Tese Cidade e Agua Jximenes

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CIDADE E ÁGUA NO ESTUÁRIO GUAJARINO

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Dr. IPPUR-UFRJ, 2010

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CIDADE E ÁGUA NO ESTUÁRIO GUAJARINO

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Juliano Pamplona Ximenes Ponte

CIDADE E ÁGUA NO ESTUÁRIO GUAJARINO

Tese apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de Pós-Graduação

em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do

grau de doutor em Planejamento Urbano e Regional.

Orientador: Prof. Dr. Adauto Lucio Cardoso.

Rio de Janeiro

2010

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Juliano Pamplona Ximenes Ponte

Cidade e água no estuário guajarino

Tese apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de Pós-Graduação

em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de

Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do

grau de doutor em Planejamento Urbano e Regional.

Aprovado por:

________________________________________

Prof. Adauto Lucio Cardoso - Orientador

Doutor em Estruturas Ambientais Urbanas (Faculdade de

Arquitetura e Urbanismo, USP). IPPUR-UFRJ.

________________________________________

Prof. Frederico Guilherme Bandeira de Araujo

Doutor em Engenharia de Produção (COPPE-UFRJ). IPPUR-

UFRJ.

________________________________________

Prof. Henri Acselrad

Doutor em Planejamento, Economia Pública e Organização do

Território (Universidade de Paris I, Panthéon-Sorbonne).

IPPUR-UFRJ.

________________________________________

Prof.ª Ana Lúcia Nogueira de Paiva Britto

Doutora em Urbanismo (Institut D'Urbanisme de Paris -

Universidade de Paris XII, Paris-Val-de-Marne). PROURB-

UFRJ.

________________________________________

Prof. José Júlio Ferreira Lima

Doutor em Arquitetura (Oxford Brookes University, Oxford,

Inglaterra). FAU-UFPA.

Rio de Janeiro

2010

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ÍNDICE GERAL

ÍNDICE GERAL .......................................................................................................................................................... 4

ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES ......................................................................................................................................... 5

ÍNDICE DE GRÁFICOS ............................................................................................................................................... 8

ÍNDICE DE TABELAS ................................................................................................................................................. 8

ÍNDICE DE MAPAS .................................................................................................................................................... 9

AGRADECIMENTOS................................................................................................................................................. 10

RESUMO ................................................................................................................................................................. 11

ABSTRACT .............................................................................................................................................................. 12

1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................................................ 13

1.1. A ÁREA DE ESTUDO ....................................................................................................................................... 16

1.2. UMA “QUESTÃO” DA ÁGUA .............................................................................................................................. 19

1.3. ESTRUTURA DO TRABALHO.............................................................................................................................. 21

1.4. ASPECTOS METODOLÓGICOS ........................................................................................................................... 24

2. ÁGUA E TERRITÓRIO ..................................................................................................................................... 35

2.1. ASPECTOS DAS REPRESENTAÇÕES SOBRE A ÁGUA ................................................................................................ 38

2.2. “CIDADE” E ÁGUA NA REGIÃO NORTE ................................................................................................................ 59

3. BELÉM-PA E O ESTUÁRIO GUAJARINO: CIDADE E ÁGUA .............................................................................. 84

3.1. O PIRI ........................................................................................................................................................ 85

3.2. ASPECTOS DA FORMAÇÃO DO PORTO DE BELÉM .................................................................................................. 93

3.3. OUTROS PORTOS DA CIDADE ........................................................................................................................... 99

3.4. O RIBEIRINHO ............................................................................................................................................. 107

3.5. ALGUNS TIPOS DE INTERVENÇÕES NA INTERFACE CIDADE-ÁGUA ............................................................................. 133

3.6. O CASO DE BELÉM: INTERVENÇÕES TERRITORIAIS............................................................................................... 140

3.7. PORTAL DA AMAZÔNIA ................................................................................................................................. 146

3.8. MANGAL DAS GARÇAS ................................................................................................................................. 184

3.9. ECONOMIA DA CULTURA E “ORLA” .................................................................................................................. 194

3.10. SANGRIA DESATADA .................................................................................................................................... 202

3.11. PORTO DE BELÉM ....................................................................................................................................... 205

3.12. BACIAS HIDROGRÁFICAS: ORDENAMENTO TERRITORIAL E GESTÃO .......................................................................... 216

4. INTERVENÇÕES TERRITORIAIS E POLÍTICA DA ÁGUA ................................................................................. 226

4.1. “ÁGUAS URBANAS” ..................................................................................................................................... 228

4.2. CIDADE E ÁGUA: INTERVENÇÕES, CONFLITOS ..................................................................................................... 232

4.3. WATERFRONT E PARQUES URBANOS ................................................................................................................ 245

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4.4. MODERNIZAÇÃO PORTUÁRIA .......................................................................................................................... 251

4.5. URBANISMO ECOLÓGICO E ENGENHARIA AMBIENTAL ............................................................................................ 257

4.6. GESTÃO DE RECURSOS HÍDRICOS ................................................................................................................... 270

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................................ 288

6. REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................. 312

ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES

Ilustração 1 A Fonte dos Quatro Rios (1651), obra do artista Gian Lorenzo Bernini, na Piazza Navona, em Roma, Itália.

Schama (1996) a cita como uma referência para o imaginário moderno acerca da água, e da expansão do mundo no

Ocidente. Fonte: Best Price Art (2009). .................................................................................................................... 40 Ilustração 2 Brasil: áreas mais densamente urbanizadas (segundo o Censo Demográfico 2000 do IBGE). Fonte:

Gonçalves; Brandão; Galvão (2003). ........................................................................................................................ 46 Ilustração 3 Conjunto de atividades em cidade de pequeno porte de beira de rio da região amazônica: feira, porto,

mercado. Município de Baião, região do Baixo Tocantins, Estado do Pará. Foto do autor (abr. 2007). ........................ 61 Ilustração 4 A frente das cidades de beira de rio, hoje, se constituem em locais ao mesmo tempo dinâmicos

economicamente e atravessados por conflitos sociais e econômicos; município de Igarapé-Miri, região do Baixo

Tocantins, Estado do Pará. Foto do autor (jan. 2007). .............................................................................................. 62 Ilustração 5 Trapiche em zona rural da região, Estado do Pará (município de Baião, na região do Baixo Rio Tocantins);

estrutura urbana tradicional de conexão com a água e de extensão da terra. Foto do autor (abr. 2007). ..................... 64 Ilustração 6 Uma "montaria", pequena embarcação tradicional da Região Amazônica. Foto do autor, abr. 2007 ......... 67 Ilustração 7 Habitação ribeirinha, região do Baixo Tocantins, município de Cametá-PA. Ambiente idealizado e retórica

da "identidade" regional, com engenhosidade da tradição. Foto do autor, abr. 2007. .................................................. 70 Ilustração 8 Fac-símile de planta (Planta da Cidade do Pará, que atualmente é a cidade de Belém) do Major Gaspar

João Geraldo Gronsfeld (1771). Notar a delimitação do Pântano do Piri a leste da cidade; na figura, acima da ocupação

de suas quadras. Fonte: Gronsfeld (1771). ............................................................................................................... 91 Ilustração 9 Fac-símile da planta do Major Gaspar João Geraldo Gronsfeld (1780). O Alagadiço do Piri, divisor inicial do

parcelamento da cidade, definia um canal de drenagem às proximidades da atual Doca do Ver-O-Peso (próxima,

portanto, do local de fundação do aglomerado urbano pioneiro) e outra na vizinhança do antigo Convento de São

Boaventura, atual Canal da Avenida Almirante Tamandaré, nos limites de seu Centro Histórico (BELÉM, 1994) instituído

por lei municipal na década de 1990. Fonte: Gronsfeld (1780). ................................................................................. 92 Ilustração 10 A Doca do Reduto; em imagem famosa localmente, um dos pontos de entreposto de pescado, frutas e

outros artigos, situado em área central da cidade. Fonte: COSANPA (2009). ............................................................. 95 Ilustração 11 Uma "vila" situada na Bacia da Estrada Nova, bairro do Jurunas, periferia próxima de Belém-PA;

assentamento sobre palafitas, adensamento significativo, pobreza e estratégias de sobrevivência diversas. Foto:

Cláudia Ribeiro (nov. 2008). .................................................................................................................................. 102 Ilustração 12 Série de casas sobre o canal da Avenida Bernardo Sayão, na Bacia da Estrada Nova, em área de periferia

próxima da cidade de Belém-PA; moradia precária em local próximo ao rio. Foto do autor (jan. 2008). .................... 103 Ilustração 13 Mapa de zonas das margens fluviais da porção continental de Belém-PA, a propósito de um plano de

estruturação elaborado em 2000, mostra perfis diferenciados da “orla” da cidade. Em amarelo, área de bacia

hidrográfica densa e pobre, ocupada por atividades econômicas de entrepostos e comércio (a da “Estrada Nova”); em

verde, a zona portuária oficial. Fonte: Belém (2000). ............................................................................................... 105 Ilustração 14 Luiz Braga, Janela Rio Guamá (fotografia; exposição Anos-Luz, 1988). O rio como estética diferencial e

como discurso da paisagem. Fonte: <http://www.luizbraga.fot.br/portfolio5/portfolio5.html>................................. 112 Ilustração 15 Luiz Braga, Casa de madeira e lata (fotografia; exposição No olho da rua¸1984). Os grafismos como

ícones de uma geometria imprecisa e regional, porém, ainda assim, identificável por outros olhares, mais habituados a

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uma estética baseada em modelos ocidentais de composição e harmonia. Fonte:

<http://www.luizbraga.fot.br/portfolio3/portfolio3.html>. ...................................................................................... 113 Ilustração 16 Jorge Eiró, Feliz Lusitânea [Série "Labirinto Líquido"]. 2004. Técnica: gravura digital. A técnica da

cartografia, referência desde Kandinsky, mapeia a hidrografia regional. Fonte:<

http://www.culturapara.art.br/artesplasticas/jorgeeiro/img04_felizlusitania.jpg>. .................................................... 113 Ilustração 17 Versões da logo do Movimento Orla Livre; o caranguejo seria um símbolo da possibilidade de interação

entre ambiente e sociedade local, segundo lideranças do movimento. Os membros do movimento, do mesmo modo,

seriam também crustáceos, digamos. Fonte: <http://www.orlalivre.org/teengaja-botons>. .................................... 117 Ilustração 18 Publicidade de empreendimento situado nas proximidades da zona portuária, um dos primeiros a utilizar

como mote o diferencial locacional da "orla" fluvial de Belém. O nome “esotérico” e a promessa do empreendimento se

articulam com o caráter excepcional do padrão vendido, com unidades de 421 m², cinco suítes, quatro vagas de

garagem e “de frente para a baía, com uma vista sem igual” (CHÃO E TETO, 2007). .................................................. 128 Ilustração 19 A sacada do empreendimento Aquarius Tower Residence, em forma de quilha de embarcação, sugere

analogia com uma idéia simpática ao ribeirinho, conforme depoimento do próprio projetista, dado ao autor em

dezembro de 2003. Fonte: Chão e Teto (2007). ...................................................................................................... 129 Ilustração 20 Empreendimento de 37 pavimentos no bairro do Umarizal, área nobre da cidade em franca expansão do

mercado imobiliário local, com unidades de 270 m² e divulgação de “[...] várias opções de planta e uma bela vista

para a Baía do Guajará” (CHÃO E TETO, 2007). ......................................................................................................... 129 Ilustração 21 Empreendimento já construído e habitado em Belém, também situado nas proximidades da zona

portuária, no bairro do Umarizal, atesta o bom desempenho dos produtos imobiliários de localização associada à "orla"

da cidade. A “vista maravilhosa para a Baía do Guajará” é um dentre vários motes do mercado imobiliário para

ressaltar os diferenciais da ocupação nas margens fluviais da cidade — e para marcar o caráter diferenciado da

compra. ................................................................................................................................................................ 130 Ilustração 22 Publicidade recente de lançamento imobiliário em Belém-PA atesta o apelo econômico dos diferenciais

de localização de seus cursos d´água; anúncio cita a "vista majestosa para a baía" como slogan para vender a nobreza

do empreendimento. Fonte: <http://i245.photobucket.com/albums/gg55/Drico-bel/Noblesse.jpg>. Acesso em: 10 jun.

2009. .................................................................................................................................................................... 131 Ilustração 23 Publicidade de edifício residencial em Belém, na fronteira entre os bairros de Batista Campos (no

chamado centro expandido, área nobre da cidade) e Jurunas (na periferia próxima, vetor de expansão do mercado

imobiliário local) divulga como diferencial a proximidade do “[...] belíssimo Mangal das Garças, esse empreendimento

foi feito para você”. Nota em jornal local cita que a empresa construtora e incorporadora ressalta “[...] um amplo

espaço gourmet na cobertura, com vista de 180º para a capital e para a baia do Guajará, será um dos diferenciais do

Carpe Diem, novo empreendimento [...]” (SOARES, 10 jun. 2009). Notícia de jornal informa que o empreendimento tem

tido alta procura (DIÁRIO DO PARÁ, 19 mai. 2008). Fonte: <http://www.gafisa.com.br/imoveis/pa/belem/carpe-diem-

belem>. Acesso em: 10 jun. 2009. ....................................................................................................................... 132 Ilustração 24 Território continental de Belém-PA e parte de seu território insular. Fonte: CODEM (2000)................... 141 Ilustração 25 Vista de um dos antigos rios urbanos de Belém, atualmente denominados "canais" (no caso, o da

Travessa dos Caripunas, no bairro do Jurunas, na Bacia da Estrada Nova); espaços qualificados como degradados e

prontos para receber intervenções de requalificação do ambiente. Foto do autor, jan. 2007. .................................... 144 Ilustração 26 Bacia hidrográfica da Estrada Nova e contorno de bacias vizinhas, da área central (Reduto, Magalhães

Barata, Tamandaré) e da periferia próxima (Tucunduba), Belém-PA. Área de intervenção do proieto Portal da Amazônia.

Fonte: GPHS; COSANPA (2008); CODEM (2000). ................................................................................................... 149 Ilustração 27 Imagem de rio urbano/canal da cidade de Belém é apresentada como parte da problemática sanitária

local, ressaltando que trata-se de “canais abertos em áreas de baixadas”, o que aumenta a suscetibilidade do local a

inundações (BELÉM, 2006b, p. 17). ........................................................................................................................ 151 Ilustração 28 Esquema produzido por ocasião de audiência pública do projeto Portal da Amazônia ilustra o tratamento

urbanístico com cinco módulos vicinais, que dividem a margem do Rio Guamá ao longo da Avenida Bernardo Sayão.

No início do módulo vicinal 1, o parque ambiental Mangal das Garças. No final do módulo vicinal 5, o campus

universitário da UFPA. Fonte: Belém (2006b). ......................................................................................................... 153 Ilustração 29 Simulação computacional, em perspectiva isométrica, de um dos módulos vicinais (tipos 1, 3 e 5) do

projeto Portal da Amazônia. Usos sugeridos e padrões de ocupação não chegam a ser detalhados, mas entende-se

que haja uma aplicação da idéia de parque linear urbano, com configuração convencional de praça. A obra se

assemelha em muito a uma extensa intervenção viária, sobretudo. Fonte: Belém (2006b). ...................................... 154 Ilustração 30 Simulação computacional do módulo vicinal (tipos 2 e 4), componente do esquema urbanístico do

projeto Portal da Amazônia, da Prefeitura Municipal de Belém-PA. Fonte: Belém (2006b, p. 38). ............................. 154

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Ilustração 31 Traçado de corredores viários (em amarelo) e eixo da proposta de via para o Portal da Amazônia (em

vermelho). Delimitação de bacia hidrográfica da Estrada Nova (em magenta); área adensada e pobre deve sofrer

intervenção. Fonte: Belém (2006b)......................................................................................................................... 155 Ilustração 32 Ortofoto com o traçado viário do primeiro trecho do projeto Portal da Amazônia lançado; sobreposição de

formas de urbanização, padrões de ocupação e representações da "orla" fluvial. Fonte: PMB (2006c). .................... 157 Ilustração 33 Segundo trecho do projeto viário e de urbanização do Portal da Amazônia, entre os bairros da Condor e

do Jurunas, demonstra elementos da lógica do traçado da "plataforma urbanizada". Fonte: Belém (2006c). ............. 158 Ilustração 34 O terceiro trecho do projeto está situado no bairro do Guamá, em trecho onde estão presentes alguns

exemplos dos entrepostos chamados localmente de estâncias, nas margens do Rio Guamá e na vizinhança do campus

universitário da UFPA. Fonte: Belém (2006c). ......................................................................................................... 159 Ilustração 35 Imagem que exibe a estrutura concebida de canais, áreas de acumulação e comportas; o projeto Portal

da Amazônia se pretende ambientalmente mais compreensivo do que as intervenções tradicionais do saneamento

básico da década de 1980. Fonte: Belém (2006b, p. 25). ....................................................................................... 160 Ilustração 36 Esquema de remanejamento da época de audiência pública sobre o projeto Portal da Amazônia na

Universidade Federal do Pará. Planejamento não cumprido das remoções, e andamento da obra fora do cronograma

divulgado, porém já em situação de conflito social. Fonte: Belém (2006b, p. 48). ................................................... 165 Ilustração 37 Esquema de remanejamento do Portal da Amazônia, da SEHAB, em blocos verticais de apartamentos.

Foto: Cláudia Ribeiro (nov. 2008). .......................................................................................................................... 166 Ilustração 38 Proposta de condomínio horizontal na área de "orla" fluvial de Belém/PA. Contradição evidente entre a

"justiça social" dos discursos e o projeto físico hegemônico. Fonte: Movimento Orla Livre (2005). .......................... 167 Ilustração 39 Proposta livre para imediações do Centro Histórico de Belém e “orla” da cidade. Nota-se uma marina,

píeres, estaleiros e espaços públicos onde hoje, provavelmente, estão as estâncias, os portos informais e o comércio

de bairro. Fonte: Movimento Orla Livre (2005). ....................................................................................................... 168 Ilustração 40 Modelagem computacional exibe museu aquático algo semelhante à famosa Ópera de Sydney, além do

passeio com motivos regionais estilizados. Fonte: Movimento Orla Livre (2005). .................................................... 169 Ilustração 41 "Plataforma urbanizada" do Portal da Amazônia; alteração radical de usos e padrões do território. Fonte:

Belém (2006c). ..................................................................................................................................................... 172 Ilustração 42 Avenida Visconde de Souza Franco, circa 1975. A via possui um canal/rio urbano e divide os bairros de

classe média do Reduto e do Umarizal, em Belém-PA, terminando na zona portuária da cidade (ao fundo, na imagem,

com os guindastes do porto à beira da Baía do Guajará). Padrão de intervenção em canais de drenagem do tipo

tradicional, atualmente em processo de discussão. Fonte: Skyscraper city (2008). ................................................. 180 Ilustração 43 Proposta esquemática de tanque de acumulação (conhecido como “piscinão”), do projeto Portal da

Amazônia, técnica que representa inovação em projetos de drenagem urbana, evitando a acentuação do pico de cheia

a jusante, e considerando a retenção temporária das águas (BUENO, 2005) em áreas de baixa declividade e ocupação

relativa no entorno. Fonte: Belém (2006b). ............................................................................................................. 181 Ilustração 44 Esquemas de seções-tipo de canais (ou "rios") urbanos da proposta inicial do projeto Portal da Amazônia

mostram a variedade de tecnologias e formas de tratamento destes cursos d´água proposta no início dos trabalhos de

divulgação do projeto. Hoje pode ser dito que a maior parte destas tecnologias foi revista em função de padrões mais

convencionais. Fonte: Belém (2006b, p. 28). ......................................................................................................... 182 Ilustração 45 O parque ambiental Mangal das Garças. Vista do mirante, da cobertura de um de seus restaurantes, com

a Igreja da Sé ao fundo. Fonte: Pará (2005a). ......................................................................................................... 184 Ilustração 46 O prédio do restaurante, onde também estão o trapiche e o Memorial Amazônico da Navegação, no

parque Mangal das Garças; usos da revitalização urbana, mas associados a conteúdo regional e com pretensões

ecológicas. Foto do autor (set. 2009). .................................................................................................................... 186 Ilustração 47 Vista do Mangal das Garças, a partir da torre do mirante. Foto do autor (jan. 2007). ........................... 187 Ilustração 48 Vista do Mangal das Garças, com ocupações vizinhas e as obras vizinhas do Portal da Amazônia;

sobreposição de usos e conflito. Foto do autor (jan. 2007). .................................................................................... 187 Ilustração 49 O Farol de Belém: inscrito nas cartas náuticas brasileiras, é ao mesmo tempo mirante do parque Mangal

das Garças e ícone nostálgico, remetendo a antigas estruturas da cidade. Foto do autor (set. 2009). ...................... 189 Ilustração 50 O galpão do Armazém do Tempo funciona como café e loja no parque Mangal das Garças. Foto do autor

(set. 2009). ........................................................................................................................................................... 190 Ilustração 51 Imagem da torre do mirante do Mangal das Garças; proximidade com a intervenção viária do Portal da

Amazônia e vista do aningal. Foto do autor (set. 2009). .......................................................................................... 191 Ilustração 52 Exemplo de desenho de caminhamentos e traçados do partido urbanístico e paisagístico do parque

Mangal das Garças (viveiro de pássaros à direita, na base da foto); o orgânico dialoga com a vegetação regional, e

remete tanto à familiaridade do espectador com o local quanto ao discurso ambiental nas intervenções urbanas. Foto

do autor (set. 2009). ............................................................................................................................................. 193

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Ilustração 53 A Estação das Docas, nas margens da Baía do Guajará, em Belém-PA: waterfront e apelo da "orla" na

cidade. Foto do autor, dez. 2003. ........................................................................................................................... 197 Ilustração 54 Muro de contenção do projeto Ver-O-Rio, quiosques e passeio ao fundo; "orla" mais democrática através

do projeto, segundo os autores da intervenção. Foto do autor, dez. 2003. ............................................................... 199 Ilustração 55 Imagem digital simulando o projeto Ver-O-Rio, nas imediações da zona portuária de Belém (com edifício-

memorial não construído, à direita): intervenção com discurso regionalista e Fonte: Belém (2003). ......................... 201 Ilustração 56 Imagem da intervenção urbana Sangria Desatada (2009); outros significados dos espaços culturais

recentes da cidade. Fonte: rede aparelho (2009). ................................................................................................... 203 Ilustração 57 Fachada do antigo Hospital Militar da cidade, a Casa das Onze Janelas, com intervenção Sangria

Desatada. Fonte: rede aparelho (2009). .................................................................................................................. 203 Ilustração 58 No complexo Feliz Lusitânia, o Pìer das Onze Janelas, espaço cultural, e a corveta, objeto das

manifestações artísticas do grupo rede aparelho. Foto do autor (set. 2009). ........................................................... 204 Ilustração 59 O Porto de Belém, em operação de carga. Fonte: CDP (2005). ........................................................... 206 Ilustração 60 Porto de Belém; vista do cais acostável, galpão 4. Foto do autor, jan. 2007. ....................................... 208 Ilustração 61 O porto de Belém, visto a partir da Baía do Guajará. Fonte: CDP (2005). ............................................. 209 Ilustração 62 Divisão regional das bacias hidrográficas brasileiras. A área de estudo aparece em amarelo (Amazônica)

e em marrom (Tocantins-Araguaia). Fonte: MMA (2004, p. 16). ............................................................................. 219 Ilustração 63 Mapa da região hidrográfica Tocantins-Araguaia. A ANA (2009): potencial para agricultura irrigada,

urbanização alta, carência de esgotamento sanitário e necessidade de adequação de usos. Fonte: ANA (2009). ...... 220 Ilustração 64 Mapa da região hidrográfica do Amazonas, a "maior do mundo em disponibilidade de água" (ANA, 2009.

Grande extensão territorial, concentração do recurso hídrico, baixas densidades demográficas, grande biodiversidade e

necessidade de estudo da sub-bacia do Rio Xingu, por ocasião da hidrelétrica de Belo Monte (PA), são apontadas.

Fonte: ANA (2009). ............................................................................................................................................... 221 Ilustração 65 O diagrama clássico de Geddes sobre a seção de vale (relacionando atividades ao ambiente e à bacia

hidrográfica) oferece um curioso exemplo de ecletismo entre determinismo e possibilismo geográfico. Fonte: Geddes

(1994). ................................................................................................................................................................. 237 Ilustração 66 A célebre imagem da NASA, agência espacial norte-americana, atesta a concentração territorial nas

proximidades do mar, nas costas litorâneas dos continentes, através do mapeamento das luzes das cidades. Fonte:

NASA (2000). ........................................................................................................................................................ 253 Ilustração 67 Imagem da Praça Cheonggye, em Seul, Coréia do Sul. Ponto inicial do córrego Cheonggyecheon,

restaurado, notório projeto de desenvolvimento urbano com descanalização e re-exposição da superfície da lâmina

d´água. Fonte: Seul (2009). .................................................................................................................................. 263 Ilustração 68 Imagem de queda d´água no córrego Cheonggyecheon, Seul, Coréia do Sul. O espetáculo urbano das

revitalizações é relacionado à recuperação ambiental. Fonte: Seul (2009). .............................................................. 264 Ilustração 69 Uma das pontes do córrego Cheonggyecheon, em Seul, Coréia do Sul. Fonte: Seul (2009). ................ 264 Ilustração 70 Duas pontes em construção, sobre o córrego Cheonggyecheon, em Seul, em 2004, à época das obras.

Notar o leito ainda ensecado. Fonte: Seul (2009). ................................................................................................... 265

ÍNDICE DE GRÁFICOS

GRÁFICO 1 MOVIMENTAÇÃO DO PORTO DE BELÉM, POR NÚMERO DE EMBARCAÇÕES (1840-1880), ATESTA A

ACENTUAÇÃO DO FLUXO NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO COM A BORRACHA, COM CRESCIMENTO DE 274,4%.

FONTE: PENTEADO (1973). .................................................................................................................................... 98

GRÁFICO 2 TONELAGEM DO PORTO DE BELÉM (1840-1880) APONTA INCREMENTO DE 2.193,9% NA

MOVIMENTAÇÃO. FONTE: PENTEADO (1973). ........................................................................................................ 98

ÍNDICE DE TABELAS

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TABELA 1 RENDA MÉDIA DOMICILIAR DOS DISTRITOS ADMINISTRATIVOS DO MUNICÍPIO DE BELÉM COMPROVA

A SITUAÇÃO DE RELATIVA POBREZA DO DISTRITO ADMINISTRATIVO DO GUAMÁ (DAGUA), ÁREA POPULOSA E

ENTRECORTADA POR CANAIS URBANOS, COM NUMEROSOS PORTOS PRIVADOS E INFORMAIS E UMA MICRO-

ECONOMIA BASTANTE DINÂMICA EM SEUS BAIRROS. FONTE: BELÉM (2006D). ................................................. 150

TABELA 2 RENDA MÉDIA DOMICILIAR DE BAIRROS COMPONENTES DA BACIA DA ESTRADA NOVA, ONDE ESTÁ

SITUADO O PORTAL DA AMAZÔNIA, MOSTRA OS BAIRROS DO JURUNAS, DO GUAMÁ E DA CONDOR COM RENDA

MAIS BAIXA DO QUE OS DEMAIS. ESTES BAIRROS, ENTRETANTO, SÃO MAIS POPULOSOS NA BACIA, EM MÉDIA.

FONTE: BELÉM (2006D). ...................................................................................................................................... 150

ÍNDICE DE MAPAS

Mapa 1 Área urbana do município de Cametá-PA. Estruturação a partir do rio. Fonte: IBGE (2000). ........................... 56 Mapa 2 Área urbana do município de Baião-PA. Porto, trapiche e feira instalados nas margens do rio. Fonte: IBGE

(2000). ................................................................................................................................................................... 58 Mapa 3 Localização de municípios do Estado do Pará em relação a cursos d´água das imediações da Região

Metropolitana de Belém, da região do Baixo Tocantins, do Marajó e do entorno da Baía do Guajará. Fontes: IBGE

(2010); SIGIEP (2007). ............................................................................................................................................ 60

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AGRADECIMENTOS

O professor Robert Moses Pechman certa vez me advertiu, sábia e ironicamente, que

agradecimentos extensos eram, na etiqueta acadêmica, pouco elegantes. Tendo a concordar com

ele; por outro lado, a aparência de ingratidão e o silêncio da não-confissão da dívida me pareceram

tão indelicados quanto. Peco, portanto, por excesso.

Agradeço a Adauto Lucio Cardoso, orientador de longa data, pelo acompanhamento,

pelos ensinamentos, pela cumplicidade e amizade. Em um último momento sua participação foi tão

decisiva quanto o fora no acúmulo dos oito anos anteriores, desde o Mestrado no IPPUR-UFRJ.

Obrigado. Agradeço também aos professores-membros da banca de avaliação: professor José

Júlio Ferreira Lima, “co-orientador” informal e onipresente, estável e companheiro, a quem devo

vários tipos de gratidão; Frederico Guilherme Bandeira de Araujo, pelo ensinamento e enorme

ilustração, e pela amizade; Henri Acselrad, a quem tive a oportunidade de acompanhar mais

detidamente no doutorado e com quem aprendi muito, em diversos e vastos campos; à professora

Ana Lúcia Nogueira de Paiva Britto, pelo aceite da participação na banca e pela possibilidade de

colaboração em pesquisa. Agradeço a todo o corpo docente e funcional do IPPUR-UFRJ, pela

formação, pela dedicação e pelo enorme apoio, nesta unidade acadêmica onde cumpri parte

transformadora de minha formação. Agradeço a José Augusto Pádua, cuja disciplina História e

Natureza no PPGHIS-IFCS me permitiu entrar em um campo de estudos até então inédito para mim.

Em especial agradeço, por fim, a Robert Pechman, pelo acompanhamento, como citado acima.

Aos amigos de curso, todos imprescindíveis, que devo citar para contrariar ainda mais o

mestre: Walcler, Javier, Regina Petrus, Alex, Fernando, Regina Guelman, Vera, Flaviane, Luciane,

Viviani, Glauco, Daniella, Anita.

A Romero, Zuleide, Janaina e Mariana, cujo amor e apoio sempre dão condições para

seguir adiante, a quem devo uma vida inteira.

À Luciana que, então recém-chegada à convivência e à elaboração da tese, literalmente a

salvou, salvando o autor do desespero; a ela dedico todo amor e gratidão.

Page 11: Tese Cidade e Agua Jximenes

11

RESUMO

O trabalho, objeto de tese de doutorado, é uma investigação sobre a territorialização às

proximidades e na relação condicionante da interface com a água, entendida como fator locacional

e influente na estruturação de relações entre o território e o ambiente. A investigação utiliza o

município brasileiro de Belém-PA, situado no Norte do país, e áreas de seu entorno, para

caracterização de um padrão tradicional de assentamento às margens dos cursos d´água, os

ribeirinhos, e para pesquisa em territórios urbanizados. Em ambos, a presença da água e a

estruturação territorial estão relacionadas, criando padrões diferenciados de reprodução das

desigualdades no acesso ao ambiente, às benesses territoriais da proximidade da água e, portanto,

a fatores locacionais historicamente formados a partir desta situação idiossincrática. Pretende-se

articular quatro fenômenos contemporâneos — a engenharia ambiental, o waterfront, a

modernização portuária e a gestão de recursos hídricos — para discutir as formas

contemporâneas de monitoramento, controle e planejamento do território à água e de seus atuais

padrões de desigualdade. Conclui-se que, a partir da abordagem diversificada da água no território

urbano, enquanto substância, paisagem, veículo e recurso, haja a formação atual de uma política

de controle aberto e difuso, também variado, da água.

Palavras-chave: água; ambiente urbano; planejamento urbano; urbanismo.

Page 12: Tese Cidade e Agua Jximenes

12

ABSTRACT

This work, actually a PhD thesis, is a research about territories in relation and proximity

conditions to interface with water courses, which are understood as locational factors and general

influences in urban and environmental formation. The research works with the municipality of

Belém, in the Brazilian Northern state of Pará, and its regional surroundings, to study traditional

patterns of human settlements next to water courses, locally called riverine, and to study and

analyze urban settlements aspects as well. In both cases, riverine settlements and cities, water

courses proximity and urban growth are related, creating differentiation in access to environmental

items and inequality reproduction processes. Territorial benefits, assessed as outcomes from

proximity and factual appropriation of water courses´ possibilities, are also unequally available in

contemporary urban space. This work connects four urban and regional phenomena —

environmental engineering, waterfronts, port modernization, water management — in order to

create a discussion on territorial planning, monitoring and control applied to urban environment

today; specifically, to urban water and actual tendencies of uneven development. In conclusion,

urban water is multiple in meanings and practices; it is substance, landscape, vehicle and

resource, and its multiplicity reinforces open, diffuse forms of control in urban environmental

issues: the formation of water politics.

Keywords: water; urban environment; urban planning; urbanism.

Page 13: Tese Cidade e Agua Jximenes

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1. INTRODUÇÃO

Este trabalho é sobre a relação entre a cidade, como forma territorial de assentamento

humano, e o ambiente natural em que está inserida. Especificamente, refere-se à dimensão da

água como fator condicionante de processos de formação do espaço habitado, produzido

historicamente. Deste modo, o trabalho estuda aspectos da relação entre cidade e água.

De certo modo, falar destes dois fenômenos (ou, se permitirmos algum grau de

generalização, destes dois fatos, ou elementos) induz a uma discussão provável entre cidade e

ambiente, ou entre cidade e natureza. Desde o século XIX, portanto, esta é tida como uma

discussão pertinente; a própria expansão da cidade industrial, em termos demográficos e físico-

territoriais, levara a um enfrentamento do problema da drenagem, do paisagismo, do ruído (SPIRN,

1984), da própria dinâmica de uso do espaço urbano. Neste aspecto, portanto, falar de cidade e

água remete a uma discussão já antiga, digamos.

O tema possui alguns pontos conceituais, espaciais ou temporais, como é de praxe

em trabalhos de pesquisa na área do planejamento urbano e regional. Não sendo a intenção

estabelecer um esforço de mapeamento de todas as formas desta relação entre a cidade e as

águas que a cortam ou circundam, há uma tentativa de cercar um objeto a partir de fatos sociais

de certa concretude, associados ao debate teórico sobre a questão ambiental urbana. Esta

“relação” entre cidade e água, por outro lado, precisa ser construída; não existe um dado objetivo

que relacione as duas noções, obrigatoriamente. Deste modo, estuda-se uma problemática afeita

aos estudos urbanos e regionais cujo conteúdo tem relação com o debate ambiental aplicado ao

planejamento urbano. Como citado, o objeto de estudo é limitado por alguns fatos e por parte da

discussão teórica que pode informar sua análise.

A avaliação e a casuística do trabalho são feitas a partir da empiria do caso do

município de Belém-PA, Norte do Brasil. A partir desta empiria, e da estruturação histórica da

cidade em relação ao aproveitamento de seus cursos d´água, alguns fenômenos são tomados

como referência, para efeito de definição de uma problemática territorial da água na cidade. Como

dito, estes fenômenos não pretendem esgotar o problema, e tampouco mapear a totalidade das

formas de uso e apropriação dos territórios às proximidades da água. A amostra de elementos

incorpora variedade razoável de fenômenos, com abordagens diversas da água na cidade, o que,

indiretamente, favorece uma análise mais abrangente e com maiores possibilidades de

Page 14: Tese Cidade e Agua Jximenes

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generalização e, portanto, de aplicação enquanto formulação conceitual. Os fenômenos em

estudo, especificamente, pressupõem usos (atividades, racionalidades) e formas de apropriação

(lógicas econômicas, tipos de formação territorial) da água que cobrem desde atividades de

caráter eminentemente técnico, como as zonas portuárias e o saneamento urbano, até figuras mais

ligadas aos novos usos culturais dos centros urbanos, como os parques da indústria

contemporânea do turismo, em áreas portuárias ou margens de cursos d´água. Os elementos que

ajudam a limitar o objeto de estudo e suas possibilidades de análise são:

A constituição de áreas públicas, em escala urbana e freqüentemente em áreas

portuárias, para a instalação da chamada economia da cultura (JAMESON, 2001), novo

padrão e uso de destinação destas estruturas em áreas centrais das cidades;

O processo recente de modernização portuária, que constitui modificações tecnológicas,

espaciais e administrativas (PORTO, 1999) de impacto nas regiões sob alguma influência

dos fluxos econômicos de navegações;

A incorporação crescente de tecnologias ambientais nas “engenharias urbanas”, de modo

a consolidar gradativamente um padrão de intervenção que se pretende ecologicamente

compreensivo, perceptível, sobretudo, em obras de infra-estrutura associadas ou não a

intervenções urbanísticas e paisagísticas;

A consolidação, embora com variações regionais e nacionais, de aspectos técnicos e

institucionais de políticas de gestão de águas, ou de gestão de recursos hídricos, em

realidades diferenciadas, o que é aplicação da teoria econômica e das engenharias —

sobretudo sanitária e “de águas”, uma especialidade francesa (BARRAQUE, 1992) — ao

ordenamento territorial na questão de um possível “gerenciamento” do ambiente.

Estes fatos configuram, respectivamente, intervenções territoriais e/ou medidas

institucionais, em geral de ordenamento do território. Deste modo, é possível perceber

continuidade em efeitos e em aspectos da forma como a água é abordada na cidade, enquanto

elemento da paisagem. Estes fenômenos, como se pode notar, são diferentes entre si. Por outro

lado, sustenta-se a tese de que eles, em conjunto, tragam alguns elementos de integração a partir

da proximidade com a água e da configuração de ações em torno de suas formas de

aproveitamento na cidade. Embora haja lógicas diferentes em cada um dos quatro fenômenos

listados, há reafirmação neles da dimensão substantiva da água no território urbano, como fator

locacional.

O caso específico de estudo e análise, portanto, é o do município de Belém, no Estado

Page 15: Tese Cidade e Agua Jximenes

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do Pará. Belém-PA é uma cidade de fundação secular, situada em região estuarina e tem, em

sua estruturação urbanística e em seus usos do solo, diversos exemplos de aproveitamento, uso e

apropriação dos cursos d´água em um espaço urbano. O caso específico colabora com a

construção deste objeto de estudo, de modo que os quatro elementos citados (parques urbanos da

economia da cultura; portos modernizados; engenharia ambiental; gestão de recursos hídricos)

têm representantes concretos na empiria da pesquisa. Os fenômenos de Belém-PA, em termos da

cobertura espacial da área de estudo, sofrem ligeira ampliação quanto à amostragem de casos

concretos, incorporando exemplos externos ao município, mas situados no estuário da Baía do

Guajará, nas proximidades de Belém-PA; contudo, é preservada a influência predominante da

capital na questão.

Os quatro fenômenos citados da relação entre cidade e água não esgotam a questão,

como dito; na verdade eles podem representar uma possibilidade de avaliação, feita parcialmente a

partir do caso do município de Belém-PA e de seu entorno regional. Estes fenômenos, entretanto,

podem ser ilustrativos na construção de uma problemática atual da urbanização no que diz respeito

aos chamados “recursos hídricos”, e mesmo para pensar eventuais questões subseqüentes. Os

elementos da relação entre cidade e água podem ser concretamente ilustrados a partir de

intervenções urbanísticas ou medidas institucionais atualmente em curso em Belém-PA e região. A

cada forma de intervenção territorial1

ou política de ordenamento territorial citada, portanto,

corresponde uma forma de tratamento, de abordagem, da água na cidade. Estes elementos seriam,

em linhas gerais, os seguintes:

Quanto aos parques urbanos de características predominantemente histórico-culturais, os

exemplos estudados são situados em Belém-PA: o waterfront da Estação das Docas, na

zona portuária da cidade, o conjunto de espaços culturais do Complexo Feliz Lusitânia (no

centro histórico tombado da cidade) e a intervenção urbanística do Complexo Ver-O-Rio,

nas imediações do porto da cidade. Estas intervenções exibem alguns traços

1

Como poderá ser visto no decorrer do trabalho, trata-se como formas territoriais da relação cidade-água o conjunto

de estruturas físicas e lógicas sócio-econômicas e territoriais de aproveitamento da água no espaço urbano, onde a

presença do elemento hídrico teria participação substantiva, relevante. Por outro lado, fala-se em intervenções

territoriais, a propósito desta mesma relação, quando há referência a projetos de urbanização e políticas ambientais e

de ordenamento territorial contemporâneos, que preservam diferenciais essenciais já presentes nas formas, em geral

tradicionais, de uso e apropriação da água na cidade, mas com novas configurações espaciais e ditames econômicos

de geração de diferenciais no território.

Page 16: Tese Cidade e Agua Jximenes

16

característicos do que se convencionou chamar de intervenções contemporâneas de

caráter revitalizante, por exemplo (HARVEY, 2000).

Quanto ao processo de modernização de zonas portuárias, o Porto de Belém se apresenta

como estrutura de alcance regional que, atravessada pela qualificação de dupla

obsolescência (funcional e administrativa), suscita debates e ensaios de projetos técnicos

para sua adequação ou remoção, em outras bases, para outros locais do Estado, em graus

variados de aproximação do padrão hubport.

Quanto ao uso das engenharias urbanas aplicadas à discussão e a técnicas de

recuperação ambiental, podem ser citadas a criação do parque naturalístico Mangal das

Garças2

, nas imediações do centro histórico de Belém-PA, e as tecnologias para o

saneamento ambiental constantes de material de discussão técnica da macrodrenagem da

bacia da Estrada Nova, parte do Projeto Portal da Amazônia, em extensão da periferia

próxima da cidade.

Quanto à aplicação da gestão de recursos hídricos no Estado do Pará é estudado o caso

da Secretaria de Estado de Meio Ambiente (SEMA). A Secretaria é abordada

particularmente na sua atuação direta e em propostas da sua diretoria especializada no

tema, que afirma ser o propósito da política estadual “promover a gestão integrada e

participativa dos recursos hídricos e seus usos múltiplos de forma racional e sustentável”

(SEMA, 2009). Isto se mostra totalmente calcado em princípios do atual Plano Nacional de

Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente (MMA, 2006) e, portanto, de acordo

com diretrizes de influências diversas na constituição da política.

1.1. A ÁREA DE ESTUDO

O estuário guajarino (região estuarina da Baía do Guajará) é uma região do complexo

hidrográfico da foz do Amazonas onde há variedade de padrões e atividades no território. Esta

variedade compreende territórios diversos, entre comunidades de pescadores, núcleos urbanos

seculares, setores relativamente industrializados, serviços diversos e estruturas tecnológicas de

conexão com a água, de articulação e logística. A área urbanizada que corresponde ao núcleo

urbano do município de Belém-PA é, sem dúvida, a de ocupação mais densa, e é em torno dela a

2

Embora este parque urbano seja um exemplo que caiba, ao mesmo tempo, na categoria daqueles espaços da economia da

cultura e nos exemplos com propósitos ambientais.

Page 17: Tese Cidade e Agua Jximenes

17

maior concentração de atividades econômicas e impactos sócio-ambientais de transformação e

processamento da paisagem na micro-região (IDESP, 1990). A ampliação da região da pesquisa,

extrapolando o limite territorial, administrativo, do município de Belém-PA, faz-se necessária devido

à investigação das formas ribeirinhas descritas e, ainda, pela necessidade de ligação com

dinâmicas contemporâneas de mudança nos territórios às proximidades da água: as zonas

portuárias e cidades de outros portes, além das articulações regionais de Belém-PA. A

necessidade de configuração de uma problemática contemporânea da territorialização junto aos

cursos d´água direciona a pesquisa para locais onde as práticas representam temporalidades mais

articuladas às dinâmicas atuais do capitalismo. Desta forma, espaços mais urbanizados são

incluídos no trabalho, sobretudo no município de Belém-PA e entorno imediato.

Para o desenvolvimento da pesquisa é necessário, portanto, comentar e analisar

fenômenos espacialmente presentes nas margens fluviais do município de Belém-PA, em sua

região de ilhas fluviais, distritos e seu entorno, especificamente no município próximo de Curuçá-

PA. O município de Curuçá-PA, situado na região do Salgado paraense, fora do estuário guajarino,

é um dos locais onde se pensa a implantação de um porto modernizado, do tipo hub-port, em uma

proposta que, apesar da pouca viabilidade orçamentária atual, deve ser considerada pelo exercício

técnico e político e pela sua ligação com o momento histórico atual. De certo modo, esta inclusão

representa uma extensão da cobertura espacial da pesquisa, ainda que com limitações. A

cobertura espacial mais representativa do trabalho, entretanto, é aquela correspondente ao núcleo

urbano mais adensado de Belém-PA e região imediata. Nesta área está situada a maioria dos

fenômenos apontados como referência para elaboração e discussão de uma problemática da

relação entre cidade e água, dentro do formato proposto para a pesquisa.

O caso de Belém-PA revela-se representativo devido ao acúmulo de iniciativas de

impacto coletivo atualmente em curso, no território que qualificamos aqui como de interface entre

cidade e água. Conforme relatado anteriormente, estas iniciativas (parques urbanos; modernização

portuária; engenharia ambiental; gestão de recursos hídricos) formam um contexto atual de

convergência em torno da relevância locacional da água como fator de estruturação do território.

Além da obviedade do fato de ser Belém a maior centralidade da região, o município e de seu

entorno exibem estas formas territoriais, contemporaneamente identificáveis. A convergência

destas iniciativas permite, portanto, a formação de um campo de pesquisa, com referências

empíricas, capaz de fornecer elementos para análise da territorialização às proximidades de cursos

d´água. Desta feita, entretanto, esta análise deve ser executada em bases empíricas diferenciadas

Page 18: Tese Cidade e Agua Jximenes

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daquelas relatadas anteriormente. No caso, desloca-se a importância das formas ditas

“ribeirinhas”, tradicionais, do território próximo à água para migrar em direção a referências de

caráter mais contemporâneo, isto é, de maior complexidade na divisão social do trabalho, de

emprego mais intensivo de tecnologias de intervenção territorial.

O caso em estudo, entretanto, não é apenas sobre intervenções territoriais em espaços

situados nas proximidades de cursos d´água. Estas modificações nos territórios próximos e sob

algum grau de influência dos cursos d´água apontam para disputas por diferenciais de localização,

de potenciais de aproveitamento econômico e produção de relações de poder. O caso consiste,

portanto, na criação de uma das várias frentes atuais de produção de desigualdade no acesso ao

ambiente urbano, a suas possibilidades de obtenção de estratégias de reprodução social e

apropriação das benesses territoriais da aglomeração de atividades econômicas, do acúmulo de

capitais fixos no território (HARVEY, 1990) ou da disponibilidade de recursos ambientais. A água é,

dentro dos espaços urbanos atuais, um elemento da paisagem com diversos atributos, e que sofre

diversas abordagens, portanto.

Na cidade a água é apropriada não apenas por suas propriedades físicas, químicas ou

físico-químicas de solvência, sulfactação em associação com outras substâncias, empuxo,

eletrólise, catálise, arrefecimento ou densidade. A água na cidade é um dado apropriado de modo

variado; pode ser abordada em termos sócio-culturais, como item evidente em processos de

produção, como possibilidade de deslocamento espacial, como base de obtenção de alimentos,

dentre outros usos. A água, portanto, entendida como condicionante das formações territoriais, é

ao mesmo tempo natureza e cultura, porque é entendida como elemento não-humano, portanto

natural (DESCOLA, 1997) e porque, sendo parte do ambiente, constitui o repertório necessário para

parte das constituições das visões de mundo, da materialidade das cosmologias formadas pelas

diversas sociedades (DESCOLA, 1998). Contemporaneamente, a água na cidade é tratada, também,

de forma a transitar entre estas duas condições; ora culturalizada, recebe intenção própria e

elimina impurezas sociais; naturalizada, a cidade que com elas faz margem entra em processo

simbiótico com seu rio e sua baía, formando um curioso ethos citadino, como poderá ser visto.

Não sendo natureza e cultura pares opostos conceitualmente (DESCOLA, 1997; 1998), e não

existindo nenhum dos dois em absoluto, podemos pensar também nas formas de apropriação da

água como estratégias políticas na cidade; é construído um amplo ideário das chamadas “águas

urbanas”, ou as águas da cidade são acionadas para a remoção de populações pobres ou usos

qualificados como indesejáveis historicamente. Em síntese, se há diferenciais locacionais

Page 19: Tese Cidade e Agua Jximenes

19

referentes à proximidade de cursos d´água no espaço urbano, trata-se de conflitos sócio-

ambientais, onde há uma situação de assimetria na apropriação dos itens do ambiente e tensão em

torno do acesso a estes itens (SABATINI, 1997). Em uma economia capitalista, concebendo uma

estrutura de acesso a terra através do mercado, entende-se, portanto, a tendência praticamente

generalizada de disputa pelas localizações e por seus ativos decorrentes em função da capacidade

de cada agente se apropriar da terra (HARVEY, 1980). Deste modo, ao menos em parte da análise, o

conflito sócio-ambiental de uso e apropriação da água na cidade é uma questão filtrada pelo

acesso à terra. Este seria um requisito inicial para o uso e a apropriação do ambiente, embora não

represente uma condição indispensável, colocando a propriedade privada da terra como única

situação em que se faz possível o acesso a determinados itens do ambiente.

1.2. UMA “QUESTÃO” DA ÁGUA

Há, portanto, importância dos territórios próximos à água, no sentido sócio-econômico e

territorial. Existe, também, um caráter político da água no território da cidade. Como item do

ambiente que representa condicionante para tantas relações diferentes, a água se mostra como um

elemento de disputa, mas também como um potencial de desenvolvimento de atividades

econômicas e de estruturação de aglomerações urbanas, de certo modo. Neste sentido pode ser

entendida a articulação ampla feita nos dias de hoje para a implantação de grandes sistemas de

infra-estrutura urbana e regional, como sistemas urbanos de abastecimento de água, de drenagem,

de esgotamento sanitário, mas também de irrigação e, ainda, para a construção de zonas

portuárias modernizadas. Há diversos setores da economia cuja atuação se reporta diretamente à

aplicação da água como fator relevante do ambiente, e como possibilidade de transformação

territorial, portanto. A circulação e a urbanização da água tornaram-se pois profundamente

envolvidas na ecologia política do Estado local e nacional, das divisões internacionais do trabalho e

do poder, dos ciclos hidrológicos e climatológicos locais, regionais e globais (SWYNGEDOUW, 2001,

p. 102).

Uma possível “questão da água” (ou um mais amplo conjunto de prováveis questões da

água) nos dias de hoje lida, necessariamente, com os discursos hegemônicos sobre a sua

escassez e sobre sua distribuição desigual. Por outro lado, teria de lidar com a questão da

assimetria no acesso aos diferenciais de sua localização. O processo de formação territorial

próxima, ou sob a influência, dos cursos d´água, no caso das cidades, é representativo para a

Page 20: Tese Cidade e Agua Jximenes

20

análise da reprodução de desigualdades econômicas, sociais e territoriais no capitalismo

moderno. E as formulações acadêmicas e técnicas sobre uma possível “questão da água”,

freqüentemente, fazem parte deste processo de reprodução da desigualdade. A aplicação do

conhecimento científico, o desenvolvimento de técnicas de gestão do ambiente e as eventuais

normatividades decorrentes desta aplicação resultam em formas contemporâneas de abordagem e

tratamento destes territórios de caráter específico.

Parte significativa dos aglomerados urbanos do mundo está, historicamente, situada às

proximidades dos oceanos e cursos d´água em geral, bem como a maioria das plantas industriais

atualmente ativas (MORAES, 1999). Calcula-se, atualmente, mais de um bilhão de pessoas

residentes em centros urbanos costeiros, por exemplo (GPA, 2007a). A recorrência da localização

urbana nas bacias de drenagem litorâneas, neste sentido, ajuda a reafirmar a importância dos

territórios próximos à água enquanto sinais de estratégia locacional e, sobretudo, como dado

relevante da estruturação territorial das cidades em geral. As alterações territoriais significativas no

litoral (a partir dos portos modernizados e atividades correlatas) têm acarretado transformações na

maneira como as cidades produzem seu ambiente e, por conseguinte, na forma pela qual as

populações urbanas se assentam. O caráter radical das alterações territoriais decorrentes da

modernização portuária, e da modificação das estruturas físicas litorâneas como um todo, é um

importante fator de transformação do espaço urbano, hoje. As ações de planejamento na área têm

sido voltadas inclusive para o entendimento de seus impactos (GPA, 2007b) — embora a lógica

de sua estruturação permaneça, em linhas gerais, como concentradora dos diferenciais

locacionais dos territórios próximos aos cursos d´água.

Economicamente, segundo dados da UNESCO, cerca de 38% do PIB mundial seria

relativo a atividades desempenhadas em “ecossistemas costeiros” (GPA, 2007a)3

. A relevância

das formas territoriais nas proximidades da água, materializadas nos assentamentos urbanos ou

nas atividades econômicas, está ligada a outra dimensão problemática do capitalismo: a

desigualdade de acesso ao ambiente. Neste ponto, a água se revela um fator importante, tanto pela

representatividade da urbanização nas suas proximidades quanto pela forma de desigualdade de

acesso ao ambiente que representa. O caráter idiossincrático (MORAES, 1999) e particular dos

territórios próximos à água, com atividades praticamente exclusivas (MORAES, op. cit.), por

3

Os demais ecossistemas avaliados seriam os “terrestres” e os de “mar aberto” (GPA, 2007a). Embora o cálculo seja

assumidamente estimativo e relativamente impreciso, em linhas gerais explica a relevância econômica da apropriação do mar,

inclusive em termos simbólicos — como no caso da economia do turismo de massa.

Page 21: Tese Cidade e Agua Jximenes

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conseguinte, estrutura uma versão do que Leff (2003) chama de economização do mundo. Isto

ocorre porque, na medida da relevância dos territórios próximos à água para as atividades

urbanizadas do capitalismo atual, existe uma correspondente dinâmica de disputa, de produção de

desigualdades e de concentração de riquezas e diferenciais territoriais/locacionais. Há, portanto, a

reprodução de uma lógica de apropriação desigual do ambiente.

A aplicação das técnicas, materializada no que contemporaneamente é chamado de

gestão de recursos hídricos, de certa forma sintetiza o que podemos chamar de uma possível

questão da água no território. A gestão (ou a administração racional do ponto de vista da economia

e da lógica empresarial) das águas é convertida em uma política, com repercussões territoriais e

sócio-ambientais; deste modo, condiciona, restringe e modela, ainda que parcialmente, formas de

uso e ocupação, de aproveitamento econômico e de territorialização destes espaços às

proximidades dos cursos d´água. Esta aplicação, representada pela gestão das águas, assinala a

consolidação de uma forma de política, ocupada da esfera ambiental, que opera com a abstração

da ação do Estado no capitalismo e com suas possibilidades de intervenção transcendente (HARDT;

NEGRI, 2004) sobre os processos sociais.

1.3. ESTRUTURA DO TRABALHO

Para o desenvolvimento do tema, o trabalho é proposto em três capítulos. A estrutura

tenta recuperar aspectos da caracterização da relevância dos cursos d´água para a estruturação

territorial de cidades. Em seguida, fenômenos em curso, ou projetados, referentes a intervenções

territoriais na cidade de Belém-PA e entorno são descritos e comentados, de modo a representar

os contornos de uma possível relação entre os cursos d´água e seus condicionantes e a

urbanização de Belém-PA. Na seção seguinte do trabalho são apresentados desdobramentos

conceituais decorrentes da caracterização prévia, histórica e conceitual, da questão, associados ao

caso da cidade de Belém-PA.

No primeiro capítulo, portanto, o teor do trabalho é predominantemente histórico e, em

parte, teórico. São apresentados aspectos dos condicionantes da proximidade de cursos d´água

em relação à urbanização. Deste modo, exemplos representativos da história das cidades são

acionados para exibir tópicos das aplicações e formas de aproveitamento da água no território. A

água é aplicada em soluções de saneamento, ainda que rudimentares, em formas diretas de

captação, além de estruturar diversas construções culturais acerca de seu sentido. A água (e suas

Page 22: Tese Cidade e Agua Jximenes

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diversas representações) faz parte de narrativas das origens de grupos sociais, de sentidos de

suas práticas sobre o ambiente e cria parâmetros de territorialização. A própria recorrência e

variedade de citações e referências ao elemento no território urbanizado tem relação com a

importância da água na estruturação da cidade. No capítulo são sugeridas, por fim, formas e

lógicas territoriais de estruturas urbanas em proximidade com a água, de modo a apontar atributos

e usos específicos da água em tais espaços. Este ponto tem relevância para o estudo porque abre

a possibilidade de se identificar particularidades na constituição do território urbano na Amazônia a

partir do condicionante da presença da água, sobretudo das águas superficiais. Além deste ponto,

o capítulo procura identificar preliminarmente as lógicas básicas de aproveitamento da água no

território urbano, a partir da operação e abordagem da água na cidade feita a partir daquelas quatro

formas territoriais já citadas. Estas lógicas são estudadas com base em soluções tradicionais de

aproveitamento da água em assentamentos urbanos, e em consideração destas com outras

formas suas, modernizadas.

No segundo capítulo são apresentados exemplos de intervenções urbanísticas, políticas

ambientais e de ordenamento territorial e projetos de intervenção territorial para o município de

Belém, Pará, e região de entorno. O caso de Belém, no Estado do Pará, é estudado

especificamente, acerca de aspectos de sua urbanização na relação com os cursos d´água. O

município de Belém-PA tem, em toda a sua formação urbanística, exemplos de estruturação

territorial relacionados à proximidade da água no território. A partir de projetos de desenvolvimento

econômico recentes, a cidade e seu entorno têm sido objeto de implantação, ou concepção, de

formas de aproveitamento de suas margens fluviais, estuarinas ou mesmo marítimas. O

surgimento destas intervenções, ou de propostas de intervenção, assinala uma inflexão histórica

na região, no sentido de reafirmar a importância locacional da proximidade das águas, mas em

outras bases. A proximidade em relação aos cursos d´água passa a ser tomada por seus atributos

paisagísticos, na relação com o turismo de massa, além de suas formas técnicas anteriores,

modificadas. Além destes dois grupos de usos da água no território, há o surgimento relativamente

recente de uma política de natureza ambiental com pretensões de regulação e planejamento

espacial dos usos da água, a gestão de recursos hídricos. A descrição e as análises sobre as

intervenções territoriais em geral, em Belém-PA e entorno regional, caracterizam uma cidade onde

alguns novos atributos da água no espaço urbano são materializados, e onde modos subseqüentes

de desigualdade sócio-ambiental são reproduzidos. Neste sentido, nota-se que a água na cidade, a

partir do caso de estudo de Belém-PA, apresenta modificações em seus usos técnicos e

Page 23: Tese Cidade e Agua Jximenes

23

tradicionais, como o porto, mas também registra exemplos de “novas” aplicações. Dentre estas

novas aplicações está a incorporação de diferenciais paisagísticos, simbólicos, de valorização

fundiária e de concentração de benesses locacionais da proximidade com a água. Este fator, diante

de formas econômicas urbanas recentes, pontua a entrada de novas dimensões do ambiente na

cidade e nas formas atuais de desenvolvimento econômico capitalista, o que é aplicável a outras

localizações.

No terceiro capítulo do trabalho são desenvolvidas possibilidades de análise das formas e

intervenções territoriais comentadas nos capítulos anteriores. Entende-se, a partir do levantamento

histórico e conceitual, e da avaliação dos exemplos concretos estudados, que esteja sendo

progressivamente formada uma convergência de iniciativas de intervenção sobre a água no

território, atualmente. As lógicas territoriais, e as intervenções a elas correspondentes, situadas na

interface entre cidade e água, são diferentes entre si. Não teriam, portanto, elementos a relacioná-

las, senão pela coincidência da proximidade da água, em todos estes exemplos e lógicas. Os

aspectos que articulam estes fenômenos seriam, neste caso, referentes a formas atuais de criação

e reprodução de desigualdade ambiental em espaço urbano e, mais amplamente, relativos à

formação de uma política da água no território. São estudadas aplicações e usos da água na

cidade, como os parques urbanos de caráter cultural e paisagístico; a modernização de portos; a

engenharia ambiental e a gestão de águas. Neste terceiro capítulo são apresentadas diferentes

abordagens das chamadas “águas urbanas” (termo de uso corrente na discussão acadêmica atual

sobre o tema), de modo a evidenciar seus pontos de convergência, e assim permitir um

entendimento condensado de seus aspectos unificadores. Entende-se que a água na cidade, ou no

espaço ocupado e humanamente produzido atual, apresente tendências à concentração de

benefícios e de diferenciais locacionais e sócio-econômicos na interação entre apropriação de

recursos ambientais e formação do território. Esta concentração seria passível de leitura a partir

das diferentes formas de abordagem da água na cidade. Atualmente há, sobretudo na política

ambiental, um discurso generalizado de democratização do acesso ao ambiente. Entretanto, nota-

se que através de diferentes formas de abordagem, tratamento e apropriação da água na cidade,

há na verdade a instalação progressiva de padrões e formas seletivas de acesso (e de veto) a esta

parcela do ambiente urbano e, portanto, diversas formas possíveis de desenvolvimento econômico

e de acesso a recursos. Embora haja intenção declarada de se promover acesso amplo às

benesses da proximidade da água no território, esta convergência que forma um padrão

contemporâneo de instalação e acesso cria, progressivamente, formas novas de veto e de

Page 24: Tese Cidade e Agua Jximenes

24

seletividade.

A concatenação pretendida por esta estrutura de capítulos é pensada para contextualizar a

relação entre estruturação territorial urbana e cursos d´água para, a partir de casos concretos

relativos ao exemplo de Belém-PA, conceber formas de análise de uma possível questão da água

na cidade. Os fenômenos do caso de Belém-PA, analisados entre as considerações históricas e

conceituais e os desmembramentos conceituais do próprio trabalho, teriam função de articulação

entre a discussão geral, relativa à água no território, e a específica, tomada a partir de um conjunto

de exemplos, mas com algum nível de abstração. Isto é feito de modo que seja possível generalizar

esta conceituação para outros casos.

1.4. ASPECTOS METODOLÓGICOS

A estrutura proposta teria, portanto, aplicabilidade para a avaliação de formas de uso e

apropriação da água na cidade, entendida como fenômeno social e territorial contemporâneo. Os

exemplos abordados no trabalho, ou as suas lógicas territoriais, ou sua materialização específica

em intervenções territoriais4

, não pretendem encerrar a discussão, ou resumir o problema da água

na cidade. São utilizados neste trabalho, para efeito de análise, os exemplos de parques culturais e

paisagísticos urbanos; da modernização portuária; da engenharia ambiental; da gestão de águas.

Em torno destes quatro grupos de fenômenos que relacionam água e cidade estariam as formas

materiais de uso e apropriação da água no espaço urbano que, de certo modo, cobrem quantidade

razoável da problemática. Estes quatro fenômenos, como dito, não esgotam de modo algum a

discussão, mas permitem a relação entre suas características internas, para vincular os fenômenos

e para produzir avaliações referentes aos casos concretos, analisados na empiria deste trabalho ou

similares àqueles relatados na literatura científica. Haveria, portanto, a abertura para algumas

frentes de possível generalização e para a construção de formulações conceituais acerca do tema.

Um exemplo desta possibilidade de aplicação poderia ser dado a partir do caso da

engenharia informada por parâmetros físico-ambientais e ecológicos atuais. Esta engenharia, que

tratava e abordava a água na cidade como item de natureza técnica, instrumental, passa a

4

Que, como dito, seriam contemporâneas, mais expressivas da manifestação atual da formação do território que

articula cidade e água, e anteriormente passíveis de leitura pelas formas territoriais da cidade ribeirinha tradicional, sem

qualquer intenção de estabelecer marcos puristas ou “originalistas”, enquanto fenômeno portador de anterioridade

temporal.

Page 25: Tese Cidade e Agua Jximenes

25

favorecer a incorporação da paisagem de consumo visual (ZUKIN, 2000), de novas formas da

economia urbana e do marketing de cidades, no planejamento urbano. Deste modo, a água na

cidade, tomada como elemento natural com funções mecânicas e físico-químicas (drenar, escoar,

lavar, permitir deslocamento), passa a constituir a possibilidade de formação de diferenciais no

território, inclusive no sentido dos ganhos econômicos com a propriedade privada da terra, isto é,

das rendas fundiárias. Neste sentido, surgiria uma dimensão qualitativa do elemento paisagem na

acepção da água no território, inclusive em sua aplicação nas tecnologias de drenagem, o que

extrapola a abordagem técnica da água na cidade dada pelas Engenharias.

Como foi brevemente descrito na estrutura do trabalho, o texto começa com algumas

referências a metáforas, imagens míticas e representações sociais da água. A opção pelo caráter

histórico e conceitual se deve à necessidade de se construir, e caracterizar, a representatividade da

água no território. Diversas soluções e formas de aproveitamento da água existiram na história da

cidade; todas denotam, de um ou outro modo, a utilidade e a pertinência deste elemento no

território urbanizado. Os mitos, as narrativas, inclusive as de caráter originário, e as

caracterizações das coletividades sob algum tipo de presença da água dizem respeito, também, ao

modo como estas sociedades se posicionam diante de seu ambiente. Na construção mítica e nas

referências (fragmentadas, mas ricas em sentido) de Schama (1996) sobre a água como elemento

da natureza, há estratégias simbólicas de dignificação e exaltação da respectiva sociedade

formada sob os auspícios, digamos, de seus cursos d´água. Há, também, produção de vínculos

afetivos e políticos através da comunhão do mesmo rio por mais de um país, do compartilhamento

territorial de cursos d´água, e da idéia de imersão em conjunto em suas águas; o rio teria uma

espécie de capacidade de favorecer esta união (SCHAMA, 1996). As águas, por outro lado, são

tomadas como metáforas da circulação sangüínea, tanto do corpo do indivíduo, para seu estudo,

quanto para um hipotético corpo “coletivo” da nação (SCHAMA, op. cit.)

Por outro lado, as águas são, também, na História, malditas. Sujas, escuras,

escondidas, se situam em posição subordinada no ambiente, e se prestam à recepção dos

rejeitos, dos dejetos e ao uso como meios de concretização de atividades eminentemente técnicas,

como a navegação ou a drenagem. Tanto o litoral quanto os rios, embora tenham suas águas

carregadas de sentido poético e intimamente ligadas aos traços culturais locais (BACHELARD, 1997),

representaram também os espaços da pobreza e o lugar do interdito. Na beira da água, portanto,

houve um tempo em que não se desejava viver ou produzir, muito menos ter lazer.

O recurso às representações (ou a narrativas que atribuem sentido ao ambiente)

Page 26: Tese Cidade e Agua Jximenes

26

acerca de itens do ambiente permite a identificação das cargas simbólicas e das possibilidades,

devidamente justificadas, de uso e apropriação destes itens. De certo modo, o ambiente não

apresenta apropriação econômica sem algum tipo de racionalidade, ainda que esta seja

estritamente tradicional, empírica e permeada de mitologias e valores de uso (LEFF, 2006). Estas

racionalidades tradicionais, por outro lado, representam formas de entendimento do ambiente que

são transformadas e também testadas ao longo do tempo (LEFF, op. cit.) Elas também dizem

respeito às visões de mundo, às possibilidades e constrangimentos diante da natureza e, por outro

lado, diante das próprias possibilidades de desenvolvimento material das sociedades. É relevante

abordar aspectos das visões sobre a água no espaço ocupado pelo homem e na cidade,

especificamente, para entender suas aplicações, suas formas de uso e também seus mecanismos

de produção de sentidos — tanto de possibilidades quanto de constrangimentos, características

inerentes ao território (LIPIETZ, 1992).

Sob outro ponto de vista, os fenômenos empíricos e suas relações com a conjuntura

histórica são possibilidades de entendimento do processo de reconfiguração das margens dos

cursos d´água. Assim, intervenções territoriais pensadas ou executadas no caso específico de

Belém-PA e entorno permitem ao mesmo tempo conferir a extensão e a viabilidade da aplicação

daquelas representações sobre a água na cidade e entender o contexto de sua atual mudança de

sentido. As intervenções territoriais atualmente em curso em Belém-PA e região denotam um

exemplo pontual de um movimento, efetivamente mundial, de alteração das paisagens litorâneas, e

das paisagens situadas nas proximidades de cursos d´água em geral. Embora a cidade de Belém-

PA esteja entre as maiores do país, não se situa propriamente em papel de destaque em sua rede

urbana; por outro lado, sua relação histórica com o estuário da Baía do Guajará, um de seus limites

territoriais, confere ao caso um material de interesse para o estudo desta relação entre cidade e

água, na Amazônia e, talvez, em aspecto mais amplo. Tais intervenções seriam exemplos desta

transformação atual de espaços nas margens de cursos d´água. Os fenômenos concretos, se não

falam por si, podem ser entendidos sempre a partir de alguns pressupostos, orientados por

posturas metodológicas (BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 2004). As intervenções territoriais

recentes, ao criar espaços liminares (ZUKIN, 2000) na cidade, com separação entre padrões, níveis

econômicos, configurações espaciais e formas de uso e ocupação do solo, sugerem a criação de

diferentes tipos de acesso aos diferenciais das proximidades da água na cidade. Deste modo,

nota-se a formação de espaços separados por padrões de uso. Podemos identificar alguns como

mais legítimos do que outros; mais leves; mais apropriados; de menor impacto, segundo a

Page 27: Tese Cidade e Agua Jximenes

27

terminologia da burocracia estatal ou dos setores técnicos.

A partir das intervenções territoriais em margens fluviais da cidade de Belém-PA,

informadas por elementos conceituais e históricos da relação entre cidade e água, é possível

construir a análise destes territórios. Assim, foram definidas lógicas territoriais de estruturas

urbanas tradicionais, existentes sobretudo em casos regionais. Estas lógicas orientam a avaliação

de atributos destas estruturas urbanas, permitindo a identificação de processos constitutivos das

formas de uso e apropriação da água na cidade. Usos fundamentais destas estruturas, ou formas

de relacionamento do território urbanizado com os cursos d´água, são identificados em exemplos

históricos regionais e, posteriormente, em espaços urbanos contemporâneos. As lógicas

territoriais previamente identificadas tendem a permanecer nas cidades, mesmo naquelas que

passaram por acentuados processos de modernização — seja na estruturação urbanística, no

aproveitamento do território ou na aplicação das técnicas. Estas lógicas, entretanto, passam a ter

impacto em fenômenos concretos alterados por um contexto histórico de reprodução de

desigualdades no acesso ao ambiente urbano. Para o caso específico deste trabalho, o item do

ambiente urbano que se mostra como de maior interesse à pesquisa é a água. Deste modo, as

lógicas de determinados usos implantados no território urbano próximo à água são expostas a

novos condicionantes. Surgem, assim, atributos, abordagens, sentidos e práticas diferenciados

sobre o ambiente urbano. Esta construção é orientada a partir da idéia de práticas materiais

presente em Harvey (1996b), sobre a associação entre o sentido, as narrativas culturais

estabelecidas a respeito dos itens do ambiente e a sua dimensão material. A modificação

contemporânea operada nos territórios próximos à água, entendida a partir dos quatro casos de

intervenção territorial, demonstraria aspectos da desigualdade ambiental no acesso à água na

cidade.

O propósito da estruturação do texto, no seu trecho inicial, seria o de tentar articular

aspectos da dimensão cultural, e da relevância, dos sentidos do ambiente, à materialidade e a

exemplos concretos da empiria em estudo. Na Região Norte do Brasil há estratégias diversas de

produção de espaço (e, em sua inscrição sócio-política e econômica, de instauração de territórios,

portanto) com clara relação entre a rede hidrográfica e os assentamentos urbanos em diversas

escalas. As narrativas, sentidos e práticas associados a esta relação dizem respeito tanto ao

sentido do item do ambiente quanto às formas de utilização e aproveitamento que se faz dele.

As formas territoriais e os tipos de intervenções territoriais da relação entre cidade e água

são recuperados, recorrentemente, ao longo do trabalho, de modo a construir diferenças de

Page 28: Tese Cidade e Agua Jximenes

28

abordagem e, principalmente, contextualizações oportunas a cada aspecto do estudo. Este

recurso não pretende cansar o leitor; trata-se apenas de uma forma de sedimentar o argumento. É

assim que, em um primeiro momento, são tratadas lógicas de territorialização; num segundo

momento, exemplos e fenômenos de formas de intervenção e aproveitamento e em um terceiro

momento, desdobramentos destes em intervenções territoriais da relação entre cidade e água.

Lógicas seriam figuras conceituais para tentar apreender elementos fundamentais da

territorialização urbana próxima aos cursos d´água; estruturas espaciais e soluções técnicas

específicas para aquelas lógicas, como o porto; intervenções, manifestações contemporâneas da

aplicação das lógicas e de suas formas diversas, mas atuais, em uma problemática

contemporânea de acesso urbano aos usos diversos da água no território (e na paisagem) da

cidade.

A tentativa de elaborar construções conceituais, da aplicação através das técnicas e

da definição das políticas ambientais seria um recurso para construir possível questão da água na

cidade. Nota-se que intervenções territoriais e narrativas acerca do ambiente se articulam, de modo

que há sentidos atribuídos às ações materiais de intervenção espacial, e que são fundamentadas

em noções socialmente tidas como legítimas. As construções de caráter cultural sobre a água nas

cidades, e nos assentamentos humanos em geral, mostram narrativas também consideradas

legítimas sobre os códigos e práticas acerca do ambiente. Estes conceitos, técnicas e políticas,

disputando legitimidade no espaço social, configuram discursos e práticas de ação (BOURDIEU,

1998) sobre a materialidade da cidade, sobre as políticas ambientais, e sobre os agentes sociais. É

assim que determinados padrões de intervenção territorial nos casos em estudo, por exemplo,

apesar de exibirem lógicas semelhantes àquelas tradicionalmente aplicadas às cidades litorâneas

ou ribeirinhas, passam a ter prerrogativa modelar diante dos discursos generalizados de

decadência, degradação e “caos” sócio-ambiental nas cidades atuais. Estes modelos claramente

são convertidos em normatividades.

Em termos do propósito geral do trabalho é que se justificaria a estrutura de capítulos.

A sugestão de análise das particularidades de uma possível relação entre cidade e água, neste

estudo, foi motivada pela empiria do caso concreto abordado. Por outro lado, a associação entre

aspectos sócio-econômicos deste caso com a problemática relativamente semelhante em curso, e

tecnicamente em análise noutros contextos, permite que se induza a generalizações. Deste modo,

os fenômenos sociais e territoriais específicos em estudo passariam pela avaliação do debate

teórico sobre a questão entre cidade e ambiente, ou entre projetos de intervenção urbana e a

Page 29: Tese Cidade e Agua Jximenes

29

dimensão sócio-ambiental e cultural do processo contemporâneo da urbanização capitalista. As

possíveis elaborações conceituais dadas a partir deste ponto, então, não poderiam ser afirmadas

como totalmente calcadas no empírico; são aplicações parciais da discussão teórica atual ao caso

concreto e, em parte, sugestões de particularização e adaptação da discussão geral.

Pode ser tentada uma explicação entre e dimensão concreta dos fenômenos (suas

manifestações mais claras do ponto de vista quantitativo, ou a cobertura espacial de seus

impactos, ou em termos econômicos e demográficos) e suas abstrações (as narrativas e

construções conceituais em circulação, com afinidade temática em relação aos fenômenos). Em

um possível movimento entre ambos, um raciocínio central do trabalho seria o de, identificando

aspectos de uma problemática da água na cidade, e tentando buscar elementos de discussão nas

elaborações conceituais alheias, tentar trazer o caso para a dimensão generalizada da discussão

teórica e, em paralelo, dar a ele alguma especificidade para fora do pontilhismo obsessivo

(BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 2004). Em suma, para tentar fazer algum caminho entre o

concreto e o abstrato, parte-se do concreto, em suas manifestações apreensíveis, mas os

movimentos de retorno (e de conferência) podem ser mais indefinidos e, sobretudo, necessários.

Isto pode representar tanto o refinamento de um raciocínio (que se torna tanto mais abstrato

quanto mais depurado e generalizável, ou seja, teórico) quanto o teste relativo de suas premissas

(quanto à adequação da narrativa elaborada diante dos aspectos do fenômeno). Este movimento

(MARX, 1983) seria, assim, recomendável. Com a franqueza que é possível ter diante das ameaças

do controle do fenômeno científico social, construído e obrigatoriamente provado, e diante do

constrangimento do risco implicado, pode ser dito que neste caso não fazia sentido abstrair os

dados coletados em campo, e nem tentar aplicar as teorias em circulação ao caso observado,

senão tentar articular os dois procedimentos e suas variantes a serviço da pesquisa.

Sobre a estrutura, portanto, especificamente, a seqüência do raciocínio seria a de

trabalhar primeiro a dimensão cultural do ambiente, no sentido das construções do mundo, das

cosmologias do ambiente urbano, para delas extrair quais naturezas estariam impregnadas na

cidade, e quais delas recebem determinados atributos. O ambiente, como se sabe, não é isento de

juízos; construído, ele é também interpretação, embora tenha “natureza” parcialmente dada,

herdada, mas também sendo potencial e fato em transformação. Possíveis idéias (elogiosas,

danosas, fétidas ou pobres) sobre a água no território da cidade (ou noutros territórios)

permitiriam, assim, pensar inicialmente em um recorte espacial e sócio-cultural sobre o qual

trabalhar conceitualmente. A cosmologia do ambiente urbano próximo à água, maldita ou idílica,

Page 30: Tese Cidade e Agua Jximenes

30

confere possibilidades interessantes de análise ou, pelo menos, de articulação. Por exemplo: os

parques culturais contemporâneos de antigas cascas urbanas “deterioradas” (zonas portuárias

ociosas, estações de passageiros desativadas, mercados em áreas decaídas, etc.) podem ser

vistos como espaços urbanos que acionam, simultaneamente, a imagem de antigos usos técnicos,

funcionais, da água na cidade (transporte, escoamento, despejo dos rejeitos) a avaliações

positivas ou negativas, socialmente; em paralelo, acionam também polarizações ou diferenciações

entre os usos “degradantes” recentes, a imagem idílica dos usos tradicionais (ainda que

sanitariamente “sujos”) e o aspecto modelar dos novos usos propostos do consumo e das

amenidades urbanas. O porto urbano central “revitalizado” é, ao mesmo tempo, local da

navegação “em tese” (ou em imagem) e espaço do novo uso recomendável - ou legítimo, no

sentido de Bourdieu (1998). Falar, neste ponto, nas formas territoriais desta relação entre cidade e

água seria uma tentativa de fazer a ligação entre os usos e as estruturas materiais convencionais e

consagradas com as racionalidades (ou as lógicas) de implantação urbana nas proximidades deste

elemento da paisagem.

A pesquisa surgiu, portanto, a partir de aspectos presentes na literatura científica, em

relação a fenômenos sociais, políticos, territoriais, com afinidade temática em relação a esta

literatura. Não é possível falar em algum tipo de anterioridade ou de causa e efeito, é óbvio. A

maneira como se observa determinado fenômeno, transformado em referência de pesquisa, é

inevitavelmente informada pela alteração já produzida pela teoria. Do mesmo modo, materializa-se

a teoria a partir de algum tipo de identificação entre seu raciocínio e os fenômenos percebidos. A

empiria desta pesquisa, presente na cidade de Belém-PA e seu entorno, representam parte

significativa de uma explicação para a escolha do tema: a cidade é permeada de cursos d´água e

de usos variados da água, o que ocorre em qualquer cidade contemporânea que possua algum

elemento hídrico em seu território. A identificação de quatro formas, como se fossem figuras com

efeito de demonstração, para sugerir a tentativa de elaborações teóricas sobre cidade e água, tem

finalidade esquemática e de recorte da pesquisa, já que não seria possível estendê-la

exaustivamente para as manifestações de uma possível relação cidade/água em geral. Os

fenômenos sociais foram, então, sistematizados em dados oficiais e a caracterizações baseadas

em fontes diversas (imprensa, iconografia, cartografia, material produzido por órgãos públicos,

projetos técnicos), para que pudessem comportar descrições. Estas descrições eram, então,

confrontadas com aspectos teóricos da literatura já em estudo.

Raramente é possível falar em uma única metodologia para um trabalho de ciências

Page 31: Tese Cidade e Agua Jximenes

31

humanas. Há sempre o uso de várias, e provavelmente nenhuma trará o conforto ou o senso de

autojustificação que as metodologias, supostamente, conferem ao autor do trabalho, que busca

legitimidade por aderir aos procedimentos, à forma ou ao tom do discurso e dos raciocínios que

constrói de acordo com a tendência hegemônica de sua comunidade acadêmica. De qualquer

modo, neste trabalho a inclinação teórica predominante seria marxista, a deduzir pela literatura

usada. Neste sentido, a dimensão material da produção dos fenômenos estudados é um ponto

inicial de análise, mas sempre associado à sua dimensão política e às suas construções culturais

correspondentes. Há quatro fenômenos em estudo: a modernização da zona portuária de Belém; a

criação de parques culturais de beira-rio; a implantação da engenharia ambiental em Belém; a

formação progressiva de uma política de gestão de águas no Estado do Pará. Em todos eles, a

dimensão econômica e as tendências do sistema econômico capitalista estão presentes: na

alteração de infra-estruturas regionais logísticas; na criação de novas atividades comerciais e

novos usos para antigas estruturas urbanas; na revisão de antigos padrões de infra-estrutura para

produção de diferenciais ambientais tornados rentáveis; no gerenciamento do ambiente para

redução de externalidades do processo produtivo. Nesta dimensão produtiva, demarcada

historicamente, é que podem ser entendidas as dinâmicas em estudo. Isto não significa que os

processos em análise estejam submetidos a lógicas estrita e vulgarmente econômicas, mas a uma

visão material da produção, contudo. Por outro lado, estes quatro fenômenos são objeto de criação

de sentidos sobre a cidade, sobre sua porção de ambiente e sobre os usos socialmente

legitimados acerca do tratamento da água no território. A dimensão econômica destes fenômenos

não lhes retira as acepções culturais, ou as alterações jurídicas e institucionais, apenas acrescenta

a estes fatos novos aspectos. A formação da desigualdade social, neste sistema econômico, como

um fundamento reproduzido de sua lógica, pode ser entendida como comum a estes fenômenos,

bem como a sua tendência de reprodução e expansão, de continuidade temporal e de replicação

espacial.

A empiria orientou, por assim dizer, as perguntas da pesquisa. Como procedimento

que tenta generalizar o conhecimento e retornar à sua dimensão concreta, nesta pesquisa a relação

entre a empiria (em Belém e entorno, através das fontes já citadas) e as teorias, se não foi feita

com nenhum sentido de anterioridade, deve ter obedecido em alguma medida a uma seqüência de

“retornos” entre a dimensão abstrata das explicações e a necessidade de materializá-las na

heurística de outros ou, pretensamente, em alguma possível formulação que este trabalho

eventualmente possa trazer.

Page 32: Tese Cidade e Agua Jximenes

32

A dimensão cultural, simbólica, imagética ou a dimensão econômica mais vulgar de

qualquer destes quatro fenômenos, deste modo, não pareceu apresentar maiores conflitos de

análise. Sem qualquer pretensão “sistêmica” de avaliação, o que levaria necessariamente a uma

ideia fechada de coerência interna do tal sistema e, portanto, de disfunção, no caso de um evento

inesperado, na verdade a empiria pareceu confirmar aspectos importantes das teorias abordadas

sobre os quatro fenômenos em estudo. No caso concreto em estudo, a conversão de três galpões

da antiga estrutura do Porto de Belém em um waterfront nos moldes internacionais, guardadas as

modestas proporções econômicas locais, confirmou a tendência a um novo tipo de gestão urbana

e regional mais privatista e adepta da chamada parceria público-privado. O processo de revisão

administrativa pública e de reconfiguração espacial das estruturas físicas de zonas portuárias

representa a substituição de procedimentos e da implantação territorial da atividade logística para

garantir maior rentabilidade, em prejuízo dos agentes previamente instalados no porto. Pode ser

colocado que a relativa obsolescência da zona portuária a ser “revitalizada” se coloca como a

possibilidade de “modernização” em duas frentes, em direção aos parques da economia da cultura

(JAMESON, 1996) ou aos hub ports (PORTO, 1999), concentrando investimento em infra-estrutura

logística. Efeitos da alteração de padrão nas infra-estruturas urbanas, em direção a projetos de

cunho ambientalmente compreensivos, eventualmente resultaram em urbanizações segregadoras

em função da acepção suja ou pesada de alguns usos anteriores. O monitoramento do espaço,

mapeado e calculado (DELEUZE; GUATTARI, 1997b), evidencia a demanda por ações estatais de

controle, ainda que difuso, das formas de incorporação do ambiente no processo de produção, ou

de apropriação do ambiente nos usos do solo e atividades econômicas.

Em seguida, a terceira parte do estudo pretendia conferir as referências empíricas,

relativas àqueles quatro fenômenos em estudo, e a possibilidade de elaboração e aplicação

conceitual. A idéia era de passar em primeiro lugar por elaborações teóricas e históricas revisadas

na literatura, com afinidade temática quanto à pesquisa. Em seguida, abordar elementos da

pesquisa de campo, do levantamento de dados e da entrevista com agentes a que se teve acesso,

considerados relevantes para o estudo da temática, de modo a articular estas referências empíricas

ao levantamento conceitual realizado, tentando estabelecer paralelos e avaliações. Na seção

seguinte, o estudo procura recuperar a relação entre estas dimensões, teórica e empírica, além de

buscar formulação conceitual própria, tanto a partir dos casos abordados em face da teoria

utilizada quanto das possibilidades de análise crítica do nível de associação possível entre as

formulações teóricas de outros locais e realidades e o caso concreto do estuário guajarino, objeto

Page 33: Tese Cidade e Agua Jximenes

33

específico da pesquisa.

A realidade de Belém-PA não se constitui em caso exclusivo ou exemplo excepcional

de cidade cuja estruturação territorial se relacione com os elementos hídricos da paisagem. Não

sendo a única cidade do mundo com formação territorial e sócio-econômica vinculada à rede

hidrográfica e ao litoral, a cidade de Belém possui variedade significativa de modos de

aproveitamento e usos da água. O processo histórico de constituição da cidade de Belém e de seu

entorno regional contém elementos de diversas modalidades atuais desta relação, nas acepções

técnicas, nas suas porções históricas, no conjunto de suas diversas soluções de aproveitamento

da água no território. O fato de Belém poder ser abordada como um caso concreto para uma

pesquisa sobre cidade e água na atualidade representa a existência de fenômenos, a respeito da

cidade, ilustrativos para delinear esta questão de investigação e para proceder à análise, com

respaldo em termos concretos, empíricos.

Como fontes e referências de pesquisa houve vários materiais analisados. Alguns

projetos de intervenção urbanística, arquitetônica ou infra-estrutural foram usados como exemplos

das chamadas formas territoriais citadas no trabalho. Projetos técnicos foram usados como

material de análise, pois as decisões de alteração espacial deles decorrente também podem ser

interpretadas como discursos, como medidas de deslocamento de populações, como intenção de

alteração de usos e padrões de ocupação do território, o que tem impacto sócio-econômico.

Materiais textuais relacionados a estes projetos, com seus respectivos dados financeiros,

demográficos e estatísticos em geral permitiram a avaliação do porte e das características de cada

intervenção. Órgãos públicos relacionados a estas intervenções publicaram relatórios sobre seus

projetos e programas, o que permite a identificação do nível de seus estágios de execução, bem

como de seus propósitos declarados e de suas orientações conceituais. Este tipo de material, lido

a partir do referencial teórico da pesquisa, é importante fonte de identificação de impactos

potenciais e concretos dos projetos e programas, inclusive pelas semelhanças existentes entre

projetos de desenvolvimento urbano atuais. Nos termos de David Harvey (1996a), as intervenções

urbanas de maior porte, contemporaneamente, tendem a se assemelhar em contextos geográficos

muito diferentes, bem como sob gestões públicas de diversas orientações político-ideológicas.

Neste sentido, é possível que fatores estruturais do sistema econômico atual, e da forma como as

administrações urbanas e regionais lidam com as crises do capitalismo, induzam a práticas

generalizadamente conservadoras de planejamento territorial.

A legislação incidente sobre os territórios em estudo, neste trabalho, demonstra

Page 34: Tese Cidade e Agua Jximenes

34

conflitos com a situação de uso e ocupação do território. Há conflito, ainda, entre usos

instalados no território e os propósitos de projetos analisados neste trabalho, sobretudo em casos

de atividades com alto nível de informalidade jurídica, tanto em espaços urbanos quanto na zona

rural. Neste sentido, a formação de um ambiente de regulação estatal sobre o ambiente denota

tanto os aspectos próprios do processo de modernização capitalista quanto a implantação

progressiva de um tipo de racionalidade instrumental, capitalista.

Material veiculado na imprensa e textos de divulgação, como itens de propaganda e

como síntese de propósitos dos projetos em estudo, são referências importantes para a análise e

para a identificação das matrizes conceituais e políticas a que estão vinculados. A falta de precisão

técnica, longe de representar deficiência, é representativa do tipo de apelo a que tais projetos

(expansão de zonas portuárias, “revitalização”, implantação de obras de infra-estrutura,

zoneamento e controle ambiental) se dirigem. O caráter publicitário, orientado pelo mercado de

consumo, ou pelo discurso ideológico da gestão, possui sentidos muito ricos e elucidativos sobre

os impactos dos projetos. Todos os elementos estudados neste trabalho possuem diferentes tipos

de fontes de pesquisa e de acesso a seus conteúdos, o que permite sua análise sob pontos de

vista técnicos, das definições territoriais, mas também discursivos e mesmo sócio-políticos.

