Tese Cristianismo em diálogo com o ateísmo 492 pag

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Carlos Henrique Menditti Cristianismo em diálogo com o ateísmo As críticas do ateísmo humanista, suas interpelações e a fundamentação da fé cristã como afirmação e desenvolvimento integral do humano TESE DE DOUTORADO DEPARTAMENTO DE TEOLOGIA Programa de Pós-Graduação em Teologia Rio de Janeiro Agosto de 2009

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Carlos Henrique Menditti

Cristianismo em diálogo com o ateísmo As críticas do ateísmo humanista,

suas interpelações e a fundamentação da fé cristã como afirmação

e desenvolvimento integral do humano

TESE DE DOUTORADO

DEPARTAMENTO DE TEOLOGIA Programa de Pós-Graduação em Teologia

Rio de Janeiro Agosto de 2009

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Carlos Henrique Menditti

Cristianismo em diálogo com o ateísmo As críticas do ateísmo humanista, suas interpelações e a

fundamentação da fé cristã como afirmação e desenvolvimento integral do humano

Tese de Doutorado

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Teologia da PUC-Rio como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Teologia.

Orientador: Alfonso García Rubio

Volume I

Rio de Janeiro Agosto de 2009

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Carlos Henrique Menditti

Cristianismo em diálogo com o ateísmo As críticas do ateísmo humanista, suas interpelações e a

fundamentação da fé cristã como afirmação e desenvolvimento integral do humano

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Teologia da PUC-Rio como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Teologia. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. Alfonso García Rubio Orientador

Departamento de Teologia – PUC-Rio

Profa. Ana Maria de Azevedo Lopes Tepedino Departamento de Teologia – PUC-Rio

Prof. Celso Pinto Carias Departamento de Teologia – PUC-Rio

Prof. Gilson José Macedo da Silveira Vicariato Suburbano

Prof. Lindomar Rocha Mota PUC-Minas

Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade Coordenador Setorial de Pós-Graduação e Pesquisa do

Centro de Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 13 de agosto de 2009.

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador.

Carlos Henrique Menditti

Graduou-se em Filosofia e em Teologia no IFITEPS (Instituto de Filosofia e Teologia Paulo VI – Nova Iguaçu), onde leciona disciplinas da área de Teologia desde 1998. Coordenou durante quatro anos (2005-2009) o curso de Teologia desse instituto. Foi assessor da Pastoral da Educação da Diocese de Nova Iguaçu (2001-2005). Fez mestrado em Teologia na PUC-Rio. Trabalha com a formação teológica de seminaristas e leigos.

Ficha Catalográfica

Menditti, Carlos Henrique Cristianismo em diálogo com o ateísmo: As críticas do ateísmo humanista, suas interpelações e a fundamentação da fé cristã como afirmação e desenvolvimento integral do humano / Carlos Henrique Menditti; Orientador: Alfonso García Rubio. – 2009. 2 v.; 30 cm Tese (Doutorado em Teologia) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. Inclui bibliografia

1. Teologia – Teses. 2. Cristianismo. 3. Ateísmo. 4. Cristologia. 5. Antropologia teológica. 6. Filosofia da religião. I. García Rubio, Alfonso. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Teologia. III. Título.

CDD: 200

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Para meus pais, Carlos e Lúcia, por terem me ensinado a crescer como humano

à luz de Jesus de Nazaré.

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Agradecimentos Ao Professor Dr. Alfonso García Rubio pela orientação, acompanhamento desta pesquisa e pelo testemunho de uma vida dedicada à reflexão teológica, feita com coragem e discernimento eclesial; À FAPERJ (Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro) pelos auxílios financeiros concedidos, sem os quais este trabalho não poderia ter sido realizado; Aos meus pais, Carlos e Lúcia, e à Vânia Brites da Silva pelo incentivo, compreensão e paciência constante; À minha irmã, Carla, meu cunhado, Paulo, e à minha sobrinha, Christina, pela preocupação e pelos momentos de descanso e lazer proporcionados. Aos meus amigos do Grupo de Estudos: Solange, Jandira, Ir. Carmem, Cássia, Lúcio Flávio, Jovir e Marco Bonelli pela motivação, acolhida e partilha de experiências de vida e de fé; Aos irmãos e irmãs das Paróquias Santa Rita e Santo Antônio da Prata pelo carinho, amizade, apoio e paciência; A Dom Luciano Bergamin, bispo da Diocese de Nova Iguaçu, pelo incentivo, compreensão, conselhos e orações; Aos amigos, alunos e professores do Instituto de Teologia e Filosofia Paulo VI (IFITEPS) pela torcida, amizade e parceria. Ao Professor Manuel Ferreira pelas conversas sobre o assunto desta tese, pela leitura das primeiras redações e por uma amizade fecunda. Ao diretor, coordenadores, professores e secretárias do Departamento de Teologia da PUC-Rio pela solicitude. Aos professores da comissão examinadora pela disponibilidade e grande paciência em fazer a leitura e a avaliação desta pesquisa; A todos os amigos e familiares que, de uma forma ou de outra, me estimularam e me acompanharam carinhosamente ao longo dos anos de pesquisa e de redação desta tese.

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Resumo

Menditti, Carlos Henrique; Rubio, Alfonso García (Orientador). Cristianismo em diálogo com o ateísmo: as críticas do ateísmo humanista, suas interpelações e a fundamentação da fé cristã como afirmação e desenvolvimento integral do humano. Rio de Janeiro, 2009. 491p. Tese de Doutorado – Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Tem surgido, atualmente, uma literatura ateísta que procura rechaçar as

religiões monoteístas, especialmente o cristianismo, por considerá-las como

obstáculo à afirmação do ser humano e ao seu desenvolvimento. Esta literatura, ao

seguir o legado do ateísmo humanista de Feuerbach e dos “mestres da suspeita”

(Karl Marx, Friedrich Nietzsche e Sigmund Freud), pretende ser uma negação

sistemática e militante da religião e do Deus Pessoal em nome de um suposto

humanismo. Levando em conta esse fenômeno cultural, esta pesquisa doutoral

procura estabelecer um diálogo respeitoso entre o cristianismo e o ateísmo. Ela,

além de expor a crítica que o pensamento ateu, de ontem como o de hoje, elabora

contra a fé cristã, acolhe essa crítica como interpelação ao cristianismo hodierno.

Ademais, busca fundamentar, a partir da reflexão teológica de três autores

contemporâneos (Andrés Torres Queiruga, Jon Sobrino e Carlos Domínguez

Morano), a plausibilidade do cristianismo como afirmação do humano e como

possibilidade de humanização dos homens e mulheres cristãos. Chega à conclusão

de que a experiência cristã, resguardando fidelidade ao seu núcleo originário

(Jesus de Nazaré), se apresenta como uma proposta e um caminho de

humanização mais significativo que a proposta de humanismo do ateísmo.

Palavras-chave

Teologia; Cristianismo; Ateísmo; Cristologia; Antropologia Teológica;

Filosofia da Religião.

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Résumé

Menditti, Carlos Henrique; Rubio, Alfonso García (Orienteur). Cristianisme en dialogue avec l’athéisme: les critiques de l’athéisme humaniste, ses interpellations et le fondement de la foi chrétienne comme affirmation et développement intégral de l’humain. Rio de Janeiro, 2009. 491p. Thèse de Doctorat – Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Nous constatons qu´aujourd´hui apparaît une littérature athée qui cherche à

s´opposer aux religions monothéistes, et tout spécialement au christianisme, en

voulant démontrer qu´elles sont un obstacle à l´affirmation de l´être humain et à

son développement. Cette littérature qui accompagne l´héritage de l´athéisme

humaniste de Feuerbach et des “maîtres du soupçon” (Karl Marx, Friedrich

Nietzsche et Sigmund Freud), prétend nier systématiquement et de façon militante

la religion et un Dieu Personnel au nom d´un supposé humanisme. Prenant en

compte ce phénomène culturel, cette thèse de doctorat cherche à établir un

dialogue respectueux entre le christianisme et l´athéisme. Cette recherche, en plus

d´exposer la critique que la pensée athée élabore, hier comme aujourd´hui, contre

la foi chrétienne, elle accueille cette critique comme une interpellation au

christianisme d´aujourd´hui. Elle cherche aussi à fonder, à partir de la réflexion

théologique de trois auteurs contemporains (Andrés Torres Queiruga, Jon Sobrino

e Carlos Domínguez Morano), la possibilitée pour le christianisme d´être une

affirmation de l´humain et la possibilitée d´humanisation des chrétiens, hommes

et femmes. Nous en arrivons à la concluson que l´expérience chrétienne, fidèle à

son noyau originel (Jesus de Nazaré), se présente comme proposition et chemin

d´humanisation bien plus significatif que la proposition humaniste de l´athéisme.

Mots clés

Théologie; Christianisme; Athéisme; Christologie; Anthropologie

Théologique; Philosophie de la Religion.

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Sumário

Introdução 13

Parte I: A concepção de religião segundo o ateísmo humanista anticristão e as suas críticas ao cristianismo

23

1. A origem da crítica do ateísmo humanista ao cristianismo

23

1.1. O embate entre a modernidade e o cristianismo 24

1.1.1. A modernidade em conflito com o cristianismo 24

1.1.2. A reação do cristianismo à mentalidade moderna 39

1.2. A crítica de Ludwig Feuerbach 42

1.2.1. Deus como projeção da essência humana 45

1.2.2. O cristianismo como alienação da essência humana 55

1.2.2.1. O homem alienado de sua essência 55

1.2.2.1.1. O dualismo entre Deus e o homem 57

1.2.2.1.2. O dualismo entre sobrenatural e natural 60

1.2.2.1.3. O dualismo entre vida eterna e vida terrestre 62

1.2.2.1.4. O dualismo entre fé e razão 63

Conclusão 66

2. A crítica do ateísmo humanista dos “mestres da suspeita” 70

2.1. A crítica de Karl Marx 72

2.1.1. A religião como alienação do ser humano 74

2.1.1.1. O ateísmo de Marx 74

2.1.1.2. A concepção de religião 75

2.1.1.3. A religião como projeção social e como alienação 76

2.1.1.4. Alienação religiosa e alienação política 80

2.1.1.5. Alienação religiosa e alienação econômica 83

2.1.2. A religião como superestrutura ideológica 86

2.1.2.1. A religião como ideologia 86

2.1.2.2. O cristianismo como expressão ideológica da burguesia 89

2.2. A crítica de Friedrich Nietzsche 93

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2.2.1. O ateísmo da “morte de Deus” e o cristianismo 95

2.2.1.1. O tema da “morte de Deus” 95

2.2.1.2. O niilismo 99

2.2.1.3. A vontade de potência 101

2.2.1.4. O “super-homem” e o eterno retorno 102

2.2.2. O cristianismo como negação da vida 105

2.2.2.1. Uma crítica feita em nome da vida 105

2.2.2.2. O cristianismo como depreciação da vida 107

2.2.2.2.1. Crítica à leitura teológica da vida 108

2.2.2.2.2. Crítica à moral cristã 111

2.3. A crítica de Sigmund Freud 117

2.3.1. A religião como neurose 120

2.3.2. A religião como ilusão 136

Conclusão 142

3. A crítica do ateísmo humanista contemporâneo 145

3.1. A crítica de José Saramago 147

3.1.1. A crítica nos vários romances 150

3.1.2. A crítica em “O Evangelho segundo Jesus Cristo” 155

3.2. A crítica de Michel Onfray 166

3.2.1. A proposta de uma ateologia 167

3.2.2. A religião como “pulsão de morte” 171

3.3. A crítica de Richard Dawkins 181

3.3.1. Deus como delírio 183

3.3.2. A religião como “subproduto acidental” 189

3.3.3. Religião, moral e ciência 194

Conclusão 201

Parte II: O cristianismo como afirmação e desenvolvimento integral do humano

204

4. A fé cristã como afirmação do humano na afirmação de Deus 204

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4.1. O Deus revelado em e por Jesus de Nazaré 207

4.1.1. Revelação de Deus na humanidade de Jesus 208

4.1.2. O Abbá revelado por Jesus 214

4.1.3. O mal-entendido sobre o Deus de Jesus 220

4.2. Deus-criador como afirmação da criatura 222

4.2.1. A presença de Deus na criação 223

4.2.2. A ação salvífica de Deus na criação 227

4.2.3. Um novo esquema da história da salvação 232

4.3. A revelação de Deus como realização humana 235

4.4. Deus como afirmação do ser humano frente ao mal 240

4.4.1. O dilema de Epicuro 242

4.4.2. O mal como algo inevitável à criação 247

4.4.3. Apesar do mal, a criação tem sentido e valor 250

4.4.4. Deus como antimal 253

4.4.4.1. Deus contra o mal no Antigo Testamento 254

4.4.4.2. Em Jesus, Deus ao nosso lado contra o mal 255

4.4.4.3. Em Jesus, Deus implicado na realidade do mal 257

4.4.4.4. Em Jesus, Deus vence o mal 259

4.4.5. A salvação definitiva a partir da história 262

4.4.6. O núcleo de uma nova coerência 265

Conclusão 267

5. A fé cristã como práxis histórico-social 270

5.1. A missão de Jesus: o Reino de Deus 273

5.1.1. O Reino de Deus no Antigo Testamento e a compreensão de Jesus

274

5.1.2. A compreensão de Jesus a respeito do Reino a partir dos destinatários de sua pregação

278

5.1.3. A compreensão de Jesus a respeito do Reino a partir de sua atividade

280

5.2. O Deus Pai de Jesus 287

5.2.1. A compreensão de Jesus a respeito de Deus 288

5.2.2. Deus segundo a oração de Jesus 289

5.2.3. Deus segundo a confiança de Jesus 291

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5.2.4. Deus segundo a disponibilidade e a fé de Jesus 293

5.3. A práxis profética de Jesus 295

5.4. O sentido histórico e teológico da morte de Jesus 301

5.4.1. A análise histórica 302

5.4.2. A análise teológica 306

5.5. A ressurreição do Crucificado 315

5.5.1. Abordagem hermenêutica 316

5.5.2. Abordagem histórica 323

5.5.3. Abordagem teológica 325

5.6. O seguimento de Jesus como identidade do ser cristão 328

Conclusão 335

6. A fé cristã como maturidade psicológica 339

6.1. A configuração do Deus imaginário e o Deus de Jesus 343

6.1.1. A relação entre o pai e Deus na teoria de Freud, conforme Morano

344

6.1.1.1. Deus como projeção da figura paterna 344

6.1.1.2. Os sentimentos infantis de onipotência como origem da projeção psíquica do pai como Deus

347

6.1.2. Figuras parentais, experiência religiosa e representação de Deus

350

6.1.2.1. O pólo materno e a experiência de Deus 352

6.1.2.1.1. O papel da figura materna no processo psico-afetivo 352

6.1.2.1.2. Figura materna: possibilidades e riscos para a experiência religiosa e para a configuração da imagem de Deus

353

6.1.2.2. A figura paterna e a configuração da imagem de Deus 357

6.1.2.2.1. O papel da figura paterna no processo psico-afetivo 358

6.1.2.2.2. Figura paterna: possibilidades para a experiência religiosa e para a configuração da imagem de Deus

360

6.1.2.2.3. Figura paterna: riscos para a configuração da imagem de Deus e para a experiência religiosa

364

6.1.3. O Deus de Jesus e sua diferença radical do Deus projetado pelo desejo de onipotência

370

6.2. Culpabilidade e experiência cristã 381

6.2.1. A visão psicanalítica da culpabilidade 382

6.2.2. Culpabilidade persecutória e experiência cristã 387

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6.2.3. Uma fé que não se revela culpabilizante 392

