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1391 TERRAS DE USO COMUM E DE USO COLETIVO COMO PRÁTICAS DE RESISTÊNCIA DO CAMPESINATO NA ATUALIDADE * KUDLAVICZ, Mieceslau ** Introdução Com este artigo objetivamos discutir as diferentes formas de uso comum da terra, tomando como recorte temporal o último quarto do século XIX até os dias atuais. Identificar os elementos de resistência entre os camponeses brasileiros à ideologia capitalista do direito privado à terra. Pretendo também a partir de minha atuação enquanto agente da Comissão Pastoral da Terra no estado de Mato Grosso do Sul, identificar práticas de uso comum da terra entre os camponeses do Estado de Mato Grosso do Sul, que existiram e/ou que ainda existem paradoxalmente aos avanços tecnológicos da agricultura capitalista (agronegócio), onde a terra é vista como uma mercadoria de valor cada vez mais cobiçada para ser apropriada privadamente pelos capitalistas. Para melhor compreender estas práticas de utilização da terra dialogaremos com os teóricos marxistas e anarquistas, como Kautsky, Lênin e Kropotkin que se debruçaram sobre a questão agrária e camponesa para pensar a transformação da realidade social do seu tempo na direção do socialismo. É sabido que os camponeses sempre criaram uma série de dificuldades para uma grande parte dos pensadores marxistas pelo fato de não conseguirem entender a complexidade na sua totalidade do que foi, era, e é o mundo camponês. Pois muitas vezes enquanto classe age de forma contraditória, porque ao mesmo que é dona dos meios de produção (a terra) é dona da sua força de trabalho (a família). As propostas do comunismo anarquista de Kropotkin e/ou do coletivismo de Lenin e Stalin não conseguem convencer o conjunto dos camponeses a aceitarem tais projetos como possibilidade de realização de vida da família camponesa. Por outro lado esta classe camponesa cruza o século XX resistindo e lutando por um pedaço de terra para nela trabalhar e viver com dignidade, colocando por terra uma série de previsões feitas por teóricos, seja da direita como da esquerda, de que o campesinato estava condenado ao desaparecimento. A partir daí pretendemos apontar as diferentes formas de terras de uso comum como elementos constitutivos da reprodução camponesa no mundo e particularmente no Brasil, durante o século XX. Perceber como as terras de uso comum são brechas que a classe * Este trabalho é parte do processo avaliativo da disciplina “ Campesinato, Anarquismo e Agricultura”, ministrada pela professora Valéria de Marcos, durante o programa de pós-graduação em Geografia, nível de mestrado, oferecido pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Três Lagoas. ** Mestrando em Geografia, UFMS/CPTL Bolsista da CAPES. [email protected] .

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TERRAS DE USO COMUM E DE USO COLETIVO COMO PRÁTICAS DE

RESISTÊNCIA DO CAMPESINATO NA ATUALIDADE*

KUDLAVICZ, Mieceslau**

Introdução

Com este artigo objetivamos discutir as diferentes formas de uso comum da terra,

tomando como recorte temporal o último quarto do século XIX até os dias atuais. Identificar

os elementos de resistência entre os camponeses brasileiros à ideologia capitalista do direito

privado à terra. Pretendo também a partir de minha atuação enquanto agente da Comissão

Pastoral da Terra no estado de Mato Grosso do Sul, identificar práticas de uso comum da terra

entre os camponeses do Estado de Mato Grosso do Sul, que existiram e/ou que ainda existem

paradoxalmente aos avanços tecnológicos da agricultura capitalista (agronegócio), onde a

terra é vista como uma mercadoria de valor cada vez mais cobiçada para ser apropriada

privadamente pelos capitalistas.

Para melhor compreender estas práticas de utilização da terra dialogaremos com

os teóricos marxistas e anarquistas, como Kautsky, Lênin e Kropotkin que se debruçaram

sobre a questão agrária e camponesa para pensar a transformação da realidade social do seu

tempo na direção do socialismo. É sabido que os camponeses sempre criaram uma série de

dificuldades para uma grande parte dos pensadores marxistas pelo fato de não conseguirem

entender a complexidade na sua totalidade do que foi, era, e é o mundo camponês. Pois

muitas vezes enquanto classe age de forma contraditória, porque ao mesmo que é dona dos

meios de produção (a terra) é dona da sua força de trabalho (a família). As propostas do

comunismo anarquista de Kropotkin e/ou do coletivismo de Lenin e Stalin não conseguem

convencer o conjunto dos camponeses a aceitarem tais projetos como possibilidade de

realização de vida da família camponesa. Por outro lado esta classe camponesa cruza o século

XX resistindo e lutando por um pedaço de terra para nela trabalhar e viver com dignidade,

colocando por terra uma série de previsões feitas por teóricos, seja da direita como da

esquerda, de que o campesinato estava condenado ao desaparecimento.

A partir daí pretendemos apontar as diferentes formas de terras de uso comum

como elementos constitutivos da reprodução camponesa no mundo e particularmente no

Brasil, durante o século XX. Perceber como as terras de uso comum são brechas que a classe

* Este trabalho é parte do processo avaliativo da disciplina “ Campesinato, Anarquismo e Agricultura”,

ministrada pela professora Valéria de Marcos, durante o programa de pós-graduação em Geografia, nível de

mestrado, oferecido pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Três Lagoas. **

Mestrando em Geografia, UFMS/CPTL Bolsista da CAPES. [email protected] .