Page 35: Tese Cidade e Agua Jximenes

35

2.ÁGUA E TERRITÓRIO

A água é, em geral, um elemento natural, presente na paisagem. Suas formas de uso

são variadas, podendo oscilar entre algumas de caráter eminentemente técnico e outras com

propósitos lúdicos; na cidade, este elemento da paisagem pode ser notado em canais de drenagem

e, eventualmente, em áreas de balneário.

A água, entretanto, tem também uma série de acepções que extrapolam sua dimensão

enquanto elemento estritamente natural. Em uma possível relação com a formação do espaço

humano, os cursos d´água em geral remontam a um dos mais fortes condicionantes dos

primeiros assentamentos urbanos de que se tem registro na historiografia (MUMFORD, 1998).

Embora em uma visão relativamente evolucionista sobre o desenvolvimento urbano, Mumford

(1998) coloca os recipientes como traços da sedentarização das sociedades humanas, e como

dado que ressalta a predominância do gênero feminino neste processo. Neste sentido, as técnicas

de controle das águas, em pequena ou maior escala, teriam sido imprescindíveis, fosse através de

vasos ou de canais de irrigação, ou mesmo através de tanques:

Lembremo-nos também de que a vala de irrigação, ou o canal, o reservatório, o

fosso, o aqueduto, o dreno, o esgoto, também constituem recipientes destinados

ao transporte automático ou à armazenagem. O primeiro deles foi inventado

muito antes da cidade; e sem esta ordem de invenções, a cidade antiga não

poderia ter tomado forma, como afinal ocorreu; pois não era ela nada menos que

um recipiente de recipientes (MUMFORD, 1998, p. 23-24).

As planícies, de fato, eram também vantajosas para a fixação humana, e para a

sedentarização da forma territorial ancestral da aldeia, em direção ao que convencionalmente

poderíamos chamar de cidade (MUMFORD, 1998). Os núcleos urbanos e aldeamentos pioneiros,

analisados a partir de um corte que separa aqueles mais representativos, com certa diversidade de

atividades e escala em termos populacionais, são todos situados em vales de rios, como os

exemplos clássicos do Oriente Médio, da China e do Norte da África em geral (MUMFORD, op. cit.)

Os vales de rios, referência histórica do primeiro desenvolvimento urbano, seriam terrenos férteis

também para o desenvolvimento das técnicas, em concomitância com aspectos sócio-culturais de

suas respectivas sociedades (BENEVOLO, 2003), como sua formação religiosa e seu repertório de

signos. O aspecto produtivo é apontado por esta mesma historiografia como algo relevante; as

colheitas agrícolas e a possibilidade de fixação dos animais e suas culturas nas terras férteis e

Page 36: Tese Cidade e Agua Jximenes

36

periodicamente alagáveis das planícies teriam resultado em excedente econômico e aumento de

produtividade (MUMFORD, op. cit.) Sobre estes aspectos há, como se sabe, discussão conceitual;

há correntes que criticam a prevalência do econômico no desenvolvimento urbano, sem negar sua

dimensão material e, sobretudo, apontando a inexistência de uma anterioridade do assentamento

primário, “agrícola”, sobre a cidade ou a aldeia (JACOBS, 1970). Outra discussão a respeito poderia

ser travada argumentando que não haveria anterioridade do excedente econômico quando da

sedentarização das populações, uma vez que a própria noção de escassez é relativa (SAHLINS,

1978).

Aproveitando a disponibilidade da água no território cultivado e do assentamento

humano, estas sociedades teriam tido, como um dos primeiros esforços coletivos, o

desenvolvimento de técnicas rudimentares de direcionamento de fluxos, de barramento da água,

através de valas, pequenos canais e represas (MUMFORD, 1998). Segundo Mumford (1998) esta

teria sido uma condição para a ocupação extensiva daquelas terras. Por outro lado, este mesmo

fator acaba sendo comprovado na instalação de núcleos urbanos antigos; algumas cidades-

Estado, por exemplo, estavam situadas não no litoral, mas em distância suficiente para acessarem

seus portos, tentando evitar eventuais ataques por via marítima (BENEVOLO, 1998).

A adequação de alguns cursos d´água e a modificação ligeira dos locais de inundação

permitia, àquela época, certa modalidade incipiente de controle de cheias e retenção de volume de

águas, quando necessário (MUMFORD, op. cit.) Os cursos d´água, deste modo, também eram as

principais vias de circulação dos agrupamentos humanos antigos, o que inclusive permitia a

ampliação das trocas econômicas e a constituição de uma escala “regional” para os padrões de

então (Idem, op. cit.) O espaçamento entre núcleos urbanos vizinhos da Mesopotâmia, por

exemplo, sugeria proximidade relativa entre pequenas cidades, a distâncias capazes de se cobrir

por embarcações, e com escala suficiente para manter a regularidade das trocas. As vias

representadas pelos cursos d´água eram, assim, pontos de escoamento do excedente econômico

e se constituíam, com o tempo, em centralidades urbanas, especificamente nas áreas de

articulação entre a terra firme ocupada e as áreas de atracação, desembarque e operação da

navegação.

Lewis Mumford (op. cit.) aponta ainda o papel das antigas estruturas romanas do

saneamento urbano como formas de uso da água, e de seus princípios (no caso, do escoamento

inerente a qualquer líquido). A construção de cloacas, de uma enorme fossa urbana (a Cloaca

Máxima, no século VI), por exemplo, leva o autor a ironizar a elite e a engenharia local em Roma,

Page 37: Tese Cidade e Agua Jximenes

37

dizendo que haveria duas alternativas para justificar a obra: uma postura visionária de que Roma

chegaria a milhões de habitantes no futuro, ou uma decisão técnica que nos obrigaria então a

constatar que "[...] a principal atividade e finalidade última da vida é o processo fisiológico da

evacuação" (MUMFORD, 1998, p. 236). Em todo caso, as estruturas de distribuição da água

tornaram-se, na Roma Antiga, muito relevantes para a formação da cidade e para seu

desenvolvimento tecnológico. Além dos aquedutos romanos, notórios, uma série de outras

estruturas do que hoje chamamos de saneamento tiveram lugar nos artefatos técnicos de cidades

da época, e permitem a avaliação destes fluxos para pesquisar o efeito das aglomerações de

pessoas e de atividades.

Na Antigüidade, a filosofia fazia uma série de correlações entre a idéia que hoje temos de

“corpos d´água” (isto é, de elementos que fazem parte de uma rede hidrográfica ou marítima, com

rios, lagos, estuários, lagoas, praias, mares, etc.) e a circulação no corpo humano, com sua

correspondente importância para a vitalidade e saúde dos sistemas (SCHAMA, 1996).

Curiosamente, esta idéia vai alimentar, fundamentalmente, a própria concepção de ciclo

hidrológico e de regulação das quantidades de matéria daí decorrentes, inclusive no âmbito da

biologia (SCHAMA, op. cit.) Estas teorias dos fluidos vão permear saberes durante muito tempo, e

de certo modo se estendem aos dias atuais.

Quanto à Europa, certa historiografia atribui ao intercâmbio entre as civilizações do

Oriente Médio e as sociedades mais a Oeste a constituição do que hoje é referido como a cultura

ocidental. E isto se deve não só ao aspecto da troca via migrações por terra, mas também à

tecnologia de navegação, o que possibilitou um notável comércio mundial, em que Portugal teve

importância considerável (RUSSELL-WOOD, 1998). Isto condicionou significativa transformação na

paisagem natural européia, inclusive com a inserção de novas espécies vegetais (e animais),

trazidas do Oriente (RUSSELL-WOOD, 1998) e que, com o passar nos anos, seriam tidas

popularmente como “nativas”, de tão incorporadas. Este ponto teve impacto nas economias

regionais e fenômenos semelhantes ocorreram na borda litorânea de outros países europeus. Aliás,

no domínio das águas se instaura um ponto definitivo de ruptura e intervenção técnica sobre a

natureza, no momento em que grandes esforços de drenagem são feitos e que ocorre a

possibilidade de instalação de planícies irrigadas para a sedentarização de populações e

assentamentos humanos, além de ganhos de produtividade na agricultura (BRAUDEL, 1983),

principalmente no Mediterrâneo. Este fenômeno extrapola a dimensão geográfica da Mesopotâmia

e a dimensão estritamente cronológica da Antigüidade.

Page 38: Tese Cidade e Agua Jximenes

38

2.1. ASPECTOS DAS REPRESENTAÇÕES SOBRE A ÁGUA

A água, como elemento da paisagem, é incorporada nos discursos em circulação, nas

cosmologias formadas pelas sociedades (modernas, inclusive) e nas práticas materiais (HARVEY,

1996b) que, de uma forma ou de outra, são a elas associadas. Neste sentido, é importante refletir

sobre a relação que se estabelece entre estes elementos da “natureza” disponíveis no ambiente

das sociedades, sobre suas formas de reprodução social e sentidos atribuídos às ações que

envolvem grupos sociais e o ambiente. A partir de elementos desta relação é que se estruturam,

por exemplo, algumas das visões de mundo das sociedades; é a partir delas que se definem as

ações, as práticas, as formas de abordagem e intervenção sobre o ambiente, como a

domesticação de animais e plantas, a caça, os níveis de destruição e transformação que podem

ser considerados toleráveis. Nestas cosmologias, em certos grupos sociais, a própria idéia de

preservação é relacionada positivamente aos sentidos das práticas diante do ambiente; em outras

sociedades, por exemplo, trata-se de formas consideradas legítimas de apropriação da natureza

(DESCOLA, 1998). Há uma dimensão possível de interpretação através de um sentido atribuído às

ações, expresso através de justificativas da tradição ou de efeitos ambientais do uso concreto,

material, de seus elementos.

Simon Schama (1996), ao falar da relação da cultura ocidental com elementos naturais

fundamentais (a mata, a rocha, a água), coloca que a água tem, desde o Egito antigo, sido

associada a idéias variadas em torno da fertilidade, da abundância, da possibilidade de reprodução

da espécie e da provisão alimentar, do suporte aos ciclos agrícolas e, também, da beleza estética.

Neste ponto, é interessante como se dá a construção, em milhares de anos, de um padrão estético

que “bebe” nas mais variadas percepções sobre este elemento natural que, então, se converte

num dado essencialmente cultural. A água, em diversas culturas, aparece na religião, nos mitos,

nos discursos científicos e filosóficos como elemento revestido de certa mítica. A água é, também,

parte das cosmologias das sociedades que dela dispõem, isto é, de todas as sociedades. Por outro

lado, estas cosmologias se estruturam a partir de dados disponíveis na paisagem (DESCOLA, 1998)

e em suas apropriações, o que colabora, no sentido inverso, na produção destas representações.

Simon Schama (1996), em seu estudo sobre elementos importantes para a constituição

do imaginário moderno (e em grande parte, Ocidental) sobre a natureza, pontua a água, a mata, a

rocha e a síntese destes elementos, produzida na Arcádia, como fontes de leitura, de análise. No

Antigo Egito, por exemplo, o semideus Osíris, quando de sua morte, teria sido esquartejado em

Page 39: Tese Cidade e Agua Jximenes

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vários pedaços. Seu corpo, entretanto, teria sido atirado ao rio Nilo, o que explicaria sua notável

fertilidade, pois sua genitália teria ido junto — e os rituais do banho da virgem, vestida

adequadamente, na celebração da fertilidade da cheia e da irrigação das planícies são ligados a

isto (SCHAMA, 1996). Diversos artefatos foram construídos à época, inclusive mesas de pedra

adornadas com motivos animais e vegetais, celebrando a diversidade e a abundância da fauna e da

flora das margens do rio, considerado o rio da memória, pela lentidão de seu regime de marés e

pela gradual inundação que promovia junto às margens (SCHAMA, op. cit.) Isto se assemelha aos

primórdios do cristianismo, em que os rituais da água representavam purificação, e em que havia

sempre uma divindade associada ao rio local. Ou à antiga tradição e à formulação da Árvore da

Vida hebraica, que redundaria no obelisco, símbolo fálico do poder e da fertilidade que tem relação

direta tanto com o cristianismo quanto com mitos pagãos e com a idéia de Fonte da Sabedoria

(SCHAMA, op. cit.)

Schama (1996) relata que, no Renascimento italiano, a recuperação dos mitos greco-

romanos apresentou referências abundantes aos mitos fluviais e oceânicos, desde Netuno e Tritão

até uma “Fonte dos Quatro Rios” (Nilo, Danúbio, o Rio da Prata e o Gânges, cada um simbolizando

um continente e a conquista do Império católico romano, no século XVII), com um obelisco ao

centro (SCHAMA, op. cit.) Havia, sem dúvida, um caráter espetacular nestas obras e uma

teatralidade também; algumas delas tinham trajeto inusitado dos jatos d´água, outras produziam

sons considerados “calmantes”, certa sensualidade e um efeito dramático da experiência estética.

Além destes aspectos, eram obras em que residia um ímpeto moderno de “retorno” ao contato

com a natureza perdida (idem, op. cit.), isto é, com uma idéia de natureza intocada, preservada —

que Schama (1996) nomeia “Arcádia”, isto é, o ambiente bucólico, pastoril, do contato com a terra

e a natureza idealizada, sem o Homem como sujeito e agente de transformação material (ou visual,

na verdade, superficialmente perceptível). Isto é particularmente contraditório quando constatamos

que nada mais há de “natureza” dissociada de nossa intervenção culturalizante sobre ela (THOMAS,

1988). A “natureza”, portanto, nos apresenta como tal a partir de um corolário de percepções, de

nomeações e juízos de valor, em situações de escassez ou abundância, de identificação de

potenciais perigos ou oportunidades interessantes a partir da idéia da sua apropriação. Esta noção

de “resgate” do contato com a natureza parece fazer parte de considerável número de discursos

contemporâneos das intervenções paisagísticas e urbanísticas que conformam o atual quadro de

soluções do espaço construído na interface cidade/água.

Page 40: Tese Cidade e Agua Jximenes

40

Ilustração 1 A Fonte dos Quatro Rios (1651), obra do artista Gian Lorenzo Bernini, na Piazza Navona, em Roma, Itália.

Schama (1996) a cita como uma referência para o imaginário moderno acerca da água, e da expansão do mundo no

Ocidente. Fonte: Best Price Art (2009).

A água, por outro lado, teve acepções diversas junto às populações urbanas no aspecto

social. Um ponto válido nesta discussão é a forma de uso do litoral e, particularmente, a sua

invenção, através do caráter lúdico da praia. O estudo de Alain Corbin (1989) sobre a invenção da

praia, sobretudo na Europa, é uma referência de interesse para o caso. Em sua formulação, Corbin

(1989) estabelece uma mudança cultural que é acompanhada, mas não necessariamente

precedida ou sucedida, de alterações de compreensão e no próprio conhecimento científico.

Em tempos mais remotos a praia era um lugar maldito e recôndito, local do

desconhecido, do obscuro e do sujo. As atividades dispensadas ao litoral, e à praia

especificamente, reforçavam esta imagem; vilas de pescadores pobres ocupavam o local, em

vizinhança com o depósito dos rejeitos de toda ordem, e também em proximidade com o rigor do

trabalho marítimo, diuturno (CORBIN, op. cit.) A imagem do litoral, por exemplo, ainda no século

XVIII se assemelhava à de um quintal onde eram despejados os dejetos, um ponto menos nobre do

território ocupado, com função predominantemente sanitária, ou melhor, sem tratamento sanitário

Page 41: Tese Cidade e Agua Jximenes

41

(Idem, op. cit.) Esta função periférica das águas na paisagem, inclusive, alimenta muitos dos

argumentos contemporâneos da conversão destas áreas nos atuais locais de visitação, de

consumo, de amenidades e de veto no acesso. Discursos atuais “lamentam” a experiência

histórica e imputam a certa “ignorância” dos processos ambientais e potenciais paisagísticos (e,

em última instância, econômicos) a pretensa falta de aproveitamento do litoral, até a época

moderna recente.

O mar, abordado como cloaca, era também o local da marginalidade e da pobreza. A

paisagem de trabalho e das vilas de pescadores, no caso europeu (o que de certo modo não difere

o Brasil tanto assim de outras terras, no pós-colonização), estigmatizava a borda litorânea da água

sobre a terra, de modo que as imagens produzidas sobre o local, por escrito ou na pintura,

sofreram transformações com o tempo (CORBIN, 1989). Curiosamente, havia uma espécie de

“silêncio”, uma falta de produção destas imagens nos mesmos padrões em períodos históricos

anteriores à virada dos séculos XVIII e XIX (CORBIN, 1989). O ocaso do litoral na produção das

paisagens, no âmbito da cultura, por outro lado, é elucidativo, se pensarmos nos mecanismos de

escolha e nas definições também de natureza política da própria formação dos quadros da

paisagem (CAUQUELIN, 2007).

Mas o mar, já no século XIX, despertava interesse, portanto. No momento em que a

Medicina ocidental, em resgate de certo determinismo ambiental, orienta-se por diagnósticos

hipocráticos “revisitados”, concebe-se uma mudança de postura em relação ao mar e, claro, às

sociedades que o usam (CORBIN, op. cit.) A alta incidência de bócio na Europa de então e as

propriedades terapêuticas do iodo no ar do ambiente marinho, além das temperaturas e da

umidade favoráveis ao tratamento na praia, colaboram na formação de uma idéia mais amistosa

sobre o litoral (CORBIN, op. cit.) Deste modo, recomenda-se a praia à burguesia européia; banhos

gelados na água salgada, tida como caldo múltiplo, nutritivo para a pele e saudável para os olhos.

O banho frio (trata-se do mar do Hemisfério Norte) do litoral teria importantes funções, apontada

pelos médicos: na circulação sangüínea, no que entram as analogias de influências platônicas

entre circulação corpórea e hídrica5

, pequena e grande escalas associadas; nos efeitos

terapêuticos do choque de temperatura externa e interna ao corpo; na distração e afastamento da

5

Em Schama (1996), como dito, esta analogia é citada como uma referência à eventual semelhança entre a circulação do

sangue no corpo humano e o fluxo das águas nos sistemas hidrográficos da Terra, entre rios, lagos e mar. Esta seria uma

tentativa de explicação científica praticada ainda no século XVIII, a propósito das várias teorias da Terra que posteriormente

redundaram na ciência geológica. Sobre este último assunto, também há referências em Corbin (1989), Thomas (1988) e

Rossi (2001).

Page 42: Tese Cidade e Agua Jximenes

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poluição em geral da cidade que se industrializa (Idem, op. cit.) Para as moças adolescentes,

com hormônios furiosos e lascivos, recomenda-se o banho frio em pudicas carruagens, com

imersão do carro na água, e trajes pesados em veludo, de modo a recobrir todo o corpo; o

refrigério da água marinha tenderia a equilibrar a histeria própria daquela idade e do sexo feminino,

e assim estabilizar os ânimos (CORBIN, 1989).

Por outro lado, surge uma crônica da praia, e são registrados novos folguedos do litoral.

Nesta crônica de época, a aproximação entre jovens pode acontecer pela praia, e pelo seu novo

uso lúdico, que não passa necessariamente pelas brincadeiras rústicas da infância pobre dos filhos

de pescadores (CORBIN, op. cit.) O novo lazer litorâneo pode incorporar, por exemplo, rituais de

aproximação do corpo através de abordagens feitas a propósito do banho de mar terapêutico, bem

como pela simples observação em trajes de banho, que vão mudando de concepção e desenho

(Idem, op. cit.) Muda, portanto, a visão que se constrói da própria paisagem litorânea, e Corbin

(1989) aponta a “pintura de vilegiatura” como dado interessante do processo; telas sem pessoas

(ou quase sem pessoas) exibem o vigor do mar contra as pedras, e um bucolismo difícil de ser

concebido em um espaço ainda rústico, tomado por artífices e pescadores. No caso da praia

ocupada e desejada pela burguesia européia, é construída outra imagem do litoral, como o lugar do

tratamento, da terapia, não mais recôndito e maldito, mas saudável, ensolarado e, posteriormente,

exclusivo. Na construção da paisagem artística (CAUQUELIN, 2007), portanto, é que se pode

compreender as opções e os critérios de seletividade da imagem e, portanto, que tipo de mundo se

pretende enquadrar. Esta seria uma concepção moderna da imagem do litoral.

Mas os elementos destas representações têm lastros muito evidentes na dimensão

material destes territórios situados em proximidade com a água. Estas representações, inclusive,

podem ser identificadas mesmo nas estruturas mais técnicas associadas à ocupação humana e

aos seus aproveitamentos da água. A própria dinâmica portuária ajuda a entender este ponto. Um

porto, por exemplo, é um local de fluxos, de trânsito; de chegada de itens potencialmente

desconhecidos, exóticos, de novas referências (produtivas, estéticas, políticas, técnicas). O porto,

assim, é ao mesmo tempo uma estrutura econômica e funcional e uma porta de entrada e saída de

um território, de modo a estabelecer filtros nestes fluxos nos dois sentidos, e que possibilita refletir

as dinâmicas de uso e apropriação do ambiente. O porto, assim, como outras estruturas urbanas

situadas nas proximidades da água, faz parte da produção de representações na composição de

um ambiente geral, amplo, e de uma cosmologia. O porto é, também, uma estrutura de

desenvolvimento econômico, e se articula o seu território a outros, também agrega,

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43

historicamente, outros usos do solo e atividades em seu entorno. Neste sentido, encontram-se

potenciais de desenvolvimento econômico e territorial no acúmulo de funções urbanas e há

produção de imagens e formas sobre a água na cidade. As numerosas narrativas sobre aspectos

culturais e sobre referências topológicas e mesmo antropológicas acerca de zonas portuárias

urbanas reforçam esta idéia. Uma estrutura como o porto, então, motiva ao mesmo tempo a

produção de sentidos das práticas materiais (1996b) no território, a produção de imagens (ou as

especulações sobre as formas da paisagem) e cria dinâmicas de aglomeração e ampliação de

escala das atividades produtivas.

Neste campo, o estudo econômico de Jane Jacobs (1970) sobre a cidade em geral narra

uma passagem a respeito do tema cidade e água. Este estudo, eventualmente criticado por alguns

especialistas por uma suposta falta de rigor formal e de relação com aspectos clássicos da história

econômica, tem uma forma inovadora e polêmica de abordar a cidade como artefato social. O

caso da cidade norte-americana de Detroit é citado como um uma referência de desenvolvimento

urbano, em período muito posterior à Antigüidade remota narrada por Mumford (1998). Detroit teria

tido um período de expansão econômica particularmente significativa entre as décadas de 1820 e

1830, momento em que seu porte demográfico e a diversificação de suas atividades produtivas

aumentaram (JACOBS, 1970). A partir desta época, a cidade se constituía como ponto exportador

de trigo e derivados, farináceos em geral. Sua pauta de exportação, portanto, era essencialmente

baseada em tais artigos, e a cidade era uma concentração de moinhos, armazéns, gruas, ruas

sujas, tavernas, docas portuárias, pequenas oficinas e um forte localizado nas margens do Lago

Eire, junto ao rio que também denomina a cidade. A manufatura local produzia artigos de uso

cotidiano, como velas, sapatos, artefatos em couro em geral, alimentos e outros. Além desta

manufatura, havia outra na cidade; a de produção de pequenas máquinas, ligada à tecnologia dos

moinhos a vapor. Esta atividade dava suporte na manutenção destes moinhos e na construção de

novos. Na zona portuária da cidade havia, então, uma série de pontos de embarque e desembarque

de passageiros e de carga, e oficinas de manutenção e construção de embarcações (JACOBS,

1970). Estas embarcações passaram a ser demandadas por núcleos da região e de localidades

mais distantes em pouco tempo, a partir da década de 1840. A produção tinha como diferencial os

barcos a vapor para passageiros e carga (JACOBS, 1970), em vez de veleiros. A indústria local de

embarcações se estruturou a partir da tecnologia de máquinas dos moinhos, e passou a exportar,

e a diversificar a produção com outros itens relacionados à navegação (Idem, op. cit.) A partir da

produção de embarcações houve a intensificação do comércio a ela relacionado, com forte

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participação das refinarias de cobre da cidade (Idem, ibidem).

O declínio do minério, contudo, tinha sido acompanhado historicamente de um processo

de industrialização generalizado, e da consolidação da cidade como entreposto (JACOBS, 1970). A

cidade passou a produzir e a exportar tintas, vernizes, geradores, bombas, lubrificantes,

ferramentas e utensílios, fornos, medicamentos, mobiliário, artefatos em couro (o que

historicamente demanda água), artigos esportivos (JACOBS, op. cit.) A relação do comércio local

com a escala regional, e a atividade de fluxo portuário, teve ampla participação na ampliação da

economia da região de Detroit, o que inclusive criou condições para as economias de

reciprocidade entre mercados, fornecedores e consumidores que resultou na indústria

automobilística a partir da década de 1910 (JACOBS, 1970).

Em parte, uma das teses de Jane Jacobs (1970) sobre a economia das cidades se baseia

nos efeitos advindos da localização, e das atividades de transportes a ela relacionadas; deste

modo, a presença de cursos d´água navegáveis no sítio físico urbanizado é definidora de alguns

potenciais relevantes (JACOBS, 1970) para casos de desenvolvimento urbano. A situação dos

entrepostos comerciais, associados à manufatura ou à indústria posterior, é apontada pela autora

como um dos principais processos de crescimento econômico urbano (JACOBS, 1970). A formação

destes nós do circuito comercial e das trocas entre regiões tem, na cidade, sua principal base, e a

localização vinculada aos cursos d´água, e especificamente à navegação, teria propriedades

particulares neste aspecto.

Esta capacidade ou potencial, digamos, dos territórios próximos à água, no sentido de

aglomerar funções, de receber camadas de imobilização de capital e de consolidar pontos de

entrada e saída da rede urbana é importante para o entendimento da relevância do tipo de espaço

que está sendo estudado. As ocupações históricas dos territórios urbanos, analisadas a partir da

estruturação territorial de cidades e a partir do volume de estruturas físicas e atividades instaladas

no litoral (ou nas proximidades de cursos d´água em geral) atestam o fenômeno. O

desenvolvimento urbano, em vários tempos históricos, e a proximidade com a água, são fatores

recorrentes (BENEVOLO, 2003) nas formações territoriais orientais e ocidentais. O volume de

atividades, sua diversidade, e o acúmulo de investimentos coletivos situados nos núcleos urbanos

em localizações próximas à água tornam evidente a relevância da proximidade entre cidade e água.

Neste sentido, a consideração sobre a densidade de capital instalada no litoral, ou sobre a

polarização de fluxos em cidades ribeirinhas ou, ainda, na pequena escala da zona portuária

central, são demonstrações razoáveis.

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45

No caso brasileiro ocorre fenômeno semelhante. A ocupação costeira do país, e boa

parte de suas primeiras cidades (SANTOS, 2001), fundamentam esta colocação. Pelo processo de

colonização do território e de definição dos núcleos povoados brasileiros, que são urbanos, pode

ser lida a sobreposição de investimentos coletivos na formação de um território idiossincrático

(MORAES, 1999) nas margens dos cursos d´água. A densidade da ocupação, a diversidade de

usos ali dispostos, instalados e em operação e a dinâmica de apropriação do ambiente são

evidentes.

Quanto ao litoral, o que seria válido inclusive para o caso brasileiro, Antonio Carlos Robert

Moraes (1999) define uma série de prerrogativas que seriam potenciais efetivos de

desenvolvimento econômico quase que exclusivo destes locais. O litoral seria, segundo o autor,

um espaço nada ordinário; suas possibilidades são expressivas e, com freqüência, têm

exclusividade deste tipo de território (MORAES, 1999). Se a “beira do mar” não é um lugar comum,

na verdade seria tanto pelas possibilidades que este território, quando formado, abre, quanto pelo

acúmulo de camadas de tempo e de trabalho nele depositadas. A própria colonização do território

brasileiro ocorreu de forma espacialmente concentrada nas bacias de drenagem do litoral (SANTOS,

1993; SANTOS, 2001; MORAES, 1999; ver Ilustração 2) ou, alternativamente, ao longo das redes

hidrográficas regionais, onde os rios tiveram papel importante.

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46

Ilustração 2 Brasil: áreas mais densamente urbanizadas (segundo o Censo Demográfico 2000 do IBGE). Fonte:

Gonçalves; Brandão; Galvão (2003).

Moraes (1999) fala da ocupação do litoral como possibilidade, e como um fato

diferenciado, portanto. A diversidade de atividades, de escalas e padrões de espacialização no

litoral (bem como as características de acesso aos seus diferenciais locacionais) criou um

complexo territorial. Historicamente, portanto, pode ser vista maior densidade de formas territoriais

junto aos cursos d´água, e ao litoral, cujos modos de aproveitamento diante do ambiente, e dos

diferenciais da proximidade com a água, sejam evidências. Há alguns exemplos possíveis. Moraes

(1999) aponta que a maioria das plantas industriais do mundo está situada nas bacias de

drenagem litorâneas de seus países. Isto teria relação, direta ou indireta, com a conexão logística,

com as zonas portuárias regionais. Além deste aspecto, nota-se uma espécie de reforço

contemporâneo do fluxo portuário como economicamente representativo; mesmo com os avanços

nas tecnologias de comunicações e dos modais de transportes, os portos ainda são os principais

meios de operar os fluxos das exportações de todo o mundo (SASSEN, 1998). Há, de fato, uma

economia litorânea, e esta se desdobra em outras conexões, como aliás ocorre em outros setores

e territórios, de qualquer modo. A especificidade, na verdade, corre por conta do caráter

idiossincrático deste espaço situado nas proximidades e/ou sob a influência e condicionamento do

mar ou de cursos d´água em geral: atividades como a navegação e a pesca são exclusivas

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47

daquelas localizações (MORAES, op. cit.) e representam tanto produção econômica quanto etapas

do processo de desenvolvimento da economia regionalizada.

A formulação de Antonio Carlos Robert Moraes (op. cit.) sustenta, portanto, que o litoral é

um espaço de natureza idiossincrática. Este seria um recorte possível dentre os vários territórios

que se pode identificar, e a presença do mar, neste caso, é relevante. Esta presença se mostra

influente pela criação de condicionantes das atividades humanas, pela clara tendência de

aglomeração dos assentamentos que exibe, pela experiência histórica e densidade de trabalho nele

imobilizado.

Resgatando a dimensão conceitual desta diferenciação entre valores (inclusive fundiários)

e usos do litoral, podemos afirmar que a costa se configura como espaço diferenciado. Esta

diferenciação ocorre em função da mesma diversidade de usos, de formas de apropriação das

especificidades e idiossincrasias da beira do mar como local condicionante de relações e práticas.

Dentre as formas de uso e apropriação do litoral que se desenvolvem a partir do Século

XIX, ressalte-se um momento de inflexão muito importante; a chegada e o início da consolidação

de um mercado de terras em disputa entre agentes individuais e de notável assimetria de poder

econômico, nas terras emersas, porém próximas da faixa litorânea (CORBIN, 1989). Dentro da

ideologia novecentista e tipicamente burguesa do fugere urbem, o litoral, como os campos, as

pradarias ou mesmo as montanhas, revela-se refúgio em potencial, e alternativa de acesso à

natureza (THOMAS, 1988). A burguesia européia passa a adquirir as terras e induzir à migração e à

concentração das vilas de pescadores e coletores das proximidades do mar (CORBIN, op. cit.)

Processos de grande semelhança, com apropriação desigual e formação de uma classe de

proprietários destas terras diferenciadas, ocorreram historicamente em praticamente todas as

nações do mundo capitalista, notadamente naquelas onde a economia do turismo de massa se

implantou. Este processo de modificação de uso e ocupação do solo, influenciado pela mudança

nas formas de acesso à terra e pela mudança dos usos do litoral, assinala uma transformação

importante na questão dos territórios próximos à água.

A ocupação e o uso do território litorâneo, portanto, apresentam conflitos. Pela

diversidade de atividades e de padrões e porque as terras litorâneas logo se configuram como mais

valiosas do que as do entorno quando de seu aproveitamento econômico intensivo (MORAES,

1999), há disputa em torno das localizações próximas ao mar. Neste caso, como nos exemplos

anteriores, não é tão relevante a delimitação técnica estrita da localização, em termos fisiográficos;

a situação litorânea pode (e de fato o é) ser equivalente à estuarina, lacustre ou ribeirinha, sob a

Page 48: Tese Cidade e Agua Jximenes

48

ótica deste estudo. A questão é de acesso espacial, de possibilidades econômicas de

aproveitamento e de assentamento.

A disputa em torno dos diferenciais locacionais do litoral é particularmente acentuada

quando da consolidação de alguns processos de modernização. Fenômenos próprios da

formalização e das relações sociais secularizadas, impessoais, pontuam este aspecto. Como

mencionado, um dos pontos mais expressivos desta mudança seria a chegada do mercado de

terras, institucionalmente amparado, às margens dos cursos d´água — bem como, de resto, ao

território em geral. Neste aspecto, o Estado costuma ter papel fundamental. Em segundo lugar, e

em momento no geral historicamente posterior, por definir ações de ordenamento territorial. Esta

vigência do poder no território é, portanto, instituída como ordem a partir da delegação dos papéis

políticos e técnicos a órgãos da burocracia, e é operada como “ordem” na execução de uma “[...]

‘decisão majoritária’ à qual se submete a minoria” (WEBER, 1991, p. 31). A partir disto, o poder

político e as relações de dominação (nas quais há implicação de alguma dialética entre dominantes

e dominados) adquirem certa autonomia, produto também do processo de delegação e de decisão

segundo uma determinada racionalidade legal (WEBER, 1991) dos destinos coletivos.

Dentro do quadro de uma “[...] dominação legal com quadro administrativo burocrático”

(WEBER, 1991, p. 142), para ser mais preciso quanto ao conceito, podemos ler os processos de

modernização e de reconfiguração (em potencial e já em curso) do tipo de espaço que é objeto

deste trabalho. Essencialmente, a referência é feita a determinado tipo de dominação6

impessoal,

formalizada a partir de um aparato burocrático que sustenta e regula a aplicação impessoal dos

“direitos” decorrentes da dominação racional/legal. Este processo existe, em nosso caso, no

âmbito do território, em especial no controle funcional e ecológico (em sentido amplo)7

da

legislação urbanística, no monopólio da força pelo Estado e através das instituições jurídico-

políticas que garantem uma das dimensões fundamentais da política urbana (LOJKINE, 1981) e da

manutenção do status quo da propriedade privada da terra. E é justamente a conotação da

racionalização do mundo (e, portanto, dos processos e relações sociais inscritos na cidade e no

território) que permite a associação da idéia de formalização dos direitos administrativamente

6

Onde “dominação” corresponde, obviamente, à aplicação weberiana do conceito. Em outras, palavras, “[...] a probabilidade

de encontrar obediência para ordens específicas [...] dentro de determinado grupo de pessoas” (WEBER, 1991, p. 139). Nota-

se, fundamentalmente, uma diferenciação em relação à idéia de poder,unilateral e verticalmente aplicado, mas sobretudo uma

relação potencialmente dialética; a da dependência da observância da ordem.

7

Isto é, do controle das densidades em geral, através da legislação, numa compreensão mais quantitativa e funcional do

espaço urbano, impactando no mercado de terras.

Page 49: Tese Cidade e Agua Jximenes

49

consolidados com a questão territorial.

Neste sentido, há conflito entre atividades e padrões no litoral. Como citado a partir do

estudo de Corbin (1988), o caráter litorâneo antigo da vila de pescadores carregava uma

conotação pejorativa, ou no mínimo menos nobre. Havia, do mesmo modo, tecnologias

proporcionalmente mais rudimentares e outro sentido das atividades produtivas, ligadas também

aos valores de uso de uma economia de subsistência, por exemplo. Este caráter pejorativo da

pobreza no litoral tende, em diversos casos em locais diferentes do mundo, a produzir um

argumento recorrente no sentido da modernização dos espaços litorâneos, reforçando um tipo de

produção de legitimidade relacionada às elites econômicas locais, desejosas dos novos

diferenciais possíveis de se apropriar no litoral. A produção de legitimidade, portanto, se dá em

uma crescente probabilidade de reconhecimento (WEBER, 1991) da pertinência da modernização,

seja ela dada pela consolidação do mercado de terras ou pela produção intensiva da pesca

industrial, dentre outros padrões e usos.

Como as representações não apenas constroem narrativas, mas também conferem

sentido ao mundo, constroem visões de mundo e como seus resultados são também enunciados

performativos (BOURDIEU, 1998), com notável efeito prático, a imagem arcaica das populações

litorâneas também será apropriada de forma mais simpática na modernidade. Há tensão, fundiária

inclusive, entre ocupantes antigos e pobres e entre os novos usos, que valorizam a terra e a

submetem, crescentemente, a um mercado formalizado e objetivo. Por outro lado, os novos usos

do litoral constroem e reconstroem sua paisagem de acordo com algumas sínteses de sua

imagem; são então produzidas novas paisagens, na pintura e também nos serviços associados ao

novo modo de vida do litoral. Os usos progressivamente migram da zona litorânea, quando esta se

converte no balneário de classe média, povoado de casas de veraneio, ou quando ocorre o

processamento da paisagem da urbanização da praia, com estruturas de contenção, com a

construção de equipamentos e mobiliário urbano, com a disciplina e o padrão do lazer litorâneo

instalados nas bordas. Surge então uma imagem do litoral socialmente construída, como algo que

concilia elementos sintéticos da paisagem anterior, delas suprimindo a pobreza, a escassez, as

privações, a exploração do trabalho e restando, apenas, o componente idílico das embarcações, o

notável e plasticamente interessante repertório formal dos peixes, dos mariscos, dos artefatos

diversos de navegação pendurados nas paredes de casas, restaurantes, cafés. É consumida a

síntese imagética do litoral, e não suas práticas, propriamente. A imagem mais palatável do litoral,

portanto, é aquela em que suas práticas tradicionais, e estigmatizadas, não estão mais ali, exceto

Page 50: Tese Cidade e Agua Jximenes

50

por elementos que lhe fazem apenas referências distantes e estilizadas.

No uso dos espaços litorâneos, portanto, o que podemos estender a outros locais

situados nas margens de cursos d´água, as modificações advindas da chegada do mercado de

terras formalizado acarretam transformações também no uso do solo e nos padrões de

assentamento. Este fenômeno costuma ter impacto mais significativo em áreas onde economias

de perfil mais tradicional estão situadas. A formalização jurídica e institucional do mercado de

terras, acompanhada do aparato burocrático para seu cumprimento, altera as relações das

populações com o diferencial da proximidade com os cursos d´água. Deste modo, há processos

de modernização que se revelam determinantes para a ocupação nestas áreas. Em síntese, não

apenas a chegada do mercado de terras formal e consolidado, mas um conjunto de procedimentos

(muitos de natureza institucional, estatal, pública) de racionalização compõe um quadro de

transformações relevantes. O acesso a este tipo de ambiente é, portanto, objeto de conflito, posto

que se trata também de um complexo de atividades humanas associadas a um substrato físico,

que é transformado e condiciona relações (HARVEY, 1980). O processo é atravessado por relações

de classe, entre proprietários e posseiros; pela capacidade de mobilização dos agentes sociais em

torno de suas respectivas formas de assentamento territorial e de apropriação dos diferenciais

locacionais; pelas motivações de natureza sócio-cultural em torno das quais se organiza não

apenas um recorrente imaginário das águas (DIEGUES, 1998), mas também os próprios sentidos da

organização social, em certa medida.

Este é um aspecto interessante do estudo dos espaços litorâneos e, de resto, de

territórios formados por populações, atividades econômicas e formas espaciais influenciadas pela

presença dos cursos d´água. Embora vários estudos se ocupem dos sentidos da água, na

paisagem, nos sonhos, nos discursos, e em seus sentidos para as sociedades que a usam (ou

seja, todas, obviamente), a dimensão da transformação social, em seus espaços, é também

representativa. Menos idílica, talvez, para alguns segmentos de estudo, esta transformação permite

formular, inclusive, algumas hipóteses sobre a formação destes sentidos acerca dos itens do

ambiente.

A dimensão de conflito, concreto ou em potencial, ocorre na disputa pelas possibilidades

do território situado nas proximidades dos corpos d´água; por seus potenciais de valorização

fundiária, mas também pelos usos ali instalados, e subseqüentemente pelo acesso a recursos

ambientais que representa. Este seria um típico caso de conflito sócio-ambiental, na acepção de

Francisco Sabatini (1997); de uma terra relacionada a potenciais de acesso e disponibilidade de

Page 51: Tese Cidade e Agua Jximenes

51

algum recurso natural. Na dimensão do conflito, processos de modernização teriam o papel de

desarticular formas anteriores de reprodução social e vínculo com os itens do ambiente, de modo

a estabelecer nos territórios modernizados outros regimes de acesso (ACSELRAD, 2004a) à

natureza. De forma análoga, os territórios modernizados passam a ser regulados, em termos das

formas de acesso às benesses do ambiente, por lógicas progressivamente privatizadas,

controladas por mecanismos de gestão ambiental que, não raro, concentram tais benefícios. O

papel da gestão do ambiente, e do planejamento territorial, seria o de fazer valer a normatividade

dos usos e padrões “desejáveis” de ocupação do solo, considerados adequados a cada realidade.

Este seria, teoricamente, um problema de conflito sócio-ambiental pautado na dificuldade de

“compatibilização de interesses”, segundo vertentes mais conservadoras do mainstream da

política ambiental (ACSELRAD, 2004a). Este tema é particularmente evidente para análise no caso

das aglomerações urbanas e, especificamente, daquelas com atividade portuária ou de navegação

em geral. Nas cidades atuais, por exemplo, as várias formas de uso (para determinadas atividades)

e apropriação (incorporando em tais atividades processos históricos e sociais) dos territórios

próximos aos cursos d´água denotam fenômenos de aproveitamento desigual de suas

potencialidades para o desenvolvimento econômico.

Um dos casos de interesse para o estudo deste tipo de conflito é o da regulação jurídica

do mar territorial, usado como um dos exemplos ilustrativos do problema desenvolvido. Objeto de

acordos internacionais e de normas de uso, acompanhadas de cartografia e codificações diversas,

o mar se configura como terreno de apropriação econômica (MARINHA DO BRASIL, 1971) clara e, ao

mesmo tempo, de conflitos em potencial. Assim, as peças de natureza jurídica e política que

pretendem regular as atividades no mar estabelecem poligonais da extensão da soberania das

nações sobre determinada faixa litorânea e sobre a plataforma continental a que cada nação teria

direito (MARINHA DO BRASIL, op. cit.) Por outro lado, o mar e seu uso são permanentemente

reconhecidos em termos de seu potencial econômico, além da função de garantia de acesso e,

entre outros fatores, defesa do território (Idem, op. cit.) Discussões e avanços na definição dos

limites territoriais de soberania das nações signatárias destes acordos, por exemplo, concebiam

como critério genérico, nos anos 1970, a extensão da profundidade da plataforma continental para

200 metros (Idem, ibidem). Alternativamente, outra profundidade de águas poderia ser

considerada, de modo que ainda se revelasse economicamente válida para a exploração de algum

recurso. A flexibilidade deste critério técnico, que tem justificativa econômica, também faz pensar

sobre os objetivos finais da definição jurídica, formal.

Page 52: Tese Cidade e Agua Jximenes

52

Além destes aspectos, as definições acerca do mar territorial (MARINHA DO BRASIL, op.

cit.) exibem a característica de esquadrinhamento do mar, própria da conversão dos espaços lisos

em estriados (DELEUZE; GUATTARI, 1997b). Esta conversão, por analogia, nos lembraria de espaços

onde os agentes não podiam ser rigidamente localizados e onde os processos e fenômenos

podiam fluir, relativamente, e se deslocar, não sendo monitorados; por outro lado, tais espaços

seriam convertidos, modernamente, em territórios mapeados, codificados, regulados e rastreados,

com formas diversas de monitoramento e do poder político em geral. A racionalização do mar, e

sua regulação, parecem denotar uma operação tipicamente moderna que se estende das

plataformas continentais para os terrenos densamente ocupados, continente adentro.

Levando em consideração a estrutura portuária como fato histórico e modelo tecnológico,

pode ser considerada a segunda metade do século XIX como período de generalização e expansão

da solução técnica do porto moderno. Na virada do século XIX para o século XX a construção de

infra-estruturas portuárias racionalizadas segundo o novo padrão entra em conflito com formas

anteriores de aproveitamento das águas em relação ao território ocupado. Este embate de formas

territoriais ocorre também pela diferença entre padrões de assentamento e propósitos; enquanto

um é racionalizado, orientado por parâmetros técnicos e de ocupação relativamente extensiva do

terreno (aspecto que se acentuou com o tempo), o outro tipo, mais tradicional, é caracterizado pela

fragmentação das unidades, por sua operação individualizada e pelo aproveitamento de terreno

mais intensivo, localizado em unidades de operação relativamente autônomas. Além destes

aspectos, o porto moderno passou a necessitar de uma estrutura burocrática de apoio, bem como

de uma infra-estrutura de conexão mais robusta e regular; daí a implantação de linhas férreas em

suas proximidades, por exemplo, e mesmo de edificações de apoio, com armazéns e comércio em

geral. A diferença entre os padrões de fixação no território, e entre formas de aproveitamento de

seus potenciais (o que inclui a questão das diferenças de escala) exprime, portanto, a

impossibilidade histórica de coexistência destas duas formas de modo não-conflituoso. O

processo de transformação das áreas portuárias, ou das áreas de beira de água navegáveis,

expressa de modo bastante evidente o antagonismo entre as formas de uso e apropriação das

águas em relação ao território quando da acentuação de certas dinâmicas de modernização.

Antigos e tradicionais núcleos de ocupação, com acesso às águas e produção do ambiente

construído baseados em condições de prevalência de valores de uso da terra (HARVEY, 1980), ou

de modos tradicionais de produção, são os que sofrem maiores impactos nestes casos. Em geral

a atividade portuária é comum tanto aos usos tradicionais quanto, obviamente, ao novo padrão de

Page 53: Tese Cidade e Agua Jximenes

53

porto, de transportes, que se instalava; a questão de conflito é de porte, e de lógica territorial. O

processo de transformação territorial nestes casos cria situações de mobilidade espacial

praticamente compulsória de grupos economicamente menos favorecidos, e cria também zonas de

apropriação mais intensiva (inclusive pela instalação de novas infra-estruturas) das benesses do

território situado nas proximidades da água. Neste sentido, a característica estigmatizada destes

assentamentos litorâneos tradicionais (como as vilas de pescadores e numerosos outros

exemplos) tende a se reproduzir. Esta reprodução pode ocorrer de modo semelhante em outros

locais sujeitos a processos de modernização e instalação de modernas estruturas portuárias, por

exemplo, alterando a dinâmica produtiva, o acesso à terra e ao ambiente.

A possibilidade de se falar em relevância social e territorial de espaços situados nas

proximidades de cursos d´água passa por diversos fatores. Estes fatores estão, também, na

dimensão sócio-cultural das populações que efetivamente usam e se apropriam destes cursos

d´água. Há influência deste elemento da paisagem, a água, na formação de cosmologias, de

visões de mundo, e de estruturas representacionais que definem práticas internamente legítimas

de intervenção sobre o ambiente (DESCOLA, 1998). Embora Philippe Descola (1998) conceba esta

modalidade de formação de cosmologias para a relação entre humanos e animais, a estrutura de

sentimento que se define ali pode ser transposta para outros domínios do ambiente, ontológica e

genericamente definido como a dimensão do não-humano (DESCOLA, 1997). As recorrências dos

mitos, dos sentidos das narrativas sobre o ambiente, também formam um quadro de justificativas

e de consolidação destas práticas, e mesmo dos eventuais vetos à intervenção.

Nas formas modernas de intervenção sobre o ambiente é importante considerar as

justificativas de transformação, de alteração, e de impacto social. A dimensão normativa dos

discursos (FOUCAULT, 2009) é muito clara neste campo, sobretudo quando se constata sua

abrangência e capilaridade entre os vários segmentos sociais envolvidos nos territórios próximos à

água. A normatividade dos discursos sobre o litoral, ou sobre os usos das margens dos cursos

d´água em geral, está presente nas técnicas do planejamento ambiental, contemporaneamente.

Esteve historicamente presente nas classificações já notórias sobre as atividades consideradas

menos nobres, de usos “sujos” ou “pesados” a desempenhar na beira da água; local visado desde

finais do século XVIII na Europa para a reconfiguração de atividades e para sediar o novo gosto das

elites econômicas (CORBIN, 1989). São definidos, portanto, antagonismos entre o padrão

tradicional anterior, precário e baseado em valores de uso do litoral, e o padrão atual, modernizado,

sob o predomínio do processamento técnico da paisagem e dos valores de troca sobre a terra.

Page 54: Tese Cidade e Agua Jximenes

54

Usos e padrões anteriores, tradicionais, são definidos como anacrônicos e atrasados, e

tenderiam à substituição progressiva. Neste caso, há efeitos evidentes da normatividade dos

discursos (FOUCAULT, 2009) que enunciam, por exemplo, o caráter inapropriado da atividade

portuária “pesada” nas margens dos cursos d´água já devidamente convertidas em balneário

moderno ou, mais recentemente, em áreas revitalizadas. Assim são criados e difundidos alguns

tipos de veto ao ambiente, nos territórios às proximidades de cursos d´água. Estes vetos, ou as

qualificações de apreciação negativa, refletidas em fatos como as avaliações de perda da

“qualidade ambiental”, colaboram na formação de uma espécie de consenso em torno do que é

considerado apropriado para tais espaços. Assim, para as áreas urbanizadas nas proximidades de

cursos d´água forma-se um senso comum generalizado que habita inclusive os meios técnicos,

estabelecendo normatividades e reproduzindo as estruturas de poder através dos discursos

(FOUCAULT, 2009), mas também das práticas que lhe são inerentes. Os efeitos destas ações são,

usualmente, tentativas de reprodução do quadro de desigualdade no acesso a possibilidades do

território e dos itens de seu ambiente. Na formulação de Neil Smith (1988), o desenvolvimento

urbano e regional capitalista pode ocorrer através de expansão, mas também com a intensificação

do consumo de espaços existentes para o capital, em parcelas reproduzidas, produzidas ou

reestruturadas para atender a novas necessidades.

Dentre as várias formas de uso da água na cidade, e dentre várias formas territoriais que

expressam e materializam este aproveitamento, é necessário o entendimento de alguns aspectos

das lógicas de espacialização. A água na cidade, além de condicionar a reflexão e o pensamento

das sociedades na História em torno de seus sentidos e de suas propriedades, também apresenta

formas de uso e apropriação, com dimensão material específica. A água na cidade, em qualquer

escala de assentamento urbano, apresenta não apenas “funções” variadas e aplicações diversas,

mas também formas de uso e apropriação que se prolongam no tempo, apesar das modificações

técnicas e sociais. Há, do mesmo modo, outras formas que sofrem rupturas, descontinuidades ou

simplesmente desaparecem.

Núcleos urbanos, historicamente, apresentam grande recorrência na localização em sítios

físicos próximos de cursos d´água em geral (BENEVOLO, 2003). No caso em questão, a cidade da

Região Norte, e especificamente a região de Belém-PA e entorno, esta relação entre cidade e

cursos d´água se revela particularmente evidente pela permanência de atividades e da própria

estruturação territorial urbana com elementos indissociáveis dos usos ligados à água. Na região,

as soluções de assentamentos urbanos mostram acúmulo de tecnologias “vernaculares” ainda não

Page 55: Tese Cidade e Agua Jximenes

55

totalmente codificadas, embora registradas amplamente na literatura científica. O apêndice

“ribeirinho”, a partir da segunda metade do século XX, tornara-se inclusive um curioso termo que

desperta apreciações simpáticas e, em outras acepções, pejorativas; é idealizado como

“originário” e com forte caráter “identitário” regional e ao mesmo tempo é identificado com a

precariedade, a estagnação econômica e a decadência regional pós-economia gomífera, de

inserção subordinada no capitalismo brasileiro.

As cidades e regiões de formação secular da Amazônia brasileira exibem algumas

estruturas que são permitem o entendimento das formas de uso e apropriação da água. Estas

formas não guardam especificidade tal que sejam, em todos os aspectos, absolutamente

diferentes daquelas registradas pela historiografia urbana. Se assim fosse, não seria possível

pensar qualquer possibilidade de generalização conceitual ou de avaliação em paralelo a outros

casos já registrados. O caso regional guarda diversas semelhanças com aspectos estruturais das

formas de uso e apropriação da água na cidade. Por outro lado, o caso regional tem, obviamente,

particularidades.

Uma maneira inicial, mas concreta, de se pensar a água na cidade seria a partir da sua

apropriação material e direta. A água, nesta situação, representaria as possibilidades de consumo

humano em geral, de dessedentação de animais, de irrigação agrícola; são usos que exigem a

formação de alguma tecnologia, de algum tipo de saber, e também de formas de acesso material

direto. Assim, as margens de cursos d´água, seu acesso espacial, a permanência nestes locais e

a qualidade da substância devem ser condições razoavelmente disponíveis. Isto pediria acesso

franqueado às margens, e formas de apropriação da água no território que fossem passíveis de

coexistência espacial próxima. Daí, por exemplo, a lógica da territorialização, presente tanto nas

descrições regionais das vilas ribeirinhas e de seu modo de vida (BENCHIMOL, 1995) quanto nas

várias narrativas, míticas inclusive, sobre a presença da água na vida local. Sua disponibilidade,

acesso e aproveitamento são freqüentes. De certo modo isto favorece a presença na formulação

de cosmologias das sociedades locais; permite também que se pense em como usar a água, e em

quais usos serão praticados, e como.

A água na cidade também é técnica, há muito tempo. Do mesmo modo, nos

assentamentos urbanos regionais de beira de rio, por exemplo, há soluções de drenagem, razões

técnicas para localizar usos e “desenhar” espaços urbanos, pela tradição. Há também

racionalidades quanto à definição de pontos de captação e locais de embarque e desembarque.

Esta racionalidade, como dissemos nem sempre codificada (embora registrada, em termos

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56

descritivos), colabora na formação tanto de um “desenho urbano” tradicional e característico

quanto na constituição de formatos de redes de cidades, articuladas pelos fluxos de mercadorias,

por exemplo. Ademais, a conformação destes núcleos urbanos nas margens de cursos d´água,

com características próprias, colabora na própria concepção de cidade que suas populações

experimentam, e portanto no tipo de apreensão de ambiente, em escala ampliada. Aquela cidade

orientada por estas racionalidades específicas passa a se constituir não como modelo, mas como

referência espacial, e territorial.

Mapa 1 Área urbana do município de Cametá-PA. Estruturação a partir do rio. Fonte: IBGE (2000).

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57

Por fim, há formas tradicionais de contemplação, e “funções” paisagísticas das

margens de cursos d´água nas cidades. No caso regional, a horizontalidade das paisagens amplas

e vastas, de relevos freqüentemente (embora não obrigatoriamente) planos, e o caráter

relativamente extensivo do aproveitamento espacial do sítio físico, criam metáforas e formas de

uso e apropriação da continuidade, análogas às formas de acesso à terra livre do barranco de rios

na Região Norte antiga. O movimento de mercadorias e passageiros se faz em redes de cidades, e

em rotas que podem se entrecruzar, associando núcleos habitados e entre eles estabelecendo um

horizonte da extensão regional perceptível. As populações se dizem, neste caso, “filhas” dos rios, e

creditam parte de suas trajetórias, aprendizados e técnicas a esta experiência (BENCHIMOL, 1995). O

rio, na Região Norte e a respeito de seus núcleos mais densamente ocupados (que equivalem à

sua forma particular de “espaço urbano”), define não apenas parte da paisagem, mas também

influencia modos de vida. É desta forma que podemos pensar a construção de visões de mundo e

de práticas sobre ele influenciadas e informadas. Como extensão deste raciocínio, a própria

paisagem, quando observada, denota carga afetiva, cognitiva, referencial. Para que haja apreensão

e transmissão, a paisagem precisa de um conteúdo para ser observada e para existir enquanto tal

(SIMMEL, 1996); há necessidade de itens a observar, e de uma consciência, uma estrutura

cognitiva de apreensão e de reflexão para construir a paisagem. Este conteúdo parece retornar, e

então ser processado em narrativas da oralidade, da literatura, nos saberes tradicionais e nas

técnicas consagradas da região, no que representam a relação entre os elementos de uso,

apropriação e observação cotidiana e a criação de uma estrutura espacial própria, e de uma

estética.

O processo de modernização, ou a entrada de determinadas dinâmicas da relação

capitalista com a terra, com as relações de produção e com o ambiente, reconfigura estas

maneiras de se usar os territórios próximos à água na Região Norte, sobretudo em áreas de

ocupação mais densa e urbanizada. Em paralelo a este fato, os usos mais racionalizados e

formalizados destes territórios costumam ampliar sua participação, em conflito com as formas

tradicionais. Um ponto crucial de definição deste conflito ocorre na disputa pelas terras, e pela

maior valorização destas terras em faixas de proximidade com os cursos d´água (MORAES, 1999),

o que é um processo já reconhecido inclusive em termos conceituais. Por outro lado, o conflito

entre as formas tradicionais de uso técnico da água e as formas modernizadas e mais

racionalizadas consistiria em uma questão de acesso; tende a existir certo grau de exclusão das

formas mais baseadas nos valores de uso da terra, bem como tende a existir predominância das

Page 58: Tese Cidade e Agua Jximenes

58

atividades formalizadas juridicamente, com aproveitamento econômico e acesso a terra pela via

do mercado. O acesso à água, neste sentido, não seria configurado da forma como surge no

debate já tradicional da política ambiental; a questão de “acesso” se dá de forma simbólica, ou

através do acesso a terra, pela disputa política em torno de práticas e justificativas histórica e

socialmente tidas como legítimas. Neste sentido, o acesso ocorre com os mesmos mecanismos

do mercado.

Mapa 2 Área urbana do município de Baião-PA. Porto, trapiche e feira instalados nas margens do rio. Fonte: IBGE

(2000).

Page 59: Tese Cidade e Agua Jximenes

59

É possível considerar, a partir da ilustração de formas territoriais que relacionam cidade

e água e a partir de eventuais especificidades locais, as condições pelas quais se pode conceber

não apenas os contornos de uma possível “questão da água” na cidade da Região Norte, mas

também algumas possibilidades de avaliação da relação entre cidade e ambiente, no contexto em

estudo. As características da região em análise apontam para a existência de formas territoriais

desta natureza. Deste modo, o caso da região, como se pretende demonstrar inicialmente, teria

aplicabilidade para a discussão do tema com grau razoável de generalização possível.

2.2. “CIDADE” E ÁGUA NA REGIÃO NORTE

As especificidades dos territórios situados na vizinhança, e sob influência, dos cursos

d´água são diversas. Para o caso deste trabalho, diretamente, interessa abordar um aspecto

destas especificidades: aquele relativo à urbanização no Norte do Brasil e, mais objetivamente

falando, o caso do estuário da Baía do Guajará, no entorno do município de Belém, Estado do Pará.

A Região Norte do país, especificamente, representaria em grande parte a maior

contribuição da maior bacia hidrográfica do país (ANA, 2009), a Amazônica. Seus assentamentos

urbanos seculares são, quase na totalidade, cidades ribeirinhas (TRINDADE JR.; SANTOS; RAVENA,

2005). A extensa e complexa rede hidrográfica da região compõe uma bacia hidrográfica de cerca

de 6 milhões de km² (ANA, 2009), onde o aproveitamento das águas para consumo é considerado

pouco significativo em face do potencial existente nas suas sub-bacias hidrográficas (ANA, op.

cit.)

Page 60: Tese Cidade e Agua Jximenes

60

Mapa 3 Localização de municípios do Estado do Pará em relação a cursos d´água das imediações da Região Metropolitana de Belém, da região do Baixo Tocantins, do Marajó e do

entorno da Baía do Guajará. Fontes: IBGE (2010); SIGIEP (2007).

Page 61: Tese Cidade e Agua Jximenes

61

Ilustração 3 Conjunto de atividades em cidade de pequeno porte de beira de rio da região amazônica: feira, porto,

mercado. Município de Baião, região do Baixo Tocantins, Estado do Pará. Foto do autor (abr. 2007).

Os assentamentos urbanos da região são estudados também por sua densidade

populacional mais alta e intensidade de uso. Há, obviamente, diversas formas de aproveitamento

nas zonas rurais da região, mas o foco deste estudo, para a identificação de alguns processos da

relação entre território e as águas, é a cidade. A ocupação territorial da região, a partir da

colonização européia, reforçou este caráter “ribeirinho”, uma vez que os assentamentos urbanos

consolidados tinham, na localização nas proximidades dos cursos d´água, um fator preponderante

e atividades econômicas estruturais para a sobrevivência destes núcleos urbanos. Nas cidades

amazônicas de beira de rio, tradicionalmente, desenvolveram-se tecnologias de instalação no

espaço a partir da produção do ambiente construído, bem como estratégias de aproveitamento

econômico e funcional da localização nas proximidades dos cursos d´água (ver Ilustração 3). De

certo modo, a cidade de beira de rio (que até a literatura científica regional qualifica como “cidade

ribeirinha”) configura uma espécie de tipo na urbanização regional (CARDOSO; LIMA, 2006).

Outro aspecto interessante é o da formação de autênticas micro-redes urbanas no

conjunto destes núcleos. Mesmo em municípios de menor porte, entre áreas urbanas ou distritos,

Page 62: Tese Cidade e Agua Jximenes

62

o fluxo de produtos é intenso. As cidades de beira de rio da região sintetizam, em maior ou

menor escala, entrepostos e nós em redes de circulação diversificadas (BENCHIMOL, 1995), que

incluem mercadorias, bens, serviços e informações. Há produção agrícola e extrativismo em áreas

rurais ou em áreas próximas aos núcleos urbanizados; há diferenciação de itens e circulação de

produtos pela via fluvial, predominantemente, com uma base de troca econômica sediada nos

mercados urbanos, em geral (CARDOSO; LIMA; GUIMARÃES, 2008). Nestes mecanismos de troca é

estabelecido um fluxo portuário informal, em geral não padronizado tecnicamente conforme o

modelo da estrutura portuária formalizada e codificada, mesmo se considerada com base no

padrão tecnológico do princípio do século XX. O “porto”, nestas cidades, é estrutura construída

relativamente rudimentar; pressupõe uma rampa, um dique, um píer, um trapiche ou,

eventualmente, alguma combinação de alguns destes itens. Em localização próxima à do “porto”

ficam a feira e/ou o mercado, com suas estruturas físicas espacialmente variáveis, mas estratégias

de assentamento, expansão e “comunicação visual” tradicionais.

Ilustração 4 A frente das cidades de beira de rio, hoje, se constituem em locais ao mesmo tempo dinâmicos

economicamente e atravessados por conflitos sociais e econômicos; município de Igarapé-Miri, região do Baixo

Tocantins, Estado do Pará. Foto do autor (jan. 2007).

Page 63: Tese Cidade e Agua Jximenes

63

Até a década de 1960, na região, podemos afirmar que os núcleos urbanos eram

representativos, neste sentido, sobretudo como pontos de troca, e de convergência dos produtores

e fornecedores; pouco da atividade produtiva agrícola e pesqueira, por exemplo, era devida à

cidade, propriamente (CARDOSO; LIMA, 2006). A feira urbana, assim, é um dos elementos de mais

notável centralidade na urbanização regional, e representa grande potencial de atração de

populações, assim como os serviços públicos sediados também na cidade, como saúde e

educação (CARDOSO; LIMA, op. cit.) Na definição de uma tipologia, ressaltando aspectos formais e a

característica geral da expansão atual, tais autores qualificam estes núcleos urbanos como

estruturas urbanas monocêntricas, organizadas ao longo de curso d´água com penetração

limitada no território (CARDOSO; LIMA, 2006). Processos de alteração na relação com a terra nestas

cidades, com a prevalência do valor de troca sobre os valores de uso tradicionalmente associados,

por exemplo, ao acesso às margens de rios, denotam aspectos importantes de desigualdade social

(CARDOSO; LIMA, op. cit.) As formas atuais de uso e ocupação do território urbano refletem este

conflito, inclusive nas formas de apropriação da água, com a ocupação adensada das cabeceiras,

o despejo de efluentes e esgoto primário nos rios e o parcelamento urbano desarticulado dos

relevos e das condições do sítio (Idem, ibidem).

Page 64: Tese Cidade e Agua Jximenes

64

Ilustração 5 Trapiche em zona rural da região, Estado do Pará (município de Baião, na região do Baixo Rio Tocantins);

estrutura urbana tradicional de conexão com a água e de extensão da terra. Foto do autor (abr. 2007).

Embora estes casos, de cidades de menor porte e com expressiva influência da zona

rural em suas economias, não constituam propriamente exemplos totalmente semelhantes e

associados ao caso em estudo neste trabalho, seus aspectos históricos e seus contornos de

formação territorial são, por outro lado, similares. A cidade de Belém-PA e sua região, locais

específicos de estudo, apresentam aspectos históricos e de formação territorial em vários sentidos

passíveis de paralelos com os tópicos expostos anteriormente, o que valida a análise.

Em assentamentos ribeirinhos — forma rural comum no estuário do Amazonas e

afluentes — estão presentes diversas estratégias de territorialização e lógicas de uso e apropriação

próprias dos territórios próximos aos cursos d´água, com seus potenciais e idiossincrasias.

Nestes locais é possível identificar, de maneira razoavelmente depurada e clara, alguns dos fatores

mais estruturais do processo de territorialização às proximidades de cursos d´água, na forma pela

qual tais processos ocorrem na região. Estes fatores podem ser mapeados e estudados, portanto,

longe da idéia de um tipo de ocupação do espaço “pura”, “original” ou pioneira, posto que são

históricos.

Page 65: Tese Cidade e Agua Jximenes

65

No caso do caboclo amazônico a questão apresenta vários destes elementos. Não

se deve caracterizar um “tipo” relativamente ideal ou homogêneo para tratar desta realidade sócio-

cultural e econômica, mas é razoável, em termos metodológicos, estabelecer alguns parâmetros

de definição prévios. Especificamente, para efeito do interesse deste trabalho, falar em “caboclo” é

abordar uma população rural (não exatamente camponesa) que vive às proximidades dos cursos

d´água da Amazônia brasileira, em um esquema produtivo que articula uma dimensão de

subsistência à troca comercial do excedente (LOUREIRO, 2004). Em diferentes pontos da Região

Amazônica há áreas cuja ocupação mais antiga é, invariavelmente, feita às margens dos rios,

furos, igarapés e paranás, onde uma tecnologia simples de adaptação ao território e às condições

naturais veio sendo reproduzida (STERNBERG, 1998). Há alguns séculos esta população vive às

margens de rios e igarapés, em agrupamentos de dimensões e complexidade variadas (idem, op.

cit.)

Não há, no caso, um tipo territorial abstrato e idealizado que, pelo caráter pouco

elaborado de suas técnicas, seja mais puro e fácil de analisar ou seja mais “autêntico”. Há,

entretanto, formas territoriais de certa maneira mais “descarnadas”, muito simplificadas pelas

ferramentas analíticas da ciência localmente baseada e, sobretudo, por soluções historicamente

materializadas. Nestes territórios, por exemplo, persiste algo (em maior ou menor presença) da

representatividade do valor de uso (e não de troca) da terra, em usos da beira d´água em geral

compartilhados, divididos. Embora não se trate propriamente do ager publicus de que fala Marx

(1986) quando cita a terra livre como fator existente nas formações econômicas pré-capitalistas, o

caráter incipiente do capitalismo (ou de um pré-capitalismo) destas economias, comparado aos

fluxos de núcleos urbanos maiores, evidencia formas cuja lógica não se identifica com o terciário

mais dinâmico (e com a estrita propriedade privada da terra e suas restrições) de grandes cidades

do entorno. Desta forma, as soluções territoriais materializadas, eventualmente, ainda refletem esta

situação; haveria ainda estratos do processo de modernização se implantando nas décadas

recentes, na região.

Por outro lado, as várias formas do mercado de terras se consolidam inclusive nos

espaços rurais/ribeirinhos do Norte do Brasil. Almeida e Sprangel (2002) demonstram o processo

no arquipélago do Marajó, também situado no Estado do Pará, e relatam a mudança nas formas de

uso e apropriação da terra decorrentes da chegada de uma lógica propriamente capitalista (e

rentista, portanto) na relação com o solo. As restrições e assimetrias no acesso, decorrentes desta

mudança, pontuam um aspecto fundamental do processo de modernização na Amazônia. Segundo

Page 66: Tese Cidade e Agua Jximenes

66

Loureiro (2004), processo semelhante já se estruturara na Região Norte desde os anos 1950.

Nestes territórios ribeirinhos, sem qualquer idealização — “original” e “modelar”,

conforme o “desejo de litoral” (CORBIN, 1989) urbano, atualmente existente em Belém, por exemplo

—, a produção, a articulação com as possibilidades de transporte e consumo da água e a

produção do ambiente construído são relevantes. Nestes territórios, por outro lado, há sistemas de

rotatividade no uso da terra e criação de solos artificiais, articulação com núcleos urbanos e

técnicas historicamente consagradas (na construção de barcos, casas, estruturas de conexão com

a água) que se encontram atravessados diante da transformação social e econômica por que

passa a região. É desta forma que um sistema como o complexo rio-mata-roça-quintal (LOUREIRO,

2004) se revela como estratégia de apropriação do ambiente e de criação de possibilidades de

reprodução social. A estratégia de aterramento de quintais, associada à pequena roça, à criação de

animais, à expansão da casa e à cobertura de um território mais amplo para a caça, a pesca e a

coleta constituem uma presença do caboclo no ambiente como um agente capaz de reconhecer

algo da sazonalidade do local e mover-se nele (LOUREIRO, op. cit.)

No discurso acadêmico local, a idéia de um “modo de vida ribeirinho” angaria diversas

simpatias. Em certa medida, este se constitui num dos modelos explicativos definidores da região,

de aspectos de sua espacialidade urbana mais ancestral e da relação desta espacialidade com

heranças culturais anteriores, até certo ponto. É necessária, portanto, uma crítica à “idealização”

do território “ribeirinho” (o que, em si, já constitui um reducionismo). Para que se discuta o

território (sobretudo o urbano) às proximidades dos cursos d´água, neste caso, deve-se trabalhar

na direção da desnaturalização das noções, e no desmonte de certas pré-noções (BOURDIEU;

CHAMBOREDON; PASSERON, 2004).

Em primeiro lugar, deve-se pensar na negação de qualquer identificação entre um

caráter supostamente “natural” do “homem regional” em seu estado puro, original, mais

“integrado” ao ambiente. Formulações deste tipo, com freqüência, se convertem em esquemas

delicados de dominação política, conceitual e territorial, uma vez que constroem sentidos acerca

do ambiente, naturalizando-o e colocando-o como estático e não-modificável. Com frequência,

também, tais noções têm aplicação conservadora; constroem indivíduos e agentes dotados de

pureza e legitimidade autêntica associada, exclusivamente, a modos de vida e escalas econômicas

rudimentares. Em caso de “transgressão” deste código esperado para o bom selvagem, é rompida

a solidariedade da proteção incompleta do Estado, colocando-se tais comunidades diretamente

sujeitas à lógica de mercado – de terras, inclusive.

Page 67: Tese Cidade e Agua Jximenes

67

Em segundo lugar, é justamente nesta construção social do “ribeirinho” enquanto

estado “natural” das sociedades na região que operam alguns dos discursos conservadores atuais.

Fala-se de uma pretensa identidade regional ligada à água e, também, de um perfil cultural pronto

para ser consumido entre territórios “competitivos”, onde as cidades seculares, em sua

territorialidade sempre relacionada com os rios, devem lançar mão de seus diferenciais

paisagísticos para detonar novos processos de crescimento econômico. Na prática, a idéia de

“ribeirinho” é acionada em termos simbólicos, mas não é incorporada, ou reconhecida, nas ações

contemporâneas de intervenção territorial.

Ilustração 6 Uma "montaria", pequena embarcação tradicional da Região Amazônica. Foto do autor, abr. 2007

Page 68: Tese Cidade e Agua Jximenes

68

No caso amazônico, Loureiro (2004) fala do “complexo rio-mata-roça-quintal”

(idem, op. cit., p. 23, grifo da autora) como uma espécie de célula das formas produtivas, de

organização territorial e de vínculos sociais do caboclo ribeirinho. Este complexo é assim

considerado por representar, num espaço relativamente extenso, atividades de subsistência, de

produção e de alternância no uso de recursos.

O rio e os cursos d´água em geral são notórios elementos de conexão em tais

espaços, servindo como fontes de alimento e meio de transporte. A pesca, portanto, incorpora

uma série de práticas derivadas e de técnicas desenvolvidas e reproduzidas através de gerações e

da interação do caboclo com a ancestral cultura indígena. A aplicação das madeiras, das talas e de

técnicas de amarração garante a confecção de artefatos que dão o suporte à pesca e à navegação:

a lança, os remos8

, os currais9

, os puçás (usados para a pesca de siri) e os matapis10

. O

excedente do consumo doméstico ou familiar é destinado ao mercado, em que costumam ser

disponibilizados o pirarucu (Arapaima gigas) salgado e conservado, a gurijuba (Arius luniscutis,

peixe cujo grude, extraído da bexiga natatória, é atualmente usado na indústria de cosméticos,

comum na região do Salgado do Estado do Pará, no estuário Guajarino) a tainha, o filhote e outros

peixes11

, além dos mariscos, crustáceos e quelônios: camarões, mexilhões, sernambi, caranguejo

e tartarugas (LOUREIRO, 2004). A pesca, curiosamente, definia uma atividade de subsistência e,

secundariamente, uma possibilidade de obtenção de ganhos monetários, numa economia

essencialmente pré-capitalista e não-monetarizada (LOUREIRO, op. cit.) A modalidade da pesca

artesanal não se sobrepõe às demais. Predominava no litoral, da região da foz do Amazonas e nas

proximidades das cidades de médio porte. Obviamente, na coexistência de vários pescadores num

mesmo local, ocorre certa “divisão” relativamente tácita, entre territórios de exploração do

pescado, cujos códigos são definidos na convivência e cuja localização é sempre identificada

através dos ancestrais sistemas de triangulação, compostos por um ponto em terra, outro na

margem oposta e outro pelo próprio navegante, em geral (FURTADO, 1992).

8

Segundo Furtado (1992), construídos a partir da necessidade do uso: remos elipsoidais são usados para navegação em zonas

costeiras, mais agitadas; há aqueles em forma de calota semi-esférica, circulares, para águas mais tranqüilas, como igarapés.

Há diferenciação entre as embarcações, da mesma forma.

9

Espécie de armadilhas para os peixes, os currais são montados à semelhança de labirintos, e são usados entre a preamar e a

baixa-mar (LOUREIRO, 2004).

10

Usados na pesca de camarão, são parecidos com gaiolas cilíndricas, com dois cones em sua parte interna, afunilando a

passagem.

11

A disponibilidade e o preço variam em termos da incidência da espécie nas localidades. Em geral peixes de maior

incidência são mais baratos, caracterizados como “comida de pobre”, ainda que tidos como nobres por outros pela carne

tenra, baixo teor de gordura ou sabor característico.

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69

As embarcações de pesca e de transporte de pessoas e carga também representam

certo grau de apuro técnico, moldando os barcos ao longo das gerações. Nas principais

embarcações — a montaria, a canoa de casco, a lancha (FURTADO, 1992) — é possível identificar

a influência de técnicas rudimentares indígenas, da aplicação das madeiras e ferramentas locais

pelo caboclo e até mesmo alguma técnica naval portuguesa (XIMENES, 1992). O aproveitamento de

recursos naturais espacialmente mais acessíveis, disponíveis naquele ambiente, comprova a

correspondência entre técnica, materiais utilizados e forma dos artefatos. Para as embarcações

mais comuns são utilizadas madeiras de boa qualidade da região, tais como a Sapucaia, o Piquiá,

o Acapú (este em extinção crescente, de madeira escura e fibrosa, muito resistente à água e muito

rígida), a Itaúba, o Pau-d´Arco (também chamado Ipê), a Sucupira, o Pau-Mulato, a Maçaranduba

e as variações do Angelim (rajado, vermelho, etc.) (XIMENES, op. cit.) A aplicação varia conforme o

componente da embarcação, e várias espécies são substituídas por outras, mais baratas, à medida

que espécies nobres vão se tornando raras pela exploração crescente e tornam-se caras também

pela valorização no mercado internacional. Assim, uma madeira como o Pau d´Arco presta-se à

execução de partes que exijam dobradura, flexão, tais como o tabuado dos cascos, calafetados

com resinas sintéticas ou à base de petróleo12

. A Maçaranduba, pelo seu notável desempenho

mecânico no contato permanente com a água, tem função estrutural. O porte e a forma da

embarcação variam também, como dissemos, conforme o canal de circulação e o uso; montarias,

menores, mais delgadas e leves, têm maior mobilidade para trafegar em igarapés e rios tributários,

levando pequenas cargas e pessoas (FURTADO, 1992), enquanto no transporte costeiro, nas

jornadas com carregamentos maiores ou nas baías caudalosas dos estuários os chamados

“navios” ou barcos (gaiola, regatão, lancha) são mais usados. A propulsão a motor já entrou na

composição deste modal de transporte, há algum tempo.

Sobre o quintal das habitações do caboclo ribeirinho, existe a destinação às hortas

domésticas e à criação de pequenos animais. Assim, são cultivadas as plantas medicinais, usadas

em chás, extratos, ungüentos, e as destinadas aos temperos da alimentação, como o urucum, o

jambu13

, as pimentas, os limões (LOUREIRO, 2004). Frutas diversas (manga, cupuaçu, açaí, bacuri,

biribá, bacaba, jambo, etc.) são cultivadas, além de algumas ervas, temperos e animais, como

12

Furtado (1992) coloca que outrora a vedação (“calafetagem”) era feita com breu natural, azeite de andiroba (uma

oleaginosa) e misturas com fibras naturais.

13

Espécie de erva, em geral cozida com a sua flor em botão, de sabor marcante e efeito ligeiramente anestésico, de uso

alimentar.

Page 70: Tese Cidade e Agua Jximenes

70

patos, marrecos, galinhas, porcos. Os animais destinam-se ao consumo doméstico ou às

comidas típicas das festas de santo (LOUREIRO, 2004). Como acontece com a pesca, algum

excedente era vendido nos mercados, o que permite a incorporação do dinheiro nesta economia

(idem, op. cit.)

Ilustração 7 Habitação ribeirinha, região do Baixo Tocantins, município de Cametá-PA. Ambiente idealizado e retórica

da "identidade" regional, com engenhosidade da tradição. Foto do autor, abr. 2007.

Na roça a destinação ficava para as culturas alimentares (LOUREIRO, 2004). A

mandioca é tida como alimento básico da dieta, com seus subprodutos e várias formas de

consumo: farinhas d´água (de granulação maior, mais torrada, de sabor marcante e cor escura),

seca e de tapioca, amido e caldo de tucupi, preparados na casa de farinha (LOUREIRO, op. cit.) Além

da mandioca, havia outras culturas, como o milho, a macaxeira, o cará, a batata-doce, etc. A

comercialização era, novamente, subsidiária, em geral a partir do cultivo de tabaco, algodão ou

cacau (idem, op. cit.)

Quanto à mata, havia uma clara predominância extrativista. A partir de técnicas

simples são ainda hoje extraídos um conjunto de substâncias, óleos e essências das espécies

vegetais. Em primeiro lugar, pela relevância histórica e pelo volume da exploração, colocaríamos a

castanha e a seringa (LOUREIRO, 2004). Além destas, são aproveitados os óleos medicinais da

Page 71: Tese Cidade e Agua Jximenes

71

copaíba, da andiroba (usado inclusive como repelente), anti-infecciosos e cicatrizantes, o

cumaru, o perfumado pau-rosa, etc. Ainda segundo Loureiro (op. cit.), havia a extração de cocos

diversos (bacaba, buriti, patauá, açaí) para a produção de sumos, extratos, sucos ou “vinhos”, que

eram consumidos como alimento, bebida, usados para fazer velas, remédios ou lubrificantes.

Também havia a caça, mais abundante em algumas regiões e noutros tempos, onde se procurava

os jacarés, as onças, a paca, a capivara, a cutia, os tatus, cobras, lontras e ariranhas, etc.

Um ponto fundamental a ser ressaltado, nesta realidade, é a presença muito forte da

rede hidrográfica da região Amazônica, condicionante fundamental para o entendimento dos

processos ecológicos e sócio-econômicos, materiais e culturais, ao longo da História, naquela

região. Sem qualquer intenção de estabelecer um corte determinista, em que o rio estrutura, em

última instância, os processos sócio-ecológicos, na verdade a idéia é entender que a presença da

rede hidrográfica como canal de trânsito e como fator que permite uma série de outros recursos

acaba tendo um impacto na vida, numa escala micro-regional. Loureiro (2004) esclarece pontos

importantes desta questão, relacionando o aspecto histórico com características geográficas da

ocupação:

O homem natural da Amazônia vivia, secularmente, à beira dos rios e igarapés,

seja nas cidades, vilas ou povoados — todos eles situados à margem dos

cursos d´água. Às vezes vivia em agrupamentos de duas ou três casas, ou

ainda, isolado numa ‘cabeça de ponte’ (trapiche de madeira que se projeta rio

adentro, onde aportam as canoas dos pequenos compradores; no início do

trapiche, à margem do rio, se localizam a casa e um pequeno comércio). A vida

na beira do rio exige uma profunda articulação com a natureza, sendo a água o

elemento definidor da cultura dessas populações ribeirinhas. (LOUREIRO, 2004, p.

22.)

Outros grupos, de outras procedências, têm ocupado as zonas rurais e urbanas da

Amazônia, entretanto. Havia uma curiosa diferença na assimilação dos migrantes nordestinos, que

chegaram em maior número a partir da década de 1950. No Nordeste, por razões históricas,

aquela população rural era mais habituada às culturas regulares, muito mais do que a este tipo de

extrativismo a partir das espécies locais e da hidrografia regional. Assim, os migrantes nordestinos

estabeleceram naquele território uma economia, uma dinâmica produtiva, uma sociabilidade e até

mesmo uma organização espacial diferenciada (LOUREIRO, 2004).

A década de 1950, estabelecida por Loureiro (2004) como um marco na alteração dos

padrões demográficos e sócio-econômicos da região, aponta para uma primeira e sutil inflexão no

uso da terra e na proporção rural-urbano. Além disso, havia certa coerência nas formas de

apropriação dos recursos no chamado complexo rio-mata-roça-quintal. Longe de caracterizar

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72

qualquer idéia de “paraíso perdido” ou uma visão idílica de uma porção de natureza em convívio

harmônico com o Homem, uma espécie de Arcádia (SCHAMA, 1996) idealizada, redesenhada na

imaginação e que nunca existiu, a intenção é de descrever a mudança. Na verdade, “[...] à

existência de um saber social para o trabalho na pesca somava-se a existência de terras livres e

aproveitáveis” (LOUREIRO, 2004, p. 35). À rusticidade técnica dos meios associava-se a

disponibilidade dos recursos (alimento, fibras, óleos, madeira) manejados alternadamente, de

acordo com a estação do ano (seca ou alagada, as duas únicas possíveis de distinguir na região).

Abriam-se frentes de pesca ou de cultivo de grãos e tubérculos, pequenas culturas de temperos e

ervas ou de animais criados nas proximidades da casa. O baixo consumo, oriundo de óbvias

limitações, resultava em relativa abundância, de certa forma nos termos definidos por Sahlins

(1978); desejando pouco, produzindo o necessário, obtendo do tempo de trabalho esta

quantidade, resultando em relativa abundância. Noutras condições históricas e materiais,

obviamente.

Obviamente, a construção histórica das formas produtivas e dos modos de

apropriação sócio-ecológica dos recursos é sempre marcada pelo caráter narrativo, pela síntese e

formulação parcial. Por outro lado, algo deste subsídio permite o estudo e a análise das

transformações da apropriação do território na região, especialmente nas áreas de estuário e em

proximidades com cursos d´água.

A idéia da disponibilidade de certo número de recursos, mediados pela técnica, está

ligada à presença dos cursos d´água como elementos da paisagem com múltiplos sentidos e,

ainda, à forma histórica da terra livre. Juridicamente (e localmente) considerada terra devoluta, isto

é, de propriedade da União, cuja situação permitia o uso por tempo indeterminado, a terra livre era

a base territorial, por assim dizer, da reprodução social daqueles grupos de caboclos ribeirinhos

(LOUREIRO, 2004). Apropriada através de acordos seculares, tornados tácitos após gerações, a

terra era local de alternância dos usos e de certa coexistência de atividades, como a pecuária e a

pesca. Esta apropriação ocorria na medida em que terras poderiam ser usadas nas margens para

atracação de embarcações e, ao mesmo tempo, para dar de beber aos rebanhos, como no caso

do Marajó, arquipélago paraense (ALMEIDA; SPRANDEL, 2002).

A situação da terra comum é bastante importante neste ponto. Loureiro (2004) tinha

ressaltado a importância do acesso a terra como fator determinante para que a reprodução das

populações ribeirinhas acontecesse nas bases descritas, principalmente até a década de 1950. A

existência da terra comum é, portanto, um elemento que permite a disponibilidade de recursos

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73

naturais, de uma base territorial e o acesso aos ditos “recursos hídricos” (ALMEIDA; SPRANDEL,

2002)14

, o que teve desdobramentos econômicos, funcionais e sócio-culturais na região. Através

das formas tradicionais de apropriação dos recursos e da terra é que era possível haver

sobrevivência e continuidade daquelas práticas materiais.

A questão da apropriação do solo fora do mercado de terras permite, ainda, imprimir uma

perspectiva histórica à situação. Embora convivessem a grande, a média e a pequena propriedades

com as “vilas” de pescadores e suas casas, coexistiam também as formas de uso da terra e de

apropriação dos recursos de formas variadas (ALMEIDA; SPRANDEL, op. cit.) Da mesma maneira,

existiam concomitantemente a posse ancestral da terra e a propriedade juridicamente

regulamentada e amparada pelos títulos legais. Se esta coexistência não era idealmente

“harmônica”, denotava, por outro lado, um código prévio à excepcional valorização e cercamento

de terras que se sucedeu ao processo de integração da Amazônia ao resto do país e,

principalmente, à implantação da pecuária extensiva, à sua correspondente prática de controle do

latifúndio e à integração aos mercados consumidores. A situação eminentemente pré-capitalista da

existência da terra comum sugere, portanto, uma sociedade ainda em processo de modernização,

de racionalização dos processos sociais, ainda convertendo suas formas, suas representações e

práticas segundo a racionalidade instrumental moderna (WEBER, 2002), capitalista.

Fundamentalmente, ainda operando a conversão da natureza em instrumento (THOMAS, 1988) e,

modernamente, reproduzindo e naturalizando de volta esta operação. “Naturalizar” a propriedade

privada da terra e o controle racional do trabalho, aliás, faz parte do processo histórico de

formação do próprio sistema, e torna-se importante, a partir desta constatação, “desnaturalizar”15

esta figura, a partir, por exemplo, do recurso à própria História.

Não há exatamente uma relação de oposição entre as formas tradicionais e as formas

modernizadas, contemporâneas, de uso e apropriação destes territórios próximos à água. Há, na

verdade, conflitos. A questão destes conflitos torna-se complexa porque, fundamentalmente, as

formas territoriais contemporâneas16

da relação cidade-água reafirmam alguns aspectos da

relevância do território e da localização às proximidades dos cursos d´água. Por outro lado, as

14

Esta discussão, que será retomada adiante, aponta uma das principais contradições do ordenamento territorial e da política

ambiental diante das formas tradicionais de apropriação do ambiente e da economia; a articulação do acesso democrático (na

gestão de recursos hídricos fala-se em “usos múltiplos” da água) às diretrizes de racionalização (técnica) de uso.

15

Principalmente em MARX (1986). A instituição da propriedade privada da terra, com seus mecanismos de garantia, de fato

reconfigura as relações sociais, as justificativas de ação e as práticas materiais de produção e apropriação da natureza (HARVEY,

1996b).

16

Engenharia ambiental, waterfront, modernização portuária, gestão de recursos hídricos.

Page 74: Tese Cidade e Agua Jximenes

74

formas atualizadas de uso e apropriação destes espaços instauram condições novas de

utilização, de formalização e institucionalização das atividades, de esquadrinhamento e controle

(DELEUZE; GUATTARI, 1997b), e de modernização, portanto. Na verdade, o conflito e o ponto central

da problemática do território urbano às proximidades da água residem nestes dois aspectos; na

reafirmação dos diferenciais desta localização frente a novas dinâmicas sócio-territoriais e em seu

conflito com as realidades pré-existentes, tanto urbanas quanto rurais.

Ao estudar a questão da água na cidade, a partir de um ponto de vista específico, há

um conjunto limitado de fenômenos por abordar. Embora seja válido, e pertinente, resgatar e

produzir um abrangente contexto das representações da água, nos territórios em geral e na cidade

em particular, não é este o propósito central deste trabalho. Tentando uma aproximação com uma

possível “questão da água” na cidade, quando há tantas e diversas “questões da água” em

circulação, são abordados quatro fenômenos ora em curso no contexto do município de Belém,

capital do Estado do Pará, no Norte do Brasil. Estes quatro fenômenos representam formas

territoriais, isto é, expressões de estruturas materiais, fronteiras instituídas formal ou

informalmente, cultural e/ou politicamente, em torno de motivações de uso e apropriação da água

na cidade. Estas formas dizem respeito a tipos de conflito sócio-ambiental, em um sentido aberto,

no contexto da cidade em estudo, onde se crê existir potencial de alguma generalização.

