Terra Indígena Buriti

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Jorge Eremites de Oliveira Levi Marques Pereira TERRA INDÍGENA BURITI: perícia antropológica, arqueológica e histórica sobre uma terra terena na Serra de Maracaju, Mato Grosso do Sul

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TERRA INDÍGENA BURITI:perícia antropológica, arqueológica e histórica sobre uma terraterena na Serra de Maracaju, Mato Grosso do SulAutores: Jorge Eremites de Oliveira e Levi Marques Pereira(UFGD)

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  • Jorge Eremites de OliveiraLevi Marques Pereira

    TERRA INDGENA BURITI:percia antropolgica, arqueolgica e histrica sobre uma terra

    terena na Serra de Maracaju, Mato Grosso do Sul

  • Jorge Eremites de OliveiraLevi Marques Pereira

    TERRA INDGENA BURITI:percia antropolgica, arqueolgica e histrica sobre uma terra

    terena na Serra de Maracaju, Mato Grosso do Sul

    2012

  • Universidade Federal da Grande DouradosCOED:

    Editora UFGDCoordenador Editorial : Edvaldo Cesar Moretti

    Tcnico de apoio: Givaldo Ramos da Silva FilhoRedatora: Raquel Correia de Oliveira

    Programadora Visual: Marise Massen Frainere-mail: [email protected]

    Conselho Editorial - 2009/2010Edvaldo Cesar Moretti | Presidente

    Wedson Desidrio Fernandes | Vice-ReitorPaulo Roberto Cim Queiroz

    Guilherme Augusto BiscaroRita de Cssia Aparecida Pacheco Limberti

    Rozanna Marques MuzziFbio Edir dos Santos Costa

    Impresso: Grfica e Editora De Liz | Vrzea Grande | MT

    Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central - UFGD

    Oliveira, Jorge Eremites de. Terra indgena Buriti : percia antropolgica, arqueolgica e histrica sobre uma terra terena na Serra de Maracaju, Mato Grosso do Sul / Jorge Eremites de Oliveira; Levi Marques Pereira. Dourados : Ed. UFGD, 2012. 320 p.

    Possui referncias. ISBN: 978-85-8147-006-1

    1. ndios Mato Grosso do Sul. 2. Terras indgenas. 3. Direitos ind-genas. I. Oliveira, Jorge Eremites de. II. Ttulo.

    980.4171O48t

  • Para os Terena, em especial para Armando Gabriel (in memoriam), Leonardo Reginaldo, Lcio Sol, Senhorinha (in memoriam) e todos os outros troncos velhos de Buriti.

  • SUMRIO

    CONSIDERAES INICIAIS 09

    PRIMEIRA PARTE: PERCIA ARQUEOLGICA 21

    1. RESPOSTA AOS QUESITOS ARQUEOLGICOS FORMULADOS PELO MINISTRIO PBLICO FEDERAL

    23

    SEGUNDA PARTE: PERCIA ANTROPOLGICA E HISTRICA 123

    2. RESPOSTA AOS QUESITOS ANTROPOLGICOS E HISTRICOS FORMULADOS PELA JUSTIA FEDERAL

    125

    3. RESPOSTA AOS QUESITOS ANTROPOLGICOS E HISTRICOS FORMULADOS PELO MINISTRIO PBLICO FEDERAL

    215

    4. RESPOSTA AOS QUESITOS ANTROPOLGICOS, HISTRICOS E ARQUEOLGICOS FORMULADOS PELA UNIO E FUNAI

    249

    5. RESPOSTA AOS QUESITOS HISTRICOS E JURDICOSFORMULADOS PELOS AUTORES

    269

    CONSIDERAES FINAIS 305

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 307

  • CONSIDERAES INICIAIS

    Este livro a publicao de uma percia judicial, isto , de um laudo tcnico-cientfico encomendado pelo Judicirio, no caso a Justia Federal em Mato Grosso do Sul, produzida em consonncia com o que estabelece a legislao brasileira em vigor1*.

    O objetivo de um estudo pericial auxiliar o magistrado para a compreenso dos fatos e a instruo dos Autos, as peas de um Processo Judicial, com vistas tomada de deciso sobre direitos. Um trabalho assim geralmente feito em atendimento solicitao de uma das partes envol-vidas no litgio, embora possa ser realizado por determinao direta do Juzo. Por este motivo, o resultado de uma percia no pode ser confundi-do com o pronunciamento de uma sentena judicial. Isto porque o perito no um magistrado, seno seu auxiliar, e como tal deve estar atento s particularidades, sutilezas e eventuais armadilhas do mundo jurdico.

    Para a realizao de uma percia, o juiz nomeia um ou mais experts de sua confiana, os profissionais que produziro estudos tcnico-cient-ficos em determinados campos do conhecimento. Esta situao decorre do fato de o magistrado no ser possuidor de todos os saberes produzidos pela humanidade, sequer de todas as matrias do Direito. Logo, quando se fazem necessrios esclarecimentos que requerem saberes tcnicos espe-cializados em certos campos do conhecimento, e que sejam importantes para a formulao de uma sentena, ele nomeia tcnicos ou auxiliares de sua confiana seus peritos.

    1* Ver, por exemplo, Cdigo de Processo Civil, Sees VII e VIII, artigos 420-443.

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    O relatrio final da percia constitui-se em uma prova judicial sobre questes inerentes ao esclarecimento dos fatos relativos a determinado Processo. Para sua realizao e garantia da publicizao e lisura do tra-balho pericial, as partes envolvidas na lide podem indicar seus prprios experts, chamados de assistentes tcnicos. Eles tm a prerrogativa de acom-panhar as diligncias periciais e at mesmo produzir pareceres tcnicos independentes, nos quais podem concordar, discordar ou acrescentar in-formaes ao laudo pericial.

    Normalmente os assistentes tcnicos produzem os chamados con-tralaudos, cujo objetivo maior tem sido o de defender a parte que os con-tratou e/ou os indicou para esta finalidade. Tais profissionais tambm po-dem fazer parte de instituies estatais, a exemplo da FUNAI (Fundao Nacional do ndio), encarregadas de executar procedimentos administra-tivos envolvidos no Processo Judicial. Podem ainda pertencer a rgos fiscalizadores das aes do prprio Estado Nacional, como o MPF (Mi-nistrio Pblico Federal). Por este motivo, os pareceres produzidos pelos assistentes tcnicos consistem em peas arroladas no Processo e tambm tm o propsito de servir de subsdio para a deciso do juiz.

    Nota-se, com efeito, que se o perito um auxiliar do Juzo, por fora da lei e princpios ticos deve agir com imparcialidade, algo que pode ser atingido pelo rigor cientfico impresso durante os trabalhos de campo e na produo do laudo. Acrescenta-se ainda a importncia do estabelecimento de uma relao de respeito e alteridade para com as par-tes envolvidas na lide e os agentes do Judicirio. Os assistentes tcnicos, por outro lado, em tese so parciais porque esto ligados aos interesses das partes. No por menos alguns deles chegam mesmo a lanar mo de expedientes dos mais controversos, e condutas eticamente questionveis, para defender seus clientes.

    Esta crtica no deve ser generalizada a todas as pessoas que atua-ram ou atuam como assistentes tcnicos, tampouco ser interpretada como

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    uma crtica ao direito da ampla defesa e do contraditrio. Dito de outra maneira, estar ligado a uma ou outra parte no deveria ser percebido como uma oportunidade para fazer de certos contralaudos mais um produto a ser comercializado no mercado, independentemente dos prejuzos que possam causar a terceiros.

    Para muitos profissionais que atuam exclusivamente no mundo aca-dmico, distantes, portanto, do campo das disputas jurdicas, a situao de o perito ter que trabalhar com a presena de assistentes tcnicos pode pa-recer estranha e anmala. Na verdade, ele lida com uma situao de tenso entre interesses contraditrios. Por isso tem que atuar com ponderao e equilbrio. Quando necessrio, tambm deve agir com o rigor da autori-dade atribuda posio por ele ocupada, principalmente para assegurar a aplicao dos procedimentos cientficos requeridos para a produo do laudo judicial. Entretanto, essa situao singular est de acordo com os princpios constitucionais do direito da ampla defesa e do contraditrio, condio elementar para a existncia do Estado Democrtico de Direito. Este , alis, um paradigma impresso na Carta Constitucional de 1988, a qual suplantou, de uma vez por todas, o regime de exceo instalado com o golpe militar de 1964.

    Por questes dessa ordem que peritos e assistentes tcnicos so atores sociais cada vez mais presentes em processos judiciais que envolvem a disputa pela terra, sobretudo entre comunidades tradicionais e proprie-trios de imveis rurais (fazendeiros, pequenos produtores rurais, colonos etc.). Esta situao mais recorrente em estados como Mato Grosso do Sul, onde a expanso das chamadas frentes pioneiras se deu mais tardiamente em relao a outras regies do pas.

    Para a realizao de laudos judiciais em contextos marcados por disputas pela posse da terra, as partes envolvidas no litgio e o prprio magistrado costumam apresentar quesitos ou perguntas a serem respon-didas pelos peritos. No caso das partes, os quesitos apresentados tm a

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    ver com estratgias que normalmente direcionam os trabalhos periciais produo de elementos que serviro para subsidiar suas teses de defesa. Em casos assim, cabe aos experts do Juzo responder apenas aos questio-namentos que estiverem dentro de sua rea de formao profissional, em conformidade com a natureza da percia para a qual foram designados. Esta explicao vlida pelo seguinte motivo: s vezes uma e outra parte podem apresentar quesitos jurdicos para serem respondidos pelos peritos, que devem ficar atentos para situaes desta natureza, sob pena de carem em contradio ou emitirem opinio desqualificada sobre assuntos que fogem a sua expertise.

    No caso da presente percia, trata-se de um laudo judicial de na-tureza antropolgica, arqueolgica e histrica. Abrange a rea reivindi-cada por uma comunidade terena para a ampliao de limites da Terra Indgena Buriti, de 2.090 para 17.200 hectares, situada na regio serrana de Maracaju, nos municpios de Sidrolndia e Dois Irmos do Buriti, em Mato Grosso do Sul. A percia foi solicitada ao Juzo pelos proprietrios de imveis rurais atingidos pelo processo de ampliao da referida rea, conforme consta em estudo realizado pela FUNAI. O estudo pericial foi desenvolvido por meio de uma perspectiva interdisciplinar voltada para a concatenao de procedimentos terico-metodolgicos prprios da an-tropologia sociocultural, da arqueologia e da histria.

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    Figura 1: Mato Grosso do Sul com a indicao da Terra Indgena Buriti.

    Em processos judiciais desse tipo, geralmente fazendeiros, peque-nos produtores rurais e at mesmo prefeituras municipais so os autores, aqueles que propuseram a ao em defesa de seus direitos (ou dos direitos de quem representam ou esto a servio). A Unio Federal e a FUNAI, por sua vez, normalmente so as rs, aquelas contra quem foi proposta a ao, haja vista ser competncia da agncia indigenista oficial a identifi-cao e delimitao de terras indgenas no pas. Todos juntos constituem as partes mencionadas em processos judiciais que tramitam na esfera fe-

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    deral. Em contextos assim, quase sempre o MPF tem atuao destacada no cumprimento de um de seus deveres constitucionais, o de defender os direitos dos povos e comunidades tradicionais no Brasil, como o caso dos indgenas.

