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1 TERRITÓRIO E POLÍTICA DE SAÚDE Tânia Mara da Silva Backschat 1 Líria Maria Bettiol Lanza 2 RESUMO: Nas últimas décadas, as políticas sociais têm enfatizado as diretrizes da descentralização e municipalização e se apropriado das discussões sobre o território. Apesar de ser um conceito central para a geografia, a dimensão territorial tem ganhado destaque em áreas como a antropologia, a ciência política e a sociologia. No campo da saúde ela também tem relevância na medida em que procura aproximar-se dos lugares onde as pessoas vivem procurando conhecer os determinantes sociais no processo de saúde e doença. O presente artigo objetiva discutir, nas dimensões teóricas e conceituais, sobre o território- vivido e a sua apropriação pela política de saúde. O Sistema Único de Saúde implantado em todo território nacional, está organizado sobre uma base territorial reorganizando todo o modelo de atenção a saúde. Para isso, partiu-se de um estudo teórico acerca do conceito território e como a política de saúde se apropria dessa categoria como estratégia para o agir em saúde. Sendo assim, observou-se que apesar das diversas nomenclaturas utilizadas para as diferentes configurações espaciais, aproximar e conhecer o território é fundamental para as equipes de saúde e gestores municipais quando se trata da organização dos serviços e ações de saúde. PALAVRAS-CHAVE: território; saúde; políticas sociais. INTRODUÇÃO Nos últimos anos o interesse pelo conceito território tem sido utilizado e debatido em vários campos do conhecimento de maneira a responder a diferentes necessidades interdisciplinares. Apesar de ser um conceito central para a geografia, a dimensão territorial tem ganhado destaque em áreas como da antropologia, da ciência política e da sociologia. Á luz do processo de descentralização e municipalização tem-se assistido à descentralização das políticas sociais implicando em desafios e oportunidades de atuação tanto para o Estado quanto para a sociedade civil e aproximando-se da categoria território enquanto eixo norteador de suas ações. No campo da saúde, a dimensão territorial também tem uma relevância na medida em que procura aproximar-se dos lugares 1 Assistente social da Prefeitura Municipal de Campo Mourão e professora da Faculdade Unicampo e mestranda noPrograma dePós-graduação em Serviço Social e Política Social da Universidade Estadual de [email protected] 2 Doutora em Serviço Social pela PUC de São Paulo. Professora do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Política Social da Universidade Estadual de Londrina. [email protected]

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TERRITÓRIO E POLÍTICA DE SAÚDE

Tânia Mara da Silva Backschat1

Líria Maria Bettiol Lanza2

RESUMO: Nas últimas décadas, as políticas sociais têm enfatizado as diretrizes da descentralização e

municipalização e se apropriado das discussões sobre o território. Apesar de ser um conceito central

para a geografia, a dimensão territorial tem ganhado destaque em áreas como a antropologia, a ciência

política e a sociologia. No campo da saúde ela também tem relevância na medida em que procura

aproximar-se dos lugares onde as pessoas vivem procurando conhecer os determinantes sociais no

processo de saúde e doença. O presente artigo objetiva discutir, nas dimensões teóricas e conceituais,

sobre o território- vivido e a sua apropriação pela política de saúde. O Sistema Único de Saúde

implantado em todo território nacional, está organizado sobre uma base territorial reorganizando todo

o modelo de atenção a saúde. Para isso, partiu-se de um estudo teórico acerca do conceito território e

como a política de saúde se apropria dessa categoria como estratégia para o agir em saúde. Sendo

assim, observou-se que apesar das diversas nomenclaturas utilizadas para as diferentes configurações

espaciais, aproximar e conhecer o território é fundamental para as equipes de saúde e gestores

municipais quando se trata da organização dos serviços e ações de saúde.

PALAVRAS-CHAVE: território; saúde; políticas sociais.