Obviamente, estas quatro formas territoriais da cidade nas proximidades da água não encerram

totalmente o assunto, não sintetizam todas as possibilidades de uso e de aproveitamento dos

espaços urbanizados nas proximidades de cursos d´água. Por outro lado, estas formas

representam aspectos “funcionais” do aproveitamento destes espaços, e expressam suas lógicas

a partir de atividades sintéticas, depuradas, mais simples. Quando ocorre modificação em função

de processos de modernização, por exemplo, estas lógicas tendem a ser preservadas, isto é, as

propriedades de uma estrutura portuária tendem a ser as mesmas, mas ocorrem processos de

alteração de padrões, de escala e, eventualmente, de localização.

Para cada forma de abordar a água na cidade, seja através de seus canais de

drenagem ou dos cursos d´água navegáveis de uma zona portuária, por exemplo, corresponde

uma forma física de intervenção territorial. No caso em estudo, embora as relações entre cidade e

água não se esgotem nos exemplos da cidade de Belém-PA, há certa relevância em seus

fenômenos, pela estruturação antiga, secular, da cidade, e por sua quase permanente relação com

a hidrografia do território. Em termos espaciais, a cada uma das quatro formas territoriais de

abordagem da água na cidade pode se falar, também, em modos diferenciados de usar e apropriar

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75

no espaço urbano este elemento da paisagem.

Nos parques culturais e ambientais, de apelo nitidamente estético, a água na cidade

teria uma lógica de objeto destinado à observação e à contemplação. Neste sentido, o uso da

água, por assim dizer, teria desdobramentos sócio-culturais e econômicos pelos diferenciais

paisagísticos da localização. Conforme apontado, há um uso diferenciado do litoral a partir da

invenção da praia no Ocidente, como local benéfico para o corpo e para o espírito (CORBIN, 1989).

As margens das águas, no caso, são abordadas como locais de refúgio do ambiente considerado

hostil das cidades em processo de industrialização na Europa do século XIX, por exemplo. Em

outros casos, o litoral é também avaliado como local de descanso, de revigoramento, de

tonificação muscular, de terapias variadas e de surgimento de uma espécie de novo modo de vida

(CORBIN, op. cit.), sobretudo urbano. O lazer litorâneo e as atividades de consumo que lhe são

correlatas passam a se desenvolver em paralelo.

Curiosamente, a abordagem da água nestes locais associa a prevalência da

contemplação e da observação com as imagens-síntese de populações locais, justamente aquelas

estigmatizadas com seus modos de vida “arcaicos” e rudes. A vila de pescadores, imagem

recorrente do passado rústico do litoral não processado pela chegada da estância turística e do

balneário, é consumida então pelo que nela pode existir de apelo estético palatável à nossa classe

consumidora. Assim, parte das elites urbanas que vai consumir sazonal e ludicamente o litoral se

dispõe a praticar modalidades adaptadas das atividades típicas do local; a pesca, por exemplo, ou

a navegação, os esportes do mar. Thomas (1988) inclusive havia assinalado fenômeno

semelhante ao apontar, entre os ingleses do século XVIII, o surgimento do hábito de se dirigir ao

campo para fabricar cerveja, cortar e empilhar lenha, e plantar. Aquela modalidade de “trabalho”,

recheada de valores de uso e de higiene mental e não tão impregnada de mais-valias ou de

racionalização do tempo de serviço e de sua produtividade, é sem dúvida um dado curioso da

mudança de sentido do ambiente. Do mesmo modo, o litoral (e as margens de rios, de lagos)

convertido em balneário é reinventado não apenas em sua paisagem, mas em suas formas de uso

e apropriação, quando o abordamos pelo viés da contemplação. Observar o litoral passa portanto a

ser diferencial paisagístico, o que redunda em rendas diferenciais e, eventualmente, de monopólio,

junto a certas atividades recentes e “praianas”. Do mesmo modo, a já secular reconhecida

propriedade terapêutica do mar e de seus ares, embora tenha mudado de concepção na Medicina,

se desdobra em diversas atividades econômicas, indo desde uma sempre renovada indústria de

cosméticos até produtos da indústria cultural, à produção de artefatos diversos e mesmo à

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76

produção do ambiente construído, com os parcelamentos urbanísticos de beira de praia e a

relação com o lazer litorâneo. Como Sharon Zukin (2000) observaria contemporaneamente, nas

cidades e territórios reconfigurados pelo processo da chamada globalização as visualidades não

são apenas itens de fruição estética; sendo esteticamente consumíveis, o são também no sentido

visual, isto é, fazem parte da formação de uma demanda pelo consumo visual (ZUKIN, 2000) em

que se agregam setores da economia aos atributos associados à paisagem. Georg Simmel (1996),

ao tratar de sua filosofia da paisagem, não tinha em mente a alteração de significados do litoral.

Apesar disto, em sua formulação é possível observar o moderno conflito entre o indivíduo em

processo brutal de homogeneização e sua pulsão por individuação. Neste sentido, a “paisagem”

do autor ainda permite uma análise — a respeito de conteúdos individuais e de sua influência

sobre a observação, na relação entre parte e todo:

Enquanto daí (N. do autor; do conflito entre homogeneização e individuação)

resultam conflitos e rupturas sem número de ordem social e técnica, espiritual e

moral, este mesmo modelo, diante da natureza, produz a riqueza conciliante da

paisagem, entidade individual, homogênea, apaziguada em si, que não obstante

permanece tributária, sem contradição, do todo da natureza e da sua unidade.

Mas para que nasça a paisagem, é preciso inegavelmente que a pulsação da

vida, na percepção e no sentimento, seja arrancada à homogeneidade da

natureza e que o produto especial assim criado, depois de transferido para uma

camada inteiramente nova, se abra ainda, por assim dizer, à vida universal e

acolha o ilimitado nos seus limites sem falhas (SIMMEL, 1996, p. 17).

As paisagens, portanto, dependem da observação, que se apresenta como uma das

possíveis abordagens atuais da água na cidade, e que se revela com enormes desdobramentos

materiais. A água na cidade, entretanto, é abordada, ainda, de outras formas, criando reflexões

inclusive a respeito de usos tidos como mais “racionais” e “duros”, impregnados do caráter

moderno de eficiência e formalização. No porto, por exemplo, em sua forma de tratamento das

águas “técnicas”, a racionalidade de uso seria de produção de ligações entre o território (fronteiras

convencionadas, recortes espaciais tornados concretos pelo reconhecimento mútuo de um grupo,

sobre um substrato material específico, com historicidade) e os cursos d´água. Produz-se

conexão, isto é, relação entre estes terminais, nos dois sentidos. Além deste aspecto, o porto

produz, ainda, extensão, no avanço da terra sobre as águas, através dos aterros e das estruturas

suspensas, mas também através da própria lógica de mobilidade espacial colocada sobre suas

estruturas físicas. A forma específica de abordagem da água, no porto, é pois a da água como

fator de deslocamento, de produção de movimento. Isto difere, portanto, a lógica territorial do porto

das demais formas de uso da água na cidade — embora alguns de seus elementos, como a

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77

extensão, possam ser identificados em atividades e estruturas físicas urbanas de outra natureza.

Na regulação técnica, política e mesmo jurídica da água na cidade, e em uma escala

territorial mais ampliada, a possibilidade de mapeamento, monitoramento e intervenção, ainda que

indiretamente, seria produzida por uma forma espacial de abordagem que visa ordenar os

fenômenos de forma abrangente e difusa. Pretende-se regular a apropriação das regiões de

influência dos cursos d´água, das margens destes e/ou das águas, propriamente.

Com a consolidação de processos racionalizados, abstratos e formalizados de

influência sobre as formas de uso e apropriação do território no contexto estudado, pode ser dito

que houve transformação e conflito sócio-ambiental. Nos territórios de interface entre a cidade e os

cursos d´água, por exemplo, tais conflitos decorrem, em grande parte, de efeitos deste processo

de racionalização e consolidação de um padrão moderno, efetivamente capitalista, e atualizado

institucionalmente, de política de ordenamento territorial. Deste modo, as formas territoriais da

observação, da conexão, da extensão, do deslocamento e da apropriação regulada seriam

identificáveis, de formas diferentes em termos históricos e concretos, em períodos distintos. Estas

formas estariam presentes, por exemplo, naquele espaço público de reuniões coletivas na cidade

tradicional ribeirinha amazônica (como em terreiros e praças), no complexo das estruturas

institucionais, religiosas, comerciais e de transportes. Do mesmo modo, estariam presentes no

parque cultural à beira da água, porém com outros propósitos, modificados.

Estas formas de uso e abordagem da água na cidade estariam, também,

representadas pelas estruturas de transporte e entreposto comercial das cidades de beira de rio da

região. Com o processo de modernização e a urbanização de maior escala, estas formas são

convertidas em artefatos de grande porte, objetos das ações de racionalização e formalização.

Entrepostos regionais materializados em praças comerciais, mercados e feiras, em suas funções e

atividades estruturais, têm prolongamento em portos modernos. Modificam-se, entretanto,

conteúdos relativos principalmente à escala, às seletividades e formas de veto ao território próximo

à água.

Prosseguindo, às soluções de tratamento ambiental da água na cidade, com funções

técnicas diversas e ligadas ao saneamento, sucede um fenômeno curioso de revisitação de

soluções tradicionais nas técnicas contemporâneas. Embora haja um conjunto de soluções

tradicionais de drenagem, por exemplo, qualificadas como obsoletas pela engenharia atual,

algumas medidas “vernaculares” são reconsideradas por este mesmo novo padrão, o que ao

mesmo tempo coloca a técnica anterior como item anacrônico, e a atual, como um diferencial

Page 78: Tese Cidade e Agua Jximenes

78

impregnado pelo paradigma ecológico do baixo impacto — embora ambos tenham, em certos

pontos, a mesma matriz.

Modos e formas diferentes de usar um elemento do ambiente na cidade como a água

produziriam, portanto, diversas soluções e estratégias espaciais. Avaliando a transformação de

margens de cursos d´água no caso deste trabalho, a cidade de Belém-PA e parte de seu entorno

micro-regional, pode-se notar estas diferenças, e seus conflitos em face de processos de

modernização e racionalização. Estes processos podem, como afirma Weber (1991), incorporar

tipos de poder generalizados e abrangentes, oriundos do Estado, mas também dizem respeito a

transformações recentes na economia e no espaço.

Transformações na estrutura produtiva regional, por exemplo, acompanhadas e

influenciadas por processos de mudanças nas políticas econômicas e de ordenamento territorial

teriam efeitos diferentes daqueles advindos da força estatal aplicada aos processos em curso no

espaço. De fato, a partir da mudança nas relações regionais no Brasil pós-ditadura militar de 1964,

a integração regional brasileira alterou as posições relativas da hierarquia entre regiões e da própria

rede urbana do país. Neste sentido, o processo de integração econômica e espacial sofrido pela

Região Norte foi acompanhado de uma reorientação nas políticas de Estado e de um novo contexto

econômico nos países do capitalismo avançado. A chamada reestruturação produtiva acarretou a

expansão de algumas atividades de infra-estrutura e dos capitais em geral (HARVEY, 2000), por

exemplo, e o esvaziamento das políticas de redução de desigualdades regionais através de

agências estatais de desenvolvimento. Neste contexto, várias políticas de desenvolvimento urbano

e regional se tornaram progressivamente mais conservadoras (HARVEY, 1996a), com retração de

investimentos em políticas sociais e de reversão de desigualdades em geral, independente de sua

orientação programática ou ideológica.

Por fim, a regulação pública e coletiva dos usos das águas, se não era praticada, nem

institucional e nem coletivamente, dizia respeito a determinado universo de códigos acerca do

ambiente ou, especificamente, das águas naquela região habitada. Assim é que os regimes de

marés, os locais de despejo de resíduos, de atracação de embarcações e rotas foram,

tradicionalmente, codificados e transmitidos pelos grupos que compartilhavam o recurso.

Atualmente, ficaria a cargo do Estado, ao menos em parte, a regulação de aspectos das atividades

de uso e apropriação das águas; a gestão das águas, assim, assumiria que uma racionalidade

transcendente, e de Estado (HARDT; NEGRI, 2004), tomaria o lugar dos processos compartilhados

regionalmente, e que, em menor escala, desempenhavam papel semelhante.

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79

É possível, portanto, assinalar que os usos e as formas de apropriação (simbólica,

material) da água na cidade tenham sofrido modificações, em geral, a partir da consolidação de

certos fenômenos no âmbito das economias capitalistas. Para o caso em estudo, em suas

particularidades, a crescente formalização de um mercado de terras parece ser um fator

aglutinador desta modificação, e fator de reprodução histórica dos conflitos sociais dela

decorrentes. A partir de alguns tipos de abordagem da água na cidade podemos identificar

aspectos das lógicas de formação territorial destes espaços idiossincráticos (MORAES, 1999) e,

assim, raciocinar sobre sua problemática. A transformação das formas concretas pelas quais a

água tem sido abordada no território (em termos funcionais e materiais, sobretudo, mas não

exclusivamente) não elimina a permanência de suas lógicas internas, em grande parte.

Assim, a lógica da contemplação e da observação, presente no complexo de

atividades de caráter de espaço público, de reunião coletiva e de sociabilidades diversas, era

existente na cidade tradicional, inclusive amazônica, e persiste. Esta forma de abordar a água na

cidade, contudo, muda em sua expressão material, física e urbanística, e adquire novos sentidos,

até certo ponto. Na cidade tradicional, como em assentamentos de origem colonial brasileira, o

complexo formado pela praça, pela Casa de Câmara e Cadeia, pela Prefeitura, pelo Mercado, pelo

porto e pela feira configuraria ao mesmo tempo uma centralidade urbana (e regional) (REIS FILHO,

2004) e um espaço onde esta lógica de contemplação estaria presente. Ali estaria um conjunto de

atividades e funções que usaria a visualidade dos cursos d´água na cidade, além de denotar o

poder político no espaço urbano; haveria formas de se apropriar a água na cidade a partir da

observação, não só paisagística e da fruição estética, mas também das atividades de trabalho ali

desenvolvidas. Havia ali, nas proximidades da água, maior densidade de capital instalado, maior

volume de investimento imobilizado e camadas de trabalho investido. Para a época colonial, por

exemplo, é razoável deduzir que esta localização tivesse valor econômico de certo modo superior,

ao menos para alguns usos do solo. Em processo de modernização, contudo, a acepção mudaria.

Os usos de contemplação e observação da água na cidade, nos termos tratados neste

estudo, seriam ligados a uma economia de traços relativamente recentes, de aproveitamento das

visualidades, dos diferenciais paisagísticos, das margens das águas para a associação com estes

setores da economia. Em espaços remodelados e freqüentemente referentes aos usos antigos,

tradicionais, ocorre a apreciação passadista e o consumo imagético do que se divulga como o

modo de vida de época, ou as atividades próprias do local, sejam elas portuárias ou comerciais. A

paisagem renovada da água na cidade, enquanto local de consumo visual (Zukin, 2000), passa a

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80

exibir uma divisão sutil, porém com efeitos claros, na cidade; uma cisão entre camadas de

maior e de menor poder econômico, e entre agentes capazes de mobilização social e

transformação territorial de acordo com usos e atividades. Persiste o propósito da contemplação,

mas mudam a sua acepção e suas formas territoriais específicas.

Quanto ao porto, nota-se que há tendência a produzir articulação entre o território

ocupado e os cursos d´água. Esta articulação pode ocorrer através de estruturas (em geral

construídas) de apoio à navegação e ao comércio; são utilizadas propriedades de viabilização dos

fluxos pela água e edificações ou infra-estruturas para a utilização de sua interface com as terras.

Esta conexão entre a cidade e o curso d´água, em geral, ocorria tradicionalmente nas áreas

centrais, pioneiras da ocupação urbana. Além da abordagem de conexão entre a cidade e as

águas, o porto também costuma produzir eventuais acréscimos, ganhos de terra sobre elas; são

exemplos disto os chamados terrenos acrescidos, figuras notórias no Brasil, por exemplo.

Processos de aterramento, ou de modificação no desenho das margens de cursos d´água, por

vias naturais ou artificiais, com aproveitamento, são freqüentes em áreas de atividade portuária,

mesmo antes da codificação técnica do porto moderno, que podemos datar de, pelo menos,

meados do século XIX, embora a carga em contêineres seja adotada já na década de 1960,

hegemonicamente (DOUMENGE, 1967). Haveria, portanto, uma tendência eventual à extensão de

terras sobre as águas, o que representa intenção de ampliar o terreno aproveitável para operação,

mas também de reconfigurar o substrato material das atividades, visando a constituição de novos

arranjos espaciais. Como no exemplo anterior, persiste o uso; modificam-se, contudo, as

estruturas físicas e, freqüentemente, suas localizações e populações diretamente envolvidas. O

porto contemporâneo, por exemplo, difere do porto urbano central, e já secular, por ter caráter

relativamente desconectado da dinâmica intra-urbana, e por ser um nó de uma rede logística,

claramente definido, racionalizado e projetado de modo a compor um complexo econômico de

alcance regional. Os efeitos de aglomeração dele resultantes ocorrem, nos núcleos urbanos, por

outros mecanismos que não aqueles de “proximidade” que podiam ser notados no complexo

feira/porto/mercado, por exemplo. Há uma relação entre as “funções” e atributos da relação cidade

e água do porto com outras atividades desta relação, para finalizar o tema: há, obviamente,

aproveitamento da água na cidade para fins de transportes nas atividades portuárias. A

possibilidade de escoamento, de deslocamento, por propriedades físicas (e físico-químicas) da

água, seria assim compartilhada entre portos e estruturas de saneamento na cidade.

Neste aspecto, pode ser considerado que houve, historicamente, formas e tecnologias

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81

tradicionais e mesmo soluções empíricas para drenar as águas da cidade, fazer escoar os

dejetos, deslocar populações e artefatos. Estas formas, principalmente nos dois primeiros casos

citados, abordam a água na cidade em termos de suas propriedades de deslocamento, de

movimento. A água, então, era um elemento tomado como substância, com propriedades físicas e

físico-químicas, e mesmo estritamente químicas, e oscilava entre o caráter sujo, portanto interdito,

e o potencial de limpeza dos corpos (SWYNGEDOUW, 2001), das edificações, dos artefatos em geral.

Corbin (1989) cita, inclusive, o caráter interdito da água em sociedades ocidentais modernas

quanto relembra o litoral enquanto receptáculo de dejetos, como local sombrio do desconhecido,

da escuridão, do rejeito e das atividades menos nobres. Nas profundezas do mar, argumenta o

autor (CORBIN, 1989), estariam elementos e criaturas de que não se sabia propriamente e também

uma espécie de ambiente esquecido, relegado. Por outro lado, a água “já” limpava, era

reconhecido. É no controle da água na cidade, ou na sociedade capitalista moderna (SWYNGEDOUW,

op. cit.), que reside o cerne desta transformação. Na implantação de soluções de maior porte,

coletivizadas, tributárias das antigas soluções de engenharia de origem romana e genericamente

“árabe” foram racionalizados fluxos da água na cidade (Idem, op. cit.) Esta racionalização leva a

certo grau de controle de acesso e, economicamente, na cidade contemporânea, condiciona

fortemente a capacidade de se fazer valer a aplicação da água como fator de produção, ou de

operacionalizar estruturas urbanas enquanto unidades produtivas. Castells (2001), por exemplo,

argumenta a este respeito que as atividades urbanas, há tempos, são produtivas e ao mesmo

tempo, consumidoras, em sua transposição da crítica da economia política; assim, o potencial

produtivo das estruturas urbanas estaria condicionado ao acesso a estas tecnologias, inclusive por

razões de escala e redução de fricções no deslocamento (CASTELLS, op. cit.)

Outra abordagem de interesse deste mesmo ponto seria a da revisão de parâmetros

tradicionais das soluções de saneamento e contenção das águas no território. A partir do estudo de

Ian McHarg (1971) são identificadas lógicas, princípios elementares, o que parece ter norteado a

criação de procedimentos antigos para se construir diques, comportas, proteções de costas

marítimas e fluviais, edificações em áreas de duna, aproveitamento de margens de rios. Um

elemento básico seria o de evitar ao máximo o conflito entre dinâmicas ecológicas ou físico-

ambientais verificadas e soluções espaciais produzidas (MCHARG, op. cit.) O autor reconhece que

este processo nem sempre é possível, mas, à moda dos paisagistas japoneses e das

“engenharias” de águas portuárias holandesas, investiga e compila soluções técnicas de trabalho

junto à interface entre a terra ocupada e as águas. Deste modo, por exemplo, são pensadas formas

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de debelar a energia cinética e o impacto físico de correntes de água sobre margens fluviais;

com a construção de diques parciais e escalonados, afastados convenientemente, são criadas

zonas de relativa dissipação de energia, com hierarquias de estruturas de contenção (Idem, op.

cit.) Embora trate-se de “muros”, nenhuma delas pretende conter totalmente as águas, e sim

direcionar correntes, reduzir o impacto, reduzir erosões, dissipar e aproveitar a própria dinâmica

natural instalada (Idem, ibidem). Este é apenas um exemplo. Nas soluções tradicionais, em parte

pelo uso de tecnologias rudimentares, ainda pouco invasivas, e em parte pela aplicação de

técnicas baseadas na observação de longa duração, este princípio costuma ser visto. Assim, a

abordagem contemporânea do deslocamento das águas relembra princípios de técnicas antigas e

lhes confere outras aplicações. No caso, há associação entre contemplação e deslocamento; ao

caráter saneador das águas reurbanizadas é associada certa propriedade paisagística. Por outro

lado, estas novas soluções são praticadas de modo ainda parcial, não extensivo. Curiosamente, a

inteligência técnica e tradicional das soluções da água como deslocamento, valorizadas do ponto

de vista do saneamento ambiental, são oriundas dos mesmos grupos aos quais se associava o

caráter periférico, arcaico, sujo e interdito do litoral: pescadores, artífices, operários.

Há nas abordagens verificadas da água na cidade tipos de atividades praticadas pela

apropriação das águas. Neste campo estão situadas, basicamente, atividades que dependem de

captação, de consumo direto, de incorporação em processos produtivos (resfriamento, irrigação,

lavagem, fluidificação, equilíbrio mecânico, etc.) Estas atividades, embora pareçam ter caráter

eminentemente técnico, têm também notáveis desdobramentos econômicos, o que lhes confere

excepcional capacidade de acentuar aqueles conflitos de natureza sócio-ambiental dos territórios

próximos aos cursos d´água. A lógica de apropriação da água é, como sabemos, milenar, e existe

em qualquer assentamento humano, com grandes diferenças, obviamente. A questão é de

estratégia, e de efeitos sociais. Na forma tradicional da terra livre, de acesso relativamente informal

(LOUREIRO, 2004), como no caso amazônico pré-década de 1950, o acesso a terras (que são

diferenciadas; terras com acesso a água) para fins de apropriação da água era feito de uma forma

particular. Este momento histórico assinala uma etapa ainda pré-capitalista de produção, em que

um dos potenciais de conflito se dá justamente no controle da terra enquanto meio de produção

(MARX, 1986), dotado de valores de uso e de troca. É mantida a lógica de apropriação direta e

aplicação em processos, mas estes mudam. Com a aplicação de procedimentos de modernização,

dentre os quais a chegada do mercado de terras mais consolidado e da administração pública com

políticas de ordenamento territorial, o caráter de controle de acesso tende a se acentuar. Do

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mesmo modo, tendem à acentuação as dinâmicas de veto. A apropriação, que continua válida

enquanto lógica interna da relação entre cidade e água, passa a ser regulada por instituições ou por

acordos; o mercado do solo urbano, suas garantias, ou as políticas de ordenamento territorial e

meio ambiente contemporâneas.

Efeitos destes processos de modificação sobre os quatro fenômenos apresentados,

vistos como formas territoriais de relações entre urbanização, cidade e água, representam,

portanto, inflexões. A partir das modificações nas formas de abordar a água na cidade, por

observação, conexão, extensão, deslocamento ou apropriação, são criados tipos relativamente

recentes de conflito. Estes atributos, que não são estritamente funcionais, das formas territoriais de

uso e apropriação da água na cidade, podem ser trabalhados em sua especificidade regional, de

modo a entender sua manifestação no caso em estudo e para o entendimento da natureza do

conflito sócio-ambiental e político que podem, eventualmente, representar.

Para entender o conteúdo das formas territoriais citadas, neste ponto, é necessário

abordar os fenômenos concretos de produção do território nos tópicos de interesse a este estudo.

No caso em análise, a cidade de Belém-PA e sua região de entorno, há uma série de iniciativas, de

intervenções e políticas de rebatimento territorial e ambiental que evidencia a relação e os

potenciais e situações efetivas de conflito por uso e apropriação da água na cidade. Estas formas

de conflito decorrem, como pode ser visto, daquelas formas, dos atributos das estruturas de

acesso à água na cidade. Por outro lado, as formas exibem lógicas e, ao mesmo tempo,

abordagens da água no território urbanizado. Seus potenciais de conflito, e suas assimetrias de

apropriação de diferenciais locacionais, podem ser pensados à luz dos casos concretos da cidade

de Belém-PA, onde convergem intervenções em vários campos da relação entre cidade e água.

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3. BELÉM-PA E O ESTUÁRIO GUAJARINO: CIDADE E ÁGUA

Belém-PA é um município do Norte do Brasil cuja fundação do núcleo urbano povoado

data de 1616 (CRUZ, 1973). A lógica de fundação da cidade, no que diz respeito ao seu sítio físico,

estaria relacionada ao projeto colonial de defesa da Coroa Portuguesa. A historiografia da

urbanização brasileira costuma associar núcleos urbanos como o de Belém à categoria de

“cidades de afirmação de posse e defesa da costa e cidades do litoral em geral” (SANTOS, 2001,

p. 81, grifo do autor). Criadas com base em ações de defesa militar, funções administrativas e

atividade comercial restrita, cidades deste tipo apresentariam, na definição de suas localizações, o

princípio essencial de sua implantação. Elas não seriam, necessariamente, destinadas à

urbanização mais extensiva, ou ao desenvolvimento de um porte significativo, em seus anos

iniciais (SANTOS, op. cit.); a posição estratégica que ocupam são fatores predominantes. O caso de

Belém-PA se insere nesta categoria, portanto. A cidade apresentava, em seu sítio físico original,

uma rede hidrográfica que permaneceria como item relevante da paisagem, como condicionante de

intervenções e como direcionador dos vetores de expansão (e das áreas de retração) de seu

processo de ocupação territorial (Idem, op. cit.)

De fato, os motivos da fundação da cidade de Belém-PA podem ser considerados

historicamente relevantes para a ocupação do território na bacia amazônica (MOREIRA, 1989). A

estruturação urbanística da cidade, desde o seu princípio, teve nos elementos hídricos de sua

paisagem condicionantes significativos, tanto de sua morfologia quanto das atividades econômicas

e funcionais desempenhadas no território que se formava (MOREIRA, op. cit.)

Belém-PA também se consolidou, durante seus primeiros dois séculos, como entreposto

comercial. A posição geográfica do núcleo urbano era, de certo modo, favorável; ao mesmo tempo

protegida da movimentação do mar aberto e posicionada em zona de características estuarinas17

,

de correntes mais estáveis e, portanto, de navegabilidade razoável (PENTEADO, 1973). Belém-PA

tornara-se ponto importante de rotas comerciais da região amazônica, ligada a uma complexa e

extensa rede de trocas, de deslocamentos pela água feitos por tipos variados de embarcações e

com transporte de itens também diversificados (MOREIRA, op. cit.) Os itens transportados e

17

O autor discute o enquadramento da cidade; questiona sua classificação em região de estuário, segundo critérios adotados à

época. Este ponto, no entanto, nos serve apenas para reforçar a característica da possibilidade de acesso por via fluvial à

cidade e seus desdobramentos.

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85

comercializados, inclusive, acompanharam a cesta dos produtos regionais que compuseram os

ciclos econômicos regionais; as chamadas drogas do sertão, a castanha, a pimenta, a madeira, a

borracha, entre outros (Idem, op. cit.)

A presença da água na paisagem da cidade de Belém-PA apontou também uma espécie

de geografia urbana marcada por paróquias religiosas, edifícios de função administrativa e militar,

portos, feiras e mercados, e fortificações. Todas estas estruturas urbanas estiveram situadas em

pontos da cidade hoje pertencentes a seu Centro Histórico ou a suas imediações, numa extensão

de aproximadamente 4,2 quilômetros, entre seus atuais bairros da Cidade Velha, Campina e

Reduto. Além do Forte do Presépio, que marca a ocupação territorial da fundação da cidade (CRUZ,

1973), outras fortificações de menor porte chegaram a ser instaladas em suas parcelas antigas

(MOREIRA, 1989). Havia, portanto, certa presença política e de aproveitamento econômico nas

margens fluviais do território.

Outros pontos de aproveitamento de diferenciais locacionais e usos potenciais da água

no território podem ser encontrados na história da cidade. Há, portanto, relação entre a presença

de cursos d´água no território da cidade de Belém-PA e sua urbanização, bem como entre os

cursos d´água e as formas de uso e apropriação do território na escala regional. Nos termos de

Moraes (1999), a beira do mar, não sendo um “lugar comum”, revela-se como expressivo

condicionante de relações, de formas de ocupação territorial, de usos e da economia. O espaço

em questão, não sendo propriamente litorâneo, é incluído pelo planejamento ambiental brasileiro e

pela classificação geográfica como zona costeira (MORAES, op. cit.), pelas práticas que contém e

pelas formas que incorporou ao longo do tempo.

3.1. O PIRI

Uma referência inicial desta relação entre cidade e água em Belém é dada pelo caso do

chamado Alagadiço (ou pântano) do Piri18

. Sua área alagada representava, segundo relatos, uma

espécie de divisor do parcelamento da cidade (CRUZ, 1973; PENTEADO, 1968). Este elemento hídrico

definiria bairros, relativamente separados pelo pântano, chamados da Cidade e da Campina, o que

diria respeito à primeira configuração da mancha de ocupação da cidade (PENTEADO, 1968). Alguns

dos seus próprios vetores de expansão urbana, em direção à futura área comercial (a “Campina”),

foram desenhados em função do traçado do pântano e de seus cursos d´água; lidava-se com a

18

Penteado (1968) cita a denominação antiga do alagado; o nome Piry de Juçara significaria, em Tupi, “perto da juçara”, isto

é, da palmeira do açaí, comum nas áreas de várzea da região e, portanto, no alagado.

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86

água na paisagem como elemento a transpor ou a aproveitar em seus possíveis benefícios. O

curso d´água era, portanto, um condicionante objetivo, a ser incorporado ao desenho da cidade,

nos termos da época.

O Piri, inclusive, fora objeto de proposta de intervenção saneadora e de arruamento e

parcelamento do solo; trata-se da localmente célebre proposta de “veneziamento” de canais do

Major Gaspar Gronsfeld19

, um engenheiro militar que fazia parte da comissão demarcadora de

limites do período pombalino, e que teve a incumbência de mapear o território da Amazônia

portuguesa (em um momento histórico em que a região não possuía este nome, inclusive). A partir

das plantas de Gronsfeld são notadas as diferenças entre a proposta de intervenção (com redução

das áreas ensecadas e aterradas, e consolidação dos cursos d´água existentes) e a realização

física na cidade (com ensecamento, de fato, de cursos d´água e sua canalização) (PENTEADO,

1968; 1973). Belém-PA, em sua primeira grande obra de “infra-estrutura”, foi saneada por

métodos que hoje seriam chamados de convencionais.

Isto, aliás, suscita debates atuais em torno de como Belém-PA “deveria” ou “poderia”

ser, à luz de padrões atuais de tecnologias ambientais, embelezamento urbano e atratividade de

capitais. O recente “desejo de litoral” (CORBIN, 1989) das elites locais se reflete nestas aspirações,

referentes a uma cidade reconfigurada para os novos usos da economia da cultura e para reverter

seu padrão já histórico de estagnação econômica. Um Pântano do Piri redivivo é então discutido,

inclusive em meios intelectuais, como “possibilidade” retroativa da reconfiguração urbanística e

paisagística de Belém-PA.

O processo de ensecamento do Alagadiço do Piri, para o estudo da formação urbanística

da cidade de Belém-PA, é considerado uma espécie de marco. Aterrar e drenar a área pantanosa

seria um tipo de intervenção capaz de garantir condições para a ampliação do núcleo urbano

ocupado, e seria uma medida de integração entre paróquias urbanas (estruturas de poder, do

mesmo modo que as militares, de certa forma), além de representar a articulação espacial entre

parcelas da cidade.

Nos termos de Antônio Ladislau Monteiro Baena (2004), a questão do tratamento do Piri

também é representativa, o que o revela como um elemento hídrico muito presente na

historiografia e na paisagem histórica da cidade de Belém no século dezoito:

[...] em 1771 o Major Engenheiro Gaspar João Gerardo Gronfelts deu ao

19

O nome do alemão, engenheiro militar membro da Comissão Demarcadora de Limites à época, é grafado como “Gronsfeld”

ou “Gronfelts”, dependendo da fonte consultada.

Page 87: Tese Cidade e Agua Jximenes

87

Governador Fernando da Costa Ataíde Teive um plano bem inferido da sua

localidade : ele ajuizou que em vez de empregar trabalhos hidráulicos para obter

a exsicação desta lezira20

era melhor ir com a indicação da natureza, e

aperfeiçoar a sua obra, fazendo um lagamar, que as águas da fundação do rio e

as ascendentes no fluxo do mar naturalmente ocupassem. Para este lagamar ele

dava três entradas [...] O perímetro do lagamar, e as entradas para ele deviam

ser um cais de pedra todo cingido de uma ala de árvores fecundas intermeadas

de árvores de ornato. Para se fazer efetiva a possibilidade deste plano ele

lembrou que a despesa se fizesse pelo público obrigando os moradores a

pagarem (sic) tanto por cada reino das suas canoas [...] Este tributo deveria

durar até cerrar o pagamento da despesa total; acrescentando o dito engenheiro

alemão que esta obra se executar ele assegura que a cidade de Belém do Pará

ficará sendo mais bela que a adriática Veneza tão celebrada (BAENA, 2004, p.

201).

Há duas imagens importantes nesta narrativa. A primeira é uma concepção

“compreensiva” diante do ambiente da cidade. Nota-se que a intervenção sugerida pelo engenheiro

militar pretendia preservar em parte, digamos, a dinâmica hidrológica existente, segundo o relato

de Baena (op. cit.) A manutenção da navegabilidade dos cursos d´água ligados ao Alagadiço do

Piri, e a própria citação do “lagamar” — que, em comparação grosseira, seria uma espécie de

ancestral de atuais tanques de acumulação das redes de macrodrenagem, associado à navegação

— evidenciam esta postura. Obviamente não se trata de concepções onde caiba comparação

direta com obras de engenharia atuais. Não podemos comparar as mentalidades, as concepções e

tampouco os conflitos e disputas de poder envolvidos nas formações territoriais de então com

aquelas da atualidade. Não é este o objetivo. Por outro lado, a presença desta polarização, à época,

evidencia a dualidade antiga entre intervenções de maior impacto sobre as condições pré-

existentes e aquelas que pretendem criar outro regime, com alterações mais radicais e,

freqüentemente, modernizadoras.

Em termos urbanísticos, de certo modo, poderíamos identificar as primeiras formas como

culturalistas e as segundas como progressistas, na classificação proposta por Françoise Choay

(1997). Embora o caso em questão não seja propriamente o de uma oposição entre concepções

européias de planejamento e projeto urbano, podemos associar as formas de intervenção que se

pretendem “contextualizadas”, historicamente, e aquelas que pretendem instaurar novos regimes,

20

Isto é, para obter a drenagem daquela planície de inundação. Curiosamente, esta transcrição aparece repleta de

possibilidades de análise presente: a idéia do lagamar, área de cota mais baixa tornada facilmente navegável ou com função de

acumulação das águas, remete a soluções técnicas atuais dos tanques de acumulação e contenção. Por outro lado, a própria

concepção “compreensiva” diante da dinâmica hidrológica do sítio é, sem dúvida, diferente da concepção modernizadora, de

intervenção e racionalização dos fluxos da água no território, marca de projetos de saneamento efetivamente implantados na

cidade.

Page 88: Tese Cidade e Agua Jximenes

88

ao fato. Haveria intervenções sobre o território (inclusive na escala da cidade) que se pretendem

alterações mais radicais nas configurações urbanas e, por conseguinte, nas relações com elas

estabelecidas; há, no outro extremo, formas de intervenção que se pretendem de menor impacto,

mais respeitosas e observadoras da herança material e cultural prévia, isto é, das condições e do

contexto em que se inserem. A aparente proposta de um tipo de intervenção de ensecamento

(como se dizia à época) do Alagadiço do Piri, concretizada na cidade, em paralelo a outra, de

manutenção do regime de marés em sua área, não executada, assinala a coexistência destes tipos

diferentes de concepção. Acerca do caso de Belém, esta coexistência entre concepções mais

“compreensivas” e outras mais modernizadoras nos leva a um outro aspecto.

Uma segunda imagem, portanto, diria respeito às formas como a questão do Alagadiço

do Piri fora apropriada, contemporaneamente, e qual a sua relação com textos de relevante caráter

histórico como o de Baena (2004). Lê-se na transcrição uma espécie de comparação, bastante

curiosa; a associação entre a beleza da paisagem urbana advinda da intervenção “compreensiva”

sobre o Piri e os atributos visuais de Veneza. Arquétipo de paisagem urbana de notável apelo

visual, próxima do que os urbanistas do século dezenove, como Camillo Sitte, chamavam de

“pinturesca”21

(SITTE, 1992), Veneza é acionada como referência de beleza, plasticidade, no

território da cidade para relacionar a referência ao ambiente (à água, a seu tratamento, à formação

de canais urbanos) com o incremento estético decorrente da reforma do espaço urbano. A

visualidade da cidade, o desempenho perceptivo, cinestésico e o juízo estético decorrentes da

experiência urbana, seriam prerrogativas da intervenção. Daí, portanto, a idéia, subsumida como

vantajosa para o desenvolvimento urbano de Belém-PA, de reconfigurar suas águas de modo a

“veneziar” seu centro. A cidade, feita também de referências visuais e associações afetivas com

tais referências (ARGAN, 1998), teria portanto em sua estética uma forma de qualificação de sua

materialidade, de suas estruturas físicas. A questão, antiga, do tratamento das áreas alagadas do

Piri, em Belém-PA, portanto, suscita apreciações contemporâneas:

Em 1777 [...] a familiaridade com a cidade permitiria a Gronsfeld realizar a sua

grande obra: a elaboração de um ousado plano urbanístico destinado a

solucionar o grave problema dos terrenos alagados, os quais [...] atormentavam

os belemenses desde a fundação da cidade [...]

Durante séculos a História das Construções de Belém seria afetada pelo alagado

— chamado de Piry — pois a presença dele na área central forçaria a expansão

da cidade na direção dos terrenos de cotas mais elevadas, considerados nobres

21

Isto é, esteticamente agradável, mas com particularidades formais, idiossincráticas; o tradutor criou o termo para designar a

associação entre o plano pictórico das artes plásticas e a idéia de peculiaridade de sítios urbanos antigos (SITTE, 1992).

Page 89: Tese Cidade e Agua Jximenes

89

e, por isto, caros. A imensa faixa de população de baixa renda, sem

possibilidade de acesso a estes terrenos, haveria de permanecer por longo

tempo confinada em áreas de constantes inundações, maus cheiros e

proliferação de doenças (COIMBRA, 2003, p. 89-90).

Hoje este raciocínio seria aplicável a fenômenos semelhantes, de forma curiosa. A idéia

de uma “revitalização” do centro histórico e da orla fluvial de Belém-PA freqüentemente aciona

imagens como a proposta de “veneziamento” de Gronsfeld para conjecturar acerca de formas

possíveis de transformação da paisagem urbana da cidade. Em uma espécie de passadismo que

transpõe a lógica competitiva da cidade estratégica atual para o século dezoito, atualmente

circulam versões diversas22

da especulação sobre as vantagens de se ter enfim adotado a

concepção de Gronsfeld para o Piri e, conseqüentemente, para a cidade como um todo:

Belém, a Veneza do esgoto a céu aberto

No começo eram rios e igarapés. Depois vieram os aterros e o concreto

interrompendo ou desviando seus percursos. E então surgiram os canais. São

68 que cortam Belém de ponta a ponta. Agrupados em sete bacias hidrográficas,

os canais ocupam hoje o local onde antes era possível nadar e pescar. Ainda é

possível, porém não aconselhável, dar um mergulho nos canais da cidade. E de

lá, o máximo que se pesca são bicicletas velhas, pneus e todo tipo de objeto que

se possa imaginar. [...] foram retirados 196 milhões de quilos de lixo dos canais

da cidade. [...]

'Não dá para dizer que ainda tenha rio ou igarapé que corte Belém. Infelizmente,

tudo virou canal. Mesmo os que tiveram o traçado natural, agora recebem

resíduos de esgotos e fossas domésticas. O entorno dos igarapés também já

não é característico. Casas, prédios e indústrias ocuparam desordenadamente o

local e acabaram poluindo as águas e as margens dos igarapés' [...] (O LIBERAL,

06 jul. 2009, p. 1. Grifo dos autores).

[...] engenheiro Gaspar João Gronsfeld também contribuiu com sugestões sobre

o melhoramento do espaço urbano, o que é uma exceção, pois a regra geral

ainda é nesse período as construções prediais [...] Gronsfeld propôs um plano

urbanístico que solucionaria tecnicamente os problemas das baixadas de Belém,

pois ainda no século XVIII permaneciam os problemas do alago do Piri, o que

forçava a expansão da cidade na direção dos terrenos mais elevados e mais

caros. A maioria da população de baixa renda residia nas áreas de “constantes

inundações, maus cheiros e proliferação de doenças” (MORAIS, s/d, p. 2).

(N. do autor: texto jornalístico que se refere à fase de produção artística do

arquiteto bolonhês Antonio Giuseppe Landi, que viveu em Belém no século

dezoito) [...] criou desde o traçado de ruas, praças, à arquitetura de residências,

22

No geral as fontes citadas neste comentário são minoritariamente “científicas”, como se pode notar. Metodologicamente

este recurso se justifica; há referências que, por carregarem as pré-noções e principalmente as intenções dos autores sobre os

fatos, lhes acrescentam elementos que, longe de “distorcê-los”, permitem sua análise (LE GOFF, 1994). Os documentos,

portanto, são produzidos em condições históricas e políticas específicas. Neste sentido, fontes de pesquisa que emitem

opiniões e juízos, como a imprensa, são particularmente úteis.

Page 90: Tese Cidade e Agua Jximenes

90

quartéis, armazéns etc - o projeto de Gerardo (sic) de Gronsfeld para as áreas

alagadas de Belém que transformariam a cidade numa “Nova Veneza” [...] (O

LIBERAL, 2003).

Sobre o próprio Gronsfeld, Coimbra (2003) cita que a não execução do projeto de

“veneziamento” pode ter sido devida ao alto custo da intervenção. Executou-se, portanto, a

drenagem, o aterramento e a cobertura da área alagável, o que talvez nos dias de hoje fosse

apontado como uma espécie de “solução convencional”. Por outro lado, a possibilidade de existir

em “Belém, a ‘Nova Veneza’” (COIMBRA, op. cit., p. 92), através da concepção do “[...] engenheiro-

militar que queria transformar Belém [...]” (Idem, op. cit., p. 93), evidentemente, como visto nos

exemplos transcritos, suscita imagens interessantes sobre uma espécie de construção alternativa

da cidade. Esta construção pensa a cidade de Belém-PA “recuada” no tempo histórico e a imagina

construída com uma paisagem que não é apenas avaliada como esteticamente mais interessante,

mas como apropriada aos tempos atuais, em termos sanitários e, inclusive, paisagísticos. A

questão do Piri, além da relevância histórica para entender a relação entre urbanização e presença

da água na paisagem de Belém-PA, seria uma referência primária desta relação. É, portanto,

acionada como um dado emblemático, como se fosse um momento em que a cidade poderia ter

sido definida já com a incorporação da água em sua paisagem23

.

23

“Paisagem” que é, conforme Cauquelin (2007), uma construção, onde há mecanismos de seleção sobre o que deve surgir

no plano pictórico, e sobre qual tipo de “natureza” consta, “de fato”, na “realidade” da paisagem; quais águas, qual vegetação,

atividade, pessoas.

Page 91: Tese Cidade e Agua Jximenes

91

Ilustração 8 Fac-símile de planta (Planta da Cidade do Pará, que atualmente é a cidade de Belém) do Major Gaspar João Geraldo Gronsfeld (1771). Notar a delimitação do Pântano do

Piri a leste da cidade; na figura, acima da ocupação de suas quadras. Fonte: Gronsfeld (1771).

Page 92: Tese Cidade e Agua Jximenes

92

Ilustração 9 Fac-símile da planta do Major Gaspar João Geraldo Gronsfeld (1780). O Alagadiço do Piri, divisor inicial do parcelamento da cidade, definia um canal de drenagem às

proximidades da atual Doca do Ver-O-Peso (próxima, portanto, do local de fundação do aglomerado urbano pioneiro) e outra na vizinhança do antigo Convento de São Boaventura,

atual Canal da Avenida Almirante Tamandaré, nos limites de seu Centro Histórico (BELÉM, 1994) instituído por lei municipal na década de 1990. Fonte: Gronsfeld (1780).

Page 93: Tese Cidade e Agua Jximenes

93

3.2. ASPECTOS DA FORMAÇÃO DO PORTO DE BELÉM

Outro elemento relevante do território de Belém-PA em relação às “águas” é o espaço de

atividades portuárias. A cidade de Belém-PA tem relação histórica, secular, com a navegação, com

as trocas comerciais e com as estratégias de defesa pelo litoral ou pelo estuário. Deste modo,

locais que podemos denominar genericamente por “portos” são relevantes para o entendimento da

formação da cidade e de uma questão da água no território urbano, a partir do caso amazônico.

Estes “portos”, todavia, nem sempre tiveram a estrutura física ou o controle administrativo

característicos dos portos contemporâneos, ou das estruturas portuárias que são conhecidas

desde a segunda metade do século XIX. Há, entretanto, atividade portuária secular em Belém-PA,

com articulações importantes com outros núcleos urbanos, povoamentos, aldeamentos e bases

militares da região, em complexas e variadas relações entre cidades (CORRÊA, 1987).

A respeito da formação de uma zona portuária na cidade, Penteado (1973) aponta que,

historicamente, a primeira estrutura (ou localização, já que não havia propriamente uma estrutura

física de porte) de uso portuário mais sistemático na cidade, após a colonização do território pelos

portugueses e a fundação da cidade de Belém, situava-se nas proximidades do atual Forte do

Presépio (ou Forte do Castelo), no seu primeiro bairro, o da Cidade (atual bairro da Cidade Velha).

Esta localização, na região mais central da cidade, fora, durante todos os séculos de sua

existência, ponto relevante para o mapeamento de seus fluxos econômicos. Pela situação do

assentamento inicial da cidade de Belém é possível deduzir as várias atribuições da cidade: base

militar, ponto de comando da colonização e identificação dos itens do território a ocupar, posto

administrativo, praça de comércio.

O porto, entretanto, não figurava historicamente entre os mais dinâmicos do país. Sobre a

movimentação portuária, Baena (2004) aponta que no século dezoito (um século depois da

instalação e uso portuários iniciais, portanto) havia poucos navios fazendo a rota Lisboa-Pará.

Seriam três embarcações ao todo nas primeiras décadas do século, e em 1733 houve

movimentação maior, de sete embarcações, enquanto algumas dezenas faziam rota semelhante,

ainda no final do século dezessete, entre a Bahia e Portugal (Idem, op. cit.) A disputa entre

militares e o clero pela região e sua estagnação econômica, relativamente a outros locais da

Colônia, assinalavam elementos curiosos da ocupação territorial na Amazônia e acerca do

aproveitamento econômico de seu ambiente, digamos.

A precariedade da estrutura física das áreas de tráfego de embarcações da cidade (de seu

Page 94: Tese Cidade e Agua Jximenes

94

porto, à época), entretanto, era contemporânea da intensa dinâmica de troca estabelecida entre

Belém, seu entorno e outras localidades, inclusive de fora do país, de acordo com dados de finais

do século XIX (PENTEADO, 1973). Não havia, entre os séculos dezessete e dezenove, porto

tecnicamente qualificado; houve uma série de estruturas físicas e uma faixa de terra de cerca de 4

Km que atendia a estas funções, entretanto. O tráfego mais reduzido de embarcações de maior

porte, portanto, era devido a esta carência infra-estrutural. Por outro lado, a movimentação

comercial do “porto” de Belém, ou de seus portos variados, era notória, e se fazia em diversos

pontos do território. Belém, seria, portanto, entre os séculos XVIII e XIX, uma cidade de claros

traços comerciais em suas margens fluviais, e representava a troca de produtos como o cacau, o

café, o algodão, o cravo, a copaíba, a goma e a tapioca, o urucu, o melaço, a castanha e as

madeiras (PENTEADO, op. cit.)

Nesta cidade comercial e portuária (embora “informalmente”, como convinha ao período

e ao contexto) a figura do “Regatão” era notável; espécie de mascate fluvial, que vendia a retalho,

no varejo, ou no atacado, produtos diversos, em um fluxo que abrigava os itens do extrativismo e

da caça e pesca na entrada do hinterland e, no retorno ao porto urbano, recebia itens

manufaturados ou industrializados, dependendo da época histórica. Como outras figuras

emblemáticas da movimentação portuária, o Regatão (nome dado tanto aos barcos quanto aos

próprios grupos de comerciantes, de certo modo) oscilava entre o maldito e o bem-visto, entre um

tom de marginalidade e a apreciação simpática do comerciante que traz a novidade ou os itens da

roça, da mata e do artesanato (PENTEADO, op. cit.) Lugar semelhante seria ocupado, muitos anos

mais tarde, pela curiosa, variada e inespecífica síntese do “ribeirinho”...

Penteado (1973) cita a embocadura do Piri, às margens da Baía do Guajará, praticamente

no limite com o Rio Guamá e com a atual Doca do Ver-O-Peso, como um primeiro porto comercial

e entreposto emblemático e pujante da cidade, em termos relativos. Aquela localização, pelo

menos desde a década de 40 do século dezoito, era entreposto de pescado e frutas, de produtos

manufaturados (PENTEADO, op. cit.), vendidos nas margens do rio e articulados a uma extensa e

capilarizada rede de produtores, comerciantes, transportadores. Outras docas existiam, embora

historicamente menos dinâmicas. Citada como ponto comercialmente relevante no século XIX, a

Doca do Reduto era uma delas. A Doca do Reduto era situada em ponto atualmente pertencente à

Page 95: Tese Cidade e Agua Jximenes

95

zona portuária de Belém, fora reformada em meados daquele mesmo século24

, para depois ser

fechada quando da construção do Porto de Belém já no começo dos anos 1900 (Idem, op. cit.)

Ilustração 10 A Doca do Reduto; em imagem famosa localmente, um dos pontos de entreposto de pescado, frutas e

outros artigos, situado em área central da cidade. Fonte: COSANPA (2009).

Em diversos aspectos é possível identificar relações entre o perfil da economia regional,

ou as atribuições funcionais de seus núcleos urbanos, e a sua localização espacial. A água,

materializada no caso do Rio Guamá, da Baía do Guajará e do complexo estuarino no qual Belém-

PA se encontra inserida, é um elemento definidor da paisagem e dos usos do território no local.

Deste modo, conforme a elaboração sobre o território litorâneo de Moraes (1999), haveria usos

condicionados e explicáveis pela presença da hidrografia (e do mar) na paisagem.

A formação da cidade reforça estes elementos. A estruturação do núcleo pioneiro de

povoamento do agente colonizador na área foi um terraço de 300 por 600 braças, cerca de 72

hectares25

, cercado por áreas alagadas, de cota relativamente mais alta do que o entorno, entre 5 e

10 metros acima do nível da água (PENTEADO, op. cit.) Dali a movimentação de trocas já começaria,

na década de 20 do século dezessete, embora de maneira ainda incipiente; Belém seria, no século

seguinte, uma praça de troca de especiarias (as chamadas “drogas do sertão”) e um entreposto de

24

Pontuando um aspecto da citada “precariedade” infra-estrutural do porto de Belém à época, Penteado (1973) cita

providências de reforma da Doca do Reduto em 1848, quando se deveria substituir seu revestimento em madeira por outro, em

pedra.

25

Para conversão de medidas do período colonial brasileiro usamos as referências de Costa (1994).

Page 96: Tese Cidade e Agua Jximenes

96

produtos diversos, como outros povoamentos do Brasil (SANTOS, 2001). Baena (2004),

pontuando aspectos descritivos da instalação do Estado português na região, comenta que a

articulação espacial da então Província do Pará não careceria de melhorias em estradas, canais e

rios navegáveis, segundo os padrões do século dezoito. Os rios da região seriam canais

adequados para o trânsito de mercadorias: “é [...] pelos rios que se exercita todo o trato mercantil

interior; canoas e barcos são os veículos que andam no meio das mercadorias” (BAENA, 2004, p.

169). Em sua avaliação, à época, a região teria condições fisiográficas adequadas ao trânsito de

mercadorias, por via fluvial, o que poderia “[...] constituir e entreter um comércio de magna

importância” (BAENA, op. cit., p. 169).

Este mesmo trânsito de mercadorias teria sido responsável pela formação de um

pequeno aglomerado de estabelecimentos comerciais, trapiches vizinhos e pela movimentação de

embarcações na faixa central da atual zona portuária de Belém, em seu centro urbano. Tomado

como relativamente desproporcional ao porte da cidade entre as décadas de 1810 e 1820, este

pequeno sub-centro especializado, entreposto portuário urbano, sugeria haver na cidade uma

dinâmica de passagem e troca que lhe imputava uma espécie de atendimento externo à pequena

população de Belém à época; parecia haver, a julgar por esta economia portuária, uma “população

transitória” (PENTEADO, 1973, p. 56) na cidade, trazida pelo porto e por seu entreposto.

Ainda no final do século XIX a cidade de Belém apresentava uma série de trapiches que

operavam o fluxo portuário de forma quase independente, individualizada, aproveitando a demanda

que a região apresentava (PENTEADO, 1973). O número significativo destas estruturas, e os

freqüentes pedidos de aforamento da terra para fins portuários no centro da cidade (bairros da

Campina e da Cidade, no núcleo pioneiro de Belém) apareciam em documentos históricos da

época como pontos de preocupação da Província, inclusive. Relatórios da década de 1860

pontuavam o receio acerca da “desordem no tráfego e economia do porto” (PENTEADO, op. cit., p.

58), decorrente da operação simultânea, individualizada e sem infra-estrutura técnica dos agentes

portuários e comerciantes de então. Os pedidos de aforamento, necessários inclusive para a

autorização de uso de Terrenos de Marinha26

, eram citados à época como indício de iminentes

dificuldades de regulação da atividade portuária na cidade (PENTEADO, op. cit.) Curiosamente, a

ocupação de pequenas frações de terra nas margens fluviais da cidade, por formas juridicamente

regulares ou não, em extensão significativa, tornou-se um problema mapeado, narrado e

26

A isto deve ser acrescida a natureza enfitêutica da terra na cidade, com estrutura fundiária original baseada em terras doadas

pelo instituto da sesmaria.

Page 97: Tese Cidade e Agua Jximenes

97

diagnosticado de forma semelhante um século depois, com outras intenções...

Na virada dos séculos XIX e XX a formação da estrutura portuária formal (e tecnicamente

moderna) do Porto de Belém assinala a definitiva formalização da atividade na cidade. Persistem,

na margem, entretanto, as informalidades diversas; nos numerosos portos privados, nas pequenas

e médias estruturas de atracação, carga e descarga destes portos, na definição de um autêntico

“zoneamento espontâneo” do fluxo de mercadorias pela via fluvial nas margens da cidade. O

pescado e as frutas desembarcam em determinados locais, as mercadorias manufaturadas e

ligeiramente beneficiadas destinadas à construção civil noutros, os animais, artefatos e uma série

de itens em outros locais ainda, compondo uma variada quantidade de produtos segmentados

espacialmente em pontos de troca e movimentação da cidade. A construção, formalizada e

racionalizada, do Porto de Belém, cujo funcionamento oficial e operacional data do ano de 1909

(PENTEADO, 1973), guarda relação forte com a economia do látex, e o então alto preço da borracha

amazônica no mercado internacional, o que impulsionou a construção do Porto, financiando-o.

Quando Penteado (op. cit.) cita que “continuava a existir o litoral irregular, junto à baía [...] onde

muitos eram os trapiches de madeira, servindo às companhias de navegação, que operavam em

Belém [...]” (PENTEADO, 1973, p. 57), é possível fazer a conexão com o fato de que “[...] as

exportações de borracha alcançaram um volume antes nunca visto [...]” (Idem, op. cit., p. 57).

Falava-se, à época, na necessidade de adaptação das precárias rampas de pedra do cais da

cidade, e da deficiência de seus armazéns; daí a contratação do localmente famoso estudo e do

projeto do engenheiro Sabóia e Silva para o Porto de Belém, ainda em 1897 (Idem, op. cit.). A

necessidade da nova economia de exportação induzia à instalação da estrutura técnica moderna e

à mudança do regime de apropriação territorial das águas da cidade.

Page 98: Tese Cidade e Agua Jximenes

98

Gráfico 1 Movimentação do Porto de Belém, por número de embarcações (1840-1880), atesta a acentuação do fluxo

na segunda metade do século com a borracha, com crescimento de 274,4%. Fonte: Penteado (1973).

Gráfico 2 Tonelagem do Porto de Belém (1840-1880) aponta incremento de 2.193,9% na movimentação. Fonte:

Penteado (1973).

Em análise, sob outro ponto de vista, feita a partir dos mesmos dados da movimentação

portuária, Castro e Santos (2006) apontam a relação entre a expressiva importação de carvão

mineral da Inglaterra e as motivações de operação e modernização (no começo do século vinte) do

Porto de Belém. Além da economia gomífera, portanto, haveria esta motivação, também de ordem

econômica, pois o insumo importado representaria expressiva quantidade de movimentação de

carga no Porto de Belém (CASTRO; SANTOS, op. cit.) A situação periférica da região, deste modo,

associada ao típico padrão de implantação de infra-estruturas em regime de atuação dos capitais

privados estrangeiros no país, se reflete no caso.

Movimento do Porto de Belém (1840-1880): nº de embarcações

0

50

100

150

200

250

300

350

1840 1850 1860 1870 1880

Anos

Nº de embarcações

Movimento do Porto de Belém (1840-1880): tonelagem

-

50.000,00

100.000,00

150.000,00

200.000,00

250.000,00

300.000,00

1840 1850 1860 1870 1880

Anos

Ton.

Tonelagem

Page 99: Tese Cidade e Agua Jximenes

99

3.3. OUTROS PORTOS DA CIDADE

Por outro lado, a troca econômica é presente na estruturação territorial da cidade e em

sua relação com a rede hidrográfica desde as origens de Belém-PA. É estabelecida, inclusive, uma

sazonalidade (BENCHIMOL, 1995) entre o regime de marés, a possibilidade de fluxos e os tempos da

vida na região, da ocupação e formação do território, do aproveitamento econômico. Há um tempo

regional, dado sobretudo por populações rurais e ribeirinhas, e que pode ser visto nas transações

comerciais, na circulação de mercadorias e pessoas (BENCHIMOL, op. cit.) e na localização de

pontos de troca (feiras, mercados, entrepostos em geral) em relação a núcleos urbanos ou

vilarejos. Esta sazonalidade e este tempo, específicos e regionais, ajudam no entendimento das

dinâmicas existentes nas margens fluviais da cidade de Belém-PA.

O uso portuário na cidade esteve presente, portanto, desde a sua formação. A dinâmica

de troca estabelecida pela possibilidade de navegação, pelo condicionante da implantação de

núcleo de defesa e pela formação de uma rede urbana de alcance regional atesta o fato. Isto

também ajuda no entendimento da formação de diversos pontos de circulação de mercadorias e

pessoas no território de Belém-PA. A cidade é permeada por estes locais, genericamente

chamados de “portos”, em que as escalas, os padrões, os tipos e, sobretudo, as estruturas

técnicas e perfis de operação diferem significativamente. Da mesma forma, na escala regional

ocorrem diversos fenômenos de troca e circulação a partir dos portos urbanos:

Trata-se de um continuum de aglomerações urbanas — cidades ribeirinhas —,

na maior parte de pequeno porte, mas que são importantes pelas intensas redes

de trocas econômicas, culturais e sociais que se reproduzem no tempo e se

espalham [...] através do emaranhado de cursos de água que conformam essas

bacias hidrográficas organizadas a partir da referência principal que é o Rio

Amazonas (NAEA/UFPA, 2005, p. 37. Grifo dos autores.)

A dinâmica portuária existente na cidade a caracteriza como praça comercial, sobretudo

em sua interface com os cursos d´água que cercam parte de seu território. A cidade comercial,

pontuada por diversos estabelecimentos e entrepostos, é uma forma da cidade de Belém que

atravessa vários períodos, e persiste, em paralelo a mudanças estruturais em outros setores da

economia e outras formas de ocupação territorial. A cidade de Belém-PA, em sua atividade

econômica comercial, de troca, situada às margens dos rios de seu território, teve diversas formas

de aproveitamento neste sentido.

Em Belém, em registros históricos, já havia uma densidade razoável de itens

comercializados nas margens fluviais. A possível geografia destes itens, a partir de suas

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100

procedências, seria uma referência interessante de como reconstruir a espacialidade e o

alcance destas redes de troca. Na extensão da planície de inundação de bairros periféricos de

Belém havia, nos anos 1940, o transporte em quantidade de bovinos vivos, em um fluxo

relacionado ao arquipélago do Marajó, por exemplo (PENTEADO, 1973). Havia, ainda, uma economia

com desdobramentos e serviços associados em seu entorno; abatedouros, trapiches, rampas

adaptadas, construídos a partir de tecnologia regional e das necessidades desta peculiar logística

da movimentação a jusante e a montante do rio.

Os entrepostos de pescado e frutas, por outro lado, situados nas proximidades de

embocaduras de rios da cidade, constituem feiras urbanas, e criaram centralidades de bairro e um

desenho espacial de articulação entre regiões do Estado do Pará e pontos do território da cidade de

Belém-PA, bem como de ligação entre a cidade e os migrantes das respectivas regiões de

procedência dos produtos. No bairro do Jurunas, situado na Bacia Hidrográfica da Estrada Nova,

numa região ao sul da cidade, os diversos pontos comerciais à beira do rio consolidaram, há

décadas, uma economia de portos de passageiros, carga e formação de entrepostos. Tais portos,

adaptados às condições locais e à sua situação de relativa informalidade, constituem uma

territorialidade variada na cidade, transportando migrantes interioranos rumo a seus locais de

origem e trazendo novos contingentes de pessoas. As localizações dos portos de passageiros

estabelecem uma espécie de zoneamento também informal, estruturado em função de

oportunidades de ocupação de terras, de formação de “colônias” regionais em bairros da cidade

(PENTEADO, 1968), e que também exibe a estratificação por renda da população, a partir dos

diferenciais locacionais dos seus pontos.

Do mesmo modo, há uma relação entre itens comercializados, localização espacial e

procedência regional no Estado. A segmentação, neste sentido, apresenta-se como um processo

curioso de especialização, onde o comércio de alimentos ou artigos manufaturados é feito de

forma, digamos, étnica. Há, portanto, a relação entre a origem de certos produtos comercializados

nas margens fluviais da cidade e uma geografia estabelecida ao longo do tempo nesta troca, o que

estrutura divisões específicas de ocupação territorial, no interior dos entrepostos e na escala

urbana mais ampliada. É criada uma setorização informal, ligando produtos às diversas “colônias”

de migrantes do interior do Estado, e também levando-os e trazendo-os pela via fluvial através de

portos privados. Este mapeamento de usos e serviços é reconhecido pelos locais, inclusive, o que

reproduz esta espécie de setorização comercial ribeirinha, e se coloca como chave do

entendimento dos vários universos de itens componentes das dietas, dos hábitos, dos saberes,

Page 101: Tese Cidade e Agua Jximenes

101

das técnicas e das habilidades praticadas nestas regiões. As suas especificidades, no caso,

parecem evidenciar a variedade interna das regiões do Estado, e permitem, por fim, identificar

justamente a extensão da rede de trocas, e da produção do território expandido dos fluxos na

hidrografia regional.

Certa diversidade de estruturas portuárias em locais do centro de Belém e imediações

atestam variedade de padrões, tipos e atividades de uso da água na cidade. No caso de Belém,

estas estruturas se concentram na Bacia da Estrada Nova, por exemplo, na extensão territorial ao

sul da cidade de Belém-PA, e no centro da cidade, nas Bacias do canal da Avenida Almirante

Tamandaré e Magalhães Barata (bairros da Cidade Velha e Campina), além da Bacia do Reduto.

Nesta porção urbanizada convivem a estrutura portuária formal (o Porto de Belém, instalado na

zona central da cidade e atualmente administrado pela Companhia Docas do Pará, CDP, ligada ao

Ministério dos Transportes) e numerosos empreendimentos portuários de passageiros, carga e

comércio a eles relacionado.

No caso da Bacia da Estrada Nova27

, a variedade de portos (informais, o que é relevante

para este trabalho) ilustra as formas de uso do rio na cidade. Muitos destes estabelecimentos

portuários operam com sua própria estrutura de atracação, carga e descarga; são trapiches,

rampas, diques e píeres quase individualizados, usados por cada unidade em operação. Este fator

é uma espécie de chave para o entendimento da ocupação fundiária desta porção da cidade e, ao

mesmo tempo, para entender os argumentos contemporâneos de sua remoção. A ocupação dos

terrenos, nos bairros do Jurunas, da Condor e do Guamá (que compõem parcialmente a bacia), foi

estruturada sobre a posse, e sobre pedidos de aforamento sucessivos, feitos há tempos junto à

municipalidade, conforme atesta o estudo de Antonio Rocha Penteado (1973). A estrutura fundiária

resultante, como pode ser visto na cartografia recente da área, tem configuração tipicamente

recortada, e parcelada em lotes de dimensões mais largas para o aproveitamento de portos locais,

e com morfologia mais delgada no caso de ocupação residencial ou estritamente comercial. Em

certo sentido, esta morfologia atesta um processo contínuo de parcelamento e re-parcelamento

dos terrenos do local, onde antigos equipamentos e usos industriais, manufatureiros e até mesmo

rurais são sucedidos por usos residenciais e pelas novas formas de aproveitamento da economia

27

Nome popular da Avenida Bernardo Sayão, Estrada Nova designa a estrutura de engenharia de contenção de águas e

instalação de comportas articuladas ao regime de marés e à contribuição de drenagem da bacia. Esta estrutura, datada da

década de 1940, destinava-se ao combate à malária na cidade, particularmente acentuada no período da Segunda Guerra

Mundial — ver, para tal, Rodrigues (2008) e Ponte, M. X. (2003).

Page 102: Tese Cidade e Agua Jximenes

102

urbana no local. Antigas vacarias, locais da distribuição e produção leiteira na cidade,

instaladas no local, implantadas em terrenos de dimensões maiores do que as dos lotes urbanos

atuais, conviviam com outras atividades produtivas como curtumes e pequenas fábricas, por

exemplo. Empreendimentos comerciais e atividades de transporte de passageiros e carga ficam

situadas, atualmente, nas margens do Rio Guamá ou em suas proximidades; demais atividades

comerciais e a destinação residencial dada aos lotes urbanos, em geral, ocupam parcelas

interiores. A exceção a esta divisão é dada justamente pelas palafitas e pelas vilas no local;

instaladas na vizinhança de estâncias ou dos portos locais, estes espaços de moradia precária,

sob os parâmetros técnicos vigentes, subsistem como soluções baseadas na construção

tradicional de populações rurais-ribeirinhas, associadas a estratégias de intensificação na

ocupação do solo e nas relações de proximidade e parentesco. A movimentação em torno da

apropriação de terras (inclusive pela via do mercado do solo urbano na cidade) já aparece

documentada em anúncios de jornal, oferecendo terrenos no bairro do Jurunas, componente da

bacia, no século dezenove, conforme o estudo de Carmen Izabel Rodrigues (2008). A precariedade

do local, sobretudo em termos sanitários, já preocupava autoridades municipais na viradas dos

séculos dezenove e vinte, e já caracterizava a área como periférica então (RODRIGUES, 2008).

Ilustração 11 Uma "vila" situada na Bacia da Estrada Nova, bairro do Jurunas, periferia próxima de Belém-PA;

assentamento sobre palafitas, adensamento significativo, pobreza e estratégias de sobrevivência diversas. Foto:

Cláudia Ribeiro (nov. 2008).

Page 103: Tese Cidade e Agua Jximenes

103

Ilustração 12 Série de casas sobre o canal da Avenida Bernardo Sayão, na Bacia da Estrada Nova, em área de periferia

próxima da cidade de Belém-PA; moradia precária em local próximo ao rio. Foto do autor (jan. 2008).

Sobre as relações que se podem produzir na interface entre o território urbano e os

cursos d´água, a antropóloga pontua questões importantes:

[...] Belém possui uma estrutura formidável de portos28

, empresas e empresas-

portos, estatais e privados, que tiveram uma importância crucial na dinâmica

econômico-espacial da cidade e na vida de muitos moradores, especialmente na

vida dos migrantes que foram se fixando próximo a essas áreas durante o

processo de urbanização da cidade, no século XX, quando a cidade cresceu

expressivamente pela migração.

Quem chega a Belém pela via rodoviária não vê a cidade ribeirinha e quem mora

em Belém e nunca visitou a orla, não faz idéia do mundo que aí pulsa em

movimento constante, dorme e acorda, num vaivém ininterrupto de canoas e

barcos, nos diversos portos em atividade (RODRIGUES, 2008, p. 78. Grifos da

autora).

Neste aspecto, a ocupação sucessiva de lotes vizinhos nas margens do Rio Guamá,

principalmente, instalou toda uma economia portuária, fixada e operante naquele local há décadas.

Este processo criou uma forma de ocupação onde empreendimentos diversos e edificações de uso

28

Segundo a mesma autora, seriam mais de quarenta os portos situados nas margens do Rio Guamá em Belém. Destes,

metade estaria concentrada no bairro do Jurunas (RODRIGUES, 2008).

Page 104: Tese Cidade e Agua Jximenes

104

residencial coexistem espacialmente, e onde a informalidade, a improvisação, as estratégias de

sobrevivência e a ocupação privada dos espaços tidos como públicos pela legislação são a tônica.

Deste modo, pequenos portos de passageiros são vizinhos das antigas vilas locais; espécie de

aglomerado de palafitas assente sobre estacas de madeira, em terrenos alagáveis sobre as

margens do rio, com casas freqüentemente construídas em lotes de 5 m x 5 m (ver Ilustração 11).

Nestes mesmos locais, pequenas lojas de material de construção têm relação comercial

com as chamadas estâncias. As estâncias são, no linguajar local, entrepostos de materiais de

construção oriundos das ilhas do município de Belém e arredores (como pólos oleiro-cerâmicos

próximos ao município ou sítios de extração de madeira-de-lei), que comercializam principalmente

madeira aparelhada e ligeiramente beneficiada, tijolos e telhas cerâmicos. Nas estâncias, a

descarga de material oriundo de ilhas de Belém e interior do Estado do Pará possibilita a existência

de uma economia de densidade razoável para os padrões locais, e que estabelece uma rede de

circulação de mercadorias (sobretudo da madeira) que extrapola a fronteira estadual. A dinâmica

econômica regional, estabelecida a partir destes empreendimentos e destas formas de uso e

ocupação do território, revela-se importante para a formação de uma atividade à beira da água na

cidade de Belém, o que nos faz pensar acerca de sua multiplicidade.

A economia dos portos de Belém é, portanto, extensa, pelo menos em termos relativos.

Silva, Barbosa e Trindade Júnior (2005), em exaustivo levantamento de campo, apuram 473

unidades de uso do solo ou aglomerados de usos nas margens fluviais da porção continental do

município de Belém. Estas unidades, mapeadas individualmente e não pela extensão que ocupam

territorialmente, representariam um universo com predominância do setor terciário da economia.

Cerca de 35% das unidades situadas nas margens fluviais da cidade de Belém-PA seriam de uso

comercial, e cerca de 21% corresponderiam ao uso de serviços em geral (SILVA; BARBOSA; TRINDADE

JÚNIOR, 2005). O perfil terciário das margens de rio em Belém-PA, de sua chamada “orla”, seria

caracterizado, em maioria, pelos prestadores de serviço e comerciantes cuja atividade está

relacionada à navegação, ao fluxo de mercadorias e passageiros pelo rio e pela baía e à

apropriação privada de parcelas deste espaço (SILVA; BARBOSA; TRINDADE JÚNIOR, op. cit.)

Por outro lado, as margens fluviais da porção continental, mais urbanizada, do município,

também apresentam exemplos de empreendimentos econômicos em estado de falência, além de

terrenos e imóveis em geral fechados e sub-utilizados (Idem, op. cit.) Este aspecto atesta, ao

mesmo tempo, a existência de processos de transformação de usos e padrões econômicos de

apropriação dos diferenciais locacionais das margens urbanas de rio de Belém-PA e também

Page 105: Tese Cidade e Agua Jximenes

105

comprova, de certo modo, seu caráter de ativo econômico, e de certa reserva, aguardando

valorização.

Ilustração 13 Mapa de zonas das margens fluviais da porção continental de Belém-PA, a propósito de um plano de

estruturação elaborado em 2000, mostra perfis diferenciados da “orla” da cidade. Em amarelo, área de bacia

hidrográfica densa e pobre, ocupada por atividades econômicas de entrepostos e comércio (a da “Estrada Nova”); em

verde, a zona portuária oficial. Fonte: Belém (2000).

Este elemento pode parecer paradoxal, mas não o é. Se pensarmos nas variadas escalas

dos empreendimentos existentes nestes espaços, muitos deles de pequeno porte, com

informalidade jurídica e posse precária da terra, é possível conceber que haja nas margens fluviais

urbanas de Belém-PA uma substituição de atividades predominantes, inclusive pela mudança nas

rentabilidades dos usos do solo. Por outro lado, a recente valorização da periferia próxima da

cidade, sobretudo de partes do território da Bacia Hidrográfica da Estrada Nova, recoloca a questão

dos valores imobiliários e sua dinâmica como ponto importante para explicar a localização das

Page 106: Tese Cidade e Agua Jximenes

106

atividades recentes no território da cidade. Isto comporia uma demonstração parcial do

interesse em certa retenção especulativa do parque imobiliário desta porção da cidade, em vista

dos novos investimentos vinculados às variadas idéias de intervenção na “orla” de Belém-PA.

Quanto a uma macro-setorização e sua relação com usos do solo predominantemente

praticados nas margens fluviais urbanas de Belém-PA, os autores apontam certa heterogeneidade

de uso e padrões. Esta setorização é composta pelas zonas central, oeste, norte e sul (Idem,

ibidem), a que corresponderiam usos predominantes e padrões sócio-econômicos diferenciados,

segundo a classificação proposta por Silva; Barbosa e Trindade Júnior (2005).

Qualificada pelos autores como “degradada” (idem, ibidem, p. 69) a porção urbanizada

das margens fluviais de Belém-PA por eles chamada de zona central seria composta por estruturas

urbanas de interesse histórico-cultural, combinadas a estabelecimentos comerciais e a usos de

porte (SILVA; BARBOSA; TRINDADE JÚNIOR, 2005). Esta zona apresentaria “forte apropriação privada”

(SILVA; BARBOSA; TRINDADE JÚNIOR, op. cit., p. 70), através da presença de empresas do setor de

navegação, ou ligadas à exportação de matérias-primas e bens ligeiramente beneficiados. Nesta

classificação, a zona norte representaria o movimento de desconcentração funcional de algumas

atividades empresariais do centro da cidade, situadas nas proximidades do rio e da baía. A zona

norte, neste sentido, representaria uma região da cidade com perfil de uso do solo mais

relacionado a “[...] alta proporção de agentes proprietários dos meios de produção e serviços [...]”

(SILVA; BARBOSA; TRINDADE JÚNIOR, op. cit., p. 71). A região de margens da Baía do Guajará é

caracterizada pelos autores como zona oeste, com perfil semelhante, no geral; a diferenciação está

na maior concentração de empreendimentos industriais, e no sítio físico baseado sobre as

chamadas terras firmes locais, área de cotas altimétricas maiores do que as áreas baixas

alagáveis, de planícies de inundação. Na área chamada de zona sul, entretanto, o perfil é mais

próximo dos pequenos prestadores de serviço, com grau mais alto de informalidade econômica e

com presença relativamente maior dos chamados estratos do circuito inferior da economia, na

acepção de Milton Santos (Idem, op. cit.) Esta área é formada por terras de cotas mais baixas,

oriundas de planícies de inundação locais, e apresenta numerosos assentamentos de baixa renda.

Os “portos”, entretanto, têm apreciações múltiplas na cidade. Situados no centro antigo

(como no bairro da Cidade Velha, o primeiro da cidade), na periferia próxima (no caso daqueles,

numerosos, nos bairros do Jurunas, Condor e Guamá, na Bacia da Estrada Nova) ou em distritos

municipais (como Icoaraci) de Belém (e, obviamente, em localidades vizinhas), suas funções são

diversas, bem como as populações usuárias. Variam, também, os tipos de “operadores”

Page 107: Tese Cidade e Agua Jximenes

107

portuários, oscilando entre pequenos e médios empresários locais, oriundos do interior do

Estado, a grupos econômicos mais influentes. Os diversos estabelecimentos de uso portuário das

margens fluviais de Belém-PA e entorno são, entretanto, empreendimentos econômicos e

expressões do que genericamente se chama na cidade de “atividades ribeirinhas”. Sendo

economias e, ao mesmo tempo, formas de uso e apropriação do território, estes portos têm

recebido qualificações variadas na imprensa, nos discursos de dirigentes públicos e nas falas de

técnicos do planejamento local. Estas qualificações variam, principalmente, em torno do direito e

do acesso ao rio e, em paralelo, em torno de algumas versões da própria idéia de “ribeirinho”.

3.4. O RIBEIRINHO

Um começo possível desta análise seria a apreciação do texto do Plano Diretor Urbano do

município de Belém de 1993. Anterior à lei municipal atualmente vigente, o PDU de 1993 continha

artigos e incisos em número razoável versando sobre as diretrizes de reapropriação dos espaços

urbanos de “orla” fluvial da cidade. Tais pontos destinam, em geral, o espaço das margens fluviais

da cidade para fins de instalação de usos considerados socialmente mais interessantes, pela

administração à época e dentro do debate então em voga no setor de planejamento local:

Da Produção e da Organização do Espaço Urbano

Seção I

Dos Objetivos e Diretrizes

[...]

VI - resgatar e valorizar a fisionomia e a visualização dos elementos peculiares à

cidade de Belém, como o rio, a baía, os igarapés, as mangueiras e a paisagem

construída, especialmente os elementos representativos do patrimônio histórico-

cultural;

VII - especial ênfase será dada à recuperação da capacidade de ver e utilizar a

orla do rio Guamá e da baía do Guajará pelo cidadão, resgatando,

simbolicamente, as origens ribeirinhas de Belém (BELÉM, 1993, Art. 143, p. 25.

Grifos do autor).

[...]

III - resgatar áreas da orla fluvial de Belém para uso coletivo, com a criação e

ampliação de “janelas” para o rio Guamá e para baía do Guajará [...] (BELÉM,

1993, Art. 144, p. 25).

[...]

O uso industrial existente ao longo da orla da baía de Guajará e do rio Guamá,

nos limites da 1º légua patrimonial, deverá ser desestimulado e, através de

operações urbanas, transferidas (sic) para locais mais adequados (BELÉM, 1993,

Art. 150, § 2º, p. 27).

[...]

Item V

Dos Espaços Territoriais Especialmente Protegidos [...]

O Poder Público tem o prazo máximo de 2 (dois) anos para resgatar o espaço

Page 108: Tese Cidade e Agua Jximenes

108

das ruas na orla que estão ocupadas indevidamente visando a abertura de

“janelas” para as águas (BELÉM, 1993, Art. 262, p. 50).

Deve o Poder Público solicitar à União (Serviço de Patrimônio da União — SPU e

Ministério da Marinha) o gerenciamento de suas terras localizadas na orla da

baía do Guajará, rio Guamá, canais, manguezais e igarapés, visando evitar a

ocupação indevida de uso que prejudiquem a qualidade ambiental do território

municipal (BELÉM, 1993, Art. 263, p. 50).

Como pode ser visto, o tema já tinha ressonância na esfera administrativa na década de

1990. O Plano Diretor Urbano do Município de Belém, entretanto, teve sua revisão finalizada e

promulgada em lei no ano de 2008. Em um processo atravessado por críticas de falta de

participação social efetiva, e com certa influência de setores empresariais locais e mesmo de

outros estados do Brasil (no caso de empresas do ramo imobiliário), o texto do novo Plano Diretor

flexibiliza alguns índices e modelos de ocupação, sintetiza figuras do zoneamento anterior e

estabelece outro regime para as margens fluviais do município, embora fundamentalmente

baseado nos mesmos pontos. O termo e a idéia genérica da “orla” de Belém perpassam diversos

artigos, parágrafos e incisos do Plano Diretor atualmente vigente no município, com conteúdo

nitidamente mais influenciado pelo debate ambiental (ou por uma abordagem mais convencional

deste debate) e, ao mesmo tempo, pela urgência de adoção do modelo de operações urbanas em

geral:

São diretrizes da Política de Desenvolvimento Econômico do Município:

[...]

requalificar as áreas de orlas do Município de Belém, estabelecendo as

atividades sócioeconômicas (sic) e os usos compatíveis com o desenvolvimento

humano e a preservação do meio ambiente [...] (BELÉM, 2008, Art. 8, inc. XVIII,

p. 7).

[...]

Subseção III

Da Rede Hídrica e dos Corredores de Integração Ecológica

[...]

Art. 65. Ao longo da rede hídrica que compõe o Município ficam instituídos

Corredores de Integração Ecológica, que têm como objetivos:

[...]

I - propiciar e estimular transformações urbanas estruturais visando um

processo de desenvolvimento sustentável;

[...]

III - melhorar a qualidade ambiental do Município de Belém, por meio da criação

e implantação dos Corredores de Integração Ecológica, como Parques Lineares,

integrados ao Sistema Municipal de Áreas Verdes;

IV - estimular a preservação das áreas de preservação permanente, das matas

ciliares do Município de Belém e a recuperação de áreas ambientalmente

degradadas junto aos cursos d’água;

[...]

VI - ampliar os espaços de lazer ativo e contemplativo, criando progressivamente

Page 109: Tese Cidade e Agua Jximenes

109

Parques Lineares ao longo dos cursos d’água não urbanizados, de modo a

atrair empreendimentos de baixo impacto ambiental para a vizinhança de entorno

(BELÉM, 2008, Art. 65, p. 37-38. Grifos do autor).

[...]

Art. 66 Para a efetiva implementação dos programas de Corredores de

Integração Ecológica, deve ser prevista uma faixa de domínio ao longo dos

cursos d’água, determinando larguras mínimas e máximas, conforme as

situações abaixo:

I - cursos d’água com presença de vegetação ainda preservada:

[...]

b) após a faixa delimitada na alínea “a”, considera-se uma faixa non aedificandi

de setenta metros permitindo-se apenas o uso de áreas verdes provenientes de

empreendimentos urbanísticos, públicos ou privados, objeto de parcelamento do

solo para a implantação de Parques Lineares.

II - orla continental, orla urbanizada das ilhas e cursos d’água com presença de

vegetação já modificada por ação antrópica, ou em processo de degradação:

[...]

b) após a faixa delimitada na alínea “a”, considera-se área destinada à

implementação de empreendimentos residenciais e não-residenciais de baixo

impacto ambiental, a serem executados pela iniciativa privada ou pelo Poder

Público (BELÉM, 2008, Art. 66, p.38-39).

[...]

Art. 75 São diretrizes do ordenamento territorial do Município de Belém:

[...]

VIII - ordenar a ocupação verticalizada nas orlas fluviais e nas áreas de baixadas

(BELÉM, 2008, Art. 75, p. 42).

[...]

São diretrizes da Macrozona do Ambiente Urbano (MZAU):

[...]

II - resgatar áreas da orla fluvial, das praias e margens dos cursos d’água,

objetivando a proteção e preservação do meio ambiente (BELÉM, 2008, Art. 81,

p. 45).

[...]

São diretrizes da ZAU 3 - Setor I29

:

[...]

V - requalificar a orla degradada (BELÉM, 2008, Art. 90, p. 50).

[...]

§2°. São diretrizes da ZAU 4:

[...]

VII - investir na manutenção e dotação de espaços públicos de uso coletivo,

especialmente o Parque Guajará, a área da Marinha, e a orla do rio Maguari e da

baía do Guajará (BELÉM, 2008, Art.91, § 2º, p. 51-52).

[...]

§ 7º. A ZAU 7 – Setor III, é uma zona de orla fluvial, caracteriza-se pela presença

de ocupação desordenada, habitações e infra-estrutura precárias, presença de

atividades portuárias privadas tradicionais, degradação ambiental, risco social e

presença de edificações históricas.

29

No zoneamento do atual Plano Diretor, de 2008, a macrozona do ambiente urbano (MZAU) corresponde a parte da área mais

central da cidade, e o vetor de expansão a Norte, incluindo o distrito de Icoaraci, que por sua vez corresponde, em linhas

gerais, a esta Zona 3, citada neste trecho do Plano.

Page 110: Tese Cidade e Agua Jximenes

110

[...]

V - eliminar a situação de risco das áreas de ocupação precária (BELÉM, 2008,

Art. 94, p. 58).

[...]

§1º. As orlas urbanizadas do Município ficam definidas como zonas de interesse

para fins de recuperação urbanística, paisagística e do patrimônio arquitetônico,

identificadas no ANEXO VI como Setor A (BELÉM, 2008, Art. 111, p. 71).

[...]

Art. 119. A Zona Especial de Promoção Econômica 1 (ZEPE 1) são áreas

qualificadas tradicionalmente como atividades industriais [...]

Art. 120. A ZEPE 1 - Setor I caracteriza-se por atividades industriais de pequeno

e médio porte, com potencial de impacto ambiental significativo e por

empreendimentos de impacto urbano, correspondendo à área entre a baía do

Guajará e a Rodovia Arthur Bernardes.

[...]

V - estimular, progressivamente, usos que viabilizem a recuperação urbanística e

paisagística da orla (BELÉM, 2008, Art. 120, p. 75).

[...]

I - requalificar as áreas de orla (BELÉM, 2008, Art. 131, p. 80).

Nota-se, nos trechos transcritos, a diferenciação entre áreas da cidade. Obviamente,

sendo a cidade heterogênea, qualquer legislação da política urbana (sendo, essencialmente,

espacial) há de criar as referências capazes de qualificar seus diferentes espaços. A questão, aqui,

é de hierarquia e de atribuição de valor. Nota-se, no conteúdo do macrozoneamento proposto, a

correspondência entre áreas históricas e o modelo da revitalização (ou da reabilitação, ou

requalificação, enfim, dependendo da matriz). Em áreas qualificadas como degradadas, é

freqüente a sugestão de tratamento das áreas de risco30

e, em paralelo, as diretrizes de

recuperação ambiental articuladas a remoções e reurbanizações em geral. Levando em

consideração a realidade sócio-econômica e a dinâmica físico-territorial de Belém-PA, podemos

falar em pelo menos dois grandes marcos de intervenção na cidade pensados a partir da lei do

Plano.

Por um lado, de certo modo, tais diretrizes equivalem à adoção do amplo modelo de

renovação urbana contemporânea, baseado nos cânones do planejamento estratégico para áreas

consolidadas e de interesse histórico. Na outra frente, parece ser concebida uma forma de

intervenção onde a associação entre degradação físico-ambiental (ou, especificamente, sanitária e

hidrológica) e pobreza urbana legitima e justifica intervenções de recolocação de prioridades no

30

O tema do risco ambiental urbano é abordado de forma incipiente pela administração municipal à época de elaboração deste

trabalho. No escopo do projeto Portal da Amazônia o assunto chega a ser mencionado, mas não há tantas referências ao debate

técnico, já vasto, da área. Em avaliação preliminar, nota-se que a questão é tratada de modo estritamente técnico,

“engenheiresco”, onde as concepções seriam tidas como dadas e, até certo modo, decorrentes de critérios fisiográficos (isto

é, onde há cota altimétrica baixa há terra alagável e, portanto, “de risco.”) Sobre o tema; Valencio et alli (2006).

Page 111: Tese Cidade e Agua Jximenes

111

investimento em infra-estrutura urbana, com a criação de corolários do parque linear e com

incentivo a diversos empreendimentos imobiliários privados de médio e alto padrão. No momento

atual, a administração municipal encontra-se envolvida em debate em torno da associação com

empresas do ramo de incorporação e empreendimentos imobiliários no município, em ações

praticamente contemporâneas à própria revisão e atualização de índices urbanísticos do Plano

Diretor de Belém. Este momento inclui, ainda, alguns processos contra a administração municipal

movidos por órgãos públicos como o Ministério Público Federal e o Ministério Público Estadual.

Pode ser notada alguma mudança no conteúdo do Plano Diretor Urbano de Belém, entre

as versões de 1993 e 2008, portanto. Nos temas que interessam mais diretamente a este estudo, é

possível falar em frentes da política urbana em que esta mudança se percebe de forma mais clara:

urbanizações de beira de rio; saneamento ambiental; economia e recursos hídricos.