Conclusão 394

7. O diálogo crítico entre cristianismo e ateísmo 397

7.1. Apreciação crítica das críticas do ateísmo humanista ao cristianismo 399

7.1.1. Crítica à crítica de Ludwig Feuerbach 399

7.1.2. Crítica à crítica de Karl Marx 405

7.1.3. Crítica à crítica de Friedrich Nietzsche 409

7.1.4. Crítica à crítica de Sigmund Freud 414

7.1.5. Crítica à crítica de José Saramago 419

7.1.6. Crítica à crítica de Michel Onfray 423

7.1.7. Crítica à crítica de Richard Dawkins 426

7.2. Algumas interpelações do ateísmo humanista ao cristianismo 431

7.2.1. As interpelações de Feuerbach e dos “mestres da suspeita” 432

7.2.2. As interpelações de Saramago, Onfray e Dawkins 436

7.3. A fé cristã como afirmação do humano e como humanização 442

7.3. Conclusão 449

Conclusão Geral 452

Bibliografia 456

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Introdução geral

Desde o início da modernidade européia, no século XVII, o cristianismo

vem sendo alvo de críticas e objeções, particularmente, por ser considerado

inimigo das realizações do ser humano. De fato, a partir daquele século, a filosofia

da subjetividade, o progresso do conhecimento científico e técnico e as mudanças

políticas e econômicas fizeram com que o paradigma teocêntrico medieval fosse,

aos poucos, superado pelo antropocentrismo. Uma nova cultura foi sendo gestada

e uma nova visão do ser humano e do mundo foram se impondo. O processo de

secularização foi colado em marcha. E o homem moderno procurou afirmar, de

todas as formas, a partir da absolutização da razão suficiente, a sua autonomia e a

desenvolvê-la no âmbito das relações com o mundo (conhecimento e domínio da

natureza: ciência e técnica) e das relações sociais (política, economia e ética). Em

meio a esta revolução epocal, o cristianismo, configurado como cristandade,

manteve, por meio de suas instituições representantes, especialmente a Igreja

Católica, uma forte resistência às mudanças que estavam acontecendo. Por isso,

foi sendo visto com indiferença e, até mesmo, rechaçado por não poucos espíritos

marcados pelos anseios modernos. Devido a isso, houve uma acentuada negação

da fé em detrimento da razão, da religião em prol da afirmação da ciência, e de

Deus com a finalidade de afirmar e desenvolver as potencialidades do ser humano.

A oposição ao cristianismo, entretanto, se tornou mais acentuada com o

surgimento do pensamento ateu sistematizado, principalmente aquele que é

denominado de humanista.

Feuerbach, Marx, Nietzsche e Freud, os maiores expoentes dessa vertente

de ateísmo, rejeitaram o cristianismo por considerá-lo como fator responsável pela

alienação de diversos âmbitos da existência humana: do conjunto da humanidade

e da própria existência corporal e terrestre (Feuerbach), da vontade de viver

(Nietzsche), do compromisso transformador das relações sociais (Marx) e da

maturidade psico-afetiva (Freud). E, além disso, rechaçaram o Deus da fé cristã,

vendo-o apenas como uma criação antropológica com efeitos alienantes. Em

outros termos, o ateísmo humanista combateu o cristianismo e a sua visão de Deus

por considerá-los realidades humanas desumanizantes. Os negou para afirmar e

possibilitar o desenvolvimento da suposta autonomia do ser humano.

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No século XX, o processo de secularização, com o aporte teórico

fornecido pelos pensadores ateus humanistas anticristãos e a configuração social

do socialismo, fez com que surgisse, principalmente, na Europa, o fenômeno do

“ateísmo das massas”, que perdeu forças no final da década de oitenta desse

século. Não obstante, há, ainda hoje, em alguns países, como na Espanha e na

Inglaterra, uma tentativa de apregoar e difundir o ateísmo à população por meio

de propagandas públicas. E na rede mundial de computadores (internet) existem

milhares de endereços eletrônicos (sites) que o defendem e o propagam.

Entretanto, o ateísmo, como descrença na existência de Deus, é um fenômeno,

segundo alguns sociólogos, insignificante estatisticamente. Hoje chama mais a

atenção o dado do ateísmo prático, “viver como se Deus não existisse”, e o da

indiferença religiosa. No entanto, ultimamente, tem aparecido uma literatura

ateísta, de muita divulgação, combativa das religiões monoteístas, especialmente o

cristianismo, e completamente avessa à idéia de um Deus pessoal criador e

salvador. Trata-se de uma literatura que matiza o pensamento do ateísmo

humanista anticristão de Feuerbach e dos “mestres da suspeita” (Marx, Nietzsche

e Freud), sem trazer grandes novidades. Ora, o aparecimento dessa literatura

revela que o substrato do pensamento ateu humanista não deixou de existir com o

fim do fenômeno do “ateísmo das massas” e nem com o fim do bloco socialista do

Leste europeu. Esta literatura mostra que o cristianismo e o Deus da fé cristã

ainda são alvos de críticas em função de um suposto humanismo. Existe, portanto,

um elemento da complexa e plural cultura hodierna, devido ao legado do

pensamento moderno ateu, que se apresenta como suspeita à fé, à religião e ao

Deus de caráter pessoal.

Mas, evidentemente, o ateísmo da atualidade não se configura,

completamente, como militância contra Deus e contra as religiões. Ao contrário,

muitos ateus procuram respeitar e, até, dialogar com o fenômeno religioso. Há

pensadores ateus que estabeleceram e, ainda, estabelecem relações respeitosas

com a religião, especialmente a cristã, por causa dos valores éticos desenvolvidos

e transmitidos por ela: André Comte-Sponville, Luc Ferry, Vladimir Jankélévith

entre outros. E há, também, aqueles ateus que são indiferentes às questões que

envolvem a religião. Deste modo, o ateísmo da atualidade caracteriza-se como

multifacetário. Apresenta-se como indiferença, como oposição militante e como

diálogo com o fator religioso.

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Certamente, o ateísmo não deixa de ser um desafio à reflexão teológica.

Nas décadas de sessenta a oitenta do século passado muitos teólogos levaram-no

em conta como desafio teológico e pastoral. E hoje não deve ser diferente. A

teologia deve continuar buscando estabelecer um diálogo aberto e respeitoso com

esse fenômeno. E isto porque ela tem que levar em conta os “sinais dos tempos”.

E o ateísmo configura-se como um dado de nossa cultura. Sendo assim, a reflexão

teológica necessita considerá-lo, dialogar com ele e lhe mostrar, sem enveredar

por uma apologética intransigente, a plausibilidade da fé cristã como caminho de

realização do ser humano.

Pensando deste modo, nossa pesquisa teológica tem a pretensão de

considerar o ateísmo e de tentar estabelecer um diálogo crítico com ele.

Entretanto, priorizaremos aquele ateísmo que se apresenta como militância contra

a religião, ou seja, aquele que é denominado de humanista anticristão. Na verdade,

nosso objetivo consiste em conhecer esta vertente do ateísmo, particularmente as

suas acusações e as suas críticas ao cristianismo, com a finalidade de destacar as

interpelações que este ateísmo, tanto o de ontem como o de hoje, apresenta à

teologia e à pastoral cristãs. E, também, faz parte do nosso objetivo principal,

mostrar que a fé cristã, em seu núcleo, ou seja, na revelação de Deus em e por

Jesus de Nazaré, não se configura contrária à afirmação do ser humano ou à

humanização. Ao contrário, pretendemos demonstrar que esta fé revela-se

humanizante, isto é, capaz de contribuir para que o cristão possa desenvolver e

vivenciar as potencialidades intrínsecas do humano ou as suas dimensões

peculiares de forma integradora.

Por isso, a nossa principal hipótese a ser investigada pode ser formulada

do seguinte modo: o cristianismo ou a fé cristã se constitui como obstáculo à

humanização ou à afirmação e à possibilidade de desenvolvimento das

potencialidades dos homens e mulheres, tal como o ateísmo humanista anticristão

apregoa? Ou, dito de forma contrária: o cristianismo ou a fé cristã pode contribuir

para a humanização dos cristãos, contrariando o diagnóstico do ateísmo humanista

anticristão? Conforme já dito, tentaremos comprovar a plausibilidade da fé cristã

no que diz respeito a sua contribuição com a humanização dos cristãos.

Para comprovar a nossa hipótese e realizar nosso objetivo principal, vamos

trilhar o seguinte caminho. Primeiro, tentaremos conhecer as considerações e as

críticas que o pensamento ateu humanista faz à religião, sobretudo ao

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cristianismo. Segundo, mostraremos como três teólogos contemporâneos,

apoiados no dado da revelação de Deus em e por Jesus de Nazaré, apresentam a fé

cristã como afirmação e possibilidade de humanização. Terceiro, buscaremos

estabelecer o diálogo crítico com o pensamento ateu, percebendo suas

interpelações para o cristianismo atual e mostrando que a fé cristã se constitui

como uma das possibilidades de contribuição para o crescimento ou maturidade

do ser humano.

Sendo assim, a nossa pesquisa será dividida em duas partes. Na primeira,

intitulada “A concepção de religião segundo o ateísmo humanista anticristão e

suas críticas ao cristianismo”, dedicaremos nossa atenção à investigação das

teorias, concernentes à religião, de alguns ateus humanistas, como também

faremos a exposição das críticas que alguns deles teceram e que outros continuam

tecendo à religião, sobretudo à cristã. Esta parte será dividida em três capítulos.

No primeiro, vamos considerar a configuração do paradigma moderno,

pautado no antropocentrismo, no dado da autonomia e no da valorização da razão

científico-técnica, e a oposição a este paradigma, por parte da cristandade, como a

causa principal do surgimento do ateísmo sistematizado. Além disso, vamos expor

a concepção de religião e as críticas ao cristianismo feitas pelo fundador do

ateísmo humanista, o filósofo alemão Ludwig Feuerbach. Mostraremos que, para

ele, Deus nada mais é do que uma projeção do próprio homem com efeitos

alienantes e desumanizantes.

No segundo capítulo, apresentaremos as concepções a respeito da religião

e as críticas ao cristianismo dos “mestres da suspeita”. Constataremos que Marx,

ao defender a tese de que a religião não passa de um modo de alienação e de uma

expressão ideológica da infra-estrutura econômica da sociedade, acusa a fé cristã

de servir aos interesses capitalistas com a finalidade de iludir os cristãos com

realidades imaginárias (Deus, céu, vida eterna etc.) e de impedi-los de se

empenharem pela instauração de relações sociais mais justas e humanas.

Analisaremos, também, o pensamento de Nietzsche. Veremos que, para ele, o

cristianismo se apresenta como negação da vida em detrimento da afirmação do

nada. Exporemos, portanto, a crítica que ele tece à teologia, à moral e aos valores

cristãos. Por fim, examinaremos a concepção crítica de Freud a respeito da

religião. Mostraremos que, para o fundador da psicanálise, a religião encontra sua

explicação nos dinamismos psíquicos. Para ele, toda expressão religiosa,

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particular ou geral, não passa de neurose e ilusão. Veremos que, para ele, a

religião, incluindo o cristianismo, perpetua o infantilismo psíquico, porque

impede o indivíduo religioso de desenvolver a sua maturidade psicológica.

No terceiro capítulo, daremos destaque à concepção de religião e à crítica

à fé cristã de três autores ateus contemporâneos: José Saramago, Michel Onfray e

Richard Dawkins. Escolhemos estes, entre tantos outros, porque eles, além de

representarem áreas diferentes do conhecimento e de terem suas obras publicadas

em grande tiragem em todo o mundo, enquadram-se no ateísmo humanista

anticristão, visto que fazem críticas à existência de Deus e às religiões

monoteístas em defesa do ser humano. Nesse capítulo, ao analisarmos alguns

romances do literato português José Saramago, constataremos que, para ele, Deus

é simplesmente uma idéia poderosa, criada pelo homem e justificada pela religião,

que se impõe ao indivíduo religioso fazendo com que esse tenha sua liberdade

suprimida e algumas dimensões de sua vida negadas. Veremos, também, que, para

ele, o cristianismo, além de ter provocado, ao longo da história, conflitos

sangrentos entre os povos e entre os próprios cristãos, se assenta sobre a história

de um homem (Jesus de Nazaré) que tem a sua liberdade e a sua vida negadas pela

idéia sufocante de Deus. Já ao estudarmos a proposta de ateísmo militante do

filósofo francês Michel Onfray, mostraremos que, para ele, as religiões

monoteístas são “pulsões de morte”, visto que elas, no seu entender, fazem com

que os crentes neguem duas coisas fundamentais à sua existência: a razão e a

imanência. Por último, ao fazermos a exposição da análise crítica da religião

realizada pelo biólogo evolucionista Richard Dawkins, veremos que, para ele,

Deus e a religião nada mais são do que produtos da evolução biológica sem

utilidade para o ser humano frente ao processo de seleção natural. Observaremos,

ainda, que, segundo ele, as religiões, incluindo o cristianismo, impedem o

progresso cultural, visto que elas se contrapõem à ciência e à técnica.

A segunda parte de nossa pesquisa, intitulada “O cristianismo como

afirmação e desenvolvimento integral do humano”, constará de quatro capítulos,

aqueles que corresponderão aos capítulos de quatro a sete. Nesta parte, nosso

objetivo será o de apresentar a reflexão de três teólogos com a finalidade de expor

uma visão diferente daquela do ateísmo humanista a respeito do cristianismo.

Ressaltaremos na teologia desses autores que a fé cristã, em seu núcleo, isto é, na

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revelação de Deus em e por Jesus de Nazaré, apresenta-se, fundamentalmente,

como afirmação e possibilidade de desenvolvimento integral do ser humano.

Os autores que escolhemos para servir de referência ou de aporte para

realizar nosso objetivo na segunda parte desta nossa pesquisa são os seguintes:

Andrés Torres Queiruga, Jon Sobrino e Carlos Dominguez Morano. Nossa

preferência pela reflexão desses teólogos, entre tantos outros, se justifica pelo fato

de que eles, além de serem autores contemporâneos, procuraram fazer teologia,

resguardando fidelidade ao núcleo original do cristianismo, para responder aos

desafios impostos pela cultura atual à vivência e à explicitação teórica da fé cristã.

Torres Queiruga, fundamentado na revelação de Deus em e por Jesus de Nazaré e

levando em consideração o paradigma moderno como horizonte interpretativo de

sua teologia, intenta superar o mal-entendido da modernidade que tende a

conceber Deus e o cristianismo como obstáculos à realização dos homens e

mulheres. Sobrino, por sua vez, também fiel ao núcleo da fé cristã, desenvolve

uma cristologia, a partir da situação de injustiça do contexto latino-americano,

para incentivar os cristãos ao seguimento de Jesus Cristo. Morano, por seu turno,

partindo de Jesus de Nazaré, busca responder às interpelações que a psicanálise

faz à vivência, à celebração e à expressão teórica da fé cristã. Para ele, ao

contrário do que pensava Freud, o cristianismo, se for fiel ao dado da revelação,

pode colaborar com o processo de amadurecimento psicológico dos cristãos.