    Dito isso, cumpre explicar que a organizao dos captulos e partes deste livro segue a lgica dos quesitos apresentados pelo Juzo e pelas partes. Para facilitar a compreenso do laudo, foram adicionadas notas complementares que no constam no texto original. So notas de rodap indicadas com asterisco (*) aps sua numerao (ex.: 3*). Em relao verso entregue Justia Federal, neste livro no constam todas as foto-grafias e documentos anexados ao laudo judicial, e foi feita uma reviso ortogrfica do texto.

    Ainda necessrio esclarecer que o presente laudo pericial se apre-senta mais como um documento produzido em determinado contexto scio--histrico, tal qual compreendem os historiadores, do que uma anlise an-tropolgica de natureza acadmica sobre os dados aqui apresentados. Esta considerao no diminui a relevncia da obra, tampouco impede a for-mulao de anlises crticas a respeito de seu contedo, pelo contrrio2*. Na verdade, a qualidade de um laudo desta natureza no pode ser aferida nica e exclusivamente por critrios acadmicos, mas pela possibilidade de colocar a cincia desenvolvida na academia a servio da Justia. Des-sa forma, contribuir-se- para o esclarecimento de processos histricos e socioculturais que envolvem a garantia de direitos, sobretudo dos direitos territoriais de povos originrios, como o caso dos Terena de Buriti.

    2* Desde 2003, os autores deste livro publicaram diversos trabalhos acadmicos nos quais dialogam com o material da pesquisa proveniente deste laudo judicial. Tambm desenvolveram trabalhos de pesquisa acadmica nas aldeias da Terra Indgena Buriti, para as quais contaram com o apoio de instituies como a FUNDECT (Fundao de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino, Cincia e Tecnologia do Estado de Mato Grosso do Sul) e o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tec-nolgico).

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    No que se refere cronologia dos trabalhos periciais, registra-se que entre os dias 17 e 24 de setembro de 2003, os peritos do Juzo fizeram os encaminhamentos iniciais dos trabalhos: leitura e anlise do Processo e de documentos administrativos nele arrolados. Em 25 de setembro da-quele ano, foi dado incio aos trabalhos de campo com a realizao de uma reunio no Posto Indgena da FUNAI na aldeia Buriti. Na ocasio vrias pessoas estiveram presentes, a saber: os dois peritos da Justia Federal; a assistente tcnica da FUNAI, antroploga Ester Maria de Oliveira Silveira; um assistente tcnico dos Autores, historiador Paulo Roberto Marques Pe-reira3*; a representante do MPF, antroploga Elaine Amorim Carreira; os caciques e demais lideranas e membros da comunidade terena de Buriti.

    De incio houve a apresentao dos peritos, dos assistentes tcnicos e da representante do MPF. Em seguida foi feita a explicao acerca dos objetivos dos trabalhos periciais a serem realizados na rea em litgio, bem como da metodologia a ser aplicada durante as diligncias periciais.

    Na oportunidade, os Terena ali presentes informaram que os traba-lhos periciais seriam acompanhados por uma comisso de indgenas, es-colhida pelos caciques da comunidade, para quem os peritos foram apre-sentados. Na reunio, os indgenas formalmente convidaram os peritos, os assistentes tcnicos das partes e a representante do MPF para perma-necem na Terra Indgena Buriti, onde poderiam ficar instalados nas de-pendncias do Posto Indgena da FUNAI durante os trabalhos de campo.

    3* O assistente tcnico dos autores na rea de antropologia, Hilrio Rosa, no acom-panhou os trabalhos de campo durante as diligncias periciais. Foi substitudo pelo ad-vogado Guilhermo Ramo Salazar, conforme consta nos Autos. Na rea de arqueolo-gia, os autores contaram com o historiador Paulo Roberto Marques Pereira como seu assistente tcnico, quem acompanhou os trabalhos periciais em campo, embora no fosse expert no assunto. Foi seu orientador de mestrado em histria, Gilson Rodolfo Martins, poca presidente da SAB (Sociedade de Arqueologia Brasileira), que elabo-rou e assinou um espcie de contralaudo arqueolgico sobre a percia ora publicada. Seu contedo no consta analisado neste trabalho, pois o documento foi entregue Justia Federal em perodo posterior concluso do presente laudo.

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    Argumentaram que o convite tinha por objetivo dispensar o deslocamento dirio dos tcnicos at a cidade de Sidrolndia, favorecer a aproximao dos profissionais com a comunidade e contribuir para a transparncia dos procedimentos metodolgicos empregados nessa etapa da percia. O con-vite foi formalizado pelos ndios em documento escrito e as falas feitas na reunio foram registradas em fitas cassete, as quais permaneceram na pos-se dos peritos e foram colocadas disposio da Justia Federal quando da entrega do laudo pericial.

    Alm disso, os peritos tambm fizeram trs reunies coletivas com os proprietrios dos imveis rurais localizados na rea objeto da percia, realizadas na sede de uma propriedade por eles escolhida, e uma entre-vista na cidade de Sidrolndia com pessoas por eles indicadas para serem ouvidas. Durante os deslocamentos dos peritos e assistentes tcnicos pela rea periciada, os experts do Juzo foram recebidos por diversos propriet-rios ou seus prepostos, contatos estes que tambm foram de fundamental importncia para a concluso dos estudos periciais. Todas essas atividades foram documentadas em fitas cassete e por meio de fotografias em papel que tambm permaneceram disposio da Justia Federal. poca dos trabalhos de campo, mquinas fotogrficas e gravadores digitais ainda no tinham sido popularizados no pas.

    No total foram cerca de cinco semanas em campo. O restante do tempo foi dedicado organizao do material levantado para a percia, leitura de documentos e da literatura sobre o assunto, e redao das res-postas a todos os quesitos formulados pela Justia Federal, MPF, FUNAI e autores.

    O trabalho conjunto entre antroplogo sociocultural e arquelogo mostrou-se bastante profcuo e salutar para a produo de laudos judiciais deste tipo. Ambos os profissionais trabalharam em equipe, o que incluiu o planejamento meticuloso de todas as etapas das pesquisas de campo, laboratrio e gabinete. Dividiram ainda funes e definiram atribuies de

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    tarefas especficas, sempre com autonomia intelectual e a combinar proce-dimentos metodolgicos complementares, conforme consta na proposta apresentada ao Juzo4*.

    Os peritos ainda procuraram responder a todos os quesitos com objetividade. A resposta dada a algumas perguntas, porm, de carter complementar elaborada para outras. Quando isso ocorre, consta uma explcita recorrncia interna apresentada no laudo. O objetivo desse pro-cedimento foi evitar repeties dos mesmos dados, com o propsito de produzir um texto mais enxuto e objetivo. Em alguns casos, foram reto-mados argumentos j apresentados anteriormente para introduzir novos dados, vistos como necessrios produo da resposta a determinado quesito.

    A respeito dos mtodos e tcnicas empregados na percia, vale res-saltar alguns procedimentos: (1) utilizao de modelos descritivos de acor-do com recentes teorias etnolgicas e arqueolgicas; (2) recursos extrados do mtodo genealgico para a descrio do sistema de parentesco e do modelo de composio dos grupos polticos e suas trajetrias no tempo; (3) mtodo comparativo; (4) mtodos de histria oral e histria de vida, combinados com o mtodo etnogrfico, inclusive para fins do levanta-mento de antigos assentamentos e cemitrios indgenas.

    Um dos principais objetivos da pesquisa antropolgica foi, por meio do registro e anlise da memria histrica dos Terena, averiguar a

    4* Quando intimado pela Justia a produzir um laudo de carter antropolgico, arque-olgico ou histrico, convm ao profissional, caso se julgue capacitado para a tarefa e aceite realiz-la, formalizar ao magistrado e s partes, por meio de uma petio, os procedimentos metodolgicos a serem recorridos durante as diligncias periciais. Dessa maneira, antecipar-se- a eventuais questionamentos e dvidas que podem sur-gir em campo, por parte dos assistentes tcnicos e de outras pessoas envolvidas na lide, no que se refere ao uso de certas tcnicas e mtodos recorrentes nesses campos do conhecimento. Neste sentido, cumpre esclarecer que o primeiro ato formal da percia foi realizado na sede da Justia Federal em Campo Grande, quando os peritos se apresentaram ao juiz e aos assistentes tcnicos. Naquele momento, expuseram ver-balmente a metodologia que j constava acostada aos Autos.

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    ocupao tradicional da rea objeto da percia. A orientao terica dos peritos norteou a estruturao das informaes dentro do enfoque terico por eles adotado. Os assistentes tcnicos das partes tiveram total liberda-de para acompanhar os procedimentos e pedir esclarecimentos durante os trabalhos de campo, bem como para apresentar verses explicativas distintas, orientadas por estratgias de defesa e orientaes terico-me-todolgicas alternativas. Muitos dados etnogrficos e arqueolgicos fo-ram registrados em pesquisa de campo conjunta, durante a qual os peritos entrevistaram as mesmas pessoas e visitaram os mesmos locais, como se pode aferir nas fotos anexas percia.

    Vale ressaltar, contudo, que a sensibilidade para os fatos etnogr-ficos depende diretamente do grau de especializao tcnica do profis-sional, algo que demanda anos de estudos, treinamento sistemtico e formao acadmica especfica. Portanto, diferentemente do que muitos podem pensar, no basta estar l para saber fazer o registro etnogrfico ou compreender o modo de vida dos interlocutores indgenas e, conse-quentemente, suas reivindicaes territoriais. preciso muito mais que isso, visto que a competncia para a realizao de um estudo no grau de complexidade exigida pelo trabalho pericial s pode ser adquirida em anos de formao, normalmente oferecida em cursos de ps-graduao stricto sensu.

    Na condio de peritos da Justia Federal, o especialista em antro-pologia sociocultural e o especialista em arqueologia procuraram orientar seus trabalhos com equidade e transparncia. Ouviram com igual ateno e interesse as manifestaes dos assistentes tcnicos das partes, sobretudo dos autores, prestaram esclarecimentos por eles solicitados e envidaram esforos para combinar todas as atividades de campo a serem desenvolvi-das em conjunto. Na poca, os peritos solicitaram ao Juzo um perodo a ss com a comunidade, o que foi concedido apenas para o antroplogo. No obstante, semanas depois houve uma deciso do Tribunal Regional,

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    ainda no perodo previsto para a realizao da percia, determinando que todos os procedimentos periciais fossem acompanhados pelos assistentes tcnicos das partes. Por esta razo, o perito em antropologia sociocultural teve de retornar rea em litgio e refazer certos procedimentos de campo em companhia dos assistentes tcnicos.

    Com efeito, espera-se que este livro contribua com a reflexo cr-tica sobre a histria das populaes indgenas em Mato Grosso do Sul, assim como para o entendimento das relaes intertnicas estabelecidas com a sociedade nacional ao longo do avano e consolidao das frentes de expanso agrcola e pastoril no estado. Dessa maneira, cumprir com o dever de socializar saberes antropolgicos, arqueolgicos e histricos referentes ao reconhecimento dos direitos territoriais de povos indgenas no Brasil. Pretende-se ainda contribuir para (re)pensar a formao dos profissionais em antropologia sociocultural e em arqueologia no pas, cada vez mais desafiados a atender demandas oriundas da populao nacional. Tais demandas requerem a produo de uma antropologia social e de uma arqueologia extramuros.

    Para muitos profissionais acostumados a conceber a prtica antro-polgica como atividade exclusivamente orientada para fins acadmicos, este movimento poderia representar riscos de superexposio do antrop-logo social, que, envolvido em processos polticos mais sedutores que as atividades restritas academia, acabaria por se afastar desse mundo. Este um alerta vlido, mas com os cuidados necessrios possvel conciliar a produo acadmica com o atendimento dessas demandas.

