi escrita por José de Anchieta (Leite, 1940:14).15 Eisenberg aponta para o fato de que “Talvez o mais importante aspecto do esforço jesuítico em aprender a língua dos nativos foi a quase forçada submissão dos irmãos à cultura nativa tupi. Ao traduzir os ensinamentos e crenças cristãs para a língua local, os jesuítas acabavam por atribuir significado tupi às palavras cristãs. Assim, essa submissão ajudava efetivamente na conversão dos índios, mas isso só pôde ser feito às custas de uma aproximação, modificação e a adaptação da doutrina cristã aos conceitos religiosos da cultura tupi” (2000:72). Ver também Bosi (1998).16 Segundo o jesuíta Fernão Cardim (1925:161-162), os indígenas acreditavam que o paraíso ter-restre fosse um lugar cheio de árvores frutíferas à margem de um grande rio onde o povo vivia a dançar. 17 Ver Carta ao P. Martim de Azpilcueta Navarro. Baía. MB, 1956-1960:138, v.I. Carta aos Irmãos e Padres em Coimbra. Baía. MB, 1956-1960:153, v.I; e Carta aos Irmãos e Padres em Coimbra. Baía. MB, 1956-1960:154, v.I. Anchieta (1933:332-333).

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Na correspondência jesuítica, desde os primeiros anos de missionação, transparece a ideia de que a pregação pela “palavra” não era um instrumento suficientemente eficaz para a conversão dos indígenas (Cardim, 1925:172). Na tentativa de desenvolver outros métodos para efetivar a conversão dos indígenas, os jesuítas fizeram um exame das práticas anteriores de modo a compreender seu fracasso. Encontraram, pelo menos, três aspectos. O primeiro deles relacionava-se com o comportamento dos próprios nativos que mesmo depois de receberem os sacramentos e proclamarem sua crença em Deus continuavam a cometer os mesmos pecados/hábitos: a poligamia e o abominável canibalismo. O segundo aspecto tinha a ver com o fato de que os colonos atacavam os indígenas para escravizá-los, e os nativos passavam a associar a origem europeia comum entre aqueles e os jesuítas tratando-os com imensa desconfiança. Havia, ainda, o mau exemplo dado pelo clero secular que vivia a semear a corrupção na Colônia.18

O desenvolvimento das atividades de cura de algumas enfermidades dos indígenas praticadas pelos jesuítas foi um fator otimizador na relativa consolidação do trabalho de evangelização (LISBOA. Arquivo Nacional da Torre do Tombo [ANTT]. Maço.41, Cartório Jesuítico. Breve do Papa Inocêncio XIII para os religiosos da Companhia de Jesus...). Se para os nativos o dom da cura estava relacionado àquele que conseguia se comunicar com os espíritos, os jesuítas, pelo menos alguns deles, tinham o poder de ‘conversar com os espíritos’, conferindo aos missionários uma autoridade muito mais eficaz do ponto de vista da persuasão para a conversão (Anchieta, 1933:179).19 Da mesma forma que acreditavam que o pajé falava a verdade sobre as questões religiosas devido ao poder de persuasão dos rituais de cura executados por ele, passaram a acreditar na pregação dos padres. Entretanto, para os jesuítas, a questão não se restringia a curar as enfermidades dos indígenas – mesmo porque nem sempre eles conseguiam impedir a morte dos nativos. A grande pretensão era convencê-los de que a aceitação da cura cristã em detrimento dos rituais dos pajés conduziria também à cura da alma. Ou seja: mesmo que morressem, ainda podiam vislumbrar a entrada no verdadeiro paraíso. Essa era a questão: fazê-los acreditar que a cura da alma era mais importante do que a cura do corpo.

18 Carta aos Padres e Irmãos em Coimbra. Espírito Santo. MB, v.I, 1956-1960:274; Carta ao P. Simão Rodrigues. Lisboa, Baía. MB, v.I, 1956-1960:164-165; Carta ao P. Simão Rodrigues. Lisboa, Baía. MB, v.I, 1956-1960:118.19 O envolvimento de Anchieta e dos jesuítas com a prática de cuidar dos doentes refletia um dos elementos pastorais do Novo Testamento: Jesus acrescentou ao poder de perdoar – no Velho Testamento, somente Deus tinha o poder de perdoar os pecados – o poder de curar os pecados do corpo. Ele era um médico de almas e de corpos enfermos através de suas ações milagrosas. Segundo o Novo Testamento, Jesus transmitiu esse poder aos apóstolos e daí aos membros da Igreja. Note-se que a maioria dos hospitais na Europa do século XVI era controlada por religio-sos. Entretanto, eles não podiam exercer a medicina porque esta era uma profissão suspeita e contrária aos princípios cristãos (White, 1955:28).

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Mas havia outros agravantes à conversão dos indígenas, dentre eles o canibalismo e a poligamia. Com relação ao canibalismo a atitude possível foi a ‘tolerância a partir da intenção de ignorância’. Além das práticas terapêuticas, a tolerância com os ritos nativos foi uma das causas para os avanços do processo de missionação jesuítica na América Portuguesa. As decisões sobre quais costumes podiam e/ou deviam ser tolerados foi questão de muita importância para os integrantes da Missão no Brasil (Carta ao P. Simão Rodrigues. Lisboa, Baía. OP, 1955:145).

Quanto à poligamia foram implementados recursos e adotadas certas práticas. Logo se viu que convencer os nativos a escolherem uma dentre suas várias mulheres era tarefa infrutífera. Além disso, as leis positivas da Igreja sobre casamentos consanguíneos inviabilizavam o casamento cristão dos indígenas, uma vez que eles adotavam práticas de casamento cruzado entre parentes. Na tentativa de encontrar uma solução aceitável, diante da impossibilidade de realizar casamentos dos indígenas de acordo com as leis da Igreja, os jesuítas poderiam casá-los segundo o direito natural, ou seja, poderiam ser casados in lege naturae.20 No entanto, o casamento natural não foi suficiente para impedir a poligamia. Os indígenas aceitavam o casamento, prometiam manter a monogamia mas não abandonavam suas outras mulheres. Por causa disso, os jesuítas preferiam casar os nativos jovens que estavam a consumar o primeiro casamento e ignorar as outras mulheres que eles pudessem vir a ter na vida. Nesse caso, não se tratava, strito sensu, de poligamia, mas de relacionamentos extraconjugais.

Os missionários jesuítas no Brasil prudentemente decidiram optar pela tolerância com relação aos pecados menores – as relações extraconjugais, os casamentos consanguíneos – na intenção de obter resultados capazes de efetivar, com o tempo, a pregação e o exemplo, a conversão dos nativos da terra de modo que pudessem vir a integrar a cristandade católica como membros ‘civilizados’ e harmonicamente hierarquizados no contexto da sociedade do Império. Para tanto, adaptaram-se à realidade observada e aproveitaram o aprendizado advindo das experiências da prática vivenciada cotidianamente.

O maior exemplo dessa adaptabilidade pode ser observado nas cerimônias da missa. Eram nessas cerimônias que os padres puderam organizar representações teatrais para que as crianças indígenas dramatizassem passagens do Evangelho. Originalmente escritos em latim ou português, os textos para encenação eram depois traduzidos para o tupi. Nas missas, os jesuítas permitiam que os indígenas dançassem e cantassem ‘à sua maneira’, tal como faziam nas comemorações de suas vitórias nas guerras. Os nativos podiam também usar seus tradicionais paramentos religiosos, cantar em tupi e tocar seus próprios instrumentos. As palavras podiam persuadir, mas os

20 No sentido em que o casamento era uma instituição natural pré-existente ao surgimento da Igreja (Carta ao P. Inácio de Loyola. Roma, São Vicente. MB, v.II, 1956-1960:278).

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jesuítas sabiam que, se proclamadas em um ambiente teatralmente preparado para reforçar a apreensão de seu conteúdo, podiam-no ainda mais.

Em relação à conversão na Verdadeira Fé – pretensão maior dos missionários calvinistas – quando do início da efetiva ocupação neerlandesa no nordeste da Colônia (1630), alguns indígenas já se encontravam vivendo sob os preceitos do cristianismo católico nos chamados aldeamentos controlados pelos padres, principalmente jesuítas. Outros habitavam as vastas áreas do território, divididos de acordo com suas nações, em tribos (Ver Boxer, 1957; Buve, 2004:101, v.1).21 Para os indígenas – aldeados ou não –, o contato com a inteligibilidade dos preceitos do cristianismo protestante no consequente restabelecimento das relações de convivência com aqueles outros colonizadores acarretou modificações cosmológicas relativamente pouco significativas, uma vez que os esforços empreendidos pela evangelização protestante também foram ineficazes na tarefa de fazer com que os indígenas abandonassem completamente seus costumes. Por seu turno, para os predicantes, o estabelecimento de relações de sociabilidade com os indígenas chegou a ultrapassar o caráter meramente religioso e propriamente evangelizador no momento em que os contatos interétnicos passaram a revelar sua importância no âmbito da manutenção da ocupação neerlandesa na América meridional (Ver Vainfas, 2008).

Nesse sentido, foi notável o interesse da Companhia das Índias Ocidentais (West-Indische Compagnie) – WIC – em fazer dos missionários protestantes agentes interculturais capazes de efetivar o estabelecimento de relações amistosas com os indígenas, inclusive cooptando-os como aliados na manutenção da conquista. Não é raro, na documentação, as referências à participação dos indígenas, inclusive como líderes, nas guerras de contra-ataques dos colonos luso-brasileiros e também nas expedições de expansão dos territórios ocupados pelos neerlandeses (Linebsugh & Rediker, 2000:201-207).

Para os predicantes, o desafio de cristianizar com a “verdadeira religião cristã” a Colônia católica era a confirmação de suas aspirações espirituais. Tanto quanto os católicos, os protestantes vivenciaram, no limite, o papel de reais enviados de Deus na tarefa de conversão dos indígenas (Paes e Resende, 2006:570-572). Nesse sentido, o investimento de recursos humanos pela própria Companhia das Índias Ocidentais – WIC – na tarefa de evangelização dos indígenas foi considerável, sobretudo porque logo os neerlandeses perceberam a necessidade de fazer dos indígenas aliados para enfrentar os constantes contra-ataques luso-brasileiros.22

21 Segundo Schalkwijk (1986:289), duzentos e quarenta índígenas brasileiros partiram de Recife, em 30 de maio de 1641, como parte de uma força de 3000 homens sob o comando dos neerlan-deses para conquistar Luanda em 26 de agosto de 1641. Apenas 48 indígenas voltaram para suas aldeias. 22 Em comparação com os predicantes que viajaram para a região da Nova Holanda, na América do Norte, entre 1628 e 1674, para o nordeste do Brasil pode-se contar um número não inferior

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O trabalho dos predicantes ocorreu também junto às aldeias das antigas missões católicas que foram abandonadas durante os combates de conquista e defesa do território. Outros predicantes se dedicaram à evangelização dos indígenas que viviam nas aldeias e que não haviam vivenciado qualquer processo de conversão.23 Além disso, há que se destacar o relevante número de professores e consoladores de enfermos que se dedicaram a evangelização nas antigas missões católicas e nas aldeias, em especial com os indígenas que falavam o idioma tupi. Conquanto tais evangelizadores não trabalhassem oficialmente como “diplomatas” da WIC, os Senhores XIX na República das Províncias Unidas dos Países Baixos e as autoridades neerlandesas no Recife consideravam útil a prática da evangelização protestante dos indígenas como agentes do processo de interculturalidade capaz de criar laços e inter-relações entre esses nativos e os colonizadores (HAIA. Arquivo Nacional de Haia [ANH]. Dagelijkse Notulen [DN]. Inv. n.70, 11 de abril, 1645).24 Os predicantes exerceram, em muitas ocasiões, o papel de negociadores entre os conquistadores neerlandeses e os indígenas. Mais do que os colonos protestantes, que em geral não dominavam a linguagem, os predicantes empenharam-se no aprendizado e desenvolveram competências linguísticas para efetivar meios de comunicação com os indígenas. A possibilidade do estabelecimento da comunicação de parte a parte era, evidentemente, fundamental para o processo evangelizador. Por volta de 1640, alguns missionários protestantes eleboraram um catecismo escrito em tupi, português e neerlandês, conquanto não inteiramente aprovado no seio da Igreja Reformada Neerlandesa em função de questões teológicas.25

a 48 predicantes, cerca de 100 consoladores de enfermos e, ainda, um número significativo de professores (Meuwese, 2003:250-251). No entanto, no início de 1937, Joachim Soler escreveu aos diretores da Câmara da WIC na Zeelândia solicitando o envio de mais missionários para o trabalho com os indígenas na América Portuguesa (Joachim Soler’s letter to the Directors of the Chamber of Zeeland of the West Indies Company, Middelburg, Recife, March 15, 1637. In: Teensma, 1999:29-30, Vol. 1).23 Note-se que os Senhores XIX já possuíam conhecimento detalhado sobre a localização dos aldeamentos indígenas, localização de algumas tribos, etc. conforme é possível verificar em: Joachim Soler’s letter to André Rivet in the Hague, Recife, February 12, 1640 (In: Teensma, 1999:52-53, Vol. 1). Soler chega a destacar as importantes informações fornecidas pelo ex-jesuíta Manoel de Morais, tema do livro de Vainfas (2008).24 Faz-se necessário esclarecer, aqui, que alguma parte da documentação neerlandesa refe-renciada neste capítulo também se encontra referenciada no trabalho de Meuwese. Entretanto, antes da leitura do texto For the Peace and Well-Being of the Country (Meuwese, 2003) tal do-cumentação foi localizada no Arquivo Nacional de Haia e incorporada ao meu arquivo pesso-al depois de transcrita e traduzida do neerlandês do século XVII. Mantive, aqui, a opção pela consulta direta à documentação, o que se explica a partir da tentativa de interpretar as fontes sob outros pontos de vista. Destaca-se que essa atitude teve como objetivo o cuidado na inter-pretação dos documentos e não coloca em causa os dados apresentados por Meuwese, a quem todos os créditos devem ser dados.25 Note-se que alguns dos predicantes já dominavam os idiomas da Península Ibérica e, sobre-tudo a partir do final do primeiro quartel do século XVII, vários dos missionários calvinistas já dominavam a língua geral, ainda que uma versão simplificada do tupi-guarani, utilizada pelas

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Em uma época em que política e religião encontravam-se relacionadas de maneira intrínseca, a cooptação dos indígenas como aliados era reconhecida e considerada importante para a boa condução dos objetivos da ocupação neerlandesa no nordeste do Brasil. Ao contrário dos soldados e colonos que, não obstante professassem um fervoroso protestantismo, os missionários não cometiam os mesmos abusos em benefício próprio, como os colonos fizeram muitas das vezes com as populações indígenas e, por isso, se mostravam muito mais receptivos à convivência com os predicantes.26

Há que se apontar que, dentre os missionários protestantes que se envolveram no processo evangelizador junto aos indígenas, encontrava-se uma não desprezível diversidade étnica.27 Conquanto a maioria dos missionários tivesse nascido na República das Províncias Unidas dos Países Baixos havia um considerável número de origem estrangeira. O predicante estrangeiro de maior destaque no trabalho de evangelização com os indígenas do nordeste do Brasil foi Vicente Joachim Soler, ex-frade católico que, nascido na Espanha, já havia servido como pastor calvinista na Normandia antes de ser enviado ao Brasil, em 1636 (Teensma, 1999:62, Vol. 1. Soler demonstrou, desde sua chegada, especial predileção e entusiasmo pelo trabalho de evangelização dos indígenas e o domínio da língua espanhola, em muita medida, acabou por facilitar sua inserção em meio às comunidades indígenas. Entre os anos de 1935 e 1945, na lida do trabalho de evangelização, vários predicantes e ministros leigos mantiveram estreito contato com os indígenas nas aldeias com o objetivo de convertê-los ao cristianismo protestante. Além disso, vários professores ensinavam nas aldeias Leitura e Escrita para que os indígenas aprendessem a

comunidades indígenas costeiras na maior parte do território brasileiro (Barros, 2001:114).26 Tanto os Senhores XIX da WIC quanto as autoridades na República consideravam a maior eficácia dos missionários calvinistas no trato com os indígenas. Senso comum, os predican-tes possuíam maior zelo e melhores padrões morais do que os colonos em geral (Linebaugh & Rediker, 2001:211-212).27 Conquanto a maioria dos missionários tivesse nascido na República havia um vasto número de origem estrangeira: espanhóis, ingleses e, ao que tudo indica, um francês. Havia uma hierar-quia considerável entre os predicantes, pregadores leigos e os professores. Na maioria dos casos, os predicantes ou pregadores tinham obtido uma educação teológica em holandês ao nível uni-versitário. Eles recebiam um salário da WIC com valor igual ao dos capitães do exército. Uma indicação acerca de seu status especial foi o fato de que os predicantes pregadores foram alojados, no Brasil, gratuitamente e contavam com o serviço de escravos como empregados domésticos. Os consoladores de enfermos, que almejavam tornarem-se predicantes tinham uma posição social ligeiramente mais elevada do que os professores, os salários de ambos os grupos eram essencialmente o mesmo e foram muito menores do que os dos predicantes ordenados. A maio-ria dos membros desses dois grupos tinha suas origens entre as camadas menos favorecidas das Províncias Unidas e no resto do noroeste da Europa. A vocação missionária significava uma via de mobilidade social (Joachim Soler’s letter to André Rivet in the Hague. Recife, Abril 12, 1637. In: Teensma, 1999:52-53, Vol. 150-52).

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ler sobre catecismo calvinista e outros textos religiosos, tanto em suas línguas nativas quanto em neerlandês.28

Inicialmente as comunidades indígenas acolheram os missionários protestantes, deixando-os entusiasmados com os pedidos de batismo dos filhos e casamentos dos jovens. No final da década de 1630, alguns relatos dão notícias de progressos consideráveis na evangelização dos indígenas porque estes compareciam às orações diárias para cantar e ouvir as pregações. Entretanto, com o passar dos anos, os missionários calvinistas não podiam mais se iludir a respeito do fato de que os indígenas brasileiros só aderiram à conversão nos seus aspectos propriamente ritualísticos e, ainda assim, de maneira seletiva. Os indígenas continuavam com suas práticas culturais e rituais católicos que os predicantes calvinistas, obviamente, desprezavam fortemente (ANH. DN. Inv. n.68, kunnen 18, 1637; Inv. n.69, juli 11, 1642; Inv. n.70, maart 24, 1644).

Um dos primeiros problemas importantes que surgiu entre os missionários protestantes e os indígenas ocorreu por causa das instruções linguísticas e religiosas. Os missionários pretendiam a criação de internatos nos quais as crianças indígenas pudessem estudar juntas com as crianças neerlandesas de modo a possibilitar o mesmo conhecimento sobre a linguagem, ou seja, o neerlandês, artes e ofícios e religião cristã. Entretanto, os pais indígenas recusavam-se a deixar os filhos em colégios internos e escondiam-nos das vistas dos missionários. Tal atitude obrigava os missionários protestantes a realizar viagens de longas distâncias para o trabalho de instrução das crianças nas aldeias indígenas. Outra questão particularmente insuportável para os predicantes foi a prática da poligamia pelos índios nas aldeias de missão. Homens e mulheres indígenas eram tradicionalmente habituados a estabelecer vínculos conjugais em diferentes comunidades para fortalecer as alianças e laços de parentesco. As frequentes entradas e saídas dos índios nas aldeias consternaram os missionários calvinistas que queriam trabalhar com uma população nativa estável e fixa (ANH. DN. Inv. n.69, juli 11, 1642).

Note-se, então, que o programa de evangelização calvinista entre os indígenas encontrou suas limitações na manutenção dos costumes ancestrais mais caros à população das aldeias. O relativo fracasso ou o sucesso limitado do trabalho missionário protestante no nordeste do Brasil tornou-se evidente quando da elaboração, em setembro de 1644, da Ordenança para os Brasileiros com o objetivo de regulamentar a vida cotidiana nas aldeias (ANH. DN. Inv. n.70. maart 24, 1644). A lista de 19 pontos reguladores da vida indígena, em acordo com os valores civilizacionais e religiosos do protestantismo, revelou-

28 Joachim Soler’s letter to André Rivet in the Hague. Recife, February 12, 1640 (In: Teensma, 1999:65-69, Vol. 1). Acredito que seja interessante destacar aqui que, em maio de 1715, o jesuíta Alexandre Perier escreveu aos inquisidores sobre a existência de umas cartilhas calvinistas, im-pressas em Amsterdã, que circulavam pela Bahia e que tais cartilhas chegavam à Colônia a partir da Costa da Mina (LISBOA. Instituto dos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo [IANTT]. Inquisição de Lisboa [IL]. Liv.276, doc 96-97, apud Feitler, 2011:109).

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se impossível de ser cumprida porque os indígenas não abandonavam seus costumes ancestrais e/ou, eventualmente, hábitos e práticas anteriormente enraizadas do cristianismo católico (ANH. DN. Inv. n.68, maart 29, 1642).

Vários pontos indicavam a persistência de práticas culturais indígenas que eram abominadas pelos missionários protestantes. São vários os exemplos: a proibição de pintar e decorar os corpos, porque representação do diabo, não foi acatada pelos indígenas; bem como as danças ritualísticas próprias e a beberragem (ritual no qual os indígenas ingeriam bebidas preparadas especialmente para determinadas celebrações), a poligamia, o nomadismo e também a continuação de práticas apreendidas do catolicismo originalmente ensinadas pelos missionários jesuítas.29 Após cerca de dez anos de trabalho evangelizador os predicantes calvinistas se encontravam desiludidos e muitos retornaram à Europa (ANH. DN. Inv. n.70, maart 24, 1644).

Os ataques dos luso-brasileiros no verão de 1645, com as suas estratégias de guerrilha, determinaram o fim do programa de evangelização protestante, conquanto vários missionários calvinistas tenham continuado a trabalhar entre os indígenas nas aldeias. Os missionários calvinistas frequentemente pediram aos seus colegas na República das Províncias Unidas dos Países Baixos o envio de ajuda material aos “brasileiros pobres” que estavam sofrendo muito com as dificuldades trazidas pela guerra contra os neerlandeses. As contribuições foram, em geral, compostas de roupas e tecidos (ANH. DN. Inv. n.70, juli 8, 1645). Tais contribuições parecem indicar o fato de que a evangelização protestante, em função de suas próprias especificidades doutrinárias, pretendeu levar aos indígenas o que os calvinistas acreditavam mesmo ser a “Verdadeira Fé”.

Considerações finais

Em 1625, quando da primeira tentativa de conquista do nordeste da Colônia pelos neerlandeses, o Governador Mathias de Albuquerque escreveu ao Rei sobre a “traição dos índios com os invasores holandeses e do perigo” que isso significava “quando os holandeses forem expulsos porque os índios estão sendo convertidos e muitos deles já são batizados na Igreja”. Na mesma carta, Mathias de Albuquerque alerta para o fato de que os colonizadores luso-brasileiros “fazem os índios escravos mesmo quando já são batizados (...) e dos índios que já estão rebelados com os holandeses na Baía”. Em reunião com o bispo, “dez padres presentes e com os quatro provinciais das quatro

29 Sobre as queixas dos predicantes calvinistas acerca de danças e pintura corporal tupi, ver panfleto escrito pelo ministro calvinista Joachim Soler, Cort ende Sonderlingh Verhael van eenen Breve van Monsieur Soler (Amsterdã, 1639), transcrito e traduzido para o inglês em Joachim Soler, Brief and Curious Report of Some Peculiarities of Brazil (In: Teensma 1999:38-48).

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religiões (sic) que há no Brasil propondo se unirem” contra a escravidão indígena pelos portugueses e colonos para tentar impedir o estabelecimento de melhores relações entre os indígenas e os conquistadores neerlandeses “porque se cristãos [batizados] são vassalos de sua Majestade” (ANTT. Manuscritos da Livraria. Assuntos do Brasil, liv.140, n.1104, f.610-614).

O documento acima aponta para a questão de que, em maior ou menor medida, os indígenas brasileiros pareciam ponderar acerca da situação mais vantajosa para eles quando da aceitação ou da formação de alianças com o europeu, colonizador ou conquistador, católico ou calvinista. Mais ainda, os rituais de batismo, a suposta conversão, conceitos como a lealdade ao Rei – quem seria, afinal, esse Rei? –, no início do século XVII não apresentava correspondência no conjunto de valores que integravam a vida cotidiana das diferentes comunidades indígenas que habitavam a América Portuguesa. Por seu turno, pode nos conduzir a apreender a noção de que os contatos entre os indígenas brasileiros e os missionários – como cooptadores de súditos e aliados

– significou a elaboração de relatos sobre a “expressão dos modos de pensar, agir e representar dos padres e [predicantes] que as inventaram (…) não há índio, mas metáforas de índio, como algo visto e interpretado” de acordo com os valores culturais e supostamente civilizacionais das sociedades europeias (Hansen, 2003:13).

