Terrorcotidiano e produção de modos de sociabilidade na ...

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ARTIGO EDUCAÇÃO EM DEBATE Renata Queiroz Maranhão! Terrorcotidiano e produção de modos de sociabilidade na internet: uma análise dos rumores eletrônicos Resumo o presente artigo avalia a produção e difusão do medo no cotidiano por usuários da internet, baseado na análise de correspondências eletrônicas do tipo hoaxes ou e-rumores (rumores eletrônicos). O texto procura verificar de que modo os e-rumores se formam, apoiando-se e modificando o funcionamento de correspondências do tipo corrente da sorte. Propõe que entre as antigas correntes da sorte e as atuais correspondências eletrônicas estabelece-se um processo de descontinuidade no funcionamento do medo em que, no primeiro caso, o medo se liga a elementos sobrenaturais e, no segundo, o medo toma como alvo pessoas e objetos do cotidiano. Dessa forma, propõe um modo de sociabilidade baseado na desconfiança do outro e na difusão constante da insegurança em diversas esferas do cotidiano. Palavras-chaves: Medo. Cotidiano. Modos de sociabilidade. Internet. E-rumores. Abstract Daily terror and production of the modes of sociability on the internet: an analysis of electronic rumors The artic1e evaluates the production and the dissemination of fear among internet users by analyzing e-mails entitled hoaxes ot e-rumors (electronic rumors). It aims to verify how e-rumors are formed, modifying and supporting the function of mails such as lucky chains. The author argues that between the old lucky chains and the recent e-mails, a process of discontinuity is established as a function of fear. Because of that, in the first case the fear is connected to supernatural events while in the second the fear takes people and objects of everyday life as targets. As a result, the new sociability is based on distrust of the other and constant spread of insecutity in difterent areas of day-to-dqy.life. Key words: Fear. Daily routine. Ways of socialization. Internet. E-rumors. 1 Professora da Faculdade de Educação de Itapipoca da Universidade Estadual do Ceará (Facedi-Uece) e aluna de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: [email protected] 94 EDUCAÇÃO EM DEBATE. Ano 28 - V 1- N°. 51/52 - 2006

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ARTIGO

EDUCAÇÃOEM DEBATE

Renata Queiroz Maranhão!

Terrorcotidiano e produçãode modos de sociabilidadena internet: uma análise dosrumores eletrônicos

Resumo

o presente artigo avalia a produção e difusão do medo no cotidiano por usuários dainternet, baseado na análise de correspondências eletrônicas do tipo hoaxes ou e-rumores(rumores eletrônicos). O texto procura verificar de que modo os e-rumores se formam, apoiando-see modificando o funcionamento de correspondências do tipo corrente da sorte. Propõe que entre asantigas correntes da sorte e as atuais correspondências eletrônicas estabelece-se um processo dedescontinuidade no funcionamento do medo em que, no primeiro caso, o medo se liga a elementossobrenaturais e, no segundo, o medo toma como alvo pessoas e objetos do cotidiano. Dessa forma,propõe um modo de sociabilidade baseado na desconfiança do outro e na difusão constante dainsegurança em diversas esferas do cotidiano.

Palavras-chaves: Medo. Cotidiano. Modos de sociabilidade. Internet. E-rumores.

Abstract

Daily terror and production of the modes of sociability on the internet:an analysis of electronic rumors

The artic1e evaluates the production and the dissemination of fear among internet users byanalyzing e-mails entitled hoaxes ot e-rumors (electronic rumors). It aims to verify how e-rumorsare formed, modifying and supporting the function of mails such as lucky chains. The author arguesthat between the old lucky chains and the recent e-mails, a process of discontinuity is establishedas a function of fear. Because of that, in the first case the fear is connected to supernatural eventswhile in the second the fear takes people and objects of everyday life as targets. As a result, thenew sociability is based on distrust of the other and constant spread of insecutity in difterent areasof day-to-dqy.life.