    Para finalizar estas breves Consideraes Iniciais, registra-se que, a exemplo do que consta no livro ande Ru Marangatu5*, neste aqui a or-dem dos nomes dos autores tambm segue uma ordenao meramente

    5* EREMITES DE OLIVEIRA, J. & PEREIRA, L. M. ande Ru Marangatu: laudo antropolgico e histrico sobre uma terra kaiowa na fronteira do Brasil com o Paraguai, municpio de Antnio Joo, Mato Grosso do Sul. Dourados: Editora UFGD, 2009.

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    alfabtica. Alm disso, em todas as partes constantes no laudo pericial, seja naquelas de natureza mais arqueolgica, seja nas mais relacionadas antropologia social ou histria, tudo foi escrito a quatro mos.

    Jorge Eremites de OliveiraLevi Marques Pereira(Primavera de 2010)

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    PRIMEIRA PARTE

    PERCIA ARQUEOLGICA

  • 1RESPOSTA AOS QUESITOS ARQUEOLGICOS FORMULADOS

    PELO MINISTRIO PBLICO FEDERAL

    1.1. Em que medida dados pr-histricos podem efetivamente afirmar ou negar a existncia de ocupaes humanas contemporneas na rea em

    questo?

    No caso especfico da rea objeto desta percia, deve-se ressaltar que dados sobre a pr-histria local no so de grande utilidade para se poder, efetivamente, afirmar ou negar a existncia de ocupaes humanas contemporneas na rea em questo. Isto porque nenhuma evidncia ma-terial, at ento conhecida, sugere a presena dos Terena na Serra de Ma-racaju em tempos pr-colombianos, tampouco dos antepassados europeus e asiticos dos Autores6*.

    Entretanto, para uma melhor compreenso da resposta acima apre-sentada, faz-se necessria uma breve digresso de carter explicativo sobre o que pr-histria e quais suas implicaes em percias arqueolgicas, para

    6* Evidncias arqueolgicas do perodo pr-colombiano ou pr-histrico em nada contribuem para saber se uma rea ou no terra tradicionalmente ocupada por co-munidade indgena, conforme estabelece o Art. 231, 1, da Constituio Federal de 1988, exceto se possurem um significado de tradicional para os indgenas que a reivindicam em Juzo. Esta questo consta devidamente explicada nos seguintes trabalhos: (1) SANTOS, A. F. M. & PACHECO DE OLIVEIRA, J. (Org.). Reconhe-cimento tnicos em exame: dois estudos sobre os Caxix. Rio de Janeiro, Contra Capa, 2003. (2) EREMITES DE OLIVEIRA, J.. Cultura material e identidade tnica na arqueologia brasileira: um estudo por ocasio da discusso sobre a tradicionalidade da ocupao Kaiow da Terra Indgena Sucuriy. Revista de Arqueologia, So Paulo, 19, p. 29-50, 2007. (3) EREMITES DE OLIVEIRA, J. & PEREIRA, L. M.. ande Ru Marangatu: laudo antropolgico e histrico de uma terra kaiowa na frontei-ra do Brasil com o Paraguai, municpio de Antnio Joo, Mato Grosso do Sul. Dourados: Editora UFGD, 2009.

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    fins de averiguao se uma determinada rea ou no de ocupao tra-dicional indgena, conforme determina a atual Constituio da Repblica Federativa do Brasil, de 1988.

    Nas Amricas, especialistas em arqueologia comumente entendem por pr-histria o perodo que corresponde ao transcurso histrico e so-ciocultural das sociedades indgenas antes dos contatos diretos e indiretos com os conquistadores europeus. A data oficial do incio desses contatos 1492, ano em que o genovs Cristvo Colombo e sua tripulao, a servio do Rei da Espanha, chegaram ao que hoje em dia corresponde Amrica Central. No caso do Brasil, h arquelogos que utilizam como data oficial o ano de 1500, quando o almirante portugus Pedro lvares Cabral e seus comandados desembarcaram no que hoje o litoral do esta-do da Bahia. Dessa forma, tanto 1492, para as Amricas em geral, quanto 1500, para alguns arquelogos brasileiros, so datas usadas como marcos temporais para separar, a partir de uma viso evolucionista sobre o pas-sado da humanidade, a histria da pr-histria. Da compreender o porqu de chamar a pr-histria de perodo pr-colombiano, pr-cabralino, pr--colonial ou pr-contato.

    Por outro lado, na Europa, sia e frica, sobretudo no continente europeu, a pr-histria entendida como o perodo do transcurso das sociedades humanas antes da produo de documentos escritos ou fontes textuais. No Velho Mundo, a produo desses documentos teve incio em momentos diferentes, grosso modo desde uns 8.000 anos atrs at os pri-meiros sculos da Era Crist, embora ainda hoje existam sociedades tidas como grafas em algumas partes da frica e da sia, por exemplo.

    Por conta dessas diferenas, nos Estados Unidos os arquelogos dedicados ao estudo de sociedades indgenas pretritas e contemporneas so tradicionalmente considerados antroplogos. Naquele pas a arque-ologia segue como uma subrea ou especialidade da antropologia geral, embora cada vez mais esta ideia seja questionada do ponto de vista epis-temolgico7*. Na Frana e em outros pases europeus, diferentemente, os

    7* Referimo-nos aqui ao modelo dos quatro campos (four fields) que vigora na antropo-

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    especialistas que estudam a pr-histria so tambm identificados como pr-historiadores. L a arqueologia est mais prxima da histria e geral-mente vista como um campo especfico do conhecimento. Por tudo isso, entende-se aqui que a arqueologia a cincia social dedicada ao estudo das sociedades humanas no tempo e no espao, em seus mltiplos aspectos e perspectivas histricas e socioculturais, a partir, sobretudo, da cultura material por elas produzidas, conforme explicao contida no recente ar-tigo A Arqueologia Brasileira da dcada de 1980 ao incio do sculo XXI: uma avaliao histrica e historiogrfica, de Eremites de Olivei-ra (2002b), um dos peritos do Juzo8*.

    Significa dizer, ento, que a pr-histria americana corresponde unicamente a um grande perodo da presena das sociedades indgenas nas Amricas. Esse perodo compreende, no mnimo, cerca de 12.000 anos se levado em conta algumas avaliaes mais cautelosas, a exemplo das feitas por Andr Prous (1997, 1999), um dos maiores especialistas do assunto no Brasil, autor de O povoamento da Amrica visto do Brasil: uma perspectiva crtica e do Povoamento das Amricas: um debate sem fim. No entanto, o termo pr-histria um tanto quanto ambguo, pois sociedades como a dos Maias desenvolveram complexos sistemas de registro que podem ser considerados, indubitavelmente, como formas particulares de escrita. Os Incas tambm desenvolveram um sofisticado sistema de registro numrico com grupos de cordes e ns, os quipos, uma forma de escrita mnemotcnica.

    Dessa forma, a pr-histria parte integrante de uma histria ind-gena total, vista em seu sentido mais amplo e holstico do ponto do vista espao-temporal. Por isso mesmo, a histria aqui entendida como a

    logia norte-americana constituda sobre a influncia de Franz Boas (1858-1942), quais sejam: Antropologia Social ou Cultural (Sociocultural), Arqueologia, Antropologia F-sica ou Biolgica e Lingustica Antropolgica ou Antropologia Lingustica.8* Este conceito est fortemente influenciado pela definio de arqueologia elaborada por Pedro Paulo Abreu Funari (ver FUNARI, Pedro Paulo A.. Arqueologia. So Paulo: tica, 1988).

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    crnica completa da humanidade desde seus comeos h uns trs milhes de anos, conforme explicaram Collin Renfrew & Paul Bahn (1998, p. 10), dois conceituados arquelogos estadunidenses, autores de uma conhecida obra sobre arqueologia contempornea, traduzida para o espanhol sob o ttulo Arqueologa: teoras, mtodos y prctica. Nesta linha de racio-cnio, a pr-histria das Amricas pode ser vista como a arqueologia das sociedades indgenas, perspectiva contida em diversos estudos, tais como: Pr-histria do Novo Mundo: Arqueologia do ndio Americano (SANDERS & MARINO, 1971); Amrica Pr-histrica (MEGGERS, 1979); An ecological model of the spread of pottery and Agricultu-re into eastern South America (BROCHADO, 1984); Prehistoria de Amrica (FIEDEL, 1996); Pr-histria do Brasil (FUNARI & NO-ELLI, 2002); e muitos outros.

    Dito isso, preciso salientar, luz da legislao atual, que dados pr-histricos, por reportarem ao perodo anterior aos anos de 1492 e 1500, remetem ideia de imemorialidade e no necessariamente de tradiciona-lidade da ocupao indgena, conforme determina a Constituio Federal de 1988, Art. 231, 1:

    So terras tradicionalmente ocupadas pelos ndios as por eles habi-tadas em carter permanente, as utilizadas para suas atividades pro-dutivas, as imprescindveis preservao dos recursos ambientais necessrios a seu bem-estar e as necessrias a sua reproduo fsica e cultural, segundo seus usos, costumes e tradies.

    H, todavia, a possibilidade de haver uma ocupao tradicional e ao mesmo tempo imemorial em uma mesma rea, comprovando empiri-camente a existncia de um continuum da presena de uma sociedade ind-gena em uma mesma regio, desde tempos pr-colombianos at os dias de hoje. Casos assim so pouco comuns, haja vista que desde a chegada dos primeiros conquistadores europeus at seus sucessores euroamericanos, muitas sociedades indgenas sofreram intensos processos de deslocamen-

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    tos territoriais por eles provocados. Deslocamentos de populaes indge-nas aconteciam em menor escala mesmo antes da chegada dos europeus, provocados, por exemplo, por processos expansionistas de determinadas populaes. Este o caso dos Tupi da costa, que no momento da chegada dos portugueses expandiam seus domnios pelo litoral brasileiro, foran-do as populaes indgenas pertencentes ao tronco lingustico Macro-J a procurarem novos stios de residncias no interior.

    Esses deslocamentos correspondem expulso e perda de an-tigos territrios indgenas e so conhecidos na literatura antropolgica como processos de desterritorializao, conforme consta nos Ensaios em antropologia histrica, de Joo Pacheco de Oliveira (1999), um dos mais conhecidos e respeitados antroplogos brasileiros da atualidade, ex-orien-tando de Roberto Cardoso de Oliveira. H muitos estudos sobre o assunto para vrias sociedades indgenas na regio platina, incluindo o atual terri-trio sul-mato-grossense. Este o caso, como est claramente demons-trado em diversas pesquisas realizadas por antroplogos, arquelogos e historiadores, dos deslocamentos territoriais iniciados no perodo colonial e que envolveu sociedades indgenas da famlia lingustica Aruk, aque-las genericamente chamadas de Guan, Chan, Chan-Guan ou Guan--Chan (Guan-Txan), das quais os atuais Terena descendem. Sobre este assunto, Maria Eunice Jardim Schuch, etno-historiadora que levantou e analisou uma vastssima documentao sobre o assunto, especialmente a produzida nos sculos XVI, XVII, XVIII e XIX, assim explicou em seu artigo O ndio enquanto etnia: etno-histria dos Xaray e Chan, um resumo de sua interessante dissertao de mestrado:

    A presena de povos Arawak na regio sul-mato-grossense, espe-cialmente dos Chan-Guan, est ligada a uma srie de fatores e no pode ser analisada sem se levar em conta o processo de con-quista e colonizao, que atingiu os antigos assentamentos destes grupos e seu posterior estabelecimento na margem oriental do rio Paraguai. (SCHUCH, 1995b, p.114)

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    Mas o que pode parecer simples primeira vista, na verdade mais complexo. Em casos de percias judiciais para averiguar se determinada rea ou no de ocupao tradicional indgena, o mais pertinente o peri-to em arqueologia no utilizar unicamente de procedimentos metodolgi-cos da arqueologia pr-histrica, visto que no a imemorialidade que est em questo, mas sim a tradicionalidade. Em casos desse tipo, o expert em arqueologia tambm deve aplicar procedimentos da etnoarqueologia, mo-dalidade de pesquisa arqueolgica ligada ao estudo de sociedades humanas contemporneas. Esta ideia justificada porque o maior sentido da pes-quisa etnoarqueolgica est na investigao das relaes entre sociedades vivas e sua cultura material (contempornea e pretrita), empreendida com o objetivo de aumentar a entendimento acerca do registro arqueolgico.