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos o interesse pelo conceito território tem sido utilizado e

debatido em vários campos do conhecimento de maneira a responder a diferentes

necessidades interdisciplinares. Apesar de ser um conceito central para a geografia, a

dimensão territorial tem ganhado destaque em áreas como da antropologia, da ciência política

e da sociologia. Á luz do processo de descentralização e municipalização tem-se assistido à

descentralização das políticas sociais implicando em desafios e oportunidades de

atuação tanto para o Estado quanto para a sociedade civil e aproximando-se da categoria

território enquanto eixo norteador de suas ações. No campo da saúde, a dimensão

territorial também tem uma relevância na medida em que procura aproximar-se dos lugares

1 Assistente social da Prefeitura Municipal de Campo Mourão e professora da Faculdade Unicampo e

mestranda noPrograma dePós-graduação em Serviço Social e Política Social da Universidade Estadual de

[email protected]

2 Doutora em Serviço Social pela PUC de São Paulo. Professora do Departamento de Serviço Social e do

Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Política Social da Universidade Estadual de Londrina.

[email protected]

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onde as pessoas vivem procurando conhecer os determinantes sociais no processo de saúde e

doença e organização dos serviços de saúde.

O Sistema Único de Saúde – SUS - implantado em todo território nacional, está

organizado sobre uma base territorial reorganizando todo o modelo de atenção à saúde nos

últimos anos. Apesar das diversas nomenclaturas utilizadas para as diferentes configurações

espaciais, aproximar e conhecer o território tem se tornado fundamental para as equipes de

saúde e gestores municipais quando se trata da organização dos serviços e ações de saúde.

Destacada a importância e relevância deste debate no contexto atual, neste trabalho

será abordado, em primeiro momento, como o processo de urbanização brasileira apresenta-se

acelerado e configurando uma nova realidade, com a interiorização do fenômeno urbano e

crescimento do número de pequenas e médias cidades, estimulado pela diretriz da

descentralização e municipalização.

Devido às dimensões continentais do território nacional, as cidades brasileiras

apresentam uma disparidade em seus indicadores sociais sendo urgente a aproximação do

território para a prestação de serviços públicos de qualidade em face da necessidade dos

gestores municipais em atender suas populações. Assim é importante aproximar e analisar as

principais discussões sobre o conceito território.

Em segundo momento, discute-se sobre o uso e as formas como o território tem sido

apropriado pela política de saúde brasileira, no contexto temporal a partir dos anos 1990.

Sendo um mediador entre os processos socioeconômicos, da organização dos serviços de

saúde e suporte de vida da população, as características do território deve ser levado em

consideração no processo de operacionalização da política de saúde.

OBJETIVOS

Discutir, nas dimensões teóricas e conceituais, sobre o território-vivido e a sua

apropriação pela política de saúde.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Este artigo é resultado de um de levantamento bibliográfico a partir das discussões na

disciplina de Política de Saúde e das atividades do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Gestão

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de Política Social, ofertados pelo Programa de Pós-graduação em Serviço Social e Política

Social da Universidade Estadual de Londrina.

Diante da quantidade de discussões acerca do território enquanto conceito e uso,

selecionou-se para esse estudo autores dos campos da saúde coletiva, geografia, antropologia

e serviço social, tendo em vista que as contribuições nesses textos – livros, artigos e pesquisas

concluídas – permitiram o alcance do objetivo proposto nesse trabalho.

RESULTADOS

Ao longo das últimas décadas, os municípios brasileiros têm ganhado

centralidade no processo de elaboração de políticas sociais. A origem do federalismo

brasileiro é datada na Constituição Republicana de 1889 em que sua idéia inicial era de

“permitir maior descentralização e autonomia, em face do descontentamento das elites

regionais com a centralização monárquica” (MACHADO; VIANA, 2009, p. 29). As autoras

apontam que a história do federalismo no país está marcada por momentos de centralização e

descentralização e regimes autoritários e democráticos.

A partir da década de 1980, a associação entre democracia e descentralização de

políticas redesenha a estrutura do Estado em uma lógica de federação descentralizada, dando

ênfase ao papel dos municípios e levando-os a enfrentar o desafio de assumir as políticas

sociais e de promover o desenvolvimento local.