Key words: Fear. Daily routine. Ways of socialization. Internet. E-rumors.

1 Professora da Faculdade de Educação de Itapipoca da Universidade Estadual do Ceará (Facedi-Uece) e aluna de doutorado doPrograma de Pós-Graduação em Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: [email protected]

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Introdução

"Tomado de estupor, fiquei de cabelosarrepiados e sem voz."

(Virgílio)

Montaigne (1991), no início do séculoXVI, dizia do medo como uma violenta forçaque rompe com o cotidiano e é capaz dedesestabilizar a boa consciência de quem sofreseus efeitos. O filósofo coloca o medo ao lado dopoder justamente quando aquele rompe com ocotidiano. Em seu texto, o amedrontado é oguarda de subúrbio, ou uma tropa inteira, queao se defrontar subitamente com o inimigo deguerra perde a capacidade de discemimento.Impossibilitado de decidir, outros acidentes sãodecorrentes de tais encontros. Ele nos fala,fundamentado em textos de filósofos daAntiguidade, de um instante na guerra em queo medo pode ser capaz de decidir o seu destino:o momento do assalto. A associação que fazentre o medo e o assalto na guerra não deve serdesprezada, visto que é um evento raro edecisivo. A oposição entre medo e cotidianomarca o texto de Montaigne, assim como aassociação entre medo e acidente (omedo comoalgo que surge de um acidente e provoca novosacidentes).

Quatro séculos depois, escreve Deleuze(1998, p. 75): "Os poderes têm menos neces-sidade de nos reprimir que nos angustiar, ou,como diz Virilio,de administrar nossos pequenosterrores íntimos". Deleuze coloca o medo cor-tando o nosso cotidiano, movimentando-o e atémesmo compondo-o. O medo, já antes instru-mento de tomada de poder, não pode escaparaos cálculos do poder que se exerce no cotidianoe através dele (cf. FOUCAULT,1999). O medodeve, ao máximo, sair da esfera do acidente eentrar no ãmbito do controle contínuo, calculadoe planejado que se exerce sobre e através dasvidas cotidianas. É, portanto, no detalhe docotidiana -que encontraremos uma organizaçãodo medo que tem por finalidade estabelecer ocontrole social.

O objetivo do presente texto é analisar aprodução e disseminação do medo cotidianoexercitadas por usuários da intemet mediantecorrespondências eletrônicas que vem sendochamada de hoaxes ou e-rumores.

O texto procura avaliar de que modo taiscorrespondências eletrônicas se formam, deque maneira se apóiam e modificam o funcío-

namento das formas tradicionais de comu-nicação, compondo assim uma novidade queinterfere na produção de subjetividades e nosmodos de sociabilidade contemporãneos. Trata,específícamente, da passagem que se dá dascorrentes da sorte para os hoaxes. Entre eles háuma série de elementos comuns, tais como: oapelo à distribuição, a promessa de dádiva a seralcançada etc. E é justamente por possuir tantoselementos comuns que os hoaxes têm sidopensados como a nova forma de correntes dasorte ou a continuação das lendas urbanas (verwww.e-farsas.com.br).

Porém, se analisados como uma conti-nuidade apenas transposta para os meios eletrô-nicos, perde-se de verificar aquilo que nessesmodelos de comunicação deixa de ser repetiçãoe inclui a diferença. Importa considerar que,uma vez que subsista de modo desigual,provoca efeitos distintos dos que eram ante-riormente provocados. Daí a importância depensar o que há de diferente para que se possacompreender também a dissimilitude de seufuncionamento e de seus efeitos.

As correntes da sorteEsta corrente vem da Suazilândia. Foi começa-da por Frei Pantaleão das Mercês, missionárioao norte de Moabane, e deve dar quatro vezesa volta ao mundo, sem qualquer interrupção.