    Dito de outra forma, a etnoarqueologia estuda aspectos do com-portamento sociocultural contemporneo a partir de uma perspectiva arqueolgica, como disse Carol Kramer (1979, p. 1), uma das mais re-nomadas etnoarquelogas da atualidade e organizadora do livro Ethno-archaeology: implications of ethnography for archaeology, dentre outras obras mais recentes. O princpio maior da etnoarqueologia est na possibilidade da realizao de analogias histricas ou etnogrficas, imple-mentadas principalmente por meio de uma inter-relao entre arqueologia e etnologia, alm de outras reas que desenvolveram tcnicas, mtodos e teorias prprias para a compreenso das sociedades humanas no tem-po e no espao: ecologia humana, geografia, histria, lingustica etc. Da compreender a afinidade inseparvel entre a interpretao arqueolgica e o conhecimento acumulado por meio de observaes etnogrficas, con-forme defendeu Lewis R. Binford (1967, 1973), maior referncia da etno-arqueologia mundial desde a dcada de 1960 e autor dos clssicos ensaios Smudge pits and hide smoking: the use of analogy in archaeological reasoning e Methodological considerations of the archeological use of ethnographic data, dentre muitos outros. Isto significa que um experto

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    em cultura material somente poder recorrer a procedimentos metodol-gicos da etnoarqueologia se, desde antemo, souber observar e registrar etnograficamente sociedades contemporneas.

    Entende-se, com efeito, que a percia arqueolgica judicial, para averiguar se uma rea ou no de ocupao tradicional indgena, deve buscar evidncias materiais a respeito da presena amerndia na regio apontada pela Justia para a realizao das investigaes. Isto no significa que tais evidncias, as provas arqueolgicas, tenham de ser, necessaria-mente, materiais pr-histricos como artefatos lticos lascados e polidos (pontas de projteis, lminas de machado, mos-de-pilo etc.), fragmentos de vasilhas cermicas (panelas, tigelas, urnas funerrias etc.) e tecnologias indgenas similares como artefatos sseos e conchferos. H de se levar em conta, por exemplo, o fato de a maioria das sociedades indgenas ter incor-porado tecnologias disponibilizadas pelas sociedades no-indgenas, com as quais mantm contatos desde o perodo colonial. No caso da sociedade Terena, por exemplo, os contatos iniciais com os europeus e criollos se de-ram na primeira metade do sculo XVI. Alm disso, como amplamente conhecido entre especialistas em antropologia e etno-histria, os Terena constituem uma sociedade aberta exterioridade, quer dizer, aberta para muitas influncias socioculturais advindas de outras sociedades, inclusive de nossa prpria sociedade nacional.

    Se o perito em arqueologia no levar em conta questes como as que aqui foram apontadas e direcionar suas investigaes em busca de evi-dncias pr-histricas, os resultados de sua percia podero no expressar a objetividade dos fatos referentes ocupao tradicional que a Justia espera ser produzida por ele. Por isso importante que a percia arque-olgica seja realizada juntamente com a percia antropolgica e histrica, pois o ideal que o arquelogo desenvolva suas investigaes em parceria com o antroplogo social, em um trabalho de equipe interdisciplinar. Isso, porm, tem de ser feito com autonomia para juntos apresentarem os re-sultados de seus estudos em um nico relatrio.

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    Alm da cultura material stricto sensu, o perito em arqueologia ain-da pode levantar provas sobre a existncia ou no de outras categorias de evidncias sobre a ocupao tradicional indgena em uma dada regio. Seguem dois exemplos dessas outras provas: (1) os ecofatos ou evidncias da ao humana nas paisagens (plantas cultivadas, plantas transplantadas como forma de manejo ambiental, estruturas monticulares do tipo aterro ou mound etc.); e (2) os biofatos ou restos orgnicos e ambientais que no so artefatos, mas indicam atividades humanas pretritas (ossos de ani-mais, restos de plantas, tipos de solos e sedimentos, troncos de antigas rvores com marcas de corte para a coleta de mel de abelhas etc.). Todas essas evidncias tambm fazem parte da reflexo arqueolgica, enquanto apropriao humana da natureza, tal qual afirmou Pedro Paulo A. Funari (1988, p. 10), um dos expoentes da arqueologia brasileira na atualidade e autor do conhecido livro Arqueologia.

    Nas palavras de Dalmo de Abreu Dallari (1994), professor da Fa-culdade de Direito da Universidade de So Paulo (USP), em seu esclarece-dor artigo Argumento antropolgico e linguagem jurdica:

    O perito deve estar consciente de que numa discusso para carac-terizao ou no de uma rea como terra indgena todos os sinais de ocupao devem ser apontados. Muitas vezes torna-se decisiva a comprovao da existncia de restos de construo, de um ce-mitrio aparentemente abandonado, de utenslios domsticos, de ferramentas de trabalho, de instrumentos de caa ou pesca, e at mesmo de certo tipo de vegetao. Esta pode estar ligada aos h-bitos alimentares da comunidade, aos seus enfeites e ao seu artesa-nato. Alm disso, a existncia de caminhos ou de remanescentes de trilhas de perambulao pode ser elemento importante para prova da ocupao. Ligando algum desses elementos s caractersticas de uma comunidade indgena o perito antropolgico pode estar oferecendo elemento preciso para o conhecimento de direitos. (DALLARI, 1994, p.112)

    Da, portanto, a importncia da participao do perito em arqueo-logia em percias do tipo da que aqui est sendo apresentada. ele quem

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    conhece os procedimentos metodolgicos para se fazer o levantamento, a identificao e a anlise das evidncias materiais de grande relevncia ao conhecimento de direitos, conforme consta na citao retro apresentada.

    1.2. Em que medida mudanas nos grupos humanos, nas paisagens, na superfcie e na subsuperfcie interferem nos resultados da pesquisa arque-olgica no sentido de poder objetivamente afirmar ou negar a ocupao

    contempornea do povo Terena na rea pesquisada?

    Mudanas nos grupos humanos, se entendidas como transfor-maes que fazem parte da prpria dinmica sociocultural, no necessa-riamente comprometem o resultado da pesquisa arqueolgica, desde que observada a resposta apresentada ao quesito anterior. Isto porque as socie-dades indgenas produzem e consomem uma cultura material especfica de seu tempo e de acordo com o contexto socio-histrico da poca, inclusive quando em contato com a sociedade nacional. Por outro lado, mudanas nas paisagens, na superfcie e na subsuperfcie dos terrenos, caso sejam resultado de um conjunto de impactos negativos de grande magnitude sobre bens arqueolgicos e sobre o meio ambiente, de certo modo podem interferir no resultado das pesquisas realizadas para a concluso de uma percia arqueolgica. De todo modo, luz da arqueologia moderna, essas interferncias no necessariamente apontam no sentido de ser possvel, objetivamente, afirmar ou negar, por exemplo, a ocupao tradicional dos Terena na rea por eles reivindicada para ampliao dos limites da Terra Indgena Buriti.

    Todavia, preciso registrar amide que, conforme foi possvel constatar in loco, os lugares apontados como sendo antigos assentamen-tos9 de famlias Terena, cemitrios, locais cerimoniais etc., foram pertur-

    9 Em arqueologia, o termo assentamento ou estabelecimento comumente empregado para designar qualquer lugar ocupado por um ou mais indivduos, temporariamente ou no. O assentamento uma unidade arqueolgica, analtica e historicamente sig-nificativa, sobre a qual se realizam as anlises e comparaes das culturas pr-histri-cas [e histricas] e as histrias culturais, segundo definiu Karl C. Chang (1976, p.50),

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    bados por ao antrpica relacionada derrubada da vegetao nativa e preparao do solo para a formao de pastagens para bovinos. Essas perturbaes foram intensificadas a partir da segunda metade do sculo XX, embora tenham sido iniciadas um pouco antes, dependendo da pro-priedade em questo.

    Em casos desse tipo, constatou-se que foram utilizadas mquinas pesadas como tratores de esteira para o nivelamento dos terrenos e gra-des de arado para o preparo do solo onde foram plantadas gramneas, formando assim pastagens para bovinos. Isso tudo causou a destruio parcial ou total de antigas taperas, lugares de cerimnias e festas religiosas, locais de caa, coleta e cultivo, e cemitrios apontados pelos Terena como relacionados ocupao tradicional da rea. Ademais, visto que as anti-gas taperas so stios arqueolgicos, suas camadas culturais, onde estariam preservadas as evidncias materiais da presena humana na regio, foram totalmente perturbadas na grande maioria dos casos averiguados in loco. Em alguns pontos, conforme consta na resposta dada a outros quesitos, parte das evidncias materiais da presena humana na rea foi destruda por funcionrios que trabalhavam ou ainda trabalham em alguns imveis rurais da regio. Essas evidncias eram de grande visibilidade, tais como: esteios e outras partes de antigas taperas; cemitrios cercados com postes de madeira e arame farpado, contendo cruzes de madeira (smbolos cris-tos para locais de sepultamento humano); etc.

    Alm disso, o processo de desmatamento, por ter causado profun-das mudanas nas paisagens locais, tambm destruiu antigas referncias espaciais naturais para os Terena da regio do Buriti. Exemplo: se no pas-sado havia uma grande aroeira (Myracrodruon urudeuva) ou um paratudal rea com grande concentrao de rvores do tipo paratudo (Tebebuia aurea) , verdadeiros marcos naturais para a localizao de antigas mora-

    arquelogo estadunidense autor do livro Nuevas perspectivas en arqueologa, com este ttulo traduzido e publicado em espanhol.

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    dias e cemitrios, bem como para a mobilidade espacial dos Terena, com o desmatamento ficou mais difcil para eles encontrar seus antigos assen-tamentos10.

    Em situaes assim, em campo os indgenas procuraram outros pontos de localizao espacial, como antigas pinguelas (troncos de aroeira que serviam de ponte sobre os crregos), estratgia esta que em muitas situaes foi de grande utilidade e demonstrao do conhecimento que eles possuem sobre a rea objeto da percia. Muitos desses locais tiveram de ser desocupados pelos indgenas h mais de meio sculo. Mesmo assim, como muitos deles posteriormente foram trabalhar nas fazendas de gado da regio, e no raras vezes seguiram fazendo longas excurses para caar e coletar mel, ainda que sem autorizao dos proprietrios, continuaram mantendo um vnculo cultural e uma identidade com essas reas 11. Isso tudo favoreceu a localizao de alguns dos antigos assentamentos e cemi-trios apontados pelos Terena como pertencentes a suas famlias.

    Por isso importante salientar que, apesar de ter sido constatada essa situao, na grande maioria dos casos foi possvel encontrar algu-mas provas materiais da presena dos Terena na rea por eles reivindicada para a ampliao dos limites da Terra Indgena Buriti. Esses locais esto especificados em um quesito mais adiante. Apenas um antigo cemitrio estava preservado; os demais locais estavam bastante perturbados ou fo-ram totalmente destrudos, o que no significa, vale a pena frisar amide, que vestgios arqueolgicos no puderam ser encontrados em alguns dos pontos indicados pelos indgenas.