Tal questão é central para o trabalho aqui apresentado e que se encontra em curso porque não se trata de mensurar a eficácia da missionação e/ou dos processos de evangelização no sentido da conversão, propriamente dita, dos indígenas na América Portuguesa, seja em direção à adoção do catolicismo ou do calvinismo. Tal como se pretendeu demonstrar, não obstante as diferenças de métodos, procedimentos, o fator que se apresenta comum é sempre os processos de resistência, de adaptação, de re-apropriação simbólica da parte dos indígenas à aceitação de códigos morais e religiosos que não encontravam qualquer correspondência dentro do que poderíamos designar como cosmologia dos diversos grupos indígenas que mantiveram contato com os colonizadores e conquistadores no Brasil colonial.

Na tentativa de efetivar a conversão, os jesuítas assumiram que os mitos dos indígenas tupi tinham correspondência com eventos da história do cristianismo, evitando o trabalho de dessacralizar as histórias indígenas. Ou seja, procederam a um processo de substituição daquelas histórias segundo os preceitos do cristianismo. Ao efetivar tal substituição os mitos e crenças indígenas não poderiam ter deixado de adquirir um outro significado, conquanto não tenham sido aqueles diretamente relativos aos conceitos propriamente católicos (Ver Eisenberg, 2000:75). Os predicantes calvinistas, por causa de suas especificidades doutrinárias, não puderam contar com o mesmo instrumento de artificio mental. Entretanto, dois aspectos favoreceram o trabalho missionário ou de cooptação de aliados dos predicantes. O primeiro deles se relaciona ao fato de que os calvinistas herdaram, por assim dizer, o

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sistema de aldeamentos indígenas abandonados pelos missionários católicos a partir da invasão neerlandesa. Mas, talvez, ainda mais significativo tenha sido a maior predisposição das comunidades indígenas em acolher os predicantes. Tal acolhimento se deve ao desgaste das relações entre os indígenas e os colonos luso-brasileiros causado pelos abusos de toda ordem exercidos por esses últimos.30

O segundo aspecto se refere à disponibilidade dos indígenas em integrarem as forças neerlandesas que combatiam contra os colonos luso-brasileiros. Nesse caso é preciso destacar que tanto as guerras inter-tribais quanto os combates contra outros invasores europeus estimularam o surgimento de importantes líderes indígenas durante o século XVI. Junte-se a isso a conhecida animosidade dos indígenas em relação aos colonizadores e é possível compreender a participação dos indígenas como tropas auxiliares, conquanto muitas vezes tenham mesmo assumido um papel de maior relevância para combater junto às forças neerlandesas. Muitos dos indígenas, ao que tudo indica, encontravam-se completamente motivados para lutar contra aqueles primeiros opressores coloniais. Além disso, cabe destacar que os indígenas possuíam familiaridade e conhecimento geográfico acerca do território, tornando-os ótimos guias e fornecedores de informações cruciais para a elaboração de estratégias de defesa e/ou de ataque para as forças de combate dos neerlandeses (ANH. DN. Inv. n.70, 11 april, 1645).

Nesse sentido, investigar sobre a ‘religiosidade’ indígena não pode prescindir da noção de que o próprio conceito de religiosidade deve ser ressignificado e, por isso, escrito entre aspas no registro da compreensão da assimilação dos rituais que, ao que tudo indica, passaram a encontrar correspondência em meio às construções da visão de mundo daqueles indígenas. Em outras palavras, não é possível pensar em qualquer tipo de ‘religiosidade’ indígena a partir dos conjuntos de valores que integravam as formas de inteligibilidade as quais os europeus utilizavam para garantir a compreensão do mundo e da vida. E isto, naturalmente, porque o orbis europeu, conquanto pretendido, nunca foi hegemônico.

Há exemplos que elucidam sobremaneira a questão acima. Então vejamos: em 1552, Manuel da Nóbrega escreveu ao rei dom João III expondo seu método para a conversão dos indígenas. Tal método consistia na obrigatoriedade de que os indígenas que pediam o batismo antes deveriam ser “provados ser bons cristãos” (Carta a D. João III, Rei de Portugal. Baía, julho de 1552. OP, 1955:116-117). No entanto, José de Anchieta, em 1563, narrou em uma carta a história de um índio, já idoso, a quem foram ensinados os preceitos da Fé. Foi, então, conduzido à igreja para ser batizado. Depois da cerimônia, recusou-

30 Ver o relatório escrito no Brasil, em 1639, pelo membro do Alto Conselho, Adriaen van der Dussen, a pedido dos Senhores XIX da WIC, Raport van de Geconquesteerde Landen in Brazilië, traduzido para o português em Gonçalves de Melo (1947).

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se a deixar a igreja “porque imaginava que consumado o batizado, iria direto para o paraíso” (Carta ao Pe. Diego Layne, Roma. São Vicente, 16 de abril de 1563. MB, v.III, 1956-1960:572). Ao que tudo indica, para Nóbrega – ainda que seja inquestionável a importância da missionação dos indígenas no registro da Companhia de Jesus – ser bom cristão não significava necessariamente a compreensão da Doutrina, mas a aceitação do domínio sobre as gentes que tanto interessava à Coroa Portuguesa no que implicava o próprio povoamento do território com súditos leais a Portugal.31

No caso dos predicantes calvinistas o trabalho de missionação, além de não contar inteiramente com a adesão dos indígenas aos preceitos dogmaticos da Verdadeira Fé porque os indígenas não abandonavam seus costumes ancestrais, tal como descrito acima, tinham que se haver com hábitos e práticas anteriormente enraizadas, ainda que ressignificadas, do cristianismo católico. Como no caso da Coroa portuguesa, interessava muito aos conquistadores neerlandeses, ainda mais às autoridades na República e aos Senhores XIX da WIC, a cooptação dos indígenas diante da necessidade de proteger as áreas conquistadas frente aos constantes embates com os colonos e com as pretensões de ocupação de outras potências europeias, embora os indígenas nunca tenham sido considerados pelos neerlandeses como “absolutamente confiáveis” (ANH. DN. Inv. n.69, februari 20, 1642). Em muita medida foi justamente em função desta necessidade que se tornou praticamente impossível aos predicantes estabelecer um processo de conversão sobre bases mais duradouras porque, para além do nomadismo indígena, havia a constante saída da população para guerrear ao lado dos conquistadores contra os colonos luso-brasileiros (ANH. DN. Inv. n.68, februari 06, 1639). Nesse sentido, não se deve subestimar a importância da atividade missionária dos calvinistas junto aos indígenas no norte e nordeste do Brasil. Note-se que, ainda entre 1660 e 1750, os colonizadores portugueses lutavam para estabelecer o domínio sobre essas regiões. Portanto, após o período de ocupação neerlandesa na Colônia (Schalkwijk, 1986:290).32

É interessante destacar que, em 1660, o jesuíta António Vieira escreve sobre a “espantosa” experiência de ter encontrado uma comunidade indígena

31 Já nas últimas décadas do século XVI, o Brasil possuía dois colégios com dotação régia – na Baía e no Rio de Janeiro – e outros nas capitanias de Pernambuco, São Vicente, residências nas capitanias de Ilhéus, do Espírito Santo, três aldeamentos na Guanabara, o aldeamento de Ibiracica, em São Vicente, uma vila com o mesmo nome, aldeamentos nos arredores de São Paulo de Piratininga, em Santos e em Itanhanhém – na Baía – existiam vários aldeamentos (Ver Leite, 1993:36-37). Como se pode notar, a obra dos missionários jesuítas na América Portuguesa era, então, bastante significativa tanto do ponto de vista do processo de misssionação propria-mente dito quanto em relação ao esforço de povoamento do território. 32 Em 1661, a Coroa portuguesa assinou o acordo relativo à desocupação do “nordeste holandês” com os Estados Gerais da República dos Países Baixos. Tal acordo incluía compensações para as perdas neerlandesas no Brasil.

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que usava papel veneziano para escrever e utilizava bíblias protestantes. Vieira responsabilizava os “brasileiros” de Pernambuco pela transformação de Ibiapaba em uma “Genebra” brasileira, numa clara associação com o calvinismo. Segundo o jesuíta, estas aldeias de Ibiapaba eram verdadeiramente uma composição infernal onde se misturavam de forma abominável todas as seitas e todos os vícios, formadas por rebeldes, traidores, criminosos, assassinos, adúlteros, judeus, hereges, pagãos, ateus (Vieira, 1951:72-134, Vol. 11).

O que se pode concluir, em maior ou menor medida, é o fato de que as comunidades indígenas no Brasil colonial fizeram alianças político-comerciais quando lhes pareceu favorável – notadamente nas alianças com os neerlandeses contra os colonos portugueses –, adotaram seletivamente alguns dos rituais religiosos dos europeus católicos e/ou protestantes de acordo com as re-adaptações e as re-apropriações que puderam integrar o conjunto de significados ancestrais que lhes serviam de utensilagem para a compreensão de um mundo em tudo diferenciado do processo civilizador dos europeus. Com o passar do tempo, ou seja, com a fundação da América Portuguesa, sobretudo a partir do século XVIII, alguns indígenas, algumas das comunidades indígenas passaram a identificar formas de inserção e de sobrevivência no Novo Mundo. Entretanto, tais formas de inserção dos indígenas só fazem sentido se entendidas no contexto da sociedade colonial e a partir do pressuposto de que os indígenas, transitando entre dois mundos, o do colonizador europeu e o do nativo, já não se enquadravam em nenhum deles. Ao mesmo tempo em que as formas de compreensão próprias da cosmologia indígena já se encontravam de tal modo modificadas que também não se encontravam no contexto civilizador europeu, tornando-os híbridos no comportamento, mestiços e, como tal, passaram a ocupar um outro lugar que não era o de indígena nem o de europeu.

O ponto principal das análises apontam para o fato de que, ao longo dos séculos XVII e XVIII, dezenas de indígenas de diversas regiões e procedências étnicas passaram a viver na sociedade colonial, travando um convívio que produziu dilemas religiosos e sócio-culturais de toda ordem, sobretudo para as populações nativas. Diante desta constatação, parece que as práticas e/ou rituais descritos – sejam aqueles relacionados com os processos de evangelização, seja os relativos às práticas de resistência e adaptação – significaram mais que a permanência, e mesmo a resistência, de um substrato cultural baseado em tradições ancestrais e compartilhado pelos nativos que, por sua vez, teriam se espalhado por todas as regiões (Ver Paes e Resende, 2010:569-595).

Fontes

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Anexo

Minas Gerais sub examine: inventário das denúncias nos Cadernos do Promotor da Inquisição de Lisboa (século XVIII)1

Maria Leônia Chaves de Resende

Qualquer investigador que se tenha debruçado sobre o tema da inquisição já se deparou com os Cadernos do Promotor. Trata-se uma de volumosa série documental composta por manuscritos avulsos, organizados na forma de códice, com cerca de 300 a 600 fólios, contendo registro de denúncias, sumários de testemunhas, devassas e diligências realizadas no Brasil, durante o período de atuação do Santo Oficio na Inquisição de Lisboa.

Apesar da importância dessa fonte documental, não existe ainda um instrumento de pesquisa que permita ter acesso ao conteúdo dos Cadernos do Promotor2. As denúncias avulsas foram arroladas de forma cronológica e, como eram procedentes de diversas regiões, é necessário proceder a um levantamento fólio a fólio em cada códice para a seleção do material de interesse. Isso significa que, de antemão, para se iniciar uma investigação, é preciso fazer uma garimpagem nos registros dos Cadernos do Promotor para, só então, selecionar aqueles relevantes e remontar os casos que podem (ou não) terem constituído processo inquisitorial, já que através do rol onomástico é possível uma busca dos processos correlatos3 ou ainda relacionar essas peças com fontes de outros acervos.

O nosso propósito foi, assim, elaborar um rol das denúncias referentes a Minas Gerais ao longo do século XVIII, com intuito de constituir um inventário sintético como guia inicial de pesquisa para os historiadores. Com efeito, após a

1 Este trabalho é resultado de pesquisa apoiada pela FAPEMIG e CNPq. Agradeço a colaboração de Lidiane Santos, Carlos Henrique Cruz, Rafael Sousa e Luís Antônio Morais pela conferência do inventário. 2 Há apenas um “instrumento de descrição documental”. As indicações referentes à Inquisição de Lisboa estão em FARINHA, Maria do Carmo Jasmins Dias. Os arquivos da Inquisição. Série IDD’s. Lisboa: Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Serviços de publicação e divulgação. 1990, às páginas 157-207. Para o período do século XVIII, há 64 cadernos do promotor e 5 índices que foram consultados. 3 Até este momento, localizamos 66 processos relativos a Minas, mas é importante notar que encontramos processos sem que houvesse a respectiva denúncia nos cadernos do promotor.

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localização de cada denúncia registrada em 37 Cadernos do Promotor, relativas ao período de 1692-1800, indexamos os dados, seguindo a ordem sequencial dos códices. Apresentamos, então, um descritor de cada denúncia4, indicando, sempre que constar, as seguintes informações: número do livro, número do fólio (registro da digitalização do Arquivo Nacional da Torre do Tombo), número do documento (numeração original do manuscrito), nome do denunciador, nome do denunciado, informações do denunciado (como condição, procedência, filiação, moradia, estado civil, ocupação), motivo da denúncia, com breve detalhamento do delito nos termos do manuscrito, local da ocorrência ou onde foi feita a denúncia, ano da denúncia ou do encaminhamento5.

Importante atentar para o fato de que, embora na listagem apareça a indicação de se tratar de uma denúncia, há casos em que o documento de fato refere-se à confissão (apresentação) ou mesmo ao sumário de testemunhas das diligências que se procederam para a instauração do processo inquisitorial. Às vezes é meramente uma carta ou uma breve mensagem, em outras é propriamente o encaminhamento formal do comissário à mesa do tribunal do Santo Oficio. Da mesma forma, algumas são relativas a apenas um delatado, em outras envolve a vários, razão pela qual desdobramos as denúncias para arrolar todos os implicados, indicando essa situação por meio da repetição do mesmo documento e fólio no rol. Em alguns casos, sequer consta propriamente o denunciante e há apenas o encaminhamento feito pelo comissário ou familiar. Em outras, nem o motivo. Por essa razão, com o intuito de padronizar o descritor, tratei indistintamente tais nuanças, procurando tão-somente apresentar os dados fundamentais no registro para servir como orientação ao consulente. Caberão, portanto, todos esses reparos para a leitura deste inventário.

Levando isso em conta, este mapeamento permitiu traçar um panorama geral da tipologia de denúncias mais comuns, com a incidência por período e por região, como abaixo ilustrado6.

Essas fontes permitem, com os relatos dos implicados, testemunhas e delatados, – ainda que mediados pelo discurso e crivo inquisitorial - trazer à tona a vivência nas diferentes vozes e significados da trama urdida no contexto das Minas Gerais setecentista. Revelam os conflitos, medos e rancores, lançando

4 Levantamos as denúncias referentes aos acusados procedentes e/ou moradores em Minas Gerais.5 Para essa publicação, procuramos identificar, a partir do levantamento dos documentos originais, as referências dos respectivos fólios digitalizados disponíveis na página do Arquivo Nacional da Torre do Tombo (http://antt.dgarq.gov.pt). No entanto, em alguns casos, a sequ-ência dos documentos foi deslocada, fazendo com que a numeração ficasse truncada. Por isso, indiquei a numeração do fólio (fol.) e, a seguir, mantive a referência original do documento, em geral inscrita no canto superior direito. Quando não foi possível localizar a denúncia, assinala-mos com um asterisco ao final do descritor. Informamos ainda que modernizamos a grafia dos nomes e topônimos. 6 Os quadros referem-se ao cômputo total de denúncias independente de implicar o mesmo denunciado.

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luz sobre o cotidiano da sociedade. Possibilitam observar versões distintas dos envolvidos: indígenas, mestiços, africanos e europeus fazem emergir um conjunto de significados múltiplos, em uma leitura rica desse universo colonial mineiro. Proporcionam ainda ao pesquisador a percepção da intrincada relação entre os oficiais do Santo Ofício, as autoridades coloniais e os colonos.

Pensamos que este inventário constitui-se, portanto, como um “thesaurus” porque, além de importante instrumento de pesquisa sobre a inquisição em Minas Gerais, favorecendo e promovendo novas investigações sobre essa temática, é um esforço de preservar o patrimônio cultural que essa documentação enseja. E por isso resguarda o sentido deste inventário de ser, sobremaneira, o de uma partilha – desta que todos nós, historiadores, já estamos acostumados a fazer quando compartimos os tantos segredos da Inquisição de Lisboa guardados na imensidão do instigante e extraordinário Arquivo Nacional da Torre do Tombo.

Inventário das Denúncias Nos Cadernos do Promotor Da Inquisição De Lisboa - Minas Gerais (Séc. XVIII)

1 - CADERNO 74, LIVRO 268 [1700 - 1708]

1. Livro 268, fol. 0994, doc. 487 - Denúncia de Sebastião Paes Tenreiro, vigário, contra João da Cruz, frei e religioso de N. Sra. do Carmo, por desacato a imagem ou ao Santíssimo Sacramento, por ter na Semana Santa pintado em uma toalha nova o Santo Sudário com um pouco de terra vermelha. Fazendo prática, tomou um baú com um relicário de Agnus Dei, deixando o povo adorar como se estivera o Santíssimo Sacramento. Ribeirão da Santa Clara do Ouro Preto, [1701].

2. Livro 268, fol. 0994, doc. 487 - Denúncia de Sebastião Paes Tenreiro, vigário, contra Frutuoso da Concepção, frei e monge do Patriarca de São Bento, por desacato a imagem ou ao Santíssimo Sacramento, por expor o Santíssimo em uma casa pouco decente, na quinta-feira da Semana Santa. Ribeirão de N. Sra. do Carmo, [1701].

3. Livro 268, fol. 0994, doc. 487 - Denúncia de Sebastião Paes Tenreiro, vigário, contra José de Jesus, frei e monge de São Bento, por fazer casamento ocultamente sem serem apregoados os nubentes. Lugar do Campo, Sítio do capitão Baltasar de Godoy, Minas Gerais, [1701].

4. Livro 268, fol. 0994, doc. 487 - Denúncia de Sebastião Paes Tenreiro,

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vigário, contra Antonio da Trindade, frei e monge da Ordem do Seráfico São Francisco, conventual em Itu, por cisma, afirmava que toda mulher que tinha cópula com religioso tinha indulgência plenária, colocando cisma no gentio. Minas Gerais, [1701].

2 - CADERNO 82, LIVRO 275 [1713-1715]

5. Livro 275, fol. 275-268, doc. 138-143 - Denúncia contra de Maria de Souza, cristã, por bigamia, por ter se casado com Manoel Duarte, homem do mar, morador em Minas do Caeté, e com Vicente Lopes. Minas do Caeté, [1713].

3 - CADERNO 88, LIVRO 281 [1716-1720]

6. Livro 281, fol. 0856-0857, doc. 426 - Denúncia de Pedro de Moura Portugal, parente do tenente general das Minas, contra (não consta nome), clérigo, por vender bulas por mais preço de ouro que pode, por incapacidade, má consciência e razão. Ribeirão do Carmo, [1717].

7. Livro 281, fol. 0856-0857, doc. 426 - Denúncia de Pedro de Moura Portugal contra mulato, forro, casado, por feitiçaria, em que dá noticia o Pe. Manoel Coelho de ser pacto com o diabo, entregando seu sangue tirado de um braço com três riscas. Ribeirão do Carmo, [1717].

4 - CADERNO 90, LIVRO 283 [1720-1722]

8. Livro 283, fol. 0889-0890, doc. 445 - Denúncia de Francisco de Santa Teresa, frei, contra um homem com fama de sacerdote, por se confessar com ele fora da igreja, na casa de um secular. N. Sra. da Conceição do Sabará, [s/d].

5 - CADERNO 91, LIVRO 284 [1719-1723]

9. Livro 284, fol. 0081-0086, doc. 37-39 - Denúncia de Miguel Soares contra Caterina, negra de Luanda, reino de Angola, por feitiçaria, por ter

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cópula carnal com o demônio em figura de bode e estar concubinada com Heitor Cardoso, branco, que lhe ensinara umas feitiçarias, para abrandar o coração de seu marido Sebastião. N. Sra. da Conceição de Prados, São João del-Rei, [1720].

10. Livro 284, fol. 0081-0086, doc. 37-39 - Denúncia de Miguel Soares contra Heitor Cardoso, homem branco, por feitiçaria, por ensinar a Caterina, sua concubina, negra de Luanda, reino de Angola, algumas feitiçarias para abrandar o coração de seu marido. N. Sra. da Conceição de Prados, São João del-Rei, [1720].

11. Livro 284, fol. 0089-0090, doc. 41 - Denúncia de Alexandre da Silva Vaz, padre, contra Gracia, negra, por feitiçaria, por fazer calundus e depois de ficar sem sentido, lhe falando na garganta D. Filipe, que se supõe foi rei do Congo, dando-lhe senhoria e fazendo-lhe reverência. Oratório de N. Sra. da Conceição do Rodeio, [1721].

12. Livro 284, fol. 0831, doc. 549 - Denúncia de Francisco de Oliveira Braga, oficial de ferreiro, contra Antônio Lopes, por perturbar o ministério do Santo Oficio, por prender em nome do Santo Oficio. Lugar do Couto, caminho das Minas, [1722].

6 - CADERNO 95, LIVRO 288 [1713-1726]

13. Livro 288, fol. 0677, doc. 346-347 - Denúncia de Domingos Pedroso, morador na Barra do Caeté do Mato Dentro, contra Francisco Xavier, licenciado, infamado de judeu, por heresia e desacato a imagem, tendo debaixo do colchão da cama um crucifixo judiado. Vila do Caeté, [1724].

7 - CADERNO 96, LIVRO 289 [1714-1730; 1744]

14. Livro 289, fol. 0713-0718, doc. 366-393 - Denúncia de João de Almeida e Silva, padre do hábito de São Pedro, contra João Carrascosa, frei e religioso de São Bento, por blasfêmia e proposição herética, proferindo palavras mal soantes, escandalosas e heréticas, dizendo que o Sumo Pontífice podia errar, duvidar sobre a pureza da virgem e ser asneira crer em milagres, vindo de Lisboa passou a essas Minas. Vila Rica, [1726].

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8 - CADERNO 97, LIVRO 290 [1724-1727]

15. Livro 290, fol. 0178-0196, doc. 75-98 - Denúncia de João do Couto Carreira contra Manoel Ferreira da Fonseca, blasfêmia e proposição herética, que ele era tão puro como Jesus Cristo e sendo rústico, que mal sabia ler, alegava qualquer coisa com a Sagrada Escritura, acomodando ao seu modo e pronunciando que essa era charra. Sítio de Água Limpa, Freguesia de São Bartolomeu, [1726].

16. Livro 290, fol. 0238-0274, doc. 112-127 - Denúncia de Domingos Luís da Silva, vigário, contra José Nogueira Ferraz, vigário, por perturbar o ministério do Santo Ofício, prendendo por parte do Santo Ofício a Rosa, negra, mina, escrava de Bernardo Pinto, com quem andava mal encaminhado e com cuja escrava achou-se uma bolsa com orações, cartas de tocar, com custódia em tinta preta, duas escadas, uns sinos e cruzes. Vila de São José del-Rei, [1724].

9 - CADERNO 98, LIVRO 291 [1726- 1730]

17. Livro 291, doc. 17 - Denúncia contra o Phillipe de La Contrice, padre, francês, por proposição. Vila Rica, [1722]. (*)

10 - CADERNO 99, LIVRO 292 [1737-1744]

18. Livro 292, fol. 0063-0069, doc. 24-29 - Denúncia contra de Diogo Roiz, natural do Grão Pará, por desacato a imagem, que estando no serviço de Antônio Pereira, cristão-novo, foi mandado por judiar da imagem de Cristo, metendo-o num tacho com água para ferver, e que a água virou sangue que bebera, e lançou fogo sobre a imagem. Minas Gerais, [1736].

19. Livro 292, fol. 0063-0069, doc. 24-29 - Denúncia contra Antônio Pereira, cristão- novo, natural de Leiria, por heresia e desacato, que fugindo com o sobrinho, Manoel de Oliveira, oficial de imaginário, para o Brasil, tinha judiado muitas vezes da imagem de Cristo, colocando em água para ferver, fazendo figas na missa diante do Santíssimo Sacramento, e que não cria em Jesus. Minas Gerais, [1736].

20. Livro 292, fol. 0213-0215, doc. 95-96. - Denúncia de Pedro de Almeida

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contra Eusébio Espínola Batista, natural da ilha da Madeira, por bigamia, casado com Escolástica da Silva e depois com Mariana Borges de Jesus. Vila de Pitangui, [1737].

21. Livro 292, fol. 0627-0643, doc. 305-312 - Denúncia de Bernardo Paulo Martins de Sampaio, bacharel em cânones, e Bento José Marques da Cruz, estudante moralista, contra Pedro de Rates e Nanquim (Henechim), por heresia, por proferir proposições heréticas, presunção de saber as escrituras sagradas e mostrar inclinação do sentido contrário que a igreja ensina, por blasfêmias sobre o Santíssimo Sacramento. Minas Gerais, [1733].

11 - CADERNO 102, LIVRO 295 [1727-1742]

22. Livro 295, fol. 0061, doc. 28 - Denúncia de Alexandre Nunes, vigário, contra Páscoa Roiz, preta, forra, casada com Amaro, preto, por feitiçaria, por curar com feitiços e calundu, e que todos lhe tomam bênção, beijando-lhe pés e a palma da mão. Curral del-Rei, [1740].