. Faça 48 cópias, mande-as a seus amigos ou co-nhecidos, e terá uma surpresa agradabilíssimadentro de nove dias. Se não for supersticioso,preste atenção no seguinte:

1) O coronel Tapitang, depois de copiar e ex-pedir, ganhou 100 mil dólares no Iansquenês,uma semana após.2) A doutora Zerbinda Pucks, que recebeu erasgou, foi fulminada por derrame cerebral aofim de quatro dias.3) O romancista Ludwig Kostelreuter, tendocopiado e passado adiante, foi presenteado poruma admiradora com um castelo na Dina-marca, na manhã seguinte.4) O ministro Leopold Pagabert, da câmara deFinanças de Heligville, não quis perder tempoem cumprir a recomendação, e o teto do seugabinete desabou sobre ele, três dias depois,esmagando-o.

Não vacile. Não descreia. Não escarneça. Façavocê mesmo as cópias e ponha-as no correioantes que seja tarde: dentro de 48 horas e nãomais. (DRUMMOND DEANDRADE, 1977).

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É com 11 Corrente da sorte" que Drummondinicia seu livro de crônicas intitulado DiasLindos, escrito em 1977. Quem a recebe é JoãoBrandão, um quase cético que, apesar de nãoacreditar no poder da corrente lhe fornecerqualquer tostão ou mesmo alguma desgraça,pensa que tem a Obrigação de fazer cumprir adeterminação expressa na correspondênciarecebida: enviar 48 cópias em 48 horas.

Para João Brandão trata-se de um exer-cício a ser cumprido: por ser adepto da "frater-nidade universal" , ele crê que as correntes 11 sãoum dos raros meios de ligação positiva entre oshabitantes do planeta" (DRUMMOND DEANDRADE,1977, p. 12).Empenhou-se, portantonaquilo que cria ser um "projeto gradualista desatisfação universal" (p. 13).

Apesar de não acreditar, João Brandãoavalia que mandar as correntes pode fornecerfortuna para 48 pessoas. Essa crença desacre-ditada faz parte daquilo que Drummond des-creve como sendo um "exemplo do que sucedea tantas coisas que nos provocam reaçõesduplas, triplas ou múltiplas, sucessiva ou simul-taneamente" (p. 16). De sorte que se puder serdescrito um certo estado de disposição paraJoão Brandão, far-se-á de modo a convencer oleitor de que ele estava convicto de que talveznão pudesse haver benefício algum no seuexercício, entretanto, certamente nenhum male-fício poderia ser provocado.

A corrente que chega às mãos de JoãoBrandão é um exemplar típico de uma série decorrentes muito comuns há três ou quatrodécadas e que persistem até hoje. Tais correntespodiam ser recebidas via correio, encontradasno chão da casa postas por debaixo da porta ouainda nos bancos das igrejas. Elas falam deseres e lugares inacessíveis ou até mesmoinexistentes. Um reino distante da África epessoas que, caso tenham de fato existido,jamais poderiam ser encontradas para atestar averacidade das informações fornecidas.

Ainda que a nobreza e o clero façam parteda materiálidade mais ou menos próxima emnossas vidas, muitas dessas correntes com-portam personagens como anjos e santos mila-grosos capazes de fornecer um naco qualquerde felicidade ou riqueza. O povoamento deseres "transmundanos" é uma característica im-portante, pois revela que ao enviar as correntes,

2 o texto foi integralmente mantido, incluindo erros gramaticais que nele estão contidos.3 Extraído de uma corrente sobre Samara, criança morta após um acidente de bicicleta, no interior do Paraná.

ao se conectar com esse tipo de texto, os seusremetentes conectavam-se também com sua fé,seja ela em uma possível ligação terrena euniversal, como no caso de João Brandão; ou afé nos santos, almas e anjos como seres capazesde intervir direta e positivamente em suasvidas.

A corrente que se segue serve deexemplo:

Era uma vez 20 lindos anjos. 10 tiravam umasoneca sobre as nuvens, 9 brincavam juntos e1 pequenino está acabando de ler essa mensa-gem. Eu te adoro. Envie essa mensagem a 10pessoas que você gosta muito, a mim também,se eu estou entre eles, se 5 forem enviadas devolta para você, amanhã 1 pessoa que você amamuito te fará uma surpresa ... Recebi estamensagem hoje cedo e me lembrei como é bomcontar com amigas especiais como vocêsl?