    Nesses casos, a destruio maior foi das camadas culturais dos s-tios arqueolgicos, ou seja, das camadas correspondentes a momentos da

    10 A identificao do nome cientfico da maioria das espcies florsticas citadas nesta percia foi feita com base no livro Plantas do Pantanal, de Arnildo Pott & Vali J. Pott (1994), pesquisadores da EMBRAPA.11 Por proprietrios entende-se, ao longo desta percia, aquelas pessoas detentoras de ttulos de propriedade(s) na rea objeto desta percia.

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    ocupao humana na regio. Isso tudo a princpio inviabiliza escavaes em superfcies amplas, procedimento no proposto desde o incio da per-cia, haja vista requerer muito mais tempo, pessoal especializado e recursos financeiros para ser concluda em todos os locais levantados em campo.

    1.3. A rea em estudo sofreu alguma ao antrpica?

    Sim. Parte significativa da rea em estudo foi desmatada e em de-corrncia disso sofreu ao antrpica por meio de maquinrios pesados como tratores de esteira e grades de arado, causando impactos negativos e irreversveis de grande magnitude sobre bens arqueolgicos indicados pelos indgenas como estando associados presena deles na regio. Alm disso, essa ao antrpica, feita por trabalhadores das fazendas a servio de proprietrios dos imveis rurais, causaram impactos ambientais ne-gativos de igual ou maior magnitude em lugares apontados como sendo antigas reas de caa, pesca, coleta e cultivo existentes nas adjacncias de velhas taperas, quer dizer, no entorno dos stios arqueolgicos.

    Todas essas aes desconfiguraram boa parte da regio do ponto de vista ambiental, porm no foram suficientes para destrurem por com-pleto evidncias materiais em muitos locais apontados pelos Terena como sendo de ocupao tradicional indgena. Esses antigos locais correspon-dem hoje em dia a stios arqueolgicos.

    A respeito da legislao referente proteo ao patrimnio arque-olgico nacional, vale explicar, com base no texto do recente artigo Le-vantamento arqueolgico na rea diretamente afetada pela Usina Termoeltrica de Corumb, Mato Grosso do Sul, Brasil, de Jorge Ere-mites de Oliveira & Solange B. Caldarelli (2002), que no Brasil os bens arqueolgicos so considerados bens da Unio, conforme determina o Art. XX da Constituio Federal de 1988. Alm disso, so protegidos por lei especfica, a Lei Federal 3.924/61, que obriga seu estudo antes da exe-cuo de qualquer obra que possa vir a danific-los.

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    preciso, portanto, antes da implantao de qualquer tipo de em-preendimento que implique na alterao do uso do solo, verificar se na rea a ser afetada pelas obras h algum stio arqueolgico ainda no conhe-cido e que possa estar correndo risco de dano. Esta orientao tambm est recomendada na Resoluo CONAMA 001/86, Art. 6, C.

    Sobre a legislao internacional, cumpre ressaltar que em novembro de 1968, a UNESCO, ao final de sua Conferncia Geral, realizada em Pa-ris, considerou que os monumentos, testemunhos e vestgios do passado pr-histrico, proto-histrico e histrico esto cada vez mais ameaados pelos trabalhos pblicos ou privados, resultantes do desenvolvimento da indstria e da urbanizao. Alm disso, avaliou que dever dos governos assegurar a proteo e a preservao da herana cultural da humanidade, promovendo o desenvolvimento social e econmico. Por isso, recomen-dou que se adotassem medidas preventivas e corretivas com a finalidade de assegurar a proteo ou o salvamento dos bens culturais ameaados por obras pblicas ou privadas (UNESCO, 1968, Caput e Artigo 8 apud EREMITES DE OLIVEIRA & CALDARELLI, 2002, p. 26).

    No mesmo documento (Art. 22), a UNESCO recomendou que, com a devida antecedncia realizao de obras pblicas ou privadas que ameacem os bens culturais, sejam realizados estudos aprofundados para determinar as medidas a serem tomadas para assegurar a proteo in situ dos bens culturais importantes e a extenso dos trabalhos de salvamento necessrios, tais como: a escolha dos stios arqueolgicos a serem esca-vados, os edifcios a serem trasladados e os bens culturais mveis, cujo salvamento seja necessrio garantir (IPHAN, 1995 apud EREMITES DE OLIVEIRA & CALDARELLI, 2002, p. 27).

    Mais recentemente, na Carta para a Proteo e a Gesto do Patri-mnio Arqueolgico, elaborada por dois rgos da UNESCO, ICOMOS (International Council on Monuments and Sites) e ICAHM (International Council on Archaeological Heritage Management), em Lausanne, no ano

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    de 1990, consta que o patrimnio arqueolgico constitui o testemunho essencial sobre as atividades humanas do passado, caracterizando-se por ser um recurso cultural frgil e no renovvel.

    Portanto, os planos de ocupao do solo, decorrentes de projetos desenvolvimentistas que constituem as maiores ameaas fsicas ao patri-mnio arqueolgico, devem minimizar, ao mximo possvel, sua destrui-o. Segundo a mesma carta, a proteo do patrimnio arqueolgico obrigao moral de todo ser humano e responsabilidade pblica coletiva, sendo dever de todos os pases assegurar que recursos financeiros sufi-cientes estejam disponveis para esta finalidade.

    O Brasil, por sua vez, signatrio de ambos os documentos inter-nacionais acima mencionados, ou seja, a Recomendao de Paris, de 1968, e a Carta de Lausanne, de 1990. Portanto, seja por sua prpria legislao interna, seja pelas cartas internacionais que o Brasil firmou, a proteo e o estudo dos bens materiais remanescentes de nosso passado um com-promisso nacional e seu resgate , por conseguinte, obrigao dos respon-sveis por projetos potencialmente degradadores do patrimnio arqueo-lgico brasileiro.

    Adicionalmente, foi sancionada em 1998, pelo Presidente da Re-pblica, a Lei de Crimes Ambientais Lei Federal 9.605/98, que impe sanes penais e administrativas a condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, sendo que, no Captulo 5, Seo 4, trata especificamente dos crimes contra o patrimnio cultural, nos seguintes termos:

    Art. 62 Destruir, inutilizar ou deteriorar:I bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou de-ciso judicial;...Pena recluso, de 1 a 3 anos, e multa. nico Se o crime for culposo, a pena de 6 meses a 1 ano de deteno, sem prejuzo da multa.Art. 63 Alterar o aspecto ou estrutura de edificao ou local es-pecialmente protegido por lei, ato administrativo ou deciso ju-dicial, em razo de seu valor paisagstico, ecolgico, turstico, ar-

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    tstico, histrico, cultural, religioso, arqueolgico, etnogrfico ou monumental, sem autorizao da autoridade competente ou em desacordo com a concedida:Pena recluso, de 1 a 3 anos, e multa.Art. 64 promover construo em solo no edificvel, ou no seu entorno, assim considerado em razo de seu valor paisagstico, ecolgico, artstico, turstico, histrico, cultural, religioso, arqueo-lgico, etnogrfico ou monumental, sem autorizao da autoridade competente ou em desacordo com a concedida:Pena deteno, de 6 meses a 1 ano, e multa.

    A Lei 9.605/98 foi regulamentada pelo Decreto 3.179/99, pelo qual a destruio de bens especialmente protegidos por lei, com o caso dos stios arqueolgicos, punida com multas que variam de R$ 10.000,00 a R$ 500.000,00, no caso de mera infrao administrativa. Estas multas podero cumular-se com pena aplicada ao infrator em juzo criminal, sem prejuzo de eventual condenao a reparar os danos causados, com base na Lei Federal 6.938/81. Portanto, a responsabilidade civil dada pela Lei 6.938 e a responsabilidade administrativa e penal pela Lei 9.605.

    Contudo, a legislao at aqui discutida no diz respeito a casos especficos em que, comprovadamente, stios arqueolgicos como ce-mitrios, antigas taperas, locais cerimoniais etc., foram intencionalmente perturbados, parcial ou totalmente destrudos, com o ntido objetivo de destruir provas materiais que atestem a ocupao tradicional indgena em determinada rea.

    1.4. Qual a intensidade da ao antrpica nessa rea?

    A intensidade da ao antrpica de grande magnitude, sobretudo a partir da segunda metade do sculo XX. Se feita uma rpida comparao da imagem de satlite que consta nos Autos12, na qual so identificados

    12 Vide Mosaico de localizao de propriedades rurais. rea de entorno da

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    imveis rurais existentes na rea objeto da percia, com as fotografias reas tiradas pelo Exrcito Brasileiro em 1965, existentes no IDATERRA, r-go do Estado de Mato Grosso do Sul, torna-se evidente que a intensidade da ao antrpica na rea est diretamente associada ao desenvolvimento da atividade agropecuria, principalmente a pecuria, na regio13.

    1.5. A ao antrpica na rea em questo pode interferir nos resultados da pesquisa arqueolgica?

    Sim, sobretudo em locais indicados pelos Terena como sendo de antigas moradias de seus antepassados e que foram bastante desconfigu-rados por conta do desmatamento, nivelamento e gradagem dos terrenos, processos realizados por meio do uso de mquinas pesadas para a forma-o de pastagens para bovinos. De todo modo, ainda assim foram encon-tradas evidncias materiais da presena humana na maioria dos lugares in-dicados pelos Terena: antigos cemitrios, locais especiais para cerimnias, assentamentos de seus antepassados e, em certos casos, do estabelecimen-to de alguns dos prprios informantes quando eles ainda eram crianas, h mais de meio sculo.

    A resposta a este quesito ratifica a importncia da percia no ser feita unicamente por um experto em arqueologia, mas tambm com a participao indispensvel do especialista em antropologia social, pois os procedimentos metodolgicos recorridos por esses dois cientistas sociais no so antagnicos; ao contrrio, so, com efeito, complementares.

    Reserva Indgena Buriti. Plotagem sobre Imagem de Satlite LandSat TMS. Campo Grande, Top Sat Meio Ambiente, Geoprocessamento, Topografia. Este documento consta nos Autos.13 Os peritos do Juzo tiraram fotocpias coloridas, em papel brilhante apropriado, de todas as fotografias areas que cobrem os 17.200 hectares da rea reivindicada pelos Terena para ampliao dos limites da Terra Indgena Buriti. Essas fotografias foram examinadas do ponto de vista arqueolgico e luz da aerofotogrametria; uma demonstrao detalhada dos locais investigados in loco pode ser apresentada em audi-ncia na Justia Federal, caso seja necessrio.

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    1.6. Quais so os elementos histricos, incluindo fontes orais, indicativos da presena indgena na rea em questo?

    H fontes textuais ou documentos escritos produzidos desde a se-gunda metade do sculo XIX at a primeira metade do sculo XX, incluin-do alguns estudos realizados por antroplogos e etno-historiadores, que indicam a presena dos Terena na Serra de Maracaju desde a segunda me-tade do sculo XIX, especialmente a partir da guerra entre o Paraguai e a Trplice Aliana (1864-1870). A relao desses trabalhos consta na biblio-grafia arrolada para a realizao desta percia e foi analisada pelos peritos em antropologia e arqueologia (vide Referncias Bibliogrficas).