Sendo assim, a reflexão de cada um desses teólogos será apresentada em capítulos

diferentes.

Deste modo, no quarto capítulo apresentaremos a reflexão teológica de

Torres Queiruga. Abordaremos alguns temas de sua reflexão (revelação de Deus

em e por Jesus de Nazaré; relação de Deus com o mundo e com o ser humano;

revelação divina como possibilidade de realização do homem; Deus como

oposição radical ao mal) com a intenção de mostrar que, na explicitação teórica da

fé cristã, fiel ao dado da revelação, a afirmação do Deus cristão supõe

imprescindivelmente a afirmação do humano. Em outros termos, almejamos

comprovar que o Deus da fé cristã não está em oposição à afirmação do humano.

E isso nem mesmo diante da realidade do mal que experimentamos ao longo da

nossa vida.

No quinto capítulo, faremos a exposição da reflexão cristológica de

Sobrino. Vamos priorizar alguns temas de sua teologia, relacionados diretamente

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a Jesus de Nazaré (sua missão; sua experiência de Deus; sua atividade profética;

sua morte; sua ressurreição e o seguimento a ele), com o objetivo de apresentar a

fé cristã, em seu núcleo, como compromisso práxico-social. Em outras palavras,

pretendemos mostrar que o cristianismo, em seu fundamento, não aliena o cristão

de seu compromisso de luta pela transformação das relações sociais desumanas,

mas que, pelo contrário, o exige profundamente.

No sexto capítulo, abordaremos apenas dois temas da teologia

desenvolvida por Morano, a saber: (1) a diferença entre o Deus imaginário e o

Deus de Jesus; (2) a relação entre a experiência cristã e a culpabilidade. Com isso,

pretendemos expor uma visão da fé cristã diferente da de Freud. Mostraremos que

o Deus do cristianismo é, absolutamente, diferente e, radicalmente, oposto ao

Deus construído a partir dos sentimentos infantis de onipotência relacionados às

figuras parentais (pai e mãe). E, além disso, queremos demonstrar que a fé cristã,

em seu núcleo, revela-se libertadora da culpabilidade persecutória. Ora, com isso,

pretendemos mostrar que a experiência cristã se apresenta como um fator de

possibilidade de realização da maioridade psicológica do ser humano.

No sétimo capítulo, tentaremos amarrar o conteúdo que será exposto nos

capítulos precedentes. Na tentativa de estabelecer um diálogo aberto e crítico com

o ateísmo humanista anticristão, iremos, nesse capítulo, realizar três coisas.

Primeiro, teceremos a ele algumas críticas respeitosas. Segundo, pontuaremos

algumas interpelações desse fenômeno ao cristianismo. Terceiro, a partir dos

dados da exposição da reflexão teológica de Torres Queiruga, Sobrino e Morano,

demonstraremos, de modo bastante sintético, que a fé cristã colabora para que o

cristão possa viver humanizado ou maduro psicologicamente.

Em todo esse percurso de investigação, que nos propomos seguir, será

adotado o método da pesquisa teórico-bibliográfica. Ou seja, tentaremos fazer a

exposição do pensamento ateu humanista anticristão recorrendo à literatura

principal dos autores que objetivamos estudar. O mesmo pode ser dito das

reflexões teológicas de Torres Queiruga, Sobrino e Morano. Vamos investigar as

suas obras mais expressivas. Mas devemos dizer que não vamos tecer críticas à

reflexão desse teólogo. Faremos uma avaliação crítica respeitosa apenas do

pensamento do ateísmo. E isso no último capítulo.

Para deixar bem clara a leitura desta pesquisa, achamos necessário elencar

alguns pressupostos que iremos assumir ao longo dela.

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O primeiro diz respeito à existência de Deus. Por ser tratar de uma

pesquisa de teologia, assumimos simplesmente a existência de Deus como um

dado inquestionável, como um postulado de fé. Ora, com isso queremos dizer que

não temos a pretensão de provar com segurança, contra o ateísmo, que Deus

existe. Isso, obviamente, é algo impossível. E o mesmo pode ser dito com relação

à afirmação ateísta de que Deus não existe. Deus é transcendente e, como tal,

escapa a uma comprovação racional categorial. Portanto, dizer que Ele existe ou

não existe extrapola a nossa razão. Dessa maneira, podemos dizer que a nossa tese

parte de um dado que não pode ser comprovado cientificamente, mas que se

assenta num dado de fé.

O segundo pressuposto se refere à relação de proximidade e não de

exclusão entre “cristianismo” e “fé cristã”. Evidentemente, religião e fé não se

identificam inteiramente. E também não se opõe radicalmente. Religião é o

conjunto de tudo aquilo que se serve para expressar a fé de forma

institucionalizada (ritos, códigos morais, teologia, igrejas, devoções etc.). E a fé é

a atitude pessoal ou comunitária de aderir, na totalidade da existência, ao Mistério

ao qual se acredita. Sendo assim, o cristianismo e a fé cristã estão relacionados

profundamente. O cristianismo é a expressão institucional da adesão (fé) ao

mistério de Jesus Cristo. Não existe cristianismo sem a fé cristã e nem a fé cristã

sem cristianismo. A fé cristã se expressa no cristianismo.

O terceiro pressuposto é o da superação da oposição entre revelação e

religião. K. Barth, o grande teólogo protestante do século XX, estabeleceu uma

oposição radical, que fora assumida por não poucos teólogos, entre a revelação e a

religião. Para ele, a religião é obra humana. É a tentativa do homem de apoderar-

se ou de manipular o divino ao seu favor. E a revelação é obra de Deus; é Deus

que se revela e convida o ser humano a aceitá-Lo numa atitude de humildade e

agradecimento. Nessa visão, a religião é negatividade e a revelação, algo positivo.

Sendo assim, o cristianismo deveria superar aquilo que há em si de religião e se

manter fiel à revelação. Em nossa tese, não compartilharemos dessa concepção.

Entendemos que o cristianismo não traz em si a dinâmica de oposição entre

religião e revelação. Se a religião é a forma de expressar de modo

institucionalizado a fé ou a adesão ao Mistério, então, de certa maneira, nela está

implicada a revelação. Com isso, o cristianismo é uma forma institucionalizada e

cultural de se manter atualizada a revelação de Deus em Jesus Cristo e do homem

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responder a essa revelação. O cristianismo está em relação profunda com a fé e a

revelação. No entanto, é bem verdade que ele pode possuir elementos que

deturpem a vivência da fé e a transmissão da revelação. E a essa deturpação não

devemos denominar de religião, mas de elementos da religião infiéis ao dado da

revelação. Desse modo, estamos cientes de que o cristianismo possui elementos

que não expressam com fidelidade a revelação de Deus em Jesus Cristo. Por isso é

que o cristianismo deve buscar resguardar em todas as suas expressões essa

fidelidade para que possa transmitir o dado revelado e auxiliar aos cristãos a

responderem com fé autêntica ao Deus que se revela e nos interpela.

O quarto pressuposto diz respeito ao que denominamos de núcleo

originário ou essência do cristianismo ou da fé cristã. Ora, o cristianismo nasce

de um evento, o evento histórico Jesus de Nazaré, e da proclamação de fé de que

este Jesus é o Cristo, o Deus encarnado. Este é o seu fundamento, sua origem.

Partindo desse dado, podemos afirmar que o núcleo ou essência do cristianismo é

a revelação de Deus em e por Jesus de Nazaré. Dissemos em porque ele é o Filho,

isto é, o próprio Deus encarnado e humanizado. Em Jesus, em toda sua estrutura

humana, Deus se revela personificado em nossa história. E dissemos por, porque

Jesus, como humano de verdade, sem deixar de ser divino, fez uma experiência

humana de Deus que norteou toda sua existência e de Deus transmitiu uma

imagem. E disso temos conhecimento por causa do texto neotestamentário.

O quinto pressuposto refere-se à concepção cristã de humanização. O ser

humano não é concebido univocamente. Há inúmeras visões sobre o homem; uma

pluralidade de antropologias. E por causa disso, existem também visões

diferenciadas a respeito do que vem a ser a humanização. Na ótica cristã, a

concepção de humanização encontra suas bases na idéia de ser humano que

decorre da revelação divina transmitida pelo texto bíblico (Antigo e Novo

Testamento). Especialmente, humanização tem a ver com Jesus de Nazaré, pois é

ele quem nos revela não somente quem é Deus, mas quem é também o ser

humano. Segundo a antropologia cristã, Jesus é o ser humano por excelência; o

ser humano completamente humanizado. Por isso, humanizar-se significa buscar

se fazer humano como Jesus de Nazaré. Em outros termos podemos dizer que

humanizar-se é procurar desenvolver, à luz de Jesus, de modo integrado, as nossas

potencialidades humanas (liberdade, responsabilidade, autonomia,

individualidade, perseidade, sexualidade, razão...), procurando relacionar-se de

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forma respeitosa com os nossos semelhantes, com o Mistério (Deus) e com o

mundo da natureza. Em nossa tese assumiremos essa visão de humanização. Por

isso ao dizermos que o cristianismo afirma o humano e que colabora com a

humanização, estaremos asseverando que ele não repudia, nem vilipendia, nem

desrespeita as potencialidades características do ser humano e nem o orienta ou o

conduz ao estabelecimento de relações de manipulação ou de desrespeito com a

alteridade. Pelo contrário, o cristianismo auxilia os cristãos a assumirem o

processo de humanização, ou seja, a se tornarem humanos à luz de Jesus de

Nazaré.

Para terminar, queremos deixar claro que esta pesquisa, embora traga

muitos elementos da cristologia e da teologia fundamental, se apresenta como

reflexão da área da antropologia teológica em relação com a filosofia da religião,

pois se centra no problema da relação entre Deus e o ser humano ou na

problemática da humanização ou da desumanização a partir da vivência da fé

cristã.

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Parte I A concepção de religião segundo o ateísmo humanista anticristão e suas críticas ao cristianismo 1. A origem da crítica do ateísmo humanista ao cristia nismo O cristianismo, através da crítica do ateísmo humanista do século XIX, é

colocado sob suspeita com relação a sua contribuição ao processo de

desenvolvimento das potencialidades latentes do ser humano. Nietzsche, Marx e

Freud, os nomes mais representativos do ateísmo sistematizado em função de um

humanismo, acusam a religião cristã de impedir a humanização da pessoa.

Nietzsche considera ser o cristianismo “vontade de potência” direcionada para o

nada. Marx interpreta a referida religião como promotora da alienação social, uma

vez que ela se configura como superestrutura ideológica da sociedade capitalista

desumana. Freud, por sua vez, vê o cristianismo em analogia com a neurose

obsessiva e o concebe como ilusão em função dos desejos infantis. Ora, em todas

estas concepções, o cristianismo transparece como algo que precisa ser superado

para que o ser humano possa efetivar sua realização como pessoa portadora de

uma liberdade inalienável.

As críticas destes expoentes do pensamento ocidental à religião não

surgiram por acaso. Trata-se da conseqüência de todo um desenrolar histórico que

teve início propriamente com a gestação da modernidade. O ateísmo anticristão

humanista está ligado, pelo menos enquanto origem, ao anseio da Ilustração por

autonomia humana a ser conquistada pela força da razão sob a forma de ciência e

técnica. Feuerbach, o primeiro a formular sistematicamente esta vertente do

ateísmo, era um pensador extremamente crente no potencial da razão científico-

técnica e também na possibilidade real de realização do ser humano com a

superação histórica de Deus e do cristianismo. Sua crítica ao cristianismo

encontrou nos meandros do paradigma moderno a sua inspiração determinante.

Feuerbach e a mentalidade moderna, da qual este filósofo foi uma das

maiores expressões no que concerne à relação de oposição entre Deus e a pessoa

humana, constituem a base da crítica de todo ateísmo humanista ao cristianismo.

Marx, Nietzsche, Freud, como também todos os outros que seguem o legado

destes pensadores, com relação ao ateísmo e à crítica religiosa, se encontram

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vinculados ao pensamento de Feuerbach, que concebe a noção cristã de Deus

como projeção humana, e à lógica moderna da busca de afirmação e de realização

da autonomia humana em detrimento dos entraves provocados pela religião.

É por causa desta vinculação que pensamos escrever no primeiro capítulo

desta tese sobre os fundamentos originários do ateísmo anticristão humanista,

encontrados na dinâmica progressiva do pensamento moderno de oposição ao

cristianismo e no ateísmo sistematizado de Feuerbach.

Pensando assim, este capítulo contará com duas seções. Na primeira,

vamos apresentar, sem grandes aprofundamentos, como a modernidade foi se

configurando, a partir do pensamento filosófico, em oposição ao cristianismo, por

causa do anseio de autonomia e por causa do desenvolvimento da razão científica

e de suas aplicações técnicas. Depois disso, iremos pontuar o modo como o

cristianismo, através do catolicismo e do protestantismo, reagiu ao avanço da

modernidade acentuando a oposição entre eles. Na segunda seção, vamos dar

atenção ao ateísmo de Feuerbach que constitui a primeira sistematização de uma

negação de Deus e do cristianismo por considerá-los como obstáculos ao processo

de humanização do ser humano.

1.1. O embate entre modernidade e cristianismo 1.1.1. A modernidade em conflito com o cristianismo

A nova mentalidade ocidental, que se iniciou no século XVI, substituindo

lentamente o paradigma teocêntrico medieval, e que forneceu as bases para o

antropocentrismo mediante a valorização da razão, da subjetividade, da liberdade,

da historicidade e da moralidade autônoma, possibilitou uma nova concepção da

religião e, ao mesmo tempo, uma reação negativa frente ao fenômeno religioso,

em especial ao cristianismo. Até o século XVI, havia uma identificação entre o

cristianismo e a sociedade. A religião cristã, configurada socialmente como

cristandade, impunha sua visão de mundo e de ser humano, tutelava as relações

sociais e estabelecia uma ética baseada nos princípios religiosos. A partir do

século XVI, a cristandade européia entrava em declínio e aos poucos foi sendo

substituída pelos estados modernos. Uma nova mentalidade foi se impondo. O

cristianismo começou a ser criticado por impedir o processo de emancipação do

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homem e por não estar assentado em bases racionais sólidas capazes de serem

comprovadas cientificamente. Muitos pensadores modernos constataram no

cristianismo uma oposição à mentalidade antropocêntrica, ao ponto mesmo de o

rejeitarem parcial e até totalmente. Mas isto não revela que a modernidade tenha

nascido com uma dinâmica interna voltada para a negação do cristianismo ou

como um projeto de superação dele. O mais provável é que a modernidade não

tenha surgido como oposição ao cristianismo e sim que ela tenha tomado uma

direção anticristã e anti-religiosa, por conta, sobretudo, de um lado, da

racionalidade científico-técnica, e por causa, por outro lado, da intransigência do

cristianismo, particularmente do catolicismo, à nova mentalidade que estava se

firmando. Na verdade o problema se deu por falta de diálogo entre os

representantes da mentalidade moderna e as instituições que representavam o

cristianismo1.