Uma vez que o exercício seja realizado,cumpre-se o tempo de espera: nove dias, umanoite, ou uma espera indeterminada. A esperade um milagre ou de uma realização inusitada.Deve-se esperar o tempo do sobrenatural, umtempo sobre o qual não se tem controle, masque fatalmente chegará. Tais correntes não

.tratam especificamente do que acontece navida terrena e atual, ainda que venham a seabater sobre ela. Ao contrário, os únicosdeterminantes explícitos são o de provocarcomunicação com mais pessoas (como bempensou João Brandão) e o estabelecimento dafé. Pela fé pode-se alcançar a boa sorte: dinheiro,uma surpresa do ser amado, ou ainda, fazer aalma de uma criança de 13 anos, que teve mortesúbita em um acidente de bicicleta, descansarem paz".

A fé aqui é um traço distintivo que deveser pensado. A fé é aquilo que envolve alguémcom seu santo. É a relação da pessoa com osobrenatural, que, nesse caso, é atestada porseu esforço ao transmitir as correntes. No casode João Brandão, é necessário datilografar oumanuscrever e depois enviar 48 cópias em 48horas. Uma tarefa que visa disciplinar o desti-nador para os atos de fé. Talvez por isso mesmoas igrejas tenham sido lugares tão propícios àsua distribuição.

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A pouca fé é demonstrada pelo não envioda corrente a outras pessoas. E foi a recusa aenviá-Ia que levou "a doutora Zerbinda Fucks,que Ia] recebeu e rasgou, Ia ser] fulminada porderrame cerebral ao fim de quatro dias"(DRUMMOND DE ANDRADE, 1977). E foitambém a falta de fé que propulsou, no "dia 15de julho, Mariana Ia] rir dessa corrente e umanoite depois ela sumiu sem deixar vestígios. "4

Nesse tipo de corrente, o medo - provo-cado pela força de alertas trágicos e sobrenaturais - exerce papel disciplinador. A men-sagem explícita evidencia que a ausência de fée o não cumprimento da tarefa podem acarretardanos irreparáveis. O medo é então est.imuladoda seguinte forma: caso você não acredite e sefurte à consecução da tarefa, algo pode lheacontecer: perda de rendas, adoecimentos,mortes trágicas ou ainda aparições sobre-naturais. Tais acontecimentos são de autoriados seres sobrenaturais e se voltam contra oincrédulo, num círculo que se refere exclusi-vamente a um "transmundano", ao destinatárioe a sua fé. O medo, junto com a crença, tomaparte do tempo, do corpo e da mente do indi-víduo, para colocá-lo na função de prova de fé,pela transmissão de uma corrente.

Tem-se, portanto, aqui explicitados seiselementos funcionais das correntes da sorte: 1)a proposição de um exercício ao destinatário (ode enviar a corrente a um certo número limitadode pessoas); 2) um contágio de fé religiosaentre sujeitos pela comunicação; 3) a narrativaque se desenvolve a partir da atuação de seressobrenaturais ou inacessíveis aos sentidoshumanos imediatos; 4) o tempo marcado peloprazo de realização da tarefa e pela espera dobem alcançado; 5)o tipo de bem a ser alcançado:um milagre; e 6) a utilização do terror comoforma de disciplinarização do crédulo a questõessagradas, num círculo fechado entre o fiel, osobrenatural e sua fé.

As novas correntes: os hoaxes

Embora se encontrem ainda hoje as tradi-cionais correntes da sorte (e, excetuando aproveniente da literatura, todas as citadas nestetexto circulam atualmente na internet), elasdividem o lugar, antes absoluto, com um novo

tipo de corrente que vem sendo denominadahoaxou ainda e-rumores".