23. Livro 295, fol. 0061, doc. 28 - Denúncia de Alexandre Nunes, vigário, contra Isabel, mulata, por feitiçaria ou adivinhação, acerca do passado e sobre o que se passa na casa, manifestando quem é feiticeiro. Curral del-Rei, [1740].

24. Livro 295, fol. 0061, doc. 28 - Denúncia de Alexandre Nunes, vigário, contra Antônio Correa, preto, escravo de José Pereira Pinto, padre, morador no sítio de São Gonçalo, por feitiçaria, que me seguram pessoas fidedignas é feiticeiro. Curral del-Rei, [1740].

25. Livro 295, fol. 0083, doc. 39 - Denúncia de Maria da Conceição, parda, forra, contra Miguel Ferreira de tal, natural do reino, por bigamia, por se casar com Clemência Rodrigues Morais, tendo já se casado em Portugal. Arraial das Catas Altas, [1740].

26. Livro 295, fol. 0085, doc. 40 - Denúncia de José da Costa Souza, sargento-mor, contra Eugênia Maria, negra, forra, mina, por feitiçaria, por levá-lo sem que sentisse por três léguas o maltratando com pancadas. Sítio do Palmirar, distrito do arraial do Gouveia. Freguesia da Vila do Príncipe, [1738].

27. Livro 295, fol. 0085, doc. 40 - Denúncia de José da Costa Souza, sargento-mor, contra Severina, mina, escrava de Eugênia Maria, por feitiçaria, por

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levá-lo sem que sentisse por três léguas, maltratando-o com pancadas. Sítio do Palmirar, distrito do arraial do Gouveia. Freguesia da Vila do Príncipe, [1738].

28. Livro 295, fol. 0085, doc. 40 - Denúncia de José da Costa Souza, sargento-mor, contra Joana da Silva, negra forra, mina, por feitiçaria, por levá-lo sem que sentisse por três léguas, maltratando-o com pancadas. Sítio do Palmirar, distrito do arraial do Gouveia, Freguesia da Vila do Príncipe, [1738].

29. Livro 295, fol. 0085, doc. 40 - Denúncia de José da Costa Souza, sargento-mor, contra Ana Carvalho, negra, mina, alcunha Repolho, moradora na cupiara (?) de São Patrício da mesma freguesia, por feitiçaria, por levá-lo sem que sentisse por três léguas, maltratando-o com pancadas. Sítio do Palmirar, distrito do Arraial do Gouveia, Freguesia da Vila do Príncipe, [1738].

30. Livro 295, fol. 0085, doc. 40 - Denúncia de José da Costa Souza, sargento-mor, contra Bernardo, escravo, mina, por feitiçaria, por levá-lo sem que sentisse por três léguas, maltratando-o com pancadas. Ribeirão da Arca, Freguesia da Vila do Príncipe, [1738].

31. Livro 295, fol. 0085, doc. 40 - Denúncia de José da Costa Souza, sargento-mor, contra Francisco, mina, preto velho, forro, aleijado na mão, por feitiçaria, por levá-lo sem que sentisse por três léguas, maltratando-o com pancadas. Tapera, Freguesia de N. Sra. da Conceição do Mato Dentro, [1738].

32. Livro 295, fol. 0129, doc. 60 - Denúncia de Baltazar de Queiroga, capitão, morador em São Miguel de Piracicaba, contra Francisco Moutinho, infamado de cristão-novo, morador no Arraial de Antonio Dias, por desacato, por açoitar a imagem de Cristo crucificado. Vila de N. Sra. do Carmo, [1741].

33. Livro 295, fol. 0133-0138, doc. 62-64 - Denúncia de Maria da Candelária contra Brites Furtada de Mendonça, por feitiçaria, com casulos de algodão, azeite de mamona, vestida de branco, dizendo falas, e deitada de bruços com braços em cruz, com contas na mão. Vila de São João del-Rei, [1738].

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12 - CADERNO 104, LIVRO 296 [1721; 1732-1746]

34. Livro 296, fol. 0567, doc. 234 - Denúncia contra João Ferreira Coelho, natural do Rio de Janeiro, por blasfêmia e proposição herética, por dizer que a fornicação simples era pecado menos grave e quase necessário. Freguesia da Roça Grande, [1742].

35. Livro 296, fol. 0569, doc. 235 - Denúncia contra Francisco Rodrigues da Costa, cristão-novo, solteiro, natural da freguesia de São Vicente da Beira, por culpas que se queria apresentar, mas que só declararia perante os Inquisidores. Morador até o presente na Vila de Pitangui, passando para o Arraial do Tijuco. Vila Rica de N. Sra. do Pilar do Ouro Preto, [1732].

36. Livro 296, fol. 0573, doc. 239 - Denúncia de Francisco Gomes da Cruz contra seu procurador (sem nome), na cidade da Bahia, por perturbar o ministério do Santo Oficio, por alegar na apelação à Ouvidoria de Vila Rica, com Francisco Domingues e Francisco Soares, sem sua ordem, que ele era familiar do Santo Ofício, sendo que o denunciante não era familiar do Santo Ofício. Vila de N. Sra. do Carmo, [1739].

37. Livro 296, fol. 0577, doc. (s/p) - Denúncia de Manoel de Azevedo Coelho contra Manoel Lobo, mulato, por feitiçaria, por pacto com o diabo e que havia três anos tinha dado um escrito do seu sangue do braço esquerdo para lhe entregar a alma e que também trazia carta de tocar. Córrego de N. Sra. do Rosário, Freguesia do Quilombo, Curral del-Rei. [1742].

38. Livro 296, fol. 0579, doc. 242 - Denúncia de Serafino Teixeira contra Bento da Silva, solteiro, por feitiçaria, por usar cartas de tocar, com umas nominas e letras com que pretendendo qualquer mulher, lhe dissera a atraía a si para usar mal dela. Freguesia de N. Sra. de Monserrate de Baependi, [1743].

39. Livro 296, fol. 0587, doc. 245 - Denúncia Vidal Machado contra Antônia Maria, por desacato, ao maltratar a imagem de um Santo Cristo e de N. Sra. Congonhas do Sabará, [1743].

40. Livro 296, fol. 0589, doc. 246 - Denúncia de Vicente da Costa, cirurgião, contra Antônio, negro, mina, escravo de Fernando Nogueira Soares, por feitiçaria ou adivinhação, por ser visto fazer coisas que pareciam diabólicas, parecendo ter pacto com o demônio, botando um pouco de água ardente de cana em um copo de vidro e dentro dele uma conta preta e depois diz que quer chamar pela sua gente para lhe dizer o que ele pretende. Vila de Pitangui, [1742].

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41. Livro 296, fol. 0593, doc. 248 - Denúncia de Francisco da Costa Teixeira, contra Francisco Lopes, morador no Arraial de Antônio Dias, mascate, por blasfêmia e proposição herética, por dizer que a fornicação simples não era pecado, dizendo a modo de zombar dele denunciante que defendia a verdade. Vila de N. Sra. do Carmo, [1739].

42. Livro 296, fol. 0599, doc. 251 - Denúncia de Sebastião Barbosa contra Manoel dos Santos, por blasfêmia e proposição herética, dizendo que não havia inferno e que os pecadores não poderiam ter maior tormento do que nunca verem a Deus. Arraial do Padre Faria, Freguesia de N. Sra. de Antônio Dias de Vila Rica, [1739].

43. Livro 296, fol. 0605, doc. 254 - Denúncia de Antônio Lopes Lima contra um negro, courano, cativo de uma negra que foi do Padre José de Caldas, por feitiçaria ou adivinhação. Arraial de Santa Bárbara, [s/d].

44. Livro 296, fol. 0611, doc. 257 - Denúncia de Florência Antônia de Carvalho, contra Antônio Rodrigues, morador na Vila de Pitangui, e suas filhas Luzia e Teodozia, e seus filhos, Miguel e Francisco, e a sua escrava, Perpétua, preta, mina e a Joana de Azevedo, preta, forra, mina, por feitiçaria, por tomar a figura de bode, cavalo e de cachorro, e falar como gente e que pegavam em uma imagem de Cristo Crucificado e arrastavam pela casa e o metiam de baixo do colchão da cama e se deitavam todos em cima dele e que Teodozia tirara com uma lanceta, sangue do pé direito dela dita Florência, e com o sangue untara a dita imagem e a cobriam com um pano menos sujo. Curral del-Rei, [1743].

45. Livro 296, fol. 0611, doc. 257 - Denúncia de Florência Antônia de Carvalho, contra Luzia, por feitiçaria, por tomar a figura de bode, cavalo e de cachorro, e falar como gente e que pegava em uma Imagem de Cristo Crucificado e arrastava pela casa e junto com outros o metiam de baixo do colchão da cama e se deitavam todos em cima dele. Curral del-Rei, [1743].

46. Livro 296, fol. 0611, doc. 257 - Denúncia de Florência Antônia de Carvalho, contra Teodozia, por feitiçaria, por tomar a figura de bode, cavalo e de cachorro, e falar como gente e que pegavam em uma Imagem de Cristo Crucificado e arrastavam pela casa e o metiam de baixo do colchão da cama e se deitavam todos em cima dele e que Teodozia tirara com uma lanceta, sangue do pé direito dela dita Florência, de 13 anos, e com o sangue untara a dita imagem e a cobriam com um pano menos sujo. Curral del-Rei, [1743].

47. Livro 296, fol. 0611, doc. 257 - Denúncia de Florência Antônia de

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Carvalho contra Miguel, por feitiçaria, por tomar a figura de bode, cavalo e de cachorro, e falar como gente e que pegavam em uma Imagem de Cristo Crucificado e arrastavam pela casa e o metiam de baixo do colchão da cama e se deitavam todos em cima dele. Curral del-Rei, [1743].

48. Livro 296, fol. 0611, doc. 257 - Denúncia de Florência Antônia de Carvalho contra Francisco, por feitiçaria, por tomar a figura de bode, cavalo e de cachorro, e falar como gente e que pegavam em uma Imagem de Cristo Crucificado e arrastavam pela casa e o metiam de baixo do colchão da cama e se deitavam todos em cima dele. Curral del-Rei, [1743].

49. Livro 296, fol. 0611, doc. 257 - Denúncia de Florência Antônia de Carvalho contra Perpétua, escrava, mina, por feitiçaria, por tomar a figura de bode, cavalo e de cachorro, e falar como gente e que pegavam em uma Imagem de Cristo Crucificado e arrastavam pela casa e o metiam de baixo do colchão da cama e se deitavam todos em cima dele. Curral del-Rei, [1743].

50. Livro 296, fol. 0611, doc. 257 - Denúncia de Florência Antônia de Carvalho contra Joana de Azevedo, preta, forra, Mina, por feitiçaria, por tomar a figura de bode, cavalo e de cachorro, e falar como gente e que pegavam em uma Imagem de Cristo Crucificado e arrastavam pela casa e o metiam de baixo do colchão da cama. Curral del-Rei, [1743].

51. Livro 296, fol. 0617, doc. 260 - Denúncia de João Gomes Coutinho contra Joana Alvares, crioula, por feitiçaria, com presunção de pacto, por trazer uma oração com cruzes por toda ela e o demônio pintado e a forca e a cadeia e palavras diabólicas, e a defumou com enxofre e foi assentá-la em uma encruzilhada fora de hora. Congonhas do Sabará, [1733].

52. Livro 296, fol. 0621-0622, doc. 262 - Denúncia contra João de Sousa, por feitiçaria, por trazer três orações para enterrar em uma encruzilhada onde veria o diabo. Rancho do Carandaí, Vila de São José del-Rei, [s/d].

53. Livro 296, fol. 0627-0628, doc. 265 - Denúncia de Manoel de Seixa Pinto contra Luzia Pinta, por feitiçaria e adivinhação, pois estando o denunciante com uma escrava molestada, disseram que se os pagasse que haviam de dar o remédio e dizer a queixa da escrava. Pompeu, [1742].

54. Livro 296, fol. 0631-0632, doc. 267 - Denúncia de Luiz Pereira (?) contra

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Suzana, negra, por feitiçaria e adivinhação, por suspeita de enfeitiçar um negro, e por curá-lo em uma cachoeira, onde lhe assentara umas folhas de bananeira, fizera um fogo e o mandara saltar por cima. Morro de N. Sra. do Pilar do Mato Dentro, Freguesia de N. Sra. da Conceição, [1742].

55. Livro 296, fol. 0633-0636, doc. 268 - Denúncia contra (Manoel) Lobo Franco, por feitiçaria e adivinhação, por estar molestado e procurar a Isabel, negra, calunduzeira, moradora na fazenda de Antônio Alves Pugas, e a dita falou quem havia feito o mal e começou com outros dois negros a fazer danças e cantigas, bebendo água ardente de cana, cortando com uma navalha em diversas partes do corpo, onde ela botava carvão queimado, dizendo que era para fechar o corpo. Depois, ele recorreu a Antônio Matias da Costa, mulato, que ensinou orações de São Marcos e São Cipriano. Santo Antônio do Rio Acima, [1742].

56. Livro 296, fol. 0633-0636, doc. 268 - Denúncia contra Isabel, negra, calunduzeira, moradora na fazenda de Antônio Alves Pugas, por feitiçaria e adivinhação, e a dita falou quem havia feito malefício em (Manoel) Lobo Franco e começou com outros dois negros a fazer danças e cantigas, bebendo água ardente de cana, cortando com uma navalha em diversas partes do corpo, onde ela botava carvão queimado, dizendo que era para fechar o corpo. Santo Antônio do Rio Acima, [1742].

57. Livro 296, fol. 0633-0636, doc. 268 - Denúncia contra Antônio Matias da Costa, mulato, por feitiçaria e adivinhação, que ensinou a (Manoel) Lobo Franco orações de São Marcos e São Cipriano. Santo Antônio do Rio Acima, [1742].

58. Livro 296, fol. 0729-0732, doc. 309 - Denúncia de Pedro Vagner contra Manoel da Paixão, por bigamia, por ser casado em Faro, no Reino, com Maria da Conceição, e segunda vez na Freguesia da Piedade do caminho velho de São Paulo para essas Minas. Vila de São José del-Rei. [s/d].

59. Livro 296, fol. 0751, doc. 318 - Denúncia de Miguel Pacheco de Carvalho, contra Agostinho José, homem penitenciado pelo Santo Ofício, por desacato, por durante a missa estar com a mão sobre o seu bordão e ao tempo que se levantava a hóstia e o cálice dava figas. Capela de N. Sra. das Brotas da freguesia das Congonhas do Campo, [1744].

60. Livro 296, fol. 0841-0842, doc. 360 - Denúncia contra Diogo Nunes, cristão-novo, (s/ informação), morador do Campo do Curralinho, avisado pelo reverendo Doutor José Pacheco Pereira, vigário da

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Freguesia de N. Sra. de Nazareth da Cachoeira, da parte do Santo Ofício, que se apresentasse na Igreja de Santo Antônio do Campo. Vila Rica do Ouro Preto, [1732].

13 - CADERNO 105, LIVRO 297 [1740-1747]

61. Livro 297, fol. 0259-0263, doc. 103-105 - Denúncia de Francisco Correa Lobo contra João Sanches Brandão, por desacato, por arrancarem do chão uma cruz de pau, enterrarem orações e imagem de Cristo ao pé da cruz, dizendo que eram pagãos e queriam se batizar, na noite de São João. Engenho da Passagem, Vila Rica do Ouro Preto, [1743].

62. Livro 297, fol. 0259-0263, doc. 103-105 - Denúncia de Francisco Correa Lobo contra José da Costa, por desacato, por arrancarem do chão uma cruz de pau, enterrarem orações e imagem de Cristo ao pé da cruz, dizendo que eram pagãos e queriam se batizar, na noite de São João. Engenho da Passagem, Vila Rica do Ouro Preto, [1743].

63. Livro 297, fol. 0469-0473, doc. 195-197 - Denúncia de Francisco Ribeiro e Antônio Gomes da Silva contra João da Silva, mina, preto, forro, por feitiçaria, por ter uma bolsa com ossos, cabelos, raízes, poses, umbigo de menino, contas, enterrar panela cheia de imundícies, adorar um ferro oco, não assistir missa e fazer suadouros de ervas, beberagens, atividades de cura e adivinhação. Rio das Pedras, [1743].

64. Livro 297, fol. 0567-0571, doc. 241-243 - Denúncia de Tereza de Jesus, crioula, contra Domingos Morato, por desacato, suspeita de judaísmo, batendo e “mijando” em uma imagem de Cristo, de Verônica e do Rosário. São Gonçalo das Catas Altas, Freguesia de Itaverava, [1740].

14 - CADERNO 106, LIVRO 298 [1745-1748]

65. Livro 298, fol. 0003-0004, doc. 2 - Denúncia de Francisco Diniz Chaves contra Inácio Pereira, morador na freguesia de São Caetano, por feitiçaria e adivinhação, por descobrir o malefício de sua mulher enferma e recomendar que ela tomasse, na noite de São João, uma fava de Santo Inácio, casaca de Ariticupitaia, que era um pau dos matos, com uma água de São João benzida tudo por um padre de boa vida. Freguesia do inficionado. Vila de N. Sra. do Carmo, [1745].

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66. Livro 298, fol. 0005, doc. 3 - Denúncia de Martinhos Domingues contra Inácio Pereira, por feitiçaria e adivinhação, por descobrir malefício de um negro e vendo uma filha do denunciante pejada, disse que a criança era fêmea e que estava para a parte esquerda, e que nomeara dois feiticeiros. Inficcionado, [1745].

67. Livro 298, fol. 0029-0030, doc. 13 - Denúncia de João Pereira da Silveira contra Joana Jaguatinga, negra, por feitiçaria, que andando com um negro de Manoel da Silva e uma mulata chamada Antônia da Silva, fazem calundus e adivinhações em banquetes, usando um bicho dourado numa bouceta, dentro de um balaio, pegando em um frango vivo, matando-o, bebendo do sangue e untando o corpo e fazendo coisas abomináveis. Congonhas do Campo, [1745].

68. Livro 298, fol. 0041-0042, doc. 19 - Denúncia de Antônio da Silva Lessa contra um homem (não consta nome), por desacato, por açoitar e urinar em uma imagem de Cristo. Vila de N. Sra. do Carmo, [1743].

69. Livro 298, fol. 0043, doc. 20 - Denúncia de Veríssimo Dias de Moura contra um negro, por feitiçaria e adivinhação, que tem motivado vários escravos de feitiços e dera a uma sua negra e castigando-a, veio a notícia de quem é o dito negro que faz e desfaz feitiços. Vila Rica do Ouro Preto, [1745].

70. Livro 298, fol. 0091-0093, doc. 44-45 - Denúncia de João Gonçalves Braga, contra Manoel Pereira, vigário da vara, por se apropriar de umas bestas para várias diligências do Santo Tribunal. Vila de N. Sra. do Carmo, [1744].

71. Livro 298, fol. 0115-0117, doc. 56-57 - Denúncia contra Antônio Lopes Gonçalves, escravo, por bigamia, que sendo cativo do Senhor Capitão Nicolau da Fonseca Araújo, era casado com uma escrava da mesma casa e fugi para essas Minas, onde se casou com uma preta. Freguesia de São Sebastião, [1746].

72. Livro 298, fol. 0493, doc. 243 - Denúncia de Francisco Pereira contra Antonio, preto, escravo, morador no Serro do Frio, por feitiçaria e adivinhação, por lhe dar uma raiz de uma erva, dizendo-lhe que se o seu Senhor lhe quisesse dar, a metesse na boca e cuspisse fora, por que logo o dito seu senhor havia de desistir do intento. Serro do Frio, [s/d].

73. Livro 298, fol. 0643-0645, doc. 317-318 - Denúncia de Félix Simões de Paiva, vigário, contra Martinho de Mendonça de Pina e de Proença, Governador das Minas, por blasfêmia e proposição herética, que nos

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Breviários havia muitas mentiras; São Tomás Arcebispo de Santana, não era nem fora Santo, que não havia de haver fim do mundo, nem Juízo Universal. Vila Rica do Ouro Preto, [1737].

74. Livro 298, fol. 0671-0672, doc. 331 - Denúncia de Manoel de Lima Cerqueira contra João Ribeiro Marinho, capitão, morador nas Minas do Tamanduá, por desacato, mandando a um seu escravo, mina, que dissesse missa, na presença de seu senhor e mais família, levantando como hóstia um Beiju e fazendo em cálice um copo com água ardente, com grandes risadas de todos. Outeiro do Redondo, Rio das Contas, [1748].

75. Livro 298, fol. 0675, doc. 333 - Denúncia de Manoel de Almeida, comissário visitador, Reverendo Cônego Vigário Geral dessas Minas, contra Antônio Gonçalves, Juiz ordinário do Arraial de N. Sra. da Natividade, por perturbar o ministério do Santo Oficio, por querer o dito juiz amarrá-lo e pô-lo, em determinação pública, em um cavalo com uma cangalha as costas, no caso que ele não quisesse entregar ou dar posse ao Padre Frei Manoel de São Paulo, monge de São Bento da Igreja desta mesma Natividade. Minas da Natividade, [1747].

76. Livro 298, fol. 0677, doc. 334 - Denúncia de Dionísio Dias da Costa, Presbítero do Hábito de São Pedro, contra Antônio Gonçalves, Juiz Ordinário, por perturbar o ministério do Santo Oficio, por querer amarrar Manoel de Almeida, Reverendo Cônego Visitador e Vigário Geral dessas Minas, e pô-lo publicamente em um cavalo com uma cangalha as costas, no caso que ele não quisesse entregar ou dar posse ao Padre frei Manoel de São Paulo, monge de São Bento da Igreja desta mesma Natividade. Minas da Natividade. [1747].

77. Livro 298, fol. 0757-0759, doc. 374-375 - Denúncia de Francisco Antônio do Amaral contra Manoel Mendes, sacerdote do hábito de São Pedro, assistente no Arraial das Catas Altas, por revelar o sigilo da confissão, por declarar tudo que ouvira no confessionário de Dona Ana Margarida Bacelar, que andava fugida ocultamente de seu marido. Mariana, [1746].

78. Livro 298, fol. 0761, doc. 376 - Denúncia de Jacinto José Pereira contra o Manoel Cardia, padre, morador na Vila do Sabará, natural da cidade do Porto, por revelar o sigilo da confissão, por estar na casa do letrado Antônio Rodrigues, cirurgião, entrou o dito padre denunciado a conversar em várias coisas, e entre estas disse que confessando uma mulher, esta se lhe acusara de acessos venéreos a Antônio da Fonseca de Vasconcelos. Vila do Sabará, [1744].

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15 - CADERNO 107, LIVRO 299 [1733-1749]

79. Livro 299, fol. 0177-0180, doc. 85-86 - Denúncia contra Francisco Garcia Fontoura, por perturbar o ministério do Santo Oficio, por fingir diligência do Santo Ofício, e mandar prender José Antônio de Oliveira Machado, ouvidor geral da dita comarca. Vila Rica do Ouro Preto, [1747].

80. Livro 299, fol. 0215-0217, doc. 103-105 - Denúncia de João Fernandes Dias contra José da Costa Simões ou José do Vale, por bigamia, por casar-se com uma mulata, sendo casado com Luzia Marques. Ribeirão Abaixo, Freguesia de São Caetano, [1742].

81. Livro 299, fol. 0703-0704, doc. 347-348 - Denúncia de João Ferreira Couto contra Violante, escrava, crioula, por feitiçaria, participando de um folguedo, em um campo em que se fez justiça a um negro cuja cabeça estava exposta em uma mesa em cuja circunferência se dançava. Vila de Sabará, [1742].

16 - CADERNO 108, LIVRO 300 [1724; 1744-1750]

82. Livro 300, fol. 0123-0129, doc. 52-55 - Denúncia de Manoel Antunes Mascarenhas e sua mulher, contra Francisco Axé, negro, mina, escravo, por feitiçaria e adivinhação, trazendo um ferro oco, ao modo de chocalho, e benzeu prostrado de joelhos e banhou com ervas de São Caetano. N. Sra. da Conceição do Rio das Pedras, [1744].

83. Livro 300, fol. 0151-0152, doc. 66 - Denúncia de Francisco Tavares de Melo, sargento, contra João da Costa Nogueira, por blasfêmia e proposição herética, que N. Sra. não era virgem. Vila Real do Sabará, [1748].

84. Livro 300, fol. 0211-0212, doc. 96-96. - Denúncia de José Rosário Silva contra José Martins Lisboa, oficial de pintor, por blasfêmia e proposição herética, que a fornicação não era proibida por preceito divino, que os concílios tinham sido feitos por dois bispos velhos impotentes. Freguesia de N. Sra. da Conceição, Vila Rica de Ouro Preto, [1748].

85. Livro 300, fol. 0287, doc. 133 - Denúncia de Diogo Pereira contra Josefa Carneira, por desacato, por fazer chorar uma imagem do Menino Jesus, apertando-lhe. Lages, Paracatu, [1747].