A modernidade, aquela cosmovisão complexa que passou a determinar a

história ocidental, especialmente a européia, desde o século XVI, se caracterizou,

sobretudo, pela busca da afirmação e de desenvolvimento da autonomia do

homem ou de sua subjetividade estendida sobre os vários âmbitos da existência

humana, a saber: o conhecimento, as relações sociais e a moralidade.

Diferentemente do homem medieval, dominado por uma visão estática e a-

histórica, o homem moderno procurou concretizar sua autonomia na possibilidade

de desenvolver um conhecimento a partir de si próprio com o exercício crítico da

razão, na compreensão e transformação da natureza mediante a racionalidade

científica e suas aplicações técnicas, numa vida sócio-política normatizada pela

razão e pelos valores humanos, e numa ética fundada na razão e no próprio

homem. Por isso, as objeções modernas ao cristianismo partiram de âmbitos

diferentes. O cristianismo começou a ser alvo de críticas da ciência nascente, da

filosofia da subjetividade, do pensamento político e da ética que buscava superar a

heteronomia. Contudo, o núcleo de todas as críticas estava no fato de que o

cristianismo se posicionava na contramão da modernidade que foi sendo

1 Defende este ponto de vista Antoine Vergote e também J. Comblin. Cf. VERGOTE, A., Modernidade e cristianismo. Interrogações e críticas recíprocas. São Paulo: Loyola, 2002, p. 41-42; COMBLIN, J., A força da palavra. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 198-204.

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configurada como um projeto de afirmação e de realização da autonomia do

homem a partir da racionalidade científico-técnica2.

Não podemos negar que as bases modernas de todo processo de afirmação

e de pretenso desenvolvimento da autonomia humana se encontram, além da

inegável contribuição da tradição cristã e de vários acontecimentos históricos,

naqueles pensadores que forneceram os fundamentos para a imposição da razão

científico-técnica, e que deram, assim, início ao processo de secularização da

sociedade ocidental, a saber: René Descartes (1596-1650), Francis Bacon (1561-

1621), Galileu Galilei (1564-1642) e Isaac Newton (1642-1727).

Concomitantemente encontramos nestes pensadores o fundamento das objeções

modernas ao cristianismo.

Até Descartes encontramos uma filosofia metafísica fundamentada nas

certezas dogmáticas da revelação divina judaico-cristã. Tratava-se de uma

filosofia que tinha como ponto de partida a revelação divina e a fé religiosa. A

verdade sobre a realidade era dada pelas autoridades encarregadas da tradição.

Não era, assim, o ser humano sujeito do conhecer. Ele era destinatário de verdades

prontas, de um conhecimento tradicional. Descartes foi o responsável pela virada

antropológica da filosofia3. A razão como “sujeito pensante” (res cogitans)

assumiu, com ele, uma função crítico-normativa em relação ao religioso e a tudo

mais. Mediante a razão ou a consciência reflexiva, o ser humano ficou

possibilitado de conhecer a realidade por si mesmo. A verdade não consistia mais

em ser algo pré-estabelecido, dado e aceito acriticamente. Não havia mais a

possibilidade de considerar como verdade coisa alguma sem a investigação

racional, própria da consciência reflexiva, colocada em movimento pela dúvida

metódica. Neste sentido, é mérito de Descartes a valorização da razão como

consciência reflexiva, como ego cogito. Ele possibilitou a autonomia do homem

frente a um conhecimento estabelecido e, ao mesmo tempo, afirmou a autonomia

do ser humano como sujeito pensante da realidade. Abriu, assim, o caminho para

o racionalismo e o subjetivismo na cultura e no pensamento ocidentais. H. Küng

afirma que sua influência não se restringiu somente ao racionalismo, ao

psicologismo e a todo idealismo, mas atingiu também o empirismo, o

2 Cf. HERRERO, F.J., Estudos de ética e filosofia da religião. São Paulo: Loyola, 2006, p. 141-143. 3 Cf. ESTRADA, J.A., Deus nas tradições filosóficas. Vol. II: Da morte de Deus à crise do sujeito. São Paulo: Paulus, 2003, p. 78-87.

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mecanicismo e até o materialismo4. Em compensação, a filosofia cartesiana abriu,

ao mesmo tempo, a possibilidade da desvalorização do saber religioso por ser

considerado conhecimento incerto ou simplesmente superstição.

Além da filosofia da consciência reflexiva, do ego cogito, Descartes

lançou as bases do pensamento científico moderno. Sua pretensão consistia em

formular um método capaz de fornecer o conhecimento exato da realidade. Tentou

realizar isto com a aplicação da matemática. Concebia ele a realidade natural (res

extensa) como um grande mecanismo, uma máquina com leis próprias que a

mantinha em funcionamento5. Ele acreditava numa estrutura matemática própria

de toda natureza. Por isso apontou a matemática como a linguagem da natureza.

E, a partir desta visão, supôs um método científico-matemático de abordagem da

realidade. Seu método era o analítico. Consistia “em decompor ao máximo cada

uma das dificuldades que se examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e

necessárias para melhor resolvê-las” (Regra da análise)6. O procedimento

analítico supunha o estudo parte por parte da realidade como um problema

matemático. O método cartesiano fez futuro na modernidade, tornando-se uma

característica essencial do moderno pensamento científico. Entretanto, a visão

mecanicista da realidade possibilitou a manipulação e a exploração depredatória

da natureza7. Além, é claro, de ter dado início a “expulsão” de Deus da realidade

física.

Assim encontramos em Descartes, mesmo sem ter sido ele ateu, elementos

para uma objeção ao cristianismo, a saber: a supremacia da razão em detrimento

aos outros saberes, especialmente ao saber religioso, e a visão matemático-

mecanicista da realidade, que supunha um mundo fechado à ação divina. Embora,

tenha havido muitas críticas à filosofia de Descartes, feitas, por exemplo, por um

Hume ou por um Kant, a sua concepção se tornou predominante em todo ocidente

moderno.

4 Cf. KÜNG, H., Existe Dios? Respuesta al problema de Dios en nuestro tiempo. Madrid: Cristiandad, 1979, p. 41. 5 Descartes aplicou esta visão ao próprio corpo humano, o qual considerava como uma máquina perfeita. Cf. DESCARTES, R., As paixões da alma. In. Id. Obras escolhidas. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Coleção: Os Pensadores). 6 DESCARTES, R., Discurso do método. In: Id. Obras escolhidas. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 78. (Coleção: Os Pensadores). 7 Cf. CAPRA, F., O ponto de mutação. A ciência, a sociedade e a cultura emergente. 31ªed. São Paulo: editorial Cultrix, 2005, p. 52-58.

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Juntamente com Descartes, foram Bacon, Galileu e Newton os outros

nomes mais importantes para o alvorecer das ciências naturais e para a

estruturação da mentalidade racionalista e cientificista de toda modernidade. Com

eles, o mundo passou a ser entendido de forma diferente. Predominava até o

século XVI a idéia de que o mundo era uma realidade ordenada e regida por leis

divinas imutáveis. Ao homem caberia apenas a contemplação da natureza e a

imitação de sua ordem na vida individual e social8. Transformação da natureza

pelo ser humano seria algo impensável. Com a contribuição destes quatro

“cientistas”, a natureza passou ser vista como uma realidade possuidora de uma

legalidade intrínseca suscetível de ser compreendida e transformada pela ação

humana. Bacon deu sua contribuição a esta visão com a descrição do método

empírico. Com esta descoberta, a natureza começou a ser estudada, analisada,

mensurada matematicamente mediante a experimentação científica. O

procedimento de Bacon, que consistia em realizar experimentos e extrair deles

conclusões gerais, a serem testadas por novos experimentos, estabeleceu uma

nova metodologia de conhecimento para as ciências naturais9. Galileu, por sua

vez, “foi o primeiro a combinar a experimentação científica com o uso da

linguagem matemática para formular as leis da natureza por ele descobertas”10.

Por meio da abordagem empírica somada à descrição matemática, Galileu negou a

antiga concepção geocêntrica do universo, sendo, por isso, censurado pela

Inquisição romana que defendia geocentrismo. O caso de Galileu constituiu o

início da controvérsia entre a teologia e as ciências da natureza, controvérsia esta

bastante acentuada ainda hoje. Newton, por sua hora, elaborou uma formulação

matemática da concepção mecanicista da natureza, realizando uma síntese das

obras de Copérnico e Kepler, Descartes, Bacon e Galileu11. A física newtoniana

concebia o universo como um gigantesco sistema mecânico posto em movimento

por leis matemáticas precisas. A visão de Bacon, Galileu e Newton a respeito da

natureza abriu espaço para o desenvolvimento das ciências naturais e

concomitantemente para a crise da metafísica. O homem moderno ao mesmo

tempo em que se sentia sujeito frente à natureza, porque capaz de entender seu

8 Cf. RUBIO, A.G., Unidade na pluralidade. O ser humano à luz da fé e da reflexão cristãs. 3ª.ed. São Paulo: Paulus, p. 32-33. 9 CAPRA, F., op. cit., p. 51-52. 10 Ibid., p. 50. 11 Cf. Ibid., p. 58-61.

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mecanismo e de poder transformá-la mediante a racionalidade científica e suas

aplicações técnicas, assumiu rapidamente uma lógica de negação do transcendente

ou do mistério envolvente da natureza e do próprio ser humano. O próprio Bacon

substituiu o cristianismo histórico, que considerava prejudicial ao progresso da

humanidade, por substituir a clareza da razão pela ilusão da imaginação, pela

religião natural, o deísmo, aquela religião cujos princípios se encontravam nas leis

naturais e não em revelação sobrenatural12. Surgia, assim, uma tentativa de

superação do cristianismo tradicional, considerado supersticioso e medieval, por

uma religião teísta ancorada na razão e na ciência.

O novo modo do homem se relacionar com a natureza e de interpretá-la,

inaugurado por Descartes, Galileu, Bacon e Newton, levantou o problema da

relação entre Deus e o mundo. À medida que as ciências naturais descobriam as

leis próprias da natureza, Deus foi perdendo seu espaço no mundo até chegar ao

momento que Ele havia se tornado uma “hipótese desnecessária” (Laplace13).

Entretanto, o ateísmo não foi conseqüência imediata do progresso das ciências

naturais. Descartes, Galileu, Bacon e Newton não desconsideravam a existência

de Deus. A noção de Deus foi utilizada por todos eles como um argumento para

preencher as lacunas de suas teorias14. Longe do ateísmo, o panteísmo e o deísmo

foram as tentativas imediatas de responder à relação Deus-mundo. O primeiro

postulava a não separação de Deus do mundo ou a identidade do ser de Deus com

a natureza. Spinoza (1632-1677) foi o primeiro a elaborar um sistema panteísta.

De acordo com ele, o pensamento e a extensão (matéria) são atributos infinitos de

Deus e as leis divinas se identificam com as leis naturais, de tal modo que a

natureza consiste num determinado modo de existir do próprio Deus15. A

influência do panteísmo de Spinoza foi grande em pensadores como Hölderlin,

12 Cf. ARVON, H., O ateísmo. Portugal: Publicações Europa-América, [s.d.]. p. 42-44. 13 O físico Pierre-Simon de Laplace (1749-1827), no fim do século XVIII, havia “expulsado” Deus da física. A hipótese “Deus” não foi necessária para que Laplace explicasse o funcionamento do sistema planetário. A esse respeito é conhecida a seguinte anedota: Napoleão havia perguntado a Laplace: Que lugar ocupa Deus em seu Sistema da Natureza? Laplace teria respondido: “Je n’ avais pas besoin de cette hypothèse lá” [Não precisei desta hipótese]. Cf. KASPER, W., El Dios de Jesucristo. Salamanca: Ediciones Sigueme, 1986, p. 38; ARMSTRONG, K., Uma história de Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 346. 14 Cf. KASPER, W., op. cit., p. 34-36. 15 Cf. Ibid., p. 37; KÜNG, H., op.cit., pp. 193-195; THROWER, J., Breve história do ateísmo ocidental. Lisboa: Edições 70, 1971, p. 98-100.

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Schelling, Schleiermacher e, até mesmo, Hegel16. O deísmo, por sua vez,

postulava a completa autonomia da natureza, quanto ao seu funcionamento, em

relação a Deus. Deus era considerado o criador da natureza e também o seu

legislador, aquele que simplesmente havia colocado em marcha o grande

mecanismo que seria o mundo, mas não mais interferia nele. Ignorava a imanência

de Deus no mundo. Deus ficava reduzido apenas à transcendência. Era visto

simplesmente como o “grande relojoeiro” que pôs o “relógio”, ou seja, o mundo

para funcionar e nada mais.

O panteísmo e o deísmo estavam no limite com o ateísmo. Diluir Deus na

imanência ou confiná-lo na transcendência apontava certamente para a negação de

Deus. Um Deus que se identificasse com o mundo ou que não atuasse nele seria

um Deus desnecessário. O Deus postulado pelo panteísmo e pelo deísmo nada

tinha a ver com o Deus da revelação judaico-cristã.

O modo como a modernidade se configurou, pautada na razão e no método

experimental das ciências naturais, substituiu, num primeiro momento, o Deus

cristão pelo Deus dos filósofos17, e, num segundo momento, atingiu sua negação

num materialismo crasso e ateísta18. Da mesma forma, o cristianismo revelado foi

sendo substituído, em muitas consciências modernas, por uma religião racional-

científica, o deísmo, e, por outras, por sua negação total, o ateísmo.

Com a imposição do deísmo até o século XVIII e do ateísmo sistemático a

partir do século XVIII, a objeção moderna ao cristianismo havia se tornado

patente. Para muitos espíritos modernos, o cristianismo tradicional não tinha mais

razão de ser, porque a fé cristã em seus eventos de salvação supunha um mundo e

uma história sempre abertos às intervenções divinas. Para os deístas19 e os ateus

16 Cf. KASPER, W., op. cit., p. 37. Sobre a polêmica se Hegel foi ou não panteísta, ver KÜNG, H. op. cit., p. 198-199. 17 Os grandes pensadores teístas da modernidade (Descartes, Spinoza, Kant, Hegel, etc.) não consideraram em suas reflexões filosóficas o Deus desconcertante de Jesus de Nazaré. Deus foi representado por cada um como um produto de suas especulações. Para Descartes e os deístas, Deus seria o “grande geômetra”; para Kant, Deus seria o “bem supremo” da moralidade; para Hegel, seria o “espírito absoluto” que se expressa na história. A respeito de como Deus foi apresentado pela filosofia moderna, cf. ESTRADA, J.A., op. cit. 18 O deísmo subsistiu entre o final do século XVI e final do século XVIII. Entrou em crise no final do século XVIII com as novas descobertas científicas que destruíram a velha concepção fixista e mecanicista do mundo que recorria à existência e à ação de Deus como fatores explicativos do universo. Foi abandonado por posições materialistas e ateístas. Cf. STACCONE, G., Filosofia da religião. O pensamento do homem ocidental e o problema de Deus. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 77-78. 19 Entre os deístas podemos indicar alguns nomes: a) Entre os ingleses: Francis Bacon, Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704), Pierre Bayle (1647-1706), John Toland (1670-

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materialistas20, alicerçados na nova mentalidade científica que pressupunha e

confirmava o mundo como um sistema fechado, o cristianismo tradicional estava

legitimando uma visão de mundo que havia sido desmentida pelas ciências

emergentes. Deste modo, o cristianismo pertenceria à ordem dos mitos, da

inverdade, da superstição, da oposição à lógica racional e científica da

modernidade. Alguns deístas (Bacon, Locke, Toland, Shaftesbury) até mesmo

tentaram racionalizar e naturalizar o cristianismo para purificá-lo de todo ar

supersticioso e para torná-lo aceitável à nova mentalidade21, mas tal façanha

consistiu numa própria negação da identidade do cristianismo enquanto religião

revelada.