Entenda-se por hoaxes aquelas correnteseletrônicas (e-maíls) que chegam como umserviço de utilidade pública que deve ser di-vulgado a todos os conhecidos. São comuni-cações massificadas e diferenciam-se do spam,uma vez que este está associado ao marketingempresarial. Geralmente, os e-rumores chegamao destinatário através de uma longa cadeia deencaminhamentos. Quem os envia é umconhecido que, com pouco esforço, redireciona-os a todos os seus contatos. De qualquer modo,o emissor conhecido se empenhou na tarefa acumprir, já determinada pelo hoax: "PASSEESSA MENSAGEM A TODOS QUE VOCÊCONHECE!!"

Esse tom apelativo não aparece apenasquando é pedida a divulgação da mensagem.Ao contrário, o apelo parece ser a forma geraldo funcionamento metalingüístico dos e-rumores. A profusão de sentenças digitadas emCAIXAALTAe a enorme quantidade de pontosde exclamação evidenciam que o objetivo maiordos hoaxes é a apelação. Poder-se-ia dizer que,assim como as correntes da sorte, ele funcionacomo um vocativo. Ele é uma fala que se dirigea uma segunda pessoa, tem funções específicasde interpelar o outro e colocá-lo em umadeterminada posição, de modo a fazê-loresponder de alguma forma. Nos dois casos,sem dúvida, trata-se de dar continuidade àtransmissão das correntes. E em ambos, o medoé parte motriz de tal exercício.

A despeito da semelhança, muitasdiferenças subsistem, pois é justo nessacontinuidade, nessa repetição do medo, que algose separa, que se diferencia. Enquanto o medo,nas correntes da sorte, está restrito ao círculo deuma prova de fé marcada pelo exercício de umcerto número de cópias e envios em um tempodeterminado, nos e-rumores o próprio exercícioé alterado, chegando a ser quase suprimido.Menos que oexercício, elemento mais importanteno funcionamento das correntes da sorte, o quesobressai nos rumores eletrônicos é o medoagindo em outro território.

Se as correntes da sorte determinavam aquantidade de pessoas a quem deveriam serreencaminhadas, no caso dos e-rumores pede-se encaminhamento ilimitado: "não deixe de

• Idem.5 Dauphin (2004) prefere a terminologia e-rumores por acreditar que as comunicações não objetivam a difusão de informações relativamenteplausíveis. Utiliza-se, neste artigo, indistintamente os dois termos.

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repassar essa mensaçem'", "passe adiante,afinal você pode ajudar um amigo a não ser apróxima vítima?".

Essa característica do ilimitado associa-se à rapidez com que se pode cumprir a tarefaproposta. A datilografia e/ou a tarefa de cópiamanual de um texto a ser postado pelo serviçode correio são suprimidas, bastando apenasuma pequena quantidade de cliques no mouseatrelado ao computador. Desse modo, a notíciaespalha-se numa velocidade e com alcancesurpreendente, não sendo necessário grandeesforço para a execução de tal objetivo. Dauphin(2004) avalia que se cada pessoa tem em médiadez endereços em sua caixa postal, em duasgerações de mensagens cem indivíduos areceberiam e em seis gerações o número depessoas a tomar conhecimento do rumor sobepara um milhão de pessoas.

A velocidade da transmissão da infor-mação, segundo Virilio (1996), é o que garantea consecução de um éthos comum, com poucasvariações regionais. Para ele,

[...] uma vez eliminada essa perspectiva espa-ço-temporal pelos efeitos de aceleração dastécnicas de comunicação, todos os homenssobre a terra terão alguma chance de seremmais contemporâneos que cidadãos e de evo-luírem simultaneamente do espaço contíguoe contingente do velho Estado-Nação (ouCidade-Estado) abrigando o demos, para acomunidade atópica de um Estado-Planeta"(VIRILIO, 1996, p. 40, grifos do autor).

