Território Livre da Democracia

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Trecho de amostra de trabalho gráfico.

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SumárioApresentação..............................................................................................................VII

Capítulo 1Neoliberalismo x posneoliberalismo na América Latina.................................11

Capítulo 2O agronegócio e suas consequências sobre a vida da cidade......................27

Capítulo 32022: o Brasil no bicentenário da Independência.............................................39

Capítulo 4As reformas em Cuba...................................................................................................55

Capítulo 5A Universidade do Brasil.............................................................................................67

Capítulo 6Estratégias para a parceria com a China...............................................................85

Capítulo 7As utopias do século XXI.............................................................................................93

Capítulo 8A cor como patrimônio ou defeito........................................................................105

Capítulo 9A vida e a obra de Nelson Werneck Sodré..........................................................117

Por Marcelo Barbosa......................................................................................................119

Por Marly Vianna..............................................................................................................123

Por Carlos Nelson Coutinho.........................................................................................129

Por José Paulo Neto........................................................................................................133

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Capítulo 1Neoliberalismo x posneoliberalismo

na América Latina

por Emir Sader

Emir Sader: Sociólogo e cientista político, mestre em Filosofia Política e doutor em Ciência Política pela USP – Universidade de São Paulo. Autor de, entre outros, “A nova toupeira – os caminhos da esquerda latino-americana” (2010), “Latinoamericana – enciclopédia contemporânea de América Latina e Caribe” (2006), e “A vingança da História” (2003), todos pela Boitempo Editorial.

Palestra realizada em 28 de março de 2011.

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A América Latina foi um continente esquecido pela imprensa nos anos 1990, ou melhor, relegado às páginas econômico/financeiras. A América Latina não era mais países, não era mais nações, não tínhamos mais cultura, povo,

tradições, lutas, eram espaços de privatização, de bolsas de valores ou crise financeira.Por falar em crise, no caso específico do Brasil, não há ninguém mais capacita-

do do que o FHC para se posicionar sobre o assunto; quando ele fala em crise, fala com propriedade: porque fabricou três crises. Então ele sabe da história.

Estávamos relegados a isso, éramos um continente que não perturbava nin-guém, salvo aquela ilhazinha pequena lá no Caribe, então não havia nem por que se preocupar com a América Latina. Ao contrário, convidavam algumas vozes do continente para ir a reuniões da Terceira Via para mostrar que havia inteligência na periferia do capitalismo.

Mas, de repente, a América Latina deu um salto extraordinário. Aliás, isto é típico da América Latina. Se fizermos um cronograma dos 50 anos transcorridos desde a revolução cubana, são anos de revolução e contrarrevolução. Quer dizer, as subidas, auge de lutas revolucionárias, golpes duros, capacidade de recuperação rápida, novo ciclo ascendente, novos conflitos, novas derrotas. Ciclos que em ou-tros continentes levariam 50 anos para se recuperar.

A capacidade de luta, criatividade, fez com que a América Latina tivesse um protagonismo fundamental na segunda metade do século passado, de repente ter-mina o século praticamente inteira imersa no neoliberalismo. Por razões claras, vou citar somente as mais óbvias:

Primeiro, em alguns dos países mais importantes onde o movimento popular era mais forte houve ditaduras militares que quebraram a espinha, a capacidade de resistência do campo popular, sob o cadáver do qual foi construído o neoliberalismo. Esse é um fator muito importante para expli-car por que foi possível essa generalização de experiências neoliberais em um continente que, além do mais, tinha sofrido um baque muito duro com a crise da dívida.

Fechou o ciclo expansivo da economia, que vinha com altos e baixos desde os anos 1930, no final da década de 1970, quando nós sofremos golpe duro dos aumentos brutais das taxas de juros, governos irresponsáveis tinham tomado em-préstimos com juros flutuantes e isso acabou fechando esse ciclo de crescimento, entrando naquela era que se tinha expectativa esperançosa de que fosse a década perdida e acabou se prolongando por muito mais do que uma década.

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14 - Capítulo 1

Foram duas bordoadas grandes que prepararam o terreno para a hegemonia neoliberal, que teve modelos muito parecidos em todos os continentes. A histó-ria, muito similar, uns anos antes, uns anos depois; praticamente todos assimila-ram o mesmo pacote. O estilo mudava, tinha gente que tomava champagne com pizza na Casa Rosada, outros que falavam francês, mas na verdade o modelo era exatamente o mesmo.

No caso do Brasil foi mais complicado porque o governo Collor fracassou. O plano tucano era que o Collor fizesse o lado duro, o lado sujo da privatização, o lado Thatcher da privatização, e o Fernando Henrique seria o nosso Tony Blair. Mas como Collor fracassou, ele teve que vestir o tailleurzinho de Thatcher e fazer o trabalho pesado.

No entanto, ele teve dificuldades porque retomou o seu projeto quando já apa-recia a primeira grande crise do modelo neoliberal no México. E, além do mais, no Brasil havia se criado ao longo do tempo um movimento popular de resistência. Ao contrário da Argentina, em que Menem levou o sindicalismo peronista para o governo e participou das privatizações, e praticamente deixou de haver resistência popular, no Brasil, houve resistência, que impediu que este processo se concretizas-se de maneira tão avassaladora como lá.