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camponesa vislumbra em relação à utilização da terra, fora dos paradigmas ortodoxos do

capitalismo de domínio e posse da terra. È importante destacarmos aqui que já existem

excelentes trabalhos realizados sobre este tema, como as contribuições das pesquisas

realizadas por NAZARENO (2000), durante sua tese de doutorado sob o tema “Terras de Uso

Comum no Brasil”. O trabalho da professora Valéria de MARCOS (1996) durante a sua

pesquisa de mestrado intitulada “Comunidade Sinsei. (U)topia e Territorialidade” e a tese de

doutorado de TAVARES (2008) sob o título “Campesinato e os faxinais do Paraná: as terras

de uso comum”, para citar apenas alguns dos trabalhos sobre o tema e que servirão de bases

teóricas que fundamentam a discussão que fazemos neste trabalho sobre terras de uso comum.

Por isso tendo como base os estudos destes pesquisadores acima mencionados, buscaremos

identificar e relacionar formas de uso comum da terra muito praticadas entre os camponeses

no Estado de Mato Grosso do Sul e possivelmente em âmbito de Brasil.

Por outro lado pretendemos também nos referir, mesmo que muito brevemente, a

uma proposta de Reforma Agrária de modelo semicoletivista executada pelo Incra (Instituto

Nacional de Colonização e Reforma Agrária) no Estado de Mato Grosso do Sul como um

exemplo de diferenciação de terras de uso comum e terras de uso coletivista. Esta proposta

enfrentou uma enorme resistência por parte dos camponeses sulmatogrossenses ao projeto de

assentamento que ficou conhecido como “sócio proprietário”, realizado na gestão do

superintendente Luis Carlos Bonelli, como um modelo de reforma agrária que efetivaria a

permanência do campesinato no campo e evitaria as vendas de lotes pelos beneficiários. Este

sistema coletivista de uso da terra nos remete às experiências históricas, como a do período

revolucionário russo e cubano, que enfrentaram fortíssimas resistências do campesinato destes

países.

Usofruto dos Recursos Naturais como Necessidade Vital do Ser Humano.

A título de introdução para a nossa discussão partimos do pressuposto de que os

homens sempre fizeram uso dos recursos naturais para garantir a sua existência e sua

reprodução social independentemente das formas de uso (coletivo, comunitário ou individual)

da terra ou da questão de propriedade: posse, domínio, público ou privada (CAMPOS, 2000).

Nos primórdios a humanidade viveu da coleta de frutos e da caça de animais para se

alimentar.

Entendemos que a natureza é um bem de toda a humanidade. Os homens

dependem da natureza para satisfazer suas necessidades vitais: alimentar-se, vestir-se, abrigar-

se. Na medida em que a organização social se complexifica, também se torna mais complexa

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a formação sócio espacial. Os homens tomam iniciativas de delimitar os usos do espaço

geográfico em que vivem, criando fronteiras, e se organizando de forma cada vez mais

hierárquica: uns trabalham, outros fiscalizam, outros fazem a segurança e outros dão ordens,

seja ele o sistema escravocrata, feudal ou capitalista. A preocupação em separar o público e o

privado torna-se uma exigência cada vez mais acentuada, na medida em que os bens da

natureza vão se tornando menos abundantes.

Já no século XVI, início da formação do sistema de produção capitalista, se

realiza o processo de privatização capitalista de uma das formas mais antigas de uso das

terras: as terras de uso comum (bosques e campos usados principalmente para o pastoreio).

Este processo de apropriação privada das terras ocorrido na Inglaterra ficou conhecido como

“cercamentos” (CAMPOS, 2000, p. 32-33), e um dos processos responsáveis pelo

empobrecimento dos camponeses. Mesmo assim teve seus defensores que tentavam

desqualificar a resistência camponesa pela conservação destas formas de uso da terra, como

um obstáculo ao desenvolvimento e ao progresso.

Os cercamentos “transformaram terras outrora marginais em áreas valiosas de cultivo do

trigo. Valiam muito mais em termos monetários, perante o fazendeiro inovador do que

perante o lavrador que havia apascentado seu esquelético rebanho nelas” (DEANE apud

CAMPOS, p.33).

Este processo se aprofunda significativamente durante o século XIX com o

desenvolvimento do capitalismo industrial em vários países europeus, quando a população

rural ainda era hegemônica. Esta é a conclusão a que chega Campos (2000) ao estudar os

“baldios” de Portugal:

No século XIX, com as relações sociais e de produção capitalistas já bastante avançadas,

os interesses individuais sobre os Baldios (grifo do autor) se avolumam ainda mais.[...] A

apropriação privada dos baldios tornou-se assim uma prática constante, fortalecida ainda

mais com a legislação que se seguiria. É o caso do decreto nº 12 de 18 de Abril de 1832

com o relatório de Mouzinho da Silveira, “manifestamente contra a resistência coletiva

dos povos à apropriação individual dos bens comunitários” [...] (CAMPOS, 2000, p.54)

Interessa-nos aqui como importante ressaltar que as terras de uso comum são uma

prática que existiu em todos os continentes, independente das formas de uso comum como

elas ocorreram ou ainda ocorrem. As entendemos como estratégias que os camponeses

encontraram e encontram para garantir o acesso aos recursos da natureza de que a família

necessita no presente, bem como assegurar minimamente o seu futuro. Assim os bosques e

campos de uso comum nos países europeus, os baldios de Portugal, as terras comunais dos

Incas e Maias na América Latina e os ejidos colectivos do México, eram terras de propriedade

privada ou pública, utilizadas pelos camponeses para a agricultura ou para o pastoreio do seu

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rebanho (CAMPOS, 2000). Ainda segundo Campos (2000), no Brasil se desenvolveram

diferentes formas de uso comum da terra como: Terras de Índio, Terras de Negro, Terras de

Santo, os Faxinais, os Fundos de Pasto, e as experiências dirigidas ao uso coletivo da terra.