No sistema federativo, os estados são as unidades de maior hierarquia dentro da

organização político-administrativa do país e estão subdivididos em municípios. No estudo

sobre essa temática (BACELAR, 2009; SANTOS, 2012; MAIA, 2014), o município pode ser

conceituado como o espaço territorial político dentro de um estado ou unidade federativa,

composto de zona rural e zona urbanizada e administrado por uma prefeitura. A cidade é

compreendida como o espaço urbano delimitado por um perímetro urbano e onde se localiza a

prefeitura municipal. Para ser considerada cidade, é preciso ter um número mínimo de

habitantes e uma infraestrutura que atenda minimamente as condições dessa população.

Existem vários critérios de delimitação e classificação para várias classes e

tamanhos de cidades, devendo estas serem compreendidas na sua relação com a sociedade.

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Nos estudos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE3, sobre a distribuição e a

mobilidade da população em solo brasileiro, ao longo do século XX, o número de municípios

cresceu de 1.121, no ano 1900 para 5.507 municípios, no ano 2000. Atualmente, de acordo

com dados do último Censo em 2010, o Brasil possui 5.561 municípios, sendo a maioria das

cidades classificadas como pequenas e médias cidades (IBGE, 2010).

Com isso, observa-se uma expansão do número de cidades sendo as diretrizes da

descentralização e municipalização das políticas públicas grandes contribuintes desse

processo. De acordo com Santos (1979) o aumento do número de cidades pode ser explicado,

ainda, a partir do desenvolvimento e da modernização dos meios de produção, com a

concentração de instrumentos de trabalho e meios de produção mais modernos em certos

pontos do território e a formação de uma rede de transporte, o comercio exterior, a expansão

precoce das indústrias, o desenvolvimento das forças produtivas aliado ao consumo restrito a

uma parcela limitada da população implicando em diferentes estilos e qualidade de vida.

Dessa maneira, os lugares se diferenciam como resultado do arranjo espacial do modo

de produção. Tanto as regiões quanto os estados e municípios passam a agregar desigualdades

sociais significativas, expresso em diferentes indicadores de educação, trabalho, rendimento,

saúde, saneamento básico. Com isso, o desafio é considerar as diferentes realidades dos

municípios brasileiros para o processo de implantação das políticas sociais, que atualidade

vem se apropriando da dimensão territorial.

Essa dimensão territorial deve ultrapassar os limites físicos e de ocupação de uma

porção específica de terra, implicando em compreender o território numa perspectiva de

construção histórica, política e simbólica, permeada de relações sociais e de disputa de poder

(SANTOS, 1979; 2012; HAESBAERT, 2007; SAQUET, 2007). De acordo com esses autores,

na perspectiva histórica o espaço caracteriza-se enquanto uma construção social e

historicamente datada onde os objetos e as ações devem ser reunidos numa lógica simultânea

entre o passado (sua datação, sua realidade material, sua causação original) e a lógica da

atualidade (seu funcionamento e significado no presente).

3 O IBGE se constituir a principal fonte de dados estatísticos e demográficos no Brasil.

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Em consonância os autores supracitados, o conceito de território vinculado à

perspectiva política e de poder encontra-se numa dupla dimensão relacionada à dominação e à

apropriação. Na dimensão explícita a dominação ocorre vinculada ao valor de troca desse

território e na dimensão simbólica ocorre a apropriação por meio do seu valor de uso, ou seja,

carregada das marcadas do vivido. Não está relacionado apenas a função de ter, mas também

ao de ser (significação das pessoas). Todo território é ao mesmo tempo funcional e simbólico,

pois os componentes, funções e significação são elementos indissociáveis.

Neste sentido, o conceito território está vinculado ao modo como as pessoas utilizam a

terra, se organizam no espaço e como dão significado ao lugar. Daí a importância de

considerar a dinâmica, a heterogeneidade, as relações, as histórias e o movimento de uma

localidade específica no processo de elaboração de políticas sociais. Para relacionar-se com e

no território é necessário ter noção e domínio de sua complexidade uma vez que o território é

ocupado por uma população heterogênea, formada por atores sociais muitas vezes

antagônicos, mas que “obriga todo mundo a viver junto e, consequentemente, a discutir todos

os dias o seu futuro” (SCARCELLI, 2011, p. 65)

Com isso, o território se torna um terreno clássico de lutas políticas e urbanas.