Nesse sentido interessa observar quegrande parte dos e-rumores é tradução quasedireta (modificando-se apenas endereços,nomes de pessoas e outros pequenos elementos)de textos criados nos Estados Unidos (verwww.e-farsas.com.br). Ou seja, o que se conta queaconteceu por lá e os efeitos que lá provoca,transfere-se para o Brasil como se os brasileirosestivessem sujeitos às mesmas condições dolugar onde foi originado o hoax. O mesmo podeser dito em relação a textos que falam (também

aos nordestinos) de roubos e seqüestros que,caso tenham existido, ocorreram em umshopping da região Sudeste do Brasil.

Esse apagamento das diferenças regio-nais é tão intensificado que correntes eletrônicastêm seu conteúdo modificado dentro do mesmopaís. Um hoaxe, que avisava sobre roubo eseqüestro no cinema do Shopping Iguatemi emSão Paulo, poucos meses depois chegava comuma pequena e única modificação: a palavraSão Paulo era substituída por Fortaleza.

Deduz-se de toda essa discussão maisuma diferença. Se nas correntes da sorte o palcodos acontecimentos é um reino distante daÁfrica ou o lugar de morada de anjos e santos,nos rumores eletrônicos fala-se de cenários queparecem reais e de crimes que, pensa-se, poder,acontecer com qualquer um. "Não ande sozinhaem ruas estreitas, nem dirija em bairros mal-afamados à noíte?", alerta um hoax sobre comose proteger em relação a seqüestros; "essescaras estão atuando em bares, estacionamentospróximos de faculdade etc."lO, avisa um rumorsobre um golpe do perfume; "numa discoteca,festa ou jantar, não larguem seus copos para irdançar e voltar a beber nele" 11, clama umacorrente sobre easy date, uma nova droga nomercado. Os exemplos poderiam multiplicar-se,entretanto estes são suficientes para argumentarque os hoaxes saem do mundo celeste e descemà terra a fim de alertar a todos sobre os perigosdo mundo cotidiano.

Ao mesmo tempo que os e-rumoresdescem para o mundo terreno, para falar delugares próximos, novas personagens vão com-pondo a trama que se encerra nas corres-pondências. Nada mais de anjos, santos ouintegrantes de uma corte distante. Fala-se dacidade e de seus habitantes e, nesse momento,faz-se uma divisão binária da organização dacidade, dos seus habitantes, em tomo devítimas e culpados.

Importa observar a inversão no enten-dimento sobre a posição e, status social degrupos economicamente minoritários. De víti-mas de um sistema social perverso passam

6 Extraído de um hoax sobre cuidados com extensão de telefone pelo comando vermelho.7 Extraído de um hoax sobre nova forma de assalto envolvendo limpadores de vidros de carros em semáforos.8 Interessante observar que essa perspectiva do Estado-Planeta também se configura no campo do Direito. Bobbio (2004),diferentemente de Virilio, vê nas regulações provocadas pelo direito internacional não a supressão do cidadão, mas a possibilidadeda criação do cidadão do planeta, um novo cidadão não mais limitado a um Estado-Nação, um cidadão globalizado.9 Extraído de um hoax sobre como evitar e/ou agir em casos de seqüestros.10 Extraído de um hoax sobre o golpe do perfume.II Extraído de um hoax sobre easy date, nova droga no mercado.

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rapidamente a culpados. Nesse sentido, Castel(2005) afirma que a nossa sociedade contribuipara que parte do corpo social, mais perdido doque mau, se transforme noceme da problemáticada insegurança. Desse modo, não se discutemos fatores que geram a insegurança (tal comodesemprego, racismo, desigualdade social) ecriam-se idéias de estratégias de resolução pormeio de policiamento e segregação de taispersonagens.