    No que diz respeito s fontes orais, os peritos do Juzo ouviram os relatos de vrios Terena, alguns deles com mais de 80 anos e referidos nominalmente em diversas partes deste relatrio, inclusive com fotogra-fias em anexo para sua identificao. As informaes relativas ocupao da terra, emergidas nas histrias de vida, foram confrontadas com dados genealgicos e com os locais apontados como sendo de ocupao indge-na, onde muitas vezes foram encontrados vestgios materiais de antigos cemitrios, taperas, pinguelas, monumentos religiosos etc. Todos esses locais apontados foram verificados in loco por meio de prospeco arque-olgica (inspeo visual) para detectar a existncia de stios de alta visibili-dade. Os dados resultados da aplicao combinada desses procedimentos de pesquisa apontam para a tradicionalidade da ocupao da rea objeto da percia, a partir de, pelo menos, a dcada de 1850.

    1.7. Foi possvel localizar antigas taperas, stios rituais, cemitrios, roas, locais de caa, pesca e coleta na rea estudada?

    Sim, conforme resposta dada aos quesitos anteriores e de acordo com outras informaes apresentadas mais adiante.

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    1.8. Caso a afirmativa a resposta pergunta acima, onde se localizam?

    Antes de relacionar e localizar os locais levantados durante a rea-lizao desta percia, faz-se necessrio explicar que em arqueologia stio arqueolgico qualquer lugar onde existem evidncias materiais da pre-sena humana pretrita. Este termo pode ser constatado no Dicionrio de arqueologia, do arquelogo brasileiro Alfredo Mendona de Souza (1997), dentre outras obras mencionadas anteriormente. Partindo desse conceito amplamente conhecido entre especialistas em cultura material, o levantamento de antigos assentamentos, cemitrios, lugares cerimoniais, locais de caa etc., foi concludo a partir da memria dos prprios infor-mantes indgenas, quem em campo indicaram para os peritos e assistentes tcnicos os pontos que deveriam ser registrados e investigados.

    Para tanto, durante os trabalhos de campo, os peritos, os assistentes tcnicos dos Autores e da FUNAI, bem como a representante do Minis-trio Pblico Federal, contaram com o auxlio de uma comisso de repre-sentantes da comunidade Terena local, constituda especialmente para dar apoio s pesquisas antropolgicas e arqueolgicas. Essa comisso foi ini-cialmente formada pelos seguintes indgenas: Percedino Rodrigues (aldeia Buriti), Saturnino Gabriel (aldeia Buriti), Vanderlis Mamed (aldeia Buriti), Carlos Delfino (aldeia gua Azul), Ageu Reginaldo (aldeia gua Azul), Le-onardo Reginaldo (aldeia gua Azul), Manoel Lemes da Silva (aldeia Bu-riti), Baslio Jorge (aldeia Lagoinha), Agenor Honorato Lopes (aldeia La-goinha), Demncio Jorge (aldeia Crrego do Meio), Bencio Jorge (aldeia Crrego do Meio), Vencio Jorge (aldeia Crrego do Meio), Joo Moraes (aldeia Recanto) e Tadeu Reginaldo (aldeia Olho Dgua). No decorrer dos trabalhos, outros indgenas passaram a fazer parte da comisso. Alm disso, os prprios peritos do Juzo foram ouvir pessoas de outras aldeias, como a do Barreirinho, por exemplo, pois perceberam que algumas delas no tinham representantes na referida comisso.

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    Figura 2: Perito em arqueologia entre membros da comisso terena no incio dos trabalhos.

    No desenvolver das pesquisas, os Terena que participaram dos tra-balhos de campo demonstraram coerncia na indicao dos lugares que segundo eles so de ocupao tradicional. s vezes, algumas pessoas mos-traram profunda emoo ao retornarem a antigos assentamentos e locais sagrados que h muito no visitavam. Alguns chegaram mesmo s lgri-mas. Alm disso, durante as idas e vindas a esses lugares, algumas taperas foram avistadas pelos peritos do Juzo, os quais indagaram aos indgenas presentes se aqueles locais correspondiam ou no a antigas habitaes te-rena. Foram informados de pronto que eram antigos acampamentos pro-visrios de no-ndios que trabalhavam ou ainda trabalham nas fazendas, porm de uma poca posterior sada deles da rea. Isso demonstra a importncia da memria social e da informao oral para a percia arque-olgica.

    Esse procedimento metodolgico pode ser considerado como um levantamento oportunstico, conforme denominao mais usual na arqueologia

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    brasileira, tendo sido bastante oportuno e produtivo para a ocasio. Ex-perincias bem sucedidas, tambm utilizando procedimentos tpicos do levantamento oportunstico, constam em trabalhos produzidos e organizados pela arqueloga brasileira Solange B. Caldarelli (1997, 1999), a exemplo das Atas do Simpsio sobre Poltica Nacional do Meio Ambiente e Patrimnio Cultural e do Levantamento arqueolgico em planeja-mento ambiental.

    Mas os peritos do Juzo no se limitaram apenas a receber, de ma-neira no crtica, informaes repassadas pela referida comisso. Isso tudo favoreceu sobremaneira a compreenso do processo de ocupao indgena da rea em estudo, via de regra verificando em profundidade as informa-es repassadas pelos integrantes da comisso que os Terena constituram para dar apoio realizao desta percia. As informaes deles recebidas foram comparadas ou cruzadas com dados contidos em fontes textuais e obtidos por meio de estudos genealgicos e de histrias de vida.

    Por outro lado, em termos de cultura material, tudo o quanto foi registrado em campo foi comparado, na medida do possvel, com o modus vivendi dos indgenas residentes nos 2.090 hectares da atual Terra Indgena Buriti. Este mtodo comparativo foi aplicado por meio de analogias his-tricas diretas e sistemticas, um procedimento mundialmente conhecido em arqueologia, especialmente na subrea da etnoarqueologia.

    Todos os pontos levantados in loco foram devidamente localizados com o auxlio de um aparelho GPS, sigla em ingls do termo Global Position System (Sistema de Posicionamento Global), marca Eagle Explorer, com 12 canais, e devidamente plotados no mapa da rea de estudo elaborado pela Diretoria de Assuntos Fundirios (DAF), da Fundao Nacional do ndio (FUNAI). Esse mapa apresenta ligeiros erros no que diz respeito toponmia local e por esse motivo foi parcialmente corrigido, conforme consta na Figura 3. Alm disso, foi concludo ainda o registro fotogrfico de praticamente todos os lugares investigados, a devida avaliao de seu

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    estado de conservao e eventuais coletas de material cultural, o qual foi limpo, analisado e se encontra salvaguardado no Laboratrio de Arqueo-logia, Etno-histria e Etnologia (LAEE), da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Campus de Dourados, sob a responsabilidade do perito em arqueologia do Juzo14*.

    Atendendo ainda solicitao dos assistentes tcnicos dos Autores, advogado Guilhermo Ramo Salazar e historiador Paulo Roberto Mar-ques Pereira15, que acompanharam a execuo os trabalhos de campo, os peritos tambm ouviram vrios informantes no-ndios, proprietrios ou no, arrolados por eles para contribuir com a realizao da percia.

    Alguns informantes no-ndios, no possuidores de ttulos de im-veis na rea objeto da percia, foram chamados pelos assistentes tcnicos dos Autores para falar sobre os locais apontados pelos Terena como sendo de ocupao tradicional, contradizendo-os quase que sistematicamente. Em grande parte, so pessoas que por anos trabalharam como assalariados em fazendas da regio.

    Contudo, durante as entrevistas ficou evidente que muitos desses informantes demonstraram certo preconceito para com os Terena e deram a entender, no decorrer de suas falas, que tiveram acesso, previamente, a dados registrados em campo. As informaes provavelmente lhes foram repassadas pelos prprios assistentes tcnicos dos Autores, inclusive pelo acesso a fotografias que eles mesmos tiraram na presena dos peritos, as-sistente tcnico da FUNAI e representante do Ministrio Pblico Federal.

    14 * O antigo Campus de Dourados da UFMS corresponde atual UFGD (Universi-dade Federal da Grande Dourados), criada em 2005 e implantada em 2006, e o antigo LAEE corresponde ao atual ETNOLAB (Laboratrio de Arqueologia, Etnologia e Etno-histria), sob a coordenao de um dos autores deste livro.15 O advogado Guilhermo Ramo Salazar esteve como assistente tcnico dos Autores na rea de Antropologia [Sociocultural], enquanto o historiador Paulo Roberto Marques Pereira esteve como assistente tcnico dos Autores na rea de Arqueologia. Ambos, todavia, no so especialistas em Antropologia [Sociocultural] e Arqueologia.

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    De todo modo, as informaes apresentadas durante as entrevistas no foram desprezadas, muito embora, vale registrar, a metodologia recorrida para a realizao da percia no tenha includo acareaes, depoimentos em Juzo ou outros procedimentos alheios s metodologias previamente definidas e comunicadas pelos peritos do Juzo. Ademais, apesar de terem sido registradas e analisadas as informaes orais recolhidas durante as entrevistas com esses informantes no-ndios, deve-se mencionar que ne-nhum deles comprovou ter formao em antropologia social ou em arque-ologia para estarem investidos, pois, de autoridade etnogrfica, indispen-svel para uma segura descrio e anlise etnolgica ou etnoarqueolgica sobre o modus vivendi dos Terena de Buriti: cultura material, organizao social, sistema de parentesco, padro de assentamento, religio, formas de sepultamento etc.

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    Figura 3: rea de estudo com a plotao dos lugares investigados in locopelos peritos.

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    ANTIGA TAPERA DE JOAQUIM TEFILO

    Esse assentamento est localizado nas coordenadas UTM 687289E e 7689555N ou 205310.3S e 551157.6W Gr., com 740 m de altitude, identificado no mapa da Figura 3 sob o nmero 01.

    Trata-se do lugar de moradia, at meados da dcada de 1920, do Terena Joaquim Tefilo, j falecido e com descendentes vivos, que segun-do os informantes indgenas foi o primeiro cacique de todos os Terena da regio do Buriti16*. Esse antigo assentamento est localizado margem do crrego Buriti ou Motowak e prximo ao crrego Cortadinho ou Kaliet-tukoti. No local foi encontrada uma grande rvore ximbuva (Enterolobium contortisiliquum), chamada pelos Terena de vatek, recentemente derrubada por no-ndios. Esta rvore servia como marco de referncia para identifi-car a antiga tapera que at uns anos atrs ainda existia naquela localidade. Nas redondezas tambm havia uma roa, local atualmente coberto por pastagem para bovinos.

    H uma distncia de pouco menos de 100 m do ponto onde havia a tapera de Joaquim Tefilo, foram encontrados dois grandes troncos de aroeira (Myracrodruon urundeuva), cada um com cerca de 7 m de compri-mento e ntidas marcas de terem sido aplainados com machado em um dos lados. Esses troncos funcionavam como pinguela construda pelos indgenas para que eles mesmos pudessem passar sobre o crrego Buriti para a realizao de caa, pesca, coleta, agricultura e visitao a outras famlias estabelecidas na regio. Dali eles alcanavam o crrego do Meio ou Kuukunotowak, chegando at um cemitrio que l ainda estava em uso na poca de Joaquim Tefilo, o cemitrio da aldeia Invernada17. Os dois

    16 * Joaquim Tefilo foi cacique antes mesmo de o Estado Nacional ter reservado pouco mais de 2.090 hectares para os Terena de Buriti, o que lhes causou um processo de territorializao para aquela rea constituda como reserva indgena.17 O conceito de aldeia comumente usado pelos Terena da Terra Indgena Buriti tem

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    troncos de aroeira esto localizados nas coordenadas UTM 687352E e 7689489N ou 205312.4S e 551155.4W Gr.