As objeções mais cerradas ao cristianismo por parte desta mentalidade

científico-mecanicista, quer deísta quer atéia, podem ser encontradas em

pensadores como Francis Bacon, David Hume (1711-1776) e D’Holbach (1723-

1789), entre outros.

Bacon, em seu Novum organum scientiarum, publicado em 1620, aplicou

o racionalismo-científico à religião com a intenção de limitar o cristianismo à

medida do razoável e do demonstrável. Assim, propôs banir da religião cristã, na

constituição de uma religião natural, toda revelação e todo sobrenatural. A esta

religião, fundamentada numa revelação divina, ele atribuiu a categoria de

“acidental” ou “positiva”, por causa de seus elementos irredutíveis à razão. Para

ele, a religião natural, superior à religião “positiva”, é a mais própria para

favorecer o progresso humano, visto que tal religião incita o homem a obedecer à

natureza, a dirigir os seus apetites naturais da forma mais útil para o exercício da

razão e para a saúde do corpo e para as alegrias dos sentidos. Em contraposição, o

cristianismo histórico, religião “positiva”, prejudica o progresso humano porque

estaria fundamentado na ilusão e na imaginação e não na clareza racional22.

David Hume, por sua vez, não se opunha ao cristianismo diretamente. Sua

preocupação era com a possibilidade de um conhecimento cientifico seguro. Por

isso postulou o empirismo. Sustentava que a possibilidade de um conhecimento

seguro provinha unicamente das sensações ou das experiências empíricas. Com

1722) e Conde de Shaftesbury (1671-1713); b) Entre os franceses: Denis Diderot (1713-1784) na primeira fase de seu pensamento e Voltaire (1694-1778). Cf. ARVON,H., op. cit., p. 42-74. 20 Entre os ateus materialistas encontramos os seguintes nomes: David Hume (1711-1776), Barão D’Holbach (1723-1789) e Denis Diderot na fase de maturidade. Cf. Ibid. 21 Cf. Ibid., p. 45-47, 50-51. 22 Cf. Ibid., p. 42-44.

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efeito, ele não admitia qualquer via pela qual se pudesse alcançar o conhecimento

religioso. As verdades religiosas, e até mesmo as elucubrações metafísicas dos

racionalistas, careceriam assim de qualquer probabilidade, pois diante daquelas

realidades que não se podem experimentar sensivelmente nada pode ser dito com

certeza23. Desta forma, ele havia desferido um golpe fatal contra as pretensões da

razão humana de conhecer as realidades metafísicas. Daí a explicação para a sua

postura cética, agnóstica diante de determinadas questões para além da empiria e,

ao mesmo tempo, seu desprezo pelas “verdades” religiosas.

“Quando percorremos as bibliotecas – afirma Hume -, persuadidos destes princípios, que destruição deveríamos fazer? Se examinarmos, por exemplo, um volume de teologia ou de metafísica escolástica e indagarmos: Contém algum raciocínio abstrato acerca da quantidade ou dos números? Não. Contém algum raciocínio experimental a respeito das questões de fato e de existência? Não. Portanto, lançai-o ao fogo, pois não contém senão sofismas e ilusões”24.

Ademais Hume, em Dialogs concerning natural religion, havia defendido

a impossibilidade de afirmação de uma causa primeira, Deus, para a origem do

universo e da vida, visto que, segundo ele, seria impossível observar

empiricamente a relação estabelecida entre Deus e o mundo. Ele criticava, deste

modo, a religião “positiva”, o cristianismo tradicional, e também a religião

“filosófica”, o deísmo, no que havia de comum em ambas, a saber, a afirmação de

um princípio divino para o mundo. De acordo com ele, todo sistema religioso está

sujeito a grandes e intransponíveis dificuldades, pois eles se assentam em

realidades improváveis, ou seja, em realidades não comprovadas empiricamente25.

Certamente esta visão de Hume era bastante depreciativa do cristianismo, pois a

religião cristã, segundo sua lógica de pensamento, se encontrava determinada pela

fantasia, pela superstição, pela ilusão e não pela realidade mesma que poderia ser

experimentada sensorialmente. Seria o cristianismo, seguindo a sua lógica, uma

realidade incapaz de se impor à modernidade por causa da falta de solidez

empírica26.

Em contemporaneidade às críticas anti-metafísicas de Hume, encontramos

um outro pensador moderno que formulou, pela primeira vez no Ocidente, uma

23 Cf. HUME, D., Investigação acerca do entendimento humano. In: Id., Obras escolhidas. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Coleção: Os Pensadores). 24 Ibid., p. 154. 25 Cf. ARVON, H., op. cit., p. 51-53. 26 A este respeito basta conferir a exposição que Hume faz acerca dos milagres. Cf. HUME, D., op. cit., p. 109-128.

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concepção radicalmente materialista e atéia do universo: Barão D’Holbach. Este

cientista ateu empreendeu uma denúncia sistemática da religião em seu Système

de la nature e em Le Christianisme dévoilé. Sua crítica religiosa se pautava em

três pontos fundamentais contra o cristianismo, a saber: a) a sua falta de base

científica; b) a impossibilidade dele se constituir como base coerente e suficiente

para a moral; c) a legitimação por sua parte da ordem social injusta27. Tratava-se

de uma objeção a partir de três eixos: o científico, o moral e o político.

Sua objeção científica estava assentada em seu sistema materialista, o qual

ele mesmo havia definido nos seguintes termos:

“Só asseguramos o que vimos; só nos rendemos à evidência; nosso sistema é baseado somente em fatos. Só percebemos em nós e em todo lugar, apenas matéria, e concluímos que a matéria pode sentir e pensar. Vemos que no universo tudo se executa por meio de leis mecânicas, propriedades, combinação da matéria, e não procuramos outra explicação para os fenômenos que a natureza nos oferece. Concebemos um só e único mundo, onde tudo se encaixa, onde cada efeito é devido a uma causa natural conhecida ou desconhecida que o produz de acordo com leis necessárias. (...) fechamo-nos escrupulosamente no que nos é conhecido por meio de nossos sentidos, únicos instrumentos que a natureza nos deu para conhecer a verdade”28.

D’Holbach concebia apenas a existência da matéria e supunha um

dinamismo nela. Qualquer realidade metafísica, com efeito, seria para ele um

absurdo. As verdades teológicas do cristianismo, consequentemente, foram

concebidas por ele como afirmações “sem noção”, sem precisão científica, porque

não podiam ser comprovadas no dinamismo da realidade material29. Com efeito,

ele defendia que o cristianismo consiste em criar um reino de seres imaginários,

um mundo irreal que substitui o mundo verdadeiro. Ora, diante desta

compreensão, não é difícil supor que, para D’Holbach, o cristianismo seria

totalmente uma falsidade, um disparate lógico tanto em seu fundamento quanto

em seus ensinamentos.

Além do mais, em contraposição a Kant (1724-1804) que considerava

simplesmente o valor moral da religião cristã30, D’Holbach rejeitou totalmente

27 Cf. FABRO, C., Introduzione all’ ateísmo moderno. Vol. I. Roma: Editrice Studium, 1964, p. 453-464; LECOMPTE, D., Do ateísmo ao retorno da religião. Sempre Deus. São Paulo: Loyola, 2000, p. 113-127; ARVON, H., op. cit., p. 56-61. 28 Citação de D’Holbach extraída de LECOMPTE, D., op. cit., p. 114-115. 29 Cf. Ibid., p. 115. 30 Seguindo a lógica moderna da supremacia da razão, Kant submeteu a religião ao crivo racional. Chegou assim ao valor moral da religião. Para ele, a religião é racional enquanto é moral, ou seja, enquanto ela se volta para o cumprimento do dever moral. Ora, para ele, enquanto reduzido à moralidade, o cristianismo consiste na religião pura da razão ou a religião da moral. Somente deste

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qualquer fundamentação moral estabelecida sobre o cristianismo. Concebia-o

como uma religião da “ferocidade”, aquela “seita que apagou todas as outras, com

seus furores intolerantes e suas perseguições atrozes”31, e da qual os seus

seguidores, os cristãos, viveriam “eternamente ocupados a atormentar, a perseguir,

a destruir o próximo, os irmãos deles”32. Segundo D’Holbach, esta “ferocidade”

peculiar aos cristãos estaria fundamentada e legitimada na imagem que eles têm

de seu Deus: um Deus sanguinário, responsável pela morte de seu filho na cruz e

responsável pela existência do mal no mundo33. Para D’Holbach, o cristianismo,

fundamentado “num Deus sanguinário”, consiste numa “religião de sangue”, de

crueldades e violências, uma religião improvável, portanto, para fundamentar uma

moral condizente com os anseios humanos de fraternidade e paz.

D’ Holbach não deixou de criticar também a postura sócio-política do

cristianismo. Antecedendo e servindo de base para as críticas de Marx34, criticou a

hipocrisia e a busca de poder e de privilégio por parte do clero que, segundo ele,

se fundamentava na idéia de sacerdócio sagrado. O cristianismo foi, de acordo

com sua concepção, a religião que mais sujeitou os povos ao sacerdócio, à

autoridade do clero, e ao poder dominante. Para D’ Holbach, o cristianismo seria,

portanto, um excelente instrumentum regni a serviço daqueles que se encontravam

no poder; seria uma ideologia a favor das classes dominantes, pelo fato de

apresentá-las como expressão da vontade e da razão divinas. Além do mais, o

cristianismo se apresentava, para ele, como a arte de embriagar as pessoas

injustiçadas, a fim de impedi-las de ocupar-se com os males que lhes são impostos

por aqueles que governam35.

Como D’ Holbach demonstrou em sua própria crítica, o cristianismo não

foi simplesmente rechaçado como acientífico, mas também como impróprio para

fundamentar uma moralidade plausível, e como instância social de contradição

aos desejos de uma ordem política democrática promotora da justiça social. Esta

modo, no seu entender, é que o cristianismo poderia resistir às possíveis fanatizações da religião dogmática. Cf. KANT, I., A religião nos limites da simples razão. São Paulo: Escala, [s.d].; ESTRADA, J.A., op. cit., p. 109-125. ZILLES, U.,Filosofia da religião. 4ª.ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 56-59. 31 Citação de D’Holbach extraída de LECOMPTE, D., op. cit., p. 121. 32 Ibid., p. 117. 33 Cf. Ibid., p. 115-119. 34 Para a influência de D’ Holbach sobre Marx, cf. LECOMPTE, D., Marx et le baron d’ Holbach. Aux souces de Marx: Le matérialisme athée holbachique. Paris: PUF, 1983, p. 87-148. 35 Cf. FABRO, C., op. cit., vol. I, p. 453-464; LECOMPTE, D., op. cit., p. 120-122; ARVON, H., op. cit., p. 56-61.

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objeção mais completa ao cristianismo pressupõe que a mentalidade racionalista-

técnica havia superado o âmbito do estritamente científico e alcançado os demais

âmbitos da existência humana almejante por autonomia, especialmente o da

moralidade e o da ordem sócio-política.

De fato, uma vez que a lógica da racionalidade moderna tinha abandonado

ou rejeitado o pensamento metafísico, não era mais possível continuar

concebendo e legitimando uma ética de fundamento religioso. O próprio Kant, um

convicto cristão protestante, abriu o caminho para fundamentar a moralidade no

próprio homem, ou mais precisamente na razão, e não mais numa ordem religiosa.

O seu “imperativo categórico” consistia na seguinte formulação técnica: “Age de

tal modo que a máxima da tua vontade possa sempre valer ao mesmo tempo como

princípio de uma legislação universal”. Para ele, a religião deve se submeter à

moralidade racional e não o contrário. O valor da religião está, portanto, em fazer

com que a pessoa religiosa cumpra o dever moral racional como um mandamento

de Deus. Fora disto, para Kant, a religião não tem sentido e o culto religioso se

torna pura ilusão ou falso culto. O cristianismo é aceito somente “dentro dos

limites da razão”. Deste modo, Kant havia reduzido o cristianismo à moral

autônoma racionalista e, ao mesmo tempo, apresentado a possibilidade de uma

ética sem fundamento religioso36. Com efeito, com Kant, a moralidade havia se

emancipado da religião cristã, visto que esta última havia sido racionalizada como

moralização. Desta forma, depois de Kant, a sociedade moderna não mais poderia

aceitar sem objeções uma moral heterônoma, baseada somente no religioso.

Do mesmo modo, o cristianismo foi visto como entrave à autonomia do

político, ou, em outras palavras, como obstáculo às regras e normas racionais

necessárias para a organização da vida social. As contribuições do pensamento

político de cunho racionalista-científico de Locke (1632-1704), Montesquieu

(1689-1755), Voltaire (1694-1778) e Rousseau (1712-1778) tiveram certamente

grande influência sobre os anseios modernos por moldar as relações sociais e

políticas sob o domínio da razão humana. A Revolução Francesa (1789), com seu

princípio de “liberdade, igualdade e fraternidade”, foi uma tentativa de realizar

36 KANT, I., op. cit.; Id. Crítica da razão prática. Lisboa: Edições 70, 1986; ZILLES, U., op. cit., p. 56-59; VERGOTE, A., op. cit., p.82-86.

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este projeto37. Uma ordem política determinada pela religião cristã, no caso da

França, havia sido rejeitada seriamente. O cristianismo foi visto como uma

religião autoritária, inimiga da liberdade individual e da razão. Voltaire e Diderot

foram grandes propagadores destas acusações. Eles acreditavam, por isso, que o

cristianismo tradicional com sua estrutura eclesiástica autoritária não poderia

corresponder a uma nova ordem sócio-política capaz de permitir o

desenvolvimento humano.

Com efeito, a sociedade moderna determinada por esta mentalidade

procurou se emancipar da tutela política do cristianismo em vista de uma

organização social pautada e promotora dos valores humanos. A religião cristã aos

poucos foi sendo confinada ao âmbito privado. Entretanto, podemos constatar que

historicamente este projeto moderno apresentou-se bastante limitado e também

desumano. A sociedade laica configurou-se numa racionalidade tecno-econômica

que, embora suscitasse a esperança de construir um mundo capaz de possibilitar a

humanização, se mostrou particularmente desintegradora do humano e

legitimadora da injustiça social. Pensadores como Marx, Nietzsche e Freud

“suspeitaram” da capacidade do racionalismo moderno em prestar contas da

existência humana efetiva e oferecer-lhe um projeto capaz de consumá-la38.

A lógica moderna da afirmação da autonomia, realizada mediante a

racionalização dos vários âmbitos da existência humana, postulou em filósofos

como Georg W.F. Hegel (1770-1831) e Auguste Comte (1798-1857) a superação

definitiva do cristianismo na história pela razão filosófica e científica.