A idéia pioneira das chamadas “janelas para rio” é ligeiramente modificada em sua

relevância para a legitimação e a justificativa conceitual para as intervenções nas margens fluviais

urbanizadas (ou na “orla”) da cidade. “Janelas para o rio” foi, segundo uma fonte desta pesquisa,

uma expressão cunhada no final da década de 1970, e que circulou amplamente no princípio dos

anos 1980, entre a intelectualidade e a classe artística local. Os autores da idéia teriam sido um

artista gráfico, um artista plástico e um arquiteto, todos locais, envolvidos no processo de

redemocratização e na administração pública municipal de meados dos anos 1980. Um dos

autores, digamos, era inclusive envolvido com a produção de conteúdo publicitário, daí talvez o

notável apelo do termo entre a classe política e os bem-pensantes da cidade de então. As

“janelas”, obviamente, seriam as formas através das quais se poderia observar, contemplar e,

efetivamente, usar o rio (ou a baía). A idéia de criação de “janelas para o rio”, de caráter público,

era então discutida a partir da constatação de certa ocupação periférica, precária e da beleza

paisagística das margens fluviais da cidade, que estaria sendo vedada a seus demais habitantes. A

expressão “janelas para o rio”, portanto, tornou-se algo entre o mote publicitário, o nome de um

provável programa de reurbanização de beira-rio ou, alternativamente, a síntese de um poderoso

senso comum que viria a, anos depois, redundar numa série de intervenções territoriais de

significativas modificações na cidade.

Este aspecto cultural é interessante também por ter sido engendrado dentro de grupos da

elite intelectual local. A apreciação visual destes artistas (pintores e fotógrafos, basicamente) a

respeito do universo pictórico e das referências plásticas do ambiente “ribeirinho” denotam

curiosidade e simpatia, afinidade estética, com os grafismos e geometrismos de suas casas (ver

Page 112: Tese Cidade e Agua Jximenes

112

Ilustração 14; Ilustração 15), dos motivos quase canônicos das pinturas de seus barcos, dos

painéis treliçados em madeira dos muxarabis e adufas, dos planos e pisos suspensos criados

sobre as águas, das janelas retráteis, “sanefas”, típicas das embarcações regionais. Além da

classe artística, que apropria este repertório visual e o trabalha em suas obras, também há uso da

temática dos rios da região na literatura, por exemplo, e na música. Esta produção, de certo modo,

compõe uma visão geral de como a referência desta especificidade da cultura regional é apropriada

pelos agentes locais, e aponta para a composição de uma espécie de quadro de apreciação do que

seria uma síntese da idéia de “ribeirinho” para estes grupos.

Ilustração 14 Luiz Braga, Janela Rio Guamá (fotografia; exposição Anos-Luz, 1988). O rio como estética diferencial e

como discurso da paisagem. Fonte: <http://www.luizbraga.fot.br/portfolio5/portfolio5.html>.

Por outro lado, o “ribeirinho”, categoria múltipla, recebe uma outra acepção, idealizada e

relativamente naturalizante. Em comparação livre, numa analogia, seria uma espécie de reprodução

local da visão idílica do índio dada pelo romantismo brasileiro do século XIX. Espécie de

personagem-síntese, embora quase sempre imprecisamente definido, o “ribeirinho” e sua

paisagem são acionados com propósitos diversos na discussão sobre as intervenções

urbanísticas na cidade de Belém-PA e em seu entorno.

Page 113: Tese Cidade e Agua Jximenes

113

Ilustração 15 Luiz Braga, Casa de madeira e lata (fotografia; exposição No olho da rua¸1984). Os grafismos como

ícones de uma geometria imprecisa e regional, porém, ainda assim, identificável por outros olhares, mais habituados a

uma estética baseada em modelos ocidentais de composição e harmonia. Fonte:

<http://www.luizbraga.fot.br/portfolio3/portfolio3.html>.

Ilustração 16 Jorge Eiró, Feliz Lusitânea [Série "Labirinto Líquido"]. 2004. Técnica: gravura digital. A técnica da

cartografia, referência desde Kandinsky, mapeia a hidrografia regional. Fonte:<

http://www.culturapara.art.br/artesplasticas/jorgeeiro/img04_felizlusitania.jpg>.

De certo modo, a idéia de ribeirinho remete a uma figura que, em tese, representaria uma

espécie de tipo “emblemático”, sintético e particularmente representativo de uma construção

acerca de traços de uma suposta identidade regional e local. Os ribeirinhos, neste caso, são

Page 114: Tese Cidade e Agua Jximenes

114

concebidos como populações de localização às proximidades dos cursos d´água regionais, e

em geral habitantes da zona rural. Simplificações e aspectos gerais do modo de vida e do ambiente

construído dessas populações são acionados para construir a idéia de um habitat idealizado e

particular, próprio, do território regional. Este espaço ocupado, objeto de criação humana, de

definição de limites, fronteiras e convenções, e de formação de relações sócio-econômicas e

processos produtivos, é então citado como elemento idiossincrático e fortemente ligado a uma

construção identitária regional. Deste modo, representaria um território e uma população a ele

associada que deveria ser preservada, mantida.

Extensões deste discurso local, por exemplo, relacionam a genericamente denominada

“cultura ribeirinha” com eventuais potenciais de aproveitamento na indústria do turismo. Isto faria

parte, portanto, das aplicações já recorrentes da indústria da herança (HARVEY, 2000) e do uso

estratégico, do ponto de visto econômico e cultural, de elementos étnicos, sobretudo em projetos

de desenvolvimento e intervenção urbana (ZUKIN, 1991). Outras concepções usam o ribeirinho

como elemento de crítica às intervenções territoriais de Belém-PA e entorno, lidas como

indiferentes às espacialidades e temporalidades regionais, em claro discurso geográfico. Neste

caso, é como se o padrão de intervenção fosse antropologicamente inapropriado, por

desconhecer, por não incorporar, as referências culturais locais e associar as estratégias de

desenvolvimento a padrões e concepções hegemônicas. Os regionalismos, assim, seriam uma

chave de credenciamento de projetos contemporâneos de desenvolvimento; contextualizados, são

legitimados e, por fim, têm maiores chances de se adequar à realidade local. Este discurso,

generalizado no campo da crítica cultural, teve repercussões, por exemplo, no terreno do

Urbanismo e das intervenções arquitetônicas de grande escala e também no debate político de

administrações públicas. Regionalismos, portanto, podem representar códigos de familiaridade

que, produzindo identidade (são próximos do código a quem se destinam), produzem hegemonia;

falar em dialeto é, portanto, mais eficiente em termos políticos, pela vinculação quase orgânica

com que se cria a proximidade (BOURDIEU, 1996a). Esta estratégia também tem relação com o

posicionamento de atores no espaço social. A construção de uma idéia de cidade outrora

“ribeirinha” a partir da crítica ao fato de seu estado atual não mais o ser, apesar de parecer

paradoxal, mobiliza agentes em torno de um suposto espaço comum. Neste sentido, processos

analógicos e simétricos entre natureza e cultura são estabelecidos, e postos em operação como

engrenagens políticas. Atribuir à cidade uma “vocação”, um destino “ribeirinho” como retorno às

origens supostas pode ser um destes recursos. Alternativamente, podem ocorrer processos de

Page 115: Tese Cidade e Agua Jximenes

115

atribuição de características naturalizantes, não-humanas portanto, aos indivíduos e grupos

sociais.

A população “ribeirinha” e “anfíbia” de Belém-PA e região desejaria suas margens de rios

convertidas no arquétipo genérico e inespecífico da “orla” fluvial, espécie de corolário do parque

linear urbano associado à radical transformação de usos. Philippe Descola (1997), a respeito da

cosmologia de grupos indígenas, nota que estes mecanismos de fluidez, atribuição de sentidos e

deslocamentos internos ao par natureza/cultura têm múltiplas funções; podem ir da justificativa

para atos específicos à construção de novos sentidos para ritos cerimoniais. Aqui temos

operações semânticas e agenciamentos políticos que, em resumo, mobilizam, produzindo sentido

e atribuindo conteúdos ao território e à ação política aplicada a ele. Os agentes, por fim,

posicionam-se de acordo com sua localização neste espaço social, e de acordo com as leituras

possíveis dos posicionamentos dos demais agentes (BOURDIEU, 1996b). Deste modo, construir

naturezas — via deslocamentos no par natureza/cultura (DESCOLA, 1997) — e sentidos da

paisagem — pela construção do quadro, com inserção e remoção de itens (CAUQUELIN, 2001) —

revela-se uma operação totalmente política. Como o é a definição de qualquer sentido ou escala da

idéia de território, inclusive, independente de seu potencial (ou falta de) enquanto conceito.

Sobre as atribuições de espírito à paisagem e ao domínio do não-humano (DESCOLA,

1997) e sobre as operações de, digamos, “bestialização” da sociedade, um movimento organizado

local exprime uma síntese:

MANIFESTO

Belém do Pará nasceu do amor geográfico entre o rio Guamá e a bela baía do

Guajará. É água por baixo dos igarapés e rios, é água por cima da chuva nossa

de cada dia. Cidade fluvial e pluvial que cedo lhe roubaram as margens e a

paisagem. Um muro a cerca e imobiliza. Belém é um veleiro encalhado.

E esta angústia que cada belenense sente na alma ao olhar a ocupação irregular

da orla por madeireiras, velhos portos, tristes palafitas e enormes galpões de

ferro provém do fato de que somos seres aquáticos, ribeirinhos de nascimento.

O ritmo das marés, influência marítima distante, é o nosso relógio, mas querem

nos impor um tempo diferente. Cerceiam o direito de ir, vir, nadar e navegar.

Sejas tu um peixe fora-d'água, muçum de vala ou caranguejo do mangue poluído

te convido pra somar conosco nesta luta: Libertar a orla de Belém para o bem

estar de seu povo. As janelas abertas nos alegram, mas são frestas diante da

grande extensão. Queremos toda a orla livre! (MOVIMENTO ORLA LIVRE, 2005. Grifo

do autor).

A relação social e a atribuição de sentidos que este mecanismo sintático promove, a da

associação entre a característica não-humana ao humano (DESCOLA, 1996), ao social, é um dado

importante nesta análise. Ela converte o citadino em espécie nativa, “bestializando-o” (ou

Page 116: Tese Cidade e Agua Jximenes

116

estendendo a ele o domínio do natural) e simultaneamente integrando-o à “espécie”. Isto, em

termos “cognitivos”, e políticos, teria a intenção de produzir ”identidade”, em um sentido mais

literal, e é uma ferramenta de adesão política, sob outro ponto de vista. No entanto, esta operação

(discursiva e, ao mesmo tempo, política, portanto) não pretende estigmatizar os agentes, mas

produzir ligações, consenso, convencimento e legitimidade.

Esta postura totêmica, de incorporação de domínios da “natureza” (em nosso sentido, do

não-humano) a dinâmicas até então propriamente sociais é de uso corrente nos discursos das

sociedades em geral (DESCOLA, 1998), inclusive em certas ocasiões no Ocidente. Há interfaces

entre os supostos pólos cultura/natureza, e chaves de passagem de um estado para o outro,

digamos, em termos culturais e na orientação das práticas sociais. Estas passagens entre estados

ou domínios, chamados de modos de identificação (DESCOLA, 1996), ajudam a construir

cosmologias e, numa escala menor, sentidos de construção e sobretudo relação entre coisas no

ambiente. O mesmo movimento já citado, em outro material, fornece elementos para construção

desta forma de paisagem cultural e, claro, ambiental:

Movimento Orla Livre

O acesso à orla da cidade é um direito de todos

Buscamos alternativas para liberar a orla da cidade de Belém que hoje encontra-

se (sic) quase totalmente bloqueada.

Os que vivem na cidade das mangueiras31

até esqueceram de que aqui do lado

corre o rio Guamá e a baía do Guajará. Não lembram de nossas origens de

cidade ribeirinha, de passear na orla ou simplesmente passar o dia

contemplando a enchente ou a vazante da maré.

Os benefícios de uma orla livre são inúmeros:

- Desenvolvimento do turismo, com o apoio ao turismo de eventos, dada a

construção do centro de convenções em Belém32

;

- Criação de novos negócios ligados a orla, como cafés, pubs, restaurantes e

espaços culturais;

- Aumento da qualidade de vida, com a prática de esportes ou simplesmente

contemplação;

- Incremento da indústria e esportes náuticos com a construção de marinas

públicas, rampas de acesso às bordas d´água, o que indiretamente gera novos

empregos;

Somos um movimento social onde todos que fazem parte são voluntários,

pessoas físicas e jurídicas. Desvinculados de qualquer partido político ou

representantes eleitos. O carinho por Belém é que nos une.

[...]

31

“Apelido” dado à cidade, devido à implantação destas espécies arbóreas, vindas do Oriente, na renovação urbana do

começo do século XX, em algumas de suas principais avenidas. O regionalismo e os modos de identificação com a paisagem

natural, portanto, permeiam todo o debate público em torno da intervenção nas margens fluviais (ou na “orla”) da cidade.

32

À época deste texto transcrito o Hangar Centro de Convenções do Estado do Pará, em Belém, não havia sido concluído, mas

havia a expectativa da conclusão da obra e de sua articulação com os demais equipamentos do plano estratégico de turismo

do Estado, de modo a garantir-lhe maior atratividade e competitividade neste setor da economia (PARÁ, 2001).

Page 117: Tese Cidade e Agua Jximenes

117

Sonhe este sonho. Espalhe esta idéia.

(MOVIMENTO ORLA LIVRE, 2006a, p. 1. Grifos do autor).

Ilustração 17 Versões da logo do Movimento Orla Livre; o caranguejo seria um símbolo da possibilidade de interação

entre ambiente e sociedade local, segundo lideranças do movimento. Os membros do movimento, do mesmo modo,

seriam também crustáceos, digamos. Fonte: <http://www.orlalivre.org/teengaja-botons>.

Em reunião de caráter público, com presença de acadêmicos, representantes de

associação de bairro, moradores, técnicos da administração pública e participantes do movimento,

tais discursos eram proferidos em tom de manifesto e, ao mesmo tempo, de busca por soluções.

A idéia de que era possível uma espécie de panacéia para a intervenção naquele espaço amorfo e

coletivamente adotado da “orla” parecia vigente na oportunidade. Este sentimento não era de se

presumir apenas pela presença de “leigos”, tecnicamente falando, na audiência; havia ali de certo

modo uma propensão a conceber que a intervenção nas margens fluviais da cidade era, por si,

algo que incrementaria a frágil base econômica local e dinamizaria sua estrutura produtiva,

necessariamente. A “orla”, portanto, ganhara adeptos em diversas frentes do debate e da atuação

pública, incluindo a máquina do Estado.

A idéia das possíveis construções entre cultura, natureza (e suas diversas

permeabilidades ou combinações) e justificativas para intervenção e construção de sentidos sobre

a ação no território assinala o poder da construção da “cidade ribeirinha”, de habitantes “anfíbios”

sobre a população local. Esta síntese, articulando elementos da paisagem “natural” —

ocidentalmente falando, não-humana (DESCOLA, 1998) — a pontos da sócio-economia local,

produz uma operação ao mesmo tempo de inclusão dos locais e de produção de identidades feitas

(como quase todas as demais, aliás) às custas de exterioridades produzidas. Esta pequena

cosmologia, menor, produz ao mesmo tempo uma conexão entre ambiente e sociedade e um

fenômeno de adesão política, portanto.

Na audiência citada condensavam-se praticamente todos os sensos-comuns mais

“ilustrados” sobre a questão da ocupação das margens fluviais da cidade. Não estavam ali, como

Page 118: Tese Cidade e Agua Jximenes

118

era de se esperar, a expectativa pela construção de grandes torres residenciais de luxo na

“orla” da cidade33

. Do mesmo modo, não foram citadas as expectativas em torno da absoluta

reconfiguração do perfil das populações residentes nas margens fluviais da cidade, em sua “orla”.

Estes seriam temas mais afeitos ao noticiário, aos slogans de alguns dirigentes públicos e dos

empreendimentos imobiliários recentes. De certo modo, todos pareciam concordar que a

gentrification era algo a evitar e, a julgar pelo relativo silêncio e receio de aprofundamento na

questão, também seria um tabu.

Na audiência estavam presentes, portanto, receios como o da gentrification, da elitização

das áreas de margens de rios na cidade, a preocupação com as “ocupações desordenadas” (onde

os sensos-comuns sobre a urbanização se encontram com as opiniões de especialistas,

curiosamente) e ainda preocupações com o caráter excessivamente “técnico”, de traços

“unidirecionais” e “monodisciplinares”34

das intervenções urbanísticas. Ao enquadrar as

intervenções como fenômenos passíveis de interpretação através de outras disciplinas, o

movimento pretende criar um debate em torno do perfil da reconfiguração dos lugares na cidade.

Este debate, no caso, era permeado por certo apego a ícones diversos do que se entendia, na

ocasião, por “identidade regional” e por “cultura ribeirinha”, cada qual observando sua respectiva

pequena cosmologia e, alternativamente, seu esquema de agentes, com predominância de uns

sobre os outros.

Em falas pretensamente mais “democráticas” da audiência surgiram, por exemplo,

críticas aos recentes projetos de intervenção urbanística da “orla” da cidade, que teriam o hábito

de “desconsiderar refúgios da cultura ribeirinha”. Outras intervenções nas falas advogavam a

necessidade de se imprimir caráter mais “amazônico”, isto é, influenciado plasticamente e em

suas referências e repertório visual, às urbanizações da “orla”. Figura proeminente no citado

movimento, inclusive, argumenta que a intervenção urbanística e sanitária do Projeto Portal da

Amazônia (intervenção comentada neste trabalho, projetada em área de residência de pobreza

urbana da cidade) não deve se converter em uma reprodução de padrões existentes em outros

locais. Segundo este representante, ainda há “problemas” na discussão destes projetos; a nova

33

Ouvida na fala de uma refinada senhora em uma véspera de Natal na Casa das Onze Janelas e bastante presente em falas de

membros de elites locais e de empreendedores imobiliários em atuação na cidade (ver Ilustração 38).

34

O jargão do movimento atinge a crítica à ciência e à técnica como disciplinadoras das práticas cotidianas, como se vê. Não

atinge, entretanto, alguns dos fundamentos do problema da reconfiguração territorial destes espaços às margens da água.

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119

“orla” não pode ser “uma Almirante Barroso”35

, muito menos uma “cópia de Copacabana”,

porque em geral os projetos vigentes “não têm característica regional”, mas um perfil “tecnocrata”.

No debate arquitetônico e urbanístico este ponto tem algum destaque. Otília Arantes

(2000), por exemplo, situa na crítica ao regionalismo crítico (termo usado por Kenneth Frampton

para designar projetos contemporâneos “contextualizados”) uma reavaliação do potencial de

“enraizamento” e coerência sócio-cultural das novas intervenções físicas no espaço urbano.

Embora nas intervenções arquiteturais e urbanísticas contemporâneas a referência ao signo local

ou a determinadas práticas regionais rendesse simpatias e adesões estéticas, isto era lido pela

autora como gesto vinculado às novas estratégias de desenvolvimento das economias urbanas (e

de reprodução das desigualdades sociais na cidade, durante a crise da reestruturação produtiva e

seus efeitos). A partir deste raciocínio, se a vinculação ao repertório visual e a determinadas

práticas locais, consagradas, for um item de credenciamento dos novos projetos de intervenção,

podemos argumentar que se trata apenas de novas formas de adesão ao amplo modelo,

atualmente hegemônico, do planejamento estratégico de cidades; os locais são reconfigurados, os

usos modificados e, embora a economia cresça, algumas assimetrias persistem. Ainda, a questão

da necessidade de uma adequação regionalizada de projetos, nas reivindicações dos movimentos

locais, parece ainda incipiente e pouco sistematizada; critica a partir de pontos residuais e não

aborda questões de fundo, como a reprodução da desigualdade presente mesmo nos mais

contextualizados projetos de arquitetura e urbanismo postos em prática na cidade contemporânea.

O problema não seria, pois, uma questão de forma.

Sob outro ponto de vista, a discussão sobre o grau de contextualização das intervenções

nas margens fluviais da cidade de Belém-PA reflete o teor de preocupação dos agentes locais no

enfrentamento do problema. Ademais, reflete também a própria construção do problema; de certo

modo, é como se fosse uma questão de adequação “cultural” e de ajuste imagético, pois haveria

certo consenso sobre a necessidade de intervir na “orla”, coibindo nela as práticas da “ocupação

desordenada” ou da “obstrução”, nos termos do citado movimento social. Se há consenso

razoável acerca da necessidade de “desobstrução”, termo aplicado por quase todos os envolvidos

no debate, então a questão a restar seria apenas de procedimento e forma. Eis, também, uma das

35

A Avenida Almirante Barroso é um importante corredor de tráfego da Região Metropolitana de Belém e está inteiramente

situada no município de Belém. Com aproximadamente 6 km de extensão, apresenta os maiores volumes de tráfego de toda a

Região Metropolitana, em média, considerando-se uma via isoladamente. Tem caixa de via maior do que boa parte do sistema

viário local (COHAB; SEDURB; JICA, 2001).

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razões pelas quais se associa tão freqüentemente o estigma de dissidente a questionamentos

acerca da idéia da revitalização da “orla” de Belém. Conforme a análise do planejamento

estratégico de cidades proposta por Vainer (2000), posturas críticas, antagônicas em algum

aspecto, ao projeto estratégico (isto é, às novas formas de redefinir o território e as prioridades de

investimento na cidade) são invariavelmente qualificadas como não-cívicas, derrotistas e

anacrônicas.

Ainda na relação entre cultura e natureza, o movimento citado apresentava uma agenda

extensa, feita a partir de discussões com múltiplos atores envolvidos na discussão e mesmo nas

intervenções do processo de “desobstrução” ou “revitalização” da “orla” de Belém-PA. Em

depoimento de fevereiro de 2006, representante do Movimento Orla Livre apresentava pontos desta

pauta, uma espécie de lista de procedimentos considerados interessantes na atuação do grupo.

Dentre estes procedimentos, a ressalva de que o movimento, em suas discussões, não queria a

“limpeza da orla”; identificava-se com questões sociais envolvidas no processo. Por outro lado,

argumentava o movimento que a cidade de Belém-PA “tem a necessidade da orla ser a membrana,

a epiderme da cidade”. Esta metáfora se estendia a um raciocínio de liberação da orla fluvial da

cidade, vista como necessária porque “a cidade precisa respirar”. Dentro desta agenda podemos

citar, por exemplo:

Reforçar, refletir e celebrar a identidade amazônica.

Intensificar as relações culturais e emocionais que as pessoas têm

com o rio.

Cuidar dos portos redutos da identidade ribeirinha.

Urbanização baseada em valores locais.

Evidenciar a paisagem das ilhas.

Paisagismo com espécies amazônicas.

Estruturar as atividades de construção naval tradicional existentes

na orla (MOVIMENTO ORLA LIVRE, 19 out. 2006b).

A associação entre traços do par cultura-natureza, portanto é acionada amplamente na

discussão sobre a “identidade ribeirinha” e suas várias acepções, no estágio da intervenção nas

margens fluviais de Belém-PA. Lembrando Descola (1997; 1998), o estudo das cosmologias não

deve ser tomado como absoluto e, tampouco, como relativo; sua aplicação nos lembra do fato de

que a natureza tem fortes componentes de construção social e de que os fundamentos de sua

percepção e construção dependem de condições ecológicas objetivas, do mesmo modo. Por outro

lado, não podemos reduzir o estudo das cosmologias dos grupos sociais à sua realidade interna;

se assim o fosse, boa parte da teoria antropológica não representaria mais do que uma série de

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descrições de “empirismo pontilhista” (BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 2004). Assim,

nenhum extremo do relativismo permitiria análise; o estudo das concepções de cultura e natureza

(e chaves de passagem de um estado para o outro) pode ser uma ferramenta de análise das

formas pelas quais são produzidos alguns sentidos do ambiente. No presente caso, tais sentidos

parecem ser associados, eventualmente, a estratégias de produção de legitimidade e hegemonia

política, pela produção de relações que se fazem identitárias com os demais agentes. À respectiva

visão da relação da cidade com seus cursos d´água (ou dos habitantes das cidades com estas

águas) é associada uma estratégia de convencimento, de produção de hegemonias, portanto. É

como se esta fosse a construção de uma pequena “cosmologia” da cidade, relacionada a seu sítio

físico.

Frederico Araujo (2007), por exemplo, trabalha a relação contemporânea entre noções

identitárias e processos de territorialização para investigar fenômenos semelhantes, no campo

epistemológico. Em sua concepção as noções de território, associadas a discursos de natureza

identitária, são também passíveis de ser lidas como estratégias de vinculação sócio-política (em

sentido aberto, da definição de grupos, de sua mobilização, de seus sentidos da ação). A questão

é colocada nos seguintes termos:

Territórios são constituídos como parte indissociável de processo identitário

quando a identidade propugnada [...] importa na necessidade estratégica de [...]

ser afirmada como modalidade que remeta a um acontecimento originário,

fundador, instituído como mito. Trata-se, então, de uma estratégia de

remetimento a uma imaginada fundação mítica, por intermédio de um imaginado

território sacro associado a esse momento primórdio (ARAUJO, 2007, p. 31-32).

Deste modo, em nossa aplicação, “territórios” seriam definições acerca do espaço,

abstrato, tornado “concreto” e diferenciado, específico, nomeado e recortado, também pela via da

linguagem, da nomeação e da relação com o grupo social individualizado e auto-identificado como

vinculado a determinado conjunto de signos. Isto ocorre no caso em estudo, especificamente. A

narrativa, já citada, que constrói o contexto em que “Belém do Pará nasceu do amor geográfico

entre o rio Guamá e a bela baía do Guajará” (MOVIMENTO ORLA LIVRE, 2005) tem relação com esta

espécie de mito de origem, que dignifica a gênese do fenômeno e sobretudo o constrói intocável e

despolitizado (Araujo, op. cit.)

A idéia de uma “identidade” ribeirinha atribuída aos habitantes de Belém-PA, ou a

algumas de suas atividades e grupos sociais, tem repercussões em outros domínios. Além de

apresentar-se como traço identitário, nesta construção social que remete a um contexto idealizado

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122

e mítico, e a uma característica definidora que aglutina e que deveria arregimentar adesões à

causa, a figura do “ribeirinho” é apropriada e acionada em pelo menos duas frentes diversas. A

primeira relaciona-se com este perfil supostamente identitário, uno e consensual. A segunda tem

aspectos de estigma; o ribeirinho — ou a noção de “ribeirinho”, amorfa e inespecífica como são

os sensos-comuns — pode representar uma cidade deteriorada, desperdiçando os potenciais que

o território lhe permitiria caso houvesse adesão aos modelos hegemônicos de planejamento e

desenho urbanos. O atraso, portanto, pode ser e é, de fato, associado a algumas variações da

noção de “ribeirinho” no debate sobre a intervenção territorial nas margens fluviais de Belém-PA.

Esta associação é feita, sobretudo, a respeito da ocupação irregular das periferias urbanas nas

terras alagáveis da cidade.

A uma narrativa dos sentidos do “ribeirinho” na cidade de Belém-PA pode também ser

associada a construção social e a ocupação concreta das áreas de baixadas. A baixada, em

Belém-PA, é outra figura emblemática, entre o mítico e o maldito, circulando entre o noticiário

jornalístico, as descrições de natureza sociológica e o métier do planejamento local. Por baixada

entende-se as áreas de ocupação urbanística e juridicamente irregular, locais de moradia da

pobreza urbana local e de migrantes, formadas nas planícies de inundação e terras alagáveis em

geral, sobretudo situadas nas proximidades de bairros consolidados de Belém-PA. Tecnicamente,

ao falarmos de sítio físico, podemos acrescentar um aspecto essencial; as baixadas costumam ser

qualificadas de modo prático pelo setor de saneamento local como as ocupações irregulares e

pobres situadas abaixo da cota altimétrica 4,00 metros (SUDAM; DNOS; PARÁ, 1976). Este ponto

de corte é de uma clareza e uma capacidade definidora significativa para o estudo da realidade

desta favela local. A partir da separação entre terras altas e baixas, e em sua relação com o regime

de marés, a urbanização local apresentou traços de segmentação social; terras de cotas

relativamente mais altas, e não sujeitas diretamente ao regime de marés, foram progressivamente

ocupadas por grupos de maior renda, e as terras baixas e alagáveis, ainda à margem do mercado,

eram predominantemente ocupadas pelos pobres (PENTEADO, 1968). A situação de terras devolutas

e de glebas doadas à municipalidade através do instituto das sesmarias colaborava na formação

deste quadro fundiário (OBSERVATÓRIO, 2005). Através do padrão contemporâneo de ocupação

irregular do solo urbano no Brasil entendemos que esta situação acompanha, portanto, uma

tendência nacional; os pobres urbanos, sobretudo na segunda metade do século vinte, ocupam

preferencialmente terras públicas ou de fragilidade/proteção ambiental (MARICATO, 2000). Este

padrão criou, simultaneamente, um quadro de problemas sócio-ambientais, sócio-econômicos e

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123

físico-territoriais intrincado, que atesta a tensão e a concentração das formas de uso e

ocupação do solo urbano no país.

As baixadas¸ como as áreas periféricas em geral, têm o seu estigma. Suas populações,

do mesmo modo, foram descritas pelo setor de planejamento local com uma espécie curiosa de

aplicação da sociologia durkheimiana aos estereótipos diversos acerca do morador da periferia no

Brasil:

Devido à origem interiorana, as populações das baixadas geralmente apresentam

hábitos e costumes manifestados pelos tabus e crendices, curandeirismo,

fatalismo, conformismo e mentalidade reivindicatória imediatista. Marginaliza-se

às novas formas de vida na cidade, gerando acomodação, passividade, alto grau

de anomia; o individualismo e a ausência de participação são uma constante,

sendo as relações sociais restritas à família e à vizinhança... (SUDAM; DNOS;

PARÁ, 1976. p. 51).

Deste modo, populações moradoras de baixadas, freqüentemente de origem rural,

recebem este tipo de avaliação. As baixadas, que guardam forte relação com as estratégias de

implantação em terras alagáveis, recebem esta apreciação por analogia, digamos; afinal, trata-se

praticamente do mesmo fenômeno. Assim, a associação entre a idéia de ribeirinho e de baixada,

em Belém-PA, tem certa proximidade, e se revela como uma possibilidade de entendimento da

questão da ocupação urbana e das águas na cidade.

As baixadas são espaços marginalizados, e habitam o terreno do que se chamava

genericamente no Brasil de vazios urbanos, áreas ocupadas por populações pobres, sem infra-

estrutura, que não constavam dos cadastros físico-territoriais oficiais (MARICATO, 2000). O

cadastro urbanístico que formava a sistematização da ocupação da cidade em finais dos anos

1970, feito pela Companhia de Desenvolvimento da Área Metropolitana de Belém (CODEM) reflete

este aspecto. Em seu traçado, áreas situadas em parcelas nobres do município surgiam com

configuração esparsa, imprecisa ou mesmo inexistente. Estes elementos sugerem as formas pelas

quais as idéias de baixada e versões particulares da idéia de ribeirinho podem ser vistas como

elementos carregados de estigma e de conotações ameaçadoras ao ideal de cidade concebido e

praticado pelas elites locais.

Por estas razões, o ribeirinho, espécie de figura-síntese criada para denominar e adjetivar

um aspecto eleito como fundamental da urbanização local, traz certa conotação marginal. Além de

ser acionado como uma espécie de “marca” da urbanização local, o ribeirinho é, também, a

síntese da população outrora interiorana, sem modos e brutalizada das baixadas e das áreas

periféricas alagadas em geral. O ribeirinho, nas acepções comumente trabalhadas em discursos da

Page 124: Tese Cidade e Agua Jximenes

124

imprensa, das administrações públicas e de técnicos do planejamento urbano local, aparece ao

mesmo tempo como figura idealizada e maldita; como expressão do desejo de litoral “recuperado”

da cidade e como temor de sua sujeira e violência a escorrer pelos leitos de seus rios/canais.

O ribeirinho, portanto, revela-se uma idéia versátil e de grande plasticidade. Esta idéia é

trabalhada tanto em projetos de intervenção urbanística e sanitária, em empreendimentos

imobiliários de classe média e alta, no texto da legislação municipal, quanto nas argumentações

técnicas acerca da remoção urbanística e da reconfiguração territorial das margens fluviais da

cidade. Algumas descrições do território de Belém e de suas intervenções reforçam esta

duplicidade de sentido:

Num dos mais nobres pontos em que Belém abre suas janelas para o rio, um

belo cais nos convida a embarcar no rumo da arte e do lazer. Na orla entre a

modernidade e a cultura ribeirinha, a Estação das Docas prova que a inovação

arquitetônica e a recuperação do patrimônio histórico podem viajar juntas e em

perfeita harmonia (PARÁ 2000, 2008, p. 1).

A beleza natural da Amazônia pousou na orla de Belém. As cores, as fragrâncias

e os encantos da paisagem nortista se transformaram em asa ao olhar. O ninho

onde se guardam essas impressões é um lugar chamado Mangal das Garças.

Criado às margens do rio Guamá, em pleno centro histórico da capital paraense,

o parque ecológico é resultado da revitalização de uma área [...] no entorno do

Arsenal da Marinha (MANGAL DAS GARÇAS, 2006, p. 1).

O Portal da Amazônia pretende recuperar a área ambiental e área social

degradada. Nossa maior aspiração é colocar Belém de frente para o rio. São

6,250 km de orla, de área de lazer, onde as pessoas utilizarão a área em torno da

cidade. Poderemos ter marinas, portos, dando uma levantada no turismo e

dando mais opção para o turista que visita a capital (O LIBERAL, 29 dez. 2006, p.

2).

Seurb vai remanejar 380 famílias ribeirinhas

As obras do 'Portal da Amazônia' viram alvos de reclamações dos moradores e

comerciantes dos bairros afetados. Uma das queixas é o remanejamento dos

pontos comerciais situados às margens do rio Guamá para rodovias como a

Arthur Bernardes. Outro problema é o remanejamento das famílias que moram

próximas às obras da orla da capital paraense. Os moradores criticam ainda a

futura desativação do 'Porto do Açaí', de acordo com informações divulgadas

pela Secretaria Municipal de Urbanismo (SEURB). Ontem, o secretário municipal

de Urbanismo [...] reforçou que 380 famílias que vivem às margens do rio vão

ser remanejadas porque vivem em áreas consideras de risco. Além disso, o

projeto vai garantir a urbanização de regiões degradadas e acesso a portos que

deixarão de ser privados para se tornarem públicos (AMAZÔNIA JORNAL, 28 mar.

2009, p. 2).

O 'Projeto Orla' do governo federal já está sendo realizado em vários Estados

brasileiros. Dentre os quais, Rio de Janeiro, São Paulo, Piauí, Rio Grande do

Norte, Paraná, Bahia e Amapá. O objetivo é preservar e recuperar a orla

brasileira, disciplinando a ocupação de sua orla, levando-se em consideração

aspectos sócio-ambientais.

[...] explica que sabe que a tarefa de remanejamento dos moradores da avenida

Bernardo Sayão será uma das mais difíceis para a execução da obra.

Page 125: Tese Cidade e Agua Jximenes

125

[...]

Moradores querem ficar perto

Na avenida Bernardo Sayão, alguns moradores se dizem favoráveis ao

remanejamento, desde que para um local próximo de seus endereços atuais e

mediante uma indenização financeira equivalente ao valor de seus imóveis.

A moradora Regina Sales, de 35 anos, mora bem na beira do canal há cerca de

5 anos. Ela conta que o prefeito [...] esteve lá, em outubro do ano passado,

conversando com os moradores. 'Ele (o prefeito) disse que ia negociar com o

governo do Estado para que nós fôssemos remanejados para o terreno que fica

na avenida', disse a moradora (AMAZÔNIA JORNAL, 06 fev. 2006, p. 2).

BECO DO CARMO

Urbanismo

No dia 18 a polícia desfez um reduto do tráfico de drogas que se formara no

Beco do Carmo, na Cidade Velha, prendendo 18 pessoas no local. A prefeitura

devia vir imediatamente atrás para limpar a área. Não só complementando a

ofensiva contra os traficantes, mas abrindo um novo horizonte para a cidade na

orla. Todas as construções voltadas para a baía são ilegais. Até a década de 40

descia-se do Largo do Carmo para o beco vendo a água. Aos poucos, as

construções, todas precárias, foram ocupando o espaço.

Acabaram por se tornar antros do crime, sujando a paisagem e desvalorizando a

área. Está na hora de atacar essa chaga e fazer a assepsia urbana, qualificando

melhor esse belo perímetro da cidade (JORNAL PESSOAL, 15 jul. 2008. Grifos do

autor).

O último texto das transcrições acima é de autoria de jornalista de grande notoriedade

local, membro da elite intelectual da cidade e com grande atividade na discussão de questões

coletivas. O ativismo do jornalista, considerado uma figura libertária e de inclinação política à

esquerda na região, o impede entretanto de ser crítico à própria ideologia da desobstrução do rio

que vigora no debate público local. Note-se que o jornalista o faz usando os jargões funcionalistas

e pejorativos de forma muito semelhante àquela feita na Monografia das Baixadas (SUDAM; DNOS;

PARÁ, 1976), espécie de clássico local do planejamento urbano, citada neste trabalho. É, deste

modo, um fenômeno curioso da disseminação e da ampla aceitação do discurso da devolução da

orla da cidade, de que nos ocupamos em momento anterior (PONTE, 2004), e uma aplicação da

idéia do ribeirinho como algo a limpar e remover, incluindo as metáforas médicas e biológicas do

poder difuso a que se refere a ação de reurbanização neste caso. De certo modo, é como se o

ribeirinho pudesse sofrer assepsia, o que nos lembra as formulações da aplicação do poder, no

discurso e nas ações políticas, de Foucault (2004). A partir da construção de uma espécie de

mentalidade que recomenda o que se deve fazer com aquele espaço, concebe-se uma forma de

intervenção e também uma normativa, um princípio regente (FOUCAULT, 2004). As formas de

conceber o mundo, neste caso, se coadunam com as estratégias de intervenção sobre ele, e com

o posicionamento dos agentes no campo social (BOURDIEU, 1996b).

Page 126: Tese Cidade e Agua Jximenes

126

Deste modo, a idéia-síntese do ribeirinho se mostra como elemento útil para produzir

determinados tipos de legitimidade social, de vínculo e de propriedade cultural e sócio-política no

interior de grupos sociais na cidade de Belém-PA. O recurso ao regionalismo, como citado, tem

esta função, ou esta estratégia (BOURDIEU, 1996a). Por outro lado, a idéia de ribeirinho remete à

dimensão pejorativa do grupo social e do indivíduo interiorano, produtor de um espaço precário,

rude, anti-sanitário, numa espécie de representação do rufião, do caipira (WILLIAMS, 1989), e do

caráter primário e rude, da ignorância intelectual atribuída aos caboclos da região.

A idéia do ribeirinho e seus usos, portanto, têm notável plasticidade por operarem como

trunfos no jogo social da reconfiguração territorial das margens da cidade. Ora traço identitário,

definidor, síntese e característica da qual se deve orgulhar e resgatar; ora a representação de

precariedade, arcaísmo, atraso, sujeira e desordenamento espacial, a idéia e as formas territoriais

do ribeirinho (ou as idéias projetadas, apenas concebidas, desta forma territorial) são acionadas

conforme a intenção do agente social em questão. Empreendedores imobiliários acionam o

ribeirinho para a venda de apartamentos de classe média e alta; a Prefeitura Municipal, de forma

dual, para justificar remanejamentos em áreas de intervenção urbanística e, ao mesmo tempo, para

fundamentar as suas próprias intervenções, dando-lhes o caráter do suposto “resgate” da

“identidade ribeirinha” outrora presente até mesmo no texto da legislação urbanística local.

A leitura que os agentes do mercado imobiliário da cidade fazem nos permite, por outro

lado, ver uma forma clara de apropriação do debate e da imagem criada em torno do ribeirinho em

Belém-PA. Isto também denota a construção de uma paisagem da cidade. O ribeirinho compõe,

com as margens fluviais de Belém, o quadro do que atualmente se chama orla na cidade. A idéia

de que Belém-PA deva, contemporaneamente, receber intervenções urbanísticas capazes de

dinamizar a economia local e incrementar a qualidade ambiental da cidade é a tônica deste projeto

amplo, aberto e inespecífico da orla. De qualquer modo, a associação entre o ribeirinho e a orla é

que nos permite fazer uma leitura desta duplicidade de sentidos.

Em um momento o ribeirinho pode ser o elemento aglutinador de uma construção social

em que a relação entre vínculo sócio-cultural e a decisão de recorte espacial (ARAUJO, 2007) — ou

seja, uma definição particular de território — ocorre na prática. É deste modo que se pode

conceber, portanto, uma espécie amorfa e inespecífica, aberta, de “cidade ribeirinha”. Nela não

estão presentes, entretanto, os elementos da pobreza, das estratégias de assentamento e de

sobrevivência presentes nas baixadas e na arquitetura tradicional de assentamentos periféricos

urbanos, sobretudo aqueles situados em bairros ainda próximos do centro. O traço ribeirinho existe

Page 127: Tese Cidade e Agua Jximenes

127

como adorno, como diferencial e como marca, referência imagética na construção estética e

política da cidade a se renovar e se redimir do quadro de estagnação econômica recente. O

ribeirinho, aqui, é parte da justificativa do retorno da “cidade”, outrora ribeirinha, a suas origens.

Como a baixada estava ausente do discurso elogioso do ribeirinho, passa a surgir nas

justificativas da remoção urbanística, na qualificação temerária dos riscos ambientais urbanos, da

situação crítica da iminência das enchentes e de doenças de veiculação hídrica. Estes aspectos

são ressaltados em paralelo à irregularidade urbanística e fundiária da ocupação. Mais

recentemente, a baixada obteve outros elementos de referência negativa acerca da idéia de

ribeirinho no espaço da cidade: a relação com o tráfico de drogas e com o fluxo irregular e informal

de mercadorias e pessoas pela via fluvial. Assim, além do recente discurso do risco ambiental, a

baixada de beira de rio em Belém-PA apresenta-se como local potencial da criminalidade, da

ilegalidade. Deve ser, portanto, removida. Neste aspecto a “identidade ribeirinha” é rejeitada, ou

melhor, reconstruída; teme-se a precariedade, o risco e a improvisação das estratégias de

construção da baixada.

O rio, portanto, tem pelo menos dois usos diferentes postos em movimento na atribuição

de sentidos sobre a paisagem e em ações concretas de intervenção territorial.

Page 128: Tese Cidade e Agua Jximenes

128

Ilustração 18 Publicidade de empreendimento situado nas proximidades da zona portuária, um dos primeiros a utilizar

como mote o diferencial locacional da "orla" fluvial de Belém. O nome “esotérico” e a promessa do empreendimento se

articulam com o caráter excepcional do padrão vendido, com unidades de 421 m², cinco suítes, quatro vagas de

garagem e “de frente para a baía, com uma vista sem igual” (CHÃO E TETO, 2007).

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129

Ilustração 19 A sacada do empreendimento Aquarius Tower Residence, em forma de quilha de embarcação, sugere

analogia com uma idéia simpática ao ribeirinho, conforme depoimento do próprio projetista, dado ao autor em

dezembro de 2003. Fonte: Chão e Teto (2007).

Ilustração 20 Empreendimento de 37 pavimentos no bairro do Umarizal, área nobre da cidade em franca expansão do

mercado imobiliário local, com unidades de 270 m² e divulgação de “[...] várias opções de planta e uma bela vista

para a Baía do Guajará” (CHÃO E TETO, 2007).

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130

Ilustração 21 Empreendimento já construído e habitado em Belém, também situado nas proximidades da zona

portuária, no bairro do Umarizal, atesta o bom desempenho dos produtos imobiliários de localização associada à "orla"

da cidade. A “vista maravilhosa para a Baía do Guajará” é um dentre vários motes do mercado imobiliário para

ressaltar os diferenciais da ocupação nas margens fluviais da cidade — e para marcar o caráter diferenciado da

compra.

Page 131: Tese Cidade e Agua Jximenes

131

Ilustração 22 Publicidade recente de lançamento imobiliário em Belém-PA atesta o apelo econômico dos diferenciais

de localização de seus cursos d´água; anúncio cita a "vista majestosa para a baía" como slogan para vender a nobreza

do empreendimento. Fonte: <http://i245.photobucket.com/albums/gg55/Drico-bel/Noblesse.jpg>. Acesso em: 10 jun.

2009.

Page 132: Tese Cidade e Agua Jximenes

132

Ilustração 23 Publicidade de edifício residencial em Belém, na fronteira entre os bairros de Batista Campos (no

chamado centro expandido, área nobre da cidade) e Jurunas (na periferia próxima, vetor de expansão do mercado

imobiliário local) divulga como diferencial a proximidade do “[...] belíssimo Mangal das Garças, esse empreendimento

foi feito para você”. Nota em jornal local cita que a empresa construtora e incorporadora ressalta “[...] um amplo

espaço gourmet na cobertura, com vista de 180º para a capital e para a baia do Guajará, será um dos diferenciais do

Carpe Diem, novo empreendimento [...]” (SOARES, 10 jun. 2009). Notícia de jornal informa que o empreendimento tem

tido alta procura (DIÁRIO DO PARÁ, 19 mai. 2008). Fonte: <http://www.gafisa.com.br/imoveis/pa/belem/carpe-diem-

belem>. Acesso em: 10 jun. 2009.

Page 133: Tese Cidade e Agua Jximenes

133

3.5. ALGUNS TIPOS DE INTERVENÇÕES NA INTERFACE CIDADE-ÁGUA

Neste trabalho a questão da formação territorial urbana, em termos contemporâneos, e

em sua relação com um dado elemento ambiental, a água, é o ponto central. Deste modo, a

construção de uma problemática da água na cidade passa, necessariamente, pela exemplificação e

pela ilustração de fenômenos concretos que, no escopo de seus fatos e condicionantes, expõem

os contornos de uma possível questão da água na cidade atual. Para efeito de elaboração deste

trabalho, o caso da cidade de Belém, no Estado do Pará, Norte do Brasil, é tomado como

referência. A urbanização de Belém-PA, por razões históricas e pela sua implantação físico-

territorial, tem conexão variada e permanente com diversos elementos tidos pela teoria geográfica

como condicionantes da produção do espaço no litoral, ou sob algum tipo de influência dos cursos

d´água em geral (DOUMENGE, 1967; MORAES, 1999). Dentre estes elementos, a constituição de um

porto tecnicamente qualificado no princípio do século XX; a implantação de entrepostos diversos; a

ocupação urbana de alguns quilômetros da faixa de margens fluviais do terreno da cidade; a

formação de preços nestas terras urbanizadas, criando padrões de diferenciação, elitização e

segregação a partir de formas diversas de uso e ocupação do solo, bem como de apropriação do

território conseqüentemente produzido.

Belém-PA, atualmente, passa por transformações de caráter urbanístico significativas.

Este processo, que data do final da década de 1990, teve lugar na cidade a partir de políticas de

desenvolvimento econômico ligadas à produção de lugares e a partir da implantação de novas

estruturas técnicas no território. Historicamente, este contexto pode ser localizado a partir de

algumas intervenções territoriais específicas, sobretudo aquelas levadas a cabo pelo Partido da

Social Democracia Brasileira (PSDB), em doze anos de gestão estadual, e pelo Partido dos

Trabalhadores (PT) em oito anos de administração municipal. Estas intervenções marcam o ponto

inicial de transformação do espaço urbano em Belém-PA, na questão específica da urbanização às

margens da água, mas há fenômenos posteriores.

Além das intervenções urbanísticas, estritamente falando, ações de caráter institucional e

técnico tomaram lugar na cidade. Agrupamos, neste trabalho, estas ações em conjunto com as

intervenções urbanísticas, chamando-as genericamente de intervenções territoriais. Estas ações

técnicas e institucionais são representadas, basicamente, pela aplicação de tecnologias ambientais

urbanas em Belém-PA e região, e pela relação destas tecnologias e outras ações urbanísticas com

a implantação de uma política de gestão de recursos hídricos em escala regional. Em síntese,

Page 134: Tese Cidade e Agua Jximenes

134

portanto, as intervenções territoriais seriam indicativos de que há uma questão da água na

cidade, ou de que pelo menos está se construindo uma problemática que relaciona elementos

históricos da estruturação urbana com dinâmicas de modernização, em diversas atividades. As

intervenções territoriais, portanto, dizem respeito às tecnologias ambientais urbanas ou à

engenharia ambiental; à requalificação/revitalização de áreas históricas portuárias e à adoção da

água como paisagem cultural (ZUKIN, 2000); à modernização portuária e à aplicação, mais ampla,

difusa e institucionalmente poderosa, da política de gestão de recursos hídricos. Tais intervenções

variam, basicamente, em torno de algumas características:

No caso de equipamentos públicos ligados à chamada economia da cultura (JAMESON,

1996; 2001) haveria relação com a chamada indústria da herança (HARVEY, 2000), o que

converteu aspectos histórico-culturais das cidades em mercadorias, itens de marketing

na competição interurbana pelos novos ativos da economia das cidades. Nestes locais a

água na cidade tem seus atributos paisagísticos ressaltados, sobretudo. Em abordagem

correlata, trata-se da produção de lugares, isto é, de espaços urbanizados com a

pretensão de produzir ou reatar vínculos de sociabilidade supostamente estabelecidos

historicamente na relação funcional e na fruição estética da paisagem do rio e da baía.

Por fim, surgiram, posteriormente, intervenções em diversas escalas, com

características e propósitos técnicos diferentes, que lidam com variantes da dimensão

ambiental da cidade, seja pela via da adoção de tecnologias de drenagem e vegetação

mais compreensivas diante das dinâmicas físico-ambientais locais ou pela criação de

parques urbanos de características paisagísticas mais evidentes.

Estes fenômenos são aqui tratados sob dois pontos de vista, portanto. Pretende-se

esboçar aspectos históricos e conceituais destas intervenções e, em seguida, discutir a extensão e

a viabilidade de uma questão da água na cidade. Estes temas apontam para direções diferentes.

No primeiro há uma preocupação de caráter histórico; a intenção de fazer uma reflexão acerca das

particularidades e possíveis generalizações do processo de constituição de um espaço construído

urbano, da transformação da paisagem, do ambiente e da atribuição de sentidos ao ambiente, na

proximidade da água. No segundo ponto, tenta-se um conjunto de perguntas e de tendências da

cidade, relacionando-a com aspectos do debate contemporâneo sobre formas de apropriação

material e simbólica da natureza.

Uma possível questão da água na cidade, a partir do caso de Belém-PA, por exemplo,

poderia sugerir alguns processos cuja constituição, enquanto fenômeno com alguma unidade

Page 135: Tese Cidade e Agua Jximenes

135

interna, seria recente. Obviamente, dadas as diferenças de escala, de porte e de economia,

Belém-PA e sua região não configuram aquele aglomerado urbano de padrão metropolitano de

grande alcance, de influência nacional na rede urbana brasileira36

. Por outro lado, a formação

histórica e territorial da cidade é um caso concreto de interesse para estudar a tensão entre as

formas de uso e apropriação deste elemento que podemos enquadrar como parte do ambiente e as

dinâmicas de ocupação territorial propriamente ditas. A relação da estruturação urbana de Belém-

PA com os cursos d´água é antiga, original, e passou por processos de transformação ao longo

de seus quase quatro séculos de existência. Assim, a cidade pode ser tomada como caso de

interesse para uma reflexão sobre o processo de urbanização e uma questão aberta da água,

atualmente.

A idéia de relacionar intervenções territoriais e a elaboração de uma possível questão

urbana da água é devida à possibilidade de enfeixamento de fenômenos diversos em torno da

concentração de acesso ao ambiente na cidade. A água, especificamente, vem sendo objeto de

construção de uma problemática, do mesmo modo, em frentes diversas; recurso ambiental

escasso, diferencial locacional, fator de produção, item relevante paisagisticamente. Estas

possibilidades de uso da água tomam, na cidade, uma dimensão capaz de aglutinar eventos

diferentes em uma questão. A junção destes diversos fenômenos, lidos em seu viés urbano, passa

pela política ambiental, de forma ampla. A transformação do quadro territorial, através da

intervenção normalizadora e de suas aplicações aos elementos da natureza na paisagem, deixa

como legado uma paisagem que, alterada, reflete uma natureza ecônoma e administrada

(CAUQUELIN, 2007). Deste modo, preceitos declarados das diversas abordagens da política

ambiental, como a democratização do acesso aos recursos — o que, em termos conceituais,

representaria certa dimensão de contra-senso diante da lógica da economia capitalista (HARVEY,

1996b) —, revelam, em seus efeitos, dinâmicas de concentração, de padronização, de exclusão e

de veto ao ambiente. Esta clivagem parece existir justamente nas variadas formas da água na

cidade, seja esta paisagem cultural, elemento e substância, veículo ou recurso. Deste modo,

parece haver, hoje, certa convergência entre os propósitos e os efeitos destas diferentes

36

A Região Metropolitana de Belém (RMB), segundo estudo do IPEA, é uma metrópole de menor alcance, caracterizada como

Metrópole Regional na hierarquia de cidades da rede urbana brasileira — uma classificação que coloca a aglomeração numa

espécie de “terceira categoria”, atrás dos níveis global e nacional (GONÇALVES; BRANDÃO; GALVÃO, 2003). A RMB, em estudos

recentes, é caracterizada como aglomerado urbano de alta integração, mas de condição social entre média e baixa, e com alto

grau de concentração de riqueza e atividades econômicas (OBSERVATÓRIO; FASE, 2005).

Page 136: Tese Cidade e Agua Jximenes

136

intervenções territoriais, manifesta na questão do ambiente urbano, entre outros contextos.

Em relação a este aspecto de convergência, parece haver hoje a construção de uma

política de controle da água. Esta política não se estrutura de modo formal, mas ocorre de forma

difusa, mas não menos eficiente do ponto de vista social. Haveria ações variadas que representam

uma forma particular de apropriação material e simbólica e de atribuição de sentido à natureza e a

formas de produção do território na cidade. Esta política não equivale, propriamente, a ações

institucionalizadas que visam as já consagradas políticas de gestão de recursos hídricos, por

exemplo. Tais ações, na verdade, fazem parte desta ampla “política”. De fato, são ações de

instauração, materialização, homogeneização e difusão de poder, identificáveis nestes espaços até

aqui ligeiramente qualificados como zonas de interface37

. Um conjunto destas ações de algum tipo

de planejamento, ordenamento, concepção de desempenho institucional e político, e de

comportamento de agentes sociais é o que parece formar esta política aberta de controle da água.

Na questão da interação entre os agentes sociais e na formação de um quadro político-institucional

este fator é mais evidente; forma-se, hoje, um padrão e uma expectativa em torno do desempenho

de certas políticas com algum rebatimento ambiental, bem como em relação à atuação de certos

agentes, hoje demandados como necessariamente “sustentáveis”, por exemplo (BRENNER;

THEODORE, 2002). A conjunção entre a vigência das normas e das políticas de Estado, associada às

expectativas e atuação dos agentes sociais produz, em escala ampliada, algo muito próximo das

formas do poder difuso e nem sempre centrado no Estado que Foucault (2004) descrevia para os

casos de estudo de sua micropolítica. Assim, efeitos e o contexto histórico atual, incidentes sobre

a relação entre território urbano e água, indicam a concentração de padrões de configuração

territorial, usos e formas espaciais nestas áreas. Embora haja diretrizes de democratização do

acesso aos recursos ambientais disponíveis nas formações territoriais (como em relação à

37

Vale alguma consideração sobre o termo. A idéia proposta de interface pretende qualificar a especificidade das terras às

margens da água em relação às demais terras emersas. A partir das considerações de Moraes (1999) sobre a zona costeira

brasileira, por exemplo, é possível atribuir uma série de elementos próprios deste ambiente. Nele são desempenhadas

atividades virtualmente exclusivas (MORAES, op. cit.) de transportes e também algumas outras atividades da economia, como a

pesca. Estas zonas de interface costumam ter preços da terra em geral mais altos do que aqueles dos terrenos vizinhos (idem,

op. cit.), e apresentam, com freqüência, patrimônio construído e diversidade de atividades mais expressivos e vultosos do que

outras áreas do território. O caráter “idiossincrático” da interface entre o território e a água também pode ser lido no imaginário

das numerosas narrativas, mitos e modos de vida associados ao mar, aos lagos, aos rios. Pode ser visto, portanto, na

alimentação e na enumeração das dádivas da vida; nas construções sociais das criaturas habitantes das águas (CORBIN, 1989);

no expressivo conjunto de artefatos e técnicas de obtenção de alimentos, navegação e obtenção de materiais diversos para

construção; na instauração de um “modo de vida”, de uma dinâmica social particular (DIEGUES, 1998), vinculada tanto a

aspectos econômicos da atividade à beira-mar (ou beira-rio, lago, estuário, etc.) quanto às construções sobre o sentido e a

importância do ambiente, e às formas de transformação da paisagem praticadas pelas populações.

Page 137: Tese Cidade e Agua Jximenes

137

questão água e cidade), os efeitos destes novos padrões têm sido justamente os da criação de

divisões, de formas de veto e de impedimento.

Como na formulação do “estriamento” do espaço do mar de Deleuze e Guattari (1997b),

há hoje a estruturação de uma rede de mecanismos de coerção, de controle e de formas

renovadas da abordagem das territorialidades frente ao ambiente. A questão direta, para os

autores, era o mar e seu estriamento; o surgimento da cartografia, das projeções geométricas, da

técnica de triangulação como meio de localizar e mapear pontos num espaço abstrato

cartografado. Neste trabalho podemos pensar uma analogia com este raciocínio, a partir desta que

é uma operação tipicamente moderna; racionalizar, quantificar, geometrizar, esquadrinhar e zonear,

de modo a produzir formas “desejáveis” de territorialização e normatividades específicas quanto às

formas desviantes.

O espaço do mar, tido como o espaço dos fluxos não monitorados por excelência,

tornou-se objeto de um esquadrinhamento das posições e deslocamentos. Além disso, com o

desenvolvimento da navegação, houve certa expansão dos horizontes do capitalismo comercial e

da própria idéia de “mundo”, a partir das Grandes Navegações dos séculos XV e XVI. Apesar da

diferença aparente de “objeto”, trata-se de coisas semelhantes; do desenvolvimento de formas de

mapeamento e de poderes diversos agindo sobre o espaço e suas dimensões.

O território de parte da cidade de Belém-PA e de seu entorno, no que tange às relações

entre a cidade, a ocupação do espaço e a presença da água, é portanto apropriado a esta

discussão. Ainda no esforço de detalhamento do objeto deste estudo, interessa discutir a

convergência entre iniciativas diversas atuantes sobre o território urbano nas proximidades da

água, e seus efeitos de concentração de benefícios e criação de um quadro de ordenamento

territorial específico e segregador. Alguns destes elementos, citados anteriormente, caracterizam

fenômenos específicos; são materializações concretas dos quatro tipos de intervenção territorial

na relação entre cidade e água. Sugerimos, por um lado, uma descrição de características gerais

que mostram diferentes abordagens da água na cidade, correspondentes a cada tipo de

intervenção territorial. Sucintamente, tais intervenções são as seguintes:

O parque ambiental (chamado “naturalístico”) Mangal das Garças; o complexo Feliz

Lusitânia, de edifícios históricos no sítio de fundação da cidade; a Estação das Docas,

espaço da zona portuária convertido em típico waterfront, parque urbano destinado ao

consumo, às amenidades e ao cultivo do gosto diferenciado do gourmet (ZUKIN, 1991) e

Page 138: Tese Cidade e Agua Jximenes

138

da chamada “economia da cultura” (JAMESON, 2000); a previsão do projeto Portal da

Amazônia, concepção de mais de 6 Km de via às margens do Rio Guamá com

“renovação” urbana prevista nos moldes do Planejamento Estratégico de Cidades,

incluindo expressiva remoção de populações e de usos. Além destes, é citado outro

conjunto de intervenções, executadas por outros agentes políticos, pretensamente mais

“democráticas” e socialmente “inclusivas”, tais como o complexo Ver-O-Rio, área de

lazer e convivência próxima aos galpões do porto. Outras iniciativas, sobretudo no âmbito

privado, têm tido repercussão recente. Para o escopo do trabalho, tais fenômenos

reforçam a centralidade do tema da territorialidade nas proximidades da água, e

particularmente no caso em estudo.

A discussão e algumas ações para a modernização da Zona Portuária de Belém,

segundo a lei brasileira de modernização portuária (BRASIL, 1993), que incluem a

construção de novos terminais portuários, o debate em torno da remoção de carga e

reordenamento do fluxo de passageiros no secular Porto de Belém. Esta discussão, aliás,

é feita nos mesmos termos e com conteúdo muito semelhante àquele da modernização

portuária em vários outros locais do país e do mundo, e é sintomática da transformação

do setor. Assim como no caso do esquadrinhamento do mar (DELEUZE; GUATTARI, 1997b),

a técnica é materializada em uma política, um conjunto de agenciamentos de

monitoramento e comando. A técnica, também, passa a ser instrumento de recodificação

do ambiente, em direção a um tipo de apropriação mais instrumental, pautada pela

racionalidade moderna e por critérios de eficiência funcional.

Aplicação de técnicas e conhecimentos da ecologia e das ciências ambientais em geral,

materializadas, neste estudo, na implantação do previamente citado parque ambiental

Mangal das Garças e no projeto de macrodrenagem da Bacia Hidrográfica da Estrada

Nova, parte do projeto de saneamento da intervenção urbanística do Portal da Amazônia.

Discussão pública, formulação e execução de políticas para a chamada gestão dos

recursos hídricos e seus correspondentes ordenamento territorial e arcabouço

institucional. Para este trabalho é tomado como referência o caso específico da política

de gestão de recursos hídricos da Secretaria de Estado de Meio Ambiente (SEMA) do

Governo do Estado do Pará. Este item incorpora a expressiva importância que a rede

hidrográfica tem na economia e na sociedade amazônicas, embora tratadas sob outro

aspecto. Isto também se mostra relevante porque evidencia a concepção atual de

Page 139: Tese Cidade e Agua Jximenes

139

tratamento para as áreas onde ainda existe a figura da terra-livre (MARX, 1986) (isto é,

da não-vigência total da posse e propriedade da terra, do compartilhamento informal de

“recursos” naturais38

), de características ainda parcialmente pré-capitalistas, e seu

conflito com tópicos do processo de modernização. Atualmente, há organizações do

setor público, na região, delineando uma política de ordenamento territorial ligada ao

mapeamento e a formas ainda incipientes de gestão do uso da água (PARÁ, 2005b).

O conjunto de tais elementos é o que permite o delineamento mais claro do estudo.

Haveria, a partir destes elementos, a construção de uma dimensão representativa da água diante

do processo de territorialização das populações atuais, no estuário da Baía do Guajará, nas

proximidades do município de Belém-PA. Obviamente é impossível cobrir o assunto

completamente, daí o recorte territorial e temporal. O caso de Belém-PA é representativo porque,

de alguma forma, condensa elementos que compõem parte relevante da discussão atual do

planejamento urbano sobre as ditas “águas urbanas”. Estes elementos incluem a conversão da

idéia (múltipla, necessariamente) de “natureza” em “paisagem” de consumo estético, visual,

através de um novo urbanismo e um novo planejamento urbano que se pretendem ambientalmente

“responsáveis”, ecológicos. Por outro lado, apontam para a conversão dos antigos ditos “bens

econômicos imperfeitos” (isto é, o ar, etc. e, no nosso caso, a água) em formas mais adequadas à

circulação no mercado, à incorporação a circuitos da troca econômica (LEFF, 2003) e, sobretudo,

aos seus mecanismos de valoração e valorização econômica (LEFF, op. cit.; MORAES, 1999). Esta

incorporação à esfera da circulação implica numa abordagem cultural, simbólica e numa forma

nova de apropriação econômica da natureza (LEFF, 2006). A racionalização do mundo, portanto,

estende-se aos domínios da natureza, entendida como materialidade (com diferentes sentidos

atribuídos a cada tempo histórico) com rebatimentos nas formas de produzir, de organizar o

território, na reprodução social (LEFF, op. cit.) e na formação de um ideário prospectivo e de uma

estrutura representacional e simbólica, enfim.

Como na formulação das possibilidades de fluxos entre o humano e o não-humano (isto

é, algo que o Ocidente chama de “natureza”), os domínios externos ao humano, aí incluídas

dimensões físico-ambientais e bióticas, são tratados de formas múltiplas. Deste modo, elementos

38

Para maiores detalhes a respeito, ver Almeida; Sprangel, 2002. Este seria um lado mais “rural”, digamos, da problemática.

Na verdade, há uma dimensão territorial que não é nada reverente à diferenciação rural/urbano e muito menos a variações de

padrão econômico ou escala. Assim, a presença de formas ainda pré-capitalistas de apropriação da terra sugere um conflito

social (e de temporalidades) em pleno curso na região. Isto faz sentido diante de toda a discussão sobre um virtual projeto de

“orla fluvial” para Belém, de modernização de seu porto, de controle das margens e de suas águas em geral.

Page 140: Tese Cidade e Agua Jximenes

140

“físicos” da paisagem regional, como seu litoral, sua divisão em bacias ou sua rede

hidrográfica, são acionados em formulações e imagens de interessante apelo político, articuladas

às narrativas contemporâneas sobre a escassez da água e, obviamente, atravessadas pelas várias

imprecisões e especulações atuais do debate ambiental. Por outro lado, a imagem significativa da

fauna regional é eventualmente citada como elemento análogo e, por vezes, constitutivo de

relações sociais específicas, em uma espécie de passagem de dimensões ocidentalmente

atribuídas como naturais em direção àquelas convencionalmente entendidas como parte do

domínio da cultura. Estes mecanismos, além de representarem narrativas sobre a realidade sócio-

ambiental regional, dizem respeito também às interpretações formuladas por agentes diversos em

torno de questões de interesse da área. Estas questões mobilizam agentes sociais, criam

justificativas e legitimidades políticas diversas para a intervenção institucional, territorial e sócio-

econômica. Denotam, ainda, a inserção da região, de forma particular, em concepções

contemporâneas de tratamento do ambiente (do qual ressaltaríamos, apenas por razões

explicativas, a sua dimensão dita “natural” e seus sentidos e práticas em relação aos humanos) e

do território (em que ressaltaríamos, pelas mesmas razões, os arranjos, as formas, as escalas, os

padrões e as relações sócio-políticas de instauração de fronteiras e limites, e as assimetrias entre

estes). A estas concepções correspondem, no presente estudo, algumas formas de intervenção

territorial.

3.6. O CASO DE BELÉM: INTERVENÇÕES TERRITORIAIS

A respeito de novas abordagens sobre o chamado ambiente urbano, devemos fazer

algumas considerações. A entrada da dimensão ambiental nas discussões sobre desenvolvimento

e território guarda, de certa forma, o dado histórico das mudanças nas formas de produção,

circulação e consumo advindas da etapa contemporânea do capitalismo, expandido a uma escala

e um volume de fluxos mais amplos. Discutir, “ambientalmente”, o desenvolvimento (e quais

acepções este termo vai merecer, dependendo do interlocutor) seria uma forma de colocar em

novos termos quais as maneiras contemporâneas de produzir a riqueza, de empregar o trabalho e

quais as representações sociais e estratégias políticas associadas. Na discussão, que tem óbvia

repercussão material, concreta, surgem narrativas que constroem o problema ambiental conforme

a abordagem do ambiente que corresponde à visão de determinado grupo (CAMPBELL, 1996;

SABATINI, 1997) — e de suas formas de apropriação e uso da natureza (CAMPBELL, 1996). Isto

Page 141: Tese Cidade e Agua Jximenes

141

implica em embates entre projetos políticos e técnicas aplicadas ao território e,

conseqüentemente, em certo grau de predominância de algumas concepções em detrimento de

outras.

Ilustração 24 Território continental de Belém-PA e parte de seu território insular. Fonte: CODEM (2000).

Page 142: Tese Cidade e Agua Jximenes

142

No caso deste trabalho a discussão é sobre aspectos da relação entre cidade e água.

A estruturação urbanística do caso analisado, Belém-PA, é avaliada em certos aspectos históricos

e espaciais, de modo a identificar fenômenos que atestem os condicionantes e processos

específicos de uma eventual problemática da urbanização em relação a este recurso ambiental,

visto também como substância, como veículo, como fator de produção e como elemento da

paisagem, dentre outras acepções correntes. Tenta-se, portanto, neste trabalho, estabelecer uma

discussão sobre processos recentes da relação entre cidade e cursos d´água, e sobre as formas

de uso e apropriação deste recurso, por falta de termo mais apropriado para o momento, no

escopo do processo de urbanização regional. Esta relação entre cidade e água é abordada, nesta

seção, a partir de fenômenos concretos e específicos, as intervenções territoriais que têm tido

lugar no município de Belém-PA e seu entorno.

De forma resumida é possível ensaiar uma descrição geral de formas de aproveitamento

direto da água na cidade de Belém-PA, pontuadas historicamente. No século XVII, por exemplo,

houve a instalação de fortificações militares para apoiar o projeto de defesa da costa (SANTOS,

2001); a partir da segunda metade do século XVIII, Belém se consolidaria como entreposto

regional, à época a partir das chamadas “drogas do sertão” (SANTOS, 1980); no século XIX os

fluxos comerciais persistiam, com a inclusão de outros produtos de relevância e a estruturação, no

final do século, do ciclo da exploração da borracha, que duraria até o início do século XX. Com a

construção do porto da cidade de Belém, no começo do século XX, surge uma infra-estrutura

adequada ao padrão técnico, e às exigências da época, para o fluxo de mercadorias e passageiros

(PENTEADO, 1973). Aspectos de modernização se instalam no território da cidade, embora

houvesse, há tempos, significativa presença de portos privados menores e de estruturas simples

para embarque e desembarque, ao longo das margens dos cursos d´água da cidade (PENTEADO,

1973).

A relação histórica da urbanização em Belém/PA com sua rede hidrográfica tem

contornos atuais diferentes, entretanto. Objeto de um debate em torno da modernização de sua

“frente ribeirinha”, a cidade de Belém tem abrigado basicamente dois eixos nas políticas públicas

voltadas para estes espaços. Estes eixos consistem na discussão sobre as políticas de

modernização portuária e a “revitalização”/”requalificação” do centro histórico e da sua porção às

margens do Rio Guamá e da Baía do Guajará, acompanhado de outros pontos à beira dos rios no

município. A modernização portuária e a “revitalização” são elementos de um processo de

reconfiguração dos espaços da chamada “orla fluvial” da cidade. Esta transformação dos espaços

Page 143: Tese Cidade e Agua Jximenes

143

do que se convencionou chamar de “orla fluvial”39

parece atender, no entanto, muito mais às

novas exigências de acumulação do capital na cidade contemporânea do que, propriamente, a um

projeto de democratização do território. Entretanto, o discurso veiculado acerca da modernização

portuária e, sobretudo, da revitalização das margens urbanas do rio e da baía, são invariavelmente

falas da desobstrução, da liberação e da garantia do acesso da população “ao rio” 40

. Neste

processo, as formas anteriores de ocupação têm no caráter de irregularidade jurídica do acesso à

terra a sua característica mais ressaltada:

A Gerência Regional do Patrimônio da União (GRPU) vai desobstruir 15 vias

ocupadas por empresas e residências na orla de Belém. A GRPU já começou a

notificar os responsáveis pelas ocupações. Segundo Neuton Miranda, titular da

gerência, é o tipo de ocupação que vai definir como a desobstrução será

realizada. “Ainda não chegamos até Icoaraci 41

, onde existem outros casos. Mas

identificadas as obstruções, verificamos que a maior parte das ocupações é feita

por empresas comerciais. Depois disso, começamos o trabalho de notificação.

Estamos estudando caso a caso. No caso das aglomerações residenciais, serão

apresentadas propostas para a relocação das pessoas dessas áreas para outros

locais. Já vamos chegar com um projeto pronto, apresentando qual a

possibilidade”, disse ontem. Quanto às empresas, que são a maioria das

ocupações, o órgão vai seguir o rito legal [...]

Segundo Neuton Miranda, a ocupação de vias públicas é irregular. “Depois que

essas pessoas ocuparam a área, foram ampliando essa ocupação, de forma

totalmente ilegal e trazendo prejuízos para a cidade”, avaliou o gerente,

ressaltando que mesmo não estando urbanizadas, as vias existem e devem ser

mantidas (O LIBERAL, 12 abr. 2006).

39

Lembrando a história feita por Corbin (1989), acerca da idéia de praia, de litoral e das sociabilidades estruturadas a partir

desta que é uma construção do final do século dezoito e, sobretudo, do século dezenove. A “praia” é inventada como local da

cura de males físicos e psíquicos e como refúgio da burguesia, confessamente “cansada” da tensão da grande cidade

industrial.

40

Ainda referente a Corbin (1989), podemos lembrar da transformação das características do litoral. As elites européias

revelaram-se desejosas de um modo de vida e de opções de consumo que encontram eco numa ideologia e num senso

comum de contato com a natureza — e de transformação da antiga rusticidade dos litorais das vilas de pescadores.

41

Nota do autor: distrito de Belém, local de visitação turística onde existe um porto de passageiros.

Page 144: Tese Cidade e Agua Jximenes

144

Ilustração 25 Vista de um dos antigos rios urbanos de Belém, atualmente denominados "canais" (no caso, o da

Travessa dos Caripunas, no bairro do Jurunas, na Bacia da Estrada Nova); espaços qualificados como degradados e

prontos para receber intervenções de requalificação do ambiente. Foto do autor, jan. 2007.

Por outro lado, há justificativas do processo de modernização da “orla” fluvial que

seguem por outros raciocínios. Isto também se deve ao fato de haver certa heterogeneidade na

ocupação das margens no município de Belém. Tem sido comum a caracterização da

irregularidade das ocupações na orla em termos da associação entre degradação ambiental,

pobreza e criminalidade:

É na Cidade Velha que está instalado o Mangal das Garças, feliz tentativa

governamental de se abrir vistas para o rio Guamá. Na ilharga 42

do Mangal que

(sic) está instalada uma pequena invasão, onde famílias ocuparam pontes sobre

o rio e construíram palafitas, para moradia sem a mínima estrutura de

42

O regionalismo presente nos discursos da “requalificação” do ambiente sempre é um recurso poderoso. Ora num totemismo

mistificador (convertendo população em “seres ribeirinhos”), ora numa conclamação cívica (no projeto coletivo, “de todos

nós”, em torno da modernização da “orla”), é construída uma engenhosa narrativa da perda e do resgate da identidade local.

Como apontado anteriormente, Bourdieu (1996a) coloca a dimensão política do regionalismo como ferramenta de

mobilização, convencimento e dominação. A propósito, “ilharga” significa lado, flanco, beira, e faz parte de um vocabulário

regionalizado.

Page 145: Tese Cidade e Agua Jximenes

145

saneamento, antes mesmo da empreitada governamental [...]

É no Porto do Sal, na Cidade Velha, que está instalada sobre palafitas a favela

Malvina, onde são notórios, a luz do sol ou da lua, o comércio de pasta de

cocaína e possivelmente outras drogas que tanto tem (sic) mudado o curso

normal de vida de jovens do bairro, acelerando o processo de desestruturação

familiar 43

(CHILE, 2006).

As próprias intervenções públicas se valem do mesmo discurso, inclusive colocando a

desobstrução como resultado de uma retomada do caráter público das margens fluviais da cidade.

Se inicialmente as “empresas” são colocadas como irregulares e como ocupantes indevidas do

espaço público, logo em seguida os moradores de ocupações mais pobres são também

enquadrados no projeto de remoção, embora com critérios e justificativa diferentes. A questão da

reapropriação das terras das margens fluviais da cidade parece dizer mais a respeito da

revalorização das águas na cidade do que propriamente a respeito de uma simples questão de

devolução de áreas públicas à população.

Parece-nos claro que o caso em questão é uma forma contemporânea de conflito

ambiental, mas de uma hipotética forma “urbana” de conflito. O território da chamada “orla fluvial”

do município de Belém possui certa diversidade de padrões e de usos do solo (NAEA/UFPA, 2005)

e as intervenções previstas e/ou executadas interferem diretamente nesta diversidade. A partir disto

podemos iniciar um processo de leitura do contexto, sobre a idéia do conflito instalado naquele

território.

Como citado anteriormente, dentre os usos listados nas margens fluviais do município de

Belém estão, por exemplo: estabelecimentos comerciais e de transporte de materiais de

construção; unidades habitacionais de baixo padrão construtivo (em geral pertencentes a

assentamentos informais e de baixa renda); portos privados e pequenas estruturas de embarque,

desembarque e atracação de embarcações; indústrias de transformação (em localizações

relativamente esparsas e em menor número) (NAEA/UFPA, op. cit.) Pode ser notado conflito entre

estes padrões e usos já históricos das margens fluviais da cidade e as concepções das

intervenções contemporâneas e futuras. Isto se acentua quando se constata um aspecto teórico

relevante: a dificuldade de se estabelecer efetivos direitos de propriedade coletiva sobre margens

de cursos d´água, bem como a dificuldade de implantar e administrar a eventual posse coletiva de

recursos naturais (SABATINI, 1997) que, no caso, dependem da interface com a terra.

43

A publicação em questão é financiada pelo Governo do Estado do Pará, sendo um periódico de promoção turística, de

eventos e negócios. A revista é pautada na publicidade e na emissão de discursos do projeto de “revitalização” da economia,

do território, da paisagem e do patrimônio histórico e ambiental do estado.

Page 146: Tese Cidade e Agua Jximenes

146

Autoridades e instituições públicas são chamadas ao debate e se manifestam acerca

da problemática e dos contornos das intervenções. Este “debate” também tem como componente

a produção de equipamentos urbanísticos e lugares públicos diversos em resposta a certa

demanda pela desobstrução da “orla” da cidade.

Algumas das intervenções urbanísticas e políticas ambientais e de ordenamento territorial

são descritas e comentadas a seguir. Os casos específicos servem para materializar as categorias

analíticas referentes às formas de desigualdade e conflito sócio-ambiental de cada forma territorial

de aproveitamento da água na cidade de Belém-PA. Dentre os casos há, portanto, parques

culturais e ambientais urbanos, zona portuária revitalizada, discussão sobre modernização

portuária e gestão da água. Quanto às intervenções urbanísticas, especificamente, pode ser dito

que o projeto Portal da Amazônia condensa boa parte dos conflitos (existentes de fato e/ou ainda

em potencial) entre os padrões de ocupação avaliados como inadequados e as novas concepções

para as margens fluviais da cidade. O Portal da Amazônia, intervenção que associa um projeto de

saneamento a outro de remodelação urbanística, seria uma forma recente de concretizar a

expansão da idéia genérica de “resgate” da “orla” fluvial da cidade de Belém-PA. A partir do Portal,

então, outros processos e suas questões poderão ser analisados.

3.7. PORTAL DA AMAZÔNIA

A Prefeitura Municipal de Belém apresentou, em março de 2006, um projeto básico para

uma área pobre da cidade, com extensão divulgada variável entre 6,15 e 6,25 km e atingindo parte

da zona mais adensada do município. Este projeto é chamado Portal da Amazônia (BELÉM, 2006a).

O Portal da Amazônia consiste em um projeto de urbanização, inicialmente a ser financiado pelo

Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O Portal, nos termos de um release lançado pela

Prefeitura Municipal de Belém, “[...] prevê reurbanização e saneamento da Bacia da Estrada Nova e

a construção da orla de Belém em toda extensão da Avenida Bernardo Sayão [...]” (BELÉM, op. cit.,

p. 1). A obra de reurbanização estaria associada a um projeto de macrodrenagem da bacia

hidrográfica da Estrada Nova, em uma região ao Sul da porção continental e urbanizada do

município. Esta obra de macrodrenagem acompanha um planejamento de décadas no sentido de

produzir infra-estruturas de saneamento (então básico e, hoje, ambiental) capazes de lidar com as

significativas descargas de águas pluviais e correntes fluviais a jusante, bem como administrar a

sua associação com os vetores, resíduos e dejetos.

Page 147: Tese Cidade e Agua Jximenes

147

Com o sítio físico da cidade entrecortado por igarapés, ou canais (ou “rios urbanos”),

a concepção de drenagem mostra-se relevante para o caso da cidade. Projetos de

macrodrenagem, portanto, têm grande alcance social e rendem dividendos eleitorais bastante

evidentes e, no caso específico do Portal da Amazônia, podem ser avaliados como uma extensão

de característica “social” mais evidente do que um projeto de urbanização viária com espaços

públicos associados. De certo modo, ao longo das discussões em audiências públicas do projeto,

a macrodrenagem da bacia da Estrada Nova era freqüentemente acionada como um elemento que

justificaria a necessidade da urbanização da área do Portal. O discurso de que o projeto era amplo

e não se resumia apenas em uma obra civil de caráter paisagístico e imagético, com apelo

turístico, estava presente nas falas de dirigentes municipais como o Prefeito e o então Secretário

de Urbanismo.

No campo do saneamento ambiental, o projeto também pode ser enquadrado nas

concepções contemporâneas à discussão sobre a modernização do atendimento e do próprio setor

no país. Esta discussão é feita principalmente a partir dos modelos tecnológicos e através das

formas de gestão do serviço. No tema da gestão do saneamento, discute-se amplamente a

titularidade das infra-estruturas, sistemas e serviços e os modelos de tarifação e controle social,

por exemplo (BRITTO, 2004), em crítica e revisão de modelos anteriores, tributários do regime

militar de 1964. O município de Belém-PA, na ocasião, apresentava-se como técnica e

gerencialmente capaz de encomendar, supervisionar e mesmo conceber, em linhas gerais, um

projeto de macrodrenagem de bacia hidrográfica urbana populosa com soluções inovadoras. Além

do aspecto técnico, a Prefeitura Municipal de Belém ressaltava suas intenções, no Portal da

Amazônia, em promover controle social, democratização das decisões e acesso à qualidade

ambiental, valores cultivados pelos novos marcos regulatórios do setor (BRITTO, op. cit.); vê-se,

entretanto, que estes elementos estiveram mais presentes na retórica do projeto do que em seu

desenvolvimento.

Especificamente, o Portal da Amazônia, nos seus cerca de seis quilômetros de extensão

viária, possui uma “plataforma urbanizada” de 69 m de caixa, o que totaliza cerca de 43 ha de área

urbanizada no projeto, “[...] incluindo duas pistas, passeio externo, estacionamento em ambas as

pistas, ciclovia, canteiro central (5 m), faixa destina a área de lazer e paisagismo (22 m) [...]”

(BELÉM, 2006b, p. 32). Ainda em termos descritivos, os esquemas gráficos de ilustração de

audiências públicas afirmam que a concepção do Portal inclui equipamentos urbanos, iluminação

pública e “portos com gestão pública” (BELÉM, op. cit., p. 32).

Page 148: Tese Cidade e Agua Jximenes

148

No projeto haveria intervenção em cerca de 10 km de canais e galerias de drenagem,

soluções de esgotamento sanitário em rede de 227 km de comprimento, associada a 21.500

ligações de fossas sépticas individuais e coletivas, 27.000 ligações domiciliares à rede de

abastecimento de água e uma intervenção viária de cerca de 55 km de extensão (BELÉM, op. cit.)

Como pode ser notado e conforme referência anterior, o esquema geral da concepção do Portal

vincula um projeto urbanístico a uma intervenção de saneamento ambiental do tipo

macrodrenagem de bacia hidrográfica.

Como medidas e diretrizes do projeto Portal da Amazônia são divulgadas, dentre as

chamadas concepções do projeto (Belém, op. cit.):

Dotar Belém de Orla Urbanizada (sic) com equipamentos urbanos e integração

de estruturas existentes; o sistema viário a ser implantado funcionará [...] como

binário da [...] Avenida Bernardo Sayão, que será revitalizada; melhoria das

condições ambientais da Orla (sic), que atualmente encontra-se bastante

degradada; instalação de comportas nos lançamentos dos canais de drenagem

da bacia hidrográfica — controle das cheias do Rio Guamá (BELÉM, 2006b, p.

30).

A preocupação com a legitimidade social foi evidente durante todo o processo de

divulgação do projeto. Na cidade de Belém-PA, após período das intervenções urbanas em áreas

centrais do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) no Governo do Estado, o debate sobre

a elitização da cidade fora travado e não mais saiu de foco. Deste modo, todas as intervenções

executadas a partir de meados da década de 1990 são, de qualquer modo, acompanhadas de

discussões sobre os efeitos sociais e econômicos, e sobre a extensão de seus benefícios em

termos coletivos. É desta forma que o projeto Portal da Amazônia é divulgado como um conjunto

de intervenções urbanísticas e infra-estruturais cujo direcionamento seria dado por quatro eixos:

recuperação e revitalização ambiental; mobilização social e redução da pobreza; planejamento

urbanístico; fortalecimento institucional (BELÉM, 2006b, p. 22). A partir do conteúdo dos materiais

de divulgação do projeto nota-se que a associação entre a macrodrenagem e a urbanização das

margens fluviais (popularmente denominadas de “orla”) cria motes articulando a função social e de

saúde do saneamento ambiental à possibilidade de soerguimento e dinamização econômicos

dados a partir da intervenção urbanística. Esta é, de certa forma, uma aplicação do conjunto de

medidas já tradicionalmente adotadas pelo planejamento estratégico de cidades acerca da relação

entre urbanismo e desenvolvimento urbano via grandes projetos de intervenção (VAINER, 2000),

com características recorrentes e, com freqüência, tratadas como se fossem modelares.

A bacia hidrográfica da Estrada Nova (ver Ilustração 26), área de intervenção dos dois

Page 149: Tese Cidade e Agua Jximenes

149

projetos integrados, tem aproximadamente 937 ha de área (GPHS; COSANPA, 2008), com uma

população de 212 mil pessoas no ano de 2000, estimada em cerca de 264 mil habitantes para o

ano de 2009 (GPHS, 2008). Isto totalizaria, portanto, 281 habitantes por hectare, a maior

densidade média dentre as bacias hidrográficas de toda a Região Metropolitana de Belém. Dos

bairros componentes da bacia há alguns cuja renda média domiciliar aponta para os estratos da

pobreza urbana na cidade (ver Tabela 2). O distrito administrativo44

a que pertence a bacia também

mostra desigualdade de renda domiciliar para a área da Estrada Nova em relação a distritos como

o de Belém (DABEL), onde estão situados bairros mais nobres da cidade (ver Tabela 1).

Ilustração 26 Bacia hidrográfica da Estrada Nova e contorno de bacias vizinhas, da área central (Reduto, Magalhães

Barata, Tamandaré) e da periferia próxima (Tucunduba), Belém-PA. Área de intervenção do proieto Portal da Amazônia.

Fonte: GPHS; COSANPA (2008); CODEM (2000).

44

Os distritos administrativos são recortes territoriais do planejamento urbano local, que possuem tradicionalmente

administradores locais, como se fossem sub-prefeituras. Obviamente este modelo de administração oscila em sua efetividade

de acordo com o perfil da gestão. Atualmente, por exemplo, as administrações distritais encontram-se esvaziadas institucional,

orçamentária e tecnicamente.

Page 150: Tese Cidade e Agua Jximenes

150

Distritos administrativos do município de Belém-PA. Renda média domiciliar (2000).

Distritos administrativos

Valor do rendimento nominal médio mensal das pessoas com

rendimento, responsáveis pelos domicílios particulares

permanentes (R$)

Distrito administrativo de Belém (DABEL) 2.476,95

Distrito administrativo do Benguí (DABEN) 562,63

Distrito administrativo do Entroncamento (DAENT) 930,77

Distrito administrativo do Guamá (DAGUA) 565,53

Distrito administrativo de Icoaraci (DAICO) 494,09

Distrito administrativo do Mosqueiro (DAMOS) 457,48

Distrito administrativo do Outeiro (DAOUT) 403,69

Distrito administrativo da Sacramenta (DASAC) 689,19

Tabela 1 Renda média domiciliar dos distritos administrativos do município de Belém comprova a situação de relativa

pobreza do Distrito Administrativo do Guamá (DAGUA), área populosa e entrecortada por canais urbanos, com

numerosos portos privados e informais e uma micro-economia bastante dinâmica em seus bairros. Fonte: Belém

(2006d).

O mesmo processo ocorre em relação aos bairros que compõem a bacia (ver Tabela 2).

No caso da Estrada Nova, os bairros do Guamá (com mais de 100.000 habitantes já em 2000),

Jurunas e Condor são mais representativos em termos populacionais e de usos do solo referentes

à irregularidade urbanística e fundiária aventada como grande motivo da reurbanização do Portal da

Amazônia. A presença da pobreza urbana e de padrões indesejáveis de uso e ocupação do solo

urbano surge nos discursos do projeto como fator de justificativa da intervenção.

Bacia hidrográfica da Estrada Nova, Belém-PA. Renda média domiciliar de

bairros componentes (2000).

Bairro Valor do rendimento nominal médio mensal das pessoas com rendimento,

responsáveis pelos domicílios particulares permanentes (R$).

Batista Campos 2.771,83

Condor 486,13

Cremação 1.134,47

Guamá 555,24

Jurunas 701,99

Nazaré 3.445,50

São Braz 2.290,69

Tabela 2 Renda média domiciliar de bairros componentes da Bacia da Estrada Nova, onde está situado o Portal da

Amazônia, mostra os bairros do Jurunas, do Guamá e da Condor com renda mais baixa do que os demais. Estes

bairros, entretanto, são mais populosos na bacia, em média. Fonte: Belém (2006d).

Curiosamente, restam contradições nos discursos, que vão alinhavando a retórica

corrente da justiça social na cidade juntamente com falas mais próprias da “reabilitação” dos

espaços para as novas formas de acumulação na cidade. Nos termos do representante da

Gerência Regional do Patrimônio da União:

No entanto, precisamos resolver uma questão grave que é a regularização

fundiária. Nosso objetivo é fazer com que toda a população possa usufruir da

beleza de nossa cidade, que hoje está sendo escondida por ocupações

Page 151: Tese Cidade e Agua Jximenes

151

irregulares [...] (BELÉM, 2006a).