    O assentamento est na rea correspondente antiga aldeia In-vernada e sobre a antiga pinguela ali encontrada tambm teria passado a Captura. Essa Captura deve ser entendida como uma forma particular dos Terena identificarem foras policiais ou foras que se fizeram passar como tal para, tambm, os expulsarem de muitos de seus antigos locais de mo-radia, aqueles atualmente fora dos atuais 2.090 hectares demarcados como Terra Indgena Buriti.

    Ao menos em tese, a Captura foi uma fora criada para combater os grupos de bandidos ou bandoleiros que havia no centro-sul do antigo Mato Grosso. Um desses bandos, o qual no consta ter passado por Buriti, era o de Silvino Jacques, que por volta de 1935 e 1936 matou um membro da famlia de Alipio dos Santos. Esse episdio teve origem numa desaven-a entre Silvino e um genro de Alipio dos Santos, durante uma carreira (corrida rstica de cavalos), sendo mortos tambm um primo de Silvino e um seu camarada, conforme consta em documentos da poca analisados pelo historiador Valmir Batista Corra (1995, p. 168), autor de Coronis

    o sentido de uma rede dinmica de relaes sociais, histrica e espacialmente definida dentro de um mesmo territrio, geralmente se referindo ideia de lugar ocupado por um ou mais troncos familiares. Muitas vezes, indivduos de um mesmo tronco se referem rea de seus antigos assentamentos como sendo uma aldeia. Na verdade, todos os troncos sempre estiveram inseridos em uma rede de alianas que de fato constitui, a sim, uma aldeia em seu sentido mais sociolgico. Isto porque uma aldeia pressupe autonomia em termos matrimonial, religiosa e poltica, por exemplo, algo que pra-ticamente impossvel de ocorrer dentro de um nico tronco, haja vista o fato dele no existir de maneira isolada em relao aos demais troncos estabelecidos na regio. Do ponto de vista da arqueologia, a rea ocupada por um ou mais troncos familiares, cha-mada de aldeia pelos Terena, assim vista a partir de uma viso mica sobre sua forma de organizao socio-espacial, pode ser interpretada como uma unidade de ocupao, ou seja, o espao ocupado por unidades familiares ligadas por laos de parentesco, aliana e reciprocidade. Cada antiga unidade familiar pode corresponder a um stio arqueol-gico. Mais explicaes sobre a organizao social dos Terena constam na resposta aos quesitos formulados pela Justia Federal.

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    e bandidos em Mato Grosso 1889-1943, trabalho escrito originalmente como tese de doutorado. Apenas a ttulo de informao, registra-se que dessa mesma famlia Santos descende o governador do Estado de Mato Grosso do Sul, Jos Orcrio Miranda dos Santos18*, cujo pai, Orsirio San-tos, foi comandante da Captura em Bela Vista, cidade sul-mato-grossense que faz fronteira com o Paraguai19.

    Na prpria cidade de Aquidauana, prxima da rea objeto da per-cia, foi criada a Delegacia Especial do Sul de Mato Grosso, a sede de uma captura inicialmente formada para combater o bando de Silvino Jacques, conforme consta em Relatrio apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Getlio Vargas Presidente da Republica pelo Bel. Julio Strbling Mller, Interventor Federal de Mato Grosso, 1939-1940:

    Decidido o Estado a por termo quela situao anormal, organizou a Delegacia Especial do Sul, com sede em Aquidauana. Auxiliada por dois grupos de civis contratados e pelo peloto de Cavalaria da Fora Policial, a Delegacia iniciou ao contra Silvino Jacques e seu bando, em abril de 1939. (apud CORRA, 1995, p.170)

    Segundo informaram alguns Terena e vrios proprietrios, na rea objeto da percia passou o bando dos Baianinhos, cuja denominao se originou do apelido do chefe do bando, o tenente comissionado do exr-cito, Otaclio Batista (chamado de Baianinho) (CORRA, 1995, p. 172). Esse grupo de bandoleiros foi combatido em 1941 por uma captura coman-dada por Rodrigo Peixoto, que eliminou o Baianinho em Camapu. Na

    18* Jos Orcrio Miranda dos Santos, nascido na cidade sul-mato-grossense de Porto Murtinho, no ano de 1950, conhecido como Zeca do PT, governou o estado de Mato Grosso do Sul por dois mandados consecutivos, de 1999 a 2007.19 Sobre os feitos do bando de Silvino Jacques, h um trabalho memorialista, o livro Silvino Jacques, o ltimo dos bandoleiros, o mito gacho sul-mato-grossense, do escritor Brgido Ibanhes. Trata-se de uma obra de valor literrio e, com todo trabalho memorialista, de menor valor cientfico e historiogrfico se comparado, por exemplo, com o livro do historiador Valmir Batista Corra (1995).

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    rea objeto da percia e adjacncias, os Baianinhos alarmaram os Terena e, tambm, alguns no-ndios que em fins da dcada de 1930 e meados da dcada de 1940 comeavam a formar fazendas de gado na regio.

    Ainda segundo Valmir Batista Corra, naquela poca o Departa-mento Estadual de Imprensa e Propaganda (DEIP), rgo oficial a servio da ditadura do Estado Novo, de Getlio Vargas, teve a seguinte atuao em relao ao banditismo endmico no antigo Mato Grosso:

    O DEIP atuou no sentido de acobertar ao mximo a situao de insegurana e o banditismo comum na regio sul, como uma for-ma de demonstrao de fora da ditadura e dentro do esprito de manuteno da ordem e da segurana a qualquer custo (CORRA, 1995, p.174),

    Tudo leva a crer, portanto, que foi a Captura da Delegacia Especial do Sul, com sede em Aquidauana, que realmente participou do processo de expulso dos Terena, como alis comprovam vrios documentos anali-sados por Walter Coutinho Jr. (2000) e Gilberto Azanha (2001), anexados aos Autos. No caso em discusso, alm de combater o banditismo, a Cap-tura tambm teria servido para outras finalidades, inclusive para a expul-so dos Terena de reas tradicionalmente ocupadas por eles. O contexto socio-histrico da poca era propcio para aes desse tipo, pois, segundo tese bastante conhecida na historiografia local, por muito tempo a regio de Mato Grosso foi caracterizada como terra de bandidos, de violncia e de povo armado, nas palavras do citado historiador (CORRA, 1995, p. 174).

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    Figura 4: Terena Baslio Jorge em p sobre um dos troncos da pinguela que havia sobre o crrego Buriti na poca em que Joaquim Tefilo vivia no local.

    Figura 5: Homens terena juntos ao tronco de ximbuva que servia de marco para a localizao da antiga tapera de Joaquim Tefilo.

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    ANTIGO CEMITRIO DA ALDEIA INVERNADA

    Esse antigo cemitrio dos Terena da Terra Indgena Buriti est lo-calizado nas coordenadas UTM 686331E e 7688170N ou 205355.6S e 551230.2W Gr., com 703 m de altitude, identificado no mapa da Figura 3 sob o nmero 02.

    Trata-se do antigo cemitrio da aldeia Invernada, onde vrios ind-genas foram sepultados, muitos dos quais vitimados pela epidemia de febre amarela que ocorreu na regio na dcada de 1920. Esse evento epidmico est mencionado em documentos da poca produzidos por funcionrios do SPI, conforme explicado na resposta aos quesitos formulados pela Jus-tia Federal. O cemitrio deve ter sido inaugurado pela primeira vez na segunda metade do sculo XIX.

    No lugar foram encontradas cinco sepulturas humanas ainda com antigas cruzes de madeira. Sobre um tmulo havia uma panela esmaltada, uma p sem o cabo de madeira e um pedao de corda; sobre outro havia uma tampa de marmita de alumnio. Nesses dois casos, os artefatos en-contrados sobre as sepulturas podem ter sido ali colocados por no-ndios depois que os Terena foram proibidos de sepultarem seus parentes no lugar. Esta questo tambm est registrada em documentos do SPI, cuja referncia igualmente consta na resposta aos quesitos formulados pela Justia Federal.

    No referido cemitrio ainda foi possvel encontrar a cruz mestra tambm citada como cruz mestre ou cruz do mestre , uma grande cruz de aroeira que os Terena usam como o marco principal de seus cemitrios. No lugar dessa cruz eles frequentemente rezavam e faziam promessas. Em todos os cemitrios dos Terena na regio havia uma cruz mestra. Trata--se de uma tradio crist de longa data se levado em conta o processo evangelizao pelo qual os Terena passaram desde tempos coloniais. No sculo XIX, por exemplo, muitos deles receberam ensinamentos cristos

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    em misses capuchinhas, onde foram encontradas cruzes desse tipo, tam-bm feitas de aroeira e com mais de 100 anos de idade, segundo consta nos estudos elaborados pelos arquelogos Jos Luis dos S. Peixoto & Pe-dro Igncio Schmitz (1998), autores de A Misso de Nossa Senhora do Bom Conselho, Pantanal, Mato Grosso do Sul, e pela etno-historiadora Maria Eunice J. Schuch (1998), autora de Misses Capuchinhas entre os Guan Sul-matogrossenses.

    Em cemitrios dos Terena observados in loco, o padro de sepulta-mento igual ao da sociedade nacional: sepultamento em urnas funer-rias de madeira, quando foi possvel constru-las, na posio de decbito dorsal e a sete palmos de profundidade. Sobre a sepultura colocam uma cruz de madeira: se criana a cruz pequena, se adulto a cruz maior. Dos indivduos que foram sepultados nesse cemitrio da aldeia Inverna-da, segue relao de alguns deles: Joo Jorge (tambm conhecido como Joo Chalana), Agostinho Jorge, Geraldo Jorge, Deolinda Jorge, Benedito Reginaldo20, Joo Delfino e Ramona Jorge. So nomes que aparecem nos estudos genealgicos elaborados para a presente percia e que constam na resposta aos quesitos formulados pela Justia Federal.

    Na poca da epidemia de febre amarela, em uma nica sepultura os Terena chegaram a enterrar mais de um indivduo sem o corpo estar em urna funerria de madeira, haja vista a rapidez com que muitos indgenas foram vitimados pela doena e o curto tempo disponvel para fazerem vrias sepulturas. Muitos dos corpos dos parentes mortos foram apenas enrolados em um lenol branco.

    20 Benedito Reginaldo o pai de Leonardo Reginaldo. Ele foi o primeiro cacique da aldeia gua Azul e um dos primeiros Terena da regio a ser convertido ao protestan-tismo. O prprio Roberto Cardoso de Oliveira traz referncias sobre ele em dois de seus livros, os quais j foram citados anteriormente (vide CARDOSO DE OLIVEI-RA, 1976, 2002). Leonardo Reginaldo, por sua vez, foi cacique da aldeia gua Azul, de 1966 a 1989, e acompanhou parte dos trabalhos de campo para a realizao desta percia.

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    Apesar de o cemitrio ter sido cercado com postes de madeira e arame farpado, grande parte dele foi destruda por no-ndios usando um trator de esteira, os quais, segundo os Terena, seriam funcionrios do pro-prietrio Geraldo Corra da Silva.

    Figura 6: Planta baixa do cemitrio da antiga aldeia Invernada com indicao das cin-co cruzes indicadoras de sepultamentos humanos, sendo que a maior cruz mestra).

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    Figura 7: Perito em antropologia social, assistentes tcnicos dos Autores e da FUNAI, representante do Ministrio Pblico Federal, chefe do posto indgena e

    comisso terena em conversa no cemitrio da antiga aldeia Invernada.

    Figuras 8 e 9: Cruzes de ferro (esquerda) e de madeira (direita) encontradas no cemi-

    trio da antiga aldeia Invernada.