Conhecer essa realidade e apreender os jogos de interesses e disputas, assim como os limites e

potencialidades permite que ele se torne ponto de partida e não de chegada no processo de

elaboração de políticas sociais. Tratar a dimensão territorial enquanto o espaço vivido,

reconhecer e valorizar as particularidades locais, os anseios e as necessidades da população

significa permitir a democratização das informações e o exercício da cidadania com

aprimoramento de políticas diferenciadas para questões específicas de suas populações.

O território e a política de saúde no Brasil

O conceito território tem sido utilizado por várias áreas do conhecimento e na saúde

sua aproximação inicial se deu por meio da epidemiologia (BARCELLOS, 2008). Apesar de

se constituir como uma categoria de análise essencial para esta disciplina, por muito tempo o

espaço foi compreendido como um processo separado do tempo e das pessoas, apenas como

um lugar geográfico com a predisposição a determinadas doenças.

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No final da década de 1970 esse quadro começou a mudar quando um grupo de

sanitaristas, engajados no processo de transformação social, fez duras críticas ao modelo

proposto e lançou um movimento que ficou conhecido como Epidemiologia Social4. Esse

movimento teve repercussões na América Latina e ganhou vários adeptos na saúde pública

brasileira, ajudando a difundir o conceito de espaço geográfico como um mediador das

diferenças dos problemas de saúde. A epidemiologia passa a ser cada vez mais solicitada a

associar os riscos e problemas de saúde dos indivíduos com objetivo de prevenir riscos e

evitar danos à saúde com base na elaboração de diagnósticos da situação de saúde e das

condições de vida da população em áreas delimitadas.

Assim, o lugar juntamente com as pessoas e o tempo passam a comporem as principais

dimensões de análise dos fenômenos epidemiológicos. As condições de saúde de uma

determinada população são diretamente afetadas pelas “condições domiciliares, como as

características da habitação; locais, como a condição de saneamento; regionais, como o clima;

e globais, como a estrutura econômica” (BARCELLOS, 2008, p. 46). O uso do território

enquanto categoria operacional se debruça sobre o cotidiano das pessoas e diagnosticam

a realidade de maneira particularizada. Contudo, não se pode perder de vista que os processos

particularizados e locais são reflexos de determinações gerais e globais.

Conforme apontam os artigos de diversos autores da obra de Barcellos (2008), as

inovações trazendo tônica do debate de território no âmbito da saúde está relacionada

requisições do movimento de Reforma Sanitária dentre as quais se destacam a adoção de um

novo conceito de saúde, entendido não mais como ausência de doença, mas resultante de

condicionantes e determinantes biológicos, ambientais, sociais, estilo e modo de vida e

trabalho; a adoção dos princípios da universalidade, compreendida como garantia de atenção à

saúde por parte do sistema a todo e qualquer cidadão, integralidade, ou seja, o atendimento do

cidadão com ações de promoção, prevenção, cura e reabilitação oferecidas pelo sistema de

saúde em diferentes níveis de atenção e equidade, isto é, a garantia de ações e serviços em

todos os níveis de acordo com a sua complexidade, sem privilégios e sem barreiras

4 Em seu artigo “O território na saúde: construindo referencias para analises em saúde e ambiente”, MONKEN

et al. (2008, p. 35) apresenta os principais lideres desse movimento. Mesmo não sendo da área da

epidemiologia, o geógrafo Milton Santos foi o maior responsável pela difusão do conceito de espaço

geográfico no Brasil.

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(BARCELLOS; MONKEN, 2014). Embora esses conceitos representem um avanço na

garantia de acesso à política de saúde ao cidadão, os princípios firmados pela atual política de

saúde enfrentam desafios na sua operacionalização como as desigualdades e iniqüidades

sociais em saúde, delineadas pelas políticas neoliberais e reestruturação produtiva do capital.

Importante salientar que, impulsionadas pelo Movimento da Reforma Sanitária, no

período da transição democrática (1985) as transformações no âmbito da política de saúde se

intensificam já sinalizando o uso da dimensão territorial. Há a criação do SUDS – Sistema

Unificado e Descentralizado de Saúde, em 1987. Logo no ano seguinte, 1988, há

profundas mudanças no marco regulatório nacional com a promulgação da Constituição

Federal de 1988 onde a saúde passa a ser considerada enquanto uma política pública do

Estado de direito a todo cidadão brasileiro e o sistema é unificado através do Sistema Único

de Saúde – SUS.