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17 - CADERNO 109, LIVRO 301 [1723-1750]

86. Livro 301, fol. 0030, doc. 13 - Denúncia de Ana de Faria, crioula forra, contra Isabel de Meneses, branca, por feitiçaria e adivinhação, que a ensinou a colocar pó de caveira de defunto no correr dos homens para os atraírem ao seu apetite desordenado. Vila de N. Sra. do Bom Sucesso, [1747].

87. Livro 301. Fólio 0070-0077, doc. 33-36 - Denúncia de Padre Ignácio Gonçalves Souza contra Felipe de La Contrice, nação francesa, por cisma, dizendo mais que as imagens que se adoram e veneram na Igreja de Deus foram instituídas para os ignorantes, e não para os sábios e entendidos, que estes para levantarem o pensamento a Deus não se necessitam de imagens e que Santo Antônio não era santo e ainda que os bispos da Inglaterra, da Igreja Anglicana, eram legítimos bispos. Vila do Pitangui, [1744].

88. Livro 301, fol. 0078, doc. 37 - Denúncia de Antônio Lopes Pacheco, padre, incriminado no tribunal por sodomia, contra João Soares Brandão, comissário, por mandar matá-lo e dos mais criminosos referidos nas suas apelações. Comarca de Sabará de Minas, [1746]

89. Livro 301, fol. 0228-0231, doc. 116-117 - Denúncia de Alexandre Pereira de Carvalho contra Pedro de Souza da Cunha, por blasfêmia e proposição herética, com palavras injuriosas contra o santíssimo sacramento. Vila de São João del-Rei, [1746].

Livro 301, fol. 0236-0241, doc. 120-122 - Denúncia de Dom Brás da Cunha Pereira, capelão fidalgo, contra Inácio de Souza Brandão, padre, por blasfêmia e proposição herética, que Santo Antônio excedia de sabedoria do divino verbo. Arraial de S. Luís e S. Ana, Paracatu, [1746].

90. Livro 301, fol. 0276, doc. 141 - Denúncia de Jacinto Teixeira Leite contra Gaspar Dias da Silva, por blasfêmia e proposição herética, que os cristãos-novos foram presos e os seus engenhos confiscados e arrematados por cristão-velhos e, por isso, foram usurpados e com que consciência o Santo Ofício podia possuir aquilo que não era seu, e havia um mulato, filho de Antônio Lopes de (Leão), se ordenara clérigo porque com dinheiro acaba-se tudo. Serro Frio, [1747]

91. Livro 301, fol. 0360, doc. 173 - Denúncia de Antônio Xavier Cabral, frei e religioso no Convento de N. Sra. da Penha, contra Caetana, mina, escrava, por feitiçaria e adivinhação, por dar uns papéis, escrito por

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Cosme, pardo forro, para ter fortuna e querer bem e ninguém lhe fazer mal, com a condição de ser enterrado na véspera de São João. Freguesia das Congonhas do Sabará, [1749].

92. Livro 301, fol. 0362, doc. 174 - Denúncia de Francisco Gil de Andrade contra Antônio Teixeira Cerpicé, por blasfêmia e proposição herética, suspeita de ser de nação, que em conversa com José Tavares Dias, morador nessa Barra, contou que nas Mocaiubas deste termo, perguntado sobre quem era Deus, não quis responder. Disse ao Padre na mesa da comunhão que se sobrasse alguma partícula que atirasse com ela. E perguntado quem era Cristo, o dito respondeu ser ele e mais o seu escravo por nome Francisco. Vila Real, Minas Gerais, [1749].

18 - CADERNO 110, LIVRO 302 [1742-1751]

93. Livro 302, fol. 0457, doc. 224 - Denúncia de Silvestre José, pardo, forro, alfaiate, contra Francisco Paes de Macedo, por feitiçaria e adivinhação, por bolsa de mandinga, que não tinha medo de facas, que sonhava com o demônio, e que este lhe dizia o que se passava. Vila Rica do Ouro Preto, [1751].

94. Livro 302, fol. 0477-0483, doc. 233-237 - Denúncia de André Francisco Xavier, contra Vicente Gonçalves Santiago, pardo, oficial de ourives, por feitiçaria e adivinhação, com cartas de tocar e mandinga, com escritos em várias palavras blasfemas e outras garatujas, cuja carta era de um pardo, escravo de Luis Pereira, no Arraial dos Paulistas. Vila Rica do Ouro Preto, [1747].

95. Livro 302, fol. 0783-0784, doc. 381 - Denúncia contra Teresa Rodrigues ou de Jesus, preta forra, mina, moradora no Arraial de N. Sra. da Conceição do Rio das Pedras, Comarca do Sabará, por feitiçaria e adivinhação, matou um moleque, angola, de Brás Rodrigues da Costa com feitiços e usava de fazer malefícios. Rio das Pedras, Vila Real do Sabará, [1751].

96. Livro 302, fol. 0783-0784, doc. 381 - Denúncia contra Agostinho de Miranda, por feitiçaria e adivinhação, deu a uma enferma uns banhos com várias folhas, com que logo se achou curada e dizia saber curar malefício. Rio das Pedras, Vila Real do Sabará, [1751].

97. Livro 302, fol. 0779-0782, doc. 379-380 - Denúncia de Antônio Lopes Pacheco, padre, preso na cadeia, acusado de sodomia com seus escravos,

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contra João Soares Brandão, reverendo, comissário, por acusação falsa em nome do Santo Oficio. Vila Real do Sabará, [1745].

98. Livro 302, fol. 0785–0786, doc. 382 - Denúncia de Manoel Denis Branco contra Francisco, de alcunha o Calunga, congo, por feitiçaria e adivinhação, por curar, chupando de um escravo enfermo várias partes do corpo, tirando-lhe muitas imundícies e que antes fazia uns círculos com umas cruzes. Rio das Pedras, Vila Real do Sabará, [1751].

19 - CADERNO 112, LIVRO 304 [1729-1752]

99. Livro 304, fol. 0157-0165, doc. 79 - Denúncia de José de Sobral e Souza contra Jacome da Silva e Ana Luiza da Silva, por bigamia. Freguesia de Prados, [1750].

100. Livro 304, fol. 0157-0165, doc. 79-83 - Denúncia de José de Sobral e Souza contra Joana, mulher do homem chamado de Matozinhos, ciganos, por desacato, por sacrilégio de “mijar” na imagem de N. Sr. Jesus Cristo, Capela de Serranos. Airuoca, [1750].

101. Livro 304, fol. 0523-0524, doc. 262 - Denúncia de Anastácio da Silva, mulato, morador na Chapada, contra Ana Moreira, preta forra, angola, casada com Manoel Garcia, moradora no Redondo, por feitiçaria e adivinhação. Congonhas do Campo [1751].

102. Livro 304, fol. 0523-0524, doc. 262 - Denúncia de Joaquim de Freitas, solteiro, contra João da Silva, que tinha mudado o nome, por feitiçaria e adivinhação, por fazer uma bolsa de mandinga. Congonhas do Campo, [1751].

103. Livro 304, fol. 0523-0524, doc. 262 - Denúncia contra Manoel Freire de Matos, por feitiçaria, por artes mágicas, por assistir a uns batizados de uns bonecos em casa de Francisco Araújo, no Tamanduá, mas que tomou o fato por brinquedo. Congonhas do Campo [1751].

104. Livro 304, fol. 0523-0524, doc. 262 - Denúncia contra Valentin Gomes, por feitiçaria, por artes mágicas, por assistir em casa de Francisco Araújo, no Tamanduá, a uns batizados de uns bonecos. Congonhas do Campo, [1751].

105. Livro 304, fol. 0523-0524, doc. 262 - Denúncia contra Manoel Garcia, marido de Ana Moreira, por feitiçaria e adivinhação, por artes mágicas, morador no Redondo. Freguesia de Congonhas do Campo, [1751].

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106. Livro 304, fol. 0523-0524, doc. 262 - Denúncia de João de Sousa da Costa, natural de Portugal, contra Francisco Araújo, seu vizinho, morador no Tamanduá, por feitiçaria, por fazer em sua casa uns batizados de uns bonecos. Tamanduá, Congonhas do Campo, [1751].

107. Livro 304, fol. 0593-0595, doc. 297-298 - Denúncia de Felix Simões de Paiva, padre, contra Martinho de Mendonça de Pena e Proença, governador, por blasfêmia e proposição herética, porque nos breviários havia mentiras, não havia de haver fim do mundo nem juízo universal, fala contra o pontífice e ministros, louvando os escritores hereges. Vila Rica do Ouro Preto, [1737].

108. Livro 304, fol. 0623-0643, doc. 312-322 - Denúncia de José Tavares Leal contra (s/ informação), por prender o feitor e açoitá-lo, e o pingara todo com lacre e toucinho e depois do tormento, o crucificou em uma cruz, cortando-lhe os membros genitais, e o enterrara atrás da casa. Minas do Sabará, [1733].

109. Livro 304, fol. 0623-0643, doc. 312-322 - Denúncia de José Tavares Leal contra André da Silva Viana, tendo sido preso Manoel Nunes Sanches pelo Santo Ofício, sócio de André da Silva Viana em uma lavra e roça, (s/ informação) e confiscando-lhe os bens para o Santo Ofício, ficou subnegado na mão do dito André da Silva até a sua morte, e por seu falecimento, foram os seus bens à praça e os arrematou um João Ferreira. Curral del-Rei, [1733].

20 - CADERNO 113, LIVRO 305 [1742-1754]

110. Livro 305, fol. 0135-0137, doc. 34 - Denúncia de Pedro Afonso de Vasconcelos, soldado, contra Estácio Ferraz Sampaio, por desacato, estando o sacristão a compor as coisas necessárias a procissão dos Santos Passos, disse-lhe: “você enquanto o não deitou para fora, não veio para casa e o que fazia com ele ali atrás da cortina?”. Freguesia de Antônio Dias, [1751].

111. Livro 305, fol. 0135-0137, doc. 34 - Denúncia de Pedro Afonso de Vasconcelos, soldado, contra Gabriel Henrique Castro, cabo da esquadra, por proposição, sendo a família infamada de ter parte de cristãos-novos. Freguesia de Antônio Dias, [1751].

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112. Livro 305, fol. 0135-0137, doc. 34 - Denúncia de Pedro Afonso de Vasconcelos, soldado, contra Nicolas Ferreira, por desacato, por meter imagem do Menino Jesus em uma talha de azeite, dizendo que o havia de afogar. Freguesia de Antônio Dias, [1751].

113. Livro 305, fol. 0135-0137, doc. 34 - Denúncia de Vicente José de Távora, escravo de José Barros Araújo, contra José Courano, escravo, por feitiçaria e adivinhação, por dizer que era mestre de mandingueiro e orações de São Marcos. Freguesia de Ouro Preto, [1752].

114. Livro 305, fol. 0135-0137, doc. 34 - Denúncia de Vicente José de Távora, escravo de José de Barros Araújo, contra Josefa Catu, por feitiçaria e adivinhação, e ser também grande mestra de mandinga. Freguesia de Ouro Preto, [1752].

115. Livro 305, fol. 0135-0137, doc. 34 - Denúncia de Vicente José de Távora, escravo de José de Barros Araújo, contra João Brabo, escravo, de nação São Thomé, por feitiçaria e adivinhação, e ser mestre mandingueiro e fazer pacto com o diabo. Ouro Fino, [1752].

116. Livro 305, fol. 0135-0137, doc. 34 - Denúncia de Vicente José de Távora, escravo de José de Barros Araújo, contra Pedro Moçambique, escravo, por feitiçaria e adivinhação, ser mestre mandingueiro e ter pacto com o diabo. Ouro Fino, [1752].

117. Livro 305, fol. 0139, doc. 35 - Denúncia de Manoel Francisco Ribeiro contra Magdalena Cardoso de Jesus, parda, forra, por feitiçaria e adivinhação, por benzer o denunciador e dizer que seu achaque era quebranto. Santo Antônio da Casa Branca, [1752].

118. Livro 305, fol. 0139, doc. 35 - Denúncia de Manoel Francisco Ribeiro contra Maria da Conceição, negra, mina, forra, por feitiçaria e adivinhação, benzer o denunciador com ramas de arruda, dizendo algumas orações. Santo Antônio da Casa Branca, [1752].

Livro 305, fol. 0139, doc. 35 - Denúncia de Manoel Francisco Ribeiro contra Oleria de Morqueira, parda, forra, por feitiçaria e adivinhação, por benzer o denunciador com ramas de arruda, dizendo algumas orações. Santo Antônio da Casa Branca, [1752].

119. Livro 305, fol. 0141, doc. 36 - Denúncia contra João Pereira Dias, por blasfêmia e proposição, por palavras injuriosas, que sendo chamado a bem morrer a Maria Pereira, disse que a queria confessar por não haver confessor. Morro de Matias Leme, Freguesia do Curral del-Rei, [1752].

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120. Livro 305, fol.0161, doc. 45 - Denúncia de Manoel Moreira de Vasconcelos, casado, contra Francisco Xavier Ribeiro, por blasfêmia e proposição, que não era possível N. Sra. da Conceição conceber sem varão e que nem quantos santos havia no céu o podiam desabonar de sua opinião. Barra do Jequiteaí, no rio São Francisco, [1752].

121. Livro 305, fol. 0163, doc. 46 - Denúncia de Manoel José da Costa contra João Martins Barroso, padre, por perturbar o ministério do Santo Oficio, por relaxar o segredo do Santo Ofício, na devassa efetuada em São Vicente pelo comissário Revdo. Felix Simões de Paiva, porque era amigo do delinquente. Capela de São Vicente, Freguesia de N. Sra. da Conceição do Rio das Pedras, [1752].

122. Livro 305, fol. 0165-0167, doc. 47 - Denúncia de Antônio José Ferreira contra João Martins Barroso, padre, por perturbar o ministério do Santo Oficio, por relaxar o segredo do Santo Ofício, na devassa efetuada em São Vicente porque era amigo do delinquente e passou carta de alforria a seus escravos e créditos a procuradores, dizendo que o Santo Tribunal não havia de por a mão em coisa nenhuma. Capela de São Vicente, Freguesia de N. Sra. da Conceição do Rio das Pedras, [1752].

123. Livro 305, fol. 0165-0167, doc. 47- Denúncia de Antônio José Ferreira contra Manoel Gonçalves Serrão, por feitiçaria e adivinhação, com palavras em uma sexta-feira de madrugada, com artes diabólicas. Capela de São Vicente, Freguesia de N. Sra. da Conceição do Rio das Pedras, [1752].

124. Livro 305, fol. 0165-0167, doc. 47 - Denúncia de Antônio José Ferreira contra Domingos Francisco da Costa, padre, por blasfêmia e proposição, por dizer aos fregueses que na matéria do sexto deveriam declarar suas culpas. Capela de São Vicente, Freguesia de N. Sra. da Conceição do Rio das Pedras, [1752].

125. Livro 305, fol. 0165-0167, doc. 47 - Denúncia de Antônio José Ferreira contra Manoel Gonçalves Ribeiro, familiar, por perturbar o ministério do Santo Ofício, por omitir o paradeiro do denunciado, Marcos Freire de Carvalho, padre. Capela de São Vicente, Freguesia de N. Sra. da Conceição do Rio das Pedras, [1752].

126. Livro 305, fol. 0165-0167, doc. 47 - Denúncia de Antônio José Ferreira contra Fernando dos Santos, familiar, por perturbar o ministério do Santo Ofício, por omitir o paradeiro do denunciado, Marcos Freire de Carvalho, padre. Capela de São Vicente, Freguesia de N. Sra. da Conceição do Rio das Pedras, [1752].

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127. Livro 305, fol. 0187-0189, doc. 64-65 - Denúncia de Manoel José Monteiro contra Tiago Pereira, por feitiçaria e adivinhação, que se desse oitavas de ouro faria vir um demônio que se comprava junto com um Livro e que metia mesinhas para fazer ódio entre homens e mulheres e para os atraírem a amores desonestos. Vila de São José del-Rei, [1752].

128. Livro 305, fol. 0307-0309, doc. 117 - Denúncia de Gregório de Matos Lobos contra Matheus, preto, angola, escravo de José da Silva Braga, morador nas Pirapetingas, freguesia de Itaverava, por feitiçaria e adivinhação, que descobre malefícios, e fazendo orações com uma faca e búzios, no quarto e em outras partes da casa, descobriu na parede cabelos, unha, raízes. Pirapetinga, [1751].

129. Livro 305, fol. 0441, doc. 170 - Denúncia de Caetana Franca de Jesus contra Lourença Batista, parda forra, por feitiçaria e adivinhação, por ter-lhe pedido para descobrir quem tinha tirado uma caixeta de marmelada e meia pataca de ouro que se imputava ao seu filho e que assim o fez com uma peneira e tesoura. Vila Rica de Ouro Preto, [1753].

130. Livro 305, fol. 0443, doc. 171 - Denúncia de Ignácia Xavier, preta forra, contra Manoel Carneiro, assistente na Bocaina, freguesia da Cachoeira, por blasfêmia e proposição herética, que conversando sobre a paixão de Cristo, disse que Nosso Senhor era poderoso somente na aparência, e se fosse poderoso nada lhe era impossível e não teria padecido. Freguesia de Santo Antônio de Casa Branca, [1754].

131. Livro 305, fol. 0523-0525, doc. 208 - Denúncia de Philipe da Silva, vigário, contra Jorge Duarte Pacheco, licenciado, por blasfêmia e proposição herética, que o inferno não é inferno e há de acabar no dia do Juízo Final. Curral del-Rei, [1753].

132. Livro 305, fol. 0703-0706, doc. 286-287 - Denuncia contra Jorge Duarte Pacheco, por blasfêmia e proposição herética, que por obra dos inimigos da alma quebrou a santa lei de Nosso Sr. Jesus Cristo e ofendido a Santíssima Trindade. Arraial do Paraopeba, [1753].

133. Livro 305, fol. 0761-0763, doc. 313-314 - Denúncia de José Rodrigues contra Manoel Pacheco da Cunha, por feitiçaria e adivinhação, com embruxamentos e feitiçarias a meninos, lavando-os numa bacia de água limpa com fermento de pão, azeite ou vinho, cinza do fogão, e benze com palavras e orações a São Silvestre, e pôs um freio na boca de um homem branco, chamado Domingos Teixeira. Rio Abaixo, ao pé do sítio de Domingos João Freire, Freguesia de São João del-Rei, [s/d].

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134. Livro 305, fol. 0903-0904, doc. 369 - Denúncia de Antônio de Bastos contra Águeda, parda forra, por desacato, tingindo a imagem de Cristo com carvão, e que seu avô fora queimado por judaísmo. Camapoã, Freguesia de Congonhas do Campo, [1754].

135. Livro 305, fol. 0905-0906, doc. 370 - Denúncia de Manoel Ferreira contra Jorge Goularte, por bigamia, sendo casado na freguesia de São Mateus, bispado de Angra, casou-se segunda vez em Pinhaminhangaba (Pindamonhangaba). Itaverava, [1750].

21 - CADERNO 114, LIVRO 306 [1742-1755]

136. Livro 306, fol. 0083, doc. 36 - Denúncia de Manoel Ferreira Pimentel contra Jorge Goulart ou Jorge da Silveira, por bigamia, casado na freguesia de São Mateus, e segunda vez no Pindamonhangaba. Vila Rica do Ouro Preto, [1752].

137. Livro 306, fol. 0253-0254, doc. 109 - Denúncia contra Antônio, preto, por feitiçaria e adivinhação, por curar muitas pessoas de malefícios. Antônio Dias, Freguesia de N. Sra. da Conceição, [1755].

138. Livro 306, fol. 0255, doc. 110 - Denúncia de Francisco Palhares contra Antônio Roiz, cristão-novo, por blasfêmia e proposição, negando que haveria de haver Juízo Final e que o juízo era só era particular para cada um. Itatiaiuçu, Freguesia de Curral del-Rei, [1755].

139. Livro 306, fol. 0477, doc. 204 - Denúncia de João Esteves Teixeira contra Vicente de tal, por bigamia, por ter casado três vezes, nas Minas. Freguesia de N. Sra. de São Gonçalo, [s/d].

140. Livro 306, fol. 0491-0501, doc. 211-216 - Denúncia de José Gonçalves Goya, pardo, contra Manoel Correia Lobo, branco, por feitiçaria e adivinhação, com pacto com o diabo, por um papel escrito com a imagem pitada do diabo, que continha o oferecimento de sua alma. N. Sra. da Conceição do Mato Dentro, [1753].

141. Livro 306, fol. 0691-0693, doc. 294-296 - Denúncia de Magnola da Frota contra Lourenço, negro, escravo, por feitiçaria e adivinhação, por uns papéis de carta de tocar. Catas Altas, [1755].

142. Livro 306, fol. 0703, doc. 299 - Denúncia de José Fiuza da Silva contra Luzia Isabel Pitancor, parda, forra, por feitiçaria e adivinhação, porque

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com uma boneca com malefícios costuma fazer mal a algumas pessoas. N. Sra. da Conceição das Congonhas do Campo, [1754].

143. Livro 306, fol. 0709, doc. 302 - Denúncia de João Teixeira Leitão contra Manoel Cardoso Frasão Castelo Branco, padre, por perturbar o ministério do Santo Oficio, por mandar prender em nome do Santo Oficio a Salvador Carvalho. Arraial da Conceição do Mato dentro, Vila do Príncipe, [1755].

144. Livro 306, fol. 0861-0862, doc. 367-382 - Denúncia contra João Álvares da Costa, padre, por blasfêmia e proposição herética, admoestando a que não se acreditasse na indulgência. Conceição do Mato Dentro, Vila do Príncipe, [1754].

145. Livro 306, fol. 0889, doc. 383-395 - Denúncia do José Botelho Borges, padre, contra Miguel de Carvalho Almeida Matos, padre, por blasfêmia e proposição herética, ao dizer que a devoção nos bentinhos era invenção, sem validade alguma para suas almas. Capela de São José de Tapanhuacanga, filial da Matriz da Vila do Príncipe, [1755].

146. Livro 306, fol. 0993-0934, doc. 396-411 - Denúncia de José Botelho Borges, padre, contra Ignácio Henriques da Costa, crioulo, forro, e Domingas de Siqueira, preta, por bigamia, sendo que depois de casados suspeitou-se que Domingas já era casada. Mariana, [1755].

22 - CADERNO 115, LIVRO 307 [1747-1755]

147. Livro 307, fol. 0217-0228, doc. 88-97 - Denúncia de Manoel Antônio da Rocha Pita, padre, contra Sebastião Gonçalves Lima dos Cocaes, por blasfêmia e proposição, por estar concubinato com Hira, sua escrava, sendo casado e, com espada na mão, disse ao padre, no confessionário, que era para excomungá-lo, proferindo palavras indecentes e injuriosas. Mariana, [1755].

148. Livro 307, fol. 0283-0287, doc. 113-118 - Denúncia contra João Soares de Albergaria, padre, por solicitação, no confessionário, cometendo atos torpes com mulatas. Capela de São Brás do Suaçuí, [1753].

149. Livro 307, fol. 0590-0610, doc. 250-264 - Denúncia de Ignácio Correa de Sá, vigário da Vara, e Filipe Simões de Paiva, vigário, contra Maria Gonçalves Vieira, preta, por feitiçaria e adivinhação, com danças e batuques, e juntar gentes para este efeito, invocando demônios. Santo Antônio da Casa Branca, [1753].

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150. Livro 307, fol. 0647-0648, doc. 273 - Denúncia de José Custódio contra Pai Garcia, benguela, por feitiçaria e adivinhação, curando com raízes e “fechando” os que cura com uns golpezinhos nos braços direito. Congonhas do Campo, [1756].

151. Livro 307, fol. 0647-0648, doc. 273 - Denúncia de Antônio Machado contra Pai Domingos, preto forro, por feitiçaria e adivinhação, por fazer mesinhas para curar. Congonhas do Campo, [1756].

152. Livro 307, fol. 0647-0648, doc. 273 - Denúncia de Manoel Roiz contra Maria Briosa, cigana, por feitiçaria e adivinhação, com pacto, por chamar Lúcifer e aparecendo um bode preto copulou com ele. Congonhas do Campo, [1756].

23 - CADERNO 116, LIVRO 308 [1736-1757]

153. Livro 308, fol. 0028-0032, doc. 20-24 - Denúncia contra Maria Madalena, mulher parda ou bastarda, por desacato, por ter enterrado a imagem de N. Sr. Crucificado (ou Santo Antônio) na soleira da casa com arco, pedras e trapos, e obrado coisas supersticiosas, e não acreditar nas indulgências das Bulas da Santa Cruzada. Vila de São João del-Rei, [1754].

154. Livro 308, fol. 0086-0089, doc. 30-31 - Denúncia de Bento Francisco, oficial de sapateiro, contra José Antônio Rosa, clérigo in minoribus, por blasfêmia e proposição, que não havia inferno, fogo nem tormentas. Vila de São João del-Rei, [1754].

155. Livro 308, fol. 0108, doc. 37 - Confissão de Amaro Borges Vidal, crioulo, forro, por bigamia, tendo casado com Antonia Almeida, parda, forra, na freguesia de São Pedro de Areritiba, Bahia, e com Joana Gomes da Silva. Rio das Contas, [1754].