Uma outra construção da problemática da “orla” fluvial do município é dada pela

Secretaria de Urbanismo: “Muito mais do que a construção de uma orla45

, é um projeto de

recuperação ambiental, importante para aquela área que está degradada social, econômica e

ambientalmente [...]” (BELÉM, 2006a).

Ilustração 27 Imagem de rio urbano/canal da cidade de Belém é apresentada como parte da problemática sanitária

local, ressaltando que trata-se de “canais abertos em áreas de baixadas”, o que aumenta a suscetibilidade do local a

inundações (BELÉM, 2006b, p. 17).

Por outro lado, as benesses sanitárias, paisagísticas e técnicas são ressaltadas como

virtudes do novo projeto de cidade. Diante do interesse na dinamização econômica, “gerando

emprego e renda” (BELÉM, 2006a), há apelos que residem em alguns traços de um projeto de

modernização:

45

Curiosamente, o termo “orla” já remete, nos dias de hoje, a uma espécie de modelo urbanístico sugerido para os espaços

das margens fluviais de Belém. Nestas “orlas” são incluídos equipamentos de amenidades, lazer e consumo, sobretudo. Ver

simulação computacional tridimensional (Ilustração 29).

Page 152: Tese Cidade e Agua Jximenes

152

A primeira etapa da construção da orla, que vai do Mangal das Garças46

até

as imediações da Avenida Fernando Guilhon (antiga Conceição), no bairro do

Jurunas47

, deverá iniciar ainda este ano.

Nesse trecho, que mede 2,4 quilômetros, a prefeitura já pode começar as obras,

já que não existe a necessidade de desapropriações.

Nesta fase, serão utilizadas as mais avançadas técnicas de engenharia, como o

aterro hidráulico, a exemplo de obras realizadas em Copacabana e no Aterro do

Flamengo, no Rio de Janeiro (BELÉM, 2006b).

Há vários pontos a comentar nos relatos. Em primeiro lugar, a coexistência do discurso

da regularização fundiária com a concepção da modernização de um urbanismo flexível, pontual,

estetizante e reformador, embora contemporâneo. Enquanto a prática, os modelos institucionais e

os instrumentos jurídicos que respaldam a regularização fundiária são considerados avançados

(CARDOSO, 2003) para lidar com a irregularidade da ocupação da terra, o modelo sugerido parece

na verdade apontar para um processo de racionalização, segundo critérios segmentados e

específicos, e requalificação do espaço das margens da cidade. Em termos mais técnicos,

urbanísticos propriamente, os desenhos e simulações computacionais48

mostram certo

acanhamento do projeto, do desenho urbano de sua concepção. Embora careça de maior

engenhosidade e inventividade projetual, digamos, nota-se que não é disto que se trata,

propriamente; o Portal da Amazônia seria uma resposta política a uma já antiga (de cerca de três

décadas, digamos) demanda fermentada entre os bem-pensantes locais e a elite econômica

regional, no sentido da “desobstrução” da “orla” fluvial da cidade. Em termos eleitorais, é

interessante a associação entre os calendários dos pleitos e os avanços e estagnações da obra

civil; ora acelerada, ora lenta, ou simplesmente paralisada.

O Portal da Amazônia, lançado em edital em 29 de março de 2006, fora apresentado

através de ampla divulgação e cobertura jornalística. A recepção do projeto, à época, dividia os

comentários, como é de praxe neste tipo de intervenção: de um lado aqueles tidos como

progressistas, defensores do projeto de modernização e substituição49

do arcaísmo da economia

informal da beira de rio; do outro, variações de alguma “oposição” às intervenções, embora de

46

“Parque ambiental” executado às margens da Baía do Guajará, às proximidades do Centro Histórico de Belém.

47

Bairro populoso e com significativa população de baixa renda de Belém/PA, situado nas imediações do Centro Histórico e

com limite para a “orla” fluvial da cidade e um de seus principais corredores de tráfego pesado, a Avenida Bernardo Sayão.

48

Informalmente diz-se no meio dos planejadores locais que o Portal é uma “obra sem projeto”, isto é, uma iniciativa de

urbanização e expansão do mercado de terras sem foco no planejamento das ações ou em sua gestão e coordenação. O

interesse principal é o de produzir e qualificar solo, no diferencial locacional das margens do Rio Guamá.

49

Um dos primeiros analistas acadêmicos a considerar sistematicamente o assunto, Saint-Clair Cordeiro da Trindade Júnior

chega a associar o conhecido termo da substituição e da invasão-sucessão da Escola de Chicago ao caso da modificação de

padrões e usos do solo nas margens fluviais de Belém (TRINDADE JÚNIOR; SANTOS; RAVENA, 2005).

Page 153: Tese Cidade e Agua Jximenes

153

caráter ainda incipiente, posto que a adesão à idéia da “desobstrução” da “orla” parece ter

alcance quase universal na cidade, como acontece usualmente entre os fenômenos sociais tidos

como sensos-comuns. Em termos de seu zoneamento, por exemplo, não havia maiores detalhes

da distribuição de usos do solo, de percentuais de cobertura vegetal ou de portes e modelos

urbanísticos a adotar na urbanização. Tampouco ficava claro o partido urbanístico a adotar; as

simulações computacionais eram plasticamente abertas, sobretudo nos vídeos de divulgação do

projeto, em que uma idéia genérica (que é, essencialmente, no que parece consistir a própria

noção de “orla” em Belém-PA, na acepção corrente) de abertura, de criação de espaços urbanos

públicos, era sobretudo vendida à cidade e a seus habitantes. Quanto ao desenho urbano proposto,

especificamente, parecia tratar-se de uma variação do parque linear urbano, embora com menor

tratamento paisagístico do que se poderia supor em uma intervenção de 6 km de extensão em uma

área densamente urbanizada e precária. Neste sentido, a falta de detalhamento do chamado

“projeto básico” divulgado no edital da licitação da obra seria justificável, senão em termos

administrativos, pelo menos no sentido conceitual; o Portal seria antes um manifesto pela

reurbanização da área e pela criação de condições objetivas para uma intervenção na bacia

hidrográfica e em suas margens de rios.

Ilustração 28 Esquema produzido por ocasião de audiência pública do projeto Portal da Amazônia ilustra o tratamento

urbanístico com cinco módulos vicinais, que dividem a margem do Rio Guamá ao longo da Avenida Bernardo Sayão.

No início do módulo vicinal 1, o parque ambiental Mangal das Garças. No final do módulo vicinal 5, o campus

universitário da UFPA. Fonte: Belém (2006b).

Page 154: Tese Cidade e Agua Jximenes

154

Ilustração 29 Simulação computacional, em perspectiva isométrica, de um dos módulos vicinais (tipos 1, 3 e 5) do

projeto Portal da Amazônia. Usos sugeridos e padrões de ocupação não chegam a ser detalhados, mas entende-se

que haja uma aplicação da idéia de parque linear urbano, com configuração convencional de praça. A obra se

assemelha em muito a uma extensa intervenção viária, sobretudo. Fonte: Belém (2006b).

Ilustração 30 Simulação computacional do módulo vicinal (tipos 2 e 4), componente do esquema urbanístico do

projeto Portal da Amazônia, da Prefeitura Municipal de Belém-PA. Fonte: Belém (2006b, p. 38).

Um dos argumentos técnicos a favor, digamos, da intervenção do Portal era a resolução

parcial da falta de corredores eficientes de tráfego na chamada Primeira Légua Patrimonial de

Belém. A conexão viária a ser produzida e a maior fluidez de tráfego que se pretende obter com o

Page 155: Tese Cidade e Agua Jximenes

155

aumento da integração espacial favoreceria a aceitação das intervenções pela população. Até

certo ponto esta questão exibe aquele traço da percepção dos trechos da cidade, em que o seu

espaço é percebido sempre em fragmentos, seccionado em temas, funções e territórios, de modo

que a experiência urbana seja, inevitavelmente, seqüencial, não apenas em termos sensoriais mas

também em suas implicações políticas e materiais. O apelo da reorganização viária, em uma

cidade de economia relativamente estagnada mas já de grande porte, logra êxito em conseguir

adesões diversas em torno do projeto estratégico de reconfiguração de funções e do sucesso do

novo mote de soerguimento econômico, portanto.

Ilustração 31 Traçado de corredores viários (em amarelo) e eixo da proposta de via para o Portal da Amazônia (em

vermelho). Delimitação de bacia hidrográfica da Estrada Nova (em magenta); área adensada e pobre deve sofrer

intervenção. Fonte: Belém (2006b).

Por outro lado, a Prefeitura Municipal teria representantes responsáveis por eventuais

indenizações, estimativas e acordos50

. Dentre estes, obviamente, o maior volume de trabalho era

devido às indenizações das casas e pequenos prédios (comerciais, residenciais, de uso misto) da

50

Esta informação foi dada a propósito de uma pergunta a respeito dos procedimentos de negociação com a classe

empresarial local. O projeto Portal da Amazônia parece ter a tendência a substituir e modificar usos e padrões de ocupação do

solo urbano, e isto pode apresentar conflitos com as atividades econômicas já em operação na área do projeto. A informação

foi dada por advogado envolvido em assessoria jurídica de empresas que possuem negócios na área do Portal, no primeiro

semestre do ano de 2009.

Page 156: Tese Cidade e Agua Jximenes

156

área51

. Em paralelo, entretanto, havia a necessidade de negociação com o empresariado local,

em que uma parte de sua elite econômica, ligada a exportações de produtos extrativistas, por

exemplo, era parte do processo. Segundo informações da pesquisa, a resolução da questão fora

adotada por uma via inusitada, porém eficiente em termos empresariais e econômicos; a Prefeitura

sugeriria alternativas de sobrevivência no novo mercado a ser criado com a intervenção e o

empreendimento deveria ser comprometido a subsistir nas novas condições, com a vantagem

locacional anterior (o contato com o curso d´água) coexistindo com o novo diferencial (a bacia

urbanizada). O novo regime exigia, portanto, alguma “resiliência”, digamos, do empresariado local,

historicamente ligado a alguns subsídios estatais e a certo grau de informalidade e licenciosidade

do Estado. Neste raciocínio, para materializar a questão usando um exemplo, atuais empresas de

transportes de passageiros e cargas (os “portos” atualmente existentes em grande número e

diversidade de padrões) deveriam, conforme relato de negociações específicas, reorientar seus

empreendimentos em direção ao setor de navegação particular. Estes estabelecimentos deveriam

mudar de perfil, saindo da condição de portos coletivos de passageiros e cargas para a situação

de marinas, ou portos particulares, associando garagens de embarcações com funções de

estaleiro. Como se pode notar, haveria certa elevação do padrão econômico do público a que se

destina aquela economia instalada nas margens do rio, a julgar por esta substituição de usos que,

aliás, já está em curso.

A irregularidade da ocupação da terra (fundiária) e dos modelos de uso e ocupação do

solo urbano (urbanística) sintetiza um traço definidor da urbanização no Brasil (CARDOSO, op. cit.) A

partir desta irregularidade é que se estruturam relações de dominação, segregação e exclusão no

acesso a bens, serviços e vantagens locacionais historicamente produzidos no território. Nas

cidades brasileiras, sobretudo nas regiões metropolitanas, o vínculo histórico entre baixo custo de

reprodução da força de trabalho e padrão desigual de bem-estar social (CARDOSO, op. cit.;

MARICATO, 2000) aponta para um processo de modernização peculiar, com “[...] mínimos sociais

não-universais [...]” (CARDOSO, op. cit., p. 45). reproduzidos nas economias urbanas.

51

A Secretaria Municipal de Habitação (SEHAB) seria responsável pelo gerenciamento do cadastro e definição do perfil das

populações a remanejar. Em geral o procedimento pressupunha entrevista, levantamento e cadastro de unidades, do tipo

residencial, misto, comercial, etc.

Page 157: Tese Cidade e Agua Jximenes

157

Ilustração 32 Ortofoto com o traçado viário do primeiro trecho do projeto Portal da Amazônia lançado; sobreposição de formas de urbanização, padrões de ocupação e representações

da "orla" fluvial. Fonte: PMB (2006c).

Page 158: Tese Cidade e Agua Jximenes

158

Ilustração 33 Segundo trecho do projeto viário e de urbanização do Portal da Amazônia, entre os bairros da Condor e do Jurunas, demonstra elementos da lógica do traçado da

"plataforma urbanizada". Fonte: Belém (2006c).

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159

Ilustração 34 O terceiro trecho do projeto está situado no bairro do Guamá, em trecho onde estão presentes alguns exemplos dos entrepostos chamados localmente de estâncias, nas

margens do Rio Guamá e na vizinhança do campus universitário da UFPA. Fonte: Belém (2006c).

Page 160: Tese Cidade e Agua Jximenes

160

Ilustração 35 Imagem que exibe a estrutura concebida de canais, áreas de acumulação e comportas; o projeto Portal da Amazônia se pretende ambientalmente mais compreensivo do

que as intervenções tradicionais do saneamento básico da década de 1980. Fonte: Belém (2006b, p. 25).

Page 161: Tese Cidade e Agua Jximenes

161

Outro traço importante no entendimento do projeto Portal da Amazônia é a relativa

flexibilidade de seus argumentos. Como parece haver nos dias de hoje certa incorporação dos

padrões desejáveis dos projetos ambientais, de infra-estrutura, urbanização e de natureza social,

estas “tecnologias” parecem pressupor quantidade limitada de itens básicos. Dentre estes itens há

a atual adoção generalizada da dimensão democrática e da participação social em tais projetos.

Além deste aspecto, os projetos também devem se auto-declarar sustentáveis, isto é,

ambientalmente duráveis no tempo, adotando processos de racionalização e uso socialmente

adequado dos recursos ambientais. Brenner e Theodore (2002) falam das chamadas “boas

práticas” dos projetos urbanos atuais, por exemplo. Nestes projetos, nenhum documento escrito

ou divulgado publicamente, e que pretenda conseguir adesão política a qualquer intervenção

urbanística, pode se declarar antagônico à sustentabilidade, ou se dizer não-democrático. As boas

práticas seriam autorizadas e chanceladas por instituições (BRENNER; THEODORE, 2002) capazes de

emitir discursos tidos como legítimos (BOURDIEU, 1998) naquele campo. É criado, a partir daí, um

conjunto de procedimentos e de formas de ação sobre o mundo com maiores chances de

avaliação favorável, pela possibilidade destas instituições e enunciados serem contemplados nos

projetos de intervenção. Assim, o novo padrão obviamente tem mecanismos de reprodução com

grau razoável de eficiência.

A simpatia generalizada à democracia nos documentos e projetos de ordenamento

territorial parece reagir, atualmente, a certas matrizes autoritárias do planejamento historicamente

constituídas e praticadas, inclusive no Brasil. Modelos recentes acabaram por reconstituir

justificativas em torno da atividade de se planejar ações de caráter público, o que lhes conferiu

novos ares e, principalmente, formas novas de aproximação com a esfera do mercado e as

interfaces com debates correlatos, porém não idênticos, como a dimensão ambiental. Os novos

procedimentos dos projetos urbanos, portanto, e do ordenamento territorial em geral, são

revestidos de mecanismos de produção de legitimidades políticas, de consensos

institucionalizados e de procedimentos de coletivização parcial e inclusão de grupos sociais

distintos em torno de idéias-força capazes de unir posições, inicialmente antagônicas no espaço

social, em direção à convergência de práticas. Estes procedimentos do planejamento participativo,

que podem ter suas origens remontadas tanto às formulações da chamada democracia radical

inglesa quanto à autocrítica feita mundialmente após a revisão política dos anos 1960, logo foram

incorporados também por correntes mais conservadoras, o que afinal é um fato já corriqueiro na

luta política, em qualquer posição ideológica que se adote. Atualmente, entretanto, interessa-nos

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162

avaliar a adoção quase orgânica do apêndice participativo aos projetos urbanos; interessa

considerar que tais projetos sequer são considerados completos sem as devidas consultas e

rituais políticos de aprovação institucional. Por um lado, obviamente, isto representa inovação

democrática; por outro, a sofisticação de mecanismos de produção de hegemonias, onde não

interessa saber como se deve receitar o procedimento, e sim como são produzidos os consensos

em torno das idéias divergentes.

Em outro ponto do debate e da aprovação de projetos e financiamentos junto a agências

como o Banco Mundial, por exemplo, está a dimensão ambiental. Nitidamente incorporada a

iniciativas de impacto territorial a partir de finais dos anos 1960, pelo menos, a discussão

ambiental experimentou notável aplicabilidade no planejamento territorial em diversas de suas

escalas e abordagens. O ambiente, metáfora tanto dos meios de produção, do substrato material

da riqueza social, quanto do abrigo permanentemente esotérico e utópico52

de certos discursos da

adesão geral (onde o planejamento participativo talvez encontrasse um ponto de convergência), foi

incorporado ao planejamento territorial inclusive pela via das previsões da escassez dos recursos e

da urgência da racionalização dos meios. Sobre o aspecto central deste trabalho, a relação entre

urbanização e a água, há um grande volume na discussão. A aplicação do debate ambiental às

medidas de preservação, conservação e gestão das águas representa uma das frentes mais

densas da entrada do ambiente no planejamento territorial. A idéia, por exemplo, de que se pode

gerir as águas na cidade representa uma ampliação da noção de ambiente e uma integração com

várias de suas formas de controle. Este controle se institucionalizou, entrou nas políticas de

ordenamento territorial e passou a configurar uma ampla interface que incorpora o monitoramento

ambiental. Como em diversas outras abordagens ambientais, acredita-se hoje ser possível

quantificar, modelar, prever e regular o uso dos recursos ambientais, em uma das várias metáforas

da economia em uso na política ambiental. Assim, a escassez socialmente construída da água,

associada à possibilidade técnica de regulação de seu uso, constrói um panorama onde a

sustentabilidade urbana (da água, inclusive, e sobretudo) é vista, eventualmente, como cerne de

uma suposta questão ambiental da cidade. O ambiente, então, entra como item obrigatório a

constar nas justificativas dos projetos de intervenção, segundo procedimentos crescentemente

codificados e logo tornados padrões de abordagem da realidade. No caso em estudo, houve

incorporação do ambiente de maneira incisiva, citada como imprescindível no planejamento e nas

52

Já bastante desgastado nas recorrentes etimologias que acionam oikos como casa, na raiz da economia e da ecologia.

Page 163: Tese Cidade e Agua Jximenes

163

intervenções urbanas da cidade. Em termos gerais e teóricos, isto parece ter relação com os

ajustes produtivos, com reorientações nas formas de uso e ocupação do território em função de

impactos decorrentes do livre mercado e com a capacidade de disseminação de concepções e

práticas de determinados agentes. Um fato objetivo é que a incorporação (e o amadurecimento

institucional) da política ambiental no ordenamento territorial, e no planejamento urbano, é um fato.

Esta forma de incorporação, entretanto, varia, conforme a tipologia sistematizada por Acselrad

(2001) acerca da relação entre sustentabilidade e cidade; ora quantitativa, ora culturalista, ora

funcionalista, ora intimamente relacionada com certa dimensão economicista da realidade.

Voltando aos argumentos do projeto Portal da Amazônia, recuperamos o raciocínio das

audiências públicas visitadas para a pesquisa, cujo material de orientação e divulgação exibe, em

conjunto com as falas, elementos conceituais do projeto. Haveria, de forma inteligente e

experimentada, uma incorporação dos padrões contemporâneos dos projetos urbanos e de suas

“tecnologias sociais” associadas. Deste modo, para a divulgação e a discussão dos eventuais

impactos futuros do Portal, falava-se claramente em delimitação, regulamentação e gestão de

novas Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) na Bacia da Estrada Nova. Além das ZEIS, de

resto amplamente justificáveis do ponto de vista técnico na área (mas padecendo do mesmo mal

que qualquer ZEIS costuma ter no Brasil, isto é, a regulamentação e o potencial efetivo de ser posta

em prática, inclusive na sua gestão), falava-se também em minimização de remanejamentos de

moradores; as densidades relativamente mais altas da bacia representavam um entrave técnico e

orçamentário-financeiro óbvio para amplos programas de remoção. Do mesmo modo, a equipe

técnica (plena de habilidade política, decerto, pois composta por dirigentes públicos com

experiência no ramo) divulgava o projeto do Portal com o argumento de que a economia local seria

preservada ao máximo na área, com respeito ao negócio local (BELÉM, 2006c):

Ao longo dos últimos 50 anos houve um crescimento selvagem na ocupação do

solo urbano de Belém, com crescente impermeabilização e ocupação de áreas

de risco (BELÉM, 2006b, p. 7)

[...]

As atividades ribeirinhas serão mantidas através de três Terminais Aquaviários

distribuídos ao longo da Orla do Rio Guamá (BELÉM, 2006b, p. 58).

De modo contraditório, as imagens de divulgação dos esquemas urbanísticos do projeto,

bem como suas plantas, não parecem contemplar propriamente o “negócio local” ou o padrão da

economia instalada na bacia. Por outro lado, referências variadas a conflitos no remanejamento de

moradores demonstram tensões no projeto que são típicas de qualquer outro programa

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164

equivalente, embora com algum retardo de tempo quanto ao início das obras.

Audiência Pública sobre Portal da Amazônia

Foi impedida de continuar por causa de embates políticos a audiência pública

realizada, ontem a tarde, 16, pela Câmara Municipal de Belém, no salão da Igreja

de São Judas Tadeu, no bairro da Condor [...]

Em pelo menos dois momentos, as discussões foram interrompidas por

confusões e bate-boca gerados por embates políticos entre dois grupos – o

favorável [...] (N. do autor: ao prefeito municipal de Belém) e o contrário a

administração municipal.

[...]

O líder comunitário, José Maria, então teve o direito à palavra. Confirmou que a

prefeitura realizou várias audiências para esclarecer as comunidades acerca do

Portal da Amazônia, onde as pessoas tiveram respeito e oportunidade para falar

e ouvir. Falou também que a maior preocupação do gestor municipal está

relacionada ao remanejamento das famílias e lembrou que o povo da Estrada

Nova está esperando por essas obras há 50 anos e só [...] (N. do autor: o

prefeito municipal) teve coragem de tocar esse programa. “Agora chegou um

prefeito capaz de fazer isso. Porque os outros não fizeram?”, questionou, ao

mesmo tempo em que era vaiado pelos moradores presentes e aplaudido pelo

grupo que estava defendendo [...](N. do autor: o prefeito municipal). Terminou

dizendo que os moradores estão tranqüilos e a obra vai acontecer.

[...]

Quanto ao projeto da Estrada Nova, (N.do autor: vereador do município de

Belém, de partido aliado ao do prefeito) afirmou que faria grandes correções

acerca desse debate e encaminhou pergunta direta ao morador dos bairros que

devem ser beneficiados diretamente pelo Portal da Amazônia.

“Quando vocês moradores tiveram oportunidade de ter uma obra inédita na área

de vocês e que vai mudar a vida de cada um? Essa obra – concebida totalmente

na administração de (N. do autor: o prefeito municipal) – era para ser louvada e

não repudiada”.

Completou ainda [...] (N. do autor: vereador citado) que ninguém sequer tinha

mexido nessa bacia da Estrada Nova, uma das maiores de Belém e ratificou a

participação popular nas discussões em torno do projeto, mencionando as

diversas palestras promovidas sobre o tema em vários locais e entidades [...]

Mas, outro pronunciamento que voltou a esquentar os ânimos e fez com que a

sessão fosse encerrada foi de um morador e da esposa, despejados da casa

onde residiam, na Estrada Nova. O terreno, disse ele, exibindo os documentos,

foi repassado pela União à Prefeitura, que lhe deu 15 dias para que se

manifestasse sobre o pedido de retirada, pois o projeto passaria pela área onde

está construída sua casa. O morador relatou que em quatro dias o batalhão de

choque chegou e fez o despejo na marra, do casal e dos filhos. Ele pediu muito

cuidado aos moradores para que não viesse a ocorrer com outras famílias o que

aconteceu com a dele. “Só peço agora que sejamos indenizados justamente, a

minha casa foi avaliada em 50 mil reais e até hoje não recebi um tostão”. Sobre

essa denúncia, a assessoria da prefeitura, esclareceu que a terra pertencia a

União, sob a gerência regional do patrimônio da União, que teria sido o

responsável pela retirada do morador. A Prefeitura, segundo a assessoria,

apenas deu apoio técnico, cedendo caçamba e homens da guarda municipal. O

atual coordenador do projeto da Estrada Nova, [...], disse que o remanejamento

dos moradores vai acompanhar as orientações do Bird, banco financiador da

Page 165: Tese Cidade e Agua Jximenes

165

obra (BELÉM, 2007, p. 1. Grifos do autor.).

Nos vídeos de divulgação e nas perspectivas do Portal, como dito, o “negócio local” não

se encontra propriamente preservado, à exceção de alguns postos de gasolina, pela avaliação

possível de se fazer a partir de esquemas pouco específicos e não detalhados, da fase inicial do

projeto. Junto à Secretaria Municipal de Habitação (SEHAB) de Belém houve a informação de que

os projetos de remanejamento estavam sendo elaborados caso a caso, diante da avaliação das

demandas e do quantitativo de moradores necessário, o que não havia sido dimensionado de

forma realista na etapa das audiências públicas. Este ponto, inclusive, representara uma das

maiores polêmicas na divulgação de dados dos impactos do Portal, pois houve divulgação de

remanejamento de apenas 115 famílias, além de 1.800 lotes (ver Ilustração 36) genericamente

destinados a “reassentamento” (BELÉM, 2006b, p. 52), nas proximidades. Considerando

aproximadamente 30% da área da bacia em terreno alagável, e uma população de cerca de 200 mil

pessoas, entende-se que este quantitativo pode ser deficiente.

Ilustração 36 Esquema de remanejamento da época de audiência pública sobre o projeto Portal da Amazônia na

Universidade Federal do Pará. Planejamento não cumprido das remoções, e andamento da obra fora do cronograma

divulgado, porém já em situação de conflito social. Fonte: Belém (2006b, p. 48).

Remanejamento até março de 2007

Remanejamento até maio de 2007

Remanejamento até julho de 2007

Remanejamento até outubro de 2007

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166

Ilustração 37 Esquema de remanejamento do Portal da Amazônia, da SEHAB, em blocos verticais de apartamentos.

Foto: Cláudia Ribeiro (nov. 2008).

Este novo projeto — ilustrado por peças publicitárias, esboços da concepção urbanística

e materiais similares — aponta para a construção de facilidades e de um espaço urbano dotado de

atratividades diante do setor turístico. Além disso, mostra a tendência rumo à elitização da

ocupação das margens fluviais de Belém, em paralelo a uma caracterização depreciativa,

valorativa, da pobreza urbana e da situação de carência em que boa parte da ocupação espontânea

e irregular está inserida. Em outros termos, a “orla” precisa ser “retomada” jurídica e

territorialmente pela “cidade”, que pretende, de forma coesa, a implantação de um projeto “[...]

que é um sonho antigo da população de Belém e que vai dar uma nova cara à cidade [...]” (O

LIBERAL, 29 dez. 2006), segundo depoimentos de dirigentes da administração pública municipal. A

contradição entre os discursos e as concepções dos projetos físicos persiste, por exemplo, na fala

da representação do setor de turismo local: “[...] com a obra, a orla vai voltar ao domínio público,

mas o projeto também é muito importante para resgatar a dignidade da população daquela área,

que está abandonada há várias décadas” (O LIBERAL, 12 abr. 2006).

Page 167: Tese Cidade e Agua Jximenes

167

Ilustração 38 Proposta de condomínio horizontal na área de "orla" fluvial de Belém/PA. Contradição evidente entre a

"justiça social" dos discursos e o projeto físico hegemônico. Fonte: Movimento Orla Livre (2005).

As simulações computacionais feitas por publicitários ligados à discussão espontânea

sobre a “requalificação” da “orla” de Belém representam uma síntese expressiva deste projeto de

desobstrução e reconfiguração (ver Ilustração 38; Ilustração 39). Em uma série de imagens de

intervenções urbanísticas ou paisagens urbanas já devidamente modificadas por estas

intervenções (com assentamentos mais “adequados” ao novo padrão), o material mostra uma

parcela da cidade indo ao encontro das aspirações da elite local. Estas aspirações incluem

marinas, mobiliário urbano “temático”, o trabalho imagético em torno do signo do Muiraquitã,

estilizado, para a composição do pavimento no passeio, um museu (equipamento urbano

indefectível em intervenções de “revitalização”, “requalificação” ou “reabilitação”, seja qual for o

modelo) e até mesmo a epítome do efeito de transformação urbana por excelência: a alteração do

uso residencial. Em determinada imagem surge, portanto, um condomínio horizontal em área que

parece estar situada às margens do Rio Guamá, onde hoje já reside quantidade razoável de

pessoas, diga-se.

Nas simulações citadas um recurso interessante é o da coexistência dos elementos

regionais com aqueles próprios do padrão da revitalização de áreas consideradas degradadas.

Page 168: Tese Cidade e Agua Jximenes

168

Embora haja uma tendência inicial de remoção de usos e padrões, um discurso contextual

permeia o exercício de imaginação e modelagem digital, de modo que é produzido um duplo efeito:

não se adere à já desgastada postura do bulldozer urbano, que faz tabula rasa do território de

intervenção, mas é produzida uma intervenção incorporando referências (visuais, estéticas,

icônicas, na verdade) regionais, apólogas do lugar e reverentes à situação sócio-cultural local. Isto

produz diálogo entre o usuário, consumidor visual das imagens, e produz afinidades entre padrões

estéticos e possibilidades de decodificação de seu conteúdo. O entendimento e a “empatia” entre

os códigos das imagens representam tanto as aspirações de reconfiguração urbana da elite local

quanto à expectativa quase generalizada de soerguimento econômico da cidade. Deste modo, as

modelagens digitais de uma beira de rio urbana têm este mecanismo, ao mesmo tempo empático,

demagógico, facilmente decodificável e familiar aos olhos dos locais; é modificação da cidade,

mas com repertório visual regionalizado, o que lhe confere certa legitimidade e um verniz mais

palatável. Faltam apenas, na representação da nova “orla” periférica remodelada, as torres de

edifícios residenciais, aventadas amiúde por alguns representantes da elite econômica local como

símbolos desejáveis de modernidade em Belém-PA.

Ilustração 39 Proposta livre para imediações do Centro Histórico de Belém e “orla” da cidade. Nota-se uma marina,

píeres, estaleiros e espaços públicos onde hoje, provavelmente, estão as estâncias, os portos informais e o comércio

de bairro. Fonte: Movimento Orla Livre (2005).

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169

Ilustração 40 Modelagem computacional exibe museu aquático algo semelhante à famosa Ópera de Sydney, além do

passeio com motivos regionais estilizados. Fonte: Movimento Orla Livre (2005).

Curiosamente, a possibilidade de remoção, aventada com muita freqüência, recebe

abordagens variadas ao longo das falas dos interlocutores do amplo projeto de “requalificação”

das margens fluviais de Belém. Diante da impossibilidade de coexistência dos moradores com o

projeto urbano de atratividade turística, delineia-se uma óbvia contradição; e a população terá sua

“dignidade” resgatada (BELÉM, 2006a). Sobre este tópico, vale a pena comentar a estratégia de

intervenção: o projeto geométrico prevê a urbanização de terras hoje alagáveis, sobretudo no início

da nova via na “orla” fluvial. O citado trecho de 2,4 Km corresponde a uma região de pequenos e

médios empreendimentos comerciais, de serviços e de ocupação irregular. Analisando o traçado

geométrico do sistema viário (ver Ilustração 32; Ilustração 33; Ilustração 34; Ilustração 35), nota-

se a via projetada à frente da ocupação atual; é razoável deduzir que os usos existentes devam ser

eliminados progressivamente, para dar lugar ao novo projeto — pelo qual toda a “cidade” anseia

(BELÉM, 2006b). No citado trecho inicial do projeto há maior incidência de entrepostos de carga e

passageiros, em geral dependentes de estruturas físicas de conexão com o Rio Guamá. Com a

obstrução destas estruturas (trapiches, diques flutuantes, rampas, etc.), e conseqüentemente a

supressão de suas possibilidades de conexão e extensão portuária entre o terreno e o curso

d´água, elimina-se a funcionalidade dos empreendimentos atuais instalados no local. O discurso

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170

oficial, entretanto, sustenta que o “negócio” (isto é, as atividades econômicas) local será

mantido no projeto (BELÉM, 2006a; 2006b; 2006c) e que haverá diálogo com todos os moradores

e manutenção dos residentes (idem, ibidem), o que soa paradoxal.

Assim como nos produtos da indústria cultural (HORKHEIMER; ADORNO, 1985), os

“produtos” do planejamento territorial, com óbvias repercussões sociais e políticas, são

aprimorados ao longo do tempo, e suas estratégias assimilam inovações no gosto e também

efeitos da crítica (idem, op. cit.) Isto se nota na evolução das concepções de projetos de

urbanização das agências multilaterais, por exemplo, onde idéias como a “participação popular”, o

“controle social”, a “inclusão”, a “sustentabilidade” ou a “revitalização” são acionadas na medida

do surgimento dos problemas e da crítica ao conservadorismo das políticas. O projeto Portal da

Amazônia, tendo financiamento parcial do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID),

enquadra-se neste caso, portanto. A retórica de um ex-secretário da gestão municipal —

engenheiro sanitarista de festejada reputação no setor, e então coordenador do projeto — era

justamente no sentido da democratização da intervenção territorial. A habilidade política de

condução do processo também reside na flexibilidade para lidar com os argumentos e termos

“certos” do debate, dependendo da arena de discussão (BOURDIEU, 1996a); a Universidade, o

Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia ou a Associação de Bairro. Na prática,

então, em audiências públicas visitadas e registradas (no CREA e na UFPA), houve reafirmação

constante do caráter democrático do Portal da Amazônia, com o “compromisso” assumido diante

das comunidades (acadêmica e “tecnológica”): não eliminar a economia local, não promover

políticas maciças de remanejamento, impedir a especulação imobiliária, remanejar um mínimo,

mas em qualidade ambiental digna, preservar a “característica local” das áreas atingidas — no

plano cultural, diga-se (BELÉM, 2006b; 2006c). Resta, portanto, a citada contradição entre o padrão

urbanístico existente e aquele sugerido pelo “desejo de litoral” das elites (CORBIN, 1989) locais,

atendido nos esboços divulgados do Projeto Técnico Básico.

Há, nas cidades brasileiras, um processo de reprodução da desigualdade e da assimetria

no padrão de acesso aos recursos, benesses e bens coletivos. Esta reprodução encontra, por

muito tempo, certa permissividade dos agentes produtores do espaço urbano, como o Estado e

parte do capital imobiliário (CARDOSO, 2003). Isto ocorre a partir de uma articulação entre produção

de novas áreas, expansão urbana, baixo custo de reprodução da força de trabalho, desigualdade de

acesso a bens e serviços e um perverso laissez-faire relativo à provisão de habitação e infra-

estrutura (CARDOSO, op. cit.)

Page 171: Tese Cidade e Agua Jximenes

171

No caso em questão, a informalidade e a irregularidade do acesso, da posse, da

propriedade e dos padrões de assentamento também são históricas. Em Belém/PA a ocupação das

margens fluviais é composta por agentes diversos, incluindo estratos da economia que subsistiam

em paralelo a atividades mais modernizadas que, no entanto, nem sempre entravam em conflito

“sócio-ambiental” (SABATINI, 1997) com a ocupação irregular das margens do rio e da baía na

cidade. O próprio conflito, aliás, também é historicamente construído, embora possa ser

subsumido a partir das relações de classe.

Em Belém-PA a estruturação urbanística, em freqüente relação com a rede hidrográfica

regional, e a sua articulação à rede urbana demonstram possibilidades da relação entre cidade e

água. Na cidade há razoável diversidade de usos do solo e de padrões de assentamento nas

margens fluviais, mas podem ser identificadas algumas regularidades. Há maiores incidências do

setor terciário quanto às atividades econômicas de beira de rio no centro da cidade; mais ao Sul

costumam predominar atividades de transporte e comércio, variando entre empreendimentos de

maior porte e pequenos negócios informais, além de uma área mais extrema, com terras de

propriedade pública e condições ambientais mais preservadas; nas margens do lado Oeste, em

geral, além da presença do terciário (em entrepostos comerciais e de transporte e pequenos portos

de passageiros), ocorre maior incidência da indústria de maior porte, até um distrito de interesse

turístico do município; no lado Norte das margens da cidade há alguma continuidade em relação à

porção Oeste, com o acréscimo de áreas rurais e ribeirinhas e a existência de pequenas estruturas

portuárias (TRINDADE JR.; SANTOS; RAVENA, 2005).

Page 172: Tese Cidade e Agua Jximenes

172

Ilustração 41 "Plataforma urbanizada" do Portal da Amazônia; alteração radical de usos e padrões do território. Fonte:

Belém (2006c).

No entanto, a coexistência destes usos, se obviamente não podia ser “harmônica”, não

chegara a configurar propriamente um conflito declarado, sobretudo na esfera pública, como na

relação com os órgãos do Estado ou através da imprensa. Embora houvesse experiências

históricas de remoção de atividades e populações ao longo dos séculos na cidade, sobretudo

quando da construção do porto (PENTEADO, 1973), parece existir um contexto de certa forma

inédito; o surgimento da idéia de “obstrução”, ligada à mudança do padrão econômico regional e à

crise do esgotamento da economia desenvolvimentista dos anos 1970. A partir de novos marcos

da acumulação e também a partir da falência do modelo desenvolvimentista no Brasil (e,

obviamente, na Amazônia) é que estas disputas passam a ser de fato travadas, no caso de Belém.

Em suma, o que antes era permitido de forma “licenciosa”, digamos, hoje se tornou obstáculo,

impedimento; atraso e irregularidade da modernização e do crescimento econômico. A curiosa

contradição da coexistência de empresas às proximidades de populosos assentamentos precários,

na faixa das margens fluviais de Belém, indica o potencial do conflito em torno das margens da

cidade e, sobretudo, em torno do projeto de modernização, “revitalização”, “requalificação” e do

aproveitamento econômico existente, além da questão habitacional.

Page 173: Tese Cidade e Agua Jximenes

173

Maricato (2000) assinala que há certo “padrão” nos assentamentos informais e

irregulares da pobreza urbana no Brasil. Este padrão, por assim dizer, pode ser associado, dentre

outros aspectos, à localização em áreas consideradas “de risco” geotécnico e/ou hidrológico, às

áreas de proteção/preservação/conservação ambiental e às terras públicas em geral. Este

elemento, objeto de constatação empírica totalmente calcada numa leitura da economia política

sobre a cidade, nos permite avançar sobre nossa questão particular, e está textualmente presente

inclusive nos materiais de divulgação do projeto Portal da Amazônia (BELÉM, 2006b, 2006c).

Em Belém-PA o padrão, em certos aspectos, se confirma. A questão é como áreas

habitadas por estratos da pobreza urbana passam a ser visadas pelo capital imobiliário, priorizadas

como novas fronteiras da urbanização, como focos de processos da modernização urbanística

contemporânea. Sobretudo, interessa a tendência à reapropriação de diferenciais notáveis de

determinados espaços da cidade, como fica claro na construção da própria idéia de “orla” fluvial

na cidade. Em última instância, constata-se um embate entre formas distintas de apropriação dos

recursos naturais (no caso, a água e a acessibilidade da rede hidrográfica, além da vegetação e de

aspectos propriamente paisagísticos) e de visões da cidade. O que era espaço “residual” de

habitação, espaço de exploração comercial e de transportes e conexões para determinados grupos

pode se revelar potencial de acumulação e novas possibilidades em marcos contemporâneos para

outros. A partir disto, pensar a possibilidade do “tripé” de Campbell (1996) — crescimento

econômico, justiça social, preservação ambiental, todos como elementos de uma múltipla

“sustentabilidade” urbana — torna-se muito mais complexo. Este tripé seria uma possível

aplicação da idéia — assumidamente genérica e algo inespecífica, segundo o próprio autor — de

sustentabilidade ambiental ao planejamento urbano. Seria, portanto, uma questão de fazer as

formações territoriais urbanas e seus grupos sociais e econômicos crescerem, serem

ambientalmente adequados (onde residem imprecisão e várias dúvidas teóricas) e socialmente

justos.

Isto é pertinente ao caso porque as próprias concepções da economia, da ecologia

urbana e da justiça social na cidade adquirem contornos diferenciados, e conflituosos, entre os

grupos e seus espaços. Desta forma, segundo uma correlação de forças expressa nos conflitos e

tensões na cidade (sobretudo a respeito do solo urbano), a tendência hegemônica aponta para a

efetiva “requalificação” das margens fluviais da cidade de Belém-PA e de seus espaços. Isto é,

também aponta para definições do “tripé” que devem estar mais próximas da idéia de atratividade

de investimentos, da idéia de que se pode “devolver” tais espaços “de orla” “para a cidade” e,

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174

enfim, de que esta seja uma medida de “resgate” do contato com o elemento natural definido

como emblemático da “identidade cultural” do lugar. Em última instância, são todas construções

intimamente vinculadas a projetos políticos que, por conseguinte, são também ambientais (HARVEY,

1996b). Seria mais uma chave de análise da realidade onde a dimensão ambiental torna-se

imperiosa, por caminhos diversos.

A introdução das ciências ambientais (ou de conhecimentos técnico-científicos

correlatos) no planejamento urbano provoca reflexões e evidencia contradições. Se a

sustentabilidade das cidades poderia ser vista como processo de busca de

preservação/conservação de recursos ambientais, crescimento econômico e justiça social

(CAMPBELL, 1996), o discurso ambientalista constrói o ambiente, com freqüência, como um

contexto que paira sobre a sociedade, de forma indiscriminada. Este ambiente, política e

hegemonicamente construído como uno e coeso (ACSELRAD, 2004b), apresenta contradições no

plano da apropriação material de seus itens (ou recursos) e na legitimidade de ações de

intervenção. Muitas ações consideradas “sustentáveis” no campo do planejamento urbano

representam, não raro, reconfigurações territoriais e relocalizações de atividades econômicas que

reproduzem formas diversas de desigualdade no acesso, no uso e na apropriação do ambiente e

de seus itens, como a água. A sustentabilidade, aplicada ao planejamento urbano, seja pela ótica

da conservação e gestão de matéria e energia, pela tentativa de preservação do patrimônio cultural

ou pelo exercício participativo da política urbana (ACSELRAD, 2001), tem resultado em soluções

concentradoras de benefícios no território. Do mesmo modo, padrões de assentamento e

territorialização de atividades econômicas e arranjos espaciais diversos na cidade são submetidos

à apreciação de uma série de exigências já codificadas (BRENNER; THEODORE, 2002), e que

estabelecem a legitimidade do que pode ser incluído nas práticas aceitáveis ou desejáveis no

campo da cidade. O ambiente urbano, entretanto, não é objeto de distribuição eqüitativa entre os

impactos e os desdobramentos territoriais e, por conseguinte, sócio-econômicos (decorrentes dos

arranjos, dos padrões de assentamento e acesso a técnicas) ou políticos (na capacidade de

decisão e na influência sobre os perfis de investimento e prioridade) das medidas de intervenção

territorial. Assim, intervenções tecnicamente consideradas sustentáveis podem fazer parte da

reprodução da assimetria na apropriação do ambiente urbano. Este mesmo ambiente, então, não

seria uno e coeso (ACSELRAD, 2004b), mas heterogêneo, com localizações produzidas

historicamente.

Ainda na dimensão ambiental, o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) (BELÉM; SEURB,

Page 175: Tese Cidade e Agua Jximenes

175

2006) da intervenção do Portal da Amazônia esclarece vários pontos. Uma descrição sucinta

do projeto sintetiza seu conteúdo:

A Orla da Estrada Nova é parte do projeto Portal da Amazônia, que consiste no

saneamento da Bacia da Estrada Nova através da implantação de um projeto de

macrodrenagem que deve beneficiar cerca de 10 bairros de Belém através da

melhoria das condições de saneamento básico e da eliminação de enchentes. A

Orla da Estrada Nova pretende abrir janelas para que a população local recupere

o contato e o acesso ao Rio Guamá, de maneira ordenada, promovendo a

revitalização de uma área atualmente ocupada por palafitas e atividades

industriais e portuárias (BELÉM; SEURB, 2006, p. 1).

O RIMA da intervenção do Portal e da própria bacia da Estrada Nova tem conteúdo

tecnicamente adequado, dentro do padrão e dos itens corriqueiros de estudos desta natureza;

divide a realidade local em meios (uma curiosa terminologia do século XIX) físico, antrópico e

biótico (BELÉM; SEURB, 2006). Neste aspecto, o Relatório destina às pessoas (o meio antrópico)

as diretrizes de reassentamento da população que habita as palafitas da Estrada Nova e

requalificação urbanística da Área Diretamente Afetada (BELÉM; SEURB, 2006). Dentre os impactos

potenciais à população, entende-se que haja receio dos impactados quanto aos efeitos do projeto,

sobretudo na desarticulação das relações econômicas e sociais estabelecidas no local (BELÉM;

SEURB, op. cit.) Além deste aspecto, o Relatório indica a possibilidade de “transtornos

temporários” (BELÉM; SEURB, op. cit., p. 39) decorrentes do reassentamento; as “dificuldades de

reinserção social” da população atingida (Idem, ibidem, p. 39); a extensão dos impactos às áreas

lindeiras ao projeto; os riscos e incômodos associados ao trânsito e as “alterações na paisagem”

(BELÉM; SEURB, op. cit., p. 39). Em termos econômicos, concebe-se a possibilidade de “[...]

interferência com atividades de comércio e serviços dependentes do rio e da atividade portuária

[...]” (BELÉM; SEURB, 2006, p. 39). O Relatório identifica em seu levantamento de campo poucas

resistências ao projeto, mas reconhece haver uma preocupação generalizada quanto à manutenção

do custo de permanência e reprodução social na área, após a intervenção (Idem, op. cit.)

A população da chamada área diretamente atingida é caracterizada como “consolidada”

em tipologias de ocupação mais adensadas, inclusive em termos domiciliares (Idem, op. cit.) As

relações familiares variadas também são objeto de registro, como aquelas de natureza

homossexual, de casais separados porém residentes no mesmo domicílio, da coabitação de

famílias diferentes, e toda ordem de “heterodoxia” avaliada pela equipe. O referido estudo

considera que as alterações na estrutura urbana, decorrentes do projeto, devem incluir a criação

de um novo “pólo de lazer e atração turística”, além de modificações nos padrões de uso e

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176

ocupação do solo e a ocupação de “vazios” urbanos por unidades habitacionais populares

(Idem, op. cit., p. 69). No geral existe uma avaliação que combina impactos positivos (aumento da

cobertura dos serviços de saneamento, da disponibilidade de equipamentos urbanos) àqueles

previsivelmente tidos como negativos em projetos de urbanização, como a citada desarticulação

das estratégias de sobrevivência dos residentes (Idem, op. cit.)

Por fim, resta o ponto referente às tecnologias de saneamento da macrodrenagem da

bacia hidrográfica que é objeto de intervenção do projeto. Inicialmente o projeto Portal da

Amazônia fora divulgado como experiência que adotaria algumas alterações recentes, sobretudo na

forma de tratamento de canais urbanos (ver Ilustração 43; Ilustração 44). Neste caso, a tecnologia

de revestimento de canais, especificamente, era o ponto mais trabalhado. Além deste aspecto

técnico, haveria certa variedade das formas, geometrias, revestimentos, tecnologias e tratamentos

para constituir o sistema de drenagem da bacia, de modo a conciliar os canais/rios urbanos às

redes de microdrenagem existentes ou em fase de projeto. Segundo certa revisão do padrão de

projeto e execução de infra-estruturas de saneamento ambiental urbano, sobretudo a partir da

reavaliação do “padrão” PLANASA53

(BUENO, 2005) e de seu paradigma excessivamente tecnicista,

mecânico e talvez também unicamente “hidrodinâmico”54

, procedeu-se, no Brasil e em vários

outros países, a um amadurecimento de outras formas de intervenção. Estas intervenções são

mais claramente identificáveis em projetos paisagísticos e, principalmente, na drenagem urbana

(BUENO, op. cit.) Sobre o “padrão PLANASA”, inclusive, há uma avaliação local (feita por técnicos

da área do planejamento urbano e dos transportes hidroviários) de que a centralização e a falta de

adequação dos projetos e das soluções de infra-estrutura agravaram o problema no país; segundo

esta apreciação, é como se fossem projetadas estas estruturas sempre a partir da perspectiva do

53

O Plano Nacional de Saneamento (PLANASA) fora iniciativa da época da ditadura militar de 1964, instalado a partir de 1969

mas com atuação predominante na década de 1970. O Plano era uma espécie de articulação entre o braço técnico de

projetistas, um padrão de execução de grandes obras de saneamento básico e uma extensão financeira, no caso um Sistema

Financeiro de Saneamento (SFS) com participação do Banco Nacional da Habitação (BNH) e as facilidades de crédito da

época (MELO, 1989). Tecnicamente o PLANASA é identificado, entre outros pontos, com um nível de projeto centralizado no

Sudeste brasileiro e que adotava soluções que os paisagistas atuais qualificam como “mineralizadas” (MELLO, 2004; 2005) e

os urbanistas como excessivamente racionalistas (BUENO, 2005), “engenheirescas”, em um termo livre, nosso. O ponto central

que Laura Machado de Mello Bueno (2005) ataca é o da concepção antiga de drenagem urbana que expulsa as águas da malha

urbana, elevando os picos de cheia a jusante e provocando violentas descargas em cotas mais baixas, em geral coincidentes

com ocupações precárias e altas densidades, o que tende a agravar enchentes e a problemática subseqüente.

54

Isto é evidente sobre um possível comentário acerca do “padrão PLANASA”, pois há certa desconexão, já histórica, entre

projeto urbanístico e projeto de redes de infra-estrutura de saneamento; obviamente as redes tendem a acompanhar a

geometria do parcelamento e do sistema viário, mas os locais infiltráveis, os traçados e as áreas destinadas à ocupação

residencial ou a equipamentos urbanos nem sempre são observadas por estas engenharias urbanas de forma apropriada.

Page 177: Tese Cidade e Agua Jximenes

177

problema de Campinas-SP, por exemplo55

. Britto (2004), por exemplo, acrescenta a discussão

sobre a gestão e a titularidade dos serviços de saneamento, atualmente; no caso do Portal da

Amazônia, a Prefeitura Municipal de Belém se coloca como agente e como sujeito da concepção,

da execução, do gerenciamento das infra-estruturas e serviços de saneamento na bacia. Esta

elevação do município à categoria de agente participante da discussão sobre o saneamento é

recente, e no caso a disputa política da Prefeitura é colocada como sendo parte de um projeto de

municipalização do saneamento em Belém/PA.

Os cursos d´água que atravessam a bacia da Estrada Nova remetem, ao mesmo tempo,

a duas questões sobre as formas recentes do saneamento ambiental urbano: as novas tecnologias

ambientais de tratamento de canais e a mudança de função na abordagem destes cursos d´água

na cidade. Embora a concepção geral permaneça de certo modo, com um desenho de

macrodrenagem ligado a outro, de microdrenagem, e com estruturas de deposição em cotas mais

baixas, há nítida mudança de certos aspectos de projeto. Como citado por Bueno (2005), a

retenção das águas na cidade passa a ser considerada; o fluxo, o tempo e o caminhamento destas

águas, portanto, muda (ver Ilustração 35).

A diretriz de projeto citada representa uma avaliação contemporânea do padrão de

escoamento em casos de bacia hidrográfica urbana. Pelo elevado grau de acentuação das

descargas hidráulicas em superfícies impermeabilizadas a tendência das novas tecnologias seria a

de tentar evitar a elevação excessiva do escoamento superficial (runoff) das águas na cidade

(ARAÚJO; ALMEIDA; GUERRA, 2008). Com a tendência do solo urbano, pela forma de ocupação e

variedade de uso do solo, de impermeabilizar consideravelmente as superfícies, alguns aspectos

destas novas tecnologias foram modificados. As alterações de relevo nas áreas urbanizadas

tendem, por exemplo, a suprimir depressões em fundos de vale, que representavam áreas de

retenção de águas; com o relativo aplainamento do sítio, a intensidade do escoamento superficial

aumentaria (ARAÚJO; ALMEIDA; GUERRA, op. cit.) Atualmente, portanto, as tecnologias incorporam o

aumento de áreas permeáveis, a mescla entre pavimentos rígidos e de maior estanqueidade com

aqueles mais porosos e desenhos capazes de equilibrar a necessidade de escoamento e evitar a

sobrecarga das redes às necessidades funcionais.

Outro aspecto relevante neste tópico é o da “reconversão” de rios urbanos. Desde a

década de 1990 parece ter havido a volta de uma antiga discussão no campo do urbanismo e das

55

Depoimento dado a outra pesquisa do autor, em tema semelhante, a propósito da discussão da eventual reversão do “padrão

PLANASA” rumo à recuperação parcial da navegabilidade de canais/rios urbanos.

Page 178: Tese Cidade e Agua Jximenes

178

engenharias envolvidas com a cidade, acerca do tema de suas águas. Enquanto tecnologias de

saneamento da virada do século XIX para o século XX apresentavam ainda característica “híbrida”

entre certa abordagem “compreensiva” (infiltrar, vegetar, manter a sinuosidade original) e outra,

“racionalista” (impermeabilizar, revestir, retificar), em meados da década de 1960 parece ter

finalmente predominado a segunda, pelo menos na maior parte das nações capitalistas. No Brasil

este processo não foi diferente, como citado, mas houve também discussões e projetos

apresentados no sentido contrário, basta que se consulte o exemplo de Santos (ANDRADE, 1992) ou

mesmo a localmente famosa proposta de “veneziamento” de Gronsfeld (ver Ilustração 8; Ilustração

9), rapidamente comentada neste trabalho. A postura recente de se “destampar” rios, isto é, de se

reverter os procedimentos de retificação e, sobretudo, canalização de cursos d´água urbanos nos

coloca pontos fundamentais para estudo.

Este processo de “reconversão” nos impõe uma necessidade de reconhecimento de

termos: trata-se, ao mesmo tempo, de falar dos “canais” de drenagem, e dos recentemente

reabilitados “rios urbanos”. No caso de Belém-PA esta dupla denominação começa a surgir, ainda

que de forma incipiente. A abordagem técnica, de escoamento, de caráter eminentemente

funcional, passa a conviver com a consideração acerca de outras formas de tratamento, sobretudo

de natureza paisagística. A incorporação daquelas tecnologias ambientais urbanas supostamente

mais “compreensivas” em termos ambientais é contemporânea deste processo. Os canais

tornados rios urbanos são objeto de revegetação, recomposição parcial da organicidade de seus

traçados e recebem tratamento paisagístico e novos usos do solo, típicos de projetos de

revitalização de caráter cultural (com cafés, galerias e centros culturais, por exemplo).

Tecnicamente, há argumentos para os dois primeiros procedimentos citados. A vegetação urbana

teria um papel importante na recuperação ambiental, uma vez que produz maior estabilidade

mecânica do solo, representa a possibilidade de percolação das águas, reduzindo a carga nas

redes de infra-estrutura, e permitindo a redução da temperatura da área urbana, numa espécie de

microclima local (MASCARÓ, 2008; ARAÚJO; ALMEIDA; GUERRA, 2008). O traçado sinuoso de canais

(tornados “rios” urbanos), que costuma ser a sua configuração natural, reduziria a energia cinética

das massas de água, imporia menores vazões pela redução de velocidade de escoamento e

representaria menores chances de carreamento de material e, portanto, assoreamento de cursos

d´água e margens (Bueno, 2005; ARAÚJO; ALMEIDA; GUERRA, op. cit.)

Por outro lado, o que parece estar se convertendo em um novo “modelo” de intervenção

nas águas urbanas (o próprio termo é, também, recente) é também parte de um novo modelo de

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179

reconfiguração urbana em sentido mais amplo. A intervenção paisagística e saneadora em

margens de canais (ainda predominantemente sanitários, pelo menos em discurso) ou rios

urbanos (já com a proeminência “urbanística” a seu favor) no sentido da “ reconversão” parece

apontar que os usos ditos “pesados” da cidade, nas proximidades da água, começam a ser

substituídos. Do mesmo modo como tem ocorrido com as áreas históricas centrais, as margens

das “águas urbanas” (rios ou canais) sofrem intervenção técnica, administrativa e sócio-

econômica. Estas intervenções parecem substituir as antigas atribuições da água na cidade, como

locais do dejeto e do resíduo56

, em direção a uma “água urbana” que é item de uma paisagem

simultaneamente cultural e econômica, de consumo visual (ZUKIN, 2000), de fato. Saem, portanto,

os efluentes massivamente destinados a estes cursos d´água, pelo menos nos trechos em que

são visitados, pois deles já saíram os respectivos usos poluentes, e entra a intervenção capaz de

garantir novos ativos, de acordo com certos usos e padrões das economias urbanas recentes.

Decorre daí, portanto, o reforço na classificação dos “sujos” e “limpos” nas águas da cidade,

quanto até então praticamente toda ela era local de despejo, inclusive no caso em questão.

Para finalizar, é possível citar que, na rede de canais de drenagem de Belém-PA, há certa

diversidade tipológica, e que esta diversidade decorre de critérios técnicos, sobretudo. Nesta

diversidade podem ser encontradas, portanto, diversas formas de tratamento dos taludes,

tecnologias de revestimento, de controle de enchentes (embora predominem as comportas como

solução) e de extensão. Canais de drenagem (ou rios urbanos, o que neste ponto do trabalho já

deve ficar claro que depende unicamente da forma de tratamento e do propósito a que se destina o

curso d´água) situados em bairros mais diferenciados do ponto de vista sócio-econômico na

cidade são, portanto, discutidos como solução urbanística. Embora os Planos Diretores Urbanos

de Belém-PA (de 1993 e de 2008) tabulem sistematicamente as faixas de domínio dos canais

urbanos, não se trata mais apenas de estruturas de saneamento, mas de uma complexa

composição entre drenagem, diferenciais locacionais e valorização imobiliária, onde entram novos

fatores a partir de novos itens componentes de rendas diferenciais; no caso, a água da cidade. Por

isso, portanto, existem as diretrizes de reabilitação desta figura múltipla e nem sempre objetiva, da

orla de Belém-PA.

56

Conforme historiado por Corbin (1989) acerca do litoral europeu, por exemplo, dentre inúmeros outros casos.

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180

Ilustração 42 Avenida Visconde de Souza Franco, circa 1975. A via possui um canal/rio urbano e divide os bairros de

classe média do Reduto e do Umarizal, em Belém-PA, terminando na zona portuária da cidade (ao fundo, na imagem,

com os guindastes do porto à beira da Baía do Guajará). Padrão de intervenção em canais de drenagem do tipo

tradicional, atualmente em processo de discussão. Fonte: Skyscraper city (2008).

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Ilustração 43 Proposta esquemática de tanque de acumulação (conhecido como “piscinão”), do projeto Portal da

Amazônia, técnica que representa inovação em projetos de drenagem urbana, evitando a acentuação do pico de cheia

a jusante, e considerando a retenção temporária das águas (BUENO, 2005) em áreas de baixa declividade e ocupação

relativa no entorno. Fonte: Belém (2006b).

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Ilustração 44 Esquemas de seções-tipo de canais (ou "rios") urbanos da proposta inicial do projeto Portal da Amazônia mostram a variedade de tecnologias e formas de tratamento

destes cursos d´água proposta no início dos trabalhos de divulgação do projeto. Hoje pode ser dito que a maior parte destas tecnologias foi revista em função de padrões mais

convencionais. Fonte: Belém (2006b, p. 28).

Proposta de Canalização (Avenida Sanitária) Proposta de Canalização (CANRA - Canal Revestido Aberto)

Proposta de Canalização (CANRA - Canal Revestido Aberto)

Proposta Naturalística (Canal em Leito Natural)

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183

No entanto, estas formas de intervenção territorial têm sido baseadas em matrizes

racionalistas, a processos formalizados, impessoais (ou seja, padronizados) e universais de

engenharia e urbanismo. Isto se deve, entretanto, muito mais a um processo de racionalização do

mundo e formalização da política do que propriamente a um canal unívoco de resolução de

problemas técnicos. Em suma, a qualificação “ambiental” da problemática territorial em questão é

parte de uma construção social, da inclusão da dimensão material do espaço como recurso, sendo

parte de possibilidades de subsistência para uns, geração de riqueza para outros e assim por

diante. Por outro lado, o surgimento de uma engenharia com declaradas preocupações ambientais

recoloca a dimensão destes recursos inclusive no plano da técnica. A dimensão da água como

recurso convive, portanto, com sua apropriação como paisagem — de consumo visual (Zukin,

2000) — e como veículo — numa abordagem mais técnica.

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184

3.8. MANGAL DAS GARÇAS

Ilustração 45 O parque ambiental Mangal das Garças. Vista do mirante, da cobertura de um de seus restaurantes, com

a Igreja da Sé ao fundo. Fonte: Pará (2005a).

É possível dizer que as intervenções territoriais nas margens fluviais de Belém-PA

sofreram transformações de sentido ao longo do tempo. Em movimento de avanço em direção à

periferia próxima de Belém, o parque ambiental — ou, segundo os promotores, “naturalístico”

(PARÁ, 2005a) — Mangal das Garças se anuncia como uma “[...] poética síntese do ambiente

amazônico no coração urbano e um exemplo de como se relacionar conscientemente com a

natureza” (PARÁ, 2005a). Intervenção do governo estadual de gestão anterior à atual, assim como

a Estação das Docas e o Feliz Lusitânia, o parque Mangal das Garças57

relaciona o par cultura-

natureza nas intervenções de margens fluviais (ou “orla”) de Belém de maneira fluida, digamos.

O aspecto ambiental destas novas intervenções territoriais em Belém e seu entorno

guarda várias formas. Em Belém, o Mangal das Garças é um espaço que pretende reconstituir a

fauna e a flora de parte dos ecossistemas amazônicos (PARÁ, 2005a), à beira do Rio Guamá.

57

O parque tem área de 4 Ha e foi construído a um custo de R$ 15 milhões (VAINER; BIENENSTEIN; SÁNCHEZ, 2005), com

aquisição de terreno pertencente à Marinha do Brasil, situado na vizinhança do 4º Comando do Distrito Naval da região. Foi

inaugurado em janeiro de 2005. Assim como a Estação das Docas, o complexo Feliz Lusitânia e outros conjuntos da mesma

gestão estadual, são administrados por organização social sem fins lucrativos, segundo o modelo das parcerias público-

privadas — embora dependam essencialmente de recursos públicos.

Page 185: Tese Cidade e Agua Jximenes

185

Possui uma série de estruturas de visitação, passagem, e viveiros, onde borboletas, pássaros,

beija-flores, orquídeas e demais espécimes da região são expostos ao visitante:

Considerando-se as condições paisagísticas da área, a intenção foi a criação de

um “Parque Naturalístico”, cujo tema é a representação das diferentes macro

regiões florísticas do Estado do Pará, isto é, as Matas de Terra Firme, as Matas

de Várzea e os Campos.

Entre lagos, vegetação típica, equipamentos de cultura e lazer, juntamente com a

inusitada paisagem do aningal existente, o Mangal das Garças representa uma

síntese do ambiente amazônico, bem no coração da cidade. Uma obra

emblemática onde a natureza é preservada e o homem aprende a conviver, sem

destruir, com a sua circunstância ambiental (PARÁ, 2005a. Grifos do autor).

O tema da água permanece bastante em voga na cidade desde finais dos anos 1980, na

medida em que se discute e concorda cada vez mais com um projeto relativamente vago de

“devolução” do acesso à sua orla fluvial. “Desobstruir”, então, passou a ser uma concepção

praticamente consensual, numa articulação entre “requalificação” e “revitalização” do território e

“resgate” do contato com a natureza. Há no parque, inclusive, um Memorial Amazônico da

Navegação, com acervo que remete às antigas embarcações dos ribeirinhos, às escunas e

corvetas antigas da Marinha do Brasil e ao imaginário em torno do rio que há na Amazônia. Nos

termos do Mangal das Garças, a intenção de “devolução” ambientalmente responsável consiste,

em última análise, numa decisão de projeto arquitetônico, urbanístico e paisagístico:

[...] o projeto harmoniza os acessos com as vias existentes e terrenos do

entorno, aproveitando-se a presença da água para a implementação de um

grande lago como o seu ponto principal, além do rio, circundado,

equilibradamente, por caminhos e passeios pavimentados, que interligam o

estacionamento, áreas de estar e os equipamentos de lazer e serviços. O

destaque às peculiaridades da paisagem amazônida levará o visitante à

descoberta de perspectivas exóticas, que integram ambientes das matas de

várzea do estuário, de terra firme e campos com o aningal (PARÁ, 2006).

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186

Ilustração 46 O prédio do restaurante, onde também estão o trapiche e o Memorial Amazônico da Navegação, no

parque Mangal das Garças; usos da revitalização urbana, mas associados a conteúdo regional e com pretensões

ecológicas. Foto do autor (set. 2009).

Na dimensão patrimonial da idéia de melhoria da “qualidade de vida” na cidade

(ACSELRAD, 1999) há inclusive uma declarada intenção de remeter ao passado da cidade de Belém,

com a construção de um mirante sobre estrutura metálica, onde está instalado um farol — o “Farol

de Belém [...] que encontra-se inscrito nas cartas náuticas brasileiras” (PARÁ, 2005a). Na cidade

havia, no passado, uma série de caixas d´água metálicas (ver Ilustração 49), remanescentes das

concessionárias privadas de abastecimento, de capital inglês (XIMENES, 2003). O passadismo pós-

moderno, da reciclagem dos signos da cidade remodelados para o presente (HARVEY, 2000), está

portanto contemplado; a alegação da História confere, provavelmente, mais “dignidade” ao projeto.

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187

Ilustração 47 Vista do Mangal das Garças, a partir da torre do mirante. Foto do autor (jan. 2007).

Ilustração 48 Vista do Mangal das Garças, com ocupações vizinhas e as obras vizinhas do Portal da Amazônia;

sobreposição de usos e conflito. Foto do autor (jan. 2007).

Page 188: Tese Cidade e Agua Jximenes

188

O discurso ambiental, em todo caso, está presente. Um de seus aspectos interessantes é

a sinalização da possibilidade de (re)criar o ambiente amazônico, no interior da intervenção

territorial, de cerca de 4 Ha. O processo de educação ambiental do cidadão, o reconhecimento da

própria natureza do entorno e a capacidade de consumir visualmente a imagem amazônica estão

vinculados, ao que parece, à experiência da visitação informada ao parque. Obviamente, trata-se de

uma intervenção urbanística e, como tal, a parcela de artificialidade não poderia deixar de ser

praticamente total no espaço. No entanto, longe de qualquer purismo e de uma forma simplória do

par cultura/natureza, é curioso observar como a produção do lugar e a produção da natureza

ordenada logram papel de destaque no urbanismo contemporâneo e na requalificação dos espaços

urbanos em sua relação com a própria “natureza” — entendida como idéia também, em suas

variadas acepções e representações possíveis.

Page 189: Tese Cidade e Agua Jximenes

189

Ilustração 49 O Farol de Belém: inscrito nas cartas náuticas brasileiras, é ao mesmo tempo mirante do parque Mangal

das Garças e ícone nostálgico, remetendo a antigas estruturas da cidade. Foto do autor (set. 2009).

Page 190: Tese Cidade e Agua Jximenes

190

Ilustração 50 O galpão do Armazém do Tempo funciona como café e loja no parque Mangal das Garças. Foto do autor

(set. 2009).

No Mangal, a idéia de uma síntese dos ambientes amazônicos remete, historicamente,

aos famosos parques ingleses do século XIX, notórios pela tentativa de reprodução da dinâmica

“natural” em espaços projetados, paisagisticamente concebidos para parecerem “espontâneos” e

“originais”, sem intervenção humana (SCHAMA, 1996). A natureza compacta, artificial, porque

histórica, faz parte de operações contemporâneas de instauração de porções do ambiente no

território da cidade. Do mesmo modo, podem se inscrever nestes exemplos as operações de

recuperação de rios e de matas urbanos. O “resgate” da natureza na cidade traz os discursos da

Page 191: Tese Cidade e Agua Jximenes

191

melhoria da qualidade físico-ambiental do espaço urbano, mas cria também novos regimes e

novas fronteiras de permanência, de permissão, de possibilidades de apropriação e consumo das

localizações na cidade. O restaurante do Mangal das Garças, por exemplo, fora construído em

grande parte com madeira apreendida, oriunda de doações do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente

e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) (PARÁ, 2005a). O Armazém do Tempo (ver

Ilustração 50), espécie de estufa ou gazebo instalado no parque, é caracterizado como

[...] um antigo galpão de ferro, usado como oficina mecânica no reparo de

embarcações, [...] restaurado para abrigar um ambiente alternativo. Nele, os

visitantes podem comprar plantas, artesanato, livros e CDs de artistas paraenses

ou saborear um café (PARÁ, 2005a).

Ilustração 51 Imagem da torre do mirante do Mangal das Garças; proximidade com a intervenção viária do Portal da

Amazônia e vista do aningal. Foto do autor (set. 2009).

Em visita ao parque ambiental, ainda no período de sua construção, responsáveis pela

obra informaram que a execução do parque exigia o aterramento e a eliminação de cerca de 80%

da planície de inundação vegetada do terreno. Na verdade, pouco importa que boa parte da área do

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192

parque ambiental seja fruto de aterro recente, justamente na área do aningal58

propalado como

vegetação sobre planície de inundação típica da região de várzea. Também não se constitui em

fato tão relevante o sistema de águas correntes e pequenos lagos artificiais que compõe o caráter

naturalístico da paisagem do parque. O que nos parece mais representativo deste espaço59

— das

intenções declaradas de “requalificação” das margens fluviais, do centro e dos patrimônios

ambientais e construídos em geral da cidade — é a criação do espaço da natureza idealizada. Este

espaço passa a receber o sentido da “Arcádia” (SCHAMA, 1996), da idéia de parque onde o

recôndito da natureza idealizada e perdida pode ser recolocado (SCHAMA, op. cit.),

contraditoriamente, em bases postas pela própria técnica da drenagem, do paisagismo, do

urbanismo. Típica da modernidade, da idealização, estilização e fruição estética (freqüentemente

burguesa) da natureza, a Arcádia portanto encerra um espaço onde aquele contato perdido pode

ser reencontrado, com os elementos naturais essenciais reunidos (idem, op. cit.) Uma “recriação”

de arquétipos da natureza, relativamente idealizados e estilizados, portanto.60

O traçado urbanístico do Mangal combina soluções geometrizadas a partidos de

inspirações mais orgânicas. Como em projetos paisagísticos típicos desta natureza, as referências

visuais são fundamentais; o Mangal sinaliza com o apelo do padrão da revitalização ao mesmo

tempo em que se articula com os itens regionalistas. Seu paisagismo, se não é exatamente

apropriado à região em termos bioclimáticos (pela pouco densa cobertura vegetal e de resto baixo

porte das espécies vegetais nele instaladas), é totalmente ligado às diretrizes recentes de defesa da

aplicação de espécies endógenas em urbanização e estratégias de recuperação ambiental. O

movimento de reapropriação das margens da cidade, e de extensão do projeto da orla,

representado pelo Mangal das Garças, tem no parque um exemplo interessante de articulação entre

a dimensão ambiental (ou alguns de seus aspectos) e o discurso urbanístico recente de um dado

“ambiente urbano”. Que também deve ser retomado, diga-se.

O Mangal das Garças representaria, em uma série histórica das intervenções do PSDB em

Belém-PA, nas suas margens fluviais, a inflexão do mote das urbanizações em direção a seu

58

A aninga é uma vegetação típica de áreas alagáveis da região, em geral lodosas. A espécie vegetal atinge cerca de 2 metros

de altura, às margens dos cursos d´água.

59

E de sua expressividade como intervenção territorial vinculada às intenções dominantes.

60

Thomas (1988), também, coloca a idealização da natureza presente nos parques ingleses, a partir de referência histórica a

construções repletas de engenhocas espetaculares simulando o primitivo e o divino, místico, no interior de cavernas e demais

espaços “campestres” ou atraentemente “incultos”.

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193

caráter francamente ambiental. Os espaços produzidos nesta gestão sofreram críticas severas na

imprensa, na academia e mesmo no próprio setor público por seu caráter elitista. Esta

característica foi atribuída a intervenções como a revitalização de zona portuária da Estação das

Docas; a partir daí, a Secretaria Executiva de Cultura (SECULT) começara a produzir espaços onde

alguma concessão ao público era feita de modo mais evidente, e onde o propósito de acesso

franco e mais democrático deveria ser praticado. A própria localização do Mangal, em área ao

mesmo tempo disponível (antiga área militar negociada com o Governo do Estado) e próxima ao

centro (na fronteira dos bairros da Cidade Velha e Jurunas, portanto entre o Centro Histórico e a

periferia próxima), atesta certo movimento de expansão do projeto. De certo modo, podemos falar

em articulação com a orla, naquela acepção mais ampla; algo não propriamente objetivo que

representaria um movimento de reapropriação dos espaços de margens fluviais da cidade,

sobretudo por suas camadas mais influentes economicamente.

Ilustração 52 Exemplo de desenho de caminhamentos e traçados do partido urbanístico e paisagístico do parque

Mangal das Garças (viveiro de pássaros à direita, na base da foto); o orgânico dialoga com a vegetação regional, e

remete tanto à familiaridade do espectador com o local quanto ao discurso ambiental nas intervenções urbanas. Foto

do autor (set. 2009).

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194

Uma das contradições mais interessantes a respeito deste coletivo, múltiplo e intrigante

senso comum — o de “revitalizar” as margens fluviais da cidade e restabelecer o contato com a

natureza — é a série de impactos que ele tem provocado. Em termos urbanísticos, é curiosa a

tendência do mercado imobiliário em captar o potencial de localização das margens fluviais

(XIMENES, 2004). Também é representativa a tendência histórica ao enobrecimento (MOTTA, 2000)

(que a literatura também trata como gentrification) dos espaços do centro histórico da cidade

(XIMENES, op. cit.), cuja qualidade patrimonial o coloca, portanto, como mais um espaço da

qualidade de vida (ACSELRAD, 1999), nos termos das matrizes da sua modalidade de

sustentabilidade urbana. A óbvia instauração de um padrão progressivamente desigual de

localização e de apropriação dos recursos nos remete a uma idéia de segregação, de

estabelecimento de novas fronteiras no espaço urbano, valorizado cultural e economicamente em

certos espaços. As ações e a justificativa do novo padrão de intervenção (desobstruir, requalificar,

retomar o contato com a natureza, etc.) teriam seu argumento na idéia de um ciclo: aumento de

receita pública, aumento de investimentos sociais, melhoria da “qualidade de vida”. Em síntese, a

tendência e a semelhança com outros casos nos remetem mais à idéia de “[...] sustentabilidade do

dinheiro do que do meio ambiente” (SACHS, 1997, p. 18). A idéia de “desenvolvimento” nos

marcos da economia de mercado (SACHS, 1997) permanece, agora acentuada a partir do

convencimento coletivo de que um novo padrão de “requalificação” e “sustentabilidade” dos

espaços deva ser instalado.

3.9. ECONOMIA DA CULTURA E “ORLA”

Como apontado em outros trechos deste trabalho, há uma série de intervenções

urbanísticas que tiveram lugar em Belém-PA em espaços de beira-rio. Muitas delas eram de

natureza cultural, ou associadas à política cultural regional e local, e a estratégias de

desenvolvimento econômico, sobretudo ligadas ao fomento ao turismo, embora com estratégias

diferenciadas, variáveis. Em outro momento, e em outro trabalho, foram abordadas algumas destas

intervenções em Belém-PA que se dirigiam à “orla” fluvial da cidade, de modo a fazer parte de um

amplo projeto de revitalização de sua área central e de desobstrução e devolução, termos da

época, das margens de seu rio e sua baía (PONTE, 2004). Não é, portanto, apropriado resgatar este

debate, e de fato ele teria menos aplicabilidade para a temática deste trabalho. Tais intervenções,

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195

concebidas e executadas entre os anos 1990 e 2000, faziam parte de um processo de disputa

política entre as administrações públicas municipal e estadual e, também, divulgavam concepções

relativamente distintas de projeto urbanístico. A dimensão “relativa” da diferença de concepção

urbanística era dada por um elemento unificador, presente em todas estas intervenções; o fato de

se pensar as margens fluviais da cidade, sobretudo aquelas próximas ao centro, como passíveis

de reabilitação através da implantação de equipamentos urbanos de amenidades, lazer e consumo,

com contemplação paisagística da “orla” da cidade (PONTE, op. cit.) Embora houvesse

intervenções de pretensões declaradamente mais democráticas, efetivamente apólogas do lugar

público (ARANTES, 1993) como estratégia de intervenção urbanística contemporânea, a matriz

nuclear, digamos, era praticamente a mesma. Uma questão que diferenciava intervenções

municipais de estaduais era, por assim dizer, o projeto de desenvolvimento econômico a elas

associado. Havia um grupo de equipamentos urbanos explicitamente vinculados a uma política de

dinamização do turismo, através da promoção de espaços liminares (ZUKIN, 2001), separando

poder econômico e a dinâmica marginalizada da cidade. Por outro lado, intervenções que se

pretendiam opositoras a estas, embora também tivessem a economia turística como referência,

foram articuladas a programas federais de geração de trabalho e renda, e a ações específicas na

área da chamada economia solidária em geral (PONTE, 2004). Esta é, de fato, uma diferença de

concepção relevante.

Tais intervenções são, basicamente, as da Estação das Docas (na zona portuária), do

complexo Feliz Lusitânia (no centro tombado da cidade), ambas do Governo do Estado do Pará. A

Prefeitura Municipal de Belém responde pelo complexo Ver-O-Rio (na zona portuária, em local de

atividades de fluxo de carga), pela Praça do Pescador (curiosamente vizinha à Estação das Docas

e dela separada por um gradil metálico cronicamente “polêmico”) e por outras “orlas” fluviais de

intervenção pontual, das quais a de maior representatividade social e urbanística é a da Orla de

Icoaraci (distrito do município de Belém-PA).

Em termos urbanísticos, e no sentido projetual do termo, as intervenções de beira de rio

em Belém-PA, à época, se propunham opostas também no plano técnico e imagético. Enquanto as

intervenções vinculadas à concepção do planejamento estratégico de cidades, de atratividade

econômica e apelo ao consumo, tinham partido nitidamente mais refinado e arrojado, aquelas de

propósitos socialmente mais inclusivos eram elogiosas ao regionalismo como repertório visual, e a

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196

soluções duráveis de baixo custo. As diferentes concepções do que deveria ser a “orla” (no caso,

um equivalente de beira de rio do parque linear urbano, associado a atividades de comércio e

serviços) eram evidentes, mas o uso do solo era “coincidente”.

A intervenção territorial de maior visibilidade da chamada “orla” de Belém-PA é o

complexo turístico e gastronômico da Estação das Docas. A Estação atende aos requisitos do

modelo “clássico” do waterfront. O espaço foi projetado na zona portuária da cidade, tombada no

nível estadual por órgão da cultura e patrimônio histórico, e está instalado nos três primeiros

galpões do pátio de operações do Porto de Belém; houve o acréscimo de um quarto galpão,

convertido em estação de passageiros. O complexo foi inaugurado em maio de 2000. Sua

estrutura atual tem 500 metros de extensão sobre o antigo cais acostável do porto, e cerca de 3,2

hectares de área construída e urbanizada (PARÁ 2000, 2008)61

. A Estação faz parte de uma série de

“empreendimentos” (PARÁ 2000, 2008) turísticos do Governo do Estado, pensada a partir de um

documento de Governo, um Plano de Desenvolvimento Turístico. O complexo teria como

propósitos a “[...] produção de cultura, lazer, turismo e serviços [...]” (PARÁ 2000, 2008) e

incrementar o turismo, movimentar a economia e valorizar a cultura do Estado [...]” (PARÁ 2000,

2008). A Estação apresenta itens já comuns a waterfronts em geral: a gestão por parcerias

público-privado; administração (ou gestão) privada através de Organização Social que coordena o

empreendimento; mistura de lógica empresarial moderna, mas subsidiada, com traços étnicos

locais (gastronomia, artesanato, música popular) (HARVEY, 1996a; 2000) e algum arrojo projetual.

A divulgação da Estação das Docas qualifica o ambiente:

Num dos mais nobres pontos em que Belém abre suas janelas para o rio, um

belo cais nos convida a embarcar no rumo da arte e do lazer. Na orla entre a

modernidade e a cultura ribeirinha, a Estação das Docas prova que a inovação

arquitetônica e a recuperação do patrimônio histórico podem viajar juntas e em

perfeita harmonia (PARÁ 2000, 2008).

A Estação das Docas, em seu partido, remete ao Porto de Belém, às visualidades das

embarcações da região e, ao mesmo tempo, ao padrão médio de consumo e gosto do mercado

turístico nacional. O Porto de Belém, do princípio do século vinte e desativado nos três galpões

onde funciona o atual complexo turístico, não está mais ali; por outro lado, podem ser visitadas as

61

Segundo dados da Secretaria de Cultura do Estado, a Estação das Docas teria custo total de R$ 25 milhões, entre R$ 19

milhões (76%, portanto) do Governo do Estado do Pará e R$ 6 milhões oriundos dos concessionários/comerciantes e de

empresas privadas em apoio ao projeto, via editais públicos da área de fomento à cultura (PARÁ; SECULT, 2001).

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197

gruas da antiga estrutura portuária, pode ser observada a arquitetura metálica pré-fabricada, além

do horizonte do rio Guamá e um acervo arqueológico e histórico, oriundo inclusive das escavações

da obra e da consolidação do Forte de São Pedro Nolasco, obra do século XVII situada no interior

do complexo. Há, ainda, imagens de transeuntes da virada do século XIX para o século XX

impressas em pequenos totens, formando uma ambiência nostálgica e passadista.

Ilustração 53 A Estação das Docas, nas margens da Baía do Guajará, em Belém-PA: waterfront e apelo da "orla" na

cidade. Foto do autor, dez. 2003.

No conjunto da Estação das Docas há recursos de exploração visual da transparência e

da opacidade, nos painéis metálicos cegos da vedação dos antigos galpões portuários ou nos

envidraçados, para dar visibilidade em direção ao rio. Do lado oposto dos galpões foram

projetados painéis espelhados, refletindo a antiga Alfândega e um casario, local de prostituição,

bares mal-afamados, casas de diversão clandestinas, mas também novos centros culturais e a

sede regional do Banco Central e da Advocacia Geral da União (AGU). No espaço o uso de

instalações e materiais contemporâneos permite que coexistam estratégias da arquitetura

contemporânea com referências à conservação de monumentos históricos, um recurso comum

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198

em projetos de revitalização que, em termos técnicos, não costuma ter compromisso com

preceitos da restauração arquitetônica (CHOAY, 2001). O complexo, como é de praxe, utiliza-se de

materiais e especificações de certa assepsia, e padrão confortável, capitalizando sobre as cascas

do antigo, e remetendo à atividade do antigo Porto, à configuração de suas estruturas, com os

equipamentos do porto compondo a atual paisagem cenográfica do espaço. Esta estratégia, da

conservação relativa do antigo associada ao apelo e aos padrões estéticos do novo, permite o

consumo (visual, simbólico, material) do espaço ao mesmo tempo em que o legitima com itens

diferenciados, como os produtos de referências étnicas ou a gastronomia. Isto está de acordo com

o padrão dos espaços culturais do gênero, em vários outros lugares do mundo. A cultura do

gourmet (ZUKIN, 1991), por exemplo, é comentada amplamente como item a constar em tais

espaços, pelo apelo de consumo de vários outros sub-setores associados, e pela clara vinculação

com as novas elites urbanas. A Estação das Docas tem usos baseados em ambiências do tipo que

seria, no jargão estratégico, o “diferencial competitivo” do histórico, do antigo, do consumo de

cultura e de algum exotismo, enquanto produto (ZUKIN, 2000).

Um dos pontos relevantes do exemplo da Estação das Docas é que o espaço relaciona-se

diretamente com o discurso, ações e políticas da “desobstrução” da “orla” em Belém-PA. Isto se

relaciona também com a água na cidade e suas representações, suas formas de apropriação

territorial e econômica, e práticas materiais (HARVEY, 1996b). É uma espécie de exercício de

legitimidade, implantando novos usos e padrões tidos como desejáveis para o espaço da “orla”, e

a estes usos contrapondo as soluções, assentamentos e técnicas tradicionais, estigmatizados. O

perfil geral da Estação das Docas, portanto, é o do atendimento ao apelo da “abertura” das

margens fluviais da cidade de Belém-PA. Isto atende a certos requisitos das elites locais na fruição

da paisagem do rio da cidade, tornada liminar (ZUKIN, 1991; 2000), separando a variedade (e a

pobreza) do Ver-O-Peso, ao lado, e a cultura do gourmet (ZUKIN, 2000) regionalizada, dentro do

complexo.

Como citado, havia disputa política nos anos que se deram após as sucessivas

implantações destes espaços na cidade de Belém-PA. Foi construído, também, um antagonismo

entre intervenções do Governo do Estado do Pará e aquelas da Prefeitura Municipal de Belém,

ainda que alguns de seus propósitos finais fossem tão semelhantes. Abordando o suposto

antagonismo entre administrações públicas, a intervenção que poderíamos citar como

Page 199: Tese Cidade e Agua Jximenes

199

contraponto, teoricamente, seria a urbanização de beira de rio do Projeto Ver-O-Rio, da Prefeitura

Municipal de Belém. O Ver-O-Rio foi projetado e executado pela administração municipal com

franco discurso de contraposição às intervenções caracterizadas como elitistas do Governo do

Estado do Pará. Tipologicamente, o projeto seria de uma praça, recortada por um pequeno curso

d´água artificial, ligado a uma pequena lagoa que funciona como um tanque de acumulação, cujo

nível de água é regulado pelo regime de marés, onde funciona um marégrafo. Sua implantação à

beira da Baía do Guajará, entretanto, e vizinha aos galpões do Porto de Belém (portanto, a cerca de

1 km de distância da Estação das Docas), acrescenta a dimensão de “abertura” da “orla”

necessária ao entendimento da intervenção. O Ver-O-Rio, inaugurado em outubro de 1999, tem

400 m de extensão nas margens da baía (BELÉM, 2001), 0,5 hectare de área, e é assim

caracterizado por seus idealizadores:

O Ver-o-Rio tem como objetivo atender a um anseio da população de ter uma

orla, ainda que pouco extensa, mas que permita o contato com o rio.

O projeto atinge o público de todas as idades, tendo como atividade

predominante o lazer contemplativo ao longo da orla, com bancos situados de

frente para o rio, onde o paraense poderá saborear um tacacá ou uma água de

côco, apreciando o pôr-do-sol (sic) (BELÉM, 2001, p. 1).

Ilustração 54 Muro de contenção do projeto Ver-O-Rio, quiosques e passeio ao fundo; "orla" mais democrática através

do projeto, segundo os autores da intervenção. Foto do autor, dez. 2003.

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200

O Projeto Ver-O-Rio usa referências visuais da cultura indígena, e apresenta

regionalismos diversos em suas arquiteturas e em alguns de seus elementos urbanísticos: “[...]

‘play-ground’, com equipamentos que imitam os brinquedos de miriti, um artesanato regional que

só é encontrado na época do Círio.” (BELÉM, op. cit., p. 1); “[...] dobrar a esquina e caminhar [...]

sobre um tapete de pedra em desenho marajoara ao longo da orla, escutando o quebrar das ondas

e em seguida saborear um café da manhã com “[...] tapioquinha, pupunha, mingau de milho, bolo

de macaxeira e suco de frutas regionais.” (Idem, op. cit., p. 3). O projeto também é associado a

referências históricas, ligadas a seu local de implantação e ao ideário das “janelas para o rio” ou

da “orla” da cidade:

Outros motivos nos levaram a escolher este local para dar início a obra: o fato de

existir ali uma ponta avançada, onde funcionava um marégrafo, que será

transformado em mirante, de onde podemos ter uma visão privilegiada da orla de

nossa cidade, com um certo ângulo de amplitude que nos permite observar

desde a ponta do Forte do Castelo, onde iniciou a nossa cidade, até a Pratinha,

área próxima ao distrito de Icoaraci. Deste ponto estratégico, poderemos assistir

praticamente a todo o trajeto da romaria do Círio fluvial.

Nesta área existe ainda, uma rampa construída pela saudosa companhia de

aviação PANAIR do Brasil, que será usada para acesso de lanchas, caiaques e

“jet-ski”, como opção de esportes náuticos, que são bastante praticados nas

cidades que tem (sic) contato com a água, pois temos a pretensão de que com a

implantação do Ver-o-Rio a população crie maior identidade com a água, tanto

através do lazer contemplativo como do lazer ativo, com a prática desse tipo de

esporte (BELÉM, 2001, p. 2).

Um dos argumentos do partido urbanístico do projeto Ver-O-Rio seria o do seu caráter

pretensamente mais justo, socialmente, em relação às intervenções politicamente rivais, e por sua

implantação aberta, sem grades ou outros mecanismos de controle (vigilância ostensiva, câmeras,

regras de comportamento do usuário). Uma praça aberta, às margens da baía, seria, portanto,

mais “democrática”, sob esta ótica. Como apontado anteriormente, o uso único pensado para

estes locais prevalece. O rio, na concepção atual, voltada para as aspirações da classe média

local, seria destinado às amenidades, ao lazer, ao consumo; visual, econômico (ZUKIN, 2000).