Em relação às formas de uso da terra dirigidas, tanto no Brasil como em outros continentes,

há um estudo mais detalhado realizado por MARCOS (1996), ao demonstrar como os ideais

anarquistas influenciaram diferentes experiências de uso comunitário da terra. Todas essas

experiências de uso comum da terra foram fundamentais para que o campesinato como classe

se reproduzisse enquanto tal até nossos dias.

A Questão Agrária e Camponesa Continua Sendo um Desafio aos Estudiosos

Elegemos como recorte histórico temporal o século XIX e XX, pelo fato de que

no século XIX há um avanço acelerado do capitalismo industrial, principalmente no

continente europeu, que agia nas cidades, explorando ao extremo a mão de obra nas

indústrias, e no campo expulsando os camponeses de suas terras. Há uma classe operária que

se organiza em sindicatos e há uma insatisfação muito grande dos camponeses empobrecidos

no campo e nas cidades. Neste contexto pipocam movimentos revolucionários na Europa e as

teorias elaboradas por Marx para interpretar a realidade social do campo e da cidade consegue

muitos adeptos. Estes apoiados em Marx se propõem contribuir com os movimentos

revolucionários na direção do socialismo por meio de suas elaborações teóricas. Destacamos

aqui três importantes estudiosos socialistas, Kautsky, Lênin e Kropotkin. Entre muitos

pesquisadores optamos por estes três pelo fato de que eles se dedicaram a estudar o

comportamento do capitalismo nos países mais desenvolvidos e suas contradições e como

resultado propuseram duas estratégias de luta divergentes, para a classe trabalhadora. Uma

linha de pensamento defende que somente os proletários têm condições políticas de fazer a

revolução e os camponeses são apenas aliados estratégicos para a luta e defendem um Estado

forte sob a ditadura do proletariado e para resolver a questão agrária propõem a coletivização

das terras e o fim das comunas (MIR). Há também os seguidores da corrente de pensamento

do Kroptkin e demais anarquistas, que fazem a defesa do fim do Estado e defendem a idéia de

uma organização da futura sociedade, baseada no apoio e ajuda mútua, conforme idéias

desenvolvidas nas obras “O Apoio Mútuo” e “A conquista do Pão” de Kropotkin. O princípio

norteador deste projeto de sociedade está na “fórmula: de cada um, de acordo com as suas

possibilidade e a cada um, de acordo com as sua necessidades” (MARCOS, 1996, p. 374.

Grifo do autor). Enquanto Lênin buscou implantar um programa agrário na Rússia pós-

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revolucionária baseado na coletivização das terras, Kropotkin e seus seguidores propuseram a

organização de uma sociedade anarquista-comunista, à semelhança das comunas russas.

Este é um período da história da classe trabalhadora que estava sendo disputada

por duas grandes correntes socialistas: os utópicos (anarquistas) e os autoritários (marxistas

leninistas). As duas correntes propunham estratégias de lutas divergentes em vista da

transformação social da realidade. Lênin defende a idéia de que a sociedade está dividida em

duas classes fundamentais: os burgueses e os proletários. E somente os proletários têm

condições políticas de fazer a revolução. E os camponeses são uma “classe incomoda”

(SHANIN, 1983), porque são proprietários de terra, mas ao mesmo tempo proprietários da

força de trabalho, que segundo uma corrente marxista, tendem a se proletarizar com o avanço

do capitalismo no campo. Portanto podem se aliar à classe burguesa ou poderão ser aliados

dos operários. Mas a experiência da revolução francesa ainda permanecia inquietando os

pensadores marxistas a exemplo de Lênin que durante a revolução russa sempre procurou

uma aliança tática com os camponeses. (RIZZI,1985) ao estudar o período da revolução russa

evidenciou o dilema vivenciado pelos revolucionários russos:

O debate sobre a questão agrária na Internacional deve ser colocado neste contexto; ele

tornou-se um polo de convergência de velhos e novos tabus, ou seja, da incapacidade por

parte daquela geração de revolucionários de apreender as peculiaridades do “maldito

problema” que era o problema camponês.E isto apesar de 1917, que ali estava para

demonstrar que o poder do czar fora abatido graças à contribuição determinante das

massas rurais. (RIZZI, 1985 p.219, grifo do autor).

Pressionados pela rebeldia dos camponeses que se negaram ou resistiram a

entregar os excedentes para o Estado, foram obrigados a manter e reconhecer a importância da

pequena propriedade para melhorar a produção de alimentos. Segundo RIZZI (1985), isto

incomodava os revolucionários que apostavam na coletivização das terras.