156. Livro 308, fol. 0280, doc. 112 - Denúncia de Antonio (Fxxa?) Amarante contra Manoel Roiz (ou João Gonçalves), oficial de carpinteiro, e uma preta forra, Maria do Rosário, por bigamia, porque ela já estava casada em Ibitipoca. Rio Grande, [1755].

157. Livro 308, fol.0302-303, doc. 121 - Denúncia de Manoel Machado contra Felix [ou Feliz?] Simões de Paiva, por feitiçaria e adivinhação, com título de curador, por fazer calundu e adivinhações, ter pacto com demônio e fazer vários ajuntamentos para dançar e buscar fortuna. Catas Altas, [1755].

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158. Livro 308, fol. 0370-0371, doc. 147 - Denúncia de Manoel Álvares de Souza contra Antônio Luis, preto, mina, por feitiçaria e adivinhação, e que Francisco Roiz Monteiro, na freguesia de São Bartolomeu, mandou chamar o dito Antônio para curar seus escravos, e que com um moncero enfeitado com penas de tucano, com cascavéis ou guizos, que falava para saber quais ervas e pós deviam usar para curar. Vila Rica do Ouro Preto, [1755].

159. Livro 308, fol. 374, doc. 148 - Denúncia de Caetano Nunes Bandeira contra Antônio Roiz de Andrade, suspeito de ser infecto de nação, por blasfêmia e proposição, de que não havia de haver Juízo Final. Itatiaiuçu, Freguesia do Curral del-Rei, [1755].

160. Livro 308, fol. 0380-0382, doc. 151-152 - Denúncia de Salvador Correa de Toledo, familiar do Santo Oficio, contra Vitória, negra forra, por feitiçaria e adivinhação, e trouxe dois papéis inclusos. Campanha, [1756].

161. Livro 308, fol. 0380-0382, doc. 151-152 - Denúncia contra uma carijó, mulher casada, por feitiçaria e adivinhação, para que seu marido não lhe tivesse muitos ciúmes, se aconselhou e cozeu cinzas, sem pacto, por simplicidade, que é gentia da terra que mal conhecem a Deus. Campanha, [1756].

162. Livro 308, fol. 0388, doc. 154 - Denúncia de Antônio Manoel de Lima contra Francisco Cubas Pessoa, por blasfêmia e proposição, que não havia inferno, que fazer sexo com sua sogra e irmãs de sua mulher não era pecado, e que estimara sua mãe fosse viva e com ela teria cópula. Carijós, [1756].

163. Livro 308, fol. 0550-0557; fol. 0602-0609, doc. 224-227; doc. 255-258 - Denúncia de José Mathias de Gouveia, comissário, contra Cristóvão Ramires, aliás, Martinho de Almeida, cigano, por bigamia, casado com Dionísia de Sá e segunda vez com Arcângela da Silva. Vila de São José del-Rei, [1745].

164. Livro 308, fol. 0948-0851, doc. 430-432 - Denúncia de Luís Damião, padre, presbítero de São Pedro, contra Eusébio de Espínola Batista, por bigamia, casado com Mariana Borges de Faria, estando viva sua primeira mulher na Madeira. Vila de Pitangui, [1744].

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24 - CADERNO 117, LIVRO 309 [1746-1757]

165. Livro 309, fol. 0190-0192, doc. 229-282 - Denúncia contra Caetano José da Costa, com outro nome de Ignácio da Silva Ataíde e Castro, natural do Sabará, por dizer missa por muitas vezes sem que fosse sacerdote, pelo que foi pronunciado à prisão no Juízo Eclesiástico. Vila Rica do Ouro Preto, [1755].

166. Livro 309, fol. 0316-0318, doc. 289-290 - Denúncia de Antônio Dias Soares contra José, negro, cativo, morador no morro do Padre Faria, por feitiçaria e adivinhação, e com um prato e água, fazendo-lhe umas cruzes e com palavras pela sua língua, pediu seis oitavas e que fizesse uma cruz de pau em que metesse uma imagem de Santo Antônio e a pusesse no terreiro, encostada na parede. Tripuí, Freguesia de Ouro Preto, [1755].

167. Livro 309, fol. 0530-0531, doc. 391-392 - Denúncia de Agostinho Gomes e Antônio de Sousa contra Pai Antônio, mina, por feitiçaria e adivinhação, por desfazer maleficios, abrindo um saco e tirado coisas como lanterna pequena, um búzio e, falando consigo algumas palavras, de dentro da lanterna saía um zunido como voz de um pinto. Vila Rica do Ouro Preto, [1757].

168. Livro 309, fol. 0536, doc. 394 - Denúncia contra Alexandre Pereira Gomes, por ouvir confissão, fingindo ser sacerdote, e, dizendo que era capelão em Raposos, recebeu a confissão de um sacerdote, Antônio Carneiro Leão, padre, que o acolhera em sua casa. Vila Rica do Ouro Preto, [1756].

169. Livro 309, fol. 0561-0620, doc. 404-433 - Denúncia contra Bernardo Simões de Carvalho, pardo, por bigamia, morador no Morro da Freguesia de Itabira, por ter casado no distrito da Bahia e se segunda vez com Joana, mulher parda, moradora no Arraial de Bento Rodrigues. Freguesia do Camargos, [1740].

25 - CADERNO 118, LIVRO 310 [1723-1757]

170. Livro 310, fol. 0724-0783, doc. 297-324 - Denúncia contra Joaquim Pereira Vertes, por bigamia, sendo casado com Perpétua, casou-se segunda vez, na capela de São Bento de Tamanduá. Freguesia de Santo Antônio, Vila de São José del-Rei, [1745].

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171. Livro 310, fol. 0918-0924, doc. 377-380 - Denúncia contra João José Antônio Mascarenhas Pinto Queiroz, médico, por blasfêmia e proposição, por se receber por palavras em casa com testemunhas com Perpétua Roiz Machada, escrava de Veríssimo Velho de Melo, dizendo que o casamento somente consistia nas vontades e não precisava ir a Igreja. Freguesia de Itabira, [1744].

26 - CADERNO 120, LIVRO 312 [1738-1750]

172. Livro 312, fol. 0005-0013, doc. 43-47 - Denúncia contra Antônio Álvares Ferreira, por blasfêmia e proposição, que não sabia qual era a lei de cristo, que a fornicação simples não era pecado, pois quando Deus criara o homem e a mulher fora para isso. Fazenda Lontra, Paragem Mongaí, Arraial dos Morrinhos, [1756].

173. Livro 312, fol. 0109, doc. 80 - Denúncia de Garcia, preto, angola, contra Antônio forro, preto, mina, por feitiçaria e adivinhação, dando mesinhas e bebidas e repartindo suas bolsas contra feitiços e contra negros do Mato. Vila de N. Sra. da Conceição do Sabará, [1757].

174. Livro 312, fol. 0117, doc. 82 - Denúncia de Joana Francisca Rodrigues, preta forra, contra Joana de Crasto, preta forra, e seu marido, Antonio Rameiras, preto, forro, por feitiçaria e adivinhação, e ele botou um breve de Maria e o Rosário e depois de várias rezinhas sem proveito, pôs no meio da casa um boneco armado de capins e outras coberturas. Arraial do Pompeu, Freguesia de N. Sra. da Conceição do Sabará, [1757].

175. Livro 312, fol. 0117, doc. 82 - Denúncia de Joana Francisca Rodrigues, preta, forra, contra Antônio Rameiras, preto forro, por feitiçaria e adivinhação, e depois de várias rezinhas e com um vulto ou boneco armado de capins fazia a oração e a tal figura falara por diversas vezes com voz de gente, mas de tenra idade. Arraial do Pompeu, Freguesia de N. Sra. da Conceição do Sabará, [1757].

176. Livro 312, fol. 0483, doc. 202 - Denúncia de Manoel João de Oliveira Chaves contra Juliana, escrava da casa de seu pai, por feitiçaria e adivinhação, por ter confessado ser discípula da escrava Jerônima, acusada de feiticeira, e de ter feito pacto e coabitação com o demônio. Prados, Freguesia de N. Sra. da Conceição, [s/d].

177. Livro 312, fol. 0483, doc. 202 - Denúncia de Manoel João de Oliveira Chaves contra Jerônima, escrava, por feitiçaria e adivinhação, que

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achavam várias raízes com que fazia malefícios e disse que tinha feito pacto com o demônio e coabitado com ele. Prados, Freguesia de N. Sra. da Conceição, [s/d].

178. Livro 312, fol. 0483, doc. 202 - Denúncia de Manoel João de Oliveira Chaves contra Cristóvão, escravo, por feitiçaria e adivinhação, por ser chamado a sua casa para curar mais de trinta pessoas que estavam doentes de feitiços, Prados, Freguesia de N. Sra. da Conceição, [s/d].

179. Livro 312, fol. 0552-0558, doc. 228-230 - Denúncia contra João Álvares da Costa, padre, por indulgências apócrifas, que achou nas colunas da Igreja de N. Sra. da Conceição do Mato Dentro, que publicaram pedidores de esmolas que o negócio era tirar ouro com novidades de engano. Freguesia de N. Sra. da Conceição do Mato Dentro, [1758].

180. Livro 312, fol. 0663-0723, doc. 274-304 - Denúncia contra João Guilherme de Melo, soldado dos dragões, natural das Minas Gerais, batizado na Vila do Sabará, e morador que foi em uma Rocinha, Freguesia de N. Sra. da Conceição das Congonhas do Campo, Comarca de Vila Rica do Ouro Preto, donde se ausentou por vários delitos, por sodomia, cometendo repetidos atos, amarrando e violentando os cúmplices, que esperava nos caminhos. Rocinha, Freguesia de N. Sra. da Conceição das Congonhas do Campo, [1748].

27 - CADERNO 121, LIVRO 313 [1750-1760]

181. Livro 313, fol. 0139-0141, doc. 73 - Denúncia contra José, mulato ou cabra, escravo, por feitiçaria e adivinhação, com cartas de tocar, porque solicitara, por duas vezes a uma crioula por nome Domingas para dormir com ele e ele disse que havia de dormir com ela nem que levasse o diabo, lhe entregou um papelinho, com poses e logo ficara sem juízo. Arraial de Itaverava, [s/d].

182. Livro 313, fol. 0143, doc. 74 - Denúncia contra Francisco, preto angola, escravo, por feitiçaria e adivinhação, por superstições e outros exercícios diabólicos sempre à noite em lugar deserto. Catas Altas, [1754].

183. Livro 313, fol. 0145-0146, doc. 75 - Denúncia de Luiza Francisco de Macedo, contra Agostinha Roiz Pinto, preta, por feitiçaria e adivinhação, havendo graves conjunturas de uso de benzeduras e embustes diabólicos. Arraial de São Miguel de Piracicaba, [1756].

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184. Livro 313, fol. 0145-0146, doc. 75 - Denúncia contra Luiza Francisca de Macedo, por feitiçaria e adivinhação, por superstição de procurar por semelhante meio a cura do dito seu marido, que sempre ignorou censura ou culpa contra as ordens deste Santo Tribunal. Arraial de São Miguel de Piracicaba, [1756].

185. Livro 313, fol. 0151-0152, doc. 76 - Denúncia contra um preto, por feitiçaria e adivinhação, por bolsa de mandinga, por uma bolsinha que um escravo de Francisco de Azevedo Couto, da Vila de São João, lhe vendera, declarando-lhe que havia de sujeitar para o apetite carnal. Campanha, [1755].

186. Livro 313, fol. 0435-0437, doc. 181 - Denúncia de Inácio Aires Correia, por testemunha falsa, fazendo justificação falsa de solteiro de Francisco Félix, homem que lhe parece pardo, natural da Bahia, criado em Minas, contratando pelo caminho fumo e toucinho, para efeito de se casar com Luzia de Souza. N. Sra. da Piedade da Borda do Campo, Congonhas do Campo, [1757].

187. Livro 313, fol. 0435-0437, doc. 181 - Denúncia de Sebastião Pereira Martins, por testemunha falsa, fazendo justificação falsa de solteiro de Francisco Félix, homem que lhe parece pardo, natural da Bahia, criado em Minas, contratando pelo caminho fumo e toucinho, para efeito de se casar com Luzia de Souza. N. Sra. da Piedade da Borda do Campo, Congonhas do Campo, [1757].

188. Livro 313, fol. 0445-0448, doc. 183 - Denúncia de Francisco Oreini Grimaldo contra José Coelho Barbosa, capitão, por blasfêmia e proposição, que duvidando da pureza de Maria Santíssima com São José, tem dito mil blasfêmias contra a nossa religião, fazendo diabruras. Vargem Grande, Vila do Príncipe, [1759]

189. Livro 313, fol. 0449, doc. 184 - Denúncia de Maria Roiz contra Luiza Mina, escrava de Alexandre Pereira, por feitiçaria e adivinhação, com tesoura em uma grupeira que é a mesma de um crivo e fizera andar, dizendo no mesmo tempo algumas palavras. Morro de N. Sra. da Piedade, Freguesia de Antônio Dias, Vila Rica do Ouro Preto, [1758].

190. Livro 313, fol. 0449, doc. 184 - Denúncia de Maria Roiz contra Maria Crioula, escrava de Alexandre Pereira, por feitiçaria e adivinhação, com tesoura em uma grupeira que é a mesma de um crivo e fizera andar, dizendo no mesmo tempo algumas palavras. Morro de N. Sra. da Piedade, Freguesia de Antônio Dias, Vila Rica do Ouro Preto, [1758].

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191. Livro 313, fol. 0453, doc. 186 - Denúncia contra Manoel Carvalho da Rosa, por perturbar o ministério do Santo Oficio, dizendo palavras contra o Santo Ofício, alterando-se de razões com Manoel Fernandes, disse: “me tome o Santo Ofício no cu”. Arraial de Santa Luzia, Vila do Sabará, [1759].

192. Livro 313, fol. 0461-0462, doc. 200 - Denúncia de Francisco da Silva contra Francisco Angola, negro, por feitiçaria e adivinhação, usando um cabaço enfiado numa corda e passando pela casa, mandou cavar e tirara do buraco um cajado, e dentro achou ossinhos, cabelos e imundices, que eram feitiços e logo os queimou. Vila Nova da Rainha de Caeté, [1759].

193. Livro 313, fol. 0461-0462, doc. 200 - Denúncia de José Fernandes da Silva contra Miguel, negro escravo, por feitiçaria e adivinhação, por curar com um ferro ovado a modo de bicheiro, com água ardente, ervas, na língua mina, e acabada a prática achou uma panela com vários ossos, cabelos e outras trapalhadas. Vila Nova da Rainha de Caeté, [1759].

194. Livro 313, fol. 0461-0462, doc. 200 - Denúncia de Manoel Ferraz de Oliveira, contra Ângelo, escravo de Gracia, preta, forra, por feitiçaria e adivinhação, por fazer morrer vários negros com uma bebida. Vila Nova da Rainha de Caeté, [1759].

195. Livro 313, fol. 0461-0462, doc. 200 - Denúncia contra Micaela Ribeira, por há três anos ter sido excomungada por se não querer desobrigar na quaresma de 1759 e nem ouvir Missa, e foi dada queixa ao Juízo Eclesiástico. Vila Nova da Rainha de Caeté, [1759].

196. Livro 313, fol. 0469-0486, doc. 203-211 - Denúncia de João da Silva Correia, pardo forro, contra Rosa, preta, coartada, por feitiçaria e adivinhação, por danças e cerimônias numa encruzilhada, que tinha osso de defuntos em papéis, um bocadinho de pedra do Altar. Sítio da Taipa, Freguesia de N. Sra. da Conceição dos Prados, [1759].

197. Livro 313, fol. 0493-0498, doc. 212-214 - Denúncia de José Antônio Cardoso contra Francisco, nação Angola, por feitiçaria e adivinhação, por curar feitiços a várias pessoas, e adivinhar com uma caixinha e pedrinha. Vila de São João del-Rei, [1758].

198. Livro 313, fol. 0493-0498, doc. 212-214 - Denúncia de Martinho de Freitas contra Francisco, nação Angola, por feitiçaria e adivinhação, por curar feitiços a várias pessoas, e adivinhar com uma caixinha e pedrinha. Vila de São João del-Rei, [1758].

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28 - CADERNO 122, LIVRO 314 [1746-1760]

199. Livro 314, fol. 0507-0603, doc. 228-276 - Denúncia de Rodrigo Lopes Coelho, padre, contra Antônio da Silva, carapina, por blasfêmia e proposição, por heresia ao dizer que os preceitos da Igreja não obrigavam a culpa mortal porque foram feitas por homens, que não havia inferno nem demônios, que os milagres eram histórias, que era boa a lei da liberdade e consciência, que a lei maometana era boa. Arraial de Nazaré, freguesia da Vila de São João del-Rei, [1751].

200. Livro 314, fol. 0594-0718, doc. 278-327 - Denúncia de Manoel Jorge Lisboa contra Manoel Antônio ou Manoel Jorge, por bigamia, pedreiro, casado na corte com Mariana dos Santos, e segunda vez com Rosa da Costa Pereira. Santa Bárbara de Minas, [1750].

29 - CADERNO 124, LIVRO 818 [1740-1761]

201. Livro 818, fol. 0975-987, doc. 472-478 - Denúncia de João Soares Brandão, padre, contra Pascoal Rodrigues França, pardo ou mameluco, natural de São Paulo, morador no Serro do Frio, por desacato, quando ao ser transportado para Ouro Preto, para ser julgado por vários crimes atrozes, por desacato, por anunciar estar em sua posse duas partículas consagradas, pelo que foi detido para averiguações. Arraial do Rio das Pedras, Vila Real do Sabará, [1760].

202. Livro 818, fol. 1021-1022, doc. 495 - Denúncia de José de Azevedo contra Rafael, pardo, forro, por feitiçaria e adivinhação, por levar Antônio, pardo, forro, e João, crioulo, para uma encruzilhada nas noites de quarta e sexta, a fim de chamar o demônio. Águas Claras, Vila Real do Sabará, [1760].

203. Livro 818, fol. 1045-1046, doc. 507 - Denúncia de Mateus Gomes da Cunha contra Tereza Dias, preta forra, nação courana, moradora abaixo das escadas da Igreja de N. Sra. da Conceição, por feitiçaria e adivinhação, por amaldiçoar seus bens.Vila Rica do Ouro Preto, [1760].

204. Livro 818, fol. 1077-1079, doc. 517-518 - Denúncia de Mariana de Jesus contra Ventura Gonçalves, por desacato, com a imagem de Verônica, que o dito entregara a seu genro um pito de barro com fumo para que pitasse e no pito havia uma Verônica que de uma parte tinha uma Imagem de N. Sra. do Rosário e de outra de São Miguel, que estavam

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meio requeimadas. Bom Sucesso dos Serranos, Freguesia de Airuoca, [1761].

205. Livro 818, fol. 1081-1082, doc. 519 - Denúncia de Mariana de Jesus contra Matias de Góis, por desacato, com a imagem de Cristo, virando as costas, se abaixando e mostrando-lhe as nádegas, e em outra ocasião tendo o dito a mesma imagem em uma caixa deu nela um coice. Ribeirão do Francês, Bom Sucesso dos Serranos, Freguesia de Airuoca, [1761].

206. Livro 818, fol. 1081-1082, doc. 519 - Denúncia de Mariana de Jesus contra Maria Correia de Alvarenga, por desacato, com a imagem de Cristo, por subir em uma caixa contendo a Imagem de N. Sr. Jesus Cristo, dizendo que o queria pisar, pois o Senhor era seu Negro. Ribeirão do Francês, Bom Sucesso dos Serranos, Freguesia de Airuoca, [1761].

207. Livro 818, fol. 1081-1082, doc. 519 - Denúncia de Mariana de Jesus contra Tomás, filho de Matias de Gois e Maria Correia de Alvarenga, por desacato, por atirar com uns registros de nascimento de N. Senhor da parede no chão. Ribeirão do Francês, Bom Sucesso dos Serranos, Freguesia de Airuoca, [1761].

208. Livro 818, fol. 1081-1082, doc. 519 - Denúncia de Mariana de Jesus contra Antônio, filho de Matias de Gois e Maria Correia de Alvarenga, por desacato, por pegar em um feixe de sabugo de milho e atirar em uma imagem de N. Sr. Crucificado. Ribeirão do Francês, Bom Sucesso dos Serranos, Freguesia de Airuoca, [1761].

30 - CADERNO 125, LIVRO 315 [1754-1762]

209. Livro 315, fol. 0125-0132, doc. 48-51 - Denúncia de Maria da Costa da Conceição e Domingos José Barbosa contra Ignácio, preto, escravo, por feitiçaria e adivinhação, usando um prato com água em que mastigou uma raiz e, com um ferrinho e uma figura de pau, falou em sua língua, usando contas chamada de búzios, esfregou raízes, folhas em pó e chupava várias coisas, cabelos e imundícies da perna da enferma, e lavava a boca com água ardente. Antônio Dias, Vila Rica do Ouro Preto, [1760].

210. Livro 315, fol. 0133-0150, doc. 52-60 - Denúncia de Manoel Ribeiro Soares, vigário, contra Ângela Maria Gomes, preta, forra, nação courana, por feitiçaria e adivinhação, por dançar com os demônios,

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em uns batuques e calundus, com estrondos, roncar de porta, cavalos rinchando e instrumentos do inferno, na madrugada, ao redor de uma árvore chamada gameleira. Itabira, [1760].

211. Livro 315, fol. 151-154, doc. 61-62 - Denúncia de Baltazar do Vale Burralho, contra Francisco da Costa, por perturbar o ministério do Santo Oficio, por fazer prisões em nome do Santo Ofício. Vila Nova da Rainha, [1760].

212. Livro 315, fol. 0155-0167, doc. 63-69 - Denúncia contra Manoel, mina, escravo de Joaquim Rodrigues Carneiro, por feitiçaria e adivinhação, por usar de alguns malefícios, com que prejudicava a muitos e tirava a vida. Arraial de N. Sra. da Conceição do Rio das Pedras, [1759].

213. Livro 315, fol. 0155-0167, doc. 63-69 - Denúncia contra Teresa Rodrigues, escrava de Joaquim Rodrigues Carneiro, por feitiçaria e adivinhação, por usar de alguns malefícios, com que prejudicava a muitos e tirava a vida. Arraial de N. Sra. da Conceição do Rio das Pedras, [1759].

214. Livro 315, fol. 0333-0405, doc. 173-202 - Denúncia de Ana do Fayal contra João Dorneles, seu marido, por bigamia, casado legitimamente na Ilha da Madeira com Ana do Fayal, e segunda vez nas Minas com Rosa Francisca de Sousa, natural da Roça Grande. Minas do Caeté, freguesia de N. Sra. do Bom Sucesso, [1753].

215. Livro 315, fol. 0575-0598, doc. 274-285 - Denúncia do vigário geral do bispado de Mariana contra Caetano, preto forro, nação angola, por feitiçaria e adivinhação, por curar maleficio, misturando raízes, ervas e outros ingredientes, dizendo palavras para fim de adivinhar onde estavam os feitiços. Preso em Vila Rica, assinou termo de não mais usar de semelhantes curas e adivinhações, foi posto em liberdade. Mariana, [1759].

216. Livro 315, fol. 1174-1250, doc. 519-553 - Denúncia de Antonio Teixeira contra Manoel João Mourão, por bigamia, acusado de ser casado em Chaves e Vila Rica, estando preso, o que ocorreu com excesso e falta de jurisdição, porque não havia provas suficientes, e nem o Vigário assim poderia proceder, sendo que semelhante causa não é de sua jurisdição e sim somente dos Oficiais do Santo Ofício. Vila Rica do Ouro Preto, [1759].

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31 - CADERNO 126, LIVRO 316 [1751-1768]

217. Livro 316, fol. 0171-0172, doc. 80-81 - Denúncia contra Manoel da Rocha Mendonça, comissário, por superstição, recorrendo a Vicente, mina, escravo de Hilário Gomes de Andrade, alferes, por feitiçaria e adivinhação, para adivinhar uns furtos de ouro em sua propriedade e coisas futuras, fazia varias “visagens” e conjuros, sobre uma poça d’água e aplicando um bastão ao ouvido a quem perguntava. Arraial da Conceição de Santa Bárbara, [1762].

218. Livro 316, fol. 0171-0172, doc. 80-81 - Denúncia de Manoel da Rocha Mendonça, comissário, contra Vicente, mina, escravo de Hilário Gomes de Andrade, alferes, por feitiçaria e adivinhação, por adivinhar furtos de ouro e fazia varias “visagens” e conjuros, sobre uma poça d’água e aplicando um bastão ao ouvido a quem perguntava. Arraial da Conceição de Santa Bárbara, [1762].

219. Livro 316, fol. 0175-0183, doc. 81-85 - Denúncia de Feliciano Pitta de Castro, vigário, contra João Pereira Guimarães, viandante, por blasfêmia e proposição, o qual por se ver condenado proferiu as palavras e blasfêmias “Maldita seja a Igreja, malditos sejam os santos, malditos sejam os remidos ou clérigos dela, e os diabos me levem já para o inferno”. Vila de São João del-Rei, [1762].