Neste sentido, pouco resta de diferenciação entre os fundamentos das intervenções, à exceção do

desenho urbano dos projetos. Vainer, Bienenstein e Sánchez (2005) argumentam, por outro lado,

que a pequena diferenciação entre as intervenções de beira-rio neste período na cidade de Belém

guarda relação com uma espécie de “[...] ´turistificação’ quase compulsória do espaço urbano”

(VAINER; BIENENSTEIN; SÁNCHEZ, 2005, p. 56). Entrevistas feitas com usuários apontavam, entretanto,

Page 201: Tese Cidade e Agua Jximenes

201

algum caráter mais aberto e plural na freqüência do projeto Ver-o-Rio (VAINER; BIENENSTEIN;

SÁNCHEZ, 2005).

Ilustração 55 Imagem digital simulando o projeto Ver-O-Rio, nas imediações da zona portuária de Belém (com

edifício-memorial não construído, à direita): intervenção com discurso regionalista e Fonte: Belém (2003).

Em termos sociológicos o fundamento do regionalismo pode ser o da produção de

identidade entre grupos (BOURDIEU, 1996). Além deste aspecto, o projeto Ver-O-Rio, no contexto

histórico em que se insere, seria uma iniciativa de produção do lugar, isto é, uma seqüência de

gestos urbanísticos e políticos para a nova ocupação da faixa de margem de rio na cidade. A

intervenção teria, segundo esta concepção, a propriedade de reocupar o espaço público.

O esvaziamento do espaço público, assim, é trabalhado com intervenções totalmente

apólogas do lugar (ARANTES, 1993); recriações do lugar para produzir movimento de público e

dinamizar o espaço urbano. As posturas das administrações públicas, por outro lado, têm

convergido excessivamente, onde pouco se nota diferenciação em projetos. David Harvey (1996a)

inclusive especulou acerca da relação entre a reestruturação produtiva capitalista e a convergência

ideológica entre governos aparentemente divergentes politicamente; o caso parece merecer alguma

Page 202: Tese Cidade e Agua Jximenes

202

analogia62

.

3.10. SANGRIA DESATADA

Os equipamentos locais de cultura, e da economia da cultura (JAMESON, 2001), mesmo

após anos passados de sua inauguração, despertam discussões e, em decorrência, produção

cultural a seu respeito. Fora as pautas de seus museus, teatros, espaços públicos, cinemas e salas

de espetáculos, exposições e eventos, os parques e espaços de cultura de que tratamos neste

trabalho (somados a outros, não citados) compõem um objeto crítico da política cultural regional.

Isto pode denotar alguma capacidade analítica e ressonância das experiências novas da classe

artística na região, mas também representa influências da política cultural no debate político mais

amplo e, indiretamente, na discussão sobre o planejamento territorial.

Diante do caráter de intervenção dos novos equipamentos culturais instalados na cidade

de Belém-PA, a recepção e a movimentação em torno são variadas. Embora o público em geral

represente adesão à série de novos usos a que se destina parte do patrimônio cultural edificado da

cidade, há alguma receptividade crítica, em paralelo. Pesquisas com usuários, por exemplo,

apontaram como restrição ao acesso o caráter segregador, a impossibilidade de consumo e a

ambiência mais elitizada de equipamentos como a zona portuária revitalizada da Estação das

Docas (VAINER; BIENENSTEIN; SÁNCHEZ, 2005).

62

Uma nota a acrescentar a esses comentários ficaria por conta do projeto social associado ao Ver-O-Rio. O espaço recebeu

prestadores de serviços egressos de um fundo de microcrédito local, avaliado positivamente por instituições brasileiras de

renome (FERNANDES, 2002), e que se coloca como diferencial em relação aos demais projetos deste corte; haveria uma

dimensão de inclusão social, de certa forma, não necessariamente presente nos demais waterfronts ou parques urbanos à beira

da água, na cidade.

Page 203: Tese Cidade e Agua Jximenes

203

Ilustração 56 Imagem da intervenção urbana Sangria Desatada (2009); outros significados dos espaços culturais

recentes da cidade. Fonte: rede aparelho (2009).

Ilustração 57 Fachada do antigo Hospital Militar da cidade, a Casa das Onze Janelas, com intervenção Sangria

Desatada. Fonte: rede aparelho (2009).

Artistas e performers locais resolveram produzir, em caráter de intervenção artística na

cidade, uma obra que intitularam Sangria Desatada. O projeto era simples: boa parte dos

Page 204: Tese Cidade e Agua Jximenes

204

equipamentos culturais reformados pelo PSDB durante as décadas de 1990 e 2000 era relacionada

às Forças Armadas ou à Polícia Militar do Estado do Pará. Além disso, uma parcela expressiva

destes equipamentos era utilizada, no período da ditadura militar de 1964, como aparelho de

tortura do regime. Os artistas — divulgando sutilmente a relação do então secretário executivo de

cultura do Estado do Pará com a delação no período do regime militar — resolveram produzir uma

seqüência de imagens digitais de rápidas intervenções, em geral nas fachadas dos equipamentos

culturais ou institucionais reformados nas últimas décadas, onde houve recolhimento de presos

políticos ou registros de tortura por parte da ditadura.

Ilustração 58 No complexo Feliz Lusitânia, o Pìer das Onze Janelas, espaço cultural, e a corveta, objeto das

manifestações artísticas do grupo rede aparelho. Foto do autor (set. 2009).

A seqüência de imagens, publicada na internet, se não tem tão virtuosas qualidades

plásticas, é um interessante exercício de provocação política e, indiretamente, uma experiência

estética inteligente. Os artistas, usando um pó que se assemelha ao local coloral (feito de urucu),

pulverizam o produto no passeio em frente aos equipamentos, e os fotografam, sugerindo rastros

de sangue em suas fachadas. Trata-se de quartéis ainda em ativa ou com mudança de uso (como

no caso do Instituto de Artes do Pará, IAP), um antigo claustro religioso convertido em presídio e,

depois, em museu; um hospital militar do século XVIII que abrigou um depósito e almoxarifado do

Page 205: Tese Cidade e Agua Jximenes

205

Exército Brasileiro, com corveta da Marinha do Brasil onde eram feitos interrogatórios de presos

políticos do regime, entre outros locais.

O exercício artístico, portanto, não apenas assinala o caráter não-consensual das

intervenções do plano da política cultural revitalizante na cidade (onde parte razoável está situada

no centro histórico e/ou em margens de rio), mas também lhes acrescenta novo conteúdo e nova

reflexão. A título de exercício memorial, qualifica as atividades e usos anteriores de tais espaços

para confrontá-los aos atuais, articulando à sua historicidade uma dimensão da cidade como

transformação e reposição de signos, onde o poder e a repressão puderam dar lugar ao júbilo do

expectador médio, visitante, destes equipamentos. Os autores também publicaram um manifesto:

Demarcação [mapeamento] dos locais usados pela ditadura militar para a

prática da tortura em Belém do Grão-Pará. Ação da rede [aparelho]-: +

Corredor Polonês Atelier Cultural + quem se juntar a nós. A partir do dia 31 de

março e a qualquer momento, e continua… São lugares comuns do cotidiano da

cidade, alguns transcodificados em espaços de arte e de beleza, entretanto de

suas paredes ainda ecoam gritos de torturados… A cada nova informação,

demarcamos o lugar com uma mancha vermelha, mancha de alerta e de

memória… Este trabalho faz parte da mobilização artística 48h Ditadura Nunca

Mais (rede aparelho, 2009. Gritos do autor).

3.11. PORTO DE BELÉM

Os cursos d´água (e os usos) na cidade de Belém-PA e entorno, por outro lado, também

têm caráter técnico e portuário. A caracterização prévia pontuou, rapidamente, a presença do Porto

de Belém como elemento representativo de seu contexto. Tal representatividade decorre do

interesse na intervenção na orla fluvial de Belém, o que coloca o porto em destaque na discussão.

Além disso, a atividade do porto vem sendo discutida pelas instituições responsáveis nos termos

da chamada modernização portuária, o que abre essencialmente duas frentes de discussão.

Page 206: Tese Cidade e Agua Jximenes

206

Ilustração 59 O Porto de Belém, em operação de carga. Fonte: CDP (2005).

Em primeiro lugar, o teor desta modernização. Por modernização portuária devemos

entender os marcos regulatórios, o modelo tecnológico e de eficiência que remontam à lei federal

no

8.630/1993, a chamada Lei da Modernização Portuária (BRASIL, 1993). Sucintamente, podemos

dizer que são estabelecidas diretrizes de eficiência, viabilidade financeira, privatização e concessão

das instalações portuárias no país. O modelo tecnológico associado corresponde a uma nova

estrutura física dos portos no mundo: equipamentos e área de pátio disponíveis para operação

com contêineres de grande porte; calados profundos; retroárea63

considerável para estocagem e

operação em geral (BAUDOUIN, 1999).

Por outro lado, os portos modernizados exigem, com freqüência, programas detidos de

monitoramento ambiental e intervenções geotécnicas variadas, incluindo dragagens regulares,

como é o caso do Porto de Belém. Em relação ao Estado do Pará, a discussão travada por

instituições de licenciamento ambiental, ensino e pesquisa aponta para a adoção da gestão

ambiental como procedimento de resolução dos impactos ambientais (PARÁ, 2005b) — e

representa uma espécie de revisão do pressuposto anterior da implantação da infra-estrutura.

Em segundo lugar, a discussão gira em torno de projetos políticos e dos impactos

(eventualmente qualificados como “positivos” ou “negativos”) da modernização portuária e da

63

A “retro-área” (ou o chamado “retro-porto”, conceito assemelhado) equivale a um pátio ou sítio adequados à estocagem, ao

transporte, empilhamento e operação com contêineres, que se constituem hoje nos receptáculos mais modernos das cargas

portuárias mais rentáveis, como máquinas e equipamentos, por exemplo.

Page 207: Tese Cidade e Agua Jximenes

207

migração de algumas atividades do Porto de Belém. O que se pretende remover é, basicamente,

algumas modalidades de transporte de cargas. Caso a modernização portuária fosse levada a cabo

nos termos atualmente debatidos, as cargas em contêineres seriam operadas em um terminal

portuário já qualificado como “Super Porto”, o chamado Terminal Marítimo Offshore do Espadarte,

na Zona do Salgado, região litorânea do Estado do Pará (CDP, 2005). Destinado principalmente à

exportação do minério de ferro e derivados de Carajás-PA (CDP, op. cit.), o porto seria um

exemplar de terminal marítimo operando segundo o padrão da modernização, como um hub port

(BAUDOUIN, op. cit.) A atual viabilidade de execução desta estrutura, muito próxima da tecnologia,

da forma de assentamento territorial e da operação técnica de um porto moderno (um hub port,

terminal logístico de uma cadeia extensa e complexa, multi-modal e ligada a diversos setores da

cadeia produtiva regional), é pouca, entretanto. O terminal do Espadarte é ainda tratado como um

ensaio e como um esboço de projeto para o futuro, embora eventualmente seja aventado como

algo a se considerar e a executar a médio prazo. Na prática, a avaliação desta estrutura apelidada

no meio técnico local como “superporto” (CDP, op. cit.) oscila de acordo com o ambiente político

e, sobretudo, orçamentário nacional.

Várias propostas de relocalização das atividades portuárias de Belém foram elaboradas

ao longo dos últimos 10 anos. Essencialmente ao sabor da conjuntura política, além da proposta

do Terminal do Espadarte, houve discussão em torno da remoção de atividades de transporte de

cargas para o Porto de Vila do Conde (CAP, 2001), no município vizinho de Barcarena-PA. Esta

operação seria deslocada para as proximidades do complexo Albrás-Alunorte, indústria de alumínio

administrada por joint-venture da qual a Companhia Vale do Rio Doce participa, através de

subsidiária.

A idéia central destes vários planos é, entretanto, preservar os aspectos da modernização

portuária (CAP, 2005). A modernização portuária, representando um conjunto de iniciativas de

caráter administrativo e técnico, tem óbvias repercussões no plano físico-territorial. Além disso, o

porto “modernizado” também reconfigura significativamente a região. Isto implicaria em,

necessariamente, ganhos de eficiência para a otimização da acumulação, da economia regional. A

estratégia da eficiência, portanto, objetiva tornar viáveis os territórios que se disponham a implantar

a reconfiguração necessária à “urbanização do neoliberalismo” (BRENNER; THEODORE, 2002). O

processo de relativa liberalização das políticas urbanas indica as cidades como pontos importantes

Page 208: Tese Cidade e Agua Jximenes

208

do processo de incorporação das relações capitalistas contemporâneas. No entanto, este processo

tem basicamente duas frentes de operação: os mega-projetos e a difusão das “melhores práticas”

(BRENNER; THEODORE, 2002). Em ambas estão presentes as idéias da eficiência, da rentabilidade

dos investimentos e da difusão dos padrões de reconfiguração e gestão territorial. O padrão

contemporâneo de reconfiguração territorial e política, portanto, pode ser lido através destas

frentes. Isto está presente no caso deste trabalho, seja através do processo de modernização de

portos, das técnicas do gerenciamento ambiental, da revitalização mediante parcerias público-

privado ou através do modelo de projeto urbano com vistas a dotar o território de competitividade e

atratividade para os capitais. Conferir “eficiência” econômica ao território é, portanto, uma

premissa deste modelo de planejamento. O raciocínio, calcado da idéia de eficiência, adota uma

visão “técnico-material” das cidades (ACSELRAD, 1999) e pretende-se capaz de atingir níveis de

sustentabilidade a partir de metas de desenvolvimento (SACHS, 1997).

Ilustração 60 Porto de Belém; vista do cais acostável, galpão 4. Foto do autor, jan. 2007.

Estes pontos, em conjunto, evidenciam uma tendência do controle difuso, da apropriação

e da regulação do acesso ao território e a suas possibilidades. Os fenômenos concretos

correspondem a uma abordagem acerca da percepção contemporânea do ambiente na cidade e,

ainda, acerca das formas atuais de intervenção sobre o ambiente e de sua apropriação.

Page 209: Tese Cidade e Agua Jximenes

209

Obviamente, as formas de apropriação assinalam padrões diferenciados, desiguais. Isto é próprio

da dinâmica de estruturação territorial do capitalismo, na ativação de novas possibilidades e na

produção contínua de novas obsolescências (SMITH, 1988).

Ilustração 61 O porto de Belém, visto a partir da Baía do Guajará. Fonte: CDP (2005).

Há hoje um urbanismo que faz parte de estratégias de desenvolvimento econômico,

articuladas à produção de uma imagem positiva da cidade e a avaliações sobre sua “eficiência”.

Este urbanismo, e as demais formas de planejamento que lhe são correlatas, pretendem intervir na

funcionalidade das estruturas e fluxos da cidade, nos serviços e na qualidade do ambiente urbano.

As intervenções territoriais feitas nesta concepção pretendem articular, também, diversos níveis de

“sustentabilidade” (ACSELRAD, 2001) à cidade. Estas “sustentabilidades” seriam desejáveis para o

crescimento do produto, para a manutenção da qualidade paisagística, urbanística e ambiental de

bairros e vizinhanças, para produzir ganhos de produtividade e eficiência na cidade ou

simplesmente para dotá-la de equipamentos e serviços que lhe garantam o necessário diferencial

competitivo num circuito mais amplo. Nestas variadas perspectivas de “sustentabilidade“ o novo

urbanismo adota inclusive um discurso, uma prática e uma técnica devidamente “ecologizadas”

para lidar com o território. Este conjunto se manifesta nas políticas e nos projetos urbanos, como

na incorporação da dimensão patrimonial e cultural às iniciativas do planejamento ou na aplicação

de técnicas ambientalmente menos “agressivas” aos processos físico-químicos e ecológicos no

ambiente urbano em geral (ACSELRAD, op. cit.) Esta dimensão da adaptação das técnicas está

Page 210: Tese Cidade e Agua Jximenes

210

presente, no caso de Belém-PA, pelo menos nas intervenções novas do saneamento ambiental e

nos programas de gestão da água e do ambiente em geral, como no caso do monitoramento das

zonas portuárias estaduais. Como tem sido de praxe na aplicação técnica da gestão ambiental, tais

programas de gestão, monitoramento, sistemas de informação e processos técnicos de

intervenção credenciam projetos e políticas junto a um suposto padrão legítimo, durável ou

sustentável de processamento da paisagem. Esta seria, portanto, a base das certificações,

buscadas inclusive pelo próprio Porto de Belém para melhor inserção no processo de

modernização das zonas portuárias nacionais.

As intervenções territoriais nas margens do rio e da baía que circundam Belém são

exemplares neste sentido. Concebidas como partes de projetos de soerguimento econômico e

“devolução” do acesso do habitante da cidade às benesses da contemplação das águas da região,

tais intervenções mostram-se representativas da forma atual de produzir o espaço urbano — com

base nas referências do chamado Planejamento Estratégico de Cidades. Por outro lado, são

expressões de uma abordagem do urbanismo e do planejamento urbano contemporâneos. Esta

abordagem, em parte, é pautada na ênfase da dimensão ambiental e em sua repercussão e

disseminação “positiva” em demais aspectos da cidade.

Há uma abordagem atual no urbanismo e no planejamento urbano que advoga um

tratamento diferenciado, “compreensivo” e menos “agressivo” ao ambiente. Esta “escola” de

planejamento territorial influenciou políticas urbanas que hoje se vinculam a discursos

ambientalistas e estimulam o uso de técnicas tidas como ecologicamente mais adequadas64

. Da

mesma forma como foi produzida uma associação do urbanismo contemporâneo com a produção

de imagens positivas da cidade para os projetos de desenvolvimento econômico, a dimensão

ambiental é também incorporada ao amplo projeto de recolocação das cidades como agentes. A

paisagem natural das cidades passa a ser compreendida, interpretada e operada como fator

importante na produção contemporânea do lugar. O ambiente entra como diferencial do preço da

terra, mas também enquanto cenário, local da fruição e do consumo visuais. Isto se torna

particularmente claro no caso das antigas zonas portuárias, tecnologicamente obsoletas para os

64

Mello (2005), por exemplo, localiza a partir da obra de Ian McHarg e seu Design with nature o surgimento de um urbanismo,

de um paisagismo e de uma engenharia mais preocupados com a dimensão ecológica. A partir desta nova compreensão,

verdadeiramente paradigmática, é que podemos entender a abordagem contemporânea da chamada “engenharia ambiental”,

com seu tratamento contextualizado às espécies nativas, a materiais biodegradáveis, à “revitalização” de caminhos de água,

etc.

Page 211: Tese Cidade e Agua Jximenes

211

padrões atuais e portanto qualificadas como “decaídas”. Nestas áreas, com o esvaziamento das

funcionalidades dos antigos portos, resta a capitalização sobre as visualidades do patrimônio

construído e da paisagem natural. A “natureza” é convertida em “paisagem”. A dimensão

enquadrada do ambiente que excluiria o humano (DESCOLA, 1997) é enquadrada justamente porque

nisto implicam operações políticas de escolha, de supressão e de destaque de certos itens; é,

portanto, uma imagem a ser construída e praticada como administração (CAUQUELIN, 2007). Na

verdade, a paisagem e o ambiente tornam-se elementos de geração de “atratividades” para as

formas atuais de determinados setores da economia, considerados estratégicos para as cidades; o

turismo, os serviços de assessoria em geral, as finanças, as comunicações, a publicidade e o

transporte65

. De certa forma diferente da idéia economicista do “recurso natural” (LEFF, 2003;

2006), esta operação de conversão trabalha com o ambiente de maneira estetizada, imagética e,

por vezes, passadista. A dimensão “patrimonial” (ACSELRAD, 2001) da política urbana se sobressai

e estrutura uma abordagem da natureza que não passa necessariamente pelo plano instrumental,

“utilitário” e pragmático, mas por um pragmatismo de variados outros matizes. Na verdade,

estrutura-se uma estética da paisagem associada a discursos sobre a beleza das antigas

operações portuárias, sobre o encanto da passagem das antigas embarcações e sua relação com

um perfil identitário inventado a partir de referências eleitas como “próprias” da região.

Um outro lado da revitalização das zonas portuárias tecnologicamente obsoletas é a

modernização portuária. Há portos, hoje, que se tornaram objeto de reestruturação em vários

sentidos. Suas infra-estruturas foram substituídas e/ou atualizadas para padrões considerados

mais avançados e economicamente competitivos hoje. Estes padrões pressupõem, em linhas

gerais, o aumento da capacidade de operação, áreas de atracação e canais navegáveis de calado66

maior, gruas e guindastes maiores, mais modernos e mais rápidos, significativas áreas de pátio

65

Em Sassen (1998) há a indicação de setores da economia que passam atualmente por grandes transformações e aumento

da rentabilidade e da dinâmica das transações, além do crescimento da escala dos negócios. Em suma, interessa o

apontamento do terciário como uma espécie de motor de parte importante que emprega as chamadas novas elites.

66

Tecnicamente, distância vertical entre a linha d´água e a quilha de uma embarcação; espécie de medida indireta de

densidade e profundidade das águas para efeito de cálculo de sua navegabilidade. Mais especificamente, é a profundidade

entre a linha d água e a quilha da embarcação, que orienta quais navios podem operar no porto. Para a discussão sobre a

modernização portuária ver Cocco; Silva (1999).

Page 212: Tese Cidade e Agua Jximenes

212

para disposição, armazenamento e estocagem de carga conteinerizada67

e programas sistemáticos

de gestão ambiental.

A modernização portuária seria um duplo processo de mudança, tecnológica e territorial,

mas também de gestão e planejamento operacional. Desta forma, os portos modernizados, cujo

exemplo clássico são os chamados hub ports, devem ser tecnologicamente avançados e

gerencialmente eficientes. Obviamente as duas dimensões implicam em notáveis impactos sócio-

econômicos, territoriais e ambientais às cidades portuárias e seus entornos, no mínimo. Segundo

Smith (1988), na dimensão espacial do capitalismo, as novas possibilidades ativadas no território

implicam, dialeticamente, na criação sistemática de obsolescências noutras localizações. É disto

que se trata o par hub port/waterfront, na verdade. Em outras palavras, seriam lados

temporalmente diferentes da zona portuária; um ligado à nova economia da informação e a um

volume e estrutura de fluxos maior, mais integrada e diferenciada; e um outro, tributário do modelo

econômico de exportação pós-imperialista de finais do século XIX e início do XX, ainda intimamente

atrelado aos capitais comerciais e a complexas cadeias econômicas de industrialização e

beneficiamento de matérias-primas.

Em termos deste trabalho, o caso da modernização portuária em Belém remete a uma

investigação sobre aspectos tecnológicos e institucionais da reestruturação portuária na

atualidade. É evidente, neste caso, a transformação do território às proximidades da água, no caso

dos portos. A modernização portuária é um exemplo das dinâmicas de alteração das

espacialidades sob a influência do capitalismo. Isto se reflete na diminuição da intensidade de uso

de alguns lugares; no eventual esvaziamento funcional/econômico e, por outro lado, na

incorporação de novas localizações na territorialização do sistema econômico capitalista. O

conjunto de equipamentos, o arranjo da materialidade do porto e os sentidos e funcionalidades a

ele atribuídos acabam sendo interessantes evidências do aspecto racionalizante e totalizador da

territorialização própria do capitalismo. Neste processo, o sentido da racionalidade atinge tal grau

da abstração e auto-justificação que torna legítimas as premissas pré-concebidas da precisão

científica e da razão iluminista (MATOS, 1990), apesar de e contra as dimensões da vida, da

concretude e da pluralidade das formas de produzir a existência. Isto é próprio do processo de

67

Desde os anos 1960, as “caixas” metálicas padronizadas dos contêineres se consolidaram como padrão moderno de

acondicionamento de cargas para transporte marítimo (DOUMENGE, 1967), inclusive integradas a outros modais de transporte,

como o trem. O neologismo “conteinerizada” é corrente no setor devido a este fato.

Page 213: Tese Cidade e Agua Jximenes

213

abstração no capitalismo, e mesmo da naturalização de sua própria lógica, tornada não-histórica,

narrada como se sempre tivesse estado ali (MARX, 2007). Surgem, portanto, os discursos técnicos

acerca da necessidade da reestruturação territorial, que redundam, por exemplo, na modernização

dos portos seculares.

Os fenômenos concretos, referências históricas e materiais, apontam para a

convergência de intervenções territoriais na relação entre o processo de urbanização e a

presença/proximidade da água. As intervenções territoriais citadas, já executadas ou em projeto e

discussão, sintetizam a maneira como a água se apresenta como dado substantivo da paisagem e,

especificamente, da cidade — neste caso, inclusive enquanto insumo da produção, item de

consumo e recurso (SWYNGEDOUW, 2001). Este caráter substantivo da água, no caso, é um ponto

central entre os fenômenos concretos aqui relatados e seus efeitos e desdobramentos já em curso

na região da cidade de Belém-PA.

De maneira variada e difusa, mas teoricamente válida, pode-se afirmar, portanto, que

existam hoje iniciativas que confirmam a apropriação desigual do acesso à “natureza” na cidade.

Isto pode ser dito sobre qualquer dado a ser recortado no “ambiente” urbano; a vegetação, o solo,

o ar. Posto que o ambiente (urbano, inclusive) não se mostra homogêneo a todos, as parcelas de

território efetivamente usadas por alguns serão, também, desiguais, como o são as próprias

localizações na cidade. Um aspecto interessante, entretanto, e que guarda alguma particularidade,

é a centralidade da água nesta discussão de um suposto “ambiente urbano”. Por outro lado, é

possível, a partir do recorte do estudo da água na cidade, inferir algumas formas diferenciadas de

uso, de apropriação e de produção do espaço que denotam sentidos e práticas também diferentes.

Dentre as várias formas de uso e apropriação territorializadas da água, o porto, o parque

e, portanto, o entreposto costumam ser notáveis e históricas. A forma contemporânea que tais

usos tomam é relevante, contemporaneamente. A questão sugerida por esta realidade, hoje, é que

há iniciativas, processos, práticas e políticas de agenciamento, controle, monitoramento,

apropriação e conversão da água e de seu território correlato. Sem entender por “água” a

substância, elemento natural apenas, mas entendendo-a enquanto elemento constituinte do

território, condicionante de algumas relações.

A partir das formas de conexão entre territórios à água, para transportes e fluxos de

mercadorias, cargas e artefatos, estruturou-se o problema dos portos antigos e de sua

Page 214: Tese Cidade e Agua Jximenes

214

modernização. A partir da tecnologia de operação desses portos foi instaurado um padrão que

influencia decisivamente o processo de territorialização do capital e que produz “obsolescências” e

resíduos do desenvolvimento noutros espaços. Este movimento duplo, de acionamento de espaços

e criação de obsolescências de outros, é o que nos parece estruturar o porto e o waterfront (e

demais parques culturais nas antigas zonas portuárias “decaídas”); o passado, visualmente e

economicamente, é apropriado a partir do setor dinâmico da economia atual e da modernização

das mesmas estruturas em outras bases criando novas formas de conduzir fluxos e gerar divisas,

por exemplo.

O porto moderno é uma estrutura técnica, predominantemente. Obviamente tem função

econômica clara, mas sua operação atende de maneira razoavelmente rigorosa a determinados

critérios locacionais e físico-ambientais, como o calado, a navegabilidade e o relevo, que não são

alteráveis senão com algum custo. A discussão sobre a modernização de determinada zona

portuária parece, sempre, ser atravessada por um recorrente debate: a tensão entre a estrutura

portuária secular, de uma forma de circulação de mercadorias anterior à atual, e as demandas

atuais pela sua transformação, migração ou extinção. Esta tensão produz resultados interessantes

para o estudo da cidade, e para a sua dimensão ambiental. O porto é uma das estruturas urbanas

que exibe de forma clara a dimensão técnica das chamadas “águas urbanas”. Esta “água técnica”

de que se vale o porto é um dado curioso, pois aborda aquele mesmo item da paisagem68

de modo

a tratá-lo como veículo, enquanto seu uso do solo vizinho (a Estação das Docas, no caso de

Belém-PA, por exemplo) o aborda como paisagem de consumo visual (ZUKIN, 2000).

Por outro lado, o porto modernizado também evidencia a tensão entre processos de

racionalização e transformação urbana e as formas anteriores existentes no território. O processo

de modernização portuária não apenas confronta os velhos portos e os qualifica como tecnológica

e administrativamente obsoletos, portanto economicamente inviáveis. A modernização atual de

portos, na cidade, aponta também para o aprofundamento claro da instalação de padrões mais

diferenciados sobre o uso das águas, das formas consideradas legítimas e apropriadas de seu

aproveitamento. Há, neste caso, uma situação de aproximação entre o cercamento das terras onde

o mercado não havia amadurecido e controlado objetivamente a posse e a aplicação concreta da

68

Nas acepções relatadas por Baker (2003) e Cauquelin (2007), a paisagem pode ser entendida ao mesmo tempo como a

reunião de coletividades sobre a terra, a instauração política sobre o espaço e a visão perspectiva do terreno.

Page 215: Tese Cidade e Agua Jximenes

215

alteração do uso portuário na cidade de Belém-PA. Assim, recentes intervenções de órgãos

públicos regionais atendem aos ditames da disciplina, do ordenamento territorial do uso da orla

marítima brasileira, representadas pela adesão da cidade de Belém-PA ao Projeto Orla do Ministério

do Meio Ambiente (MMA), por exemplo.

O Porto de Belém, atravessado por estas discussões, mostra uma seqüência de

propostas de modificação, de relocalização de usos e instalação de novas possibilidades, mas

essencialmente se revela uma estrutura em conflito. Este conflito, como citado anteriormente, é

comum a outras cidades portuárias. Uma questão relevante deste caso é a tensão (que extrapola a

escala urbana) sobre o uso a ser destinado às águas da cidade, a seus fatores locacionais e

diferenciações potenciais de aproveitamento. Uma tendência, a partir do caso em estudo, parece

ser a de consolidação de padrões economicamente mais elevados, mais formalizados, controlados

institucionalmente e centralizados administrativamente, de exploração portuária. Haveria, em

paralelo, a tentativa de inscrição da cidade em um circuito de mercadorias, bens e serviços com a

nova estrutura portuária — seja ela adaptada dentro do possível, ainda no centro da cidade, ou

construída em uma nova localização mais distante, de grande porte. Persiste, entretanto, o conflito;

se a tal “água urbana” é ao mesmo tempo mais de um sentido e mais de uma prática, como

coexistem tais usos e tais formas diferentes de abordagem do elemento?

Nesta interação de usos e padrões é necessário considerar a relação entre a dimensão

técnica destes corpos d´água na cidade e a chamada economia da cultura (JAMESON, 2001). O

gosto contemporâneo de classes de renda mais alta e padrão de consumo diferenciado cria

também demanda por novos espaços, sobretudo aqueles ligados à citada economia da cultura e

às novas formas de consumo visual (ZUKIN, 2000) da paisagem e da natureza — entendida como a

dimensão do não-humano nesta mesma paisagem. Esta “natureza”, reconfigurada e dotada de

novo sentido, adquire então o papel do diferencial dos espaços, de um novo “resgate” estruturado

a partir de sociabilidades mediadas pelo consumo, pela idéia de comunhão harmônica com o

natural (MELLO, 2005), ou de uma cidade mais limpa e agradável, como é freqüentemente discutido

no caso europeu (EMELIANOFF, 2003). Por outro lado, conforme Descola (1998) cita, as passagens

entre os domínios da natureza e da cultura, e a própria idéia de natureza, são plásticas, e podem

depender de atribuições de sentido e de procedimentos culturalmente instituídos.

A respeito da água (ou do litoral), desde que as operações científicas da cartografia e da

Page 216: Tese Cidade e Agua Jximenes

216

navegação permitiram o esquadrinhamento do mar (DELEUZE; GUATTARI, 1997), vê-se na

modernidade a estruturação crescente de uma política de controle, monitoramento e apropriação

da água, de seu caráter “liso”, indefinido e não-controlável espacialmente e politicamente. Este

“controle”, entretanto, ocorre de forma difusa, e parece estar articulado à dimensão dos efeitos

destas e de outras intervenções que guardam relação com a produção do território e a presença da

água como condicionante. Haveria, neste caso, certo grau de convergência entre os efeitos destes

projetos (parques, espaços públicos, museus), intervenções (estruturas técnicas, portuárias, infra-

estruturais) ou políticas (gestão ambiental e de recursos hídricos). No caso dos portos, haveria

uma evidente tendência à racionalização, portanto, e à criação de algum tipo de clivagem, de

divisão no acesso aos diferenciais representados pelas margens fluviais da cidade.

Um exemplo corrente desta dimensão política pode ser o da acentuação da economia

ambiental, no enquadramento do “ambiente” no que ele tinha ainda de “bem” imperfeito, no jargão

dos manuais da economia tradicional. Isto tem relação, por exemplo, com a reconfiguração do

porto moderno, a mudança da paisagem cultural e “natural” dos parques da economia da cultura,

o desaparecimento das formas múltiplas e tidas como “caóticas” de apropriação plural e variada

das zonas de interface território-água e as políticas de “gestão de recursos hídricos” atuais. Tais

iniciativas (ao mesmo tempo técnicas e políticas, sócio-econômicas e ambientais) expressam a

problemática: o fato de que se estrutura, hoje, uma política de controle, apropriação e

esquadrinhamento do território às proximidades da água, com todas as suas idiossincrasias. Isto

cria um novo aspecto do padrão de assimetria da apropriação do território no capitalismo, presente

nos exemplos estudados e relatados.

3.12. BACIAS HIDROGRÁFICAS: ORDENAMENTO TERRITORIAL E GESTÃO

Um aspecto institucional e político, com claro fundamento técnico, é o surgimento da

chamada gestão de recursos hídricos no cenário da política ambiental e, por conseguinte, do

ordenamento territorial no Brasil. A gestão das águas no país vem influenciada por uma

multiplicidade de instrumentos, embora tenha uma base nitidamente inspirada no modelo francês

de gestão por bacia hidrográfica, como é sabido. É necessário entender as especificidades do

Brasil, suas diferenças regionais (que não são apenas fisiográficas) e, portanto, discutir possíveis

aplicações destes instrumentos e princípios da política de gestão dos recursos da água. A

Page 217: Tese Cidade e Agua Jximenes

217

aplicabilidade e a transposição deste conhecimento, destas técnicas e destas políticas não

acontecem sem conflito atualmente. No Estado do Pará, por exemplo, nota-se um contexto

surpreendentemente variado; apesar de estar situado na Amazônia brasileira, o território do Pará

não apresenta distribuição igualmente abundante de água (SEMA, 2009), e no caso da região de

Belém-PA, embora este elemento esteja disponível, o uso urbano demanda, imediatamente, formas

diversas de tratamento.

A política ambiental no Estado do Pará tem apresentado um perfil assemelhado a

iniciativas de outras regiões, no aspecto da chamada gestão de recursos hídricos. Embora seja

possível admitir que o modelo francês de gestão por bacia hidrográfica se revele, de fato, um

paradigma de ordenamento territorial e de intervenção, é necessário investigar aspectos internos à

elaboração e aplicação da política ambiental no setor, para o caso em estudo.

Em período anterior, o órgão estadual responsável pela política ambiental — a Secretaria

Executiva de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente (SECTAM) — elaborou documento referente à

Conferência Estadual de Meio Ambiente (PARÁ, 2005b), em sessão preparatória para a Conferência

Nacional, a ser realizada junto ao Ministério do Meio Ambiente (MMA) do Governo Federal

brasileiro. O documento da conferência estadual é colocado como síntese das diretrizes da política

ambiental no estado, sobretudo nos seguintes temas:

Recursos hídricos;

Biodiversidade e espaços territoriais protegidos;

Agricultura, pecuária, recursos pesqueiros e florestais;

Infra-estrutura: transporte e energia;

Meio ambiente urbano;

Mudanças climáticas;

Gestão ambiental integrada: experiências, entraves e possibilidades;

Educação ambiental na conferência estadual do meio ambiente – Pará;

Políticas de desenvolvimento científico e tecnológico no Pará: impactos,

impasses e possibilidades de gestão;

Recursos minerais e garimpagem;

Sistema nacional de meio ambiente (PARÁ, 2005b, p. 2).

Da mesma forma, a política de gestão de recursos hídricos segue, em linhas gerais, os

pressupostos colocados pelo Ministério do Meio Ambiente na Política Nacional de Recursos

Hídricos (MMA, 2006): divisão por bacia hidrográfica, para planejamento, modelagem,

caracterização de usos da água, dimensionamento hidrológico da bacia e gestão da política;

conferências setoriais de planejamento participativo; sistema de monitoramento e

Page 218: Tese Cidade e Agua Jximenes

218

acompanhamento; criação de fundos para manutenção de sistemas hídricos, com ou sem previsão

de cobrança de outorga pelo uso da água; definição de instrumentos de gestão territorial (outorga,

acordos de pesca, termos de ajustamento de conduta, zoneamento ambiental, etc.) aplicados às

bacias; definição de recortes territoriais de intervenção, dentre outros.

A área de estudo deste trabalho, no plano nacional, pode ser enquadrada em duas regiões

de bacias hidrográficas da Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH): as Regiões

Hidrográficas Amazônica e do Tocantins-Araguaia (MMA, 2004), (ver Ilustração 62) . Assim como

na formulação sobre a tripla “problemática” da sustentabilidade urbana de Campbell (1996), o

Ministério do Meio Ambiente coloca a duração dos recursos hídricos como uma combinação

articulada de três “vetores da sustentabilidade” (MMA, 2006, v. 3, p. 17. Grifo nosso.): “ecológico

(visão integrada ou holística); ético (eqüidade social e arranjos institucionais); econômico

(distribuição de custos e benefícios)”. A “resultante” do sistema vetorial seria dada por “DS = E³”

(idem, op. cit., p. 17.)69

A equação, contudo teria desdobramentos mais complexos do que o

terceiro grau que a expressão matemática mostra.

Podem ser identificados problemas de natureza sócio-ambiental no relatório da

conferência; um exemplo é a observação de que não se trabalha no plano estritamente físico,

como ocorre eventualmente no setor. No plano estadual, a citada conferência de meio ambiente

argumenta que existe um padrão de impacto ambiental destinado recorrentemente aos pobres no

território:

A degradação ambiental afeta a sociedade de forma diferenciada, atingindo com

maior rigor as populações mais pobres das periferias dos centros urbanos e as

comunidades rurais de baixa renda. O desenvolvimento sustentável não se

construirá sobre essas bases. É preciso mudar paradigmas e fortalecer

iniciativas que se baseiam [...] nos princípios estabelecidos nas Metas do

Milênio e na Agenda 21. A importância desses assuntos, que não são

exclusividade do Brasil, expressa-se em diversos eventos internacionais

relacionados aos recursos hídricos (PARÁ, 2005b, p. 4).

Por outro lado, parecem persistir as contradições entre determinados elementos do

discurso da política ambiental, como a desigualdade, o acesso aos “recursos”, a participação

popular, a democratização das decisões políticas, a transparência na gestão, a inteligibilidade do

conteúdo técnico e os instrumentos corretos de aplicação. Embora haja, por exemplo, o

69

O volume 3 do Plano Nacional de Recursos Hídricos é destinado às diretrizes de intervenção.

Page 219: Tese Cidade e Agua Jximenes

219

reconhecimento do padrão capitalista de concentração do acesso aos benefícios do território e, de

forma análoga, da distribuição desigual do impacto negativo e da degradação dos ecossistemas, o

instrumental acionado é, em síntese, aquele mesmo que produz a concentração e a desigualdade.

Obviamente há nuances na questão. No entanto, parecem persistir, no campo da técnica e da

aplicação dos conceitos, noções muito próximas da raiz do ordenamento territorial, “tradicional” ou

“clássico”, seja na divisão euclidiana das zonas como áreas planas sobre as quais são associados

atributos qualitativos e quantitativos (manchas), ou através da definição de prioridades no território

via cartografia, corredores, vetores (e, portanto, linhas). Fora de qualquer “crítica” pura ao

instrumento técnico, a questão a se discutir é a dos efeitos sociais e econômicos de tais medidas;

há diversas evidências históricas de concentração de benefícios e desigualdade de acesso,

inclusive em áreas receptoras destas políticas de ordenamento territorial.

Ilustração 62 Divisão regional das bacias hidrográficas brasileiras. A área de estudo aparece em amarelo (Amazônica)

e em marrom (Tocantins-Araguaia). Fonte: MMA (2004, p. 16).

Atualmente o Estado do Pará apresenta a revisão de sua política ambiental; do mesmo

modo, entretanto, estão situados os principais marcos conceituais e técnicos da questão ambiental

no Estado, ainda em processo de discussão e busca de parâmetros de desempenho e definições

técnicas. A influência do modelo proposto pelo Plano Nacional de Recursos Hídricos é um fato, e,

de certo modo, as diretrizes contidas naquele documento são aceitas hoje pelo setor como

Page 220: Tese Cidade e Agua Jximenes

220

politicamente inovadoras, tecnicamente avançadas e como efetivas formas de ordenar o uso do

recurso hídrico. No contexto em análise, os órgãos estaduais incumbidos da gestão ambiental se

empenham em produzir novos formatos de planejamento e gestão. Por razões inclusive

institucionais, estes formatos contam com sistemas de monitoramento à distância, e com o uso de

tecnologias de geoprocessamento através da aplicação de um possível sistema online de

monitoramento ambiental, onde o processo de licenciamento pode ser iniciado e onde as

informações ambientais do Estado do Pará poderiam ser acessadas. O modelo atual de eficiência e

transparência na gestão pública é aplicado, através de mecanismos formais e impessoais de

acesso à informação (e, portanto, por mecanismos de abstração dos agentes sociais, vendo a

questão por outro ângulo). O sistema de monitoramento e gestão ambiental (SEMA, 2008) atual

prevê a disponibilidade de dados e, sobretudo, o trabalho a partir dos municípios e da informação

atualizada e filtrada, conforme o perfil setorial da política. Assim, são monitorados, inicialmente,

dados referentes às queimadas, ao uso da água, ao volume da produção de diversos itens, ao

volume do produto do setor terciário, à localização e porte de grandes projetos (mineração,

energia, exploração de madeira, etc.), ao cadastro ambiental e territorial rural e à presença dos

gradientes das áreas de preservação (SEMA, 2008).

Ilustração 63 Mapa da região hidrográfica Tocantins-Araguaia. A ANA (2009): potencial para agricultura irrigada,

urbanização alta, carência de esgotamento sanitário e necessidade de adequação de usos. Fonte: ANA (2009).

Page 221: Tese Cidade e Agua Jximenes

221

Ilustração 64 Mapa da região hidrográfica do Amazonas, a "maior do mundo em disponibilidade de água" (ANA, 2009.

Grande extensão territorial, concentração do recurso hídrico, baixas densidades demográficas, grande biodiversidade e

necessidade de estudo da sub-bacia do Rio Xingu, por ocasião da hidrelétrica de Belo Monte (PA), são apontadas.

Fonte: ANA (2009).

As Áreas de Proteção Permanente (APPs), figuras previstas no Código Florestal brasileiro

como áreas non-aedificandi, são listadas como elementos a considerar no zoneamento ambiental

sobre o território. Basicamente são estabelecidas as possibilidades de instalação das APPs, e

definidos níveis de conservação ambiental existentes. Daí surge o conceito de Área Degradada

(AD). Uma área de preservação, portanto, pode apresentar característica de degradação, sendo

considerada APPD. Segundo o documento (que se baseia, como dito, no Código Florestal e na

interpretação dada acerca de sua aplicabilidade ao meio urbano e rural), as APPs (que pressupõem

algum veto à ocupação territorial, visando a preservação do ambiente) surgem a partir de “[...]

rios, lagoas, nascentes, restrição de declividade, escarpa70

e espelho d´água [...]” (SEMA, 2008,

p. 38).

Uma questão válida, e ainda polêmica, é a discussão em torno da outorga de uso.

Institucionalmente chamada de Outorga de direito de uso de recursos hídricos (SEMA, 2009), o

70

Condicionante pouco presente na área em estudo. As escarpas são tidas como áreas de preservação e fragilidade ambiental

inclusive na Lei de Parcelamento do Solo Urbano, a Lei Federal 6.766, de 1979.

Page 222: Tese Cidade e Agua Jximenes

222

instrumento teria como objetivo “[...] assegurar o controle quantitativo e qualitativo dos usos da

água e o efetivo exercício dos direitos de acesso aos recursos hídricos” (SEMA, 2009). Isto

aconteceria em casos de “[...] uso de determinada vazão ou volume de água, ou para realizar

interferência hidráulica como poços e barramentos.” (SEMA, op. cit.) Fracalanza (2005), entre

outros analistas, coloca a questão como inserção do ambiente na esfera de mercado. A produção

de uma equivalência econômica para a água, como “item” do ambiente, seria uma extensão da

lógica do comportamento da economia segundo a interpretação neoclássica, e representaria sua

tendência à regulação por estes mecanismos de troca e do livre mercado (ROMEIRO, 2003). O

próprio órgão ambiental sustenta a proposta da cobrança por alguns usos da água, afirmando que

a cobrança generalizada do instrumento “[...] protege o usuário contra o uso predador de outros

usuários que não possuem outorga” (SEMA, 2009). A regulação dos custos e das valorações

econômicas, assim, poderia ser feita a partir da correta estimativa da contabilidade ambiental.

Nesta concepção, havendo um sistema de preços e de informações apropriado, haveria

teoricamente condições de criar um contexto favorável à gestão do ambiente.

A política ambiental aplicada aos chamados “recursos hídricos” urbanos concebe a

questão a partir dos traços da formulação hegemônica da gestão ambiental. Neste sentido,

persistem inclusive os conflitos nacionais entre planejamento urbano e recursos hídricos. Uma

política ambiental urbana, segundo os preceitos do setor de meio ambiente do Estado do Pará

deve, por exemplo, lidar com a questão da educação ambiental e monitorar eficientemente a

geração de resíduos e a degradação dos corpos hídricos. A questão é colocada nos seguintes

termos:

[...] A ausência de políticas que abranjam as áreas metropolitanas torna mais

difícil equacionar os graves problemas de controle de enchentes, poluição,

destinação final de resíduos, proteção dos mananciais e ocupação de áreas de

risco. Por outro lado, os planos diretores, quando existem, só dialogam com a

cidade formal. Dessa forma, reproduzem e ampliam a informalidade [...] (PARÁ,

2005b, p. 34).

[...]

Drenagem urbana - As enchentes e os alagamentos tornam-se cada vez mais

freqüentes nas cidades médias e grandes. Isso se deve à deposição indevida de

resíduos nas margens dos cursos d´água, por falta de educação ambiental, cuja

proteção está prevista no Código Florestal (PARÁ, op. cit., p. 35. Grifo dos

autores).

[...]

A cidade na agenda global - Cada vez mais, as cidades promovem diversos

espaços de integração internacional. Além disso, a gestão urbana tem enorme

Page 223: Tese Cidade e Agua Jximenes

223

impacto nas questões ambientais globais, como o efeito estufa e o consumo

energético. Assim, o cumprimento dos compromissos internacionais inclui a

gestão ambiental urbana (PARÁ, op. cit., p. 36. Grifo dos autores).

[...]

Políticas - A construção da Agenda 21 Local, por meio da parceria entre governo

e sociedade em conselhos gestores, constitui instrumento para definir um plano

estratégico e participativo de ações em âmbitos econômico, social e ambiental.

O planejamento deve incluir a vocação produtiva da cidade em harmonia com o

entorno rural, com sua identidade cultural e ambiental, visando a ampliação de

emprego e de renda.

[...]

O zoneamento ecológico-econômico é fundamental para o desenvolvimento rural

e urbano e deve se integrar com outros instrumentos de gestão, como os

preconizados pela política de recursos hídricos, que tem a bacia hidrográfica

como unidade de planejamento.

[...]

Indicadores de sustentabilidade: acesso a moradia adequada; grau de poluição

hídrica; acesso a coleta e tratamento de resíduos sólidos e líquidos; metros

quadrados de áreas verdes por habitante; percentagem de empregos gerados

pela interface urbano-rural, como turismo rural, e ecoturismo; número de viagens

entre área urbana e rural (Idem, op. cit., p. 37. Grifo dos autores).

[...]

Prevenção, monitoramento e redução de riscos de acidentes e emergências

ambientais relacionadas a enchentes e desmoronamentos em áreas de riscos.

[...]

Articulação entre gestores urbanos, órgãos ambientais para evitar o avanço das

cidades sobre áreas de relevante biodiversidade, como mangues.

(Idem, ibidem, p. 39).

Desta forma é que se torna possível conceber a articulação de iniciativas diferentes no

campo da urbanização e de seu planejamento, mas com repercussões significativas na interface

do território urbanizado com a presença da água. A política ambiental estadual, em sua

conferência, fala em aspectos quantitativos, relacionando diretamente os impactos ambientais

negativos à questão demográfica nas cidades e à sua expansão territorial na dinâmica de

incorporação de terras rurais às urbanas:

[...] Outro aspecto relevante é o da qualidade da água dos mananciais,

diretamente relacionada às formas de uso e ocupação dos solos, tanto no meio

rural quanto no urbano. O crescimento das cidades tem provocado a

impermeabilização dos solos, a conseqüente redução da infiltração da água das

chuvas e a produção de mais resíduos sólidos (lixo) e esgoto a cada ano.

(PARÁ, 2005b, p. 4).

Apesar do reconhecimento do caráter socialmente desigual da degradação ambiental,

Page 224: Tese Cidade e Agua Jximenes

224

esta política setorial, no Estado do Pará71

estabelece diretrizes razoavelmente similares aos padrões

hoje vigentes no setor. A idéia de “regulação” dos benefícios e malefícios do uso e da apropriação

do ambiente e a possibilidade de uma correta (e até certo ponto, economicamente racional)

“gestão” de seus “recursos” (ROMEIRO, 2004) e bases ambientais é o que norteia a política, nestes

termos. Acredita-se, contemporaneamente, na gestão do ambiente como ferramenta técnica e

política de construção da paisagem como quadro (CAUQUELIN, 2007), como síntese, e como

contexto da base física, sócio-política e, portanto, territorial da vida, da reprodução social. Assim

como acontece com a gestão racional moderna dos recursos, feita pela Ciência Econômica, a

gestão do ambiente (ou, em termos mais totais, da paisagem) cabe ao paisagista, ao ecólogo e ao

urbanista, em sua função eminentemente administrativa (CAUQUELIN, op. cit.) de fazer o

ordenamento territorial, colocando cada elemento em seu lugar.

É a fluidez das relações de poder, misturadas à função ordenadora do Estado e

materializadas na paisagem ambiental (entendida e tornada território, isto é, com as sociedades

dentro) o que leva à possibilidade de uma “gestão da água”. O contexto histórico não é, portanto,

apenas o da incorporação do ambiente como fator de produção, como item passível de avaliação e

contabilização econômica, como item que sofre a economização do mundo (LEFF, 2003; 2006).

Este aspecto ocorre com a água; tornada “recurso hídrico”, a água passa por um processo

semântico, material, simbólico, cultural e econômico (isto é, social e histórico) de conversão da

paisagem em mercadoria. Tornada recurso, portanto, ela se aproxima do equivalente universal,

medida essencial na economia capitalista (FRACALANZA, 2005). No contexto do estuário guajarino (e

em parte razoável de seu entorno), como de resto na economia capitalista, a conversão em

mercadoria é uma tendência. No entanto, no caso em estudo este processo parece ser parte de

uma série de iniciativas que, não estando propriamente articuladas, são coesas quanto ao

processo de modernização. Haveria, entre seus efeitos, certo grau de convergência.

O território urbanizado às proximidades e sob a influência dos cursos d´água, na região

em estudo, apresenta uma série de iniciativas que apontam para formas difusas e variadas de

controle, de regulação do uso e da apropriação de seus diferenciais ambientais. A “água” do

71

Apesar da mudança recente de orientação política no governo estadual, diversos elementos sugerem certa continuidade das

ações públicas no setor, com aumento da abrangência da gestão ambiental em direção ao interior do estado e, sobretudo, na

relação com o setor produtivo. É desta forma que se torna possível, e metodologicamente viável, considerar como fonte de

pesquisa válida o conjunto de diretrizes e demandas coletadas em audiências públicas da Conferência Estadual de Meio

Ambiente da gestão passada do mandato estadual.

Page 225: Tese Cidade e Agua Jximenes

225

estuário guajarino, portanto, de forma assemelhada a processos atualmente em curso noutros

lugares, constitui historicamente um território crescentemente submetido a uma política de

controle, embora difuso e ainda em formação. Esta política, no entanto, se apresenta de formas

variadas e abertas: na regulação dos usos e formas de ocupação do solo; na definição de

prioridades e novas formas de capitalização sobre o consumo visual da paisagem (ZUKIN, 2000);

na modernização de estruturas técnicas dependentes da localização próxima à água; na articulação

entre espaços utilizados (economicamente produtivos ou não) e na anuência do Estado quanto ao

uso e a escala — como na gestão de recursos hídricos. Em princípio desarticuladas, tais

iniciativas apontam, no mesmo tempo histórico e sob as mesmas condições materiais e

institucionais, para um processo de modernização, abstração, racionalização e sobretudo

constituição de desigualdades territoriais e, portanto, ambientais.

Page 226: Tese Cidade e Agua Jximenes

226

4. INTERVENÇÕES TERRITORIAIS E POLÍTICA DA ÁGUA

No caso em estudo nota-se a dimensão substantiva da água na cidade de Belém-PA a

partir das intervenções territoriais e políticas de caráter ambiental, territorial ou sócio-econômico.

Esta dimensão tem relevância pela própria estruturação da cidade, e de resto pela urbanização

secular na região Amazônica como um todo. A pretensão deste estudo, neste momento, é a de

estabelecer uma discussão entre quatro das diversas formas de usar as águas no território

urbanizado para entender quais seriam os possíveis contornos de uma problemática

contemporânea de ordenamento territorial entre cidade e água. Estas formas não esgotam as

possibilidades desta relação; apenas permitem leituras válidas.

Cada uma das quatro formas de intervenção territorial citadas permite a discussão da

relação entre cidade e água de uma maneira distinta. Nestas formas de intervenção, as abordagens

e os modos de uso e apropriação do ambiente na cidade são diferenciados, não apenas pela

diversidade de atividades desempenhadas nas margens dos cursos d´água urbanos, mas também

pelas formas diversas pelas quais são produzidas possibilidades de entrada e acesso, e de veto, a

este elemento do ambiente. O parque urbano do tipo waterfront, as aplicações da engenharia e do

paisagismo ambientais, a modernização portuária e a gestão de recursos hídricos, em termos

conceituais, implicam em efeitos diferenciados, mas que tendem a certo grau de convergência no

sentido de enfeixar e sintetizar uma ampla e difusa política de controle do ambiente na cidade.

O território urbanizado às proximidades da água72

pode ser abordado de diversas formas;

pela particularidade de suas práticas, pelas representações e culturas associadas aos grupos que o

usam ou nele habitam, pela materialidade de sua ocupação. O que parece residir em todos estes

casos, entretanto, é o aspecto contemporâneo de racionalização e reprodução da assimetria em

sua apropriação. O aspecto da racionalização nas medidas de intervenção e na aplicação das

técnicas, embora tenha uma associação histórica com as resoluções de problemas empíricos,

“mecânicos”, também tem relação com processos de abstração de questões concretas, de

projetos de artefatos idealizados (ROSSI, 2001) e, portanto, desconectados de questões de outros

campos que não aqueles estritamente relacionados à formulação inicial de um problema “técnico”.

72

Ou, em outras palavras, o que estamos denominando aqui de zona de interface.

Page 227: Tese Cidade e Agua Jximenes

227

Por outro lado, parece existir um elemento comum àquele conjunto de quatro fenômenos

que denominamos intervenções territoriais. Este elemento comum agrega características destas

quatro formas de intervenção territorial, relacionando-as à reprodução e à criação da desigualdade

no acesso ao ambiente, e à água no território. Desta forma, embora haja abordagens diferentes da

água na cidade para cada tipo de intervenção territorial, parece haver uma dimensão coincidente,

de encontro dos efeitos destas formas sobre as modalidades contemporâneas de acesso às

possibilidades da interface entre o território urbano e as águas. Este encontro dos efeitos é avaliado

como uma espécie de convergência. A idéia de uma convergência de efeitos estaria ligada às

várias formas de desigualdade social e espacial decorrentes destas práticas e políticas

contemporâneas, e correspondentes a territórios relacionados à água em suas atividades. As

intervenções e políticas praticadas nestes locais, expostos aos condicionantes de suas

especificidades, parecem induzir a um conjunto de ações que limitam as possibilidades de uso e

apropriação do ambiente na cidade (e, de resto, nos territórios em geral). A idéia de limitação não é

nenhuma novidade no campo do ordenamento territorial, já que este se baseia fundamentalmente

em vetos e seletividades sobre escala, padrões e usos do solo. O que parece relativamente novo,

em determinados aspectos, é o fato de iniciativas em princípio conceitualmente diferentes

representarem aproximações em torno destes vetos e seletividades; embora versando sobre temas

diferentes e atuando sobre partes dos mesmos territórios, estas iniciativas, ou intervenções

territoriais e políticas, têm se mostrado capazes de desenhar um cenário de novos problemas no

campo do desenvolvimento, em sentido amplo.

Há, decerto, uma prática antiga na ciência e na aplicação do Direito, por exemplo, sobre

as zonas costeiras nacionais e sobre os acordos internacionais de uso destes. Há a codificação,

milenar, de técnicas de aproveitamento da linha costeira, das margens de rios e lagos, há diversas

formas de assentamento tradicionais que se criaram e aperfeiçoaram, em situações econômicas e

sítios físicos diversos, para o uso da beira da água como possibilidade de fixação e de expansão

espacial, de territorialização. Ademais, conflitos (potenciais e factuais) em torno das possibilidades

de uso e de acesso à água hoje são discutidos de forma generalizada inclusive no Brasil (RIBEIRO,

2003), e mobilizam a política ambiental a tratá-los, quase sempre, em uma perspectiva que

extrapola a do domínio técnico da hidrologia ou da drenagem urbana, por exemplo. A “água”,

sobretudo no que diz respeito à interface com o território ocupado, tornou-se tema multidisciplinar,

Page 228: Tese Cidade e Agua Jximenes

228

inclusive pelo seu uso variado. Com atribuições e usos diversos, e abordagens idem, a “água”

pode ser construída, conceitualmente, como condicionante de aspectos territoriais através de

várias iniciativas ao mesmo tempo, e com efeitos diversos, embora convergentes. O conflito

generalizado em torno deste condicionante, de certo modo, reforça os indícios de que haja algum

conjunto de interesses e expectativas em torno das possibilidades da água sobre o território.

4.1. “ÁGUAS URBANAS”

Como forma de abordar o fenômeno adota-se a identificação de quatro tipos

contemporâneos de intervenções territoriais: o parque urbano de lazer e consumo do waterfront; o

porto modernizado; a engenharia ambiental; a gestão de recursos hídricos. Estes temas foram

acionados ao longo do trabalho para caracterizar os fenômenos de referência da elaboração

conceitual. O termo intervenções territoriais, na falta de denominação mais apropriada, pretende

apenas sintetizar os fenômenos, mais genericamente. Trata-se de citar, indiretamente, os esforços

em torno da criação de um desenho espacial característico de exigências atuais no uso das

cidades, ou em torno da produção de condições sócio-econômicas, institucionais, legais e

administrativas de operação das novas possibilidades sócio-econômicas de aproveitamento destes

espaços diferenciados da interface entre o território e os cursos d´água em geral. Embora estes

quatro tipos de intervenções territoriais não esgotem os usos e padrões de aproveitamento

territorial da água na cidade, o que seria virtualmente impossível, há neles possibilidades de

avaliação do problema, pois cobrem um espectro razoável de situações para análise. Estes usos,

adicionalmente, podem articular as esferas da engenharia, da indústria cultural, dos transportes e

das políticas ambientais. Neste sentido, pensar diferentes ações em curso em espaços urbanos

próximos ou sob a influência de usos relacionados à água é útil para raciocinar em que medida há,

de fato, implicações de uma atual “questão da água” na cidade. Esta questão da água, neste

trabalho, poderia ser abordada a partir daqueles quatro tipos de intervenções, como possibilidades

de leitura do fenômeno.

Os parques urbanos, por exemplo, que são ora mais diretamente relacionados aos

contornos atuais da política cultural nas cidades, ora ligados ao mote da política ambiental,

costumam explorar a dimensão da água na cidade enquanto paisagem. Esta aplicação do termo

paisagem, no caso, estaria inicialmente mais próxima da formulação de Sharon Zukin (2000) sobre

Page 229: Tese Cidade e Agua Jximenes

229

os espaços liminares e sobre as paisagens do poder, no sentido da segregação sócio-econômica e

cultural, e da separação entre usos “nobres” da cidade e aqueles associados a algum tipo de

marginalidade e periferização. As cidades atuais, sobretudo as de grande porte, teriam uma

tendência a criar ritualmente estes espaços, e a reproduzi-los na dinâmica de ativação de novas

frentes de exploração econômica e de transformação dos lugares. São, portanto, paisagens do

poder porque sintetizam certa imobilização de capitais e de intenções para produzir os efeitos da

nova economia, das divisões (de classe, de certo modo) em torno do consumo diferenciado, da

possibilidade de acesso aos novos serviços (ZUKIN, 1991; 2000). A água, nestes locais, é uma

espécie de item cenográfico; no ocaso tecnológico e de gestão das antigas zonas portuárias

seculares são criados parques urbanos cujo apelo estético e funcional é o de acionar a imagem do

porto que não está mais ali. O porto, convertido no produto contemporâneo do waterfront, parque

urbano portuário de amenidades, lazer e consumo (HARVEY, 2000), aborda as chamadas “águas

urbanas” convertendo-as em paisagem como um enquadramento das atividades novas instaladas

no local, com o acúmulo histórico das estruturas materiais que nele repousam.

O outro lado dos parques urbanos do tipo waterfront está no porto modernizado. Neste

caso a abordagem das chamadas “águas urbanas” é dada pela dimensão da água de caráter

“técnico”. Esta água “técnica” está relacionada à sua dimensão na cidade enquanto veículo, meio

dos fluxos de transportes e também como receptáculo, como sumidouro e local de destinação do

rejeito, do resíduo, para posterior escoamento. Neste aspecto, portanto, há certa aproximação

entre a abordagem da água na engenharia ambiental (ou no saneamento, em sentido aberto) com a

abordagem própria do porto. A dimensão das chamadas “águas urbanas” a ser ressaltada quanto

ao porto modernizado, portanto, é a da água enquanto veículo. Neste sentido, a dimensão da

racionalização é mais evidente e é importante para o caso. O porto, em sua versão atual, demanda

estruturas físicas e um modelo de gestão específicos (BAUDOUIN, 1999), e condiciona novas

relações inter-regionais (BAUDOUIN, 2003) colaborando na formação de outros arranjos espaciais

da economia entre cidades e seus entornos. As águas na cidade, portanto, têm um aspecto

particular na questão do porto, nesta aplicação específica da água como veículo, como meio e

como forma de deslocamento ou de escoamento de rejeitos. Adicionalmente, já que há atividades

urbanas que são, por definição, formas de produção e de consumo ao mesmo tempo (CASTELLS,

2000), esta “água urbana” é, também, fator de produção. Neste caso, a vinculação entre a

Page 230: Tese Cidade e Agua Jximenes

230

economia no território e esta dimensão ambiental oferece elementos para o entendimento de

alguns aspectos dos conflitos pela água e seus espaços correlatos. Por outro lado, esta dimensão

ambiental também assinala que o condicionante territorial que os cursos d´água representariam

estaria exposto a processos de racionalização do tempo, dos arranjos espaciais e das

rentabilidades, tal como ocorre com outros elementos que concorrem para o processo produtivo.

Isto encerra o raciocínio; a água na cidade, vista a partir do porto modernizado, é uma água

“técnica”, veículo, meio e fator de produção, e sofre processos de disputa e um tipo de

racionalização sobretudo do arranjo espacial e da escala dos fluxos; regionais, nacionais,

transnacionais.

Ainda em um campo dito “técnico”, isto é, das aplicações de noções tidas como

científicas para fins de resolução de problemas empíricos e para a produção de artefatos com

resultados específicos (ROSSI, 2001), as contribuições novas da engenharia para o saneamento e a

recuperação ambiental urbanos são relevantes. Chama-se, neste trabalho, este campo disciplinar e

suas técnicas aplicadas de engenharia ambiental, embora seja claro que esta não sintetize

totalmente as contribuições vindas de interfaces com o urbanismo, com o paisagismo, com a

economia ou com a biologia, por exemplo, ou mesmo em relação a especialidades como a famosa

engenharia de águas francesa. Esta engenharia de parâmetros revisitados e suas aplicações têm

apresentado a capacidade de abordar as “águas urbanas” também enquanto veículo, mas

combinando esta abordagem com outros sentidos possíveis na cidade.

Ocorre uma revisão de parâmetros, portanto; estudos passam a demonstrar que certo

mecanicismo das soluções de saneamento é passível de relativização. O escoamento das águas

(sujas, limpas, navegáveis ou não) passa, neste campo disciplinar, a ser considerado de outras

formas, como em um movimento de retomada de algumas antigas lógicas da engenharia e da

“pré-engenharia” européia e asiática, por exemplo. Especificamente, o que aqui chamamos de

engenharia ambiental pode ser o agente de descanalização de rios urbanos. Este aspecto revela-se

curioso inclusive em termos semânticos; o que sofre intervenção sob os novos preceitos da

engenharia ambiental é, hoje, parte das “águas urbanas” enquanto veículo, mas também como

paisagem. Trata-se (ou fala-se) de rios urbanos73

para, por exemplo, retomar os fluxos de

73

No Brasil, inclusive, tanto em meios técnicos na administração pública quanto nas Universidades e eventos científicos

ligados à área.

Page 231: Tese Cidade e Agua Jximenes

231

transportes na recuperação da navegabilidade dos antigos canais de drenagem; sua característica

técnica anterior é parcialmente posta em segundo plano, ao menos retoricamente, e é ressaltada

sua dimensão paisagística. Em relação ao canal, forma anterior, o rio urbano é visto como

paisagem e fluxo de transportes; do outro lado, o canal é “transporte dos fluxos”.

A aplicabilidade das três formas anteriores de intervenção territorial pode ser relacionada

com uma a outra forma de intervenção, mais ampla, mais difusa e generalizada em atividades

ligadas a espaços próximos à água em geral. A gestão de recursos hídricos, por adotar como

princípio a regulação das formas de uso, acesso e aproveitamento das águas no território, assume

esta característica. A gestão de recursos hídricos, no âmbito estadual, se declara articulada à

política federal (MMA, 2006) e se propõe a mediar conflitos de uso da água no Estado, bem como

resolvê-los, em última instância (SEMA, 2009). Além destes aspectos, a idéia de uma gestão das

águas no território não apenas instaura nele formas de regulação do uso, da ocupação e do

aproveitamento dos espaços e de suas águas, mas também uma forma generalizada de

monitoramento, e alguns padrões, relativamente definidos, de desempenho. Neste sentido, a

gestão das águas se coloca como atividade política de grande relevância e representatividade, e

com pretensões significativas de ordenamento territorial, no sentido direto e indireto. Ao propor

uma gestão (noção empresarial, tributária da crítica aos processos burocráticos de planejamento e

previsão/controle de eventos) de elementos enquadrados como recursos (noção econômica, cuja

abordagem denota a preocupação com os processos produtivos e com as viabilidades das

atividades e usos da água) ambientais, hídricos, esta política se coloca como administradora da

paisagem dos territórios fronteiriços às águas. Esta postura, que é de método, de técnica e

também de concepção (visual e política, inclusive), ajudou historicamente a construir uma noção

de paisagem enquanto ambiente, “natureza” (CAUQUELIN, 2007) que engloba as dimensões da vida

social e dos itens inanimados. Obviamente, a gestão de recursos hídricos também incorpora

aquele princípio típico das políticas “clássicas” de ordenamento territorial: a prevalência do

interesse coletivo, o sentido do compartilhamento do território e de suas possibilidades e

benesses, a idéia de uma instância geral que regule as relações sociais sobre o espaço. Gerir as

águas, entretanto, pode ser interpretado como atividade tributária da concepção da natureza

ecônoma, e da escolha por itens da paisagem (CAUQUELIN, op. cit.) Neste sentido, a abordagem das

águas (agora em maior escala, regional, por exemplo) como recurso não poderia ser mais

Page 232: Tese Cidade e Agua Jximenes

232

apropriada, e isto pressupõe, como em qualquer desmembramento de processos produtivos, a

formação de um mercado, de uma estrutura de insumos, de um sistema de preços e, portanto, de

princípios de reciprocidade e equivalência. Nesta dinâmica, itens, formas, arranjos, usos,

atividades e formas de apropriação do recurso que se revelem desarticuladas de aspectos dos

padrões atuais da política de gestão de recursos hídricos tendem a ser, progressivamente,

segmentados em sua aplicação, ou eliminados das categorias ditas legítimas junto às

normatividades do planejamento ambiental.

4.2. CIDADE E ÁGUA: INTERVENÇÕES, CONFLITOS

Sem recorrer a qualquer imagem idílica e passadista da “Natureza” em suas variadas

formas, é razoável apontar que o mercado de terras e a modernização do uso do território tenham

acarretado modificações ao caso do estuário guajarino, especificamente no entorno de Belém-PA.

A instalação e a consolidação de um mercado de terras mais dinâmico, crescentemente

formalizado, de estratos de demanda diferenciados (por valor e por uso) têm criado condições para

a transformação das características das suas margens fluviais. Isto também pode ser analisado de

forma inversa. A instalação mais clara de um mercado formal de terras com certa densidade de

transações e pressão fundiária não é apenas vista como condição para mudanças no território,

mas como um dado, sinal da alteração das maneiras de ver, representar, conjecturar e intervir

sobre o ambiente e suas relações sociais. É um sinal de um dos aspectos do processo de

modernização, em que os itens e as coisas passam a se relacionar por meio da troca econômica.

Estas atribuições de sentido e ações sobre o ambiente consistem, em linhas mais gerais,

em procedimentos sobre as visualidades, imagens e seus impactos e sobre as práticas materiais

(HARVEY, 1996b) instaladas no espaço. De forma análoga, a materialização de formas

contemporâneas do domínio da técnica74

e da apropriação da paisagem promove uma alteração na

atribuição de sentidos ao ambiente e também nas formas de territorialização. Estas formas, que

não são identificáveis apenas como “estruturas” materiais, são esquematicamente representadas

pelas iniciativas, ações e agenciamentos (DELEUZE; GUATTARI, 1997a) apontados previamente.

74

Como as construções, equipamentos e veículos, por exemplo, no caso das instalações portuárias, parques urbanos e demais

atividades relativas ao caso.

Page 233: Tese Cidade e Agua Jximenes

233

Colocam-se, portanto, não apenas como estruturas materiais que denotam novos usos (ou formas

recentes de antigos usos), mas como evidência patente, concreta de uma apropriação alterada do

ambiente — de seus diferenciais, suas temporalidades e acúmulos históricos de trabalho e

representações, suas benesses.

Mais concretamente, é possível dizer que as “estruturas” materiais contemporâneas da

área de estudo são, ao mesmo tempo, evidências desta política de controle da água e condições

para que ela possa se desenvolver. Este ponto não tem qualquer pretensão, obviamente, de

estabelecer primazia entre a dimensão material ou imaterial do território, ou ainda sobre a

materialidade do território versus sentidos da cultura. Esta não é propriamente uma questão75

,

interessa a maneira como são materializados, fisicamente, os sentidos deste ambiente e como são

mobilizados os tais agenciamentos (DELEUZE; GUATTARI, op. cit.) para reproduzir a assimetria do

acesso ao território relacionado à água. Exemplificando: o impasse tecnológico e administrativo

(ou de “gestão”) (BAUDOUIN, 1999) acerca dos antigos portos centrais e da criação de novos

portos “viáveis” é um caso em que a técnica e a materialidade do território evidenciam esta dupla

possibilidade de análise e constatação. No entanto, não é coerente dizer que haja retroporto,

equipamentos de maior porte, aumento de escala, consórcios, emprego de tecnologias de

telecomunicações, gestão ambiental e cais de maior calado apenas porque as novas exigências do

setor demandam, previamente, o novo modelo. Seria como conceber mudanças sociais

externamente a determinados processos concretos e econômicos, materiais; transformação social

e posteriores intervenções territoriais. Por outro lado, esta materialidade expressa a mudança de

abordagem sobre o ambiente, denota novas condições de uso e apropriação e permite outras

possibilidades; não havendo, entretanto, qualquer obrigatoriedade de “sucessão temporal” entre

estruturas materiais e sentidos do ambiente.

Assim, as estruturas materializadas e os sentidos construídos configuram a síntese do

caráter desigual na apropriação do território à água. Embora seja possível conceber a questão,

como sempre, em termos de categorias fundamentais (a relação desigual com a terra no

capitalismo, a tendência à concentração, etc.), é imprescindível a localização de fenômenos

específicos, embora não-“restritivos”, para delinear os contornos da problemática. A relação entre

75

Já que não há elemento antecedente ou determinante, no caso; respeita-se as condições concretas da materialidade, em

última instância, mas não um predomínio direto do ambiente sobre as intenções e narrativas acerca dele. Se há materialidade

histórica há também sentido da ação.

Page 234: Tese Cidade e Agua Jximenes

234

concepção do ambiente e intervenção territorial nas proximidades da água evidencia uma particular

forma de abordar a natureza no território (sobretudo na cidade, mas não exclusivamente) e novos

padrões de territorialidade e assentamento. E é esta relação que, contemporaneamente, reproduz a

desigualdade, a assimetria no uso e na apropriação do território às proximidades dos cursos

d´água.

Neste sentido, portanto, não há qualquer prevalência de um “nível” sobre o outro. Não

havendo, portanto, qualquer predominância da materialidade territorial sobre os sentidos do

ambiente (ou entre práticas e idéias, por correlação), pode-se ilustrar a natureza das relações entre

eles, no objeto em estudo. Um papel fundamental, no caso, é dado às retóricas, aos discursos e à

sua relação íntima com as estruturas materiais no território cidade/água. A caracterização das

“necessidades” sociais pelas quais se deve modernizar um porto ou reabilitar uma antiga estrutura

construída de zona portuária central ilustra bem este argumento. O significativo investimento

(social, político, cultural e econômico) implicado em uma complexa operação de grande alcance

sócio-econômico e territorial, como a construção de um porto modernizado ou a reabilitação de

antiga zona portuária central, depende de maneira crucial do poder de convencimento dos

discursos, da narrativa das retóricas e, essencialmente, do esvaziamento, da diluição, de seu

sentido econômico. Retirar do econômico (BOURDIEU, 1996b), no caso, move o sentido da

intervenção e a torna tanto mais palatável quanto mais abstratos forem seus propósitos. Há,

portanto, um papel político na operação do discurso, da retórica e da construção de narrativas

sobre o sentido das ações. Além disto, há a “elevação” das motivações76

; a própria ação do

Estado (agente fundamental nas infra-estruturas que chamamos aqui de “intervenções territoriais”)

implica em uma recusa da economia, de certa forma (BOURDIEU, op. cit.)

Este componente de negação do econômico, quando socializado, é um pressuposto

básico da reprodução da desigualdade (BOURDIEU, op. cit.) A socialização destas práticas em torno

de uma economia de bens simbólicos (Idem, op. cit.) reproduz as posições no espaço social. Esta

economia, ainda, garante a legitimidade de determinadas ações, que recebem o caráter abstrato

76

Bourdieu (1996b) usa os casos da Igreja, da educação e do Estado, dentre outros. As ações religiosas, por exemplo, não

devem exibir sua dimensão material, econômica, de certa forma vil e utilitária — trata-se de “[...] calculistas e interessadas

práticas que se definem contra o cálculo e o interesse” (BOURDIEU, op. cit., p. 199). Seus motivos são mais abstratos,

elevados, transcendentes. As ações religiosas, intrinsecamente econômicas na “empresa religiosa” (Bourdieu, 1996b, p. 192),

baseiam-se estruturalmente em uma negação do econômico, em uma complexa relação de negação, prática efetiva e

dissimulação.

Page 235: Tese Cidade e Agua Jximenes

235

devido; tornam-se assim ações marcadas pelo interesse público, pela universalidade própria do

Estado moderno (idem, ibidem).

A relação íntima entre retóricas, discursos, sentidos do ambiente, práticas materiais

(HARVEY, 1996b) e intervenções territoriais está presente no caso em estudo. A mobilização

coletiva em torno de uma suposta identidade cultural (e territorial) relacionada à água como

elemento da paisagem de Belém-PA e entorno comprova a afirmação. A estruturação urbanística (e

econômica) da cidade de Belém-PA sempre esteve ligada ao fator locacional da proximidade da

rede hidrográfica regional; este, inclusive, fora um dos elementos determinantes para a sua

fundação (CRUZ, 1973; SANTOS, 2001). A atual vinculação entre este fator locacional, os

argumentos a favor da alteração da paisagem urbana e a necessária legitimidade política para

executá-los demonstra a capacidade de mobilização coletiva em torno desta economia simbólica,

aplicada à zona de interface, no caso.

A enumeração de intervenções territoriais contemporâneas, portanto, serve para ilustrar a

maneira pela qual são reproduzidas as desigualdades sócio-territoriais na atualidade, lidas no

espaço que chamamos aqui de zona de interface cidade-água. Esta realidade, bastante atual, deve

reforçar as categorias trabalhadas na seqüência histórica inicial da pesquisa. Desta forma, torna-se

possível ligar as duas partes em torno de um raciocínio comum: quais seriam alguns contornos

possíveis da lógica territorial nas proximidades e sob a influência da disponibilidade da água; como

esta lógica se encontra hoje, diante de fenômenos modificados pelas recentes alterações no

capitalismo e na organização da produção no espaço.

A idéia de interface aplicada a estes espaços de beira rio da Região Norte não é

propriamente nova. Outros autores já haviam aplicado noções semelhantes ao mesmo caso,

inclusive à cidade de Belém-PA (TRINDADE JÚNIOR; SANTOS; RAVENA, 2005). A questão é a de

raciocinar sobre as atividades, os usos e os arranjos espaciais praticados nestes territórios. Em

termos conceituais, podemos falar nesta idéia de interface a partir de uma fronteira, de um limite,

de uma linha divisória. Assim, a própria interface, enquanto fronteira, sequer existiria e seria

impossível de se conjecturar caso não existissem suas duas pontas como regiões definidoras

(STANFORD, 2008): o território ocupado e os cursos d´água adjacentes. Estas fronteiras, da

interface, nem sempre são claramente legíveis, e obviamente existem em grande parte em função

de convenções criadas a seu respeito, ou do que se diz a respeito delas (Idem, op. cit.) Sob outra

Page 236: Tese Cidade e Agua Jximenes

236

perspectiva, a idéia de interface, caso esteja ligada à idéia de fronteira, limiar, é dependente das

suas duas (ou mais) pontas; assim, esta interface só pode ser entendida na interação entre as

partes que a delimitam, e há entre elas, portanto, limites compartilhados (Idem, ibidem).

O que chamamos neste trabalho, portanto, de zona de interface poderia ser ilustrado

analogamente a outras figuras dos estudos urbanos e regionais. Moraes (1999), por exemplo,

pergunta qual o alcance da zona costeira de um determinado país, pensando no caso brasileiro. A

aplicação da idéia de alcance, tributária das teorias da localização geográficas clássicas (CLARK,

1991), serviria para identificar a extensão da influência dos cursos d´água em atividades no

território, como a navegação, os portos, os mercados e entrepostos, o uso das praias, a pesca, o

próprio condicionamento de aspectos da economia regional. A extensão e o desenho da zona

costeira, deste modo, dependeriam essencialmente de algum recorte ecológico e físico-ambiental,

mas também da possibilidade de mapeamento da “influência” dos condicionantes da água sobre a

ocupação humana. Neste sentido, quanto maior for a possibilidade de penetração no hinterland,

nas terras emersas continente adentro, das atividades diretamente relacionadas ao litoral, maior

portanto será o alcance da zona costeira (MORAES, 1999).

Neste mesmo sentido, a idéia também clássica da seção de vale do escocês Patrick

Geddes (1994), dispondo atividades econômicas em paralelo a aspectos sintéticos do sítio físico

(vegetação, relevo, clima, fauna), tem traços de certo modo semelhantes. A seção de vale (ver

Ilustração 65) era um recurso analítico, em geral associado a uma visão do território ocupado

pelas sociedades em paralelo à avaliação por bacia hidrográfica (GEDDES, 1994; HALL, 1995). A

análise do território feita por bacia hidrográfica permitiria a Geddes, em sua concepção, relacionar

a ocupação, os usos, os cursos de drenagem e a diversidade de formas de uso e apropriação do

território a partir de um recorte teoricamente fisiográfico que, historicamente, exibiria amostra

razoável dos processos de interesse para seu entendimento. Não interessaria centralmente a

situação daquele terreno quanto a uma abordagem das bacias de drenagem, mas o complexo de

atividades e formas de ocupação ali instalado.

Para analisar aspectos do uso e da ocupação do território nas proximidades e sob a

influência dos condicionantes dos cursos d´água, portanto, pode ser útil falar em interface entre a

ocupação das terras emersas e as águas ali disponíveis. Estas duas pontas da fronteira, ou da

interface, permitiriam inferir que haja padrões de interação nos dois sentidos. Haveria formas

Page 237: Tese Cidade e Agua Jximenes

237

passíveis de dedução e análise, por exemplo, no sentido terra-água: a construção de estruturas

portuárias e sua operação, a instalação de espaços públicos de contemplação, os usos técnicos

das margens, como a drenagem, o escoamento em geral, em barragens diversas e outros. Do

mesmo modo, há formas no sentido inverso, o que poderia ser ilustrado pela atividade de

navegação, por exemplo, mas também pelos usos instalados a partir do regime de marés, valendo-

se do fluxo e da variação de nível da lâmina d´água no terreno. Isto pode englobar diversas

atividades, diretamente produtivas ou não (a agricultura, mas também a operação de infra-

estruturas de saneamento, por exemplo). Como se pode notar, a idéia de interface seria útil para

analisar o conjunto de práticas e de sentidos dados predominantemente de um dos lados do par; o

outro lado, embora não seja um mero condicionante, é usualmente visto como articulado a formas

presentes nas terras emersas, sobretudo.

Ilustração 65 O diagrama clássico de Geddes sobre a seção de vale (relacionando atividades ao ambiente e à bacia

hidrográfica) oferece um curioso exemplo de ecletismo entre determinismo e possibilismo geográfico. Fonte: Geddes

(1994).

No caso em estudo, haveria lógicas e práticas materializadas no que chamamos aqui de

zona de interface. Esta formação territorial, no caso da pesquisa, diz respeito, sobretudo, aos

espaços qualificados como “ribeirinhos” na região. O território “ribeirinho” seria uma expressão de

vários processos de fixação no espaço, de produção de artefatos e práticas, e de orientações na

transformação da paisagem. Neste território estão inscritas as habitações rurais e urbanas às

margens dos cursos d´água, por exemplo (LOUREIRO, 2004), a economia da pesca e do transporte,

Page 238: Tese Cidade e Agua Jximenes

238

as complexas redes comerciais dos entrepostos urbanos situados nas calhas dos rios da Região

Norte (BENCHIMOL, 1995), bem como em seu litoral. Nestes espaços são instalados usos que, em

conjunto, articulam práticas territoriais que são evidências de estratégias de aproveitamento e

potencialização dos diferenciais do território às proximidades e sob alguma influência da água

enquanto condicionante. É desta forma que a construção de estruturas físicas nas cidades, a

ligação destas com as embarcações, o aproveitamento das margens para a criação de zonas

urbanas de entreposto comercial de notável centralidade estruturam, em um mesmo local, um

espaço diferenciado — embora em geral rudimentar para os padrões de urbanização

contemporâneos, no caso das chamadas “cidades ribeirinhas” da Região Norte do Brasil. Este

território guarda, na lógica interna de suas estruturas espaciais, elementos fundamentais da

constituição da zona de interface. Por outro lado, frente às dinâmicas de modernização vigentes,

os espaços ditos “ribeirinhos” apresentam tensões e conflitos próprios do movimento de

territorialização do capital, com reestruturação econômica e concentração de terras e capitais.

Em segundo lugar, há um conjunto de intervenções (e políticas) que exibem mais

claramente a face atualizada de elementos da territorialidade dos espaços historicamente ocupados

às margens da água e, ao mesmo tempo, a problemática que o território urbano próximo à água

apresenta, contemporaneamente. Como já foi mencionado no corpo deste trabalho, estes fatores

(territorialidade contemporânea da zona de interface e sua problemática) são sintetizados em

quatro fenômenos contemporâneos, todos localizados em territórios urbanizados nas proximidades

de cursos d´água em geral, que se identificam com as formas de intervenção territorial atuais em

estudo, conforme citado anteriormente: parques urbanos de beira de água (waterfronts) ligados à

chamada “economia da cultura” (JAMESON, 1996; 2001); parques ambientais e demais espaços

urbanos, criados a partir de inovações técnicas no campo da engenharia e do urbanismo; processo

de dupla alteração nas estruturas portuárias contemporâneas, chamado de modernização

portuária77

, transformação nos modelos de gestão e no padrão tecnológico e de apropriação

territorial dos portos considerados “competitivos” atualmente; “gestão” das águas, no que se

convencionou chamar de gestão de recursos hídricos, com políticas de administração em regime

77

O que no Brasil tem como marcos legais e institucionais os grupos de trabalho do Programa de Revitalização de Áreas

Portuárias (REVAP) do Ministério dos Transportes, levado a cabo pelas diversas autoridades portuárias do país (Companhias

Docas, etc.) e também a Lei de Modernização Portuária (BRASIL, 1993) (ou “Lei dos Portos”, Lei nº. 8.630, de 25 de fevereiro

de 1993).

Page 239: Tese Cidade e Agua Jximenes

239

de parcerias e com um modelo institucional que se pratica, em geral, voltado para a bacia

hidrográfica como unidade de planejamento, gestão e decisão política.

Embora aparentemente tenham apenas a proximidade da água como fator comum (à

exceção da óbvia relação entre waterfront e porto modernizado), estes fenômenos estão bastante

articulados. Na verdade, em suas diversas vertentes, mostram efeitos concretos da concentração

dos benefícios, diferenciais e especificidades da localização às margens de cursos d´água. Por

outro lado, efeitos factuais e mesmo potenciais de suas intervenções criam uma espécie

relativamente coesa e coincidente de “periferia” do ambiente urbano; usos, formas de apropriação

e padrões de ocupação territorial que são residuais ao padrão da política da água tendem a ocupar

lugares menos nobres da interface.

Por outro lado, ocorreram, nas últimas décadas, algumas mudanças no padrão de

urbanização capitalista contemporâneo com impacto em espaços de interesse a este trabalho.

Estas mudanças teriam representatividade tanto no capitalismo avançado quanto nos países em

desenvolvimento. Dentre estas mudanças, no que impacta mais diretamente sobre o caso em

estudo, podemos citar a relativa dispersão territorial da atividade industrial, a reocupação de áreas

urbanas centrais e a produção de novos espaços de “natureza” no interior da cidade — através da

implantação de infra-estruturas, aptas a operar um urbanismo mais “compreensivo” diante das

dinâmicas ambientais urbanas. É desta forma que porções de “natureza” no interior das cidades

são pretensamente reapropriadas. A partir de avanços da engenharia (sanitária, ambiental, entre

outras), são produzidos espaços e infra-estruturas capazes de lidar com o ciclo hidrológico ou a

criação de micro-climas urbanos. Mais comuns do que tais exemplos, entretanto, são os espaços

públicos de caráter “ambiental”; ambientes onde a paisagem se pretende um simulacro idílico da

natureza em miniatura (SCHAMA, 1996). Na aplicação feita neste trabalho, identifica-se este fato na

recuperação ambiental de espaços urbanos a partir de novas demandas das elites locais.

A modificação do perfil das economias nacionais e da economia urbana — com relativa

ascensão da representatividade do terciário entre os setores (SASSEN, 1998) —, acompanhada da

modificação do padrão operacional dos portos modernos, ocasionou uma dupla transformação

nos territórios urbanos portuários. Esta transformação se dá na produção da “obsolescência” das

antigas estruturas portuárias centrais, ou na criação dos portos modernos. Tais estruturas podem

ser tornadas pólos urbanísticos de consumo visual dentro da categoria do patrimônio cultural e

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240

paisagístico, ao mesmo tempo em que são criadas outras estruturas de grande porte e notável

impacto ambiental, grandes consumidoras de energia e recursos públicos, nas imediações da

cidade; os portos modernizados ou hub ports.

Por fim, em uma abordagem mais difusa no território — e mais dependente de um

suporte institucional — encontra-se o conjunto de iniciativas ligadas às chamadas políticas de

gestão de recursos hídricos. Os próprios termos da política são sínteses de suas categorias

fundamentais. Estas categorias dizem respeito a um momento histórico em que a água migra, de

forma hegemônica, da noção de substância78

para outras noções como fator, veículo, via ou, ainda

recurso. Por outro lado, não apenas certa mudança de sentido da água no ambiente sofre

transformações, como a própria abordagem deste. Estas transformações permitem conceber

como, em determinado momento, chegam a ser pensadas políticas, ações públicas do Estado, que

visam o ordenamento de certas atividades no território e que pensam este ordenamento como

mediação entre os usos da água, os agentes sociais envolvidos, a idéia de finitude e a sua

conversão (simbólica, ideológica e material, concreta) em recurso. Ao mesmo tempo em que o

ambiente, apropriado técnica e burocraticamente, torna-se objeto de uma postura administrativa

contemporânea (a “gestão”) (CAUQUELIN, 2007), a questão é também enquadrada como ajuste de

quantidades, fluxos e demandas, inclusive no território.