Reafirmar a linha da coletivização e, ao mesmo tempo, aceitar a manutenção e também a

difusão da pequena propriedade ressoava como uma adesão mais lúcida ao principio da

realidade – mas também como um contradição de solução difícil. Para Marchlewski e

outros dirigentes da Internacional, “o egoísmo animalesco da camada camponesa”, sua

rebeldia carente de perspectiva, sua desconfiança e ignorância, obstaculizavam o projeto

de transformação socialista no campo (RIZZI, 1985, p.228)

A revolução russa era a grande oportunidade dos teóricos marxistas testarem suas

convicções em relação à questão agrária e ao campesinato no processo revolucionário que

estava extremamente assentado nos estudos de Kautsky sobre a questão agrária. Porém ao

examinarmos “A Questão Agrária” (1980) de Kautsky percebemos que a realidade do campo

indicava alguns dados estatísticos, que os teóricos teimavam em minimizar como o fez

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Kautsky ao analisar os dados estatísticos de 1870-1880 em relação ao comportamento do

campesinato russo:

Esta amostra que não se verificou o desaparecimento rápido da pequena propriedade

agrícola diante da grande – desaparecimento que,a exemplo da Inglaterra, era esperado ou

temido no continente, depois que a exploração capitalista em larga escala tomou, pelas

alturas de 1850-1860, proporções consideráveis. Em certos lugares verificou-se mesmo

uma tendência à multiplicidade das explorações exíguas pela superfície” (KAUTSKY,

1980, p.152).

Continuando a análise dos dados estatísticos, ao se deparar com os dados de 1880-

1890, nos estados norte-atlânticos, Kautsky busca desqualificar a resistência e crescimento da

pequena propriedade apesar dos avanços do capitalismo no campo, contrariando parte das

teses marxistas em relação ao desaparecimento da pequena propriedade e com ela o

campesinato:

Aqui as grandes explorações diminuíram bem mais rapidamente que as pequenas. Estas

últimas resistem com maior tenacidade numa situação desvantajosa. Mas não é lícito

afirmar-se que haja no caso duma superioridade da pequena exploração. (KAUTSKY,

1980, p. 156).

Todavia, Kautsky se rende face à evidência da realidade do campo que aponta

para a complexidade do processo de desenvolvimento capitalista que se verifica no campo

russo.

[...] Da mesma forma, os números que acusam, não uma diminuição, mas antes um

aumento, das pequenas explorações agrícolas, não nos permitem um pronunciamento

sobre as tendências de desenvolvimento capitalista na agricultura, e nos convidam apenas

novas indagações. Eles nos revelam, antes de mais nada, que esse desenvolvimento não

se efetua com simplicidade, como se julgou tantas vezes, que o processo é talvez mais

complicado no campo do que na indústria”. (KAUTSKY, 1980, p. 160)

No final admite que a pequena propriedade não vai desaparecer na escala

temporal segundo as previsões de muitos teóricos marxistas, “apesar de ser um absurdo”,

porém não admite a reprodução social da classe camponesa como possibilidade de resistência

ao afirmar que mesmo assim irá se proletarizar.

De tudo isto resulta que não devemos pensar esteja a pequena propriedade territorial em

vias de desaparecer, na sociedade moderna, ou que possa ser inteiramente substituída pela

grande propriedade. [...]

Mas precisamente essas tendências nos revelam que nada é tão absurdo quanto a idéia de

que , se a pequena propriedade subsiste, ela o deve ao fato de ser mais produtiva do que a

grande. Ela se conserva quando deixa de competir com a larga exploração capitalista, em

marcha ao seu lado. Ao invés de vender os produtos que a grande empresa fornece em

excesso, dela a pequena empresa os compra, muitas vezes. A mercadoria que tem em

abundância, ao contrário, é esse meio de produção de que a grande exploração tanto

precisa: “os braços operários”(grifo do autor).

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Quando as coisas chegam a tal ponto, a grande e a pequena empresa não se excluem na

agricultura: elas se apóiam mutuamente, como o capitalista e os proletários. O pequeno

camponês, toma então, cada vez mais, o caráter de proletário. (KAUTSKY, 1980, p 186).

Tanto Kautsky como Lênin entenderam que no futuro o campesinato tenderia a se

proletarizar e o campesintao deixaria de existir e a terra passa para a propriedade do Estado

que organizaria a produção através do sistema coletivista Por sua vez Kropotkin, faz críticas

severas às idéias socialistas marxistas do coletivismo, também chamados de socialistas

autoritários em contraposição à corrente dos anarquistas identificada como socialistas

utópicos ou libertários que defendem a liberdade como elemento primordial para a construção

da justiça social.

Kropotkin num dos seus importantes livros - “O Apoio Mútuo” - discorda dos

trabalhos darwinistas que sustentam como única lei natural para sobrevivência da espécies era

“La lucha por La existência” e a transferem para os homens para justificar as guerras.

Debido a las razones ya expuestas, cuando más tarde las relaciones entre el darwinismo y

la sociología atrajeron mi atención, no pude estar de acuerdo con ninguno de los

numerosos trabajos que juzgaban de un modo u otro uma cuestión extremadamente

importante. Todos ellos trataban de demostrar que el hombre, gracias a su inteligencia

superior y a sus conocimientos puede suavizar la dureza de la lucha por la vida entre los

hombres pero al mismo tiempo, todos ellos reconocían que la lucha por los medios de

subsistencia de cada animal contra todos sus congéneres, y de cada hombre contra todos

los hombres, es una "ley. natural". Sin embargo, no podía estar de acuerdo con este punto

de vista, puesto que me había convencido antes de que, reconocer la despiadada lucha

interior por la existencia en los límites de cada especie, y considerar tal guerra como una

condición de progreso,[...] (KROPOTKIN, s/d, p. 17).