220. Livro 316, fol. 0187-0192, doc. 87-89 - Denúncia contra José Ângelo Machado, soldado dragão, de Baipendi, por feitiçaria e adivinhação, por pagar um homem, em Santa Bárbara, para lhe dar um remédio contra perseguições que foi uma ferida na coxa direita e em seu cavalo, introduzindo um pó. Vila de São João del-Rei, [1762].

221. Livro 316, fol. 0197-0198, doc. 92 - Denúncia de Domingos Gaspar de Carvalho contra Francisco Martins, por bigamia, por ser casado com uma parda, tendo suspeita de ser casado em Portugal. Barra do Bacalhau, Freguesia de N. Sra. Guarapiranga, [1762].

222. Livro 316, fol. 0199, doc. 93 - Denúncia de Roberto Aredea, capitão, contra Bernardo José de Almeida, alferes, por bigamia, por estar casado no Brasil, arranchado nesta Vila com mulher e filhos, mas que era casado no reino. Arraial do Morro do Pilar, Conceição do Mato Dentro, [1762].

223. Livro 316, fol. 0201-0342, doc. 90-161 - Denúncia de Domingos José Coelho e Sampaio, vigário da vara, contra Felipe Álvares de Almeida,

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sargento-mor, comissário cobrador, por ouvir confissão sem ser sacerdote, persuadiu um preto chamado Domingos, escravo de Pedro Gomes Pereira, na estalagem de Brígida Maria, nos Córregos, que se casasse com uma escrava da dita e, com efeito, o ouviu de confissão e está preso por ordem do Ordinário, na cadeia. Vila Rica do Ouro Preto. [1760].

224. Livro 316, fol. 0201-0342, doc. 90-161 - Denúncia de Domingos José Coelho e Sampaio, vigário da vara, contra Paulo José da Cunha, ferrador, por na quaresma despir a Custódio da cintura para cima ou nu, e pintando-o pelo corpo, o que pareciam rosas (?)] passarão a amostrar o dito cabeleireiro assim nu em uma varanda, dizendo= [Hum ou Ecce Homo], preso na Vila do Príncipe. Arraial da Conceição de Mato Dentro, [1760].

225. Livro 316, fol. 0201-0342, doc. 90-161 - Denúncia de Domingos José Coelho e Sampaio, vigário da vara, contra Custódio Ferreira Braga, cabelereiro, por na quaresma ser despido por Paulo José da cintura para cima ou nu, e pintando-o pelo corpo, o que pareciam rosas (?)] passarão a amostrar o dito cabeleireiro assim nu em uma varanda, dizendo= [Hum ou Exe Homo], preso na Vila do Príncipe. Arraial da Conceição de Mato Dentro, [1760].

226. Livro 316, fol. 0201-0342, doc. 90-161 - Denúncia de Domingos José Coelho e Sampaio, vigário da vara, por desacato, contra José Luiz de Sampaio, por encomendar as almas de noite, usando de palavras sujíssimas, e subindo as cruzes com grande desacato e irreverência a elas, resultando também de tudo um geral escândalo, preso na Vila do Príncipe. Arraial da Conceição de Mato Dentro, [1760].

227. Livro 316, fol. 0769-0771, doc. 348 - Denúncia contra Joaquim Roiz Silva, por blasfêmia e proposição, por falar com desprezo das censuras eclesiásticas, com nomes que eu, por reverência às mesmas, não quero explicar. Vila de São João del-Rei, [1762].

228. Livro 316, fol.0905-0906, doc 413 - Denúncia de Francisco Mendes contra Maria Cardoso, preta forra, por feitiçaria e adivinhação, por superstição de curar, tomando uma pedrinha redonda, correndo várias linhas e cruzes nos braços, peitos e pernas, e costas, na Taquara. Vila Rica do Ouro Preto, [1763].

229. Livro 316, doc. 427-428 - Denúncia contra Luiza, preta, escrava, por bigamia, no Jaguará. Vila de São José del-Rei, [1763]. (*)

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32 - CADERNO 128, LIVRO 317 [1757-1767]

230. Livro 317, fol. 0157-0196, doc. 76-93 - Denúncia de José Lourenço de Queiroz Coimbra, vigário, contra Rosa Gomes, preta, forra, mina, por desacato, contra as imagens de N. Sra., Santo Cristo e Santo Antônio, despedaçadas a porta da casa. Vila Real de Sabará, [1764].

231. Livro 317, fol. 0199-0214, doc. 94-99 - Denúncia contra Maria da Conceição de Vergara, de alcunha Maria magra, parda, forra, presa em São João del-Rei, sem haver provas para se proceder contra ela. N. Sra. da Piedade de Borda do Campo, [1764].

232. Livro 317, fol. 0199-0214, doc. 94-99 - Denúncia contra José Coelho de Souza, homem viandante, condutor de cargas com uma tropa de bestas, preso na cadeia, sem haver provas para se proceder contra ele. Vila de São João del-Rei, [1764].

233. Livro 317, fol. 0215-0218, doc. 100-101 - Denúncia de Manoel Fernandes de Oliveira contra Manoel Correia Dias da Estrela, por blasfêmia e proposição, pedindo os pretos esmola para a caixinha de N. Sra. do Rosário, disse irado que não consentisse e que não queria nada com N. Sr., nem com N. Sra., e que não lhe importava a caridade. Paragem Paciência, Freguesia de Airuoca, [1765].

234. Livro 317, fol. 0219, doc. 102 - Denúncia de Manoel da Silva Guimarães contra Manoel Ferreira Dutra, por blasfêmia e proposição, que o sexto mandamento não era pecado com as mulheres (corruptas) a que vulgo chama mulheres do mundo e que assim o determinava o Sagrado Concílio. Catas Altas da Itaverava, [1763].

235. Livro 317, fol. 0581-0582, doc. 370 - Denúncia contra Marcos da Cunha Lima, padre, por blasfêmia e proposição, com palavras malsoantes, de que, vendo Pedro Raposo de Vasconcelos rindo de umas negras, disse que eram “umas putas”. Mariana, [1763].

236. Livro 317, fol. 0591-0592, doc. 375 - Denúncia de José de Moura Gurgel contra Antônio de Araújo Aguiar, por blasfêmia e proposição, por dizer que não quer mais ser filho de Deus, nem da Virgem Maria, que não cria fosse pecado o sexto mandamento. Consulta negros feiticeiros para prognósticos e raízes. São Miguel de Piracicaba, [1765].

237. Livro 317, fol. 0593-0594, doc. 376 - Denúncia de André Furtado de Mendonça contra Antônio de Araújo Aguiar, por feitiçaria e adivinhação, que dizia tanto cria em Deus como no Diabo, que se Deus N. Senhor

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tivesse tido deleites sensuais, não os pusera aos homens com pecado, que o Diabo era mais amigo. É público mandingueiro, adivinhador, curador e feiticeiro, para fins de seus alcances pecaminosos. São Miguel de Piracicaba, [1765].

238. Livro 317, fol. 0595-0596, doc. 377 - Denúncia de José Bento da Silveira, padre, contra Antônio de Araújo Aguiar, por blasfêmia e proposição, dizendo que tanto crê em Deus como no Diabo. Dissera que Deus soubera o gosto que tem o pecado do sexto preceito. São Miguel de Piracicaba, [1765].

239. Livro 317, fol. 0597-0598, doc. 378 - Denúncia de Bento Alves, contra José Pereira, branco, por desacato, usando de partícula consagrada, que dizem alcançara nos Sertões de Pernambuco. Conceição do Mato Dentro do Serro do Frio, [1759].

240. Livro 317, fol. 0669, doc. 414 - Denúncia contra Bento Cardoso Toledo, por bigamia, que sendo casado com Maria Nunes Ribeira, casara segunda vez na capela de N. Sra. do Bom Sucesso, com Maria Bicuda de Campos. Mariana, [1766].

241. Livro 317, fol. 0671-0672, doc. 415 - Denúncia de Francisco da Costa Chaves contra Antônia Maria, por bigamia, dizendo que se achava casado com uma Antônia Maria, e passado algum tempo teve por notícia em que a dita era casada com um José Gonçalves, mestre ferreiro, e que antes de casar com o denunciante já era mulher meretriz. São Brás do Suaçuí, [1765].

242. Livro 317, fol. 0677-0678, doc. 416 - Denúncia contra Francisco Xavier de Barros Alvim, capitão, e sua mulher, Felizarda Souto Maior, por feitiçaria e adivinhação, por superstição de recorrerem a uns curadores, Antônio e Inácio, para descobrir quem matara cinquenta escravos, e esses se valeram de búzios e instrumentos de [cabaços?] em uma bacia de água. Mariana, [1765].

243. Livro 317, fol. 0677-0678, doc. 416 - Denúncia de Francisco Xavier de Barros Alvim, capitão, e sua mulher, Felizarda Souto Maior, contra Ignácio, preto, por feitiçaria e adivinhação, por descobrir quem matara cinquenta escravos, e se valeram de búzios e instrumentos de [cabaços?] em uma bacia de água. Mariana, [1765]

244. Livro 317, fol. 0677-0678, doc. 416 - Denúncia de Francisco Xavier de Barros Alvim, capitão, e sua mulher, Felizarda Souto Maior, contra Antônio, preto, por feitiçaria e adivinhação, por descobrir quem matara

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cinquenta escravos, e se valeram de búzios e instrumentos de cabaços em uma bacia de água. Mariana, [1765]

245. Livro 317, fol. 0679-0680, doc. 417 - Denúncia contra Francisco Gomes de Souza, cônego, protonotário apostólico, por blasfêmia e proposição, de que na consagração vira o Senhor, que a alma voa ao céu, e que falecendo o bispo, disse fora para o inferno, mas que de fato os seus inimigos pervertiam o sentido de sua fala. Mariana, [s/d].

246. Livro 317, fol. 0701, doc. 428 - Denúncia contra Antônio Pereira Guimarães, pardo, oficial de ferreiro, por bigamia, por ter casado com Ana Maria da Fonseca, crioula, e segunda vez com Maria Gonçalves Chaves, crioula, na freguesia de Antônio Dias. Prados, [1767].

247. Livro 317, fol. 0733-0735, doc. 444-445 - Denúncia contra Ignácio José de Souza, padre, vigário colado, por perturbar o ministério do Santo Oficio, por palavras contra o Santo Tribunal, preso, por ordem do visitador, cônego da cidade de Mariana, Francisco Ribeiro da Silva, seu “capital inimigo”, juntamente com o vigário da vara de São João del-Rei, José Sobral e Souza, ambos comissários do Santo Oficio. Airuoca, [1767].

33 - CADERNO 129, LIVRO 318 [1765-1777]

248. Livro 318, fol. 0182-0247, doc. 87-118 - Denúncia contra Manoel Sardinha Jardim, por bigamia, por se casar com Inocência Alves Vieira e depois, ausentando-se da sua mulher, sendo esta ainda viva, se casara o delatado com uma mulata nos Cararis Novos, bispado de Pernambuco. Santo Antônio do Bom Retiro da Roça Grande, bispado de Mariana, [1766].

249. Livro 318, fol. 0278-0279, doc. 133 - Denúncia de Albina Maria Soares, parda, escrava, contra sua senhora, Josefa Maria Soares, parda forra, por feitiçaria e adivinhação, por superstição de ter uma caveira enterrada a porta para fazer em pó, do qual usa em comestíveis, que manda aos seus amásios, e costuma no dia de São João enterrar umas orações molhadas em vinho, passadas pelo fogo, tudo para os seus amásios lhe quererem bem. Mariana, [1774].

250. Livro 318, fol. 0280-0281, doc. 134 - Denúncia contra Manoel Coelho de Souza, por feitiçaria e adivinhação, pela superstição de usar de um negro curador, Joaquim, que adivinhou feitiços enterrados dentro

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de casa, e com as mãos untadas e sangrando uma galinha preta lhe esfregou o cabelo e conhecendo que semelhantes curas fazem pacto com o demônio, se sujeitara para alcançar saúde. Arraial de Antônio Pereira, bispado de Mariana, [1774].

251. Livro 318, fol. 0282-0283, doc. 135 - Denúncia de Domingos, preto, angola, escravo de Manoel Carvalho Silva, por feitiçaria e adivinhação, que quando estava na sua terra via aos outros negros fazerem supertições, lhe falava de dentro do corpo uma voz dizendo que era a alma de fulano, e que também tem feito algumas curas aos doentes conforme o estilo da sua terra. Mariana, [1774].

252. Livro 318, fol. 0298-0299, doc. 143 - Denúncia de Francisco, benguela, escravo, contra Felix, negro, de nação Cabo Verde, por feitiçaria e adivinhação, por fazer calundus, fazendo perder os sentidos a Maria Angola, escrava, a qual caiu como morta, e as almas da Costa de Guiné eram as que falavam dentro daquela criatura, e fazia curas e ensinava adivinhações, foi preso e mandado para a conquista do gentio. Arraial de São Sebastião, Freguesia de Mariana, [1772].

253. Livro 318, fol. 0310, doc. 148 - Denúncia contra Manoel Pereira Silvério, familiar do Santo Ofício, por blasfêmia e proposição, por ter no ato do castigo de um escravo, ter dito em voz alta, que “maldito seja o casamento”, “maldito seja eu que o fiz, o Santo ofício me queime já e os demônios me tirem alma do corpo”. Vila do Sabará, [1768].

254. Livro 318, fol. 0324-0325, doc. 156 - Denúncia contra Matias de Carvalhaes Sobrinho, por feitiçaria e adivinhação, por recorrer a José, preto, feiticeiro, para saber a causa da morte de vários escravos, e que cavou nos quatro cantos da casa e tirou ossos, e disse que seu escravo Antônio, mina, era o autor. Freguesia de N. Sra. da Conceição de Jacuí, bispado de Mariana, [1774].

255. Livro 318, fol. 0460, doc. 221 - Denúncia contra Paulo de Souza Rabelo, por blasfêmia e proposição, blasfemando de que Deus não era Deus, que não cria na Trindade, que viesse Lúcifer a levá-lo. Freguesia das Congonhas do Sabará, [1771].

256. Livro 318, fol. 0478-0479, doc. 230 - Denúncia contra Caetana Maria de Oliveira, casada, por feitiçaria e adivinhação, por superstições que lhe ensinaram para que seu marido não tratasse com outras mulheres, usando Santo Antônio, e tinha blasfemado contra Deus e contra a Sra. da Conceição, por lhe darem marido tão mau. Mariana, [1762].

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257. Livro 318, fol. 0488-0489, doc. 234 - Denúncia de Bernardo José Osório e Luís da Costa Ataíde contra Ana Jorge, mulata, por desacato, por judiar de uma imagem de Jesus Cristo, metendo-o junto com Santo Antônio debaixo do colchão da sua cama para dormir com seu amigo. Paragem dos Massus, Mariana, [1770].

258. Livro 318, fol. 0524-0557, doc. 247-263 - Denúncia contra Mônica Maria de Jesus, por feitiçaria e adivinhação, por acreditar e cooperar em superstições, tendo negros benzedores em sua casa, com fama de feiticeiros, usando de benzeduras e visagens para curar seu cunhado Manoel Lopes dos Santos e tratando um negro curador de Paraopeba, escravo de Luis Barbosa, com toda grandeza. Congonhas do Sabará, [1775].

259. Livro 318, fol. 0524-0557, doc. 247-263 - Denúncia contra Henrique Brandão, por feitiçaria e adivinhação, por superstição e por cooperar, indo junto com sua sogra, Mônica Maria de Jesus, e uma tal Teodora a Paraopeba, buscar um negro curador. Congonhas do Sabará [1775].

260. Livro 318, fol. 0524-0557, doc. 247-263 - Denúncia contra João Coelho, por feitiçaria e adivinhação, por superstições de participar da procissão que saiu o negro Antônio Angola, que estava em casa de Mônica Maria de Jesus, no Arraial dos Macacos; portando uma caldeirinha com cozimento de raízes, ensopando com um rabo de macaco as pessoas e dizendo que se bebessem ficariam livres dos feitiços e teriam fortuna, pedindo esmola para o dito calundu. Congonhas do Sabará, [1775].

261. Livro 318, fol. 0524-0557, doc. 247-263 - Denúncia contra Antônio Angola, por feitiçaria e adivinhação, por curar o Manoel Lopes dos Santos, e fez uma procissão, vestido com uma camisa e um [surtam] vermelho com penachos nos ombros e cabeça, de penas de todas as aves e pele de onça, dizendo que feitiços vinham de Maria de Ceyta, inimiga capital da Mônica Maria de Jesus. Congonhas do Sabará, [1775].

262. Livro 318, fol. 0564-0566, doc. 264-265 - Denúncia contra Paula Maria Conceição, parda, solteira, por feitiçaria e adivinhação, por superstições por pedir a Francisco Cipriano, aleijado, preto, para adivinhar a morte de seus animais, a Pedro, negro, escravo, que a habilitou para que no mal trato de meretriz ganhasse muitos dos seus amásios, e Antônio Julião umas orações, e Domingas, preta, angola, água para se lavar. Arraial de N. Sra. da Conceição dos Raposos, [1775].

263. Livro 318, fol. 0564-0566, doc. 264-265 - Denúncia contra Francisco Cipriano, por feitiçaria e adivinhação, morador no Lugar de André

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Gomes, freguesia dos raposos, que sendo chamado para adivinhar a causa da morte de animais de Paula Maria da Conceição dissera serem feitiços. Arraial de N. Sra. da Conceição dos Raposos, [1775].

264. Livro 318, fol. 0564-0566, doc. 264-265 - Denúncia contra Antônio Julião, por feitiçaria e adivinhação, homem pardo, casado, morador em Santa Luzia, por Paula Maria da Conceição se queixar de seu amásio, lhe dera certa oração, em que invocava o nome de três mulheres, que entendia estarem condenadas, para proferir à noite e a vista de cinco estrelas, Arraial de N. Sra. da Conceição dos Raposos, [1775].

265. Livro 318, fol. 0564-0566, doc. 264-265 - Denúncia contra Domingas Angola, por feitiçaria e adivinhação, por dar a Paula Maria da Conceição certa água para se lavar e borrifar a casa por causa de seu amásio. Arraial de N. Sra. da Conceição dos Raposos, [1775].

266. Livro 318, fol. 0564-0566, doc. 264-265 - Denúncia contra Pedro, negro, escravo do capitão-mor Pedro Fernandes, por feitiçaria e adivinhação, usando de uma porção de água ardente e algumas ervas, e isto curou a Paula Maria da Conceição para que no mal trato de meretriz, em que vive, ganhasse muitos dos seus amásios. Arraial de N. Sra. da Conceição dos Raposos, [1775].

267. Livro 318, fol. 0596-0597, doc. 276 - Denúncia de Francisco Manoel da Costa Morim contra D. Antônio de Noronha, governador de Minas, por perturbar o ministério do Santo Ofício, por tratar mal a um familiar, fazendo pouco caso do Santo Ofício, ultrajando-o com palavras e castigando-o com uma bengala pelos ombros e costas, estando preso há quatro dias. Freguesia de Santo Antônio do Rio Acima, [1776].

268. Livro 318, fol. 0616-0617, doc. 283 - Denúncia de Agostinha Rodrigues, crioula, forra, contra João de Siqueira, por ouvir confissão sem ser padre, que tendo confessado no confessionário da matriz, reparar que não era o sacerdote e que não delatara por lhe pedir o dito Padre José Alves e o Padre Salvador Ferreira. Arraial de Paracatu, [1775].

269. Livro 318, fol. 0620, doc. 284 - Denúncia de Agostinho Machado Fagundes, presbítero secular, contra o José Álvares, padre, por blasfêmia e proposição, que pregando o Padre José Álvares na festa da senhora, na Capela de N. Sra. do Rosário dos Pretos, disse “que antes negar o culto a Deus que a Maria Santíssima”. Arraial de Paracatu, [1775].

270. Livro 318, fol. 0632-0633, doc. 287 - Denúncia de Antônio Pereira da Silva, tenente, contra João Pinto Caldeira, por blasfêmia e proposição,

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que publicamente profere que não há inferno no outro mundo, e que é só um terror da Igreja para que os fiéis não pequem, nem a Deus ofendam, e que no dia do Juízo, todos haverão de subir ao céu. Anda com feitiçarias, com um patuá, para livrar de jorros de chumbo, ferro e demais perigos. Freguesia de São Bento do Tamanduá, [1776].

271. Livro 318, fol. 0646-0678, doc. 291-307 - Denúncia de Alexandre José da Silva Souza, padre, contra José Vieira de Sousa, por blasfêmia e proposição, o viram defender pública proposição negativa inteiramente condenada por errônea, herética e diretamente oposta a religião o verdadeiro sentir da Igreja, dizendo sobre a essência do inferno, assim como não ser compreendida a simples fornicação no sexto preceito. Vila Real do Sabará, [1775].

272. Livro 318, fol.0680, doc. 310 - Denúncia contra Ana Maria Mercês, por feitiçaria e adivinhação, por superstição de recorrer à cura dos negros, uma chamada Gracia e outra Maria, em calundus, e sendo ciente que uma parda vinda de Vila Rica curava com ervas medicinais, as entregou uns negros que se diziam sabiam curar a dita melancolia com danças e bailes, sem que soubesse haver pacto com o demônio. Arraial da Piedade do Paraopeba, [1774].

273. Livro 318, fol. 0694-0702-0633, doc. 311-314 - Denúncia contra Ana Maria Mercês, por feitiçaria e adivinhação, por superstição de ter uma casa de calundus, em que praticam vários atos supersticiosos, e de pacto demoníaco. Arraial da Piedade do Paraopeba, [1774].

274. Livro 318, fol. 0720-0633, doc. 320 - Denúncia de Casimiro Lúcio da Mata contra Antônio da Costa Guimarães, capitão, homem pardo, por feitiçaria e adivinhação, por trazer um patuá, como são carta de tocar, de oração de São Marcos, com várias palavras: que daria a sua alma a três cavaleiros fortes, e que para guarda destes, pedia as sete pedras fundamentais: Barrabás, Satanás, Mamã, e Lúcifer, e que tudo o quanto quisesse, não atreveria ninguém a desmanchar. Mariana, [1776].

275. Livro 318, fol. 0732, doc. 325 - Denúncia de José Araújo da Costa, oficial de alfaiate, e Manoel Ribeiro Oliveira, padre, contra Alexandre Gomes Carneiro, filho de Fortunato Gomes Carneiro, boticário, por blasfêmia e proposição, por dizer que Deus não sabe do futuro, que Deus não sabe se este ou aquele homem há de se salvar ou perder, que quando Deus pôs Adão no Paraíso, não sabia se havia de comer o fruto proibido. Mariana, [1776].

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276. Livro 318, fol. 0732, doc. 325 - Denúncia de José Araújo da Costa, oficial de alfaiate, e Manoel Ribeiro Oliveira, padre, contra Caetano Gomes Carneiro, filho de Fortunato Gomes Carneiro, boticário, por blasfêmia e proposição, por dizer que Deus não sabe do futuro, que Deus não sabe se este ou aquele homem se há de se salvar ou perder, que quando Deus pôs Adão no Paraíso, não sabia se havia de comer o fruto proibido. Mariana, [1776].

277. Livro 318, fol. 0890, doc. 383 - Denúncia de Antônio José da Cunha Moniz contra Manoel de Figueiredo, por blasfêmia e proposição, que em conversa com o denunciado, assistente na Vila do Sabará, onde servia de escrivão dos ausentes, disse “cuida você que há Inferno?”,

“Dizem que o diabo é mal: não vi coisa melhor” que parecem heréticas, escandalosas e dissonantes. Vila Rica do Ouro Preto, [1776].

278. Livro 318, fol. 0892-0893, doc. 384 - Denúncia contra José Gonçalves de Moraes, capitão, por feitiçaria e adivinhação, por supertição de recorrer a feiticeiros que viviam de ser curadores e adivinhos, Antônio, congo, e José, mina, forros, moradores na Freguesia das Catas Altas, para adivinharem se seus escravos tinham morrido de feitiço e a moléstia do Alferes Antônio Dias. Morro de Santa Ana, Freguesia da cidade de Mariana, [1777].

279. Livro 318, fol. 0892-0893, doc. 384 - Denúncia de José Gonçalves Moraes, capitão, morador no morro de Santa Ana, contra Antônio, congo, forro, morador na Freguesia das Catas Altas, por feitiçaria e adivinhação, por adivinhar se os escravos tinham morrido de feitiço e a moléstia do Alferes Antônio Dias. Morro de Santa Ana, Freguesia da cidade de Mariana, [1777].

280. Livro 318, fol. 0892-0893, doc. 384 - Denúncia de José Gonçalves Moraes, capitão, morador no morro de Santa Ana, contra José, mina, forro, por feitiçaria e adivinhação, morador na Freguesia das Catas Altas, para adivinhar se os escravos tinham morrido de feitiço e a moléstia do Alferes Antônio Dias. Morro de Santa Ana, Freguesia da cidade de Mariana, [1777].

281. Livro 318, fol. 0892-0893, doc. 384 - Denúncia de José Gonçalves Moraes, capitão, contra José Marcos, congo, por feitiçaria e adivinhação, por dar os feitiços de que morreram os seus escravos, que estavam enterrados em uma sua mina. Morro de Santa Ana, Freguesia da cidade de Mariana, [1777].