Não se trata aqui de negar as conse-qüências sociais da violência, mas de proble-matizar o modo como uma parte da população(provavelmente abastada, com amplo acesso àinternet) constrói uma moral de si para si mesmaque implicadeterminar oque é ou não violência,buscar incessantemente personificar inimigose combatê-los. Tais inimigos são integrantes docomando vermelho, flanetinhas nos sinais,desconhecidos ou conhecidos em boates, ado-lescentes usuários de drogas, grupo de adoles-centes que usam bonés e óculos escuros, pro-prietários de carros tipo vans, moradores debairros mal-afamados, entre outros.

Dadaa impossibilidadede definire apontarcom exatidão os indivíduos perigosos - já quepodem ser "dois homens muito elegantes"12ouainda qualquer "amigo ou desconhecido [quepodem ser) violadores ocasionais que [se)aproveitam da ocasião que lhes é oferecida'T'<,o que acaba por acontecer é uma distribuiçãodesmedida do medo, as pessoas são levadas adesconfiar de qualquer um, nas diversassituações cotidianas em que se encontram. Tem-se como forma subjetiva resultante de taisprocedimentos o isolamento, coerente com aincapacidade de se tomar decisões coletivas.

Parece inegável que a conseqüência dadisseminação do perigo é uma intensa proble-matização dos aspectos cotidianos. Importaaqui referir o conceito de retlexividade, cunhadopor Giddens (1991). Para esse autor, a mul-tiplicação de informações (que supõe sempre amultíplícação das desinformações) impõe aosujeito atual um constante e crônico moni-toramento reflexivo das ações, por mais co-tidianas que elas sejam.

Essa profusão de informações faz parteda estratégia de controle aberto, característico

das sociedades atuais. Para Deleuze (1998, p.216), as sociedades atuais funcionam "porcontrole contínuo e comunicação instantânea" ,ou seja, o excesso de instruções acarreta faltade tempo para pensar, não sendo possível"perder tempo" com o pensamento. É umacomunicação instantânea que requer umaresposta igualmente rápida. Ora, se as infor-mações são, de certo modo, massificadas erepetidas, as respostas vão se constituindocomo algo natural. Faz parte dessa política decontrole a intensificação de informações acercado terror, sob a forma de transmissão coletivade neurose, que cria uma "aversão ao riscoque faz com que o indivíduo contemporâneojamais possa se sentir em segurança" (CASTEL,2005, p. 10).

Uma última diferença deve ainda sermencionada. Se ao enviar as correntes da sortepretende-se alcançar a dádiva de um milagre,nos rumores eletrônicos a expectativa é a ga-rantia da segurança, compreendida como umesforço individual para manter-se vivo. Corres-pondências comoessas põem emfuncionamentoa lógica do "salve-se quem puder" a partir demobilizações de forças particulares que visamnão à coletividade, mas à sobrevivência dosescolhidos, da única forma de vida humana quemerece ser preservada 14 .

Reflexões finais

A violência,no Brasil,é dado que não podeser menosprezado. Atualmente é sabido que oBrasilé o segundo país latino-americanoque maisgasta com segurança, perdendo apenas para aColômbia (STEFANOin: http://www.terra.com.br/istoedinheiroI156/economia/,acessadoem 18defevereirode 2006).

O Centro Internacional de Investigação eInformação para a Paz (CIIIP),avalia que, nospaíses latino-americanos, o encargo financeirodirecionado à violência despotencializa um pos-sível investimento voltado para a paz, ou seja,gasta-se muito com a violência e os resultadosvisíveis de tais investimentos são mínimos.Os índices de violência continuam crescendo e,mesmo tempo,

12 Extraído de um hoax sobre o golpe do perfume.13 Extraído de um hoax sobre easy date, nova droga no mercado.14 Sobre essa questão, ver as análises de Giorgio Agambem (2004), que afirma que, na modemidade, a partir dos campos de con-centração do nazismo criou-se um modelo de estratégia política do capitalismo que prega a matabilidade, a descartabilidade dedeterminados grupos humanos.

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[...) observa-se um desgaste da cidadania" que-leva as pessoas a criarem mecanismos de auto-defesa, independente das instituições respon-sáveis pela segurança pública. Ao lado ~sto,verifica-se o aparecimento de novos comporta-mentos sociais como o isolamento (em especialdas camadas mais altas), a desconfiança, o in-dividualismo (CIllP, 2002, p. 22).