A partir da Lei nº 8.080 de 19 de setembro de 1990, o SUS é regulamentado com a

descentralização e gestão do sistema para os municípios. Nos anos seguintes, âmbito do

Ministério da Saúde, várias políticas são criadas tendo a tônica do processo de

municipalização e valorização da dimensão territorial. Dentre elas destacamos a criação do

Programa Saúde da Família (1994), Norma Operacional Básica – NOB (1996) e Norma

Operacional de Assistência em Saúde – NOAS (2001), Política Nacional de Atenção Básica e

Política Nacional de Promoção a Saúde (2006) e Núcleo de Apoio a Saúde da Família (2008)

e Decreto nº 7.508 (2011). Nesse sentido o território, lugar onde se materializa as políticas

sociais, se transforma em uma estratégia de ação para o desenvolvimento de ações e serviços

de saúde com o objetivo de promoção, prevenção e recuperação da saúde.

O SUS implantado em todo o país está organizado sobre uma base territorial onde os

serviços e as ações em saúde devem ser operacionalizadas a partir da territorialização. De

acordo com Gondim et al. (2008) a territorialização em saúde é compreendida como o

processo de diagnóstico, intervenção e produção de informação em saúde e se coloca como

uma metodologia capaz de operar mudanças no modelo assistencial e nas práticas sanitárias

vigentes segundo a lógica das relações entre ambiente, condições de vida, situação de saúde e

acesso as ações e serviços de saúde.

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O processo de elaboração de diagnósticos territoriais permite a obtenção de informações e

dados. Seguidos da sistematização e interpretação à luz de um referencial teórico, conduzem e

facilitam o processo de tomada de decisões e definição de estratégias de ação por meio da

interação território e profissional de saúde. Este processo de territorialização se configura

como uma das bases operacionais dos sistemas de vigilância em saúde e da atenção básica.

Configura-se como um princípio organizativo assistencial mais importante no sistema de saúde,

visto que “permite espacializar e analisar os principais elementos e relações existentes em uma

população, os quais determinam em maior ou menor escala seu gradiente de qualidade de vida”

(GONDIM et al., 2008, p.250).

Dentro da dimensão territorial, a política de saúde assenta-se em diretrizes

organizacionais que são compreendidas pela descentralização da gestão do sistema, a

regionalização e hierarquização dos serviços, a participação da comunidade e o caráter

complementar do setor privado. Na política de saúde, o principio da municipalização é

transferir para as cidades a responsabilidade e os recursos necessários para que estes exerçam

as funções de coordenação, negociação, planejamento, acompanhamento, controle,

avaliação e auditoria da saúde local, controlando seus recursos financeiros, as ações e os

serviços de saúde prestados em seu território.

As diretrizes organizacionais são operacionalizadas por meio das normas operacionais.

A Norma Operacional de Assistência à Saúde – NOAS - (2001) e Decreto nº 7.508/2011

prevêem a organização do SUS em uma rede articulada e que integre serviços de acordo com

a capacidade de diferentes municípios. Quando da impossibilidade do município de oferecer

todos os serviços de saúde a as legislações acima citadas asseguram o atendimento

intermunicipal e interestadual. Isso porque, nem todos os municípios reúnem as condições

exigidas para a oferta de todos os serviços de saúde, tanto do ponto de vista de infra-estrutura

de oferta de serviços quanto à baixa arrecadação municipal e capacidade de gerenciamento

limitada. Portanto, não conseguem exercer a autonomia federativa reconhecida na

Constituição. Assim aqueles municípios que se encontram melhor aparelhados prestam

melhores serviços à população local, mas acabam também por absorver as demandas das

populações vizinhas.

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Nessa perspectiva, a regionalização efetiva-se como proposta que articula uma rede

de serviços de saúde de vários municípios, localizada em área geográfica delimitada e

com uma população definida para atender às necessidades de saúde da população, sendo que o

município com maior complexidade de serviços deve atender a vários municípios com menor

complexidade de serviços.