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    CRUZEIRO, SANTA CRUZ OU PEAXOTI

    Esse stio cerimonial est localizado nas coordenadas UTM 685238E e 7684519N ou 205554.7S e 551306.6W Gr., com 727 m de altitude, identificado no mapa da Figura 3 sob o nmero 03.

    Trata-se de um grande cruzeiro de aroeira construdo pelos ind-genas. A madeira provavelmente foi cortada por meio de um traador ou outro tipo de serra manual, talvez do tipo sucuri, assim conhecida regio-nalmente21. Os indgenas chamam esse cruzeiro de Peaxoti. um lugar sagrado da regio conhecida como Paratudal, uma das reas mais antigas ocupadas pelos Terena desde a segunda metade do sculo XIX. O lugar chamado de aldeia Paratudal porque no passado ali existia uma grande concentrao de rvores da espcie paratudo (Tabebuia sp.), muito usada pelos indgenas para fins medicinais.

    O cruzeiro era uma referncia espacial como local para a realizao de rituais e festas religiosas. Da a denominao do lugar de aldeia, pois na verdade na rea existiam vrios troncos familiares relacionados por laos matrimoniais e alianas polticas, sendo que muitos deles estavam estabe-lecidos em furnas da regio compreendida pelo curso do crrego Buriti e seus afluentes.

    21 Traador um termo local para uma serra manual utilizada para cortar troncos de madeira na posio vertical. Havia ainda outro tipo de serra manual para produzir tbuas, vigas, esteios, dormentes etc. Esta outra serra funcionava em um buraco re-tangular escavado no solo, com cerca de 4 x 1,5m de largura e 2m de profundidade, sobre o qual havia um estrado de madeira rente ao cho que servia como uma espcie de tampa; em cima desse estrado era colocado o tronco de madeira a ser processado. Um indivduo ficava dentro do buraco e outro do lado de fora; ambos trabalhavam sincronizados com uma serra vertical de apenas um lado cortante e com um cabo de madeira em suas duas extremidades. Atualmente o traador e essa outra serra manual so tecnologias cada vez mais em desuso entre os Terena. Os peritos observaram uma dessas serras manuais na aldeia Lagoinha. No passado, especialmente nas primeiras dcadas do sculo XX, a regio do Buriti foi uma importante rea fornecedora de dor-mentes de aroeira para a construo da estrada de ferro Noroeste do Brasil (NOB); naquela poca essas tecnologias hoje rudimentares eram bastante populares.

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    Talvez o cruzeiro tenha permanecido preservado basicamente por se tratar de um smbolo cristo. Do contrrio, qui tivesse sido destrudo h dcadas atrs22.

    O cruzeiro encontrado era e segue sendo um local sagrado para todos os Terena das redondezas, de diversos troncos familiares, os quais ali vinham pagar promessas, fazer penitncias e participar de festas religiosas. Quem construiu o cruzeiro foi Antnio da Silva Justino, conhecido como Antnio Farinheiro, falecido por volta de 1944, com uns 90 anos de idade. Ele nasceu na regio em fins da dcada de 1850, s margens do crrego da Veada ou Sentiip23; pai de Ambrsio da Silva Justino e av paterno de Vicente da Silva Jorge, 74, de acordo com os estudos genealgicos rea-lizados pelos peritos. Outrossim, na margem oposta do crrego da Veada havia a roa de Antnio Farinheiro e sua famlia, atualmente coberta por pastagem para bovinos.

    22 Um informante arrolado pelos assistentes tcnicos dos Autores, por nome Jos Bernardes, de 66 anos, disse em entrevista que esse cruzeiro teria sido construdo em 1972, por um parente seu, conhecido como Nen Chca, na poca funcionrio do pro-prietrio Geraldo Corra da Silva, quem segundo ele teria mandado construir aquele cruzeiro. No entanto, visto a partir da anlise do contexto arqueolgico de toda aquela rea, levando em considerao ainda os estudos genealgicos e as histrias de vida dos Terena de Buriti, esta informao no pertinente, pois a rea apresenta elementos de uma ocupao indgena bem mais antiga, conforme explicitado nesta percia.23 Este assentamento e muitos outros situados nas adjacncias esto prximos da linha das Correntes, indcio de que no passado havia famlias ocupando o curso dos crregos da Veada, Estrela e Cortado, dentre outros citados pelos Terena, como o Ca-fezal, para alm dessa linha que vem servindo como uma espcie de fronteira artificial para separar os Terena da antiga fazenda das Correntes. Esta avaliao tambm feita pelos Terena e se apresenta mais visvel a partir da observao do mapa da Figura 3, especificamente dos locais levantados e citados sob os nmeros 02, 03, 04, 05, 06, 23 e 24.

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    Figura 10: Cruzeiro da rea da antiga aldeia Paratudal.

    ANTIGA TAPERA DE ANTNIO DA SILVA JUSTINO

    Esse antigo assentamento est localizado nas coordenadas UTM 685251E e 7684436N ou 205557.5S e 551306.1W Gr., com 735 m de altitude, identificado no mapa da Figura 3 tambm sob o nmero 03 devido proximidade com o ponto anterior, o do Cruzeiro. Este lugar faz parte de uma mesma unidade de ocupao, isto , de uma rea ocupada por um mesmo tronco familiar, o dos antepassados de Vicente da Silva Jor-ge.

    Trata-se do antigo local de moradia do Terena Antnio da Silva Jus-tino, o Antnio Farinheiro, falecido na primeira metade do sculo XX, de-

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    pois de ter sido expulso da rea. O stio foi totalmente destrudo por conta de ao antrpica no-indgena: derrubada da vegetao nativa e ao de mquinas pesadas para transformar a rea em pastagem para bovinos.

    Os peritos encontraram in loco apenas um provvel esteio de aroeira e seguramente um antigo local de trnsito dos indgenas, conhecido como Estrada Velha.

    A Estrada Velha est caracterizada por uma depresso do terreno, com cerca de 3 m de largura e 30 cm de profundidade, em mdia, acompa-nhando a margem esquerda do crrego da Veada. Por essa estrada os in-dgenas passavam a cavalo, a p e mesmo com eventuais carretas puxadas por bois, meios de transporte por eles conhecidos desde tempos coloniais e at mesmo registrados pelo principal cronista da poca da guerra entre o Paraguai e Trplice Aliana (1864-1870), o Visconde de Taunay.

    Na dcada de 1860, apenas para exemplificar, os Terena j usavam uma engenhoca prpria para moer cana-de-acar, segundo consta no livro Entre nossos ndios Chans, Terenas, Kinikinaus, Guans, Laianas, Guats, Guaycurs, Caingangs, escrito por Alfredo dEscragnolle Tau-nay (1940), o Visconde de Taunay.

    Parte da Estrada Velha observada in loco segue por mais de 200 m, desde uma espcie de nascente que leva gua para o crrego da Veada, lo-calizada nas coordenadas UTM 685151E e 7684370N ou 205559.6S e 551309.6W Gr., com 726 m de altitude, rumo 260 (azimute), por onde sobe gradativamente uns 2 m de altura, e segue por uns 100 m at o ponto localizado nas coordenadas UTM 685236E e 7684405N ou 205558.5S e 551306.7W Gr., com 728 m de altitude. Deste ponto, a Estrada Velha segue rumo 245 (azimute) at outro ponto mais elevado e no muito dis-tante (UTM 685302E e 7684453N ou 205556.9S e 551304.4W Gr., com 731 m de altitude), igualmente acompanhando o crrego da Veada.

    Depois que os Terena tiveram de deixar a regio, a Estrada Velha ainda continuou sendo usada, sobretudo por no-ndios, at ser totalmen-te abandonada.

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    O local da antiga tapera de Antnio da Silva Justino est a cerca de 200 m de distncia do stio cerimonial Cruzeiro e se encontra totalmente coberto por gramneas plantadas para a formao de pastagem para bo-vinos.

    Figura 11: Vicente da Silva Jorge segurando um tronco de aroeira encontrado nas proximidades da tapera onde morou com seus pais at a dcada de 1930, localizada

    ao lado da Estrada Velha.

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    Figura 12: rea onde foi encontrada a antiga Estrada Velha. A seta indica o rumo da estrada que acompanha o crrego da Veada.

    ANTIGA TAPERA DE AUSTRILHO DA SILVA JUSTINO

    Esse antigo assentamento est localizado nas coordenadas UTM 685332E e 7684395N ou 205558.7S e 551303.3W Gr., com 730 m de altitude, igualmente identificado no mapa da Figura 3 sob o nmero 03, pois, como dito antes, a escala do mapa confeccionado pela FUNAI muito grande para indic-lo com outro nmero.

    Trata-se de antigo local de moradia, desde a segunda metade do sculo XIX at a dcada de 1930, do indgena Austrilho da Silva Justino, j falecido, tio paterno de Vicente da Silva Jorge, conforme genealogia feita por este. Todos esses parentes moravam em um mesmo lugar, distando at uns 50 m uma residncia das outras.

    O stio arqueolgico est parcialmente preservado. No local foram encontrados esteios perifricos de aroeira da antiga tapera, estando trs

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    deles ainda fincados no cho, correspondendo aos esteios perifricos late-rais que indubitavelmente so de uma casa tradicional terena. Nas proxi-midades dessa antiga residncia, tambm margem esquerda do crrego da Veada, os peritos encontraram a antiga farinheira de Antnio da Silva Justino, o Antnio Farinheiro, pai de Austrilho da Silva Justino e av paterno de Vicente da Silva Jorge, quem, por sua vez, tambm nasceu na regio abrangida pelo crrego da Veada, na dcada de 1930, e teve de deix-la no mesmo decnio, quando ainda era uma criana de uns 8 anos. Atualmente ele vive na aldeia Crrego do Meio.

    As evidncias materiais encontradas no local da farinheira24 so as seguintes: tijolos macios queimados do forno da farinheira, esteios perif-ricos, uma prensa de madeira e a prpria estrutura de aroeira da farinheira.

    Em fins da dcada de 1930, todos os parentes de Vicente Jorge da Silva foram expulsos da rea pela Captura. Eles tiveram apenas 24 horas para deixar o lugar, como foi possvel apurar por meio de entrevistas e atravs de documentos da poca do SPI, mencionados na resposta aos quesitos apresentados pela Justia Federal. possvel que aps terem sido expulsos de suas residncias, o local foi esporadicamente ou no ocupado por no-ndios que trabalhavam naquele imvel rural, a partir de meados da dcada de 1940. Toda esta rea aparece na fotografia area de nmero 51478, tirada em 05 de agosto de 1965 pelo Exrcito Brasileiro.

    Antnio da Silva Justino muitssimo conhecido como Antnio Fa-rinheiro entre os Terena mais idosos com quem os peritos puderam con-versar, os quais periodicamente o visitavam em tempos de festas religiosas realizadas no lugar do atual stio cerimonial Cruzeiro. Na poca, ele plan-tava duas espcies de mandioca: a mandioca brava ou ypohokaoti xup ou swayti xup (Manihot sp.), usada basicamente para a produo de farinha

    24 A farinheira est localizada nas seguintes coordenadas: UTM 685310E e 7684359N ou 205600.0S e 551304.7W Gr., com 736 m de altitude.

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    destinada ao consumo prprio; e a mandioca mansa ou exoti xup (Manihot sp.), tambm destinada ao consumo prprio, mas geralmente cozida. Sua roa ficava na outra margem do crrego da Veada, cerca de uns 100 m do local da farinheira.

    Hoje em dia, entretanto, os Terena plantam quase que exclusiva-m