A criação de mecanismos individuais nainternet aponta para o quadro atual de socia-bilidade cotidiana que

[...) tem sido duramente atingida pela dete-rioração da qualidade de vida que vem, sobre-tudo, pela recessão econômica: estagnação doemprego, falta de perspectiva, de lugar naordem profissional, para não falar da pobrezaespantosa de metade da população do país que,somada às famílias ditas "remediadas", formauma visível sociedade excluída que convivecom as classes médias de forma extremamentetensa (PAOLI, s/d, p. 498).

É necessário considerar o perfil de quemutiliza internet no Brasil. A partir de 2002, oIbope/NetRatings começou a avaliar o tempode conexão do usuário doméstico, bem comoaspectos relacionados a seu perfil sociocultural.Em 2003 havia 2,8 milhões de usuários bra-sileiros ou residentes no Brasil conectados àinternet, sendo a maioria composta por jovens ecrianças .No mesmo ano, o perfil socioeconômicodo proprietário de computador indica o jovemde classe média como principal usuário do-méstico da internet (tais dados podem ser en-contrados na tabela abaixo). No ano de 2005,em alguns meses, o Brasil ficou em primeirolugar no ranking mundial no quesito referenteao tempo de acesso.

Ou seja, os jovens e as crianças brasileiras,provenientes da classe média, estão sendoeducados e se educando entre si (na condiçãode multíplicadores de informações) através dedispositivos como blogs, flogs, e-mails, entreoutros. Importa pensar que se os estudos depsicologia estão certos, uma vez que os usuários

são de faixa etária reduzida estes estão maissuscetíveis à aprendizagem. E, de acordo comGuatarri (1987), os processos educativos en-contrados na mídia estão bastante ligados àserniótica dominante, ou seja, aquela que ga-rante o funcionamento e a multiplicação demodos de enfrentamento da vida compatíveiscom os requeridos para o funcionamento docapitalismo.

Tabela 1 - Perfil socíoeconômíco do proprietário de compu-tador e usuário da internet no Brasil, em 2003.

ClassePossuem

computador emcasa (%)

Possuem acessodoméstico àinternet (%)

A 26% 32%54% 55%B

c 18% 12%DeE 2% 1%Total 100% 100%

Caso Agambem (2004) tenha razão, fazparte do procedimento de instauração dassociedades capitalistas uma série de movi-mentos alternados de exclusão e inclusão(controlada), que tem por modelo base o funcio-namento dos campos de concentração. Ou seja:incluir grupos humanos apenas visando a suaexclusão. Os hoaxes, funcionando como publi-cidade, como palavra de ordem que circulaentre a classe média, acabam por gerar essetipo de procedimento quando tornam visíveum grupo humano e nessa visibilidade pro-movem a incitação à segregação, ao dístan-ciamento em relação a esse grupo.

Os rumores eletrônicos, desse modoexpressam uma moral construí da pela classemédia para ela mesma, moral em que perrneisa segregação, a exclusão e culpabilização _grupos minoritários e, ao mesmo tempo, ._-veste em mecanismos individualistas de slução de problemas sociais complexos. U :forma de funcionamento moral que contribsobremaneira, para solapar um possível projet _democrático que inclua a cidadania em s :pauta cotidiana.

15 Paoli (S/D, p. 498) possui uma visão mais otimista e complexificada da cidadania no país hoje. Para ela, se quisermos compre -a sociedade brasileira, temos que "compreender esse encontro direto e contraditório entre a generalização da percepção da cidae a generalização do sentimento de uma crise moral profunda, ambas convivendo nos mesmos espaços e tempos, nos me --grupos, numa mesma pessoa".

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Referências bibliográficas

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101EDUCAÇÃO EM DEBATE, Ano 28 - V I - N°. 51/52 - 2006