Embora Comte não tenha explicitamente falado sobre a extinção do

cristianismo na história, podemos deduzi-la de sua teoria sobre “a lei dos três

estados”. Para ele, todas as ciências e o espírito humano se desenvolveram através

de um processo de três fases distintas: a teológica (subdividida em três períodos

sucessivos: o fetichismo, o politeísmo e o monoteísmo), que é a fase de

explicação da natureza pela suposição da existência de seres divinos ou de um

único Deus; a metafísica, aquela fase de explicação para os problemas do homem

a partir de soluções absolutas e abstratas; e a positiva, que corresponde ao

37 MATOS, H.C.J. de., História do cristianismo: estudos e documentos. Vol. IV. Belo Horizonte, 1990, p. 01-27. 38 Cf. LAFONT, G., História teológica da Igreja Católica. Itinerário e formas de teologia. São Paulo: Paulinas, 2000, p. 249-254.

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domínio da ciência e da técnica39. Cada estágio, segundo Comte, equivale a um

tipo de sociedade. O primeiro diz respeito a uma sociedade predominantemente

militar; o segundo, a uma sociedade jurídica; e o terceiro, a sociedade industrial.

De acordo com esta visão, uma sociedade predominantemente científica superará

os estados da religião e a da metafísica. Assim, o cristianismo estará fadado a

desaparecer com o progresso das ciências. O estágio último do espírito humano

será o positivo, o científico. Deus será substituído definitivamente pela

“Humanidade” por causa do desenvolvimento da ciência positiva40. Certamente

Comte havia considerado a época moderna como o início deste terceiro e último

estágio da história. Entretanto, contrariando o prognóstico de Comte, a história

atual nos mostra que a religião não foi suprimida, e nem a ciência se tornou a

garantia de salvação da humanidade.

Hegel, por sua vez, pretendeu conciliar o cristianismo com a mentalidade

racionalista. Em seu sistema filosófico deu uma interpretação racional à

concepção cristã de Deus e procurou explicar o valor racional de algumas

verdades de fé do cristianismo. Entretanto, ao realizar este artifício, enalteceu e,

ao mesmo tempo, desvalorizou a religião cristã41.

Hegel considerou o cristianismo como religião absoluta, como o ápice do

estágio do desenvolvimento da idéia de Deus na consciência humana. O

cristianismo, para ele, constitui a religião superior às outras religiões, porque nele

se dá a apresentação de Deus como espírito absoluto, ou, em outras palavras,

consiste mesmo em ser a consciência ou uma das formas, entre a arte e a filosofia,

de manifestação do espírito absoluto na história. Entretanto, no cristianismo,

assim como também na arte, o espírito absoluto se manifesta precisamente sob a

forma de representação, uma forma deficiente do saber. Somente na filosofia, o

espírito absoluto se manifesta de forma especulativa e dialética. Destarte, a arte e

a religião, especialmente o cristianismo, são inferiores à filosofia e, como tais,

devem ser assumidas pela filosofia.

39 Cf. COMTE, A., Curso de filosofia positiva. In: Id., Obras escolhidas. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção: Os Pensadores), p. 3-20; REALE, G. – ANTISERI, D., História da filosofia. Vol. III. São Paulo: Paulus, 1991, p. 295-306. 40 Cf. KÜNG, H., op. cit., p. 240-242. 41 Cf. CHAPELE, A., Hegel et la religion: la problématique. Paris: Éditions Universitaires, 1963, p. 115-133; ABBAGNANO, N., História da filosofia, p. 116-120; ESTRADA, J.A., op. cit., p. 126-149; ZILLES, U., op. cit., p. 60-80; KÜNG, H., op. cit., p. 189-240; OLIVEIRA, M.A., Hegel e o cristianismo. In: Cadernos da UNB. Brasília: Editora UNB, 1981, p. 87-105.

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Assim, segundo Hegel, cabe à filosofia a tarefa de elevar ao conceito a

representação do “espírito” própria da religião. O “verdadeiro conteúdo da

religião deve ser retomado pela filosofia, transformado em conceitos, desaparecer

enquanto verdade religiosa e tornar-se razão filosófica”42. Deste modo, o conceito

deve superar a representação. Ou seja, a religião e a filosofia têm o mesmo

conteúdo, a saber: Deus. Mas enquanto que para a religião, Deus é apenas o seu

objeto, uma representação, para a filosofia ele é conceito, isto é, o conhecimento

absoluto do espírito absoluto. Destarte, a filosofia deve conceder sentido,

mediante o conceito, a representação religiosa. A religião somente tem sentido

com sua diluição na filosofia. Com este pensamento, portanto, Hegel apontou a

superioridade da filosofia sobre a religião.

Embora Hegel, com esta visão, não tenha expressado explicitamente a

superação histórica do cristianismo pela razão filosófica, muitos de seus

discípulos, da esquerda hegeliana, viram a oportunidade de substituir inteiramente

a religião pela filosofia. Interpretaram a filosofia hegeliana como inconciliável

com o cristianismo. Como para Hegel a religião era vista apenas como

representação e não como conceito, os hegelianos de esquerda buscaram reduzir a

religião ao mito, considerando-a inconciliável com a razão moderna. Por isso, se

propuseram a superar definitivamente o cristianismo. Daí a tendência ateísta anti-

cristã de pensadores como David Strauss, Bruno Bauer, Max Stirner, Ludwig

Feuerbach e Karl Marx43.

Desta nossa exposição até aqui, claro está que a modernidade produziu um

discurso racionalista que se impôs em oposição ao cristianismo. Provavelmente o

motivo desta oposição não teria sido gratuito, mas estaria na postura intransigente

e conflituosa das instituições cristãs em relação à mentalidade moderna. A

resposta do catolicismo, mais que do protestantismo, ao discurso da modernidade,

que estava se solidificando, somente contribuiu para estabelecer um conflito, de

conseqüências desastrosas, entre o cristianismo de um lado e a modernidade do

outro. Certamente a história teria sido bem diferente se a Igreja Católica tivesse

42 REALE, G. – ANTISERI, D., op. cit., p. 164. 43 Sobre a esquerda hegeliana, cf. REALE, G. – ANTISERI, D., op. cit., p. 163-174; ABBAGNANO, N., op. cit., p. 174-188; ARVON, H., op. cit., p. 85-95, 104-106; ROVIGHI, S.V., História da filosofia contemporânea: do século XIX à neo-escolástica. São Paulo: Loyola, 1999, p. 61-92.

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dialogado com a modernidade. A ruptura entre o cristianismo e a modernidade

empobreceu a ambos.

1.1.2. A reação do cristianismo à mentalidade moderna

A Igreja Católica, representante da cristandade medieval em crise, assumiu

uma atitude combativa contra o novo paradigma emergente, porque não desejava

abrir mão de sua posição privilegiada no mundo ocidental, conquistada desde o

século IV. De forma resumida, podemos dizer que sua reação à modernidade se

fez a partir da teologia, da influência política, e nos pronunciamentos do

magistério eclesiástico44.

No século XVII, a Igreja censurava fortemente as conclusões racionais

que não estivessem de acordo com a verdade defendida pela teologia tradicional.

De acordo com Jacques Arnould, as condenações eclesiásticas nesse século

atingiram várias ciências emergentes, a saber: a astronomia, a física, a zoologia e

a biologia45. O caso mais conhecido é certamente o de Galileu que teve que negar

suas convicções científicas para não ser condenado à fogueira.

Nos século XVIII, XIX, até meados do século XX, a Igreja havia

assumido, no campo da teologia, a apologética. Tentava demonstrar

racionalmente que as suas verdades de fé possuíam probabilidade racional. Assim,

os apologistas refutavam, com uma teologia neo-escolástica, as idéias dos

racionalistas modernos. Entre outras coisas, procuravam demonstrar contra todas

as descobertas das ciências naturais e históricas, que a “Bíblia tinha razão”46.

“Naturalmente a apologética nunca convenceu ninguém a não ser os seus próprios

autores”47.

No âmbito político, a Igreja, por um lado, se apoiou até quando pôde nos

regimes monárquicos e nas classes nobres, e, por outro, investiu forças na sua

credibilidade junto aos camponeses. Acreditando que sua segurança estaria

garantida na manutenção de uma configuração social rural dividida entre nobres e

pobres, tentava minar a ascensão da burguesia, a classe responsável pelo

surgimento e configuração do mundo moderno. Praticamente todas as iniciativas 44 Cf. COMBLIN, J., op. cit., p. 198-264. 45 Cf. ARNOULD, J., Darwin, Teilhard de Chardin e cia. A Igreja e a evolução. São Paulo: Paulus, 1999, p. 12. 46 Cf. COMBLIN, J., op. cit., p. 249-253. 47 Ibid., p. 249.

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da burguesia não encontraram legitimação ou justificação alguma por parte da

Igreja. Prova disso é que nos países europeus de monarquia católica a burguesia

somente tardiamente conseguiu se impor. Houve claramente um fechamento da

Igreja para os anseios da burguesia. Uma das conseqüências disso foi a ausência

da Igreja nas classes sociais mais intelectualizadas48.

A oposição da Igreja à modernidade apareceu também em

pronunciamentos do magistério eclesiástico. Desde Pio VI (1775-1799), sobretudo

a partir de Gregório XVI (1831-1846), os papas assumiram uma luta oficial contra

a modernidade na sua totalidade. Vários documentos eclesiásticos, desse período,

apresentam uma série de condenações à modernidade49. A expressão maior desta

condenação se encontra no Syllabus, documento publicado em 1864, composto a

partir de trinta e dois outros documentos eclesiásticos condenatórios dos “erros

modernos”. Neste documento, o discurso moderno foi apresentado como evidente

contradição com a tradição cristã. Ora, deste modo, a Igreja havia assumido

decididamente uma postura anti-modernidade. Postura essa que vigorou, de forma

oficial, até o concílio Vaticano II (1962-1965).

Evidentemente esta posição da Igreja em relação à modernidade, implicou

uma reação daqueles que apregoavam a mentalidade moderna. A Igreja e sua

visão de mundo se tornaram alvo de críticas devastadoras. O discurso moderno

levantou-lhe as seguintes acusações: a) Ela polariza e monopoliza os homens ao

redor de si própria; b) Orienta as atividades e as preocupações humanas para a

vida eterna em detrimento das atividades e preocupações com esta vida e este

mundo; c) Sua pregação se direciona para a repressão à vida terrena, expressa por

uma condenação da corporeidade, e, ao mesmo tempo, justifica a alienação social;

d) Defende unicamente os seus privilégios e os interesses dos nobres e

governantes. Ela se opõe aos ideais da democracia; e) Seu discurso é moralizante

e explora a culpabilidade como elemento estruturante de uma “pastoral do medo”;

48 Cf. Ibid., p. 199-202. 49 Entre os vários documentos eclesiásticos de condenação da modernidade, elencamos os seguintes: Quod aliquantum (1791) de Pio VI, contra os princípios da Revolução Francesa; Mirari vos (1832) de Gregório XVI contra a democracia, a liberdade de consciência, a liberdade de imprensa; Quanta cura (1864) de Pio IX, onde estaria publicada uma lista de erros do mundo moderno conhecido por Syllabus; Dei Filius (1870) do Concílio Vaticano I, contra o discurso moderno; Lamentabili (1907) do S. Ofício e a Encíclica Pascendi (1907), ambas contra o modernismo; Humanis generis (1950) de Pio XII, que recorda a tradição de oposição da Igreja à modernidade. Cf. Ibid, p. 253-258; Cf. GONZÁLEZ FAUS, J.I., A autoridade da verdade. Momentos obscuros do Magistério eclesiástico. São Paulo: Loyola, 1998, p. 143-149, 153-156 e 161-164.

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f) Sua doutrina, sem fundamentos científicos, não passa de mitologia primitiva; g)

Defende a uniformidade cultural pela imposição do latim, do direito canônico e da

teologia escolástica50.

Historicamente, estas objeções da modernidade à Igreja Católica puderam

ser sentidas nas seguintes posições modernas: a) a ruptura entre a cultura moderna

e a Igreja; b) a separação entre Igreja e Estado, confinando aos poucos a atuação

da Igreja ao âmbito privado; c) o direcionamento imanentista ou horizontalista das

ciências; d) a desconsideração da teologia como uma ciência específica; e) o

surgimento do ateísmo sistemático e prático; f) e, enfim, o próprio movimento de

secularização de toda sociedade ocidental.

Diferentemente do catolicismo, o protestantismo não se opôs de forma tão

radical à modernidade e nem esta àquele. Prova histórica disso, está no fato de que

“nos países protestantes o triunfo da burguesia levou mais a uma subordinação das

Igrejas à nova condição ditada por ela do que a um antagonismo”51, tal como

acontecera nos países católicos.

De acordo com Comblin, muitos estudiosos viram o protestantismo como

uma forma de cristianismo mais adaptada às exigências do espírito moderno52. De

fato, a própria Reforma Protestante, com seus princípios, serviu como uma das

bases para a modernidade. Ela abriu o horizonte histórico para a superação de

todo aparelho da cristandade com sua crítica arrasadora das estruturas

eclesiásticas, e, ao mesmo tempo, “abriu a porta para a consciência individual

libertada das estruturas sociais”53. Ademais, muitos pensadores protestantes

tentaram pensar a fé cristã no contexto da sociedade burguesa a fim dirimir a

ruptura entre o cristianismo e a modernidade. Esta foi uma das tarefas do

idealismo alemão, do qual os maiores representantes foram: Kant, Herder, Jacobi,

Fichte, Schelling, Hölderlin, Novalis, os irmãos Schegel, Schleiermacher e Hegel.

Entretanto esta tentativa rendeu resultados não tão satisfatórios para o

cristianismo. Este havia sido diluído nos sistemas filosóficos. Recebeu uma

roupagem tão racionalista que havia sido descaracterizado como religião vivida

pelos povos das Igrejas. Havia se tornado religião de puros intelectuais, religião

para filósofos. Por isso, a teologia destes pensadores, com exceção de

50 Cf. COMBLIN, J., op. cit., p. 233-238. 51 Ibid., p. 229. 52 Cf. Ibid., p. 203. 53 Ibid., p.203.

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Schleiermacher, não teve grandes repercussões nas Igrejas reformadas54. Ora, esta

tentativa de racionalizar a fé cristã forneceu ainda mais elementos para uma crítica

atéia do cristianismo assim como encontramos em Feuerbach, Marx, Nietzsche e

Freud.

O século XIX pode ser concebido como o período auge da oposição entre

a cultura moderna e o cristianismo. O ateísmo sistemático de Feuerbach e dos

“mestres da suspeita” (Marx, Nietzsche e Freud), segundo a terminologia de Paul

Ricoeur55, concebia o cristianismo, tanto o catolicismo como o protestantismo,

como negação do ser humano. O confronto travado entre o cristianismo,

sobretudo a Igreja Católica e a modernidade, desde o século XVII, que se afirmou

como sendo o conflito entre a palavra de Deus e a palavra do homem, fez de Deus

e do homem adversários irreconciliáveis. A lógica a que se chegou do conflito

entre o cristianismo e a modernidade foi a da concorrência entre Deus e o ser

humano. Ora, afirmação de Deus passou a corresponder à negação do homem e a

afirmação do homem, negação de Deus. Seguindo esta lógica, Feuerbach, o

precursor do ateísmo humanista de Marx, Nietzsche e Freud, elaborou pela

primeira vez um ateísmo acentuando a nocividade que representa Deus e o

cristianismo para o ser humano. O ateísmo de Feuerbach apresentou-se como o

ponto crítico de toda uma época, de todo um paradigma, frente à religião cristã e à

fé em Deus.