Pesquisando o reino animal, Kropotkin descobre que há uma outra “lei natural”

que é tão importante “[...] o talvez mayores, El apoyo mutuo, La ayuda mutua y La

protección mutua entre los animales [...]. La sociabilidad es tanto uma ley de La naturaleza

como lo es La lucha mutua” (KROPOTKIN, s/d, p. 24). Neste sentido em seu outro livro “A

Conquista do Pão” quando faz um exercício de elaboração dos fundamentos da futura

sociedade do “comunismo anarquista” (KROPOTKIN, 1953) faz referência às comunas que

já possuíam práticas que favoreciam o bem estar da comunidade e que brotavam do principio

de ajuda e apoio mútuo entre os homens.

Desde que as comunas dos X, XI e XII séculos conseguiram emancipar-se do senhor,

laico ou religioso, deram imediatamente grande extensão ao trabalho comum e ao

consumo em comum.

A cidade (já não os particulares) afretava navios e expedia as suas caravanas para o

comércio distante, cujo benefício revertia a todos, não aos indivíduos. Também comprava

as provisões para os habitantes.

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[...] Tudo isso desapareceu, mas a comuna rural ainda luta para manter os últimos

vestígios desse comunismo e consegue-o, enquanto o estado não vier atirar a sua espada

sobre a balança. (KROPOTKIN, 1953, p.15).

Mas como organizar a sociedade para que todos possam usufruir de tudo o que a

natureza oferece? Novamente Kropotkin se serve das práticas que já eram conhecidas nas

comunas agrárias da Europa.

[...] Mas em que bases poderia fazer-se a organização para gozar os gêneros em comum?

É uma pergunta que surge naturalmente.

Pois bem, não há duas maneiras diferentes para o fazer com eqüidade: há uma só, uma só

que corresponda aos sentimentos de justiça e que seja realmente prática. É o sistema já

adotado pelas comunas agrárias na Europa.

Tome-se uma comuna de camponeses não importa onde, possuindo, por exemplo, uma

mata. Ora, enquanto não falta, cada um tem o direito de gastar “tanta quanto queira”, sem

outra fiscalização, além da opinião pública dos seus vizinhos.

[...] O mesmo quanto aos prados comunais. Enquanto há que chegue para a comuna,

ninguém quer saber o que comeram as vacas de cada família nem o número de vacas que

pastaram. Não se recorre à partilha ou arraçoamento senão quando os prados são

insuficientes. Este sistema pratica-se em toda a Suíça, em muitas comunas da França, na

Alemanha, etc (KROPOTKIN, 1953, p.28).

Buscamos este diálogo com alguns clássicos socialistas e anarco-comunistas

porque ao projetarem uma sociedade futura se fundamentaram em princípios, como da

liberdade e da justiça social, que a sustentariam pós revolução. No entanto, o que nos

interesse neste trabalho são basicamente suas propostas para o campo. Sendo assim

procuramos demonstrar durante este diálogo que são duas propostas revolucionárias muito

divergentes. Temos os marxistas que sustentam a idéia de que o campesinato estaria fadado

ao desaparecimento no capitalismo e, portanto, defendem a fórmula da coletivização das

terras em que os camponeses serão os assalariados do Estado. Por outro lado, os marxistas

que defendem o comunismo tendo como principio “cada um, de acordo com as suas

possibilidade e a cada um, de acordo com as sua necessidades”. Para os primeiros as terras

seriam propriedade do Estado, enquanto que para os utópicos as terras seriam da comunidade

à semelhança das comunas já existentes.

È neste sentido que MARCOS (1996) no seu trabalho de pesquisa do mestrado

junto às comunidades Japonesas, Sinsei e Yuba, nos municípios de Guaraçai e de

Mirandópolis, respectivamente, ambos no estado de São Paulo, as relaciona às experiências

anarquistas de uso da terra fundamentadas nos ideais propostos por Kropotkin.

Quanto às experiências coletivistas dirigidas pelo Estado registramos aqui a fala

recente da Professora pesquisadora Niurka Prerez Rojas de Cuba, em sua palestra proferida no

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SINGA, em Niterói1, quando afirmou que o estado cubano, logo após a revolução

desapropriou todos os proprietários de terra tornando-as propriedade do Estado. A partir de

então os camponeses passaram a trabalhar coletivamente as terras, porém conservou-se o

sistema do monocultivo da cana para a produção de açúcar e este sistema se mostrou incapaz

de resolver a questão agrária de Cuba. Hoje Cuba já está no IV plano de reforma agrária,

inclusive abrindo a possibilidade para que os camponeses possam ter uma posse de terra na

forma de usufruto (a terra continua propriedade do Estado) e diversificam a produção de

alimentos. E a questão agrária continua sem ter uma solução definitiva, mesmo no país de

regime socialista.

A seguir destacaremos formas de uso da terra, ainda muito comuns entre os

camponeses no Estado de Mato Grosso do Sul.

O Uso dos “Corredores”

Segundo CAMPOS (2000), as diferentes formas de terras de uso comum que se

desenvolveram no Brasil, muitas delas ocorrem em âmbito nacional e outras são mais

específicas a determinadas regiões do país como os fundos de pasto (nos estado da Bahia) e os

faxinais (no estado do Paraná). A finalidade das terras de Uso Comum é para pastagens,

extração de saibro, carvão, pedra, para agricultura e aproveitamento das florestas (madeira,

lenha) e da água. Campos (2000) ao se referir às terras de uso como assim afirma que:

Em termos gerais, a terra de uso comum tem características associadas a uma terra do

povo – uma terra que é de todos. No entanto, não se constitui numa terra pertencente ao

povo, no sentido de haver a propriedade coletiva de um grupo, uma comunidade, ou

várias comunidades em conjunto. Trata-se do uso comum de determinados espaços por

inúmeros proprietários individuais independentes, servindo-lhes como um “suplemento”,

sendo, do mesmo modo, utilizado por pessoas ou grupos de não proprietários. (CAMPOS,

2000, p.7)

A partir desta caracterização das terras de uso comum feitas por Campos,

identificamos algumas destas práticas no Mato Grosso do Sul, como o uso dos chamados

“corredores” na área rural e os “terrenos baldios” nos perímetros urbanos das pequenas

cidades.