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282. Livro 318, fol. 0922-0923, doc. 394 - Denúncia de Antônio Machado, por alcunha o Machadinho, sacristão, contra Francisco de Moura Brochado, padre, por revelar o sigilo da confissão, com presunção de perguntar por um cúmplice a uma escrava: “se levara recados de sua senhora para algum homem”. Paracatu, [1776].

283. Livro 318, fol. 0932, doc. 398 - Denúncia contra Manoel da Costa Ferreira, por blasfêmia e proposição, que movido de impaciência notável, proferiu palavras injustas, dizendo “que se me não dava, que o Demônio me levasse, nem com Deus, nem Santa Maria, o que tudo foi dito apaixonado”. São Bento do Tamanduá, [1769].

284. Livro 318, fol. 0984-0985, doc. 421-422 - Denúncia de Victoria Maria de Jesus contra Manoel José de Novaes, por blasfêmia e proposição, por dizer que “no inferno se não padeciam tormentas, que o que dele se dizia era para terror, que era somente o não ver a Deus e nada mais.” Airuoca, [1777].

285. Livro 318, fol. 1046-1052, doc. 447-450 - Denúncia de Antônio de Torres Cunha contra Fabrício, preto, escravo do seminário, por blasfêmia e proposição, proferindo maldições no momento de ser castigado:

“maldita seja quem me pariu, maldita seja a Maria Santíssima”, “maldito seja o Padre Eterno, maldito seja o filho, maldito seja o Espírito Santo”. E disse também que viessem os diabos e o levassem de corpo e alma ao inferno, que ela não queria já ser filho de Maria Santíssima, pois que ela o tinha desamparado, rogando pragas a quem o mandou castigar. Mariana, [1777].

286. Livro 318, doc. 508 - Denúncia de João Roiz Cordeiro contra Feliciana de Oliveira Souza, por desacato, por superstições. Mariana, [1775]. (*)

287. Livro 318, fol. 1250-1251, doc. 528 - Denúncia de Tereza, preta, escrava, contra um negro, de nação Cobú, escravo, morador no Gualacho, na freguesia de São José da Barra, por feitiçaria e adivinhação, que a solicitara para atos ilícitos, e como ela não quisera consentir, lhe deitou uns feitiços no caminho por onde ela passou, cujos feitiços lhe vira deitar por modo de pó de tabaco. Mariana, [1772].

288. Livro 318, fol. 1250-1251, doc. 528 - Denúncia contra Teresa, preta, escrava de Francisco Soares, por feitiçaria e adivinhação, por superstição de pedir a Antônio Machado Fagundes, negro, para lhe dar um remédio para sua senhora não castigá-la e obraram o que ela queria e há poucos dias matou um moleque e entrevou uma negra com feitiços. Mariana, [1772].

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289. Livro 318, fol. 1250-1251, doc. 528 - Denúncia de Tereza, preta, escrava de Francisco Soares, contra Francisco cabo Verde, escravo de seu senhor, por feitiçaria e adivinhação, dando-lhe um prato de comer com feitiços, e por desconfiar, deitou aos porcos, que logo foram secando até morrer, que tudo foi por arte do demônio. Mariana, [1772].

34 - CADERNO 130, LIVRO 319 [1750-1790]

290. Livro 319, fol. 0178-0247, doc. 14 - Denúncia de Ana Maria contra Antônio de Araújo Passos, carpinteiro, por blasfêmia e proposição, por tê-la mantido em seu poder, por força e levou de sua honra, e no conflito disse que “aquilo não valia nada, que era um pecado de estória entre parentes”. Capela do Senhor do Bonfim, Freguesia de Congonhas do Campo, [1778].

291. Livro 319, fol. 0178-0247, doc. 14 - Denúncia de Manoel Bernardes de Sousa contra Antônio de Araújo Passos, por blasfêmia e proposição, que só se vê com os demônios, dizendo que lhe não importava a sua vida, que o pecado do incesto era uma estória. E que socou semente de mamona e misturou na comida de Manoel Alves e esteve a pique de morrer. Capela do Senhor do Bonfim, Freguesia de Congonhas do Campo, [1778].

292. Livro 319, fol. 0093, doc. 34 - Denúncia de Francisco Manoel da Costa Morim contra Silvestre de Carvalho Freire, por blasfêmia e proposição, por dizer que não tinha fé no dito Jubileu nem no Santíssimo Sacramento, ao lhe ser pedido esmola para o jubileu da quinta-feira maior. Santo Antônio, [1779].

293. Livro 319, fol. 0125-0129, doc. 47-49 - Denúncia de João da Costa Lobo contra Manoel Alves Pinheiro, tenente, por sodomia, por falta de religião, barbaridades e judiarias, fazendo o matrimônio pela via traseira com sua mulher, prenhando sua cunhada e castigando os escravos. Sabará, [1775].

294. Livro 319, fol. 0141, doc. 54 - Denúncia de Ignácio Gonçalves Curto e sua mulher, Ana Maria da Trindade, contra João Gomes Novaes, preto, forro, por feitiçaria e adivinhação, por curar enfermos, usando um espelho e tem pacto com o demônio. Minas Gerais, [1778].

295. Livro 319, fol. 0141, doc. 54 - Denúncia contra Ignácio Gonçalves Curto, por feitiçaria e adivinhação, pela supertição de recorrer a João Gomes

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Novaes, para curar sete enfermos de doenças que padeciam e este tem pacto com o demônio. Minas Gerais, [1778].

296. Livro 319, fol.0141, doc. 54 - Denúncia contra Ana Maria da Trindade, por feitiçaria e adivinhação, por recorrer a João Gomes Novaes, para curar sete enfermos de doenças que padeciam e este tem pacto com o demônio. Minas Gerais, [1778].

297. Livro 319, fol. 0143, doc. 55 - Denúncia de Maria Marina de Jesus contra João Gomes, preto, forro, nação Cabo Verde, por feitiçaria e adivinhação, por dizer que curava toda qualidade de doença e que tinha certidão de cirurgião e médico, e como com ele conversei desconfiei. Minas Gerais, [s/d].

298. Livro 319, fol. 0215-0244, doc. 87-102 - Denúncia de Francisco Paim da Câmara, contra José de Brito e Souza, padre, por perguntar na confissão o nome dos cúmplices, Vila do Príncipe, Comarca do Serro Frio, [1769].

299. Livro 319, fol. 0277-0287, doc. 115 - Denúncia de Tomas Pereira de Melo contra Florência de Sousa Portela, mulata, e seu irmão, Simão de Sousa Portela, por feitiçaria e adivinhação, por colocar feitiços na porta da casa de Domingos Ruiz Dantas para ele não se casar e fazer muitas mortes. Prados, [1773].

300. Livro 319, fol. 0277-0287, doc. 115 - Denúncia de Tomas Pereira de Melo contra Simão de Sousa Portela e Florência de Sousa Portela, mulata, sua irmã, por feitiçaria e adivinhação, por colocar feitiços na porta da casa de Domingos Ruiz Dantas para ele não se casar e fazer muitas mortes. Prados, [1773].

301. Livro 319, fol. 0277-0287, doc. 115 - Denúncia de Tomas Pereira de Melo contra Izabel, negra, e sua filha, Catarina, e o neto Izidoro, crioulos, forros, por feitiçaria e adivinhação, com feitiços atrozes e diabólicos, tem feito vários delitos de morte. Prados, [1773].

302. Livro 319, fol. 0277-0287, doc. 115 - Denúncia de Tomas Pereira de Melo contra Catarina, forra, por feitiçaria e adivinhação, com feitiços atrozes e diabólicos, tem feito vários delitos de morte. Prados, [1773].

303. Livro 319, fol. 0277-0287, doc. 115 - Denúncia de Tomas Pereira de Melo contra Izidoro, crioulo, forro, por feitiçaria e adivinhação, por ser grande adivinhador e fazer artes diabólicas, tem feito vários delitos de morte. Prados, [1773].

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304. Livro 319, fol. 0277-0287, doc. 115 - Denúncia de Tomas Pereira de Melo contra Domingos Rodrigues Dantas, alferes, homem poderoso de bens, por feitiçaria e adivinhação, por amparar feiticeiras e mancebia, dizendo que enquanto vivesse nada passaria de mal as feiticeiras, e vivendo com sua mulher e suas primas, pondo-lhes o preceito que elas não confessem o pecado do sexto mandamento. Prados, [1773].

305. Livro 319, fol. 0319-0320, doc. 133 - Denúncia de Martinho (Jacinto?), padre, contra Martinho (não sei de que), vigário, no Sumidouro, por blasfêmia e proposição, por dizer em uma conversa pública que não havia jubileus, nem indulgências e que de nada valia o rosário e bentinhos. Carijós, [1779].

306. Livro 319, fol. 0591-0592, doc. 263 - Denúncia de Ignácio Correa de Sá, contra Manoel de Araujo Pereira, casado, por blasfêmia e proposição, por dizer que adultério não é pecado. Arraial do Ouro Branco, [1780].

307. Livro 319, fol. 0653-0655, doc. 293 - Denúncia de José Borralho contra Antônio de Almeida Nabarco, cirurgião, cristão-novo, por blasfêmia e proposição, e judaísmo, dizendo que a fornicação simples não era pecado, que não há obrigação de guardar os dias de jejum. Freguesia de Airuoca, [1780].

308. Livro 319, fol. 0735-0736, doc. 332 - Denúncia de José (Lino?) Correia de Carvalho, padre, comissário, contra Miguel, negro, nação cacange, sobre domínio e poder de Custódio Fernandez, por feitiçaria e adivinhação, com pacto com o demônio, segundo o que o mesmo negro tem confessado. Mariana, [1779].

309. Livro 319, fol. 0735-0736, doc. 332 - Denúncia de José [Lino] Correia de carvalho, padre, comissário, contra Policarpo Batista Veloso, por blasfêmia e proposição, por proferir que a criatura humana não era assistida de anjo da guarda, que nunca houve, nem há, que o demônio não tenta as criaturas humanas, e que não crê em bentinhos, escapulários, e outras coisas semelhantes. Mariana, [1779].

310. Livro 319, fol.0765-0766, doc. 347 - Denúncia de Antônio José da Fonseca contra Maria Rosa Joaquina, parda, solteira, por desacato, contra imagem de Santo Antônio, que depois de sair do banho, metia na dita água a imagem de Santo Antônio, dizendo palavras. Freguesia de Santa Rita, [s/d].

311. Livro 319, fol. 0787, doc. 358 - Denuncia contra Manoel Carvalho de Araújo, por feitiçaria e adivinhação, por recorrer a um preto para curá-

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lo, o qual fez adivinhação com um prato de água e uns cipós torcidos e umas folhas de limão, e o picava com uma agulha nos narizes, dizendo que havia caroços. Mariana, [1780].

312. Livro 319, fol. 0795, doc. 362 - Denúncia de Albano da Silva Castro contra João Bernardes de Pinho, solteiro, por blasfêmia e proposição, afirmando que a carne que tomou o verbo divino no ventre de Maria Santíssima foi ao nascer a parte; razão de se espiritualizar. Arraial de São Sebastião, [1780].

313. Livro 319, fol. 0801, doc. 365 - Denúncia de Francisco Rodrigues Leme contra Vitoriano de José de Almeida, branco, por desacato a imagem, ao judiar da cruz de Cristo, pisando-as com os pés. Freguesia de Campanha do Rio Verde. [1782].

314. Livro 319, fol. 0803, doc. 366 - Denúncia de Antônio Tavares Barros contra Manoel José de Almeida, padre, por blasfêmia e proposição, por proferir e atentar que a comunidade Santíssima de Jesus Cristo se tinha perdido pela sua ressurreição, e que já não existia mais. Caeté, [1781].

315. Livro 319, fol. 0809-0810, doc. 369 - Denúncia de Joaquim José dos Santos contra Antônio Angola, escravo, de alcunha Antônio Calundu, por feitiçaria e adivinhação, tendo sido conduzido por João Garcia da Rosa, do Rio Verde para curar feitiços, e é adivinho por meios de um espelho e uma cruz. Freguesia da Campanha, [1781].

316. Livro 319, fol. 0811, doc. 370 - Denúncia de Domingos da Cunha Lopes contra Manoel Vaz de Lima, padre, por perguntar pelo cúmplice, que se confessando com o referido padre na Capela da Laje, freguesia da Vila de São José, uma moça solteira, lhe perguntara pelo cúmplice da sua culpa e a atemorizou, dizendo que não a absolvia sem descobrir o dito cúmplice. Freguesia dos Carijós, [1781].

317. Livro 319, fol. 0819-0820, doc. 374 - Denúncia de Manoel Pacheco Correa contra Roque Angola, escravo, por feitiçaria e adivinhação, e outros cúmplices, por uma dança ou calundus, e davam a cheirar a todos um ingrediente e ficavam absortos e fora de si, ensinando que as almas se introduziam nos vivos. Vila de N. Sra. de Pitangui, [1777].

318. Livro 319, fol. 0819-0820, doc. 374 - Denúncia de Manoel Pacheco Correa contra Brízida Maria de Araújo, por feitiçaria e adivinhação, e outros cúmplices, por uma dança ou calundus, e davam a cheirar a todos um ingrediente e ficavam absortos e fora de si, ensinando que as almas se introduziam nos vivos. Vila de N. Sra. de Pitangui, [1777].

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319. Livro 319, fol. 0820-0822, doc. 375 - Denúncia de Francisco Ferreira Fonte contra Brízida Maria Araújo e Roque Angola, seu escravo, por feitiçaria e adivinhação, que é tida em toda a vizinhança, e faziam uma dança ou calundu, dizendo que ela era o Anjo Angélico, e que tinha poder do Sumo Pontífice para casar e descasar, e dava uma erva com a qual ficavam absortos e fora de si e esquecidos das obrigações de católicos. Vila de N. Sra. de Pitangui, [1777].

320. Livro 319, fol. 0820-0822, doc. 375 - Denúncia de Francisco Ferreira Fonte contra Roque Angola, por feitiçaria e adivinhação, cúmplice de Brízida Maria, fazia dança ou calundu, dizendo que era aquele o melhor modo de dar graças a Deus, e dormiam na mesma cama, o que tem servido de grandes diferenças entre ela e o marido, Vila de N. Sra. de Pitangui, [1777].

321. Livro 319, fol. 0827-0828, doc. 378 - Denúncia de Antônio Roiz de Souza, familiar, contra João Álvares, solteiro, por perturbar o ministério do Santo Ofício, por publicar que o delator alcançou ser familiar por peitas de dinheiro, com o que não só mostram duvidar dos respectivos procedimentos do Santo Ofício, mas também macular os incorruptibilíssimos ânimos dos seus Nobilíssimos Oficiais. Arraial de Guarapiranga, [1779].

322. Livro 319, fol. 0827-0828, doc. 378 - Denúncia de Antônio Roiz de Souza, familiar, contra Miguel Ribeiro Andrade, por perturbar o ministério do Santo Ofício, por publicar que o delator alcançou ser familiar por peitas de dinheiro, com o que não só mostram duvidar dos respectivos procedimentos do Santo Ofício, mas também macular os incorruptibilíssimos ânimos dos seus Nobilíssimos Oficiais. Arraial de Guarapiranga, [1779].

323. Livro 319, fol. 0837, doc. 383 - Denúncia de Tomás Gomes de Sá contra Mario da Silva Porto, escrivão dos órfãos, por blasfêmia e proposição, por dizer que Cristo Senhor Nosso fora um homem penitente, e que não havia melhor leis do que a dos libertinos, e lendo o Livro, intitulado Monte Libero, disse não cria nessas doutrinas, e tinha pouca vocação de católico no ouvir da Missa. Vila Rica do Ouro Preto, [1782].

324. Livro 319, fol. 0839, doc. 384 - Denúncia de José Francisco do Couto e Francisco Gomes do Couto contra Antônio Fernandes Ribeiro, oficial de sapateiro, por blasfêmia e proposição, disse que não cria que a Virgem N. Sra. tivesse dado a luz a seu benditíssimo filho e Jesus Cristo, sendo virgem antes do parto, porque não era possível. Vila Rica do Ouro Preto, [1782].

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325. Livro 319, fol. 0841-0843, doc. 385-386 - Denúncia contra Maria Felizarda, viúva do Capitão Francisco de Barros Alvim, por feitiçaria e adivinhação, por superstição de recorrer a Francisco, forro, mina, e a Tomás (ou Gaspar), para curar feitiços e adivinhar malefícios de quem matava seus escravos. Gualacho do Sul, Freguesia do Sumidouro, [1772].

326. Livro 319, fol. 0841-0843, doc. 385-386 - Denúncia de Maria Felizarda contra Francisco, forro, mina, por feitiçaria e adivinhação, por descobrir quem colocava malefícios nos escravos, usando um prato com água e cachaça, um ferro comprido, pós, cajado, um pincel feito de rabo de um animal, com seus búzios e uma esteirinha pequena, que falava pela sua língua. Gualacho do Sul, Freguesia do Sumidouro, [1772].

327. Livro 319, fol. 0841-0843, doc. 385-386 - Denúncia de Maria Felizarda contra Miguel, escravo de sua mãe, D. Luzia Roza da Silveira, por feitiçaria e adivinhação, colocando malefícios a seus escravos. Gualacho do Sul, Freguesia do Sumidouro, [1772].

328. Livro 319, fol. 0841-0843, doc. 385-386 - Denúncia de Maria Felizarda contra Tomás ou Gaspar, forro, por feitiçaria e adivinhação, por curar feitiços, estando o marido em véspera de morrer, lhe dera alguns remédios, com cachaça e raízes, e logo dissera que a doença não era feitiço. Gualacho do Sul, Freguesia do Sumidouro, [1772].

329. Livro 319, fol. 0845-0847, doc. 387-388 - Denúncia de Antônio Pereira [Gripó] contra Manoel, preto, por feitiçaria e adivinhação, por curar de feitiços, aplicando raízes ou ervas, purga e dizer que era necessário deixar os escravos folgarem e dançar os calundus, senão os ditos espíritos os haviam de matar, e apagando a luz, entrou a cantar umas cantigas pela sua língua e a tocar uns cabaços. Tirou do chão no terreiro [maganisses] para a fazenda andar atrapalhada e fez um cozimento, pondo três raízes em cruz no fundo do taxo e deitando água e cachaça, banhando aos escravos e ao denunciante. Mariana, [1782].

330. Livro 319, fol. 0845-0847, doc. 387-388 - Denúncia contra Antônio Pereira [Gripó], branco, por feitiçaria e adivinhação, por superstição de recorrer a Manoel, negro, para curar de feitiços a seus escravos, com calundus, e que ele se banhou em um cozimento, com raízes, para não lhe entrar mais feitiços. Mariana, [1782].

331. Livro 319, fol. 0849-0850, doc. 389 - Denúncia de Fortunato Gomes, padre, contra João Soares, padre, por erro na confissão, por ver o padre, filho de Francisco Soares, confessando uma mulher em São Francisco

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desta cidade em certo jubileu, afastar-se do confessionário com o tamborete, sem que visse modos de absolver, ainda que isso fizesse com alguma preocupação. Mariana, [s/d].

332. Livro 319, fol. 0849-0850, doc. 389 - Denúncia de Fortunato Gomes, padre, contra José Lina Correia, padre, por não absolver a José Gonçalves, sapateiro, por uma imprudência. Mariana, [s/d].

333. Livro 319, fol. 0849-0850, doc. 389 - Denúncia de Fortunato Gomes, padre, contra Gracia, preta, por feitiçaria e adivinhação, por fazer uns feitiços ao feitor do irmão do Vigário Padre Caetano Pinto. Mariana, [s/d].

334. Livro 319, fol. 0849-0850, doc. 389 - Denúncia de Fortunato Gomes, padre, contra Maria (Teixeira), negra, mina, por desacato, atirando a imagem de N. Sra., pois não lhe fazia o que lhe pedia, que não era como os santos de sua terra, que haviam de fazer o que ela pedia. Mariana, [s/d].

335. Livro 319, fol. 0849-0850, doc. 389 - Denúncia de Fortunato Gomes, padre, contra Vivência, por feitiçaria e adivinhação, por ter em casa um feiticeiro a fazer feitiços com galinha preta. Mariana, [s/d].

336. Livro 319, fol. 0849-0850, doc. 389 - Denúncia de Fortunato Gomes, padre, contra Ana Teixeira, por feitiçaria e adivinhação, por ter Joana feiticeira. Mariana, [s/d].

337. Livro 319, fol. 0851-0854, doc. 390 - Denúncia de José Monteiro, padre, diácono, e José Roiz Roxa, padre, contra Bartolomeu, mulato, por feitiçaria e adivinhação, curando bicheiras, e contaram outras várias curas que lá para Antônio Dias se fazia de bicheiras. Antônio Dias, [s/d].

338. Livro 319, fol. 0851-0854, doc. 390 - Denúncia de Ignacio Correa de Sá, familiar, contra José Roiz, padre, por feitiçaria e adivinhação, por superstição de dizer ou ensinar que se lançando os olhos fitos para trás, na bicheira, que sarava, e que assim se curava. Minas Gerais, [s/d].

339. Livro 319, fol. 0851-0854, doc. 390 - Denúncia de Ignacio Correa de Sá, familiar, contra João Pinto, por feitiçaria e adivinhação, por superstições de examinar quem era feiticeiro, mandara por umas pedras no fogo a inflamar-se, e pegar com a boca e lançar em uma vasilha com água, e mandou praticar aos escravos de João Barroso, e todos fizeram sem que se queimassem e um feiticeiro ou mais se queimaram, e que este era o sinal. Minas Gerais, [s/d].

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340. Livro 319, fol. 0851-0854, doc. 390 - Denúncia de Ignacio Correa de Sá, familiar, contra clérigo, por não manter o sigilo da confissão, e que D. Maria, filha de Dona Josefa ouvira o clérigo falar uma coisa que ouvira na confissão. Minas Gerais, [s/d].

341. Livro 319, fol. 0851-0854, doc. 390 - Denúncia de Ignacio Correa de Sá, familiar, contra Joana, por feitiçaria e adivinhação, e que morrera uma mulher conhecida da dita, dizem de feitiços, e ela disse que saberia quem os fez. Minas Gerais, [s/d].

342. Livro 319, fol. 0851-0854, doc. 390 - Denúncia de Ignacio Correa de Sá, familiar, contra um padre da Gouveia, que confessava ter consigo uma bengala ou pau, e que confessando a vários negros, levantou o pau e deu-lhes dizendo que não se admirava que dentre tantos não viesse um ladrão. Minas Gerais, [s/d].

343. Livro 319, fol. 0851-0854, doc. 390 - Denúncia de Ignacio Correa de Sá, familiar, Adão Magnão, por blasfêmia e proposição, dizendo que culpa tinham as crianças para se perderem e por dizer que o gentio não era gente, Minas Gerais, [s/d].

344. Livro 319, fol. 0851-0854, doc. 390 - Denúncia de Ignacio Correa de Sá, familiar, contra um Padre velho, que em certo jubileu, confessando um negro, hora o empurrava para mais longe, hora para mais perto, outra dava outro movimento, até que saiu com o dito negro pelas orelhas e disse que com os negros não se pode aturar, e levantou-se a fumar tabaco agoniado. Minas Gerais, [s/d].

345. Livro 319, fol. 0851-0854, doc. 390 - Denúncia de Ignacio Correa de Sá, familiar, contra mulato, por blasfêmia e proposição, por ficar contente ao ouvir de um Padre Et imolatus et Cristus, cuidando que Cristo era mulato. Minas Gerais, [s/d].

346. Livro 319, fol. 0851-0854, doc. 390 - Denúncia de Ignacio Correa de Sá, familiar, contra uns caboclos bebedores, que não se emendam, Minas Gerais, [s/d].

347. Livro 319, fol. 0851-0854, doc. 390 - Denúncia de Ignacio Correa de Sá, familiar, contra Paulo, negro, por blasfêmia e proposição, que os sufrágios não se aproveitam e duvidar da existência de céu e inferno. Minas Gerais, [s/d].

348. Livro 319, fol. 0851-0854, doc. 390 - Denúncia de Ignacio Correa de Sá, familiar, contra Francisco de Melo, por blasfêmia e proposição, que a

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fornicação não devia de ser pecado. Minas Gerais, [s/d].

349. Livro 319, fol. 0855-0856, doc. 392 - Denúncia Pedro José Joaquim Soares contra Manoel (Ferreira?), doutor, por blasfêmia e proposição, por dizer que não havia Purgatório, que isso era invenção dos padres para terem missa. Pitangui, [1782].

350. Livro 319, fol. 0855-0856, doc. 392 - Denúncia de Teresa Quitéria contra João Pinto, por feitiçaria e adivinhação, pois dissera que a denunciante tinha feitiços e que não tinha dúvida que estava “maleficiada”. Pitangui, [1782].

351. Livro 319, fol. 0865, doc. 397 - Denúncia de Manoel (?), familiar, contra Domingos, preto, forro, por feitiçaria e adivinhação, fazendo seus calundus e danças, e assentamentos de mais mulheres e suas diabruras. São Brás do Suaçuí, [1779].