Pensa-se, portanto, em administrar com a nova lógica de “eficiência” os estoques

materiais do ambiente79

e o ordenamento dos usos e padrões de ocupação do território, em um

novo tipo de esquadrinhamento (DELEUZE; GUATTARI, 1997a), de instalação relativamente diluída do

poder na dimensão espacial, de mapeamento e captura da fluidez do espaço que existia na

dimensão relativamente menos controlada do ambiente ainda não codificado sob tais bases.

78

A noção de substância, tomada historicamente, tem mudado. Podemos dizer que se trata de uma noção moderna, e que ela

pressupõe, na maioria das formulações conceituais, a existência de parcelas menores diante de agregações que formariam as

“substâncias” propriamente ditas. Não há, portanto, na idéia de substância, qualquer possibilidade de pensarmos em um

conceito ou figura “primários”, essenciais, fundamentais, primeiros. A própria noção de substância é, também, uma

construção histórica, em que os compostos químicos (“elementos”, sejam eles químicos ou quase místicos, como a água, a

terra, o fogo, o ar) formariam cadeias maiores — estas sim as tais “substâncias” (ROSSI, 2001). Desta forma, ao pensar a água

como substância, estamos necessariamente abordando o composto que foi a representação da própria fluidez da matéria no

Universo (ROSSI, op. cit.), um dos elementos fundamentais de uma espécie de essencialismo da matéria, onde os compostos

quase tinham “humores” próprios e, por fim, faziam parte de uma “teoria” ou “narrativa” de explicação da própria constituição

material do ambiente. Portanto a própria idéia de substância, sendo moderna, é ao mesmo tempo instrumental, aplicada, e

formada por idéias menos racionalizadas do que se poderia supor.

79

De certo modo, coadunando um dos sentidos da sustentabilidade urbana apontados como técnico-materiais (ACSELRAD,

2001), próprios do discurso contemporâneo da eficiência, aplicado às administrações urbanas.

Page 241: Tese Cidade e Agua Jximenes

241

Historicamente, a formação deste tipo de espaço tem estruturas fundamentais que

tornam possível algum entendimento de sua lógica interna. Por outro lado, estas “lógicas” (não-

absolutas, obviamente) são atravessadas por dinâmicas de modernização, ora em curso na região.

A modernização se reflete, hoje, em intervenções que concentram diferenciais locacionais nos

territórios nas proximidades da água. Desta forma, aquela “lógica”, historicamente constatável nos

assentamentos, pode ser lida novamente nas estruturas urbanas contemporâneas; é justamente

esta possibilidade de apropriar, concentrar e tornar desiguais as formas de acesso ao território

próximo à água o que qualifica o problema.

A desigualdade estruturada no território urbano próximo à água pode ser notada, por

exemplo, nas formas de apropriação do ambiente, da paisagem e de seu consumo visual; na

prioridade das intervenções técnicas; nas estruturas de conexão, continuidade e avanço sobre a

água e na legitimidade política dada aos agentes para ordenar o espaço. Isto acaba reafirmando a

importância desta localização específica, e reeditando não só aqueles elementos fundamentais dos

territórios nas proximidades da água (conexão, extensão, observação, apropriação), mas também

as formas de conflito decorrentes do uso e da apropriação capitalista do solo urbano. Assim, a

problemática se estende às formas materiais e a seus arranjos no território, o que representaria a

dimensão morfológica, espacial (em termos abstratos) e, em síntese, territorial do fenômeno

(integrando a compreensão espacial às dinâmicas sócio-econômicas e às escalas políticas). Mas

a questão também se estende aos antagonismos e embates entre mecanismos de controle do

acesso a terra (pela via do mercado ou nas institucionalidades) e aplicações das prioridades nas

políticas de ordenamento territorial e gestão da água.

A questão da paisagem, neste ponto, é importante, por razões metodológicas. Há uma

dimensão política na própria idéia de paisagem, embora o termo, de uso corrente, em geral sugira

alguma noção de “natureza” e de visão estática do ambiente. Há intenção e gesto de

enquadramento na idéia de paisagem; uma janela de visualização, representação e de corte do

mundo (CAUQUELIN, 2007). Em outras palavras, “[...] um conjunto de valores ordenados em uma

visão, ou seja: uma paisagem” (CAUQUELIN, op. cit., p. 16. Grifo da autora). Em certa perspectiva,

trata-se de uma idéia (ou, tendencialmente, de um conceito) sintética; a paisagem condensa a

dimensão ambiental, em termos abertos, do espaço, juntamente com as suas dinâmicas de

apropriação e de alteração — no mínimo aquelas visualizáveis e desejáveis.

Page 242: Tese Cidade e Agua Jximenes

242

A paisagem, segundo Cauquelin (2007), tem em seu sentido uma duplicidade: a

coexistência das idéias de natureza e a de cultura, a de “paisagem-símbolo” e a de “primeiro Éden”

(idem, op. cit., p. 30). Este sentido múltiplo tem seus riscos, já que há uma tendência à

naturalização da paisagem; a entendê-la como algo dado. Por outro lado, o que se reconhece no

enquadramento da paisagem é, necessariamente, filtrado pela experiência, pelas referências e

pelos sentidos dados por estas (idem, ibidem). Neste aspecto, portanto, a paisagem exibe seu

aspecto político, sobretudo quando da entrada das técnicas, procedimentos e disciplinas que se

pretendem instrumentos de gestão: a Economia, a Administração, o Paisagismo, o Urbanismo

(CAUQUELIN, op. cit.) “Ordenar” o arranjo espacial dos usos e de suas escalas (o que no caso

francês é secular), a partir da pretensão de interesse público do Estado, é uma atividade que

pressupõe a eleição de padrões, modelos, concepções.

“Paisagem”, originalmente, teria entrado na discussão espacial através da Geografia,

como disciplina científica (BAKER, 2003). O termo teria uma espécie de “bifurcação” etimológica.

Pelo lado anglo-saxão, a idéia de paisagem veio do landschaft de Carl Sauer ou, ainda, da

landscape dos ingleses, em uma clara analogia entre ambiente, região, espaço e a própria

paisagem. Numa ponta, uma espécie de coletivo da terra, de comunidade da terra; noutra, uma

visão desta, em perspectiva, uma panorâmica. Neste sentido, haveria até mesmo alguma

indefinição quanto à diferenciação entre tais conceitos, eventualmente considerados semelhantes

(BAKER, op. cit.) A landscape (“visão da terra”, literalmente) inglesa evidenciaria a noção de

ambiente presente no espaço, e por conseguinte, pelo menos em termos iniciais, a mistura de

sentidos entre o espaço como substrato material da ocupação humana e o ambiente como

“natureza”, externa ao homem. A Geografia Humana da virada do século XIX para o século XX

traria, neste caso, a contribuição mais propriamente “social” à questão, a partir de Paul Vidal de la

Blache. A separação entre a paysage (com sua dimensão política embutida; pays seria literalmente

o “país”, jurisdição territorial e delimitação estatal) e o milieu das populações colocaria os termos

em locais separados (BAKER, op. cit.) O debate atual estaria nos seguintes termos:

Por ora gostaria de simplesmente enfatizar que uso o termo “paisagem” para me

referir essencialmente à forma, à estrutura, à aparência, à manifestação visível

das relações entre povos e o espaço/terra que ocupam; o seu milieu (tanto

humano quanto físico), seu funcionamento e seus processos, desvinculados de

sua visibilidade e expressão material. A fusão entre “paisagem” e “ambiente”

dentro da história ambiental atual é confusa, limitando a habilidade de se

incrementar o conhecimento e explorar os dois conceitos (BAKER, 2003, p. 78).

Page 243: Tese Cidade e Agua Jximenes

243

Longe de ser um conceito de ampla capacidade “operacional” na pesquisa, falar em

paisagem é útil porque (na imbricação entre a materialidade do território e seus sentidos e esforços

de mobilização) torna viável a síntese destas noções e dos elementos presentes na dimensão

ambiental do território. Em outro sentido, a idéia (ou uma das possíveis idéias) de paisagem remete

a decisões de clara natureza política. A transformação da paisagem adquire, portanto, sentido

político, na medida em que se revela um processo de definição de prioridade, expressão das

relações de força historicamente formadas e, por fim, das heranças materiais inscritas no território

— espaço político construído historicamente, constrangimento e possibilidade (LIPIETZ, 1992).

Ademais, o uso corrente do conceito no debate ambiental aplicado ao planejamento urbano induz

ao enfrentamento da mesma questão, em termos semelhantes. Atualmente a discussão em torno

das chamadas “águas urbanas” versa acerca do conceito, ou da noção relativamente vaga, de

paisagem, e entabular outra discussão no mesmo campo torna esta aproximação, no mínimo,

necessária.

A transformação da paisagem (e a análise desta transformação) é útil para pensar a

modernização na Região Amazônica. A maneira pela qual ocorrem os assentamentos ditos

“ribeirinhos” na região aponta para aspectos do conflito entre as formas contemporâneas da

territorialidade nestes espaços condicionados pela água e a formação territorial regional. A lógica

de estruturação territorial dos espaços da habitação e da produção nas margens dos rios da região

mostra elementos desta realidade. Há, nestes espaços (casas, roças, trapiches, diques, barrancas

de rio, jiraus80

, vilas e cidades inteiras), diversos artefatos construídos e práticas tradicionais que

apontam para a importância histórica da localização próxima à água para seus habitantes. Na

verdade existem elementos fundamentais, constituídos historicamente, que sintetizam a lógica de

territorialização nas proximidades da água, nestes espaços, e esta lógica pode ser lida, novamente,

nas intervenções territoriais contemporâneas. Neste sentido, haveria certa continuidade das lógicas

de formação territorial tradicionais, em direção à constituição de cidades ribeirinhas na Amazônia,

ou pelo menos assim seria no caso das cidades seculares às margens de rios e lagos da região

(que são maioria, aliás). Além desta continuidade de algumas lógicas territoriais (que se

80

Espécie de plataforma suspensa, em geral executada em madeira, sobre a qual pode-se plantar, habitar, desempenhar

tarefas domésticas, guardar o gado ou armazenar objetos. Constitui uma das formas tradicionais de se produzir o território, a

articulação entre a terra e a água e solucionar o problema da necessidade de se ligar ao curso d´água ao mesmo tempo em

que se mantém a relação com a terra firme.

Page 244: Tese Cidade e Agua Jximenes

244

reproduzem de forma semelhante noutros locais, como na associação entre mercado, porto e

comércio urbano, por exemplo), há confronto com processos típicos da economia e da

espacialidade capitalista. Neste confronto há modificações em fenômenos produtivos, no arranjo

espacial das atividades, no padrão e nas formas de assentamento. Assim, a partir de certos tipos

de modernização nestes territórios condicionados por cursos d´água — como a formalização de

um mercado de terras, a instalação de equipamentos técnicos de circulação e fluxos econômicos

ou de infra-estruturas urbanas modernas —, surgem modificações na região e nas formas de uso

e apropriação destes citados diferenciais das terras.

O conflito, no âmbito do território e das formas sócio-econômicas de reprodução social

(que estão contempladas na dimensão territorial), não é propriamente entre as formas “antigas” e

as “novas” de territorialidade nas proximidades da água. O conflito se dá, sobretudo, na interação

entre práticas e concepções anteriormente vigentes e as novas condições do desenvolvimento

econômico na região. Isto ocorre na forma como os agentes se posicionam nas disputas por

investimentos, e na adesão às novas formulações do ordenamento territorial, que incluem

mecanismos de reconversão do caráter de diversos espaços e monitoramento/controle de outros.

As diversas formas de intervenção territorial nos espaços às proximidades da água confirmam a

especificidade desta localização e evidenciam a sua concentração, formando uma política de

controle difuso. Conforme a construção do poder político e da eminente função política do

discurso, entende-se que haja, na sociedade, formulações que são instrumentos e efetivações da

reprodução de variadas formas de desigualdade social (FOUCAULT, 2009), constituídas por

enunciados e visões de mundo já definidas em normatividades diversas, diluídas em várias ações

do discurso e, por conseguinte, da orientação de outras ações.

Este processo de transformação, de certa forma já conflituoso, é estudado neste trabalho

a partir daquelas quatro formas de intervenção territorial: os parques urbanos da economia da

cultura; os portos modernizados; a engenharia ambiental; a gestão de recursos hídricos. Algumas

avaliações de natureza técnica e conceitual podem ser feitas a respeito destas quatro formas, de

modo a extrair delas elementos que constituam uma questão de ordenamento territorial e de

Page 245: Tese Cidade e Agua Jximenes

245

desdobramento dos efeitos desta convergência rumo a uma política da água81

.

4.3. WATERFRONT E PARQUES URBANOS

Sobre o processo de valorização (dupla; simbólica e material, fundiária) de áreas de

interesse ambiental são representativos os parques urbanos da economia da cultura. Esta idéia, na

verdade, sintetiza vários fenômenos que estão ligados ao consumo da imagem, das visualidades,

dos signos e relacionados aos modos de vida das camadas urbanas médias. De fato, a economia

da cultura é evidência da imbricação entre a materialidade territorial e o caráter especulativo do

mercado, inclusive do mercado de terras e da agregação de valor econômico dada às mercadorias

em decorrência de suas características formais (JAMESON, 2001). A estes dois fatores devem ser

acrescidos os movimentos da economia de bens simbólicos (BOURDIEU, 1996a), não menos

influentes. Desta forma, a cidade contemporânea seria repleta de novas estruturas físicas que

lidam com esta dupla dimensão do mercado. Como assinalado anteriormente, não há qualquer

seqüência ou ordem de acontecimento que regule os eventos, posto que são, ao mesmo tempo,

materiais e simbólicos na produção da cidade.

No ponto que interessa diretamente a este trabalho, os espaços às margens dos cursos

d´água materializam estas estruturas, sobretudo, a partir de espaços de caráter público82

. Estes

espaços são, em geral, áreas de convivência, parques lineares ou antigas estruturas portuárias

reconfiguradas. A dimensão das visualidades (termo caro ao desenho urbano) e o caráter

paisagístico, aqui, é que confere os diferenciais de valor a tais espaços. Capitalizando83

sobre as

antigas cascas arquitetônicas de espaços funcionalmente esvaziados pela dinâmica econômica, a

economia da cultura é uma evidência do reposicionamento de atividades do capitalismo

81

Que poderia ser referente a outras dimensões do “ambiente” no espaço urbano, ou em outros espaços ocupados, como

ocorre com a vegetação, com o solo, com as formações montanhosas ou com a fauna. Há, de fato, imaginários e construções

sociais e históricas diversas que atestam as formulações pelas quais estes itens componentes da “natureza” são considerados

necessários à “preservação” ou úteis às sociedades humanas (SCHAMA, 1996; THOMAS, 1988).

82

Em que pese o forte questionamento acerca do nível de acesso ao público que é dado pelo seu uso concreto, efetivo.

83

Apropriamos o termo economia da cultura da discussão que Fredric Jameson (1996; 2001) faz em seus textos. A idéia

consiste, basicamente, em uma dinamização do setor de políticas culturais rumo a um tipo de “profissionalização” e a um

excepcional aumento de escala das transações, onde os papéis da imagem e da interdependência de atividades no campo das

artes e da cultura são significativos. Assim, o gosto pelo antigo revisitado, as opções de consumo diferenciado, as

sociabilidades típicas de certos grupos de profissionais liberais e os setores da economia mobilizados em função de tais

preferências assumem um papel importante nas políticas urbanas e na transformação física das cidades, incluindo os centros

urbanos.

Page 246: Tese Cidade e Agua Jximenes

246

contemporâneo na cidade. Há alguns anos as atividades de transporte, logística e produção

industrial baseadas em grandes plantas marcaram, por exemplo, as imediações de zonas

portuárias centrais em cidades litorâneas ocidentais, em geral (DOUMENGE, 1967; MORAES, 1999).

Hoje nota-se uma “reconversão” desta dinâmica econômica rumo a usos do terciário, relacionados

à imagem dos centros urbanos e à sutil conexão entre consumo da imaterialidade e requalificação

da estrutura física (JAMESON, 2001). O “tijolo” do peso econômico e da reconfiguração territorial

não se sustenta, portanto, senão acompanhado do “balão” da especulação imobiliária, da

produção de imagens sobre a cidade (JAMESON, op. cit.)

Por outro lado, a dimensão patrimonial (no sentido cultural do termo) associada às

antigas zonas portuárias remete justamente a esta sutileza da operação. No caso do esvaziamento

funcional das antigas cascas portuárias, as classes médias urbanas consomem especificamente

sua imagem (ZUKIN, 1991, 2000), a reminiscência (que não precisa ser pessoal, obviamente) da

atividade; a memória do porto onde ele não mais está. Tecnicamente, no entanto, não há qualquer

compromisso ou rigor metodológico nas intervenções físicas; não se restaura plenamente um

edifício de waterfront; moderniza-se, com direito a todo o apelo do inorgânico possível. Esta

conjunção entre conservação e modernização (CHOAY, 2001), contraditória, porém de inegável

mote “utilitário” (e palatável para o consumidor médio, ávido por novidade e não por lições

museológicas complexas), é que fornece o grau de homogeneização necessária para que o

“produto” atinja o padrão desejável. A zona portuária requalificada (ou revitalizada, ou ainda

reabilitada) é, assim, algo entre a experiência da simulação do passado, vivido em termos

superficiais e solváveis, e a composição de uma percepção festiva de cidade (HARVEY, 2000),

atraente ao investimento, que faz frente à dinâmica territorial de destruição/criação do capitalismo

(SMITH, 1988).

Quando Harvey (1996a, 2000) comenta o fenômeno do parque urbano à beira da água

dos anos 1960, o faz com olhos curiosos acerca da novidade em termos de política urbana e de

intervenção territorial. O waterfront se configura, praticamente, como um tipo no urbanismo

contemporâneo. Em termos físicos, trata-se do complexo de estruturas das zonas portuárias

(galpões, cais, pátio de operações, armazéns, equipamentos, vias, torres) remodelado para

receber usos turísticos e tratamento paisagístico. Freqüentemente são acionados o repertório

visual e o tratamento arquitetural típicos de exemplares feitos sob a encomenda de governos da

Page 247: Tese Cidade e Agua Jximenes

247

tradição dita pós-moderna. O tratamento, tecnicamente virtuoso, do desenho urbano

contemporâneo84

se esmera na produção, projeto, criação estilística e compositiva deliberada do

lugar, da propriedade histórica em camadas, da apropriação e uso (isto é, acesso coletivo e

concreto, material e simbólico, além de utilitário) do espaço urbano. O notável tratamento

arquitetural do waterfront e dos demais parques urbanos litorâneos ou à beira d´água pode ser

sintetizado nos seguintes termos:

Este impulso em direção a uma nova forma de segregação parece ubíquo [...]

Aqui está a renovação urbana em um viés sinistro, uma arquitetura da decepção

que, em sua familiaridade sorridente, se distancia crescentemente das realidades

mais fundamentais. A arquitetura desta cidade é quase que puramente semiótica,

fazendo o jogo do enxerto da significação, do edifício de parque temático. Seja

representando uma historicidade genérica ou uma modernidade genérica, este

desenho urbano é baseado nos mesmos cálculos da propaganda, na idéia de

pura imaginabilidade, ignorando as necessidades reais e as tradições dos

habitantes [...] (SORKIN, 1992, p. XIV-XV. Tradução nossa).

A relativa sofisticação e o apelo do histórico (embora se trate de um tipo particular de

História, recriada segundo uma narrativa simplificada) sintetizam um modelo efetivo de projeto,

ligado a um amplo programa de crescimento econômico e refuncionalização das cidades

litorâneas. São comuns, também, os discursos saudosistas acerca da antiga dinâmica da zona

portuária, bem como dos centros urbanos antigos que tradicionalmente abrigam os portos

seculares.

A construção da imagem de um passado relativamente idealizado e cultural e

economicamente mais próspero, portanto, tem imediata identificação com este discurso

passadista, em que o final do século XIX e o começo do século XX são revisitados como

“elegantes”, “refinados”, próprios de uma sociedade mais “gentil”. Curiosamente, os períodos

coincidem justamente com o ciclo de exploração das infra-estruturas de transporte,

telecomunicações e energia por concessionários ou empresários estrangeiros (no Brasil,

inclusive). Este também é o período em que os portos centrais que hoje conhecemos surgiram,

praticamente no mundo todo (DOUMENGE, 1967). Com eles surge um padrão tecnológico e a

consolidação de um modelo administrativo que durou boa parte do século XX — embora tenha

apresentado alterações a partir dos anos 1960. No entanto, a partir das modificações introduzidas

84

O “contemporâneo” aqui é quase óbvio; é justamente no final da década de 1950 que surge esta sub-disciplina dentro do

urbanismo, a partir de autores como o professor do MIT americano Kevin Lynch e o escocês Gordon Cullen.

Page 248: Tese Cidade e Agua Jximenes

248

com as telecomunicações, o fortalecimento das transações internacionais e do capital financeiro, a

atividade portuária se modifica substancialmente. Desta forma, diante da característica de

desenvolvimento desigual do capitalismo, é possível ler a reconfiguração dos portos centrais como

intimamente ligada a esta modificação85

.

Há uma relação dialética entre os dois fenômenos. A decadência das zonas portuárias

centrais é, essencialmente, um processo decorrente da própria modernização portuária. Assim, o

setor passa por um processo contraditório de destruição e desmantelamento e produz ociosidade

dentro de suas próprias atividades. A partir disto é que surgem as políticas e projetos técnicos de

reconfiguração das estruturas portuárias mais antigas. O waterfront consolida-se como modelo de

intervenção em contextos típicos de estagnação econômica, revalorização fundiária e simbólica do

território às proximidades da água e como parte do reposicionamento de atividades econômicas na

cidade, em novos setores dinâmicos da economia:

As novas estratégias de competitividade dentro do fenômeno da globalização

apoderam-se das áreas portuárias e waterfronts como os locais perfeitos para

espetáculos mediáticos (sic) ou eventos ocasionais, que também lucram com a

sua centralidade e acessibilidade. As cidades, por sua vez, incorporam essas

possibilidades como justificativa para as grandes reconversões e para alavancar

o seu planejamento estratégico, como através de exposições mundiais,

olimpíadas, feiras internacionais [...] (DEL RIO, 2001, p. 4).

Os parques urbanos do tipo waterfront guardam semelhanças com os padrões da

arquitetura comercial moderna. Deste modo, as vitrines, as superfícies metálicas e a assepsia

estética parecem ser tão recorrentes que se aproximam da configuração de uma espécie de

modelo. As transparências e os reflexos, freqüentes nestes espaços inclusive pela forma de

intervenção diante da pré-fabricação dos galpões antigos, sugerem alguma atmosfera de

refinamento e afabilidade às atividades ali desempenhadas. O porto que não está mais no local se

pode notar por referências visuais, pelo caráter museal “facilitado” das exposições, pela presença

de elementos remanescentes da operação técnica do equipamento portuário. Além destes

aspectos, Sharon Zukin (1991) destaca um par: a associação entre variadas e sintéticas

construções da “identidade étnica local” e a gastronomia. Se as zonas portuárias, oriundas da pré-

85

Na formulação de Smith (1988), baseada em teóricos marxistas, é justamente o desdobramento do caráter desigual-

combinado que ajuda a explicar a espacialidade capitalista, na reinvenção de estruturas materiais produtivas, nas formas de

apropriação da Natureza e em sua relação com a acumulação. Sem identificar regiões decadentes e prósperas como pólos, é

possível ler no território dinâmicas de esvaziamento, dominação e investimento articuladas, embora não necessariamente

“funcionais” para o sistema.

Page 249: Tese Cidade e Agua Jximenes

249

fabricação da virada do século XIX ao XX, são padronizadas na sua constituição original e no

posterior modelo de intervenção modernizadora, estes traços culturais não deixam de ser

diferenciais, dentro da concepção do planejamento estratégico de cidades.

Em outra abordagem, podemos falar do waterfront e demais parques urbanos próximos

às zonas portuárias como espaço público. A criação do espaço público, nestes casos, é fenômeno

de interesse, pois agrega freqüentadores a partir de interesses compartilhados; no caso, o

consumo visual (ZUKIN, 2000), genericamente falando. Não se trata, portanto, do espaço de

encontro e de troca, mas da promoção da afinidade dos consumidores, e da oferta de espaços

adequados à instalação dos novos prestadores de serviços urbanos. A dimensão pública destes

espaços, entretanto, é sempre ressaltada, e configurada como uma virtude destes parques.

Discute-se, eventualmente, seu caráter segregador, em função do perfil de consumo que os

espaços condicionam, sobretudo em países em desenvolvimento. Questiona-se, do mesmo modo,

a justificativa social para a concentração de investimentos públicos na reconfiguração destas

zonas portuárias. Em geral, a partir das concepções da parceria público-privada e da disputa pela

atratividade dos lugares (HARVEY, 1996a), a justificativa viria pelos chamados efeitos

multiplicadores da intervenção. Neste sentido, o porto revitalizado teria a capacidade de replicar

seus efeitos pelo entorno, bem como de criar uma ambiência de prosperidade e qualificação de

serviços. De certo modo, é como se aspectos da teoria dos pólos da economia regional (PERROUX,

1967) fossem reeditados dentro da nova economia. A partir da análise ligeira dos efeitos da política

de pólos econômicos como estratégia de concentração e posterior disseminação dos benefícios

do capital, considerando setores como a indústria e os serviços especializados a ela associados,

nota-se contradições no processo, sobretudo no aspecto da capacidade de distribuição do produto

no território regional (BENKO, 2002)86

. A atualização “prática” de certas concepções de pólos

econômicos regionais, mesmo para o caso europeu, já mostra contradições e tendências à

desigualdade na apropriação dos benefícios do investimento, tanto em termos sócio-econômicos

quanto territoriais/regionais.

Colocada como ferramenta magistral do planejamento urbano contemporâneo, a prática

do planejamento estratégico ocupa o contexto de reestruturação produtiva de forma francamente

86

Não é discutida a questão em termos de um setor da economia apenas. A analogia com a indústria de alta tecnologia ou os

serviços a ela associados permite, ao menos, entender a lógica e a carência de base empírica e de experiência nas afirmativas

da concentração de investimentos implicar, necessariamente, em dispersão de benefícios, por exemplo.

Page 250: Tese Cidade e Agua Jximenes

250

hegemônica (ASHWORTH; VOOGD, 1990). Os preceitos do planejamento estratégico, no caso,

orientam as decisões da política rumo a alocações de recursos e projetos de cunho liberalizante

(VAINER, 2000). Tais políticas são, sempre, favoráveis às dinâmicas especulativas de uso e

ocupação do solo, bem como de aumento da atratividade econômica e da lógica competitiva diante

de outros núcleos urbanos. Um papel especial é destinado ao centro da cidade, enquanto local

dotado de diferenciais excepcionais e de instalação dos requisitos da competitividade urbana

(PORTER, 1995). Assim, a instrumentalização da segregação e da concentração de investimentos é

executada através de processos de racionalização de decisões e esvaziamento político (VAINER,

2000) de demandas sociais fragmentadas e diretamente apropriadas pelas elites locais. Além

disso, têm sido comuns a ênfase no controle, a temeridade da segurança, a separação de grupos

sociais e a segregação deliberada pelo desenho urbano em projetos para a metrópole

contemporânea (SORKIN, 1992).

Em termos mais sintéticos: a intervenção territorial a que as zonas portuárias centrais são

submetidas, tornando-as waterfronts, tem o efeito de recolocar as atividades econômicas na

cidade. Divergindo do discurso recorrente das gestões locais, podemos falar em um amplo

processo de reconfiguração das economias urbanas, rumo aos setores tornados recentemente

mais dinâmicos. Esta reconfiguração coloca na ponta da economia — com subsídios estatais,

apoio técnico e divulgação idem — o terciário avançado (SASSEN, 1998), avaliado como mais

dinâmico e rentável na cidade capitalista contemporânea. Saem as “pesadas” estruturas do porto,

seus armazéns de estocagem e indústrias; entram usos articulados à economia da cultura, ao

turismo de massa, à publicidade, às assessorias jurídicas, contábeis e financeiras, à produção de

mídias diversas. Nestes termos, trata-se antes de uma série de operações de “ajuste” das

economias urbanas, de reposicionamento das formas de acumulação na cidade e, portanto, de

afirmação de novos blocos de elites locais. Antes de ser um pretenso projeto de soerguimento

econômico e bem-estar, o modelo de intervenção do waterfront vem atuar sobre as ociosidades

destrutivas e ritualmente produzidas no interior do modo de produção vigente, a partir da

territorialidade urbana. Em termos das formas de abordagem do território urbano nas proximidades

da água, o waterfront, e seus correlatos, são um caso de tratamento da água na cidade enquanto

paisagem, na escolha do enquadramento, pelas opções dos itens a constar (CAUQUELIN, 2007), e

pelas implicações sócio-econômicas e políticas destas opções.

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251

4.4. MODERNIZAÇÃO PORTUÁRIA

Os portos são estruturas urbanas importantes para o entendimento da economia das

cidades contemporâneas; permanecem sendo, como apontado anteriormente, relevantes modais

na logística das exportações mundiais (SASSEN, 1998). Os portos também representam fatores de

um particular processo de modernização, incluindo também certas formas de uso e apropriação do

ambiente; em nosso caso, do território às proximidades, condicionado, sob a influência de cursos

d´água. Na História mais recente, do século XX, a tecnologia e a funções portuárias estiveram,

basicamente, ligadas ao fluxo de cargas, ao papel de ponto de escala e apoio em rotas marítimas

longas, a atividades de coleta e distribuição relativas ao hinterland ou a complexos produtivos de

beneficiamento e escoamento; os chamados portos-relés (DOUMENGE, 1967). Doumenge (op. cit.),

aliás, pontua que a dinamização do setor portuário no mundo impacta mais significativamente nas

zonas portuárias de caráter monofuncional. Isto se dá pela maior exposição às mudanças no setor

e no comércio mundial, sujeitando os portos a perdas de importância mais sérias e objetivas,

decorrentes de tais mudanças.

Como evidência do impacto que as transformações no setor portuário acarretam é que

surge a noção de “esvaziamento funcional” dos portos centrais. Este processo, no entanto, não é

apenas funcional; diz respeito ao modelo de planejamento e de gestão das estruturas portuárias, o

que tem óbvias conseqüências no território e na economia. Os portos centrais, assim, são

qualificados como decadentes, obsoletos, ociosos ou subutilizados.

A crise do setor portuário, porém, não é algo tão objetivo. Tampouco se apresenta como

um problema consensual; se fosse, não resultaria em tamanho conflito. Representa um movimento

rápido, uma dinâmica de transformação territorial, estrutural no capitalismo (SMITH, 1988). Assim,

os portos são tornados obsoletos porque o padrão de tráfego de cargas (principal função destas

estruturas, no modelo atual) muda, e porque, sobretudo, muda a relação das economias com a

própria atividade de exportação e geração de ativos. A logística assume um caráter diferenciado na

economia mais contemporânea pela relativização do tempo e do espaço (HARVEY, 2000), ou

melhor, pela mudança de seus impedimentos, tornados menos restritivos do que outrora. Sassen

(1998), por exemplo, localiza a economia mundial a partir dos anos 1980 como um panorama de

crescente predominância do capital financeiro e de seus fluxos e investimentos, com rebatimento

espacial na concentração de centros de decisão, comando e controle. Neste sentido, é também

Page 252: Tese Cidade e Agua Jximenes

252

afirmada a participação das economias de exportação e do chamado terciário avançado, com bens

e serviços de apoio a esta nova dinâmica. Tais setores, o terciário e o financeiro, lograram

inclusive obter rentabilidades comparativamente maiores àquelas dos setores produtivos (SASSEN,

op. cit.) “clássicos” da economia, como a agricultura e a indústria. Há uma permanência das

estruturas portuárias como pontas de escoamento, seleção e processamento (na escala regional)

do setor produtivo de países avançados (idem, op. cit.) A exportação mundial se dá

majoritariamente pelos portos (MORAES, 1999; SASSEN, op. cit.), e a maior parte das plantas

industriais mundiais está situada em faixas litorâneas, áreas sob a influência da dinâmica territorial

e econômica do mar (MORAES, op. cit.), onde a propósito estariam cerca de dois terços da

população mundial, com a inclusão de territórios estuarinos e ribeirinhos87

(idem, op. cit.) Este

padrão se estende aos chamados países em desenvolvimento; difundido, no mínimo, pelos

critérios de competitividade.

De forma análoga, nota-se atualmente uma concentração de prestadores de serviços

logísticos na operação das principais rotas portuárias do mundo (BAUDOUIN, 2003). Tais

operadores, que dominam os fluxos de cargas “conteinerizadas” no mundo, são inclusive agentes

de grande influência na criação de um novo painel dos fluxos portuários. Neste novo contexto

surgem estruturas portuárias sem tradição anterior no comércio mundial, atreladas a estes agentes

hegemônicos — os “integradores”, no jargão do setor (BAUDOUIN, op. cit.) Esta concentração do

aspecto operacional dos portos, aliada à mudança de perfil, nos permite enriquecer o contexto de

modernização portuária em maiores detalhes. Há um novo perfil de tais estruturas se tornando

dominante, em paralelo à relativa perda de importância dos complexos produtivos indústria-porto

(idem, op. cit.) Na verdade parece existir uma crescente integração dos fluxos de mercadorias pela

via portuária, e esta integração evidencia a formação de uma rede de circulação (idem, ibidem),

distribuição e de transações comerciais que se torna mais eficiente, reduzindo as “fricções” do

deslocamento.

87

De fato, e é até um clichê a exibição da famosa foto do mundo à noite (ver Ilustração 66), com suas luzes marcando as

regiões mais populosas e, portanto, urbanizadas do planeta. Em todo caso, dado o corte da pesquisa, faz-se necessária a

exibição do material, no mínimo para engrossar as fileiras do uso da imagem em questão.

Page 253: Tese Cidade e Agua Jximenes

253

Ilustração 66 A célebre imagem da NASA, agência espacial norte-americana, atesta a concentração territorial nas

proximidades do mar, nas costas litorâneas dos continentes, através do mapeamento das luzes das cidades. Fonte:

NASA (2000).

A concentração das atividades de ponta nos principais portos é também acompanhada da

crescente implantação de novos padrões tecnológicos e administrativos. Estes padrões se

estendem, progressivamente, às zonas portuárias tradicionais, mas também às mais recentes. A

questão é a formação de um quadro verdadeiramente integrado, mundial, no setor. Assim, os

requisitos de “competitividade” e inovação se tornaram atributos capazes de excluir uma zona

portuária da movimentação mais representativa e interessante, isto é, de maior volume, maior

rentabilidade e apuro técnico.

A varredura que os portos centrais sofreram a partir das ações de modernização é

significativa, provocando alterações para o acompanhamento do novo modelo, mas também

ocasionando processos de decadência e redução de movimentação. Isto é curioso, uma vez que a

própria concepção do porto central (hoje “obsoleta”) já representava um avanço; em geral

dispensava os sítios abrigados das correntes marítimas, lidando com as contenções dos diques e

a profundidade das águas de forma mais adaptável e flexível (DOUMENGE, 1967). A mudança no

padrão tecnológico e de gestão das zonas portuárias impactou na exigência de transformação dos

sítios portuários mundiais, rapidamente submetidos a uma nova lógica de competitividade,

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254

viabilidade técnica e econômica. Isto ocorreu a partir da introdução maciça do contêiner como

invólucro de cargas, sobretudo nos anos 1960 (DOUMENGE, op. cit.) Desta forma, os portos centrais

(oriundos de outra temporalidade, não apenas dependente do desempenho tecnológico, mas

também das dinâmicas econômicas) tornam-se inadequados às demandas contemporâneas.

Exige-se de um porto moderno adequação a novas rentabilidades, às reduções de tempo de

deslocamento, a maior profundidade de águas e capacidade de operação, rotatividade e volume de

tráfego e carga (BAUDOUIN, 1999). Freqüentemente, portanto, novas estruturas portuárias são

criadas a pelo menos algumas dezenas de quilômetros de distância dos antigos portos centrais,

em águas mais profundas e sítios físicos menos ocupados, mais extensos e liberados (DOUMENGE,

op. cit.)

O novo padrão, associado às respectivas tecnologias e equipamentos, é atualmente

chamado de hub port (BAUDOUIN, 1999). Sua configuração também representa uma concepção de

logística que freqüentemente ignora dinâmicas sócio-econômicas e territoriais vigentes em seu

entorno, estabelecendo uma relação essencialmente instrumental, racionalizada e pragmática com

o território e, conseqüentemente, suas populações. A importância da instalação destas infra-

estruturas e equipamentos, portanto, residiria na qualificação do território e suas economias, na

habilitação para entrada no circuito mais amplo de fluxos de mercadorias, bens e serviços

(BAUDOUIN, op. cit.) — uma vez que os portos modernizados contêm uma série de mecanismos de

coordenação totalmente articulados à produção industrial, à montagem de produtos ou à

distribuição aos mercados consumidores. Em suma, trata-se da instalação de critérios de nítido

rebatimento territorial, baseados na modernização e em relativa liberalização de relações — uma

vez que alguns dos subsídios antigos são mantidos ou, às vezes, reinventados. Desta forma, a

difusão de modelos e a criação de condições cada vez mais “mundializadas” de “competitividade”

e “atratividade” (BRENNER; THEODORE, 2002) criam, de fato, um ambiente de políticas urbanas e

intervenções territoriais tendencialmente convergentes (HARVEY, 1996a). As zonas portuárias

modernizadas, portanto, são aquelas que seguem o novo modelo. A modernização portuária seria

um processo de reconfiguração territorial ligado ao reforço dos corredores logísticos segundo uma

concepção mundializada. Ao mesmo tempo, evidencia certa desconexão com fenômenos e

estruturas materiais concretas instaladas nos territórios e imediações das zonas portuárias. A

lógica, essencialmente, é a do atendimento aos fluxos e demandas da economia mundializada; da

Page 255: Tese Cidade e Agua Jximenes

255

extrapolação de escalas territoriais e projetos sociais de desenvolvimento de economias regionais

e locais.

Não necessariamente concernente ao impacto que a transformação do setor acarreta aos

antigos portos centrais, o processo de modernização portuária se coloca como vetor de um

desenvolvimento econômico e territorial do capitalismo, sobretudo. Exigências de eficiência

(BRENNER; THEODORE, 2002) e modernização são postas no território, portanto, decorrentes das

práticas e necessidades de agentes capazes de reconfigurá-lo, ao menos a partir de suas

estruturas de fluxos e conexões. O porto modernizado é uma estrutura de passagem, de fluxo, e de

um processo de acumulação que se dá, com freqüência, em trânsito, e espacialmente baseado em

outras localizações. O porto modernizado, assim, passaria ao largo da “região”, da dinâmica

sócio-territorial mais concreta, em termos de sua apropriação extensiva e internalização de

inovações e rentabilidades, de certa forma. Sua lógica, portanto, é outra.

Paul Virilio (1993) situava a estrutura aeroportuária como “última porta do Estado” (p. 8),

local onde mecanismos de controle, policiamento, racionalização e transporte eram hoje

indissociáveis. Localizava, também, as antigas estruturas (como o porto) como elementos

reguladores mais antigos das trocas. Em todo caso, é possível afirmar uma recolocação do porto

modernizado como estrutura de controle. Os portos modernizados dinâmicos são os locais da

concentração do fluxo de mercadorias e bens e, portanto, de um tipo de acumulação decorrente da

atividade de exportação e do comércio internacional. Isto inclui a concentração dos prestadores de

serviços associados ao porto — atualmente menos numerosos, mais próximos de situações

monopolistas e de um padrão tecnológico e administrativo homogêneo e mundializado (BAUDOUIN,

2003). Concentram-se também, obviamente, os ganhos, isto é, a rentabilidade e a capacidade de

desenvolvimento a partir da operação das zonas portuárias e de seu caráter de plataforma de

projeção de fluxos materiais contemporâneos. Por outro lado, persistem as dinâmicas locais de

impactos ambientais (as tais “externalidades negativas” destas estruturas, “internalizadas” e

materializadas no sítio portuário) do porto modernizado, bem como suas novas exigências

territoriais e de gestão. Ao correlacionar este contexto com a clara assimetria entre os produtos

internos das regiões e países, suas rentabilidades e graus de especialização da produção, nota-se

uma evidência da “hierarquia” entre portos, entre canais de entrada e saída e, portanto, entre graus

Page 256: Tese Cidade e Agua Jximenes

256

variados de capacidade de desenvolvimento regional, em escala mais ampla88

.

Além disso, o contexto da modernização portuária, efetivamente mundializado atualmente,

revela aspectos da contemporânea transformação da experiência e da instrumentalização do

espaço e do tempo. São notórios os cálculos da logística moderna e sua capacidade de aferir

quase que relativisticamente os fluxos de carga, por exemplo. Da mesma forma, as

telecomunicações configuram uma realidade em que a projeção, a virtualidade e sobretudo os

métodos indiretos de registro e apreensão da realidade é que dominam (VIRILIO, 1993). Parte da

“eficiência” contemporânea da modernização portuária é dada pela modificação na administração

(tornada “gestão”) dos portos; pela sua nova capacidade de organizar, programar e gerenciar

fluxos, burocracias, pesos e medidas, tarifas e também por lidar com a operação portuária face à

estrutura física específica de cada porto; seu sítio, a profundidade de suas águas, a extensão do

cais, o eventual número de píeres, etc. (BAUDOUIN, 2003).

Assim, o porto é, ao mesmo tempo, uma estrutura de racionalização do território próximo

à água e uma evidência do caráter relativo que as temporalidades e espacialidades adquiriram,

hoje. Representa uma das formas de controle do acesso, do uso e da apropriação da faixa de terra

em contato e sob a influência da água, a partir da operação de suas estruturas técnicas e de sua

forma de gerenciamento. Isto repercute em graus representativos na territorialização do

capitalismo: nas formas do comércio mundial, da exportação e das telecomunicações, além de

reafirmar aspectos geopolíticos e sócio-econômicos da estratificação dos territórios

contemporâneos e de suas atuais relações de poder. Os portos modernizados conduzem, em rede,

uma série de fluxos — materiais e imateriais, segundo Baudouin (2003) — que se territorializam

segundo uma lógica de concentração de poder econômico e político, difundindo padrões e

impactando nas atividades e formas de uso e apropriação do ambiente — no caso, dos territórios

próximos à água.

A figura territorial que lemos aqui como intervenção, associada ao porto, é uma estrutura

urbana de grande importância para a o estudo das relações entre cidade e seus cursos d´água. O

88

Indiretamente este aspecto é discutido em Baudouin (2003) e mesmo, em outros termos, em Doumenge (1967). Há nos

portos cargas mais “nobres”, estruturas portuárias mais eficientes e fluxos preferenciais. Da mesma forma, há sítios portuários

de configurações variadas e formas de apropriação diversas do grau de eficiência destas estruturas portuárias. No entanto,

localmente, persistem alguns passivos ambientais (devido a atividades de manutenção) e a concentração dos diferenciais do

território, por agentes do setor, economias nacionais ou ainda pela apropriação externa das redes portuárias, ligadas entre si,

que atendem ao eficiente padrão de concentração de controle do fluxo.

Page 257: Tese Cidade e Agua Jximenes

257

porto é, eminentemente, uma estrutura urbana de conexão; seu espaço freqüentemente também

avança sobre a plataforma marítima, reproduzindo antigos efeitos de extensão sobre as águas,

como na produção de aterros e acrescidos em geral. Sendo uma forma de intervenção territorial de

transportes, e intimamente relacionada aos fluxos, o porto tem representatividade para que se

pense a idéia de zona de interface entre cidade e água. O porto pode ser entendido, nesta

discussão, como uma fronteira em que a abordagem da água na cidade é técnica. Esta água

“técnica” dos portos é tratada, neste aspecto, como veículo; é um meio e uma forma relativamente

racionalizada de escoamento, de operação de fluxos. Os portos, assim, representam a dimensão

da água enquanto veículo. Embora o porto não esteja ali destituído de sua dimensão paisagística (a

ser apropriada em caso de projetos culturais futuros, por exemplo) ou ambiental (já que os

programas de gestão ambiental são exigência), a forma de apropriação da água é

predominantemente instrumental, associando fator de produção e movimento, em detrimento de

abordagens que privilegiam as propriedades físico-químicas, por exemplo, ou as possibilidades

imagéticas.

4.5. URBANISMO ECOLÓGICO E ENGENHARIA AMBIENTAL

A reorientação de técnicas de urbanização e infra-estrutura baseadas no baixo impacto

ambiental, na degradabilidade de materiais e na observância da dinâmica ecológica local é o que

caracteriza o urbanismo ecológico e a engenharia ambiental. Além disso, existe a busca de certa

“sustentabilidade” através do desempenho do espaço construído. Esta sustentabilidade, como é

próprio do termo e das várias noções que carrega (ACSELRAD, 2001), é múltipla e freqüentemente

assistemática. Pode trafegar entre o aproveitamento paisagístico e as visualidades do espaço

urbano às proximidades dos cursos d´água, bem como dizer respeito às infra-estruturas e à água

como recurso natural ou insumo produtivo. O desenvolvimento de técnicas de baixo impacto

pretende dar, à Engenharia e ao Urbanismo, instrumental para intervenções físico-ambientais nos

marcos de algumas dessas acepções da sustentabilidade — isto é, a aspectos respeitosos a

determinados princípios de caráter ambiental da reconfiguração territorial. É assim que,

emblematicamente, rios outrora canalizados — pelo padrão racionalista, qualificado como

“mineralista” (MELLO, 2004) vigente até pelo menos os anos 1970 — são hoje “destampados”,

Page 258: Tese Cidade e Agua Jximenes

258

desobstruídos, recolocados na paisagem urbana — em termos correntes, “devolvidos” às

respectivas cidades. Da mesma forma, sistemas de saneamento ambiental89

contemporâneos

devem trabalhar a redução do desperdício, a noção de “escassez” dos “recursos hídricos” e a

desigualdade no acesso à água de qualidade (UNESCO, 2003), considerados problemas

especialmente graves nos países pobres.

Muda, já na concepção, o padrão de escoamento das chamadas “águas urbanas”,

sobretudo em projetos de associação entre drenagem urbana, paisagismo e recuperação de

fundos de vale, ou similares. A mudança de concepção das infra-estruturas de saneamento básico,

ou ambiental, assinala a incorporação de um entendimento ampliado da questão ambiental na

cidade, mas também implica na revisão de alguns antigos pressupostos das ditas engenharias

urbanas. Embora esta mudança de padrão diga respeito, principalmente, aos projetos diretamente

relacionados à drenagem urbana, há articulação freqüente com o paisagismo urbano e demais

tecnologias de recuperação ambiental. A engenharia decorrente de uma abordagem informada pela

ecologia, por exemplo, acaba construindo um sub-campo disciplinar que revisita antigas soluções

tradicionais e as adequa a técnicas controladas e de uso corrente.

Sobre o aspecto da drenagem, isto é, do escoamento, do direcionamento e da destinação

final das águas na cidade, a questão da mudança de concepção é, portanto, mais notória. A idéia

de que se pode reter as águas da cidade, se não é nova, é reeditada em novos marcos. Os padrões

técnicos até então vigentes, orientados por macro-concepções de racionalização, modelagem e

geometrização nas soluções, recomendavam alguma “aversão” a estas águas. A tendência geral

era, portanto, a de expulsão, de aceleração e acentuação da vazão até a foz dos cursos d´água

(BUENO, 2005). Para isto usava-se a impermeabilização e a retificação geométrica do traçado dos

cursos d´água. Estes cursos d´água se mostravam como, predominantemente, estruturas de

caráter técnico; eram canais de drenagem de um sistema de macrodrenagem urbana. Seus

taludes, em geral especificados no Brasil em concreto armado impermeabilizado, eram destinados

a comportar determinados volumes de águas que ainda não eram, nos anos 1970, por exemplo, as

mesmas “águas urbanas” de que se fala nos dias atuais. Os traçados retificados eram,

obviamente, resultado de um programa e de um projeto de racionalização da geometria da cidade e

do próprio bairro, atendendo também à diretriz de aceleração da vazão. Araujo, Almeida e Guerra

89

Campo disciplinar onde a incorporação do termo “ambiental”, recém-adquirido, é elucidativa.

Page 259: Tese Cidade e Agua Jximenes

259

(2008), em estudo de natureza técnica e conceitual relativamente aplicado ao caso brasileiro,

pontuam (baseados em outros autores) que a ocupação urbana de bacias hidrográficas, com o rio

principal formador da bacia inserido na malha, costuma acarretar algumas das seguintes

conseqüências:

Elevação do chamado pico de descarga, relação entre vazão e impacto físico da

enxurrada, em geral em tempos de chuva e marés de cotas elevadas;

Aumento do escoamento superficial de águas, em comparação com o período pré-

impermeabilização do solo;

Redução de tempo de deslocamento das águas até os canais de drenagem, acentuado

com a impermeabilização do solo urbano;

Aumento da freqüência e intensidade de alagamentos;

Redução de fluxo em cursos d´água na estação seca devido à baixa infiltração do solo;

Aumento do escoamento superficial geral (runoffs), como resultado final da

impermeabilização do solo, redução de fricção e desníveis, redução de percolação e

infiltração de solo urbanizado e geometrização de traçado de cursos d´água urbanos.

Estes fatores, embora pareçam excessivamente técnicos, acabaram fundamentando uma

outra compreensão da dinâmica hidrológica na cidade, o que é acompanhada de modificações em

outros campos do próprio saneamento (os resíduos sólidos, a água, o esgoto, por exemplo) e do

urbanismo (os propósitos finais do paisagismo urbano, o desenho das parcelas, os índices

urbanísticos gerais). Tais pontos, embora aqui constem resumidos, demarcam uma linha

conceitual divisória na compreensão do ambiente urbano.

Um marco fundamental a ser citado é a contribuição do escocês Ian L. McHarg (1971).

Associada principalmente ao paisagismo, a revisão “ecológica” que o autor opera sobre o desenho

urbano e sobre o que viria a ser chamado depois de desenho da paisagem é emblemática. Nesta

formulação o autor associa elementos aplicados da ecologia a técnicas e avaliações tradicionais

no campo da arquitetura e demais soluções construtivas tradicionais, vernaculares. Deste modo,

torna-se possível avaliar, por exemplo, quais os padrões de edificação e assentamento

ambientalmente mais adequados e de menor impacto em áreas litorâneas, ou como tratar aspectos

do parcelamento do solo a partir da análise da bacia hidrográfica (MCHARG, 1971). As técnicas

recuperadas, aplicadas e sugeridas por McHarg (op. cit.) estendem-se a outros campos do

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260

ambiente urbano e regional, como a vegetação, as rochas e a qualidade do solo ou do ar. No

aspecto da relação entre as águas e o território ocupado, entretanto, a contribuição do autor é

particularmente relevante (além do tema da vegetação, obviamente), e resgata antigas estratégias

de contenção de margens exibidas a potenciais de erosão ou outros impactos. A construção

conceitual de McHarg (1971) também aponta as estratégias de atenuação do impacto das

correntes de água na cidade, pensando em casos de sinuosidade do traçado dos cursos d´água,

por exemplo. Além destes aspectos, o autor ponta as características ambientais necessárias ao

entendimento geral do regime hidrológico no interior de bacias hidrográficas de escala urbana, bem

como da edificação em áreas litorâneas, de duna (MCHARG, 1971). Nestes tópicos pode ser

entendida a contribuição do autor para as “engenharias ambientais” em geral, como assinalado por

Mello (2004), por exemplo, e, portanto, para as novas soluções técnicas atualizadas a partir da

mudança de paradigma destas engenharias, pelo menos em parte. A alteração da abordagem

acerca do tratamento de certas dinâmicas ambientais na cidade, e especificamente no campo da

engenharia (no caso, das soluções aplicadas aos artefatos e sistemas de infra-estrutura), assinala

o marco conceitual e histórico pelo qual são operadas mudanças no tratamento de cursos d´água

urbanos.

Esta mudança de abordagem ocorre de formas variadas. Um primeiro ponto a ser

ressaltado novamente é o da revisão do padrão de projeto para os sistemas de drenagem urbana.

A estes sistemas “revisitados” (posto que são, ao mesmo tempo, modernizados e tributários de

antigas e tradicionais soluções), são correspondentes principalmente as intervenções em cursos

d´água urbanos, os chamados rios urbanos. Estes rios correspondem, de certo modo, aos antigos

canais de drenagem. Mudando a acepção do termo, denotamos a mudança, também, da forma de

tratamento do elemento ambiental. Sua função, portanto, muda; um rio urbano tem, teoricamente,

mais apelo paisagístico, maior diversidade de usos no entorno e uma outra função ambiental na

cidade. Os canais de drenagem, anteriores, tinham função eminentemente técnica, e suas águas

“técnicas” diziam respeito à lógica tradicional da expulsão, do escoamento imediato, das águas —

em um momento histórico em que estas não haviam recebido a adjetivação de “urbanas”,

portanto.

Entre o rio urbano e o canal de drenagem há diferenças de configuração. Pensando na

revisão do padrão de drenagem, e em conformidade com os exemplos já descritos neste trabalho,

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261

há certa reversão dos revestimentos e da impermeabilização quase generalizada dos taludes

destes cursos d´água, que eram próprios dos canais. Seus leitos, revistos, são pensados para a

absorção parcial das águas pluviais na cidade, entendendo as redes técnicas de infra-estrutura

como passíveis de saturação; o rio urbano, portanto, faria parte de uma cidade que não mais

racionaliza e direciona suas águas pela antiga forma projetada, mas a partir de uma nova

inteligência que a conduz conforme a lógica que a hidrologia renovada preconiza. Esta mudança de

“filosofia”, ambientalmente mais compreensiva, se estende aos demais sistemas correlatos e aos

espaços próximos, como as áreas públicas de entorno dos rios/canais, ou os parcelamentos

urbanos vizinhos. Esta é uma contribuição óbvia da mudança de concepção que podemos, por

exemplo, remontar a McHarg (1971) e suas soluções ecológicas baseadas nas estratégias

“compreensivas” de desenho da paisagem.

Enquanto os antigos canais de drenagem são impermeabilizados e de geometria

retificada, os atuais rios urbanos são pensados para a infiltração parcial das águas no solo, e para

um escoamento das águas feito em traçado sinuoso. A ocupação do entorno dos antigos canais,

freqüentemente, é própria dos chamados “usos pesados” ou “sujos”. Após as intervenções

ambientalmente compreensivas, estes cursos d´água, além de mudarem de denominação

tornando-se rios urbanos, recebem usos de amenidades e consumo urbano diferenciado, além de

parques urbanos do tipo linear. Obviamente a função de drenagem é preservada, mas é também

conciliada com a mudança de uso destes cursos d´água, com novas potencialidades e atributos

que lhes são postos a partir das transformações sócio-econômicas e territoriais recentes.

A classificação de usos e de padrões de uso — isto é, de níveis, variáveis em escala,

volume de investimento, capacidade produtiva e/ou impacto ambiental — estabelece,

indiretamente, alguns juízos. A política estadual de gestão de recursos hídricos, em

correspondência com a política nacional, assume esta classificação; sua atribuição é de regular

qualquer interferência no regime hídrico de uma bacia hidrográfica, ou que extrapole o limite estrito

desta bacia (SEMA, 2009). São, assim, listados usos do solo, atividades produtivas e escalas de

aproveitamento da água no território; isto configuraria volume de dados razoáveis para avaliação

do problema e, portanto, para sua gestão. Algumas categorias são submetidas a maior conjunto de

restrições.

Com os cursos d´água urbanos ocorre processo semelhante. Embora seja razoável dizer,

Page 262: Tese Cidade e Agua Jximenes

262

tomando por um exemplo, que uma atividade industrial geradora de efluentes com potencial tóxico

não possa ser equiparada ao uso residencial de pequeno porte, trata-se de problema diferente,

específico. Os cursos d´água urbanos, sobretudo no par em transformação canal/rio, assumem a

classificação entre usos “leves” e “pesados”, ou “sujos” e “limpos”, de modo que determinadas

atividades e suas escalas são objeto de maior veto do que outras. Como no exemplo ilustrado

anteriormente, não se trata de forjar equivalência entre fatos distintos. A questão seria a do

deslocamento, da mudança de sentido das propriedades e atributos do ambiente no território — no

caso, na cidade. Os usos e escalas que outrora foram produtivos na cidade, e em sua porção

central, como certos tipos de indústria, de manufatura, de entreposto, passam a ser qualificados

nas categorias menos nobres da classificação da engenharia ou de sua correspondente política

ambiental. Em certa medida, o inverso é verdadeiro; usos ligados ao chamado terciário avançado

(SASSEN, 1998) ou ao comércio urbano distinto (cafés, galerias, similares) ganham preponderância

na implantação. Os entornos destes locais, assim, tendem a um nível evidente de reconfiguração;

sua nova atribuição de usos ambientalmente adequados operaria uma transformação que,

associada à intenção de melhoria sócio-ambiental, traz a marca das novas soluções hegemônicas

para as tecnologias ambientais urbanas. Enquanto a indústria de transformação poluente e demais

usos “pesados” estavam situados e dependentes, no sentido espacial, da malha urbana e da

proximidade com seus cursos d´água, havia tendência à aglomeração destas atividades menos

nobres em torno dos canais. Em um momento posterior, com outras exigências técnicas,

funcionais e gerenciais de certas atividades produtivas urbanas, a migração espacial dos

chamados usos “pesados” dá lugar a outros usos, “leves” e contemporaneamente tratados como

mais desejáveis na localização urbana, sobretudo na proximidade de áreas densas ou centrais.

Esta não é uma questão de determinismo ou mecanicismo, vinculando economia urbana e

transformações territoriais, mas apenas de dedução; há correspondência entre processos. Isto,

entretanto, não coloca os termos em uma seqüência, ordenados; não há anterioridade do fator

econômico-espacial, por exemplo, sobre a mudança territorial concreta. Há, por outro lado, uma

dinâmica própria da espacialidade capitalista, na criação de pólos e multiplicidade de usos e

conjunturas, onde certas localizações são ativadas e outras entram em dinâmicas de

obsolescência, por assim dizer (SMITH, 1988). Nesta mudança de abordagem das chamadas

“águas urbanas” (onde o termo marca o surgimento da noção), mudam os usos urbanos

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263

instalados ao longo dos cursos d´água.

Ilustração 67 Imagem da Praça Cheonggye, em Seul, Coréia do Sul. Ponto inicial do córrego Cheonggyecheon,

restaurado, notório projeto de desenvolvimento urbano com descanalização e re-exposição da superfície da lâmina

d´água. Fonte: Seul (2009).

Um exemplo que serve de referência conceitual e fundamento, por seu nível de realização,

é o da Coréia do Sul. No país houve a descanalização do córrego Cheonggyecheon (ver Ilustração

67), um curso d´água que atravessa a capital do país, Seul, e tem cerca de onze quilômetros de

extensão (SEUL, 2009). A intervenção era ambiciosa, pois converteu seis quilômetros do córrego

em um parque linear de oito quilômetros de extensão total, com 800 metros de largura média e

400 hectares de área cruzando a cidade. O antigo córrego Cheonggyecheon, um pequeno e

emblemático rio sazonal da cidade, fora canalizado e impermeabilizado por uma intervenção viária

de grande porte, com a construção de alças viárias em seis níveis, com quilômetros de extensão

(Idem, op. cit.) A intervenção durou dois anos, entre 2003 e 2005 (Idem, op. cit.) A substituição de

usos, de padrões, e os discursos sobre seus resultados são evidentes: material de divulgação e

avaliação do Governo Metropolitano de Seul cita a recuperação do “coração da cidade” na

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264

intervenção (SEUL, 2009). É citada declaração de técnico da área de planejamento urbano da

cidade, sobre o tráfego — afinal, as vias expressas foram removidas do local, parcialmente

compensadas com redução de velocidade e aumento de volume de tráfego em túneis lindeiros,

subterrâneos: diz-se que os mais relevantes itens na cidade seriam, segundo pesquisa, o ambiente

e sua água (SEUL, op. cit.) Assim, a vida teoricamente “mais lenta” da cidade após a

descanalização do rio teria sido compensada pelo ganho paisagístico, a recuperação da memória

topológica de quando havia um rio de registro secular cortando a cidade, a redução das

temperaturas médias no centro urbano no verão, bem como pela aceleração das correntes de ar no

local (Idem, op. cit.)

Ilustração 68 Imagem de queda d´água no córrego Cheonggyecheon, Seul, Coréia do Sul. O espetáculo urbano das

revitalizações é relacionado à recuperação ambiental. Fonte: Seul (2009).

Ilustração 69 Uma das pontes do córrego Cheonggyecheon, em Seul, Coréia do Sul. Fonte: Seul (2009).

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Ilustração 70 Duas pontes em construção, sobre o córrego Cheonggyecheon, em Seul, em 2004, à época das obras.

Notar o leito ainda ensecado. Fonte: Seul (2009).

Para a prevenção de enchentes (como se disse, o aspecto técnico da drenagem não é

excluído dos projetos), escavou-se o leito ensecado em cerca de 2,0 a 2,5 metros de

profundidade, em média, e injetou-se predominantemente águas subterrâneas para que a

profundidade da lâmina d´água tivesse, pelo menos, 30 centímetros; daí a denominação córrego.

A intervenção exige, diariamente, a circulação de 93,7 milhões de litros de água, o que expõe de

certo modo a natureza “parcialmente” ambiental do empreendimento, e limitações de projetos

desta concepção. Este fator é absolutamente comum em projetos desta ordem, sempre

acompanhados de artefatos e soluções técnicas de emulação dos processos físico-ambientais,

como historicamente foi registrado na Europa moderna, há séculos (THOMAS, 1988).

Outra questão a pontuar teria uma característica de fundo. Na engenharia ambiental, no

que tange à abordagem das águas na cidade, há uma inflexão paradigmática. Esta inflexão diz

respeito a certa “ambientalização” generalizada das técnicas de intervenção sobre o território, no

caso, a engenharia em geral. No conjunto das intervenções territoriais do urbanismo e do

paisagismo contemporâneos, sobretudo em projetos de desenvolvimento econômico, a dimensão

ambiental entra como diferencial. Nas concepções empresariais da criação de formas variadas do

“produto” cidade (ASHWORTH; VOOGD, 1990), a imagem de uma cidade verde (CAMPBELL, 1996)

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266

equivale a um selo, a uma construção onde o apelo de itens genéricos como “qualidade de vida”,

“sustentabilidade” ou “transportes limpos” são relevantes. Devemos lembrar que, no mercado de

cidades reconfiguradas para fins de inserção em padrões da nova economia mundial, ocorre

crescente familiarização e uma aproximação entre as características dos centros urbanos. Assim,

a dimensão “verde” funcionaria, até certo ponto, como especificidade, como um dos recursos de

diferenciação possível entre cidades que se parecem progressivamente, por buscarem

essencialmente as mesmas características, paradoxalmente tidas como diferenciais.

A idéia de uma “cidade sustentável” é, portanto, contemporânea, e tenta produzir, ainda

que de várias maneiras, aplicações de diversas das noções existentes de “sustentabilidade” ao

espaço e sobretudo ao planejamento urbano (EMELIANOFF, 2003). Formas diversas de regulação do

espaço público, de criação e produção de novos espaços ligados aos elementos usuais do

ambiente urbano (a vegetação, as águas, o solo, as pedras) são acionadas para a criação de

versões da cidade ecologicamente equilibrada, ou racional do ponto de vista econômico e social,

ou ainda culturalmente apropriada à diversidade e às formas de baixo impacto atualmente viáveis

de se praticar. As Agendas 21 passaram a ser replicadas e adaptadas a diversas cidades européias

nos anos 1990 e 2000, por exemplo, e representaram, ao mesmo tempo, projetos de

reconfiguração territorial e extensões das propostas de aumento da visibilidade comercial e

econômica de seus núcleos urbanos.

De certo modo, de todo grande projeto de intervenção territorial, atualmente, é exigido o

cumprimento de alguma dimensão ligada à “ecologia” ou a abordagens ambientais diversas e,

portanto, à extensão de posturas conseqüentes diante da dimensão ambiental que é posta na

cidade. Assim, as diversas propostas de cidades sustentáveis européias, por exemplo, podem

conciliar bairros com intervenções de natureza histórico-cultural, reciclando o parque imobiliário

existente, ou implantar formas de reciclagem e reuso de resíduos, ou ainda estabelecer sistemas

de infra-estrutura de menor consumo energético e redução da taxa de motorização dos modais de

transportes (EMELIANOFF, 2003). Em todos estes casos a aplicação de noções ambientais flutua do

mesmo como oscilam as próprias concepções de sustentabilidade vigentes, disputando espaço

num debate técnico e político sobre a legitimidade (ACSELRAD, 2001) dos vários projetos de cidade

em questão.

É deste modo que a produção de edifícios, hoje, sobretudo em casos de grandes

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267

equipamentos culturais e/ou institucionais, quase sempre apresenta alguma referência explícita à

aplicação dos saberes ambientais em seu projeto ou execução. Do mesmo modo ocorre com as

intervenções urbanísticas; pensadas para instalar principalmente os novos usos da economia

urbana e as suas novas amenidades, tais espaços exibem conjunto significativo de exemplos da

aplicação do reuso de água, do reaproveitamento de materiais, da redução dos impactos da

intervenção. Em termos urbanísticos, ao tomar como referência os casos de cidades européias

com pretensões ambientais, teríamos as seguintes características gerais:

Intervenção paisagística e infiltração das águas pluviais no solo;

Manutenção ou recriação do curso sinuoso dos rios urbanos;

Agrupamento de edificações em esquemas projetados, em escalas aproximadas à

capacidade do pedestre para efeito de deslocamento a pé até os principais modais de

transporte;

Preocupação com a redução do consumo de energia e materiais em geral (EMELIANOFF,

2003).

Tais técnicas e suas correspondentes inovações são, sem dúvida, marcos importantes

para o planejamento físico-territorial. Por outro lado, suas aplicações têm demonstrado aspectos

de uma separação do ambiente em termos qualitativos, uma espécie de clivagem do território, de

suas benesses e possibilidades de uso e apropriação. O novo urbanismo90

produz lugares. A

engenharia ambiental racionaliza fluxos e a “produção” do espaço construído, declarando seus

princípios, sobretudo, em função do ordenamento espacial e da duração dos recursos na cidade;

uma espécie de corolário de uma das “sustentabilidades”91

, portanto.

A idéia de um “retorno” ou “resgate” de porções de natureza na cidade é comum aos

dois campos disciplinares. A diferença, além dos produtos executados, está na abordagem; um

trata do ordenamento territorial na escala da cidade, inclusive paisagisticamente. O outro trabalha

com sistemas técnicos e persegue, em geral, eventuais ganhos de eficiência decorrentes da

intervenção.

90

New urbanism é o rótulo atribuído a alguns urbanistas contemporâneos, em geral norte-americanos, apólogos da

“projetação” do lugar, da escala humana do espaço construído, do “retorno” à intimidade da pequena cidade, do contato com

a Natureza. Em geral trabalham estruturas como malls, galerias comerciais, condomínios sustentáveis horizontais de alto

padrão, villas simulando ambientes mediterrâneos (DAVIS, 2001) e similares.

91

A partir do que Acselrad (1999; 2001) chama de representação técnico-material das cidades, em termos da “racionalidade

energética” e do “equilíbrio metabólico”.

Page 268: Tese Cidade e Agua Jximenes

268

A “ambientalização” do urbanismo corresponde a uma incorporação de dimensões

econômicas, no sentido instrumental e quantitativo do termo, à prática do desenho da cidade. Por

outro lado, corresponde também à tentativa de conciliar a espacialidade urbana às exigências

contemporâneas condicionantes da reconfiguração do território; a reestruturação produtiva e a

mudança de fluxos, produção, circulação e consumo. Nestes marcos, a idéia de “sustentabilidade”

tem força notável, num esforço técnico, conceitual e político de conciliação e de manutenção das

formas de acumulação atuais com melhores performances da materialidade territorial. Daí a

discussão (e o forte questionamento) em torno da possibilidade de produção de uma cidade ao

mesmo tempo ambientalmente “equilibrada”, racional e compacta em seu arranjo espacial e

também sócio-economicamente justa (CAMPBELL, 1996). O Urbanismo, campo disciplinar

necessariamente híbrido e não propriamente científico (CHOAY, 1997), seria um fator importante

para a solução técnica deste problema; para o enfrentamento da produção de novas materialidades

e na formação de novos sentidos do ambiente.

Sobre o tema específico deste trabalho, a possibilidade de apropriação dos diferenciais

do território próximo à água revela-se um fator importante. Isto ocorre tanto em termos simbólicos

(no aproveitamento das visualidades e na recente valorização da “frente de água” entre certos

grupos urbanos) e fundiários (na dimensão da disputa decorrente da valorização econômica do

solo) quanto funcionais, pela reconfiguração acarretada aos espaços de margens de cursos

d´água em cidades, sob novos padrões de territorialização. Para o caso coreano, por exemplo, um

dado notável é a afirmação de técnicos envolvidos em projetos de descanalização de rios,

atestando que este procedimento de engenharia teve uma preponderante função simbólica em Seul

(SEUL, 2009). Há, portanto, evidente interesse em produção de materialidades que tornem certos

processos econômicos mais viáveis, mas também mais fluidos no sentido da acomodação de

seus aspectos decorrentes, como os públicos a atrair e a demanda por consumo.

Os sistemas técnicos “ambientalizados” na cidade representariam este esforço no

aspecto mais claramente material — embora sem esquecer, em momento algum, a dimensão

poderosa das representações, inclusive quanto à capacidade de mobilização e convencimento

políticos. A engenharia ambiental, que na França tem um de seus maiores expoentes (MELLO,

2004), por exemplo, utiliza a madeira, evita a retificação geométrica dos rios urbanos e procura

elaborar modelos compreensivos de drenagem nas intervenções, entre outras práticas. Além disso,

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269

esta abordagem se pretende menos impactante do ponto de vista ambiental.

A noção de redução de impactos ambientais, portanto, se traduz em:

Diminuição do emprego de materiais minerais (portanto não-renováveis e, em geral,

poluentes);

Aumento de superfícies permeáveis do solo (o que reduziria a probabilidade de

enchentes na cidade como um todo);

Uso de vegetação como contenção de encostas e fator de recuperação ecológica e,

ainda, pela economia relativa de energia nos processos de execução (MELLO, 2005).

A cidade, então, pode ser vista como um “sistema”, onde o saldo dos fluxos de matéria e

energia e a sua taxa de rendimento, associada à sua eficiência e minimização de perdas, dariam os

primeiros indicadores confiáveis de “sustentabilidade”. Em outras palavras, é vista na perspectiva

de uma racionalidade instrumental tipicamente moderna, em que o parâmetro desejável da duração

da cidade e dos recursos é dado pela metáfora da cidade-sistema enquanto objeto de equilíbrio ou

de dimensões técnico-materiais (ACSELRAD, 1999; 2001). Em termos da localização e da

destinação de tais intervenções, nota-se uma associação aos projetos de “requalificação”

urbanística, comuns atualmente. O território urbanizado “requalificado”, então, sofre alterações de

modo a contemplar o perfil dos novos usos da atratividade na cidade; a engenharia ambiental, além

de garantir o funcionamento das estruturas da acumulação na cidade, colabora na sua

reconfiguração territorial e paisagística.

Atualmente, há um consistente desenvolvimento de tecnologias para sistemas de

drenagem urbana e sofisticação de modelos de previsão do comportamento hidrológico, para

aplicação em bacias hidrográficas, por exemplo. Por outro lado, os resultados urbanísticos (ou

territoriais, ampliando a escala e enriquecendo a abordagem) de tais intervenções, em geral, estão

articulados a projetos mais amplos de “recuperação” ambiental e urbanística, de reconfiguração de

usos, padrões e formas de apropriação do ambiente na cidade. Estes padrões, com freqüência,

revelam-se desiguais, social e ambientalmente; destinam-se àquele repertório de intervenções

próprio da “retomada” ou do “resgate” das eventuais porções de natureza na cidade, na região,

nas escalas territoriais em geral. Estas intervenções, também, criam seletivas e diferenciadas

formas de acesso e de veto ao ambiente na cidade, e ao ambiente qualificado da cidade. Nestas

formas de diferenciação e veto, a dimensão da água na cidade é, para efeito de avaliação da

Page 270: Tese Cidade e Agua Jximenes

270

engenharia ambiental, a do veículo, embora ainda associada à água enquanto paisagem.

4.6. GESTÃO DE RECURSOS HÍDRICOS

De todas as formas de intervenção territorial descritas, a chamada política de gestão de

recursos hídricos é, sem dúvida, a mais difusa e, talvez, a mais generalizada. Aqui a água é

tomada, por vezes, quase de forma “essencialista”, quando sua apropriação material não o é, na

verdade.

O que se chama, hoje, de gestão de recursos hídricos tem de ser localizado, antes, dentro

de alguns dos seus fundamentos segundo parte da literatura técnica. Trata-se de uma série de

iniciativas de cunho político e institucional, orientadas pelo conhecimento das ciências

econômicas. Seu arcabouço, porém, lida com a dimensão territorial (isto é, com as espacialidades

e materialidades, com o ambiente e as formas do espaço construído, incluindo nelas a produção e

a transformação dadas pelas dinâmicas sócio-econômicas e culturais). Parte da chamada política

de gestão de recursos hídricos absorve conhecimentos da hidrologia, da limnologia, da

oceanografia, das chamadas Ciências Naturais, enfim. Nesta interface, a abordagem geográfica

contribui com uma leitura do espaço, ora descritiva, ora mais fisiográfica do que propriamente

humana, em geral. É nesta perspectiva que se estruturam, basicamente, as mais expressivas (isto

é, aplicadas, concretamente) vertentes praticadas hoje no campo.

Em quase todas as abordagens acerca da água surge uma seqüência de analogias e

metáforas econômicas. A água, portanto, é analisada enquanto recurso, em termos de uma

situação contemporânea de uso irracional, predatório, que teria resultado em sua escassez e,

conseqüentemente, em um reconhecimento tido como necessário de seu valor, inclusive para

efeito de preservação e manutenção para o futuro.

Para ilustrar esta caracterização é possível começar com a notória série de percentuais

que constroem um cenário tão apocalíptico quanto convincente do ponto de vista da lógica formal;

uma espécie de funil (literalmente) numérico e volumétrico do precioso líquido:

Estima-se que o volume total de água na Terra seja da ordem de 523 milhões de

km³, dos quais 97,2 % estão nos oceanos e mares interiores, 2,2% nos gelos

polares e nas geleiras montanhosas e 0,6% em rios, lagos e lençóis

subterrâneos [...] (BERBERT, 2003, p. 87).

De toda a água do globo terrestre, 97% é salgada e apenas 3% é doce, sendo

Page 271: Tese Cidade e Agua Jximenes

271

que 2% encontra-se no subsolo e apenas 1% na superfície, e ainda parcialmente

congelada. Daí presumem-se as dificuldades de muitas populações em relação a

seu abastecimento. (KAHTOUNI, 2004, p. XV).

Embora a água seja a substância de maior ocorrência na Terra, apenas 2,53% do

total é doce, sendo o restante água salgada. Algo em torno de dois terços desta

quantidade de água doce encontram-se bloqueados em geleiras ou em calotas

polares perenes. A água doce atualmente disponível se distribui regionalmente

[…] (UNESCO, 2003, p. 8. Tradução nossa).

De acordo com a lógica da economia clássica, a escassez da água então contribuiria para

a formação de seu valor. Objetivamente, para o aumento de seu valor. Em suas correntes mais

crentes na capacidade resolutiva do mercado, a economia dos recursos naturais associaria a idéia

de escassez do recurso natural à elevação de valor econômico (ROMEIRO, 2004), portanto. Esta

vertente, chamada economia ambiental, conceberia os instrumentos de planejamento e de políticas

territoriais e ambientais, sobretudo, como estratégias de internalização de efeitos negativos

decorrentes da materialidade do desenvolvimento; das chamadas externalidades negativas

(ROMEIRO, op. cit.) No entanto, a lógica estritamente baseada nas “leis” elementares de oferta e

procura apresenta nuances. A água seria tanto mais cara quanto mais escassa. Também, sendo

esta concepção de certa forma hegemônica, a água seria tanto mais valorosa quanto maior fosse o

“benefício” às pessoas (UNESCO, 2003), o que trata de aspectos não-econômicos do recurso.

A escassez da água, por exemplo, é em parte uma construção social. A caracterização de

seu contexto adquire contornos “alarmantes” quando relatórios de agências internacionais

começaram a quantificar os estoques disponíveis do recurso, em uma lógica de fluxos e

armazenamento tipicamente contábil, e voltada para a resolução e o apontamento de soluções

mais pragmáticas, exeqüíveis. Um dos argumentos mais recorrentes neste sentido é o da

distribuição regional desigual do recurso água:

Os recursos hídricos são renováveis (à exceção de alguns tipos de águas

subterrâneas), mas com grandes diferenças de disponibilidade em diversas

partes do mundo e variações amplas das precipitações sazonais e anuais em

muitos lugares (UNESCO, 2003, p. 8. Tradução nossa).

O panorama global da disponibilidade de água versus a população evidencia as

disparidades continentais [...]

O percentual utilizado de água está aumentando. Associando isto às variações

espaciais e temporais na disponibilidade de água, a conseqüência é que a água

para os nossos usos está se tornando escassa e levando a uma crise [...]

(UNESCO, 2003, p. 9. Tradução nossa).

Há inclusive alguns argumentos sobre quais medidas tomar acerca da desigualdade na

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272

distribuição da água superficial no planeta. Posto que a água para consumo humano

freqüentemente é um produto, isto é, deve receber algum tratamento, a maior facilidade para

obtenção do recurso é um dado importante, que denota uma expressiva redução do custo de

produção (UNESCO, 2003). A água, não sendo aqui nem uma substância, propriamente, e nem um

dado meramente fisiográfico, deve-se lembrar, entra no processo de reprodução social como

insumo, como elemento de disputa no território e no âmbito do mercado, ainda que indiretamente.

A questão, portanto, se apresenta como um problema de gestão, de administração da

escassez e dos conflitos decorrentes do compartilhamento territorial da água factualmente

disponível. Uma das atuais ferramentas mais correntes para o tratamento da questão é a

intervenção através do conjunto de ações das políticas de gestão de recursos hídricos. Sobre o

termo, e sobre as concepções que lhe são subjacentes, cabem duas notas.

A introdução do que Lojkine (1981) chama de “elemento gestão” nas políticas urbanas

tornou-se a tônica das administrações estatais, sobretudo no marco da crise do fordismo, no

Primeiro Mundo. A este “elemento” caberia, em determinado momento, o papel de promotor da

coalizão urbana, de algum apaziguamento de conflitos e de sua administração em uma escala

localizada e ao mesmo tempo consistente, em que a tensão entre o problema e seus atingidos

seria facilmente perceptível. Em termos mais contemporâneos, então, a gestão (urbana, no caso)

passou a designar o caráter dos ganhos de eficiência decorrentes de mudanças de concepção,

ação e planejamento das administrações públicas, extrapolando a escala territorial “local”, seja ela

o que for — a jurisdição do município, do condado, da província, do distrito, etc. Muda a lógica da

condução dos negócios públicos; de um sistema relativamente articulado, burocrática e

tecnicamente considerado forte, responsável por serviços e ações imbuídas do “espírito público”92

para seqüências de ações setoriais com tendências à transversalidade, à atuação pontual e por

projetos, monitoradas por indicadores e metas de eficiência (BOURDIN, 2001). O papel, então, da

condução dos assuntos públicos, caberia a ações chamadas contemporaneamente de gestão. Por

“gestão” deve-se entender um conjunto de ações (e não necessariamente de políticas) de governo

e de articulações entre agentes públicos e privados, e entre aqueles situados entre estes dois pólos

(BOURDIN, 2001; HARVEY, 1996a). Na acepção de gestão como processo de condução dos

92

Embora não seja apropriado fazer exatamente uma apologia da administração pública na vigência do Estado de Bem-Estar

Social dos países avançados. A questão é, especificamente, a da mudança de abordagem, que tem relação com alterações

históricas, sobretudo do contexto econômico dos Estados-Nação.

Page 273: Tese Cidade e Agua Jximenes

273

negócios públicos não estariam, portanto, exclusivamente presentes as dimensões das políticas

urbanas, ou sociais, ou mesmo das políticas públicas em geral. Estaria no papel da gestão

justamente a capacidade de produzir coalizões (HARVEY, op. cit.) e assim alcançar metas de

desenvolvimento, sobretudo no campo econômico. Estes processos de gestão teriam sido

demandados tanto pela crise sócio-econômica do capitalismo contemporâneo (idem, op. cit.)

quanto pelo constrangimento (mais “político” e conceitual) do embate entre grupos sociais,

demandas por serviços e pelo conflito social em geral, colocado inclusive no aspecto territorial.

Por outro lado, nos marcos teóricos da economia política clássica, se o valor econômico

atribuído à água é tanto maior quanto mais “escassa” ela é, o próprio valor é objeto de uma

operação de construção social. Há divergências e sutilezas na construção da idéia absoluta de

escassez da água no mundo, inclusive entre documentos das agências internacionais:

A escassez de água é um conceito relativo e pode ocorrer em qualquer padrão

de oferta ou de demanda. A escassez pode ser um construto social (um produto

da afluência, de expectativas ou de comportamento habitual) ou pode ser a

conseqüência da mudança de padrões devido à mudança climática. A escassez

da água tem causas diversas, a maioria das quais pode ser remediada ou

atenuada (FAO, 2006, p. 2. Tradução nossa).

[...] mas pressões nos cursos d´água interiores têm crescido com o aumento

populacional e o desenvolvimento econômico. Desafios críticos se avizinham no

trato com progressivos racionamentos de água e sua poluição. Na metade deste

século, na pior das hipóteses, 7 bilhões de pessoas no mundo enfrentarão

escassez de água, enquanto nas perspectivas mais otimistas serão 2 bilhões,

em 48 países (UNESCO, 2003, p. 10. Tradução nossa).

Em um raciocínio análogo, algumas destas correntes (que influenciam a formulação de

políticas de governo, inclusive) propugnam a tese de que o problema do “acesso à água” é,

essencialmente, um problema de gestão (UNESCO, 2003). Esta afirmativa tem origem em diversos

fenômenos concretos da atualidade, necessariamente articulados e que podem ser citados como

forma de construir um raciocínio razoavelmente analítico sobre o tema.

Em uma das abordagens correntes, o problema do acesso à água (e, dentro dele, o do

acesso à água potável, por exemplo) é visto como uma questão a ser enfrentada através de pactos

e acordos. Pode-se caracterizar o contexto, desta forma, devido à existência de diversos cursos

d´água que atravessam fronteiras políticas de diferentes países e regiões. Isto condicionaria

comunidades, assentamentos e, portanto, territórios de constituições significativamente diferentes

a compartilhar a água, em quaisquer das suas formas de uso e apropriação. A possibilidade efetiva

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274

de apropriar, por exemplo, o recurso hídrico pode depender inclusive da qualidade da água

recebida por usuários a jusante, quando já houve uso a montante através de outras comunidades,

compartilhando a mesma rede hidrográfica. A água, desta forma, torna-se item de disputa, de

responsabilização mútua pela precariedade do acesso e mote de conflitos ambientais e territoriais

(RIBEIRO, 2003; UNEP FI; SIWI, 2005; MILLER, 2003). O tema, nestas bases, chega de fato a ser

tratado como questão de segurança nacional (RIBEIRO, 2003) ou mesmo como fator que contribui

para situações de potencial guerra civil (UNESCO, 2003). Trata-se, portanto, de contexto em que o

compartilhamento da água e de seus diferenciais e necessidades associadas ocorre de forma

competitiva, fragmentada e relativamente regionalizada. Assim, a eventual poluição ou degradação

ocasionada por atividades econômicas em um curso d´água pode impactar em localizações de

países vizinhos, despejando resíduos da produção em território alheio (RIBEIRO, op. cit.; UNESCO,

op. cit.). Da mesma forma, relações de poder concretamente estabelecidas sobre os recursos

naturais do território e sobre os deslocamentos populacionais influenciam nas situações de

“escassez” e de veto no acesso à água e suas imediações.

Por outro lado, os documentos de organismos internacionais como as Nações Unidas e

seus órgãos subordinados, falam em “uso incorreto” da água, além de mencionarem decorrentes

incorreções de planejamento e gestão dos chamados recursos hídricos; uma espécie de variante

da “má gestão”. Em uma lógica que prima por algum grau de competitividade, eficiência, redução

de “desperdícios” e racionalização dos processos (dentro dos marcos hegemônicos do que é

eleito prioritário, entretanto), são ressaltadas as dimensões administrativas e as providências de

ordem prática, em detrimento do caráter político de tais decisões, dos níveis de compartilhamento

de poder e da possibilidade de questionamento dos modelos vigentes de uso e apropriação do

território. A problemática, portanto, passa a ser mais de gestão do que de política, pelo menos no

discurso, isto é, teria na “eficiência” a explicação de suas mazelas e a eventual solução do

processo. A construção do problema a partir de critérios aparentemente funcionais e pragmáticos

esvazia aspectos da discussão em torno das relações de poder envolvidas no ambiente. Embora

se fale em diversidade de sentidos da água para as coletividades regionais, a conexão entre esta

variação dos sentidos e o caráter instrumental da racionalidade de mercado nem sempre é

ajustável:

Muito progresso foi feito na última década no entendimento de que a água não

tem apenas valor econômico, mas também valores sociais, religiosos, culturais e

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275

ambientais; e de que tais valores freqüentemente são interdependentes. O

conceito de eqüidade no uso e gestão da água encontra-se consolidado, bem

como a aceitação da maximização de seu valor entre os usuários, ao mesmo

tempo em que é promovido acesso eqüitativo e oferta adequada (UNESCO,

2003, p. 27. Tradução nossa.)

A relação entre maximização do valor da água e eqüidade na distribuição efetiva revela-se

potencialmente contraditória. O valor, neste caso, está no campo econômico, pautado pelos

equivalentes universais; e a eqüidade versa, neste caso, sobre o acesso, isto é, sobre a posse e

uso efetivos do serviço ou bem. No entanto, esta formulação é parte constituinte e praticamente

indissociável na abordagem atualmente hegemônica dos chamados recursos hídricos. Podemos

então qualificar a atribuição de valor econômico à água como uma forma de integração deste

elemento da paisagem, da “natureza” e do território, às dinâmicas de mercado. Sobre a liberdade

dentro da esfera do mercado, Marx (1968), por exemplo, cita que até certo ponto há liberdade para

as formas de inserção; a força de trabalho, por exemplo, é livre para ser vendida no mercado. De

modo análogo, o princípio de uso múltiplo da gestão de recursos hídricos, ao ser cruzado com as

restrições de uso e de padrão de aproveitamento da água, coloca uma tendência ao

enquadramento nas formas estabelecidas e planejadas da gestão da água.

A aplicação de instrumentos econômicos à administração, planejamento e às políticas93

da água pretende, em geral, minimizar falhas (ROMEIRO, 2004) do processo de uso e apropriação

do ambiente, bem como viabilizar o processo produtivo no tempo e, obviamente, no espaço — ou

melhor, nos territórios, com as devidas escalas de poder incluídas, bem como suas respectivas

comunidades. Em termos mais ortodoxos, a incorporação da dinâmica ambiental (em nosso caso,

da territorialização às proximidades da água) à lógica de mercado seria responsável por correções

advindas da eventual irracionalidade na apropriação do ambiente, resultando em processos de

pagamento, custos por degradação ou por uso do recurso. No entanto, se os agentes econômicos

do modo de produção capitalista atuam de forma essencialmente competitiva, fragmentada

(embora orientados por sentidos comuns, até certo ponto), relativamente atomizada, resta a

questão sobre como podem convergir para dinâmicas de revisão dos pressupostos da produção,

da apropriação de recursos ou do ambiente. Parece, portanto, uma premissa contraditória. A

93

Embora a ausência de citação do caráter político de tais decisões evidencie mais os aspectos técnicos e de “eficiência” nos

marcos de uma economia de mercado. A dimensão coletiva das ações e de seus impactos diferenciados é, portanto, vista em

segundo plano, em detrimento dos critérios justificados pela durabilidade dos recursos.

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276

incorporação do ambiente a padrões mais liberalizantes pressupõe ao mesmo tempo uma

incorporação das chamadas “externalidades negativas” (ACSELRAD, 1999; ROMEIRO, op. cit.) e uso

de concepções de crescimento e desenvolvimento econômico marcadas pela totalidade do

mecanismo das trocas, o que passa a se estender portanto àqueles bens considerados

“imperfeitos” pela vulgarização da economia clássica; o ar, a água, etc. O que faltaria a estes

“bens”, portanto, estaria próximo de ocorrer através da política ambiental.

A limitação crescente dos fenômenos e objetos à racionalidade econômica — sinalizada

pelo processo de incorporação da água (ou dos demais recursos naturais) — indica que “o

ambiente é reapropriado pela economia, fragmentando e recodificando a natureza como elementos

do sistema: do capital globalizado e da ecologia generalizada” (LEFF, 2006, p. 142). Não apenas a

potencialidade da troca se generaliza, mas também a de suas lógicas, de seus sentidos relacionais

no mundo e de suas formas concretas e materiais de uso e apropriação. É assim que as “[...]

estratégias [...] do discurso do desenvolvimento sustentado constituem o mecanismo extra-

econômico por excelência da pós-modernidade para manter o domínio sobre o homem e a

natureza” (LEFF, op. cit., p. 142). É o processo de extensão desta lógica que Leff (2003) chama de

economização do mundo; uma generalização das referências materiais e simbólicas que cercam o

ambiente e a produção, estabelecendo relações de poder entre regiões e políticas da verdade

científica acerca das variadas formas de abordagem sobre o ambiente.