O termo “corredor” muito utilizado no meio camponês sulmatogrossense refere-se

às estradas vicinais que separam propriedades particulares de camponeses ou de fazendeiros.

Nas duas margens destas estradas, entre a cerca de uma propriedade rural e a estrada que liga

1 IV Simpósio Internacional de Geografia Agrária e V Simpósio Nacional de Geografia Agrária, realizado nos

dias 29/10/2009 a 02/11/2009, em Niterói.

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outras propriedades sempre existe um pastagem que, poderíamos dizer “é de ninguém” e ”é

de todos” porque é uma área pública. Apesar de ser uma faixa muito estreita, mas numa

localidade de uma grande concentração de pequenas propriedades, como por exemplo, um

assentamento, na somatória geral acaba sendo uma área de tamanho significativo, como

ilustra a foto nº 1.

Fonte: KUDLAVICZ, Mieceslau, dezembro de 2009

Foto Nº 1 – Gado Solto nos “Corredores” do Assentamento Pontal do Faia, Município de

Três Lagoas

Estas são as áreas utilizadas pelos camponeses das propriedades próximas para

pastoreio do gado, principalmente gado leiteiro, durante o ano todo. É evidente que é mais

disputada nos períodos mais secos (período das estiagens) quando os pastos nas propriedades

sofrem com a escassez de chuvas, e os camponeses complementam a alimentação do seu

rebanho soltando-os para pastarem nestes “corredores”, como pode ser observado na foto nº 2.

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Fonte: KUDLAVICZ 13/12/2009

Foto Nº 2 – Gado Solto nos “Corredores” do Assentamento Pontal do Faia, Município de

Três Lagoas

Não são todos os camponeses que se servem deste expediente. São aqueles que

possuem um volume de rebanho superior à capacidade de pastagem de sua propriedade ou

aqueles camponeses que por diferentes razões não tiveram condições de cultivar uma

pastagem suficiente para o seu gado. Mas esta prática não é tranqüila na comunidade

envolvida. Os animais soltos nos corredores ao encontrarem pastagens melhores dentro das

propriedades, forçam as cercas, danificando-as, ou mesmo se alguma porteira das

propriedades for esquecida aberta, este gado entra nas propriedades e destrói as plantações

que ali houver. Estas são reclamações feitas por famílias assentadas do Pontal do Faia, no

município de Três Lagoas, inclusive por discordarem destas práticas. Mas esta prática de

levar o rebanho para pastorear nos chamados “corredores” não é única. Há um hábito dos

camponeses que tem propriedades com pastagens insuficientes para seus animais bem como

por camponeses sem terra, que moram nas cidades pequenas, com currais improvisados na

área urbana que é o de prender o gado durante a noite e diariamente levarem o seu rebanho

para pastorear à margem das rodovias estaduais. Este fato pode ser observado por mim,

inúmeras vezes, nas margens da rodovia estadual que liga a cidade de Selviria à cidade de

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Inocência. Muitas destas famílias hoje estão assentadas no projeto de Assentamento Alecrim,

no município de Selvíria.

Um fato muito recente que chocou a comunidade de Brasilândia, uma prova a

mais de que utilizar as margens de rodovias para pastoreio pelos camponeses é uma prática

que não se restringe ao Município de Selvíria. O fato refere-se à prisão de Alvino Pedro Leite,

um senhor de 79 anos, dono de um sítio no município de Brasilândia. Este senhor foi preso e

condenado, porque levava seu gado para pastar nas margens da rodovia, rotina que Alvino

realizava há aproximadamente 50 anos2, numa área que hoje é propriedade da CESP (Centrais

Elétricas do Estado de São Paulo, responsável pela construção da Hidrelétrica de Porto

Primavera, hoje Sérgio Mota) e transformada em reserva legal. Este fato ganhou notoriedade,

inclusive repercutindo em âmbito nacional como matéria de noticia no Fantástico, programa

da rede Globo de Televisão3.

Nesta mesma área da Cesp, antiga fazenda Cizalpina, uma área de terras de varjão

com muitas lagoas e que fora abandonada pelo proprietário há vários anos, ultimamente

estava sendo utilizada por inúmeras famílias ribeirinhas, moradoras das margens do Rio

Paraná, para pastoreio de gado. Antes de serem expulsas em 1998 pela construção da

Barragem de Porto Primavera, mais de três centenas de famílias viviam da agricultura, da

pecuária, da pesca, da atividade cerâmico oleira, como empregados dos ranchos (residências

de lazer), do comércio local e como diaristas das fazendas. Como agente da Comissão

Pastoral da Terra, acompanhei durante vários anos o sofrimento das famílias ao serem

transferidas para o reassentamento criado pela empresa, perderem o acesso a estas terras

muito férteis e com abundância de água, onde residiam há dez, vinte e quarenta anos. Apesar

de ser propriedade privada individual, era usada por toda a comunidade tanto para pastoreio,

como também para pesca e produção agrícola, durante várias décadas. Apesar desta área hoje

já estar transformada em reserva ambiental pela Cesp, segundo um de seus funcionários

responsáveis pela área, a empresa enfrentou durante o processo de transformação da área em

reserva legal e hoje continua enfrentando conflitos com a comunidade que insiste em fazer

uso da área como o fazia há muitas décadas, apesar da empresa proprietária da área manter a

proibição de qualquer acesso humano a toda esta área.