1.2. A crítica de Ludwig Feuerbach

L. Feuerbach (1804-1874) é considerado o fundador do ateísmo

humanista56. De fato, antes dele o ateísmo moderno, sistematizado especialmente

pelo barão D’ Holbach, tinha como ponto de partida a incompatibilidade entre a

afirmação da natureza em sua dinâmica própria e a afirmação da existência de

Deus. Na explicação científica para o surgimento e o movimento da realidade

54 Cf. Ibid., p. 250-253. 55 Cf. RICOUER, P., O conflito das interpretações. Ensaio de hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago, 1978; Id. Da interpretação: ensaio sobre Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977, p. 28-40. 56 Por ateísmo humanista se entende a negação sistemática de Deus em prol da afirmação explícita do homem. Ora, Feuerbach foi o primeiro a realizar a negação de Deus nesta perspectiva. Por isso é considerado o “pai do ateísmo moderno”. Ele forneceu a intuição inicial que Marx, Nietzsche e Freud desenvolveram em seus pensamentos sobre a interpretação de Deus e da religião. Cf. NEUSCH, M., Aux sources de l’ athéisme contemporaine. Cent ans de débats sur Dieu. Paris: Editions du Centurion, 1977, p. 43-73; ZILLES, U., op. cit., p. 99; ARVON, H., op. cit., p. 88-92; LECOMPTE, D., Do ateísmo ao retorno da religião, p. 157-158.

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natural, Deus acabou sendo negado porque sua existência não poderia ser

captável, analisada, verificável no conjunto da natureza. A não-evidência da

existência de Deus fundamentou, consequëntemente, o ateísmo materialista-

científico. Por isso, um dos argumentos críticos contra o cristianismo, conforme já

verificamos acima, consistia em negá-lo por falta de fundamentação científica. A

lógica não poderia ser mais clara: se Deus não pode ser comprovado pela

experimentação científica, o cristianismo, fundamentado numa revelação divina,

perde toda sua plausibilidade; o cristianismo encontra-se fundado numa fantasia,

numa ilusão; trata-se de superstição. Com Feuerbach, o ateísmo e a crítica da

religião ganham uma nova orientação, a saber, a antropológica. Deus e o

cristianismo são interpretados a partir da psicologia humana, como projeção da

essência do homem, e, ao mesmo tempo, negados em prol da afirmação da

identidade humana. Deus e o homem são compreendidos explicitamente numa

relação de concorrência. A afirmação de Deus equivale à negação do homem e

vice-versa. E o cristianismo, sendo representante da afirmação de Deus, é

considerado por Feuerbach como obstáculo ao desenvolvimento da maturidade

humana.

A redução antropológica de Deus e do fenômeno religioso cristão, como

projeção humana, feita por Feuerbach, influenciou grandemente, tal como

afirmamos anteriormente, o ateísmo posterior de Marx, de Nietzsche e de Freud,

como também, pensadores tão distintos como K. Barth, Martin Buber, Karl

Löwith, e D. Bonhoeffer, entre outros57. A própria “teologia da morte de Deus”

foi uma das devedoras maiores da interpretação da religião de Feuerbach58. H.

Arvon, estudioso do ateísmo, afirma a este respeito que “os pontos de

concordância entre o pensamento de Feuerbach e dos teólogos do século XX são

tais, que parece difícil negar a Feuerbach a glória de ter anunciado com um século

de antecipação os movimentos teológicos de nossa época”59. Contudo, o que nos

interessa, convém lembrar, não é um estudo sobre a influência de Feuerbach sobre

a teologia posterior, e sim unicamente a sua crítica à religião, especialmente ao

cristianismo.

57 Cf. KÜNG, H., op. cit., p. 270-271; NEUSCH, M., op. cit., p. 43-44; CABADA CASTRO, M., El humanismo premarxista de Ludwig Feuerbach. Madrid: La Editorial Católica, 1975, p. 136-147; 163-216. 58 Cf. CABADA CASTRO, M., op. cit., p. 136-147. 59 Citação de Henry Arvon extraída de CABADA CASTRO, M., op. cit., p. 143.

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A temática da “religião” e da “teologia” foi para Feuerbach o objeto

fundamental de sua investigação filosófica. Toda sua obra, segundo afirmação do

próprio filósofo, se concentrou em torno destes dois temas e das demais temáticas

relacionadas a eles.

“Não obstante esta distinção de minhas obras, têm todas elas, rigorosamente falando, uma única meta, um intento, um pensamento, um tema. Este tema é exatamente a religião e a teologia e tudo o que com isso se relacione (...) Seguindo este ponto de vista, nunca deixei de lado em minhas obras a relação com a religião e a teologia, sempre tratando variadamente do tema principal de meu pensamento e de minha vida, certamente de acordo com a diversidade dos anos e do ponto de vista”60.

Assim, a crítica de Feuerbach à religião não consiste simplesmente em ser

um apêndice de sua filosofia. Trata-se de um elemento fundamental de seu

pensamento. Por isso a encontramos no conjunto de sua obra61, especialmente em

“A essência do cristianismo” (1841), “A essência da religião” (1845), e “Preleções

sobre a essência da religião” (1851).

A peculiaridade de Feuerbach, concernente à interpretação da religião,

reside na redução da teologia à antropologia, realizada pela teoria da projeção da

essência do homem em Deus. Sua crítica ao cristianismo ficaria descabida e

infundada se desconsiderássemos essa teoria fundamental. Por isso nossa intenção

consiste em apresentar, primeiramente, esta teoria aplicada ao fenômeno religioso

cristão, para em seguida pontuar a crítica à religião cristã como alienação da

essência humana.

60 FEUERBACH, L., Preleções sobre a essência da religião. Campinas: Papirus, 1989, p. 14-15. 61 A título de conhecimento, elencamos a seguir as principais obras de Feuerbach: Da razão una, universal e infinita (De ratione, una, universali, infinita), sua tese de doutorado, de 1828; Pensamentos sobre morte e imortalidade (Gedanken über Tod und Unsterblichkeit), de 1830; Sobre a crítica da filosofia positiva (Zur Kritik der positiven Philosophie), de 1838; Crítica da filosofia hegeliana (Zur Kritik der Hegelschen Philosophie), de 1839; A essência do cristianismo (Das Wesen des Christentums), de 1841; Sobre a apreciação do escrito “A essência do cristianismo” (Zur Beurteilung der Schrift “Das Wesen des Christentums”), de 1842; Princípios da filosofia do futuro (Grunsdsätze der Philosophie der Zukunft), de 1843; Teses provisórias para a reforma da filosofia (vorläufige Thesen zur Reformation der Philosophie), de 1843; Lutero como árbitro entre Strauss e Feuerbach (Luther als Schiedsrichter zwischen Strauss und Feuerbach), de 1843; A essência da religião (Das Wesen der Religion), de 1846; Fragmentos para a caracterização de meu Curriculum vitae ( Fragmente zur Charakteristik meines Curriculum vitae), de 1846; Preleções sobre a essência da religião (Vorlesungen über das Wesen der Religion), de 1851; Teogonia (Theogonie), de 1857. Segundo Henrique C.L. Vaz, a edição mais autorizada das obras completas de Feuerbach é a de W. Bolin e F. Jodl (1903-1911) e a nova edição com prefácio de K. Löwith sob o título Samtliche Werke, 10 vols., Stuttgart, Frommanns-Holzboog, 1959-1964. Cf. LIMA VAZ, H.C. Antropologia filosófica. Vol. I. São Paulo: Loyola, 1991, p. 148.

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1.2.1. Deus como projeção da essência humana 62 Feuerbach foi um dos grandes expoentes da chamada esquerda hegeliana

juntamente com David Strauss (1808-1874), Bruno Bauer (1809-1882), Max

Stirner (1806-1856) e outros. Formada pelos seguidores do pensamento de Hegel,

a esquerda hegeliana assumiu como objetivo especulativo a superação da religião,

particularmente do cristianismo, pela racionalidade filosófica, a partir de uma

interpretação racionalista da religião, pois ela concebia a inconciabilidade entre a

filosofia e a religião tradicional no sistema hegeliano63. Assim, David Strauss

reduziu as verdades cristãs, com a sua destruição crítica da história de Jesus, a

partir da teologia bíblica, ao mito ou às expressões puramente imaginativas64.

Bruno Bauer, além de considerar, a partir de sua exegese bíblica, a divindade de

Cristo como uma criação do autor do evangelho de João65, concebeu o

cristianismo, a partir de um estudo sobre o materialismo francês do século XVIII,

como uma oposição a tudo o que fosse natural ao homem66. Max Stirner havia

negado o cristianismo, como também qualquer outra instância coletiva, até mesmo

a idéia de humanidade, em nome da única realidade e do único valor absoluto que,

segundo ele, seria o indivíduo, o eu ou o “Único”67. Feuerbach, por sua vez,

desconsiderou uma fundamentação real e objetiva ao cristianismo, visto ter

concebido o Deus cristão como sendo um produto originado no próprio homem.

62 A bibliografia concernente ao estudo desta tese de Feuerbach é extensa. Apresentamos aquela da qual tivemos acesso, a saber: HUNG, H., op. cit., p. 269-304; CABADA CASTRO, M., op. cit., p. 18-70; Id., “La auto realización o liberación humana como crítica de la religión en Feuerbach”. In.: FRAIJÓ, M. (ed.), Filosofia de la religión. Madrid: Trotta, 1994, p. 291-316; ESTRADA, J.A., op. cit., p. 152-161; NEUSCH, M., op. cit., p. 48-56; ZILLES, U., op. cit., p. 101-112; ARVON, H., op. cit., p. 88-92; Id., Ludwig Feuerbach ou la transformation du sacré. Paris: PUF, 1957; AMENGUAL, G., Crítica de la religión y antropologia en Ludwig Feuerbach. Barcelona: Laia, 1980; DE LUBAC, H., O drama do humanismo ateu. Porto: Porto Editora, [s.d.], p. 23-38; SOUZA, D.G. de. O ateísmo antroplógico de Ludwig Feuerbach. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993, p. 26-76; CEREZO, P., “La reduccion antropológica de la teologia”. In: Conviccion de fé y critica racional. Salamanca, 1973, p. 182-203; GARCIA, P.G., “reducion antropológica del cristianismo segun Feuerbach”. In: Proyeccion, 103 (1976), p. 257-269. 63 Sobre o pensamento dos filósofos da esquerda hegeliana a respeito da religião, ver a referência bibliográfica apresentada na nota 43 deste trabalho. 64 David Strauss apresenta a concepção da doutrina cristã como mitológica em sua obra A vida de Jesus, de 1835. 65 Esta conclusão exegética, Bruno Bauer a apresenta em duas obras, a saber: Crítica da história evangélica de São João, de 1840, e Crítica da história evangélica dos sinóticos e de João, de 1841. 66 Esta visão de Bruno Bauer foi apresentada em seu livro O cristianismo a nu. Uma recordação do século XVIII e um contributo do XIX, de 1834. 67 Esta é a concepção que Max Stirner expôs em seu O Único e sua propriedade, publicado em 1844.

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Feuerbach se empenhou em superar a religião interpretando-a como um

fenômeno simplesmente humano. Concebeu o Deus cristão e o cristianismo como

produtos da mente humana e procurou negá-los com a intenção de que o homem

pudesse manifestar as suas potencialidades cerceadas por estas produções

antropológicas com efeitos alienantes.

Para este filósofo, Deus e a religião são nada mais que projeções humanas.

Deus não tem uma existência objetiva independente do homem. É apenas uma

projeção da essência do homem considerado como um ente objetivo. Nestes

termos, “não é o homem que é imagem e semelhança de Deus, afirmação

fundamental do teísmo cristão, mas Deus que é a imagem do homem que se

projeta em uma entelequia”68. A religião, por sua vez, ao mesmo tempo em que

consiste em ser a tomada de consciência, embora de forma indireta, do homem

particular da essência humana, consiste também no exercício da projeção desta

mesma essência em um ente idealizado diferente do homem (=Deus), o que

provoca a alienação.

Desta forma, a chave hermenêutica para a compreensão da religião cristã

se encontra no próprio homem. Todo discurso sobre Deus é um discurso

antropológico. Aquilo que o homem fala a respeito de Deus, mediante a

linguagem religiosa, equivale a ser uma exteriorização de suas aspirações e de

seus projetos mais profundos. Assim, a teologia se identifica com a antropologia.

Em “A essência do cristianismo”, Feuerbach expõe de forma sistemática

sua tese sobre a redução da teologia à antropologia, como também apresenta a sua

teoria da projeção da essência do ser humano em Deus, e, concomitantemente,

apresenta também a sua crítica ao cristianismo69. Esta obra filosófica tem por

objetivo, “provar que sob os mistérios sobrenaturais da religião – o cristianismo –

68 ESTRADA, J.A., op. cit., p. 154. 69 A tese que Feuerbach defende nessa obra é também defendida claramente em outras obras, a saber: “Sobre a apreciação do escrito ‘A essência do cristianismo’”, “Princípios da filosofia do futuro”, “Lutero como árbitro entre Strauss e Feuerbach”, “A essência da religião” e “Preleções sobre a essência da religião”. Contudo, nessas duas últimas obras, Feuerbach complementa a sua interpretação do fenômeno religioso. Naquelas, ele tratou de forma específica da interpretação antropológica do cristianismo: Deus como expressão dos desejos dos cristãos. Nessas, ele trata da origem da religião natural. Sua tese é a de que na religião natural, o Deus das religiões naturais aparece como sendo a divinização e personificação da natureza. A este respeito ele mesmo se expressa com as seguintes palavras: “...mostro em A essência da religião que o Deus físico ou o Deus considerado apenas como causa da natureza, das estrelas, das árvores, das pedras, dos animais e dos homens enquanto seres físicos e naturais nada mais significa que a essência divinizada e personificada da natureza... Por isso, se antes resumi minha doutrina na sentença: a teologia é antropologia, devo agora acrescentar: e fisiologia”. FEUERBACH, L., Preleções sobre a essência da religião, p. 27.

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estão verdades inteiramente simples, naturais”70. Mais precisamente, ela pretende

demonstrar que “o segredo da teologia é a antropologia”71. Trata-se de uma

reflexão que aponta para a antropologia ou para as “exteriorizações reais da

essência humana como uma solução para o enigma da religião cristã”72. Ademais,

no seu conjunto, este trabalho deste filósofo, apresenta-se depreciativo do

cristianismo, visto que este é compreendido como alienação humana desdobrada

em várias contradições.

“A essência do cristianismo” está dividida em duas partes precedidas por

uma introdução geral (capítulos 1 e 2) que versa sobre a essência do homem e

sobre a essência da religião em geral73. Na primeira parte (capítulos 3 a 19),

Feuerbach trata de apresentar a antropologia como a verdadeira essência da

religião. Intenta mostrar que o verdadeiro significado do cristianismo é

unicamente a antropologia. Não há coisa alguma no cristianismo que não tenha

origem no próprio homem. Na segunda parte (capítulos 20 a 27), faz

considerações sobre a teologia como a essência falsa da religião. Apresenta as

contradições lógicas de alguns temas fundamentais da fé cristã abordados pela

teologia. Tudo isto com o objetivo de mostrar que a teologia legitima a atividade

projetiva na religião conferindo fundamentação racional à falácia religiosa.