Há ainda a figura dos consórcios, que podem firmar alianças estratégicas

representativas dos interesses regionais comuns, com o objetivo viabilizarem a gestão pública

nos espaços metropolitanos e microrregionais, ampliando a capacidade de articulação dos

municípios com as demais esferas de governo. Contudo, mesmo com a existência de

consórcios de saúde, percebe-se, empiricamente, a dificuldade de organização dos serviços de

saúde em regiões formada basicamente por pequenas cidades, sendo que nem todas as

necessidades da população relativas à saúde conseguem ser solucionada no território de

abrangência dos consórcios.

Sobre a delimitação da área de abrangência, os serviços de saúde contam com uma

delimitação espacial utilizado para a gestão dos serviços e controle de doenças. A abrangência

de um serviço de saúde deve ser coerente com os níveis de atenção, a saber, primário,

secundário e terciário.

A atenção primária em saúde é o centro da rede de atenção, estruturante dos demais

níveis de atenção, sendo compreendida pela Unidade Básica de Saúde/equipe da Estratégia

Saúde da Família e constitui-se como o ponto mais próximo do domicilio das pessoas. Nela

devem-se organizar os serviços de promoção e prevenção dos cuidados, individual e coletiva,

em saúde. É ainda sua responsabilidade atender situações de saúde de baixa complexidade,

normalmente nas áreas de ginecologia, pediatria e clínica geral e na área de odontologia.

Através das Unidades Básicas, situações mais complexas e que necessitam de

intervenção especializada são referenciadas para o nível de atenção secundário, compreendido

pelas diferentes especialidades médicas e serviços de apoio e diagnóstico, como

exames patológicos, exames de imagem e outros exames de apoio terapêutico. Os

atendimentos que requerem especialização de alta complexidade, como terapia renal

substitutiva, assim como as situações de urgência e emergência são referenciados para os

hospitais e pronto socorro, que compreende a atenção terciária do sistema de saúde. No

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segundo e terceiro nível de atenção os contornos territoriais não são visíveis, sendo definidos

geograficamente com base na necessidade de atenção da população e podem estar localizados

em um município, em parte de um município ou vários municípios.

Na tentativa de organizar a rede de serviços e ações em saúde, as divisões territoriais

utilizadas pelo SUS são ainda caracterizadas por uma variedade de nomenclaturas e divisões

territoriais: municípios, distritos sanitário, área, micro-áreas e domicílio. Para Barcellos

(2008, p. 47) o município representa o nível inferior no qual é exercido o poder de decisão

sobre a política de saúde no processo de descentralização.

O distrito sanitário é adequado para municípios de grande porte, para aproximar a

administração pública da população e seu objetivo é a delimitação de uma base territorial

definida geograficamente, contendo pontos de atenção a saúde adequada às características do

perfil epidemiológico da população adscrita.

Para Gondim et al. (2008), no processo de municipalização se identificam diferentes

territórios dentre os quais o território área refere-se a uma área definida por critérios não só

geográficos, mas ainda levando em consideração os aspectos econômicos, sociais e

culturais. Corresponde a área de atuação de uma a equipe de saúde e seu objetivo é planejar as

ações, organizar os serviços e viabilizar os recursos para o atendimento das necessidades de

saúde dos cidadãos/famílias residentes no território, com vistas à melhoria dos indicadores e

condições de saúde da comunidade.

O território micro-área é uma subdivisão do território área sob a

responsabilidade da equipe de saúde e atualmente é usado na Saúde da Família. Normalmente é

assimétrico, delimitado segundo a concentração de grupos populacionais mais ou menos

homogêneos de acordo com as condições objetivas de existência. Nele se localizam os domicílios,

ou territórios-moradia, que é o local, espaço da vida, que se destina a servir de habitação a uma ou

mais pessoa, sendo o lócus para o desencadeamento de ações de intervenção.