O Uso dos Terrenos “Baldios”

2 Fonte: http://www.campogrande.news.com.br/canais/view/?canal=8&id=230302. Acessado em 17/13/2009.

3 Fonte: http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,,MUL699590-15605,00.html. Acessado em 17/12/2009.

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Inicialmente, para facilitar a (nossa) compreensão neste trabalho, esclarecemos

que usamos o termo terrenos “Baldios” para definir e identificar espaços urbanos seja eles de

propriedade privada ou de propriedade do estado (município, estado, União), e que não estão

sendo utilizados pelos referidos donos. Neste sentido, é muito comum nos depararmos no

perímetro urbano das cidades com grandes extensões de terra sub utilizadas, servindo apenas

para especulação imobiliária. São estes espaços que em muitas pequenas cidades brasileiras

são utilizadas por famílias de camponeses que foram expulsas do campo e que hoje se

encontram residindo nas periferias das cidades utilizando estes espaços para criar

principalmente gado leiteiro, muitas vezes como única fonte de renda. E em Três Lagoas,

como na maioria das cidades pequenas de Mato Grosso do Sul, não é diferente. No final dos

anos de 1990 e início dos anos de 2000, a prefeitura municipal de Três Lagoas estimava um

número aproximado de duas mil cabeças de gado bovino sendo criado solto nos “terrenos

Baldios” do perímetro urbano.

Ainda nos dias de hoje há uma número considerável de gado bovino sendo criado

no perímetro urbano da cidade de Três Lagoas e em terrenos baldios cercados, como pode ser

verificado na foto nº 3.

Fonte: KUDLAVICZ, Mieceslau. Dezembro de 2009

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Foto nº 3 Criação de Gado em Terreno “Baldio” na Periferia de Três Lagoas/MS

No final dos anos de 1990, testemunhei acidente com uma família que criava

vacas leiteiras e possuía um pequeno curral, próximo à uma área da cidade conhecida como

“segunda Lagoa”, onde toda a manhã ordenhava suas vacas, cujo leite era vendido de casa em

casa na cidade mesmo. Num determinado dia, por volta do meio dia, recolheu suas vacas no

curral para fazer o combate à mosca do chifre. Pulverizou-as com um produto químico, e ou

por dosagem excessiva ou por porque o produto não era recomendado, perdeu

aproximadamente 30 cabeças de vacas de leite.

Atualmente ele e mais outras famílias que criavam seu rebanho nos terrenos

baldios da cidade foram beneficiados com um lote de terra no projeto de Assentamento Pontal

do Faia no município de Três Lagoas. Também várias famílias da cidade de Selviria que

criavam gado solto nos “terrenos Baldios” da cidade foram beneficiadas com lotes no

assentamento Alecrim no mesmo município.

É necessário fazer o registro de que Três lagoas possui um lei de 1985 que proíbe

a criação de animais de qualquer tipo no perímetro urbano como reza o artigo 23 da Lei Nº

699, de 14 de maio de 1985:

Art. 23- Somente na zona rural será permitido a criação, engorda, confinamento ou

qualquer tipo de exploração animal, ou que, por características próprias os animais

possam causar incômodo aos vizinhos, poluição do meio ou risco à saúde.

Porém esta lei nunca foi aplicada. Somente no início dos anos de 2000, quando há

um acelerado processo de industrialização da cidade, e os terrenos sofrem uma significativa

valorização, inicia-se um processo de cerco às famílias que criam gado solto na área urbana. É

no governo municipal do prefeito Issan Fares (1997 a 2004) que são designados fiscais

municipais com a atribuição de aplicar o artigo 23 da Lei de 1985, com a possibilidade de

apreensão dos animais que forem encontrados soltos no perímetro urbano. A situação se

agravou com a entrada do Ministério Público nesta questão, exigindo a assinatura de um

Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) no qual dava um prazo de 60 dias para que os

proprietários retirassem o seu gado das ruas da cidade, o que obrigou os criadores de gado a

realizarem um manifesto na Câmara Municipal de Três Lagoas no ano de 20054.

Segundo informações de funcionários da Secretaria Municipal de Agricultura de

Três Lagoas, hoje praticamente não se encontram mais animais soltos na rua, porém ainda

4Manifesto dos criadores na Câmara Municpal de Três Lagoas no dia 01 de abril de 2005. Fonte:

http://www.cmtls.ms.gov.br/ver.php?id=748. Acessado em17 de dezembro de 2009.

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existe pequeno número de gado bovino na área urbana (vide foto nº 4), mas estão em lotes

fechados com cercas de arame farpado.

Por outro lado há um número considerável de animais de serviço, como cavalos e

muares utilizados seja nos serviços das olarias ou no serviço dos carroceiros, como ilustra a

foto de nº 4, a seguir.

Fonte: KUDLAVICZ, Mieceslau. Dezembro de 2009

Figura nº 4: Criação de Animais de Serviço em Terreno “Baldio” na Periferia de Três

Lagoas/MS

Enquanto Três Lagoas faz cerco ostensivo aos criadores de gado na rua outros

municípios criam leis para assegurar que os mesmos possam criar seu rebanho respaldados

pelo poder da lei como foi o caso muito recente, de dezembro de 2009, do município de Taió,

estado de Santa Catarina 5.