Imaginem a Argentina, autossuficiente em petróleo, em uma semana deixou de ter empresa estatal de petróleo. E agora a cada inverno, como agora, mendiga difi-culdade de negociação com gás da Bolívia, um pouquinho do Brasil, negocia com a Repsol etc., depois de ter sido autossuficiente em petróleo antes mesmo do Brasil.

Não vou falar de todo o trabalho avassalador de desarticulação do Estado So-cial chileno. Ele tinha uma previdência social extraordinária que foi totalmente privatizada e na crise agora, a Bachelet colocou alguns colchões de defesa para uns setores que estavam sendo muito vitimizados pela crise da previdência.

Foi avassalador o que aconteceu com a América Latina, era um continente que tinha colocado em risco a hegemonia capitalista, imperialista, no continente. Pa-gou um preço muito caro por tudo o que aconteceu na década passada. No entanto, ao longo da própria década foram se mostrando as fragilidades do modelo.

A desregulamentação econômica que é o ponto chave do modelo neoliberal fez com que houvesse uma extraordinária transferência dos recursos dos setores produtivos para o setor especulativo. É a falsa ideia de que desregulamentando vai haver mais investimento produtivo. O capitalismo não é feito para se produzir, ele é feito para se enriquecer, para acumular. Se ele pode acumular mais no setor especulativo, ele vai para lá. O capital do setor especulativo não produz bens e não produz emprego, portanto é o capital mais negativo que se possa ter.

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Aconteceu essa brutal transferência, desregulamentou-se a economia e os Esta-dos se fragilizaram, o que levou às três principais economias do continente serem vitimizadas por crises: México, em 1994, no próprio ano que começou o movi-mento zapatista com o Grito de Chiapas, Brasil, em janeiro de 1999, sabíamos que Fernando Henrique se apressou para tentar ganhar no primeiro turno de qualquer maneira porque o Malan já estava negociando com o Fundo Monetário Internacio-nal, e a Argentina, na tragédia de 2001 e 2002, maior retrocesso civilizatório depois daquele da Rússia, segundo Hobsbawm.

Então as três principais economias sofreram golpes duros e ficou configurado que o modelo era um modelo que se esgotava. E, paralelamente, começou-se gestar alternativas. A eleição de Hugo Chavez, surpreendente, em 1998; e depois vocês conhecem a cadeia toda de eleições do Lula, Kirchner, Tabaré, Evo Morales, Rafael Correa, Fernando Lugo etc.. Quer dizer, nunca o continente tinha eleito tantos governos na contramão do modelo hegemônico, que é evidentemente neoliberal. Todos eles têm em comum o fato de serem um voto de rejeição ao neoliberalismo.

Foram derrotados: Carlos Andrés Pérez, Carlos Salinas de Gortai, Fernando Henrique Cardoso, Fujimori, Carlos Menem. Alguns com razão foram para a ca-deia, e outros, sem razão, ficaram livres.

De qualquer maneira, todos foram igualmente derrotados. Foram derrotados com a mesma onda porque ficaram amarrados no mesmo barco e foram pro fundo abraçados. Então a América Latina deu uma virada extraordinária uma vez mais na sua história; tivemos avanços nos anos 1960, morte do Che, recuperação através do processo de socialismo chileno de Allende, golpe militar no Uruguai, no Chi-le, na Argentina, recuperação do movimento armado guerrilheiro na Nicarágua, El Salvador, Guatemala, freio, derrotas, recuperação posterior, justamente com os modelos pós-neoliberais. Tivemos uma virada extraordinária. Em que consiste essa virada?

Há uma frase de Perry Anderson, eu a uso no livro “A Nova Toupeira: Os Ca-minhos da Esquerda Latino-Americana”, em que eu embasei essas análises, ele fala a respeito da França, mas é dolorosamente verdade para nós: “e quando finalmente a esquerda chegou ao governo tinha perdido a batalha das ideias”.

Quer dizer, tinha transcorrido desde a década de 1980, ou antes, um período de consolidação da hegemonia neoliberal, que não é só uma hegemonia econômica, social ou política, é uma hegemonia ideológica. Pensem a virada do período histó-rico anterior/período histórico atual. O período histórico anterior estava marcado por um mundo bipolar, em que um certo equilíbrio político/estratégico colocava certos freios, certos limites à hegemonia imperial.

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16 - Capítulo 1

Passamos de um mundo bipolar para um unipolar sob a hegemonia imperial norte-americana, brutalidade, se pensarmos em todas as consequências que isso implica. Saímos de um ciclo longo expansivo do segundo pós-guerra para um ciclo longo recessivo em que ainda estamos; e saímos de um modelo regulador kenne-dyano em bem-estar social para um modelo liberal desregulador neoliberal, são três viradas que somadas dão uma correlação de força muito desfavorável.