A política de saúde considerando a dimensão territorial também tem tido implicações

no processo de trabalho, através de mapeamentos dos equipamentos urbanos e condições

socioambientais, esquadrinhamento do espaço, definição de áreas e micro-áreas de

abrangência identificações das vulnerabilidades, ocorrência e prevalência de doenças

crônicas e agudas. Um ator importante dentro deste processo de trabalho tem sido os agentes

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comunitários, tanto de saúde como de endemias, que pela particularidade de suas funções são

os profissionais que cotidianamente visitam os domicílios coletando informações e

averiguando as condições de saúde da população.

Contudo, somente pensar a divisão do território com recortes aleatórios ou baseados

na soma de domicílios, em agrupamento de quarteirões ou no estabelecimento de áreas de

abrangência segundo características geográficas não corresponde ao processo de

territorialização e acaba por não atender os princípios preconizados pelo SUS. A divisão

territorial deve ser definida mediante critérios culturais, políticos e sociais levando em

consideração o território vivido pela população.

O território é expressão de uma determinada área, população e uma instância de poder,

quer seja ele público, privado, governamental ou não governamental. Enquanto palco de

conflitos e de disputa, na atual conjuntura dois projetos políticos institucionais requisitam

interesses divergentes. O primeiro, o projeto neoliberal possui como premissa a

desresponsabilização do Estado pela saúde e a defesa de um modelo mercantil. Em

contrapartida, o Projeto da Reforma Sanitária requisita ações e serviços convergentes aos

atuais princípios do SUS.

Como bem demonstram os estudos de Barcellos (2008), além de ter a sua importância

na organização política, administrativa, econômica e gerencial, o território tem a sua

importância para o agir em saúde pois, como produto social, nele se verifica a interação entre

saúde e população. O território quando usado na compreensão do espaço vivido das

populações permite subsídios para as intervenções propostas pela política de saúde.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O artigo buscou destacar as aproximações teórico-conceituais entre a concepção de

território-vivido e a política de saúde. Para além de uma delimitação espacial de terra ou

referência a limites de solo, o território implica em relações sociais e que, como sabemos, na

atual sociedade capitalista é permeada de interesses contraditórios. Dentre esses interesses,

destacamos a prevalência das políticas econômicas sobre as políticas sociais onde os

interesses do mercado financeiro muitas vezes se sobrepõem as políticas sociais implicando

em riscos a saúde da população.

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As atuais transformações socioeconômicas impõem a necessidade do olhar sob o

processo de urbanização brasileira. Mesmo com atual configuração da rede urbana, como

crescente processo de interiorização do fenômeno urbano, grandes disparidades e

desigualdades sociais ainda são encontradas nas diferentes regiões e municípios brasileiros

em seus indicadores sociais. Inclusive, nas próprias cidades e bairros é possível

identificar desigualdades sociais, onde territórios modernos e luxuosos convivem ao lado de

territórios marcados pela extrema pobreza. Assim podemos afirmar que o atual espaço

urbano reflete uma sociedade desigual e classista, pois as condições de saúde de uma

determinada população são diretamente afetadas pelas condições sociais, econômicas,

domiciliares, locais e ambientais ampliando o conceito de saúde como resultado de fatores

biológicos, estilo e modo de vida e trabalho.

Em se tratando da política social de saúde, a dimensão territorial tem estruturado e

sido elemento fundamental para o Sistema Único de Saúde, implicando em alterações tanto na

organização da rede de serviços, quanto no modelo de assistência e no processo de trabalho

em saúde (BARCELLOS, 2008; GONDIM et al. 2008; BARCELLOS; MONKEN, 2014).

Contudo, as equipes de saúde e gestores só podem considerar os territórios como tal quando

pensados junto com a população, a partir do seu uso. Afinal, território é poder, não somente

poder do Estado, mas também da sociedade civil. Dessa maneira, a aproximação do território

para o conhecimento das condições objetivas de vida da população pode contribuir com a

fomentação de estratégias para o agir em saúde que realmente venham de encontro com as

necessidades da população.

REFERÊNCIAS

BACELAR, Winston Kleiber de Almeida. Pequena cidade: caracterização e conceituação pelo

ponto de vista político-administrativo. In: Anais XVI encontro Nacional de Geógrafos, realizado de

25 a 31 de julho de 2010, Porto Alegre.

BARCELLOS, Christovam; MONKEN, Mauricio. O território na promoção e vigilância em saúde.

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