Os Assentamentos Sócio Proprietários

5Fonte:http://www.adjorisc.com.br/jornais/valeoeste/noticias/index.phtml?id_conteudo=234959.Acessado em

17/12/2009.

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No Mato Grosso do Sul, o governo estadual, por meio do Instituto de

Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural de MS/IDATERRA - atualmente Agência de

Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural/AGRAER - implementou um “modelo misto”

de assentamento da Reforma Agrária (ALMEIDA, 2006), posteriormente assumido pelo

Instituto de Colonização e Reforma Agrária de Mato grosso do Sul/INCRA-MS como modelo

de assentamento da reforma agrária, conhecido como assentamento “sócio proprietário”.

As famílias do assentamento São Tomé (criado pelo governo Estadual), no

município de Santa Rita do Pardo, foram as primeiras a optarem por este tipo misto. Este

modelo foi classificado por ALMEIDA (2006) como “assentamento misto” pelo fato de que

cada família recebeu um lote individual de oito hectares de terra, tendo direito a mais doze

hectares no coletivo. Este último era composto por uma área contínua usada coletivamente

por um grupo de famílias. O tamanho da área coletiva variava também de acordo com o

número de famílias que formavam o grupo coletivo, uma vez que eram doze hectares por

família, como ilustra a figura nº 1 organizada por Almeida (2006).

Fonte: ALMEIDA, Rosemeire Aparecida, 2006, p. 273

Este modelo de assentamento, que foi uma “iniciativa” do Estado, estava fadado

ao insucesso porque representava um desencontro com o modo de vida camponês. Ou seja,

mais uma caso de [...] “imposição de modelos que não representam na essência os anseios da

condição camponesa” (ALMEIDA, 2006. p.274). A família camponesa que luta pela terra,

luta para poder ficar livre do patrão. Isso significa no imaginário do camponês ter um lote

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individual e poder dispor do seu tempo livremente e decidir o que plantar, como plantar e a

forma de comercializar a sua produção. Enquanto agente da Comissão Pastoral da Terra

(CPT), pude muitas vezes testemunhar a angústia vivenciada pelas famílias que tinham ficado

em barracos de lona por dois, três, cinco anos e mais, e na hora de ir para o lote ser

apresentada como única alternativa o modelo de assentamento “sócio proprietário”. Os

formuladores deste modelo de assentamento ainda não aprenderam a lição da revolução russa

e também da cubana quando seus mentores à “força” (força da lei) buscaram implantar a

coletivização das terras e a organização das grandes fazendas coletivas do Estado e

enfrentaram a rebeldia camponesa. E, atualmente, após o desmonte da União Soviética, os

camponeses estão na miséria porque hoje precisam reaprender a organizar a propriedade

individualmente executando todas as tarefas que demandam uma pequena propriedade, como

cuidar da pecuária, da agricultura, da horta, das pequenas criações, que desaprenderam

durante o processo de coletivização. (SHANIN, 2008).

O uso coletivo da terra não é uma característica entre os camponeses. Houve

outras experiências de uso coletivo das terras em assentamentos no Mato Grosso do Sul,

organizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e que também não deram

certo. Fracassaram. O que não significa dizer que entre os camponeses não haja formas de uso

comum da terra, de ajuda mútua e de trabalhos comunitários organizados de modo mais

espontâneos e menos formais (institucionalizados).

Considerações Finais

Neste trabalho objetivamos demonstrar que a família camponesa mesmo quando

expulsa da terra ou com pouca terra, descobre brechas para ter acesso à terra, mesmo que seja

um acesso precário, utilizando os chamados “corredores”, as margens de rodovias, os

“terrenos baldios” da cidade, as terras de margens de rios e lagoas e até mesmo reserva

ambiental. A discussão feita até aqui revelou como várias famílias de camponeses utilizam

comunitariamente ou privadamente uma mesma área, da qual não são proprietários legais.

Porém, quando se trata de uma ação estatal dirigida a Reforma Agrária objetivando o uso

coletivo de uma área (as áreas coletivas do assentamento “sócio proprietário”) que, apesar de

ser propriedade do estado (INCRA), é destinada para uso coletivo de um determinado grupo

de famílias organizado para tal fim, o sonho do camponês de ser dono do seu pedaço de terra

se sobrepõe aos demais interesses. O que mais uma vez vem a confirmar que o modo de vida

camponês de se relacionar com a terra é muito especifico de sua classe social. Possui um

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comportamento bastante contraditório e “rebelde” a certas imposições do sistema capitalista

de apropriação privada da terra ao fazer uso dos “corredores” e dos “baldios” (e , ao mesmo

tempo, luta por um pedaço de chão) como também às propostas socialistas de coletivização

(e, ao mesmo tempo, é capaz de fazer uso comunitário dos “corredores”, dos “baldios”). Na

essência busca sempre manter certa independência de qualquer prática que ameace a sua

liberdade de se relacionar com os bens da natureza (solo, água, florestas (madeira, frutos) e/ou

ameace a sua reprodução social enquanto camponês.

Por outro lado, experimenta formas de ajuda mútua e de solidariedade vicinal, no

entanto este camponês é também aquele que mantém certa desconfiança a quaisquer formas

institucionalizadas de cooperação sejam elas apresentadas pelo Estado ou por parte dos

movimentos sociais.

Referências

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pela terra e o habitus de classe, Editora UNESP, Presidente Prudente, 2006.

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TAVARES, Luis Almeida. Campesinato e os Faxinais do Paraná: as terras de uso

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L&PM Editores, Porto Alegre, 2007.