O retrocesso enorme das lutas e a vitória do bloco ocidental foram uma vitória não apenas política, com a desaparição dos campos sociais, foi uma vitória ideo-lógica também. O campo socialista dizia que a contradição fundamental da nossa época se dá entre capitalismo e socialismo. O campo ocidental diz que se daria entre totalitarismo e democracia; se teria derrotado o totalitarismo nazista, depois o stalinista, depois ficaram procurando inimigos e encontraram o totalitarismo terrorista, islâmico, qualquer que seja, para a aplicação do mesmo modelo.

Então a vitória da suposta democracia foi a vitória da democracia neoliberal; democracia já não tem mais sobrenome, é democracia. Se perguntar na América Latina: gosta-se desse regime, dessa democracia? Vão dizer: ah, o pessoal não gos-ta muito. Ao invés de falar: gosta-se do regime político/social que vocês têm? Era mais razoável dizer isto, não?

O Brasil sempre foi considerado democrático mesmo sendo o país mais desi-gual da América Latina, um dos mais desiguais do mundo. Então, a democracia triunfou e triunfou também o capitalismo. Portanto, com o modelo econômico capitalista parecia estarmos condenados obrigatoriamente a ele.

Quando se fala da crise econômica, ninguém fala que é a crise capitalista, é a crise da economia; parece que é uma economia naturalizada a qual nós esta-mos necessariamente condenados. E, além do mais, nesse bojo, foi a globalização do modo de vida americano, que é o principal elemento de força do capitalismo, do imperialismo no mundo. Não é no campo político que eles estão debilitados, ou militar, já que não conseguem terminar nem duas guerras, frágeis, ao mesmo tempo, do ponto de vista tecnológico, estão mais ou menos; mas aquilo que eles disputam sozinhos, a hegemonia no mundo, são os seus valores, os valores do con-sumismo, os valores que ascender no mundo é disputar com os outros no mercado, isto é, o estilo shopping center, tudo tem preço, tudo é mercadoria, tudo se vende, tudo se compra e acabou!

Acabaram-se direitos, acabou esfera pública. Eis a grande vitória deles, porque não há quem resista. Quem já foi à China não pode não ficar contente com tudo que eles estão fazendo, resgatar da miséria trezentos milhões de pessoas, o que nunca foi feito na história da humanidade. Agora, é preciso dizer que eles, a China, nunca tinham sido influenciados por nenhuma outra civilização, mesmo quando

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foi invadida pela Inglaterra que tentou levar a civilização ocidental, utilizando-se do ópio como uma das ferramentas de controle, retiraram-se. A China continuou com o seu modo de vida. Hoje, inquestionavelmente, adota um estilo de vida de mercado, do automóvel, do shopping center. Não estou fazendo julgamento sobre o futuro da China, mas a verdade é que pela primeira vez isso significa hegemonia, no sentido gramsciano da palavra, aquele que é o adversário importando sua for-ma de vida, seu estilo de economia.

Mesmo nossos jovens, crianças pobres da periferia de grandes metrópoles, ape-sar de serem as principais vítimas do neoliberalismo, ambicionam o estilo de con-sumo shopping center, pelo menos uma parte deles. Isso é hegemonia, isso é força de penetração de ideias. Não podemos subestimar isso. Não é, nem os evangélicos, nem o islamismo que vão concorrer com eles, já que são muito conservadores.

Tudo isso dá uma marco, tudo isso significa derrota das ideias. Nós estamos penetrados profundamente até a estrutura da sociedade, não só pela multiplicação dos shopping centers, mas pelo estilo de ascensão individual através do consumo, da competição, o que é arrasador. Não estou dizendo isto para justificar e explicar moderação de governos, justamente dos setores moderados, como Lula e Kirchner, estou dizendo, na verdade, lembrem-se da vitória do Lula, a votação histórica do PT, trinta e poucos por cento dos votos; goste-se ou não, esteja de acordo ou não, o salto que ele deu foi com a carta aos brasileiros, quer dizer, já ganhou tendo no bojo um contingente de gente que na verdade valorizava o consenso da estabilida-de monetária, não necessariamente em termos absolutos, mas incorporado à ideia do medo da inflação, da instabilidade.

Então já foi um contingente eleitoral, ou a crise do neoliberalismo não trans-formou profundamente, ideologicamente a nossa sociedade; o fracasso político de Fernando Henrique levou à eleição de um governo moderado que prometia até não romper os contratos. Errou quem achou que era um governo que “traía”, do ponto de vista moral, e que seria cada vez pior, por razões que podemos depois analisar; o governo Lula contando com a maestria, mas também com a sorte, me-lhorou inquestionavelmente, do ponto de vista do seu conteúdo, posteriormente.

Para podermos analisar mais o que seria a derrota das ideias, quando ganha-mos politicamente, já tínhamos perdido a luta ideológica. O papel do Estado, prio-ridade das políticas sociais, papel do planejamento econômico, importância dos valores do mundo do trabalho, uma série de temas estratégicos centrais que iam ser todos desvalorizados. Então é nesse marco que se dá a vitória desses governos, governos que são pouco diferentes entre si, não podemos assimilar pura e simples-mente um ao outro.