O caso europeu, a respeito das políticas da água, é representativo. Dentre as experiências

européias, a francesa é provavelmente a de maior divulgação no Brasil e se tornou uma espécie de

referência no tema. Sua abordagem sobre as águas, inclusive em sua dimensão territorial,

pressupõe pactos sobre os usos do recurso e sobre as atividades a desempenhar nas

proximidades dos cursos d´água (BARRAQUE, 1992). Além disso, a gestão da água no continente

europeu e, particularmente, na França, costuma lidar com um conjunto recorrente de iniciativas,

projetos e políticas de cunho técnico, o que teria estruturado uma espécie de “indústria da água”

(BARRAQUE, op. cit.), a saber:

Sistemas e políticas de captação, tratamento e distribuição de água;

Sistemas e políticas de saneamento, sobretudo drenagem, e depuração;

Gestão de rios e corpos hídricos em geral, e de lençóis subterrâneos; controle de

enchentes e de poluição; uso da bacia hidrográfica como unidade territorial de

Page 277: Tese Cidade e Agua Jximenes

277

planejamento.

Pensar as infra-estruturas, a decisão de políticas e o recorte territorial relacionado à bacia

hidrográfica é um método associado, tradicionalmente, à idéia de um “modelo francês” de gestão

da água (BARRAQUE, op. cit.) Como acontece em qualquer delimitação de escala no planejamento,

esta também guarda, nos critérios de definição, suas arbitrariedades e condicionamentos

históricos. Embora seja comentada como “recorte natural” para a delimitação e o tratamento das

águas, a bacia hidrográfica se converteu, ao longo do tempo, quase numa figura mítica quando se

trata do assunto. Por um lado, é bastante óbvio que a lei da gravidade e a geomorfologia façam de

uma bacia (recortada em qualquer escala) uma “unidade fisiográfica” de planejamento para a

definição de direções de escoamento, eventuais retenções, acúmulos e da hidrodinâmica em geral.

No entanto, o trabalho político sobre a dimensão física da bacia é uma outra dimensão relevante.

O recorte da bacia hidrográfica é usado para praticamente todas as políticas e ações

relacionadas à chamada gestão da água. É utilizado, inclusive, como uma espécie de “jurisdição

fisiográfica” para as decisões em torno de conflitos de uso e apropriação do recurso. Embora a

delimitação pareça sempre lógica e clara (pois inclui na discussão a população diretamente afetada

e, portanto, interessada), e isto de fato ocorra, a bacia hidrográfica também é o local da

materialização do conflito entre as formas necessariamente coletivas (e sociais) de apropriação da

água e o padrão desigual crescentemente formado a partir de suas políticas de gestão. Uma bacia,

em seu uso, tende a afetar as demais, a jusante; isto tem impactos e processos que não

costumam ser resolvidos usualmente com consórcios de bacias (isto é, com comitês entre estas

unidades territoriais) ou audiências públicas. Pressupõem, em última instância, uma revisão e um

enfrentamento do próprio modelo de administração das águas, de seus usos e da detenção da

prioridade de acesso por grupos sociais — isto é, uma análise sobre as “variações de escassez”,

onde o recurso é menos escasso para alguns.

O modelo de gestão por bacias hidrográficas, inclusive por suas influências, é concebido

e desenvolvido, sobretudo, para casos mais próximos às situações do capitalismo avançado, ou a

territórios economicamente mais dinâmicos. No caso de áreas agropastoris com apoio

tecnológico, próximas a núcleos urbanos densos, a estratégia de gestão da água pode ser descrita,

em termos gerais, como de múltiplos pactos e de tentativa de instalação de um padrão eficiente de

uso do solo. Isto inclui padrões de ocupação do solo e codificação acerca da destinação dos

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278

rejeitos, do estabelecimento de faixas de domínio de rios, usos, sistemas de monitoramento e

acompanhamento de qualidade ambiental e certo padrão compacto de aproveitamento do território.

Obviamente, o grau desta “compacidade” é dado por critérios assemelhados àqueles da

determinação das chamadas tecnologias limpas, dos “usos sustentáveis” e das “boas práticas”,

em geral legitimados por algumas das correntes do pensamento científico atual, em que o conflito

não deixa de existir. As chamadas boas práticas, como foi apontado anteriormente, constituem um

dos meios através dos quais se difunde o ordenamento territorial em modelos diversos locais do

mundo (BRENNER; THEODORE, 2002). No entanto, como Leff (2003) afirma, são componentes do

debate em torno das justificativas sobre o uso do ambiente; têm, portanto, evidente dimensão

política.

Além destes pontos, o aspecto da economização (LEFF, op. cit.) é manifesto na discussão

em torno do caráter público da água e na instrumentalização das ações, sobretudo quanto aos

mecanismos de cobrança e ao chamado princípio do poluidor-pagador. Na França, a idéia de

pagamento pelo uso e pelos impactos causados aos corpos hídricos é institucionalizada

(BARRAQUE, 1992), conseqüência da aplicação de recomendações internacionais de comércio e

transações de bens econômicos. O princípio desta concepção seria o de incorporar o ambiente à

dinâmica de valoração, controle, planejamento e troca da economia, e de corrigir “distorções” de

mercado (BARRAQUE, op. cit.)

A aparente insistência na dimensão econômica da água tem demonstrações concretas.

As ações técnicas e de planejamento governamental, em todo o mundo, atestam a rentabilidade da

exploração da água, seja em sistemas de saneamento, irrigação ou mesmo em esquemas de

ordenamento territorial que visam compartilhar o acesso. Na Europa, a disputa entre concessões,

regiões de atendimento e prestação do serviço acontece entre países (BARRAQUE, op. cit.)

Curiosamente, o modelo anterior de financiamento, expansão, manutenção e gestão destes

sistemas de infra-estrutura e de ordenamento territorial entrara em crise quando da reestruturação

das economias capitalistas no mundo todo. Subsídios foram cortados, avaliações econômico-

financeiras tornaram-se mais rigorosas, com previsões de riscos maiores e baseadas em

avaliações impregnadas pelo caráter deficitário destes sistemas, no contexto da crise. No entanto,

não apenas a reestruturação econômica mudou a relação da “indústria da água” (idem, op. cit.)

com sua atividade-fim; os próprios meios mudaram de abordagem. Assim, a lógica de prestação

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279

de um serviço comunitário e coletivizado cede mais espaço às avaliações formalizadas do

planejamento empresarial do modelo, o que passa a chancelar seu grau de viabilidade. É neste

momento histórico que o déficit torna-se, efetivamente, uma questão.

Obviamente, na realidade européia, por exemplo, esta “liberalização” não é homogênea,

dependendo inclusive das respectivas estruturas institucionais dos países e de seus modelos de

Estado (idem, ibidem). E é curioso perceber que a disputa pelos recursos hídricos alheios passa a

ser uma possibilidade concreta de lucros para companhias estrangeiras, apesar da crise do padrão

de financiamento do setor. Este fato, visto no contexto histórico e político, marca razoavelmente a

mudança de lógica da gestão da água — isto é, da administração com base competitiva e

racionalidade empresarial, própria do que Harvey (1996a) chamou de “empresariamento”, para a

condução dos assuntos coletivos urbanos.

No entanto, não é correto generalizar e afirmar que haja uma total “neoliberalização” de

políticas, ações de planejamento e ordenamento territorial relacionadas à água. Na verdade,

diretrizes recentes de agências internacionais e organismos multilaterais como o Banco Mundial e

a UNESCO atestam que o critério de privatização precisa ser entendido em sua especificidade e

viabilidade, quanto à eficiência e à rentabilidade dos sistemas e do serviço (UNESCO, 2003). A

partir de intervenções feitas na África, por exemplo, textos do Banco Mundial recomendam a

revisão da diretriz generalizada de privatização e o reforço da necessidade de instalação de infra-

estrutura assumida pelo Poder Público, estatal. Há inclusive recomendações de dirigentes de

organismos ligados à prestação de serviços de água junto ao Banco Mundial comentando esta

postura recente:

É necessário esclarecer os pontos sobre os temores da privatização da água, e

tratar do que alguns chamam de globalização da indústria da água. O termo

“globalização” não faz qualquer sentido se aplicado aos serviços de água. Uma

companhia [...] certamente é uma companhia internacional, mas provê serviços

exatamente no local, onde os recursos são gerenciados e não podem ser

removidos dali. Trabalha-se sob contrato com as autoridades locais, usando

infra-estruturas fixas.

[...]

Em qualquer situação o setor público é que deve ter a propriedade dos recursos

hídricos. Portanto, a transferência da infra-estrutura da água do setor público

para o privado é desnecessária na maior parte dos países em desenvolvimento.

Um modelo muito bom seria o de uma parceria público-privado na qual a

operação dos ativos é confiada a um operador privado a partir de termos em

contrato. Ficaria a cargo do operador a manutenção e incremento da infra-

estrutura.

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280

(MESTRALLET, 2002, p. 6. Grifos do autor.)

As infra-estruturas, sobretudo energia e transportes, são de amortização lenta (LOJKINE,

1981), considerando seus relevantes custos de implantação. Por outro lado, tais infra-estruturas e

seus serviços correlatos são considerados atividades essenciais para o desenvolvimento

econômico, mesmo por analistas mais conservadores94

. Esta seria a razão de se preservar seu

caráter público e estatal. Segundo este raciocínio, portanto, as infra-estruturas relacionadas à água,

bem como as formas decorrentes de sua territorialização, são marcadas tanto pela manutenção do

caráter “público” do recurso hídrico quanto pela necessidade de investimento público (no caso,

coletivo) nas formas territoriais a ser exploradas por agentes privados.

Dentre as formas territoriais usuais associadas à água e às infra-estruturas de energia e

transportes estariam os portos, as hidrovias (com as correspondentes infra-estruturas de sistemas

de comportas e criação de canais artificiais) e as barragens e reservatórios criados para usinas

hidrelétricas, entre outros. Além destes, e em relação mais direta com atividades econômicas e o

espaço urbano, há os sistemas de captação, tratamento e distribuição de água, drenagem e

esgotamento sanitário. Pode ser observado, portanto, um retorno à idéia do caráter público de tais

infra-estruturas associadas à água. No entanto, a natureza da retomada da idéia de “público” deve

ser analisada em pormenores.

Nestes marcos conceituais, a reafirmação do caráter público da água no ambiente e no

território assinala, portanto, uma defesa da titularidade estatal do recurso. A água, “livre” na

natureza, seria aquela substância tipicamente enquadrada dentre os chamados bens imperfeitos

pelos manuais da economia ortodoxa. Por outro lado, a afirmação da “água pública” sustenta a

necessidade de uma apropriação privada das infra-estruturas técnicas, dos sistemas, da gestão e

da prestação de serviços relacionados. Esta dupla operação conceitual (mas também técnica,

administrativa e essencialmente política) implica numa caracterização da água como recurso e

como substância, alternando seu caráter conforme a tendência do discurso.

A partir de aspectos da abordagem tida como hegemônica na “questão da água”

94

Um teórico como François Perroux (1967), por exemplo, indica que os setores de energia e de transportes constituem uma

base da economia nacional, equivalente a “indústrias-chave” do desenvolvimento. Nestas condições, o Estado seria o agente

capaz de iniciar o processo, a partir do seu caráter coletivo de apropriação das benesses da infra-estrutura. Em que pese a

discussão que pode ser travada a partir do tema, é relevante assinalar a lógica presente nesta ideologia e nos chamados

marcos regulatórios em torno da infra-estrutura e da prestação de serviços urbanos e de ordenamento territorial, onde

convivem medidas de liberalização em paralelo a subsídios recriados.

Page 281: Tese Cidade e Agua Jximenes

281

podemos inferir que haja natureza cambiante no sentido do termo e na construção de sentidos do

ambiente. A água é tratada como substância na medida em que são ressaltados seus atributos

simbólicos, culturalmente importantes, ou seu papel metabólico, fisiológico, ligado à sobrevivência

orgânica. Destituída de dimensão econômica e política, estritamente falando, é relatada como dado

da paisagem ou de composição físico-química, sendo “comum” a todos. Por outro lado, recebe

parte de sua dimensão econômica quando seu valor é posto no raciocínio, associado à demanda

generalizada e inexorável, e quando valores de uso e valores de troca são amalgamados em torno

de outra denominação: recurso hídrico.

David Harvey (1996b) comentou o processo de construção da idéia de recurso no

ambiente. A idéia, amadurecida a partir da economia política do século dezoito, estabelece que o

recurso tenha seu valor construído também pela idéia (relacional, aliás) de escassez, e pelo seu

caráter de item demandado em um universo de coisas. Como é próprio desta corrente teórica, são

diferenciados os itens da necessidade daqueles do desejo, e é reforçada a capacidade do mercado

de regular as trocas, os estoques de bens escassos disponíveis e de, portanto, atingir algum tipo

de equilíbrio econômico (HARVEY, op. cit.)

No aspecto ambiental, por sua vez, um elemento da “paisagem” qualquer (a vegetação, o

solo, a água) pode ser representado como um tipo de insumo, e desta forma receber valor

econômico; não exatamente por suas propriedades intrínsecas, mas pela utilidade desempenhada

(CGER, 1997) em um processo produtivo ou serviço. A avaliação econômica e, portanto, a

valoração (MORAES, 1999) ajudariam na incorporação de um empreendimento ao mercado, mas

também em sua análise de desempenho. Uma das iniciativas pioneiras neste campo ocorre nos

Estados Unidos, com a visitação de parques de interesse ambiental; são aperfeiçoados

mecanismos de avaliação dos custos de deslocamento, uso e mesmo da contemplação da

paisagem destes locais (CGER, 1997). Por outro lado, dada a estrutural instabilidade dos preços

nos mercados em geral, e a correspondente variação nas atribuições de valor, é sempre parcial e

limitada a precisão de qualquer mecanismo de avaliação monetarizada sobre itens da “natureza”

(HARVEY, 1996b). Ainda assim, fala-se em termos “monetários” porque, finalmente, é do que se

trata; do estabelecimento de equivalentes universais, conforme a formulação de Marx (1968), que

fluidificam a troca e a tornam possível, extensivamente, em um sistema de relações como o

mercado. Os mecanismos de avaliação dependerão invariavelmente de critérios; serão arbitrários,

Page 282: Tese Cidade e Agua Jximenes

282

portanto (HARVEY, op. cit.)

Por outro lado, há correntes teóricas, militantes e mesmo algum senso comum que

compartilham algo próximo de uma percepção da existência de valores intrínsecos ao ambiente

(HARVEY, 1996b). Desta forma, seria possível formular uma teoria do valor da natureza a partir de

atributos relativamente externos ao social, e ao humano. Isto tem colaborado, historicamente, com

a naturalização de um suposto “valor” da “natureza” (HARVEY, op. cit.) A “natureza”95

então seria

valorosa “em si”.

O fenômeno é particularmente evidente no que tange ao processo de construção do

conhecimento e, por extensão, dos conceitos científicos e noções do senso comum sobre a

realidade. São numerosas as metáforas acerca da interação sociedade/natureza. Dentre estas

metáforas — baseadas na transposição natural-social e na naturalização da sociedade capitalista e

da sua ética e lógica burguesas — é possível localizar claramente a lógica da competição, da

eliminação, da eficiência e da racionalidade instrumental como valores “inerentes” ao ambiente e,

portanto, a tudo. Harvey (1996b) inclusive coloca a deep ecology como profundamente enraizada

na idéia de uma imbricação e uma imersão do “social” no “natural”, e portanto, na possibilidade de

atribuição de algum valor intrínseco à natureza. As metáforas, entretanto, atribuem valor a uma

natureza cuja percepção é sempre historicamente condicionada e, portanto, jamais externa,

tampouco neutra em relação a seu objeto.

Mesmo assim é que, existindo “abelhas operárias” (HARVEY, 1996b), também podem

existir rios “lentos” ou “ligeiros”, e pode ser construída a idéia de uma tendência natural à

apropriação desigual, privada, das benesses do território. Isto ocorre até mesmo em termos

simbólicos, o que não é menos poderoso materialmente; Bachelard (1997), ao falar das

corredeiras e da espuma das águas da região da Champanha, na França, evidencia um caráter que

não só remete à memória, mas à síntese do que se pode construir e pensar delas; águas ligeiras,

limpas, frescas, sadias. Águas a visitar, a observar, a contemplar e, talvez, a consumir

visualmente. Entender a naturalização dos atributos socialmente qualificadores do ambiente,

portanto, torna possível o conhecimento das idéias que reforçam a reprodução das assimetrias no

uso e na apropriação do território. O ambiente e sua discussão se revelam, contemporaneamente,

95

Aproximadamente, o que Descola (1997) qualifica como o não-humano e, de certa forma, o que é externo ao humano,

estabelecendo com este uma relação de atribuições de sentidos e explicações em torno de modelos cosmológicos e de

sentidos do ambiente.

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283

como elementos inegavelmente políticos e onipresentes; a todo projeto sócio-político corresponde

uma concepção ambiental (HARVEY, op. cit.) A discussão acerca do território, e da abordagem do

ambiente, pode a qualquer momento revelar sua freqüente inclinação a “[...] conter, moldar,

mistificar [...]” (idem, op. cit., p. 174) as relações e, portanto reproduzir aspectos da desigualdade.

Embora não haja qualquer relação mecânica entre um fenômeno e outro — política e desigualdade

ambiental —, há a tendência à abstração da realidade na política do capitalismo. Como tal, há

tendência a considerar os processos concretos como racionalizáveis e, a partir de uma lógica

abstrata e auto-justificável (a técnica, a ciência, a planificação estatal e o “bem comum”),

identificar as medidas de intervenção no mundo como legítimas. Considera-se o mundo como

apreensível via indivíduos isolados ou por uma construção da sociedade baseada em concepções

hegemônicas (MARX, 2007) e freqüentemente reprodutoras da assimetria na apropriação do

ambiente. A política ambiental e, sobretudo, a ciência, no caso, des-sensibilizada diante da

realidade (MATOS, 1990), operam no sentido da consideração dos interesses de cada indivíduo ou

agente (por exemplo, o produtor, dono de terras, na bacia hidrográfica, em relação ao ambiente) ou

na conjectura de um comportamento seu, em sociedade (o caso de uma suposta tendência natural

a maximizar seus ganhos e apropriar o ambiente, tornando-o recurso). Determinados agentes,

como o Estado, algumas formas da ciência, sobretudo a aplicada, e as técnicas, assim como as

variadas políticas ambientais, trazem em si este potencial de controle, ainda que variado e difuso.

A política ambiental e as suas correspondentes intervenções territoriais contemporâneas,

no caso do território urbano em sua relação com a água, constroem uma particular explicação do

ambiente. É neste ponto do raciocínio que ocorre a conversão (material, simbólica, efetiva) e o

intercâmbio entre a substância, o fator e o recurso. O território próximo à água, recortado a partir

de seus condicionantes ambientais, é um espaço onde estas três figuras podem ocorrer: a idéia de

comunalidade a partir da naturalização do elemento no ambiente; a racionalização deste elemento,

incorporado a uma dimensão instrumental e a práticas de apropriação desigual; a conversão a

partir da entrada da valoração econômica e de sua abstração subseqüente.

Neste aspecto particular é que a visão “transcendente” (HARDT; NEGRI, 2004) das políticas

que extrapolam as fronteiras nacionais (e refletem correlações de poder internacionais) evidenciam

as recomendações acerca da apropriação desigual do ambiente. Certos cortes das políticas

ambientais e das intervenções territoriais associadas têm apresentado recorrência dos padrões

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284

recomendados pelas formulações “modelares” ou pelo aperfeiçoamento das citadas “melhores

práticas” disseminadas inclusive pelas instituições internacionais (BRENNER; THEODORE, 2002), no

mundo todo. Além do fato de ser possível ler o desenvolvimento econômico e espacial do

capitalismo como estruturalmente desigual (SMITH, 1988), pode-se avançar na leitura a partir da

forma pela qual se produzem modelos de gestão da natureza e infra-estruturas no território.

Contemporaneamente, o financiamento de intervenções territoriais e de infra-estruturas

segue justamente a lógica da gestão. A partir de um modelo discutido como interessante para a

viabilização financeira de empreendimentos infra-estruturais, Einchengreen96

(1994) teoriza sobre a

instalação de infra-estruturas básicas — ou indústrias de base, como diria Perroux (1967) —

argumentando que sua concretização depende de arranjos. Em contextos particularmente

desfavoráveis como o do Terceiro Mundo, onde a infra-estrutura é tanto mais necessária quanto

mais difícil é implantá-la (EICHENGREEN, op. cit.), a rede de intervenções territoriais seria factível

quando:

Liberalizam-se os mercados;

Desenvolvem-se as finanças internas, em ambientes confiáveis, estáveis e formais;

As instituições e mecanismos administrativos asseguram a confiabilidade e

transparência aos investidores;

Os investidores assim sentem-se seguros para atuar, eventualmente subsidiados pelos

governos.

Estas diretrizes, formuladas para a área de Economia do Desenvolvimento do Banco

Mundial, versam basicamente sobre a forma pela qual seria possível, ainda, financiar e implantar

infra-estruturas de porte em países em desenvolvimento. Embora ligeiramente crítica (no texto em

questão) à situação de dependência do endividamento externo (EICHENGREEN, op. cit.), a formulação

se coloca como modelo de intervenção. Sua recomendação ajusta-se às diretrizes aplicadas no

financiamento de infra-estruturas e na construção e indução de políticas de cunho ambiental, por

exemplo, no caso de agências multilaterais.

O raciocínio da escassez, que associa a valoração da água à sua disponibilidade irregular,

reflete aspectos da formação de valor na economia tradicional. Em outras palavras, transpõe para

96

O material citado costuma ser referido como uma espécie de documento básico para a inflexão das posturas de

financiamento infra-estrutural do Banco Mundial após a célebre crise de insolvência dos países em desenvolvimento, na

década de 1980.

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285

o território a série de princípios mais fundamentais da teoria econômica clássica sobre a oferta, a

demanda e a variação de preços. Nestas concepções, para as mercadorias em geral, e no

processo geral de formação de preços, há uma relação inversa entre oferta e valor (HICKS, 1987). É

possível, entretanto, considerar as variações das rendas dos agentes (e suas correspondentes

capacidades de pagamento); isto torna mais complexo o caso, e estabeleceria, segundo a mesma

visão, conjuntos de mercadorias a apropriar no mercado, e relações entre elas (HICKS, op. cit.)

Haveria alguma relação entre preferências, demandas e estas flutuações de valor econômico e

renda (idem, op. cit.), onde alguns itens à disposição são apropriados e valorados de forma

diferenciada, em dado momento. Por outro lado, a água não parece ser tão elástica em termos de

opção marginal; qual a alternativa que não usá-la, em certos processos?

Entretanto, isto coloca um outro problema: o consumo do território às proximidades da

água, em termos da apropriação do solo, via mercado. Apesar da hegemonia do modelo de

incorporação da água como mais eficiente pelas formas competitivas e eliminatórias da troca, o

reconhecimento de alguma assimetria na distribuição da renda entre os agentes em disputa

colocaria, imediatamente, a problemática da desigualdade no acesso. Se for possível estender a

lógica a uma abordagem mais distante da modelagem baseada na economia de mercado, e

assumindo que haja forte relação entre a disponibilidade e proximidade da água e o caráter do uso

e apropriação do território, pode-se deduzir que, em um mercado de terras, os diferenciais

locacionais dos territórios próximos à água sejam apropriados preferencialmente pelos mais ricos.

Isto seria uma espécie de corolário do que Harvey (1980) colocara para o mercado de terras

urbano, aonde os agentes detentores de maior capacidade de pagamento chegam “antes” ao

mercado e, portanto, apropriam as melhores terras, ou pelo menos criam uma temporalidade de

apropriação onde o caráter especulativo do solo no capitalismo reforça a desigualdade entre as

localizações.

Finalmente, o problema da “escassez”, portanto, é também um problema de construção

do ambiente, não exclusiva do plano simbólico, mas da capacidade de mobilização dos agentes

em torno dos sentidos do ambiente e dos projetos políticos — que seriam, também, ambientais

(HARVEY, 1996b). A escassez é socialmente construída (SWYNGEDOUW, 2004). É, também, o

argumento quase lógico do aumento do valor de troca atribuído à água e, por conseguinte, aos

seus diferenciais territoriais; quanto mais escasso, mais caro é o bem, na lógica da economia

Page 286: Tese Cidade e Agua Jximenes

286

clássica. Embora este seja um raciocínio adotado até mesmo por setores que pretendem entabular

a discussão da conservação ambiental, torna-se um reforço da “ideologia ambiental”

(SWYNGEDOUW, 2004, p. 40) da escassez e, portanto, da assimetria na apropriação. Se o ambiente

não é igual para todos, revela-se mais escasso para alguns. Em termos políticos, um

desdobramento recorrente do “discurso da escassez” (SWYNGEDOUW, op. cit.) é o conjunto de

providências a tomar para lidar com a distribuição desigual da água no planeta. A lógica sistêmica,

planetária, assume a escala da discussão, e como tal integra as dinâmicas como um todo

integrado. Assim, além do já comentado “funil da água”, sobre os seus percentuais disponíveis no

mundo, existe uma série de recomendações acerca da necessidade de reapropriação do estoque

de água doce superficial disponível, em geral, por parte de Estados-Nação mais ricos97

. A

desigualdade territorial “natural” da distribuição assimétrica da água, convenientemente

desnaturalizada, torna-se elemento de mobilização:

[…] a água não é igualmente distribuída pelo mundo, e há grandes variações

quanto a sua abundância. Regiões montanhosas, por exemplo, produzem 80 por

cento dos recursos hídricos globais, tendo menos de 10 por cento da população

global [...] Esta distribuição desigual acarreta a necessidade de acordos e

mecanismos de transferência em larga escala. Inicialmente as transferências de

água em larga escala ocorriam dentro das fronteiras nacionais. Acordos eram

comuns entre países que dividiam a mesma bacia hidrográfica, como os Estados

Unidos e o México [...] Recentemente, […] como as demandas por água

cresceram, iniciativas de transferência do recurso são feitas em nível

internacional. Empreendedores criaram um vasto leque de mercados de troca e

intercâmbio de água. Desta forma, a água doce tornou-se um item nas

negociações e disputas comerciais entre países. A falta de precedentes legais na

gestão do comércio colocou a água na linha de frente das preocupações e das

tensões internacionais.

[…] historicamente, é comum para as regiões experimentar vulnerabilidade

diante da disponibilidade de água. Disputas em torno de recursos hídricos

compartilhados podem levar à violência e podem conduzir a tensões em nível

local, nacional e até internacional […] Países podem se dispor à guerra para a

defesa de seus interesses. Há um sério risco de a água tornar-se casus belli em

algumas regiões áridas do mundo [...] Espera-se um acirramento dos conflitos

na medida em que as populações se expandem, economias crescem, e se

intensifica a competição por estoques de água limitados. A competição e os

conflitos pela água não são novos, no entanto não há precedentes históricos

para o atual descompasso entre demanda e oferta (MEDALYE; HUBBART, 2007.

Tradução nossa; grifos dos autores).

97

A guerra (ou seu temor) e a necessidade biológica da água são acionadas no debate, na legitimação de políticas e na

relações internacionais. Com freqüência, é também mobilizado o paradigma de vinculação do crescimento demográfico à

escassez de recursos disponíveis, conforme Acselrad (2001) identifica no discurso ambiental hegemônico.

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287

A coesão entre tais processos — de racionalização, modernização e reprodução, em

linhas gerais — articula o que chamamos aqui de política de controle da água. Esta política, no

sentido lato e aberto, mas não menos influente e impactante, está materializada no território que

caracterizamos ligeiramente como zona de interface, às proximidades da água — entendida como

fator de estruturação territorial, condicionante de relações, possibilidades e constrangimentos. As

próprias intervenções territoriais, aplicações da técnica e do processo de abstração do ambiente,

revelam-se cambiantes em seus desdobramentos; engenharias ora capazes de inovações e

incorporações dos homens aos processos e soluções (ROSSI, 2001), ora reveladas como

ferramentas de veto e exclusão.

Desta forma, uma política de controle da água (aberta, difusa) é o que parece, até aqui,

criar os contornos atuais de uma problemática de uso e apropriação de seu território de influência.

E parece, inclusive, ser um fator determinante na concentração de possibilidades, benesses e

fatores do território (e do ambiente), embora revestida de mecanismos de preservação,

conservação e democratização.

A água, vista num dado ambiente urbano, seria assim abordada enquanto recurso;

enquanto ativo que traz em si, ainda, potenciais de ganho. A água, neste caso, pode ser entendida

também como fator de produção, ou como meio. A gestão de recursos hídricos, ao planejar

espacialmente, racionalizar processos, englobar usos e padrões e pretender regulá-los, cria um

contexto de controle difuso sobre as várias formas de se usar e apropriar a água, no caso, na

cidade. Abordada inicialmente como substância, o que não traz em si tanta dimensão “natural”

quanto o termo pode supor, a “água urbana” pode se desdobrar em abstração econômica, em

racionalidade técnica, em valor potencial paisagístico.

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288

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A cidade na Amazônia brasileira, se tomada a partir de seus exemplos seculares e

ribeirinhos, mostra algumas particularidades de formação histórica e em suas soluções espaciais.

Ao criar relação e estruturas territoriais com os cursos d´água que a cercam, estas cidades

exprimem formas de adaptação e transformação do ambiente, além de uma tradição e de uma

tecnologia de instalação, desenvolvimento e assentamento. Isto pode ser ilustrado pela formulação

de Eidorfe Moreira (1976), por exemplo, acerca do aproveitamento e das utilidades dos igapós

amazônicos. Esta forma de assentamento territorial, e idiossincraticamente urbano, que tem

paralelos ligeiros em assentamentos humanos em outras localidades com hidrografia similar (no

Sudeste Asiático, por exemplo), apresenta algumas estratégias simples de constituição

morfológica.

Aspectos de cidades tradicionais ribeirinhas também localizam as estruturas urbanas

mais representativas do ponto de vista espacial e sócio-econômico em situações privilegiadas, em

proximidade com os rios e lagos da região. Estas localizações costumam se reforçar mutuamente,

onde os mercados, os portos e os espaços públicos (praças, terreiros, barracões), por exemplo,

têm atividades em diferentes horários do dia, e fluxos que se intercambiam. Ademais, tais

estruturas mostram um conjunto limitado de atividades cuja operação tem relação com os rios: a

conexão, a extensão, a observação e a contemplação, o deslocamento e a apropriação, das

margens e/ou das águas propriamente. Assim é, por exemplo, a lógica dos trapiches, diques e

píeres; ou os dos terrenos acrescidos produzidos com resíduos da produção econômica (agrícola,

manufatureira, industrial) ou das edificações, bem como dos pátios extensos sobre estacas dos

portos nas margens de cursos d´água; dos mirantes da navegação ou dos espaços públicos com

atribuições religiosas ou festivas; dos terminais de transporte de cargas e passageiros, próximos

dos locais da troca econômica entre as embarcações e o chamado hinterland (MOREIRA, 1989); e

assim também costuma ser a lógica do uso das margens, para a cultura de animais, para a pesca,

para outras formas de aproveitamento econômico (agricultura, por exemplo) e para a captação.

As formas de uso e apropriação das margens de cursos d´água na região foram

transformadas com a consolidação de um padrão de urbanização mais evidente e com as

decorrentes mudanças em processos territoriais, econômicos e sócio-ambientais. Deste modo,

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289

mudaram as formas, mas não necessariamente os componentes mais estruturais de algumas das

abordagens citadas sobre o aproveitamento das margens de cursos d´água na região. Novas infra-

estruturas, ou equipamentos urbanos, ou ainda políticas de Estado, se colocam na realidade como

agentes de intervenção, de produção do espaço humano.

O tema da água neste trabalho não pretende estabelecer com este elemento uma relação

fetichizada. Ao contrário; ao abordar aspectos de uma possível questão da água no espaço urbano,

tenta-se elaborar os contornos de uma problemática da relação entre fenômenos, e não da

importância isolada do elemento água, tomado em si como ente autônomo. Para fins de discussão

de conflitos, de produção das verdades sociais e para pensar problemas de desigualdade e poder,

de certo modo, é mais apropriado pensar a relação entre os fenômenos do que tomá-los

individualmente (FOUCAULT, 2004). Assim, a água pode ser considerada como condicionante de

estruturação territorial, junto a outros. Deste modo, não se pode, para este efeito, tomar a água

como elemento relevante, do ponto de vista territorial ou sócio-econômico, de modo isolado; as

contradições que ela exibe, enquanto condicionante no território, devem ser ressaltadas. A

contradição, e os processos de conflito dentro do processo produtivo, e dentro da reprodução

social, fariam parte da própria fetichização; das coisas parecendo ser oriundas da relação entre

coisas, e não oriundas de relações sociais, de processos de conflito social, histórico, econômico,

entre indivíduos, grupos e classes (MARX, 1968).

Esta relação entre sentidos é importante sob várias óticas. Entendendo que os itens do

ambiente configuram elementos de formação das cosmologias e dos sentidos das intervenções

sobre ele (DESCOLA, 1998), a água teria sua relevância demonstrada, por exemplo, pela presença

que adquire junto às narrativas das sociedades, sobre seus mitos, sobre suas estruturas

representacionais. A água, neste caso, é construída como elemento de uma série de relações

sociais emblemáticas. Nas histórias narradas no texto sobre a água, dentre outros elementos da

natureza, Simon Schama (1996) aponta como cursos d´água, historicamente, eram vinculados a

uniões entre nações, ou como elementos de disputa em conquistas territoriais, ou ainda como

signos emblemáticos de coletividades inteiras, povoando as construções sobre suas identidades,

seus mitos originários, as razões da sua existência. O autor, ainda, ao falar de Londres, a concebe

a partir de suas próprias memórias infantis, ao construir os odores, os sabores, as cores, os

ruídos e sons e recuperar alguns fragmentos de narrativas de outros para entender, a partir do

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290

Tâmisa, do estuário ou da costa marítima, onde estavam o poder, a zona nobre, a escuridão, a

diversão e a sujeira de seu lugar (SCHAMA, op. cit.) A água, ou os cursos d´água, são também

parte de construções culturais sobre definições de limites, de fronteiras políticas e de símbolos

nacionais; Febvre (2000) fala do Rio Reno como divisor de fronteira entre França e Alemanha. O rio

não só era “disputado” em suas formas de uso e apropriação, mas era símbolo, de forma

diferente, dos dois países, e construído historicamente, em termos de suas paisagens, como ponto

relevante de suas respectivas economias, de suas respectivas soberanias territoriais e, de certo

modo, de sua respectiva autonomia e superioridade enquanto nações européias, diante da outra

(FEBVRE, op. cit.) O componente ideológico, presente na captura das narrativas da época (em

discursos políticos ou na imprensa) e na “contaminação” desta ideologia pelo próprio autor, fazem

parte da pertinência da relação entre o curso d´água e suas respectivas sociedades de interface.

A água, então, não deve ser tratada apenas como elemento e item natural da paisagem.

Aliás, a água, como visto, é “natural”, mas tem aspectos socialmente construídos, tanto em suas

representações quanto nas suas formas de uso e de apropriação material e econômica. Neste

sentido, há relações de exploração, de apropriação do valor gerado por outros, de segregação, de

veto no acesso e de reprodução de desigualdades sociais associadas justamente aos diferenciais

advindos da proximidade da água com os territórios que, no caso, são pensados aqui a partir da

cidade. Deste modo, inclusive pela recorrência de formas variadas e uso e apropriação deste

elemento nos assentamentos humanos, a água se mostra como poderoso condicionante das

maneiras pelas quais as sociedades constituem seus territórios, em geral.

Como dito, esta é uma questão histórica. O processo ancestral de urbanização e de

formação histórica de assentamentos humanos, como a aldeia, também se revela próximo de

cursos d´água, sobretudo de rios. São as chamadas cidades da planície (MUMFORD, 1998). Em

torno destes assentamentos, já na Antigüidade, havia uma série de saberes criados a propósito do

estudo dos fluidos e de sua circulação, e as analogias com a água sempre foram importantes para

a construção deste conhecimento. Neste sentido, “ciências”, filosofias e saberes em geral,

incluindo as artes, atribuíram certo caráter mítico e metafórico ao falar da água; a analogia citada,

por exemplo, relacionava a lógica da circulação sangüínea do corpo humano com as redes

hidrográficas, os rios em uma bacia, de modo que se entendesse a concentração de fluidos, as

diferenças de vazão, e as zonas de maior representatividade quanto aos fluxos (SCHAMA, 1996). A

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291

água, como elemento fundamental constituinte do ambiente do homem (SCHAMA, 1996), agrega

tanto formas de interpretá-lo quanto possibilidades de re-elaboração do pensamento a partir de

suas referências. Como tal, está presente, atualmente, em formulações curiosas sobre os seus

sentidos, inclusive no plano da política ambiental, o que é uma ação moderna.

A ocupação territorial em situação de proximidade com cursos d´água tem, portanto,

representatividade histórica: apresenta densidades relativamente mais altas e diversidade funcional,

com registros de notável intensidade de fluxo de produtos e altos índices de processamento da

paisagem. Além disso, implicou, historicamente, em esforços técnicos de drenagem e irrigação, o

que teve desdobramentos econômicos significativos, inclusive na produção de lógicas territoriais

de conexão e de extensão.

A respeito da relação entre cidade, processo de urbanização e as águas que

eventualmente têm contato com seu espaço, contemporaneamente esta “relevância” da água

também é destacada, mas sobretudo com um tom de resgate da natureza na cidade. Esta ideologia

do “resgate” da natureza pode remontar aos Estados Unidos da América no século XIX (SCHAMA,

1996) ou mesmo à Europa de finais do século XVIII (THOMAS, 1988). A concepção de que se pode

recriar o ambiente dentro do espaço urbano, ou de que se deve intervir na natureza para nela

potencializar aspectos favoráveis à coexistência com a ocupação humana é recente. Naturalizar as

dinâmicas físico-ambientais urbanas e culturalizar processos até então ditos naturais tem sido uma

postura contemporânea diante do ambiente urbano, aliás. Descola (1997; 1998) a aponta entre

comunidades indígenas, mas sugere, teoricamente, a possibilidade de entendimento da operação

como algo passível de generalização. Ao construir o ambiente urbano como uma totalidade (que

imbrica artefatos, produzidos, e natureza, relativamente dada e externa ao homem),

contemporaneamente também se atribui características da natureza às sociedades e, em paralelo,

comportamentos explicados como humanos, sociais, com psicologias próprias inclusive, que

seriam próprios a elementos do ambiente, como animais ou plantas ou, ainda, o mar, os ventos

(DESCOLA, 1996; 1997). É assim que, por exemplo, a cidade pode desejar respirar, por sua porta de

entrada ou por sua pele; ou o rio pode, em situação extremada de catástrofe sócio-ambiental,

desejar se vingar das pessoas, dos habitantes da cidade, sobre seu mais emblemático lugar —

situado, obviamente, à beira deste mesmo rio.

Os usos da água na cidade são variados e também apresentam transformações

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292

históricas. Embora as águas tenham tido propriedades de purificação e fertilidade (SCHAMA, 1996),

os aglomerados urbanos também as usam como depósito de rejeitos, em acepções e atividades

tidas como menos nobres. Por outro lado, é no espaço do litoral que ocorre a invenção do lazer e

dos aspectos lúdicos da praia (CORBIN, 1989), um uso das margens de cursos d´água que implica

em significativas transformações históricas. Estas transformações são refletidas também em

modificações de uso do solo, e de padrões de ocupação territorial. Novos usos e padrões, como

os balneários e estâncias turísticas, não apenas reconfiguram os espaços específicos que

ocupam, mas têm impacto na escala regional. A modificação que operam trabalha no sentido da

criação de novas legitimidades para estes territórios. A invenção da praia, historicamente, se

consolida ao mesmo tempo em que se institucionalizam as primeiras políticas ambientais de que

se tem notícia no Ocidente. Curiosamente, alguns discursos contemporâneos, ligados ao

urbanismo ou ao ambientalismo (ou a associações possíveis entre os dois campos), lamentam os

usos e abordagens históricas da água, numa espécie de revisitação de suas propriedades técnicas,

culturais e econômicas, transplantando as lógicas anteriores para um juízo da experiência histórica

atual. Neste sentido, são criadas qualificações e hierarquias dos usos e padrões tidos como

“limpos” ou “sujos”, ou como “leves” e “pesados”, o que cria uma nova normatividade sobre os

usos nas proximidades da água. Começa a existir um discurso e uma prática política de

diferenciação e de criação de vetos nestes territórios, e as elites econômicas os concebem como

se a lógica da valorização da paisagem sempre tivesse que se fazer presente ali, mesmo quando

esta lógica não encontrava ressonância. Pauta-se o passado pelas dinâmicas capitalistas do

presente, neste caso.

Haveria também uma relação de cidades cuja estruturação urbanística e econômica se

relaciona com o desenvolvimento de uma zona portuária e de produção associada a ela. Estes

entrepostos são tomados como evidências de alguns elementos modernos do desenvolvimento

econômico urbano (JACOBS, 1970). Haveria, nestes casos, tendência à aglomeração e

diversificação de atividades relacionadas ao aproveitamento de cursos d´água (JACOBS, op. cit.),

mas também à chegada de dinâmicas territoriais propriamente capitalistas na cidade, a deduzir dos

fenômenos que a autora aponta. A proximidade com a água, no território urbanizado, pode

representar também diferenciais locacionais, tornando-o igualmente idiossincrático como a

geografia afirma ser, por exemplo, a zona costeira em geral (MORAES, 1999).

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293

Em meio a tais exemplos e representações, é possível deduzir que haja alguma relevância

nos territórios ocupados nas proximidades, e sob influência, dos cursos d´água em geral. Esta

influência, nos marcos históricos do capitalismo, redundou em alguns tipos de conflito, e de

disputas portanto, onde o mercado de terras tem centralidade. A valorização excepcional da terra

nas proximidades do litoral (MORAES, 1999) é um elemento de explicação desta disputa; haveria, na

verdade, tentativas de apropriação dos diferenciais locacionais dos territórios próximos à água.

Processos de modernização, de formalização e racionalização tendem, portanto, a acentuar este

tipo de conflito. Estes processos teriam, em parte significativa dos casos, forte relação com o

mercado de terras capitalista, e com seletividades oriundas das dificuldades de acesso, de

potencialidades de uso e de formas de apropriação material da água e de seus diferenciais

locacionais. Este conflito, sob outro ponto de vista, pode ser associado à marginalização relativa

da pobreza litorânea, ou da pobreza residente nas margens de cursos d´água em geral. Esta

pobreza, cujo exemplo notório na historiografia seria a vila de pescadores e coletores (CORBIN,

1989), sofre um estigma que, automaticamente, é associado às atividades de reconfiguração das

terras litorâneas. Deste modo, um dos maiores e mais recorrentes argumentos para o processo de

modernização do litoral é a remoção dos assentamentos tradicionais estigmatizados, e por

conseguinte, a implantação dos novos usos e padrões de aproveitamento de seus diferenciais

locacionais. Esta modificação de usos e de padrões representaria um processo muito freqüente de

transformação das áreas litorâneas, e assinala uma evidência material dos impactos territoriais da

invenção da praia, do litoral, como espaço de preferência de elites econômicas urbanas modernas

(CORBIN, 1989).

O mesmo processo, em termos amplos, poderia ser identificado na implantação da

estrutura racionalizada do porto moderno ou na aplicação das técnicas da gestão de recursos

hídricos sobre o território. A chegada de padrões e de atividades, ou mediações institucionais e

jurídicas, tipicamente capitalistas e modernas, costuma acarretar transformações objetivas nos

espaços próximos aos cursos d´água. Embora algumas lógicas de aproveitamento da água na

cidade continuem valendo, fundamentalmente, mesmo na transição entre formas tradicionais e

modernas, as transformações materiais e as novas desigualdades que surgem criam outros

modos de uso e apropriação.

O porto moderno preserva o caráter técnico e de entreposto, de estrutura produtiva e de

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294

conexão, extensão e deslocamento, de sua interface com a água na cidade. A modificação reside

na forma de territorialização do porto modernizado e em sua localização espacial. Mudam os

critérios locacionais da estrutura portuária modernizada, o que coloca estes novos portos em

pontos menos urbanizados da região, submetidos a programas de gestão ambiental e

racionalização de tráfego diferenciados e recentes. A localização residual do antigo porto,

provavelmente oriundo da economia de exportação e da expansão de capitais da virada dos

séculos XIX e XX, entra em imediato conflito com este processo. Daí é que surge a discussão

sobre a “obsolescência” das antigas estruturas portuárias urbanas centrais; algo que se disse, em

outros tempos e circunstâncias históricas, sobre os “portos” informais não-aparelhados e

desprovidos de racionalidade técnica segundo os mesmos moldes da virada do século. O novo

sítio portuário, então (embora preserve as lógicas territoriais básicas de estruturas anteriores), se

apropria destes diferenciais locacionais de outras formas e noutras bases, com menor contato

com as dinâmicas urbanas internas, maior articulação a rotas da logística integrada regional

(BAUDOUIN, 1999), e mais submetido aos ditames da gestão do ambiente e da eficiência econômica

do que à política urbana ou às influências políticas das disputas pelos diferenciais da cidade e da

urbanização.

A gestão da água, representada por uma operação tipicamente moderna de

administração, composição e economia da paisagem, da construção de uma natureza ecônoma

(CAUQUELIN, 2007), que não é estritamente cultural (pois nada o é), também mantém suas lógicas.

Apropriava-se água, nos assentamentos urbanos, de diversos modos; a água tem, historicamente,

diversas acepções e sentidos, desde aqueles mais nobres e sagrados — a bênção, a união entre

pessoas distintas, entre nações (SCHAMA, 1996) — até, claro, aqueles do resíduo, do receptáculo

da sujeira e do obscuro (CORBIN, 1989). Um problema contemporâneo se mostra, portanto, quando

surge no âmbito do Estado capitalista a noção de preservação e conservação ambiental,

estabelecendo hierarquias, interpretações científicas dos itens do ambiente e conformando-os em

políticas. Tais políticas, aplicadas ao caso da água, pretendem regular as formas de sua

apropriação, o que encontra nas formas territoriais da cidade um território fértil em casos a

trabalhar. Deste modo, determinadas atividades, e sobretudo padrões de atividades, são

enquadrados em categorias menos nobres do uso da água. Dentro desta classificação oficial, e

dos diagnósticos ambientais nela implicados, são formados alguns tipos de vetos, juízos,

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295

valorações e restrições sobre as formas de apropriação da água no território. De forma

generalizada, e difusa, a política ambiental, através da gestão de recursos hídricos, procura regular

o modo, o formato, a escala e o padrão de acesso à água.

Estas formas territoriais, contudo, representam uma parte da questão, recortada neste

trabalho como uma relação entre cidade e água. Alguns fenômenos específicos exemplificam,

ilustram e tentam dar maior concretude à discussão. O trabalho é, especificamente, sobre o caso

de Belém-PA, em sua estruturação urbanística e em alguns de seus conflitos atuais que podem ser

lidos na relação entre a cidade e cursos d´água de seu território. A urbanização em Belém-PA tem

relação histórica com apropriação das águas, e isto reforça a pertinência da discussão a partir do

seu caso. Como núcleo urbano do Norte do Brasil, Belém-PA também faz parte de um conjunto de

cidades implantadas em beiras de rio; no caso, o grupo de cidades implantadas para defesa da

costa no período colonial (SANTOS, 2001). Esta situação é uma referência de estruturação urbana

particular da Região Norte, tanto pelo aspecto das cidades seculares quanto pela localização nas

margens de cursos d´água, e mostra soluções tradicionais de territorialização, de certo modo

válidas para o entendimento da formação da cidade às proximidades das águas e para a discussão

de alguns aspectos de seus conflitos atuais. Estes conflitos, no caso da apropriação de terras e

dos diferenciais dos territórios próximos à água podem também ser entendidos pela desaparição

da terra livre (Marx, 1986) e seus equivalentes na região, bem como pela consolidação de um

mercado do solo urbano mais especulativo, valorizado e concentrado, no caso específico da

cidade de Belém-PA. Este último ponto pode ser lido em dados sobre a estratificação social e a

localização de populações na cidade, bem como a partir dos lançamentos recentes do mercado

imobiliário, em empreendimentos residenciais de médio e alto padrão.

Para esta discussão, em termos gerais e incorporando diversas abordagens sobre a água

na cidade, são tratadas quatro formas territoriais desta relação, a partir da empiria da cidade de

Belém-PA e região: os parques da economia da cultura (JAMESON, 2001); a modernização

portuária; a engenharia ambiental; a gestão de recursos hídricos. A cada forma territorial abordada

corresponderia pelo menos uma abordagem e tipo de uso específicos da água na cidade:

observação; conexão/extensão; deslocamento; apropriação. Tais abordagens e usos não se situam

de forma estanque no interior de suas formas territoriais respectivas, mas transitam entre elas,

relacionando-as ou denotando novas formas de conflito sócio-ambiental. É desta forma que

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296

funções e modos de aproveitamento desta interface entre cidade e água podem ser acrescentadas

a intervenções territoriais que não necessariamente os incorporavam. Um caso ilustrativo deste

fenômeno é o da conversão dos canais (outrora rios, ou, no caso de Belém, igarapés) de

drenagem em rios urbanos. Nesta conversão é preservada a função técnica da água como

deslocamento, mas é também incorporada sua noção de contemplação; este “acréscimo” sugere

não apenas alteração de uso, mas de tratamento, de função, e de tipo de acesso. De fato, a partir

desta alteração são reconfigurados usos no entorno da intervenção, e são modificados os atributos

daquela água na cidade. Circulações entre estes atributos, portanto, ocorrem em todas as

intervenções territoriais, concretas que são, da interface entre cidade e água.

As transformações nas formas territoriais de constituição da interface entre cidade e água

são importantes para o caso de Belém-PA. Há na Região Norte universo de certo modo pré-

capitalista, de fronteira econômica, e que se vê gradativamente confrontado com dinâmicas de

modernização; isto pode ser visto a partir de fenômenos próprios da chegada de determinadas

relações capitalistas na cidade e na região. Há transformação das lógicas daquelas formas

territoriais entre cidade e água, e no processo de urbanização de maior porte tais formas se

modificam com aprofundamento dos vetos e restrições aos potenciais destes territórios.

Especificamente, a cidade de Belém-PA é um caso de interesse para o estudo da relação

entre cidade e água também pelo caráter histórico de sua estruturação urbana diante de seus

igarapés, do Rio Guamá e da Baía do Guajará, seus principais cursos d´água. A cidade apresenta

alguns temas a partir dos quais se pode pensar esta relação. Um deles é o do Alagadiço do Piri,

um pântano que representou a primeira grande intervenção urbanística da cidade, quando recebeu

obra de ensecamento, e que ainda hoje suscita debates sobre a opção de drenar o canal ou mantê-

lo “veneziado”, segundo a proposta do Major Gronsfeld. O porto da cidade, com sua racionalização

e concentração da atividade de circulação de mercadorias e pessoas, também é um exemplo de

interesse, pela modificação no padrão de acesso ao rio que acarretou e pela relação da estrutura

formal, tecnologicamente consagrada, e os diversos portos informais existentes na cidade. Como

apontado em termos generalizados, é muito curioso que nos tempos atuais justamente as

estruturas portuárias da virada dos séculos XIX e XX sejam tidas como “obsoletas” e esvaziadas,

quando estas mesmas estruturas reconfiguraram e removeram espacialmente antigos “portos”

informais, quando de sua instalação.

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297

Em Belém-PA, por outro lado, a relação entre cidade e água apresenta várias áreas

periféricas, precárias e com densidades relativamente altas, onde a população reside em situação

de proximidade em relação aos antigos igarapés urbanos, que a engenharia local chama de canais.

As bacias hidrográficas de Belém-PA com ocupação de mais alta densidade são aquelas onde

reside uma parte significativa de sua pobreza urbana. Estes são locais de projetos de intervenção e

de uma qualificação pejorativa quase permanente, associada à idéia de remanejamento e impacto

ambiental negativo. Atividades econômicas destes locais, em meio a uma discussão generalizada

sobre “reapropriação” das margens fluviais da cidade, são também qualificadas como obstruções

ao novo projeto de “revitalização” destas margens, localmente chamadas de orla de Belém.

A respeito da própria idéia de uma “orla” da cidade de Belém-PA cabem alguns

comentários. A orla parece uma idéia um tanto amorfa, mas eventualmente toma formas com grau

razoável de objetividade, dependendo da circunstância. Pode ser dito que, no linguajar local e na

discussão pública a respeito da forma hegemônica de tratamento urbanístico das margens fluviais

da cidade, a “orla” seria um equivalente do parque linear urbano, mesclado a uma intervenção

viária, e associado a serviços de amenidades, lazer e consumo. De certo modo, é como se a “orla”

desejada pelas elites econômicas locais fosse uma versão estendida do waterfront; entretanto, pela

dinâmica que parece instalada na cidade, haveria também clara associação com novos

empreendimentos imobiliários de classe média e alta e com a incorporação da periferia próxima ao

estoque valorizado de terras centrais e urbanizadas da cidade.

Dentro da “ideologia” da orla fluvial da cidade (onde o termo não guarda tanta relação

com a acepção técnica de borda de água em relação às terras emersas) a figura do ribeirinho e do

“modo de vida” ribeirinho é representativa. O ribeirinho, enquanto mote, tem plasticidade notável:

circula na legislação urbanística municipal, em discursos elogiosos nas artes plásticas locais,

funciona como idéia contra e a favor de intervenções urbanísticas. Como síntese, o ribeirinho e sua

figura promovem adesão, por permitirem a produção de uma unificação identitária entre os

habitantes da cidade. O ribeirinho também permite uma reflexão sobre mecanismos discursivos e

ações políticas de produção de hegemonia; ele mobiliza e trafega entre natureza e cultura com

fluidez.

Mas ao ribeirinho, como estigma, estão associadas as baixadas, seu espaço de moradia

correspondente. As baixadas são, portanto, o problema sanitário urbano codificado mais antigo da

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298

cidade, e uma questão crônica a resolver, ainda nos dias de hoje. Neste sentido, os agentes

tomam suas posições e se antagonizam, ou mistificam suas divergências, quando necessário, no

embate político e técnico da intervenção na cidade. Dentro de antagonismos de posições no

espaço social, alguns conflitos nem sempre devem aparecer (BOURDIEU, 1996b); isto pode ser visto

quando se trata de disputas pela apropriação desigual dos diferenciais de acesso ao ambiente, e a

territórios com qualificações específicas na cidade. Neste movimento são produzidas intervenções

territoriais na cidade, a respeito da uma possível e ampla questão da água.

Estes projetos e políticas de intervenção na cidade e na região incorporam a discussão

sobre a urbanização de áreas alagáveis e sobre as inovações no campo do saneamento. A revisão

do padrão de projeto e operação destas infra-estruturas é acompanhada dos discursos sobre a

remoção e sobre a reconfiguração dos potenciais econômicos dos territórios próximos à água.

Surge, portanto, um padrão renovado no conjunto das chamadas tecnologias ambientais urbanas,

e este padrão tem repercussão, também, na ocupação do território e no acesso ao ambiente

urbano.

A combinação de intervenção urbanística e tecnologias ambientais também pode ser

vista, embora sob outro aspecto, na abordagem sobre o parque naturalístico Mangal das Garças,

intervenção situada no limite do Centro Histórico de Belém-PA com a periferia próxima da cidade, e

vizinho à intervenção de urbanização de “orla” do projeto Portal da Amazônia. O parque é um dos

casos onde a intervenção procura recriar o lugar e o ambiente na cidade. O Mangal das Garças,

por outro lado, assinala uma inflexão dos equipamentos urbanos culturais em direção ao mote

ambiental, a uma noção de “resgate” do ambiente na cidade, encapsulando ecossistemas

amazônicos em alguns hectares de visitação e contemplação de natureza controlada. Neste

sentido, o parque guarda grandes semelhanças com os espaços da Arcádia citada por Simon

Schama (1996) como produtos do paisagismo e das então chamadas “artes urbanas” do século

XIX, em que se procurava reproduzir a natureza em espaços destinados à visitação e à fruição

estética da burguesia da época.

Por outro lado, o Mangal das Garças pode ser visto no contexto de Belém-PA como uma

variação, e uma extensão, de intervenções de natureza cultural nas margens fluviais da cidade. Em

Belém-PA, desde o começo dos anos 2000, algumas intervenções urbanísticas e arquiteturais têm

tido lugar, sobretudo ligadas a um discurso de “resgate” da visão da “orla” fluvial da cidade. Neste

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299

caso, foram executadas intervenções com concepções diferenciadas, em disputa política entre

Governo do Estado do Pará e Prefeitura Municipal de Belém, com suas respectivas intervenções.

Os equipamentos culturais das margens fluviais da cidade exibem a tensão dos antagonismos

políticos de seus realizadores, e um discurso comum de “desobstrução” das margens da cidade.

Apesar de parecerem urbanisticamente diversos, a destinação dos espaços do que se

convencionou chamar de “orla” na cidade é quase monolítica. Parece ser concebido um “uso

único”, uma destinação já pronta para o caso: a “orla” da cidade se destina à implantação de usos

de amenidades, lazer e consumo. O caso dos equipamentos culturais do centro da cidade e de

suas margens de rios é inteiramente permeado por esses aspectos, portanto, mesmo com

eventuais diferenças de concepção. Concebidos como uma espécie de “resposta” às demandas

recentes pela apropriação dos diferenciais das margens do rio e da baía na cidade de Belém-PA,

tais equipamentos representaram uma disputa política pelo modelo de intervenção no que se

chamava, desde pelo menos as décadas de 1990 e 2000, de “orla” de Belém. Estas intervenções

também reconfiguraram, de certo modo, a paisagem urbana das margens fluviais da cidade, ao

criar novas referências de lazer, de espaço público, de consumo e de atratividade cultural e

econômica, em escalas variáveis. Um elemento curioso que persiste é que, apesar de se

pretenderem antagônicas, umas vinculadas ao planejamento estratégico de cidades e outras a um

discurso regionalista e socialmente inclusivo, as intervenções parecem ter o mesmo propósito

essencial: a suposta “devolução” da “orla” ao habitante da cidade. Neste sentido, compartilham a

mesma avaliação do caráter inapropriado de boa parte dos usos atuais das margens de rio da

cidade. Estas mesmas intervenções têm provocado debates curiosos na classe política, na

intelectualidade e na classe artística local, em manifestações que as colocam como elementos

não-consensuais na realidade da cidade e pautam a discussão sobre a viabilidade social destas

intervenções, e sua repercussão.

Em termos de uma água mais “técnica” está o caso da zona portuária da cidade. O Porto

de Belém passa, como vários portos urbanos seculares e centrais, pela discussão da

modernização portuária (BRASIL, 1993) do Brasil. Este processo de modernização de portos

pressupõe alterações no padrão territorial e na administração das zonas portuárias, e cria formas

novas de impacto ambiental, com redefinições nas escalas urbana e regional. A clara repercussão

econômica dos portos tem participação, também, na modificação das formas de apropriação do

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300

território próximo à água. No processo de modernização, algumas estruturas e formas anteriores,

freqüentemente de menor porte e mais precárias (ou mesmo irregulares), da operação portuária,

tendem a ocupar terrenos e localizações menos nobres, e o próprio fluxo portuário mais

concentrado tende a migrar. Isto cria outros tipos de assimetria nesta dimensão da água como

possibilidade de conexão, extensão e deslocamento territorial.

Outro caso da problemática entre cidade e água seria o da gestão de recursos hídricos. A

gestão das águas no território, inclusive no urbano, se apresenta como um padrão razoavelmente

homogêneo em alguns aspectos na política ambiental, mesmo em países diferentes.

Essencialmente calcada no monitoramento, na gestão por bacia hidrográfica e num sistema de

referências econômicas e físico-territoriais, a gestão das águas apresenta operações técnicas de

crescente racionalização dos processos de apropriação da água e sua conversão em recurso

(termo econômico) ambiental. Esta abordagem e esta acepção da água representam formas de

veto no acesso, mas também representam a incorporação da água, neste sentido, como um ativo,

e como um item do ambiente crescentemente incorporado à dimensão do mercado, das trocas

econômicas. A gestão dos recursos hídricos, que pretende em algumas de suas vertentes regular o

uso pela via das equivalências, ao hierarquizar e mapear os usos e formas de apropriação da água,

representa um agente político de emissão e execução de um discurso normativo, de controle,

ainda que difuso, e de valoração e emissão de juízos sobre a legitimidade e a adequação do

acesso à substância, ora veículo, mas definitivamente convertida em recurso.

As formas territoriais abordadas têm suas lógicas próprias, exibem usos e atributos

sociais e territoriais específicos das águas diante do espaço ocupado e utilizado pelas sociedades.

Embora estas formas sejam diferentes, seus efeitos gerais e alguns de seus propósitos parecem

apontar para certo grau de convergência. Deste modo, apesar dos waterfronts, do porto

modernizado, da engenharia ambiental e da gestão de recursos hídricos serem fenômenos

essencialmente diferentes, não é apenas a presença da água como elemento da paisagem o que

os une. Aspectos de concentração de benesses, de formas de veto e controle difuso, regulação do

acesso ao ambiente parecem estar desenhados a partir de fatos aparentemente tão dissociados

quanto a revitalização de um equipamento urbano histórico e pré-fabricado, portuário, e uma infra-

estrutura projetada de espaço público associada a um canal de drenagem urbano. Nestes

fenômenos, e noutros exemplos, estariam presentes a dimensão substantiva dos cursos d´água

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301

no território urbano e, ainda, a dimensão da convergência; todos representam um tipo de uso da

água no território que, contemporaneamente, se coloca atravessado diante de normatividades e

políticas de concentração dos notáveis diferenciais das margens dos cursos d´água, aqui tratados

no caso dos espaços urbanos. A convergência dos efeitos destas intervenções territoriais migra

em direção à consolidação de uma ampla política da água, onde o estabelecimento de formas de

regulação, veto e controle se reproduz através daquelas quatro intervenções.

Os parques urbanos do tipo waterfront abordam a água na cidade enquanto paisagem,

com as devidas seletividades quanto aos itens que nela podem constar, e com formas de

valorização econômica decorrentes destes diferenciais do território próximo à água.

Os portos modernizados, entretanto, abordam a água na cidade a partir de uma acepção

mais “técnica”. Esta água “técnica” é configurada enquanto veículo, como meio de escoamento,

de transportes, como forma de viabilizar fluxos. Neste sentido há aproximação deste caráter com a

dimensão do saneamento ambiental e do que se chama neste trabalho de engenharia ambiental.

Há uma clara abordagem da água na cidade enquanto fator de produção nas estruturas associadas

ao porto, ele próprio uma estrutura urbana de claro perfil econômico.

A engenharia ambiental, por sua vez, se aborda a água na cidade como veículo e como

meio, também parte de uma acepção da água na cidade enquanto substância, o que permeia as

formas ligadas mais diretamente à sua aplicação técnica. A engenharia ambiental, do mesmo

modo, associa outras abordagens do fenômeno na cidade ao conciliar atributos técnicos da água

enquanto veículo a reconfigurações urbanísticas da água como paisagem. Na discussão sobre o

se chama hoje de “águas urbanas”, por exemplo, existe uma espécie de tônica da intervenção

territorial; a descanalização de rios. Esta tecnologia, de certo modo, agrega tanto a dimensão da

água como veículo (preservando a função de canal de drenagem) quanto a da água como

paisagem (na implantação de variações do chamado parque linear urbano nas margens dos rios

urbanos, que são os mesmos cursos d´água anteriormente denominados canais).

A modalidade de intervenção territorial que se apresenta como mais ampla, com

repercussão em todas as demais, é a gestão de recursos hídricos. A gestão das águas tem uma

série de metodologias e pressupostos técnicos e políticos em sua atuação; classifica, hierarquiza e

estabelece normatividades sobre o planejamento territorial e sobre os usos dos itens do ambiente.

Sobre uma possível “questão da água”, a gestão de recursos hídricos estabelece classificações

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302

entre usos “pesados” e “leves” e “sujos” ou “limpos”, de modo que haja o estabelecimento de

critérios de autorização e licenciamento de atividades e obras nas bacias hidrográficas. O próprio

recorte espacial da bacia se revela, no caso em estudo, um tema interessante, pela desconexão

inicial entre o reconhecimento fisiográfico da bacia hidrográfica como unidade de planejamento e

pela identificação de outros recortes, aparentados porém não idênticos, dos rios locais e de seus

tributários, obviamente percebidos como “complexos” hidrográficos inclusive pelos habitantes

locais, mas não necessariamente na extensão da bacia hidrográfica. A aparente desconexão entre

o critério técnico mais abstrato, a mancha da bacia, e a apreensão local, empírica, a linha do rio,

parece criar uma dificuldade adicional de implantação do modelo de planejamento e gestão do

ambiente e parece também sugerir necessidade de aproximação de abordagens em direção à

concretude dos fenômenos.

Assim, a dimensão da água na cidade pode incorporar diferentes sentidos, diferentes

práticas materiais (HARVEY, 1996b) na cidade. Esta multiplicidade de abordagens não apenas

denota diferentes modos de compreensão e uso; também evidencia seu caráter político.

Inicialmente a água (“urbana”, no caso) é tomada por substância, onde há decisões revestidas de

natureza técnico-científica, tidas como não-históricas. A este procedimento inicial de

racionalização e abstração segue-se outro, de conversão da água, “técnica”, em veículo, com

variações rumo a uma dimensão econômica (da água como fator de produção, por exemplo) ou

funcional (da água enquanto meio). Esta abordagem parece entrar em conflito, ou divergir

frontalmente, daquelas formas de tratamento das “águas urbanas” que fazem destes elementos

diferenciais paisagísticos; a água enquanto paisagem, entretanto, é ao mesmo tempo de natureza

plástica e ativo econômico, e potencial causador de elevações objetivas de rendas fundiárias.

Finalmente, a articulação geral destas abordagens da água na cidade pode ser feita pela

incorporação de todas as suas dimensões em torno da chamada gestão de recursos hídricos. Ao

implantar procedimentos de cunho político evidente, sob respaldo sólido de caráter técnico-

científico e alguma influência da militância ambientalista recente, a gestão das águas estabelece

um regime diferenciado sobre o ambiente. A conversão da água “substância” em recurso

demonstra a extensão desta medida, e o seu potencial de generalização e enorme difusão

territorial.

No contexto atual do município de Belém-PA, portanto, é que se insere a discussão deste

Page 303: Tese Cidade e Agua Jximenes

303

trabalho. Há, como dito, formas de territorialização, na cidade e em sua região, que remetem ao

conjunto de elementos citados quanto às possibilidades de abordagem e uso das águas. Embora

as estruturas urbanas tenham se alterado com aspectos da modernização, aqui entendida como

indissociável da consolidação de fatores da economia capitalista, aqueles elementos e

características básicas se mantêm, atualmente. Deste modo, portos, terrenos acrescidos e píeres,

espaços públicos e demais estruturas e usos das águas da cidade evidenciam, ainda que não de

forma direta, a permanência daquelas atividades entre a cidade e as águas. Nas cidades atuais, de

maior porte, tais usos persistem, embora modificados em relação àquelas formas anteriores. Os

casos concretos citados como referências em Belém-PA e em sua região representam, em certa

medida, exemplos destas transformações, embora preservando elementos da lógica constituinte

das formas de usar a interface entre o território produzido historicamente e a água como fator

locacional substantivo.

Tais iniciativas concretas (intervenções territoriais ou políticas de ordenamento do

território em curso ou em projeto) representam exemplos e aplicações das atividades citadas

nestes locais. São formas de uso e de abordagem das águas em contextos urbanos. Neste sentido,

alguns efeitos das medidas (técnicas, políticas, sócio-econômicas) apontam para formas novas,

contemporâneas, de aproveitamento da cidade em relação à água. Deste modo, apesar de

alteradas as formas, são mantidas, em aspectos estruturais, as abordagens e usos do território

urbanizado nas proximidades de cursos d´água.

Uma questão que persiste é justamente a dos efeitos da mudança contemporânea do

tratamento e da abordagem das águas na cidade. A cada intervenção territorial corresponde um

tipo de uso da interface cidade-água, mas também um tipo de desdobramento pelo seu uso.

No caso dos parques urbanos da chamada economia da cultura (JAMESON, 2000) como a

Estação das Docas, o complexo Feliz Lusitânia e o complexo Ver-O-Rio, a abordagem e o

tratamento da água na cidade parecem ser o de, predominantemente, estabelecer nos locais de

intervenção algumas formas de consumo visual (ZUKIN, 2000). Estes espaços, em geral,

representam antigas estruturas urbanas reconfiguradas para usos atuais das amenidades na

cidade, do lazer, do consumo; para uma nova economia urbana que faz das cidades plataformas

de serviços (SASSEN, 1998). Pela clivagem de classe e de perfil sócio-econômico que é

estabelecida nestes espaços, em geral, podemos inferir que a dimensão da água na cidade como

Page 304: Tese Cidade e Agua Jximenes

304

item da paisagem a sofrer observação e contemplação apresenta formas relativamente novas de

divisão, de delimitação do espaço social (BOURDIEU, 1996b). Assim, a dimensão da água na cidade

como item de observação e contemplação, de consumo visual (ZUKIN, 2000), é construída

atualmente a partir da preferência dada, nos projetos de intervenção urbana, às demandas

solváveis, recomendadas pelo Planejamento Estratégico de Cidades (VAINER, 2000).

No caso da modernização portuária (PORTO, 1999), o Porto de Belém — e o conjunto de

equipamentos portuários gerenciado pela CDP98

na região de entorno — parece exibir o tipo de

veto no acesso à água no território quanto ao porte, ao padrão e à possibilidade de conexão e

extensão deste território. Assim, as operações específicas, e monopólicas, que costumam ser

desempenhadas neste tipo de equipamento e com estrutura técnica, começam a ser

crescentemente reguladas, não apenas pelo padrão técnico e pelo controle dos fluxos de uma

jurisdição territorial e administrativa, mas por efetivos mecanismos econômicos espacializados em

um mercado de trocas segmentado e submetido a condições particulares e quase incontornáveis.

Assim funciona o atual fluxo e a competição entre zonas portuárias mundiais, e esta dinâmica cria

uma série de condições, sobretudo de natureza técnico-funcional e administrativa, de gestão, que

representam objetivamente o nível de viabilidade de uma estrutura portuária atual.

A possibilidade de conexão e extensão com o território situado nas proximidades das

águas navegáveis não é, portanto, apenas uma questão de contato e de uso de equipamentos e

espaços tecnicamente apropriados às embarcações e suas atividades. Isto representa antes a

faculdade de se estabelecer a operação dos portos contemporâneos e, portanto, de operar os

principais fluxos do comércio internacional atual. A questão independe, obviamente, da

(pouquíssima, diga-se) representatividade do Porto de Belém para a economia brasileira ou mesmo

latino-americana nos dias de hoje.

Além destes aspectos, o porto também representa, na cidade e em uma de suas várias

possibilidades de se caracterizar um “ambiente”, um exemplo de tratamento eminentemente

técnico das chamadas “águas urbanas”; a água “técnica” dos portos é, neste caso, sobretudo um

veículo, e esta característica a coloca com um grau de racionalização, objetividade, formalização e,

portanto, uma necessidade de controle e monitoramento inegáveis. É deste modo que, além de

98

CDP é a sigla de Companhia Docas do Pará, anteriormente ligada ao Ministério dos Transportes e hoje à Secretaria Especial

de Portos da Presidência da República.

Page 305: Tese Cidade e Agua Jximenes

305

representarem uma modalidade excepcional de avaliação das conexões e extensões entre o

território e suas águas, no caso da cidade, os portos são também exemplos de aplicação das

técnicas de transformação do terreno em efetivos equipamentos de produção. Assim, podemos

também falar em procedimentos de monitoramento e seletividade no acesso a estas águas em sua

abordagem e dimensão técnica.

No caso da engenharia ambiental a aplicação de projetos de tecnologias ambientalmente

mais “compreensivas”, associada, sobretudo, ao caso da macrodrenagem da Bacia Hidrográfica

da Estrada Nova, e ao caso do parque ambiental Mangal das Garças, remete ao processamento da

natureza na cidade. Esta espécie de “resgate” do ambiente urbano tem características

diversificadas, não se constituindo em movimento homogêneo, nem nos fenômenos constituintes

e nem nas abordagens diversas do que se revela possível enquadrar como “natureza” dentro do

ambiente urbano. Se houve um tempo histórico em que as águas no espaço produzido pelas

sociedades humanas modernas foram eventualmente indesejáveis (CORBIN, 1989) e expelidas com

freqüência, um dos preceitos destas novas tecnologias é justamente o de permitir alguma

restauração de dinâmicas hidrológicas naturais (BUENO, 2005; MELLO, 2005); percolação, vazão

sem pressão adicional excessiva, trajetos das águas que permitam dissipação de energia, retenção

temporária das águas em horas de pico de cheia, taludes de rios/canais de drenagem com pouca

inclinação, de modo a constituir planícies de inundação mais seguras e mecanicamente estáveis.

Esta água na cidade é, assim como a do porto, veículo, por sua função sanitária, de

escoamento de rejeitos. Por outro lado, esta abordagem das chamadas “águas urbanas” a

converte, progressivamente, em paisagem, e em item de contemplação, já que o tratamento

(paisagístico, sobretudo) destes cursos d´água e entornos costuma configurar locais típicos das

ditas “revitalizações” urbanas. Sendo substância, está é uma água de abordagens múltiplas na

cidade.

Com certas mudanças nas bases produtivas urbanas, e com a migração espacial de

alguns usos do solo enquadrados como “pesados” (como alguns tipos de indústria), é razoável

inferir que tenha mudado a abordagem acerca das propriedades e usos do ambiente urbano.

Assim, enquanto alguns cursos d´água podem ser tratados como locais de despejo e de

escoamento, após as intervenções ambientalmente compreensivas de hoje nota-se outra série de

propriedades e usos possíveis dos espaços próximos e sob a influência dos cursos d´água

Page 306: Tese Cidade e Agua Jximenes

306

urbanos. Enquanto os usos “pesados” dominavam os centros das cidades, e principalmente suas

áreas consolidadas e adensadas, em seus cursos d´água o caráter técnico se sobressaía em

relação aos demais atributos. No momento em que os novos usos se instalam e aquelas atividades

migram, aquela porção do ambiente urbano torna-se pronta para receber outros usos, e

tratamento, enquadrados como mais “leves” e apropriados para as frentes da nova economia

urbana — incluindo as amenidades, o lazer cultural e o consumo próprios dos equipamentos da

economia da cultura (JAMESON, 2001) recente. Embora persistam as águas “técnicas”, elas

coexistem com as abordagens da água urbana como item de contemplação e consumo visual

(ZUKIN, 2000) de uma paisagem economicamente segmentada.

Estes procedimentos de intervenção em saneamento, hoje, criaram uma série de medidas

que vêm sendo disseminadas em realidades urbanas absolutamente diferentes. Estas medidas,

dentre outros tópicos, podem ser sintetizadas nas numerosas e recentes experiências com a

descanalização, o “destampamento” de cursos d´água urbanos, procedimento que se tornou

comum em cidades de maior porte. Este procedimento é, portanto, uma síntese da reconfiguração

urbana dos cursos d´água cuja atribuição era, outrora, estritamente técnica, e hoje se revela

também como agente da transformação do espaço urbano em direção aos usos do novo terciário

e das economias urbanas baseadas na revitalização em geral. A partir deste movimento de

transformação, ocorrem mudanças de uso e de possibilidades de apropriação nestes territórios;

obviamente, padrões de assentamento e atividades correlatas àquelas tidas como desejáveis têm

apresentado maior capacidade de instalação; usos “pesados” ou caracterizados como “sujos”

são, portanto, qualificados como inadequados a tais espaços. Este aspecto, de fato, parece

transcender qualquer avaliação puramente técnica do tema.

Quanto aos usos “sujos” ou “pesados”, outrora muito relevantes na economia urbana,

pode ser dito que há transferência de localização. Tais usos passariam, tendencialmente, a

constituir uma espécie de periferia do ambiente urbano. Como tal, seriam deslocados para espaços

relativamente residuais diante do mercado de terras das cidades. Esta periferia ambiental urbana,

que já se pode notar em cidades de grande porte atuais, consolida formas atualizadas da

segmentação dos acessos ao ambiente na cidade. Para as áreas que recebem tratamento nos

moldes da gestão e do planejamento ambiental contemporâneos, entretanto, a característica e o

modo de acesso e apropriação do ambiente urbano tende a ser diferenciado e, sobretudo,

Page 307: Tese Cidade e Agua Jximenes

307

articulado aos novos usos tidos como ambientalmente aceitáveis na cidade. Este processo denota

claramente a tendência, nas sociedades capitalistas, de criação de estratos e segmentos,

segregados, no acesso a recursos coletivamente produzidos. As formas de classificação social

dos fenômenos, neste caso, estabelecem a legitimidade do que pode ser praticado, e do que é

considerado tolerável na cidade (ou em outros territórios, em escala ampliada) enquanto potencial

de reprodução social.

O desempenho dos usos e atividades no território próximo à água, diante destas

classificações, é o que permite que alguns destes usos e atividades tenham maior legitimidade e,

portanto, sejam considerados desejáveis no contexto do planejamento e da gestão ambiental

contemporâneos. A aparente polarização entre usos e padrões “sujos”, “limpos”, “pesados” ou

“leves” nos permite pensar nestes como fenômenos sociais, e enquanto posições no espaço

social; cada categoria é, em geral, representada por um grupo de agentes, lidos pelos demais e

posicionado de acordo com suas respectivas visões de mundo e lógicas operativas (BOURDIEU,

1996b). A normatividade desta política do ambiente, com seus critérios, sugere um conjunto de

fatores que estabeleçam performances, desempenhos e perfis tidos como desejáveis. No caso do

território da cidade, estes critérios se assemelham a discursos (FOUCAULT, 2009), no sentido de

enunciados que estabelecem hierarquias e categorias sobre os eventos e os fenômenos. Neste

sentido, haveria maior legitimidade naqueles usos e padrões que se coadunam com certos

princípios do que se chama hoje de gestão ambiental. Sob outra perspectiva, a gestão de recursos

hídricos, apesar dos ideais de democratização do acesso à água em suas várias formas, e da

defesa dos usos múltiplos (MMA, 2004; 2006), produziria a divisão entre atividades. Deste modo,

a própria lógica de divisão do mundo (BOURDIEU, 1996b) produz o veto no acesso ao recurso.

No caso específico da gestão de recursos hídricos, portanto, a questão é ao mesmo

tempo mais difusa e, justamente por isso, mais abrangente. O amadurecimento e a consolidação

institucional e legal de uma política ambiental especificamente ocupada do

gerenciamento/administração/condução política das águas no território é algo bastante digno de

nota, sem dúvida. A gestão de recursos hídricos teria uma característica interessante para se

estudar a cidade em sua relação territorial com os cursos d´água; uma idéia generalizada, porém

objetiva, de monitoramento, de mapeamento e, sobretudo, de controle; mas isto é posto em prática

de uma forma difusa, inespecífica quanto a localizações espaciais ou grupos sociais. Há atividades

Page 308: Tese Cidade e Agua Jximenes

308

que são, invariavelmente, objeto de acompanhamento mais detido da gestão das águas, como

alguns tipos de indústria, ou estruturas de engenharia de grande porte como barragens, comportas,

vertedouros, eclusas, ou ainda as diversas formas de captação, superficial ou subterrânea. O caso

em estudo particular, o da Secretaria de Estado de Meio Ambiente (SEMA) do Governo do Estado

do Pará, busca estes princípios em sua política de gestão de recursos hídricos, inclusive (SEMA,

2009). Em todo caso, a gestão das águas se coloca como atividade dispersa e generalizada

territorialmente que, de posse de um cadastro (SEMA, op. cit.) e de um conjunto de regras

codificadas e amparadas por diretrizes de natureza técnico-científica, versa sobre as práticas e

abordagens consideradas como legítimas para a apropriação daquela substância.

Como dito, a política de gestão de recursos hídricos no caso em estudo é quase

exclusivamente referente ao exemplo da Secretaria de Estado de Meio Ambiente (SEMA) do

Governo do Estado do Pará. No nível estadual esta política dividiu o Pará em sete regiões

hidrográficas99

(SECTAM, 2005), cujo critério relaciona número de municípios componentes de

uma bacia hidrográfica, distribuição da ocupação territorial na bacia e distribuição de atividades

econômicas na bacia (SECTAM, op. cit.) Esta “regionalização” segue características técnicas do

modelo francês de gestão territorial por bacia hidrográfica (BARRAQUE, 1992). Características sócio-

econômicas são cruzadas com dados de natureza físico-ambiental; usos e atividades econômicas

são avaliados por seu porte e arranjo territorial.

A lógica da organização territorial da gestão das águas por bacia hidrográfica encontra-se

no centro da política. Este recorte espacial é antigo; podemos remontá-lo a certo tipo secular de

ordenamento territorial europeu (sobretudo francês), e aos primórdios do urbanismo e do

planejamento regional, como no caso da “polística” de Patrick Geddes (GEDDES, 1994); pessoas,

sociedades, atividades econômicas, substrato ambiental, e um todo imaginado em operação e

interação entre tais partes. Há, entretanto, um conflito entre a gestão territorial por bacias, de resto

tecnicamente adequada, e a própria lógica de assentamento e constituição territorial dos agentes

na região. Em termos descritivos, um primeiro conflito ocorre na própria “geografia” do arranjo;

enquanto luta-se pelo reconhecimento da bacia hidrográfica como unidade política e ambiental,

99

Em reestruturação administrativa do ano de 2007, o Governo do Estado do Pará extinguiu a SECTAM (antiga Secretaria

Executiva de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente) e desmembrou suas funções entre duas novas Secretarias de Estado;

SEDECT (Secretaria de Estado de Desenvolvimento, Ciência e Tecnologia) e SEMA (Secretaria de Estado de Meio Ambiente),

esta última responsável direta pela política ambiental do Pará.

Page 309: Tese Cidade e Agua Jximenes

309

com um comitê próprio e questões atinentes a seus fluxos e dinâmicas, na região a questão é

abordada no sentido mais linear do vínculo com o rio. Enquanto a política de gestão de recursos

hídricos raciocina a “mancha” da bacia, na região estrutura-se a partir da “linha” do curso d´água,

o que aliás denota uma curiosa espécie de “naturalidade” no linguajar local (BENCHIMOL, 1995). O

reconhecimento da bacia hidrográfica como unidade territorial politicamente legítima é, ainda, algo

que depende de processo histórico, pois não se coaduna propriamente com a forma de

territorialização e reconhecimento das populações urbanas e rurais/ribeirinhas da região. Embora

haja óbvia relação entre as contribuições dos cursos d´água, a topografia do sítio e a delimitação

das bacias, a “instância” política não se identifica, propriamente, com este recorte. Esta é,

inclusive, uma discussão interessante, que se contrapõe às regionalizações clássicas que, por

exemplo, estabelecem algum grau de identidade entre regiões “naturais” e “históricas”, por

exemplo (GEORGE, 1970).

A gestão de recursos hídricos também estabelece a aplicação da lógica de certas

orientações da economia política, em geral mais ortodoxas, à política ambiental e ao ordenamento

territorial. A economia de inclinações neoclássicas estabelece um paralelo estreito com a

dimensão (socialmente construída) da escassez da água e de sua abordagem como recurso finito

(ROMEIRO, 2004; SWYNGEDOUW, 2004). O “funil” da água, narrativa já clássica que introduz

praticamente qualquer texto que se pretenda didático ou informativo sobre o tema, ajuda a

comprovar este aspecto. Há uma dimensão socialmente construída da água como recurso

ambiental escasso e há constatações científicas sobre a assimetria na distribuição espacial, na

disponibilidade e no seu acesso. Esta dimensão da escassez e da assimetria é discutida

amplamente hoje. No caso específico deste estudo, a escassez é novamente levantada, dentro do

espírito corrente da discussão sobre a gestão das águas. Há, em paralelo, uma dúvida; como

gerenciar a abundância com perda de qualidade, que parece ser o caso mais apropriado ao se

discutir o tema da gestão de recursos hídricos na Amazônia, especificamente (SEMA, 2007)? A

questão, portanto, não é apenas de valoração econômica e princípios de pagamento e

compensação, via outorga ou outros mecanismos, mas consiste também em pensar estas

“equivalências” e suas viabilidades.

Em suma, o debate sobre a gestão das águas estabelece que haja um padrão de acesso

ao recurso; ao concebê-lo como uma espécie de “ativo ambiental”, estabelece um horizonte de

Page 310: Tese Cidade e Agua Jximenes

310

investimentos e perdas e um sistema de preços. Além destes aspectos, na gestão de recursos

hídricos é disposto um conjunto de usos e atividades considerados razoavelmente legítimos no

acesso à água, dentro do cumprimento de algumas exigências. Neste princípio, é estabelecido

aquele regime de coerção de que nos falaria, por exemplo, Michel Foucault (2009); nas sociedades

ocidentais há a criação ritual de formas de controle difuso e de consolidação de idéias e de

práticas “legítimas”, e isto está presente no discurso, como ação, como intervenção. Em nome do

já citado princípio básico da política nacional, o do uso múltiplo da água (MMA, 2004; 2006),

estão diretrizes de estreitamento e alguma redução desta multiplicidade, portanto. Isto é

contraditório, mas também constituinte da forma de se intervir na vida social, em nossos moldes

vigentes; o veto e as construções sobre o legítimo e a aceitação são estabelecidos ritualmente,

inclusive pelos discursos (científicos, culturais, técnicos, do senso comum, da produção

econômica) (FOUCAULT, op. cit.) Desta forma, determinados padrões, usos e atividades e

localizações passam a ser avaliados como indesejáveis, e regulados por uma política ambiental

específica que preconiza a aplicação da esfera econômica ao ambiente e o monitoramento técnico

de sua apropriação. Esta é, de certo modo, uma analogia da operação de esquadrinhamento e de

mapeamento de que falam Deleuze e Guattari (1997b) sobre o mar e sobre as técnicas da

cartografia, bem como sobre certa racionalidade moderna de eliminação dos espaços lisos.

Os quatro tipos de intervenções territoriais, de formas diferentes, estabelecem

abordagens diversas sobre a água na cidade, ou sobre este item do ambiente no território urbano.

Neste sentido torna-se possível falar que o ambiente urbano, além de ser múltiplo, posto que

representado por uma série de itens diferenciados entre si, sofre disputa e é objeto de

segmentações de natureza sócio-espacial. A água na cidade passa por processo semelhante.

Nas atuais intervenções de engenharia, sobretudo naquelas que têm propósitos de

recuperação ambiental, relação com a drenagem urbana ou com o paisagismo, é que se podem

notar as características mais evidentes desta diversidade de sentidos. A água na cidade, a partir da

leitura daqueles quatro tipos de intervenções territoriais, pode ser lida como passível de diferentes

abordagens. O território idiossincrático da interface (MORAES, 1999) com as águas exibe, ao

mesmo tempo, um ambiente onde a água, substância, elemento “natural”, é ao mesmo tempo:

paisagem de consumo visual, formando um quadro de seletividades do que deve constar no

território; veículo, para fins instrumentais diversos, sejam eles do transporte, das infra-estruturas

Page 311: Tese Cidade e Agua Jximenes

311

técnicas, do insumo produtivo ou de fatores de produção; recurso, de natureza essencialmente

econômica, onde a entrada na esfera de circulação do mercado garantiria a distribuição adequada

entre os usuários. Ao contrário, pois, do que a política ambiental contemporânea se propõe a

executar, a convergência das políticas da água, ao formar em torno dela novos sentidos no

ambiente e no território, cria, portanto, estruturas de segregação de acesso, de aprofundamento

das desigualdades; cria um esquadrinhamento (DELEUZE; GUATTARI, 1997b) tipicamente moderno,

uma difusa e aberta política de controle da água no território da cidade (PONTE, 2009). Esta política

é daquela mesma natureza do veto, da ordem instaurada por procedimentos discursivos e

operativos na lógica social do poder e do impedimento. Assim, a água, porção do ambiente que

pode ser recortada no território da cidade, é objeto de políticas que declaram como princípio a

democratização e a garantia de acesso, mas que convergem para efeitos de controle, de criação

de um ambiente de restrições e de não-democratização do acesso, pelo seu caráter normativo e

segregador. Curiosamente, as intervenções territoriais (dentre as quais listamos apenas quatro

tipos) parecem não contemplar estratégias de trabalho junto à reprodução destas desigualdades,

criando-as e mantendo-as. Ignora-se, assim, o processo histórico de formação territorial que cria

os tais diferenciais dos espaços humanos produzidos sob o “alcance” de cursos d´água. As

intervenções territoriais da cidade próxima à água não parecem contemplar a multiplicidade de

padrões e usos, as possibilidades lisas de deslocamento e mobilidade ou suas variadas formas de

uso e apropriação. Estes fatores, por outro lado, parecem representar estratégias relevantes de

uma possível política ambiental e territorial de democratização ou de compartilhamento e

cooperação no acesso (sentido aberto) a itens do ambiente.

A água na cidade é um espaço de disputa e de seletividade sobre quem tem direito e

legitimidade no acesso ao ambiente urbano, recriado e reconfigurado para acesso a alguns. A água

na cidade, pela convergência das políticas de gestão do ambiente ou da paisagem, ou por efeito

das intervenções territoriais que dela dão conta, torna-se objeto de controle difuso por uma forma

ampliada de política e planejamento ambiental. Esta forma de poder, materializada por ações de

Estado e outras ações em torno dele, com traços efetivos que exercem função hegemônica e, por

conseguinte, mantêm a estabilidade entre vários interesses da sociedade (GRAMSCI, 1992), é então

caracterizada como uma política da água.

Page 312: Tese Cidade e Agua Jximenes

312

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