352. Livro 319, fol. 0865, doc. 397 - Denúncia contra Manoel (?), familiar do Santo Ofício, por ter desonestado a uma moça pobre, branca, de boa geração, e como corria muito risco a dita moça, se casou com ela para não poder causar maior ruína e alguma morte. São Brás do Suaçuí, [1779].

353. Livro 319, fol. 0867-0868, doc. 398 - Denúncia de João Franco Ribeiro contra um negro, forro, por feitiçaria e adivinhação, por recorrer a um negro, que lhe ensinou uma oração, achando-se usa mulher em grave moléstia, depois de experimentar todos os remédios e exorcismos da Igreja e não alcançar saúde. Mariana, [1782].

354. Livro 319, fol. 0869, doc. 399 - Denúncia de José Rodrigues Serra contra Francisco, negro, mina, por feitiçaria e adivinhação, por curar de feitiços a um negro doente na casa de seu tio, fazendo umas danças de roda, deitando-se no chão e saltando; pondo os olhos em alvo, com uma voz que saia de dentro de um balaio e do chapéu, e lhe falava pela língua de sua terra, fazendo esfregações com raízes e ervas ao doente, e que tudo presenciara aos 13 anos de idade. Mariana, [1782].

355. Livro 319, fol. 0911-0912, doc. 415 - Denúncia contra Manoel José de Almeida, bacharel pela Universidade de Coimbra, por blasfêmia e proposição, sobre o mistério da encarnação e sua natureza, supôs ele que Jesus Cristo, Deus e homem juntamente, depois de ressurgir dos mortos, não podia ter a natureza da mortalidade para segunda vez padecer e morrer pelos homens, e que neste sentido, declarara a privação da natureza mortal e humana. Caeté, [1781].

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356. Livro 319, fol. 0945, doc. 433 - Denúncia de Domingos José de Barros contra José [Franco] Baias, por sodomia, que o dito convidou ele denunciante para um pecado de molice e disse o denunciado que nem aquela [força] nem a fornicação simples eram pecados, que não havia inferno. Arraial da capela de N. Sra. da Glória, Carijós, [1785].

357. Livro 319, fol. 0961, doc. 440 - Denúncia de Francisco Machado de Souza contra Sebastião, escravo, preto, angola, escravo de Francisco Machado, sapateiro, por desacato, por pegar em um Sr. Crucificado e atirar pelas paredes, fazendo-lhe vários opróbrios, até o quebrar. Vila Real do Sabará, [1784].

358. Livro 319, fol. 0969, doc. 444 - Denúncia de Isidora Maria contra Felipa, parda, por feitiçaria e adivinhação, por superstições de curar a filha da denunciante por uma moléstia. Mariana, [s/d].

359. Livro 319, fol. 0969, doc. 444 - Denúncia de Isidora Maria contra Jerônimo, cabra, por feitiçaria e adivinhação, por superstições de curar, estando uma filha de moléstia, chamada Putenciana. Mariana, [s/d].

360. Livro 319, fol. 0971, doc. 445 - Denúncia de Manoel Roiz Cordeiro contra Miguel Eugênio, por blasfêmia e proposição, e suspeita de crença, que disse que ouvira no Rio de Janeiro a bons teólogos, que se podia salvar qualquer criatura sem batismo, contanto que não tivesse culpa pessoal, porque havia salvação sem o batismo antes que Jesus Cristo viera ao mundo. Santa Luzia, [1781].

35 - CADERNO 131, LIVRO 320 [1779-1796]

361. Livro 320, fol. 0827, doc. 172 - Denúncia da filha de José Marques Guimarães, contra Manoel Carapina, cabra, por desacato, trazendo uma imagem de cristo de latão em uma cruz de pau entre o cós do calção e o corpo, e passa pelo conceito de mandingueiro, trazendo um grande patuá. Santa Luzia, [1793].

37 - CADERNO 134, LIVRO 322 [1797-1802]

362. Livro 322, fol. 127-132 doc. 47-49 - Denúncia de Maria Efigênia contra Antônio Barbosa, negro, por feitiçaria e adivinhação, conduzido à casa de Maria Lopes, crioula forra, para dar fortuna e adivinhar feitiços, e

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que fazia danças que chamavam calundus. Vila de Queluz de Baixo, [1792].

363. Livro 322, fol. 0185, doc. 72 - Confissão de Estevão da Silva, por pecado de bestialidade, se arrependendo de ter cometido e com o propósito de os nunca mais cometer. Vila Rica de Ouro Preto, [1799].

364. Livro 322, fol. 0187, doc. 73 - Denúncia de José Vieira Couto contra João Ignácio do Amaral Silveira, intendente dos Diamantes no Serro Frio, por blasfêmia e proposição, por criticar a igreja com soberba e colocar em dúvida a religião. Mariana, [1800].

365. Livro 322, fol. 0577-0611, doc. 238-253 - Denúncia de Antônio Roiz Coura, familiar, contra Miguel de Melo Chaves, padre, por descobrir o sigilo da confissão. Vila Nova da Rainha do Caeté, [1798].

366. Livro 322, fol. 0659-0661, doc. 272 - Denúncia de João Antônio dos Santos contra Manoel Joaquim de Almeida, capitão, por heresia, por ser suspeito na fé, que não se confessa nem reza, que vive amancebado com uma sua cunhada e que tratou casamento com uma mulher sendo já casado, que costuma copular-se com mães, filhas e primas, irmãs, umas e outras, com público e geral escândalo e que usa de negros feiticeiros em sua casa para adquirir fortuna. Vila Nova da Rainha do Caeté, [1802].

367. Livro 322, fol. 0818-0843, doc. 324-336 - Denúncia de Manoel Rodrigues Pacheco contra o capitão Manoel José Correa, por sodomia, o denunciante já o havia acusado inclusive sobre suspeita de ser hermafrodita, porém não se achando defeito algum e não satisfeito fez nova denúncia nesta Vila, que o denunciado tem cometido o execrável e abominável crime da sodomia com tão grande escândalo em autos públicos. Vila de São José del-Rei, [1795].

368. Livro 322, fol. 0850-0856, doc. 340-343 - Denúncia de João Luiz de Souza Saião, por chegada de livro proibido no Rio de Janeiro, que o Reverendo Manuel da Cunha Pacheco, pároco da Vila de São Bento do Tamanduá disse ao delator que tinha vindo a obra “Código da Humanidade”, mas que tinha morrido o sujeito para quem vinha e que tinha lido a mesma obra, e que a lera por causa de alguns tratados. Mariana, [1801].

369. Livro 322, fol. 0850-0856, doc. 340-343 - Denúncia de João Luiz de Souza Saião contra Antônio José da Silva Porto, alferes, por blasfêmia e proposição, por não acreditar em relíquias de santos mártires, e que

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era falsa a ressuscitação de Lázaro, e que não havia a união da carne aos cadáveres ressuscitados. Vila Rica do Ouro Preto, [1801].

38 - CADERNO 3*, LIVRO 324 [1731-1739]

370. Livro 324, fol. 0286-0287, doc. 141 - Denúncia de Luís da Silva contra o Francisco Ferreira, sargento, morador no Morro do Padre, blasfêmia e proposição, por livrar-se de devassas por dinheiro, sendo homem de pouco temor a Deus, um dos mais ricos destas terras, e nunca deu dia santo ou Domingo a nenhum negro seu, fazendo-os trabalhar mais com se fossem feras do que cristãos, duvidando de haver ou não Inferno. Vila Rica de Ouro Preto, [s/d].

371. Livro 324, fol. 0590, doc. 293 - Denúncia de Antônio Lopes da Fonseca contra Francisco Xavier Ferreira, por bigamia, justificando-se no juízo eclesiástico da Vila de Sabará, casou-se com uma mulata, na capela de Bom retiro da Roça Grande, sendo já casado em Braga. Sabará, [s/d].

372. Livro 324, fol. 0764-0766, doc. 377-378 - Denúncia contra Antônio José Cogominho, escrivão do registro da casa da moeda das Minas, por bigamia, por se casar em Sabará, sendo sua primeira mulher viva, chamada Joana Micaela, e que se acha morando em Olivença, sendo que o Pe. Pegado da Costa já deu conta disso ao Tribunal. Vila Rica de Ouro Preto, [1739].

373. Livro 324, fol. 0904-0313, doc. 447-452 - Denúncia de Inácio Ordonho, padre, contra Francisco Pereira, por blasfêmia e proposição, por dizer que havia dúvida na Santa Fé, e que ouviram dizer que o dito tinha casta de cristão-novo. Brejo do Salgado, [173?].

374. Livro 324, fol. 0904-0313, doc. 447-452 - Denúncia de Inácio Ordonho, padre, contra Manoel Dantas, padre, por blasfêmia e proposição, fama de judeu, disse que no dia do Juízo, haviam de se arrepender por não seguirem a lei de Moisés. Brejo do Salgado, [1743].

375. Livro 324, fol. 0904-0313, doc. 447-452 - Denúncia de Inácio Ordonho, padre, contra Batista, sobrinho de Francisco Nunes Santarém, por desacato, pois achara um crucifixo no estojo do seu tio e que para não judiar com ele, atirara com ele no Rio. Brejo do Salgado, [1743].

376. Livro 324, fol. 0904-0313, doc. 447-452 - Denúncia de Manoel de Mato Guedes, padre, contra Pedro Pereira Lima, por blasfêmia e proposição,

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disse que não era ou não queria ser da Igreja, e que Deus não havia subido ao Céu. Brejo do Salgado, [1733].

377. Livro 324, fol. 0904-0313, doc. 447-452 - Denúncia de Manoel de Mato Guedes, padre, contra o capitão Manoel Pedro Pereira Lima, por blasfêmia e proposição, por dizer que não era ou não queria ser da Igreja e também que Deus não tinha subido ao Céu. Brejo do Salgado, [s/d].

378. Livro 324, fol. 0904-0313, doc. 447-452 - Denúncia de Manoel de Mato Guedes, padre, contra Manoel da Costa, por feitiçaria e adivinhação, com água em um copo, posto com um guardanapo ou toalha na cabeça, benzia a Manoel Furtado, homem posto ao Sol, sem que eu lhe percebesse o que dizia. Brejo do Salgado, [s/d].

379. Livro 324, fol. 0904-0313, doc. 447-452 - Denúncia de Manoel de Mato Guedes, padre, contra Francisco Pereira, homem que negocia em uma canoa, por blasfêmia e proposição, que havia dúvida na Santa Fé. Brejo do Salgado, [s/d].

380. Livro 324, fol. 0904-0313, doc. 447-452 - Denúncia de Manoel de Mato Guedes, padre, contra João Batista, sobrinho de Francisco Nunes Santarém, por desacato, que encontrara no estojo de seu tio um crucifixo e o atirara no Rio para que o dito seu tio com ele não judiasse. Brejo do Salgado, [s/d].

381. Livro 324, fol. 0904-0313, doc. 447-452 - Denúncia de Manoel de Mato Guedes, padre, contra o Padre Manoel Dantas por blasfêmia e proposição, dizendo que, no dia do Juízo, haveriam de se arrepender por não seguirem a lei de Moisés, tinha fama de judeu e, por isso, um religioso lhe tirou das mãos uma criança para que não a batizasse. Brejo do Salgado, [s/d]

382. Livro 324, fol. 0904-0313, doc. 447-452 - Denúncia de Manoel de Mato Guedes, padre, contra a irmã de Manoel Dantas, padre, por heresia e apostasia, por fama de judia, por jejuar as segundas e quintas, dias de jejum dos judeus, sendo a mesma suspeita de seguir a lei moisaica. Brejo do Salgado, [s/d].

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Autores

Anita Waingort Novinsky graduou-se em Filosofia, com pós-graduação em Psicologia e doutorado em História Social (USP) e especializou-se em História das Mentalidades, na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales. Foi professora visitante na Brown University; na Universidade do Texas/Austin e na Rutgers University. Atualmente é professora livre docente da pós-graduação em História (USP), dedicando-se ao tema da Inquisição e dos cristãos-novos no Brasil colonial. É presidente fundadora do Museu da Tolerância de São Paulo (USP). Tem dezenas de artigos publicados e vários livros, entre eles, Cristãos-novos na Bahia: Inquisição (Perspectiva) e Inquisição: prisioneiros do Brasil – séculos XVI a XIX (Perspectiva).

Adriana Romeiro é graduada, mestre e doutora em História (UNICAMP). Fez seu pós-doutorado na USP. Atualmente é professora na UFMG. Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil, atuando principalmente nos seguintes temas: Minas Gerais (século XVIII), cultura, história do Brasil e imaginário. É autora de vários artigos e dos livros Um visionário na corte de d. João V: revolta e milenarismo nas Minas Gerais (EdUFMG) e Paulistas e emboabas no coração das Minas: ideias, práticas e imaginário político no século XVIII (EdUFMG).

Aldair Carlos Rodrigues é mestre e doutor em História Social (USP), atuando principalmente nos temas ligados à Inquisição e seus agentes inquisitoriais, e a justiça eclesiástica no Brasil. Atualmente é pesquisador da Biblioteca Brasiliana (USP). Autor do artigo Formação e atuação da rede de comissários do Santo Ofício em Minas colonial e do livro Limpos de sangue: familiares do Santo Ofício, Inquisição e sociedade em Minas Colonial (Alameda).

Angelo Adriano Faria de Assis é graduado em História, mestre e doutor em História Social (UFF), e Pós-doutorado pela Cátedra de Estudos Sefarditas

“Alberto Benveniste” da Universidade de Lisboa. Atualmente é professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFV. É autor de vários artigos e livros sobre a história da Inquisição no mundo ibérico e colonial, entre eles João Nunes, um rabi escatológico na Nova Lusitânia: sociedade colonial e inquisição no nordeste quinhentista (Alameda) e Macabeias da colônia: Criptojudaísmo feminino na Bahia (Alameda).

Bruno Gulilherme Feitler é graduado, mestre e doutor em História (Université de Paris Sorbonne – Paris IV e Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales) e pós-doutor pela USP e pela Universidade de Lisboa. Atualmente é professor adjunto de História Moderna da Unifesp e pesquisador do CNPq. Entre vários trabalhos é autor do livro Nas malhas da consciência: Igreja e Inquisição no Brasil (Alameda) e co-autor de A Inquisição em xeque: temas, debates, estudos de caso (EDUERJ).

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Camila Fernandes de Morais é graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais e estagiária do Laboratório de Arqueologia da Fafich/UFMG.

Carlos Magno Guimarães tem especialização em Arqueologia, mestrado em Ciência Política (UFMG) e doutorado em História Social (USP). É professor associado do Departamento de Sociologia e Antropologia da Fafich/UFMG, onde coordena o Laboratório de Arqueologia. Tem livro e artigos publicados sobre história e arqueologia das Minas Coloniais e é editor de Vestígios: Revista Latino-Americana de Arqueologia Histórica.

Evergton Sales Souza doutorou-se em História Moderna e Contemporânea pela Universidade de Paris IV – Sorbonne, onde também foi professor visitante. Atualmente é professor do Departamento de História da UFBA e pesquisador do CNPq. É autor do livro Jansénisme et reforme de l’Église dans l’empire portugais, 1640-1790 (Centro Calouste Gulbenkian) e co-organizador de as Constituições Primeiras do arcebispado da Bahia (EDUSP).

Fernanda Olival é mestre e doutora em História. Atualmente, é professora auxiliar, com agregação, do Departamento de História da Universidade de Évora. É coordenadora do projeto, financiado pela FCT: “Grupos intermédios em Portugal e no Império Português: as familiaturas do Santo Ofício (1570-1773)”. Possui vários artigos e livros publicados, entre eles, é autora de As ordens militares e o estado moderno: honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-1789) (Estar) e co-organizadora de As Gazetas Manuscritas da Biblioteca Pública de Évora (Colibri).

Georgina Silva dos Santos doutorou-se em História Social (USP). Atualmente, é professora de história moderna na UFF, pesquisadora do CNPq e Jovem Cientista do Estado do Rio de Janeiro. Integra a Companhia das Índias – núcleo de história ibérica e colonial da época moderna (UFF). É autora do livro Ofício e sangue

– a irmandade de São Jorge e a Inquisição na Lisboa moderna (Colibri) e co-organizadora de Retratos do império – trajetórias individuais no mundo português nos séculos XVI a XIX (EdUFF).

James Wasdworth graduou-se em Idaho State University, é mestre e Ph.D. pela Universidade do Arizona, tendo se especializado no estudo da Inquisição de Lisboa. Atualmente, é professor associado de história em Stonehill College. Publicou o livro Agents of orthodoxy: honor, status and the Inquisition in colonial Pernambuco – Brazil (Rowman & Littlefield).

João de Figueirôa Rêgo doutorou-se em História Moderna (ICS.UM). Em 2002 recebeu o prêmio “Fundação Engenheiro António de Almeida” e, em 2005, o prêmio APHES. Atualmente, é investigador integrado do CHAM/FCSH-UNL

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e bolsista de pós-doutoramento da FCT. É autor de vários textos e do livro A honra alheia por um fio. Os estatutos de limpeza de sangue nos espaços de expressão ibérica (sécs. XVI-XVIII) (Fundação Calouste Gulbenkian).

José Pedro Paiva doutorou-se Universidade de Coimbra e, atualmente, é professor da Universidade de Coimbra e do Centro de História da Sociedade e da Cultura. Autor de vários livros, entre eles, Bruxaria e superstição num país sem caça às bruxas (1699-1774) (Editorial Notícias) e “Baluartes da fé e da disciplina. O enlace entre a Inquisição e os bispos em Portugal (1536-1750)” (Imprensa da Univ. de Coimbra).

Juliana de Souza Mol é graduada em Ciências Sociais (PUC), especialista em História da Cultura e da Arte (UFMG) e pesquisadora do Laboratório de Arqueologia da Fafich/UFMG.

Júnia Ferreira Furtado graduou-se em História (UFMG), e é mestre e doutora em História Social (USP). Atualmente, é professora titular de História Moderna do Departamento de História da UFMG, bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq e Pesquisador Mineiro da Fapemig. Possui vários artigos e livros publicados sobre a história colonial e moderna, entre eles Chica da Silva e o contratador de diamantes: o outro lado do mito (Ed. Cia das Letras) e Oráculos da geografia iluminista: dom Luís da Cunha e Jean-Baptiste Bourguignon d’Anville na construção da cartografia do Brasil (EdUFMG).

Lina Gorenstein mestre e doutora em História Social (USP). Atualmente, é pesquisadora do Departamento de Pesquisa e Documentação do Museu da Tolerância (USP). Publicou inúmeros artigos sobre cristãos-novos e Inquisição no Brasil colonial, e é autora dos livros Heréticos e impuros (Secretaria Municipal de Cultura – RJ), A Inquisição contras as mulheres (Associação Editorial Humanitas) e co-autora de Ensaios sobre a intolerância, Inquisição, marranismo e anti-semitismo (Associação Editorial Humanitas).

Maria Leônia Chaves de Resende é mestre e doutora em História Social (UNICAMP) e pós-doutora pelo CHAM/ Universidade Nova de Lisboa, onde é pesquisadora integrada. Atualmente, é professora de História na UFSJ e Pesquisador Mineiro da Fapemig. Sua área de estudos é o mundo atlântico ibero-americano, com ênfase na história indígena. Autora de vários artigos e capítulos, entre eles e do guia de fontes Cartografia gentílica: os índios e a inquisição na América Portuguesa (Ed. UFSJ – prelo) e co-organizadora de Caminhos Gerais: estudos históricos sobre Minas (Ed. UFSJ).

Maria Paula Couto Paes graduou-se em História, com mestrado e doutorado em História Social e da Cultura (UFMG). Atualmente é investigadora integrada do

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CHAM/ UNL, onde desenvolve o pós-doutoramento. É autora de vários artigos e capítulos entre eles “Le théâtre du contrôle: Le domaine social et politique en Amérique Portugaise à la première moitié du XVIIIe. Siècle” e do livro Um governo ‘humanista’: Pragmatismo religioso ou prudência política durante o governo de Nassau no Nordeste da América Portuguesa (no prelo).

Mariana Gonçalves Moreira é graduada em Ciências Sociais (UFMG), especialista em Gestão Ambiental e Geoprocessamento (Uni-BH) e mestranda em Antropologia, área de concentração Arqueologia (UFMG). É pesquisadora do Laboratório de Arqueologia da Fafich/UFMG. Tem artigos publicados na área de Arqueologia Histórica de Minas Gerais.

Patrícia Ferreira dos Santos é graduada em História (UFOP), mestre em História Social (USP). Atualmente, é doutoranda na USP. Tem experiência em paleografia, projetos pedagógicos para o ensino de História e História do Brasil Colonial. Publicou vários artigos e o livro Poder e palavra: discursos, contendas e direito de padroado em Mariana (1748-1764) (Hucitec).

Thaís Monteiro de Castro é graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais e estagiária do Laboratório de Arqueologia da Fafich/UFMG.

Will Lucas da Silva Pena é graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas e estagiário do Laboratório de Arqueologia da Fafich/UFMG.

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Caderno de Imagens

Capítulo 3

Abóbada da Sé Catedral de Mariana, Minas Gerais. Pintura de Manuel Rebelo e Sousa, 1760 (Fotografia de Ivani Ferreira dos Santos, 2008).

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Tabela 1 – Os Processos de Livramento Ordinário

Tabela 2 – Queixas a dom Frei Manuel da Cruz

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Capítulo 4

Figura 1 - Data da prisão/apresentação dos falsos comissários

Legenda: L – Inquisição de Lisboa; C – Inquisição de Coimbra

Figura 2 - Distribuição etária dos falsos comissários (1601-1773)

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Capítulo 5

Gráfico 1 - Rede de familiares da comarca do Rio das Mortes

Fonte: ANTT – Arquivo Nacional da Torre do Tombo, IL (Inquisição de Lisboa), Provisões de nomeação e termos de juramentos, Livros 104-123.

Capítulo 12

Imagem 1 - Página inicial do Banco de Dados.

Fonte: Acervo do Laboratório de Arqueologia da Fafich/UFMG.

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Imagem 2 - “República” Sinagoga (esquerda, assinalada com seta) e Igreja das Mercês de Baixo (direita), em Ouro Preto.

Fonte: Acervo do Laboratório de Arqueologia da Fafich/UFMG.

Imagem 3 - Quintal da “República” Sinagoga (Ouro Preto).

Fonte: Acervo do Laboratório de Arqueologia da Fafich/UFMG.

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Imagem 4 - Igreja Matriz de Paracatu.

Fonte: Acervo do Laboratório de Arqueologia da Fafich/UFMG.

Imagem 5 - Carta Topographica (...) de Cláudio Manuel da Costa – 1766 (detalhe).

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Imagem 6 - Vestígio de edificação da Fazenda Lavrinha.

Fonte: Acervo do Laboratório de Arqueologia da Fafich/UFMG.

Imagem 7 - Vestígio de edificação da Fazenda Lavrinha.

Fonte: Acervo do Laboratório de Arqueologia da Fafich/UFMG.

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Imagem 8 - Vestígios de canal (indicado por seta) e estrada – Fazenda da Chácara.

Fonte: Acervo do Laboratório de Arqueologia da Fafich/UFMG.

Imagem 9 - Vestígio de açude – Fazenda da Chácara.

Fonte: Acervo do Laboratório de Arqueologia da Fafich/UFMG.

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Imagem 10 - Vestígio de antiga cava – Fazenda da Chácara.

Fonte: Acervo do Laboratório de Arqueologia da Fafich/UFMG.

Imagem 11 - Vestígio de mineração – Fazenda da Chácara.

Fonte: Acervo do Laboratório de Arqueologia da Fafich/UFMG.

Page 476: Termo de Mariana Volume III

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Imagem 12 - Carta Topographica (...) de Jozeph Rodriges de Oliveyra – 1731 (detalhe).

Imagem 13 - Carta Geographica da Capitania de Minas Geraes de Caetano Luiz de Miranda – 1804 (detalhe).

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Imagem 14 - Itinerário geográfico (...) (fac-símile) de Tavares de Brito.

Imagem 15 - Itinerário geográfico (...) – referência a Macabello.

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Imagem 16 - Macabello – vestígios da casa-sede (Santana dos Montes).

Fonte: Acervo do Laboratório de Arqueologia da Fafich/UFMG.

Imagem 17 - Macabello – moinho atual sobre ruínas do antigo (Santana dos Montes).

Fonte: Acervo do Laboratório de Arqueologia da Fafich/UFMG.

Page 479: Termo de Mariana Volume III

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Imagem 18 - Macabello – coluna de pedra (Santana dos Montes).

Fonte: Acervo do Laboratório de Arqueologia da Fafich/UFMG.

Imagem 19 - Mapa da região de encontro entre estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo – século XVIII (detalhe).

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Capítulo 18

Quadro I – tipologia de delitos

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Quadro II - por período

Quadro região III – região

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1ª edição: Janeiro, 2013formato: 15,5cm x 22,5cm | 480 p.tipologia: Minion Propapel da capa: Supremo 250 g/m2

papel do miolo: Pólen Soft 80g/m2

Memória Produção Editorialprodutora editorial: Maíra Nassifcapa & projeto gráfico: Ana C. Bahiadiagramação: Raissa P. Baptistarevisão de textos: Erick Ramalho