Na introdução (capítulo 1), a religião aparece como tendo seu fundamento

“na diferença essencial entre o homem e o animal”74. O homem é aquele que tem

consciência (bewusstsein)75 de sua essência (gattung), enquanto que o animal não

tem esta consciência76. O homem é capaz de ter como objeto de reflexão o seu

gênero, assim como também qualquer outra realidade, diferentemente dos animais

que não têm religião exatamente porque não têm consciência de seu gênero. Se os

animais tivessem consciência de seu gênero, o seu deus seria um reflexo ou uma

objetivação dessa consciência. Contudo, enquanto os animais vivem isolados em

si, o homem individual é um ser aberto à sua essência por causa da consciência

70 FEUERBACH, L., A essência do cristianismo, p. 19. Utilizaremos a tradução de José da Silva Brandão, publicado pela Editora Papirus, segunda edição, de 1997. As próximas citações dessa obra serão feitas a partir desta publicação. 71 Ibid., p. 20. 72 Ibid., p. 27. 73 A respeito das duas partes dessa obra, o próprio Feuerbach nos apresenta seu objetivo em cada uma delas, cf. Ibid., p. 19. 74 Ibid., p. 43. 75 Para Feuerbach, a “consciência no sentido rigoroso existe somente quando, para um ser, é objeto o seu gênero, a sua qüidade”. Ibid., p. 43. 76 Cf. Ibid., p. 43-44.

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que cada um tem do “tu” e do “nós”. Em verdade, a religião encontra na

consciência do “tu” e do “nós” o seu fundamento, porque ela é “o comportamento

do homem perante seu próprio ser infinito” 77. Religião é a relação que o homem

estabelece com a sua própria essência, ou seja, com aquilo que é próprio da

unidade dos seres humanos, embora de modo não consciente disto. Aquilo que o

homem adora em Deus é apenas a essência humana hipostasiada. Portanto, nada

há na religião que não seja relação do homem com a própria humanidade. Por

isso, o objeto da religião consiste em ser a essência do ser humano e não um ser

divino independente do homem.

Nesta mesma introdução, Feuerbach explica o sentido da definição da

religião como “consciência do infinito”78. Esta definição não equivale à afirmação

de que o homem possui uma abertura ao infinito, devido a um desígnio divino que

o tenha criado como ser capaz de diálogo com Deus ou porque o infinito como

Deus está radicado na sua interioridade mais profunda. O infinito, para ele, é a

essência (o homem em geral). O homem particular tem consciência do infinito

porque tem consciência da essência. Dessa maneira, a religião consiste em ser

“consciência do infinito” precisamente porque ela é a própria consciência que,

embora não clara, o homem tem de si mesmo enquanto essência infinita. Trata-se

da consciência indireta que o indivíduo tem das potencialidades e das

determinações do conjunto da humanidade de forma hipostasiada em Deus. Sendo

assim, o infinito está na essência do homem e não em um ser independente dele.

O homem singular participa desta infinitude do conjunto da humanidade mediante

a consciência do gênero. É por isso que o homem religioso “tem consciência do

infinito”. Na religião, ele tem consciência do infinito porque tem consciência da

essência, mesmo que indiretamente.

Mas qual a explicação para a capacidade de infinito da consciência

humana? Feuerbach responde que a consciência da infinitude da essência ou do

gênero humano revela a infinitude da própria consciência humana. Esta somente

reflete e capta a infinitude da humanidade por causa de sua própria infinitude. A

explicação para a capacidade da consciência de captar o infinito se encontra na

própria natureza da consciência, que é infinita. Assim, a religião é a consciência

do infinito por causa da infinitude da consciência humana, que capta a infinitude

77 ZILLES, U., op. cit., p. 101. 78 FEUERBACH, L., A essência do cristianismo, p. 44.

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da essência do homem. Por isso, se não fosse próprio da essência humana uma

consciência infinita (capaz do infinito), a religião não existiria.

“A consciência é essencialmente de natureza universal, infinita. A consciência do inifinito não é nada mais que a consciência da infinitude da consciência. Ou ainda: na consciência do infinito é a infinitude da sua própria essência um objeto para o consciente”79.

A religião encontra, portanto, explicação no pensamento de Feuerbach

unicamente na essência do homem e na consciência que o indivíduo possui desta

essência. Essência e consciência da essência são os fundamentos e os motrizes da

religião. Interessa-nos agora verificar como este filósofo desenvolve esta idéia.

Para Feuerbach, a essência do homem encontra sua realização na unidade

de três atividades características, a saber: a razão (pensamento), a vontade

(liberdade) e o coração (afetividade e sensualidade)80. Estas determinações

constituem a perfeição ou a completude da essência do homem e a sua finalidade

enquanto espécie81.

“Razão, amor e vontade são perfeições, são os mais altos poderes, são a essência absoluta do homem enquanto homem e a finalidade da sua existência. O homem existe para conhecer, para amar e para querer”82.

Entretanto, para Feuerbach, o homem individual é imperfeito e limitado.

Perfeição, infinitude e plenitude são atributos apenas da essência, ou seja, do

conjunto de todos os seres humanos (humanidade). No homem individual não

reside a totalidade das determinações da essência. O indivíduo não é o portador da

unidade da vontade, do amor, e da razão; ele é simplesmente animado,

determinado e dominado por estas forças a que ele não pode resistir83. Ele é

atingido constantemente pela perfeição da essência, mediante o exercício do

pensamento, do sentimento e da vontade: “se pensas o infinito, pensas e confirmas

79 Ibid., p. 44. 80 Cf. Ibid., p. 44-45. 81 De acordo com Feuerbach, a essência humana consiste no homem geral, na coletividade, na unidade do homem com o homem. Por isso, a essência é perfeita. Nela residem as qualidades e as potencialidades, sobretudo a razão, a vontade e o sentimento, de todos os homens particulares. A essência diz respeito ao homem completo, perfeito, infinito. Em termos ontológicos, Feuerbach assim expressou sua concepção de essência: “O ser é a comunidade; o ser para si é isolamento e falta de comunitariedade”. E, em termos antropológicos, afirmou o seguinte: “A essência do homem está contida apenas na comunidade, na unidade do homem com o homem – uma unidade que, porém se funda apenas na realidade da distinção do eu e do tu”. Id., Princípios da filosofia do futuro. Lisboa: Edições 70, 2002, p. 98, § 59. Cf. CABADA CASTRO, M., op. cit., p. 29-53; AMENGUAL, G., op. cit., p. 51, nota 18. 82 FEUERBACH, L., A essência do cristianismo, p. 45. 83 Cf. Ibid., p. 45.

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a infinitude da faculdade de pensar; se sentes o infinito, sentes e confirmas a

infinitude da faculdade de sentir”84. Por isso, o “ser absoluto, o Deus do homem é

a sua própria essência”85.

De acordo com o fundador do ateísmo humanista, devido à participação na

essência humana, o modo como o indivíduo se relaciona com o mundo não deixa

de imprimir nele algo de si. O homem enxerga a realidade a partir da consciência

que tem da essência. A essência do homem é o horizonte de significação para

qualquer realidade compreendida pela pessoa. Por isso, toda consciência de um

“objeto sensorial” ou “espiritual”, expressa a consciência que o ser humano possui

de si mesmo enquanto essência. Assim, no modo como cada um percebe um

objeto qualquer da realidade, se dá a revelação da essência humana86.

Entretanto, a relação do homem com o objeto religioso se diferencia da

relação com o objeto sensorial. Nesta última relação, “é a consciência do objeto

facilmente discernível da consciência de si mesmo”87, pois o “objeto sensorial está

fora do homem”88. Trata-se de uma realidade exterior e diferente. O homem

percebe o objeto como algo para si, lhe atribui uma significação a partir da

essência, mas a consciência deste objeto não é consciência que ele tem de si

mesmo, porque o objeto não se identifica com ele. Já na relação com o objeto

religioso, “a consciência coincide imediatamente com a consciência de si

mesmo”89, pois o religioso não está fora, e sim no ser humano mesmo; ele é

expressão da própria essência.

Em conseqüência, a consciência religiosa é a consciência da intimidade

mais profunda do homem com o próprio homem; é a consciência que o indivíduo

possui da própria essência. Assim, chegamos à redução do mistério de Deus ao

dado simplesmente antropológico:

“A consciência de Deus é a consciência que o homem tem de si mesmo, o conhecimento de Deus, o conhecimento que o homem tem de si mesmo”90. “Deus é a intimidade revelada, o pronunciamento do Eu do homem; a religião é uma revelação solene das preciosidades ocultas do homem, a confissão dos seus mais íntimos pensamentos, a manifestação pública do seu amor”91.

84 Ibid., p. 50. 85 Ibid., p. 47. 86 Ibid. p., 46. 87 Ibid., p. 55. 88 Ibid., p. 55. 89 Ibid., p. 55. 90 Ibid., p. 55. 91 Ibid., p. 56.

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Contudo, Feuerbach deixa claro que na religião, que não deixa de ser

relação do homem com a essência, o ser humano não tem consciência direta de

sua essência na consciência de Deus. Na religião, a pessoa objetiva a sua essência

para fora de si e a adora como uma outra essência, como Deus92. A religião

consiste em ser apenas a consciência primeira e indireta que o homem tem de si

mesmo. Trata-se da “essência infantil da humanidade” 93 a ser superada pela

consciência direta do ser humano de sua essência.

Dessa forma, para Feuerbach, o cristianismo possui como objeto e

conteúdo não propriamente Deus e sim a essência do homem. O Deus cristão ou a

essência divina corresponde à “essência do homem abstraída das limitações do

homem individual, i.é., real, corporal, objetivada, contemplada e adorada como

uma outra essência própria, diversa dele”94. Consequentemente, todos os atributos

e predicados atribuídos a Deus são na verdade atributos e predicados da essência

humana95. A explicação para os inúmeros predicados atribuídos a Deus se

encontra na riqueza infinita de predicados próprios da essência humana, formada

pela riqueza plural de indivíduos, cada qual com suas qualidades e

potencialidades96. Deus existe, portanto, unicamente como antropomorfismo. Sua

realidade não é uma realidade objetiva. O que existe de fato é a essência humana.

Na verdade, Deus é predicado da essência do homem e esta é o sujeito de Deus.

Os predicados de Deus são predicados da essência. Sem relação com a essência do

homem, os predicados divinos seriam mera fantasia97.

Em verdade, Deus aparece assim como criação do homem. Deus nada

mais é que um reflexo projetado ou hipostasiado da essência humana como algo

existente fora do homem particular e separado dele. A essência do homem

projetada num Deus é, portanto, a razão de ser da religião cristã. A essência

humana é a essência do cristianismo.

Em toda a primeira parte (capítulos 3 a 19) de “A essência do

cristianismo”, Feuerbach intenta demonstrar a sua teoria, na qual apresenta Deus

como projeção da essência humana, aplicada ao Deus cristão e ao conjunto dos

dogmas da fé cristã.

92 Cf. Ibid., p. 56-57 93 Ibid., p. 56. 94 Ibid., p. 57. 95 Cf. Ibid., p. 58-67. 96 Cf. Ibid., p. 65. 97 Cf. Ibid. p. 65.

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Nos primeiros três capítulos da primeira parte da referida obra (capítulos 3

a 5), apresenta a idéia de que o Deus cristão é a objetivação dos três elementos

fundamentais ou constitutivos da essência humana: a razão, a vontade, e o amor98.

Para o cristão, no seu entender, Deus é um ser inteligente, racional, infinito, não

sensorial e metafísico. Essa imagem de Deus, para nosso filósofo, equivale a ser a

projeção da razão ou da inteligência humana. Neste sentido, aquilo que se atribui à

razão, como sendo suas características mais peculiares (verdadeira autonomia,

independência, unidade, infinitude e o que confere sentido a tudo99), é atribuído

pelo crente a Deus100. Já a consideração cristã de Deus como ser moralmente

perfeito é a “idéia realizada, a lei personificada da moralidade, a essência moral

do homem (vontade) posta como essência absoluta”101. E a imagem de Deus como

ser amoroso, misericordioso, sensível e solidário com o ser humano consiste na

objetivação do amor humano ou na projeção do coração ou do sentimento102.

Destarte, fica evidente que o Deus cristão, para Feuerbach, consiste na

projeção das determinações da essência humana. Da mesma forma que na

essência humana há articulação da razão, da vontade e do amor, na concepção do

Deus cristão estas determinações estão presentes de forma articulada. Por isso, o

Deus cristão não é concebido pelos cristãos apenas como um ser maximamente

inteligente ou um ser de perfeição moral ou um ser de amor infinito, mas é

concebido como articulação de todas essas atribuições. Na verdade, para

Feuerbach, como já acenamos acima, não é Deus o sujeito dos predicados

atribuídos a ele, e sim são estas determinações que são sujeitos de Deus. Ou seja,

a razão, o amor e o sentimento são o Deus do homem, a sua essência e a razão da

existência de Deus.

Nos outros capítulos restantes da primeira parte (capítulos 6 a 19) de “A

essência da religião”, Feuerbach promove uma “antropologização” de algumas

verdades cristãs. Assim, temos: (1) O mistério da encarnação de Deus encontra

seu sentido como manifestação do homem feito Deus. Deus somente se mostra

como homem, porque o ser humano se considera como Deus. O segredo do

98 Cf. Ibid., p. 77-101. 99 Cf. Ibid., p. 82-85. 100 Cf. Ibid., p. 77-85. 101 Ibid., p. 89. 102 Cf. Ibid., p. 93-101.

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dogma da encarnação está no endeusamento do homem103. (2) O mistério do Deus

sofredor ou da paixão de Cristo, além de ser a projeção do sentimento de que o

sofrimento de uma pessoa por seu semelhante é algo divino, é também a projeção

da capacidade humana de sofrer em geral104. (3) O mistério da Trindade divina é a

projeção do desejo humano de vivenciar relações sociais fundamentadas no amor

fraterno105. (4) O mistério do Logos ou da segunda pessoa em Deus é a essência

objetiva da fantasia, da capacidade plástica e emotiva do ser humano. O homem

projeta seus sentimentos, sua necessidade de ser acolhido no Filho, a “imagem

querida do coração”, em oposição ao Deus como essência personificada da

abstração106. (5) O mistério de Deus como princípio criador do universo equivale

a ser o ato humano de pensar objetivado. Quando o homem tem consciência do

mundo através da consciência de si mesmo, ele se distingue do mundo e, assim,

reconhece a existência e realidade do mundo. O ato de pensar a realidade é a

consciência da existência da diversidade da realidade independente e diferente do

próprio ser humano107. (6) A criação a partir do nada por Deus, a providência

divina e os milagres, são nada mais que expressões do poder da imaginação

humana que, contra toda lógica racional e contra toda dinâmica própria da

natureza, impõe o poder da arbitrariedade, isto é, se impõe como algo real e

possível108. (7) A oração é o “desejo do coração expresso na confiança de sua

realização”109; é o diálogo do homem consigo mesmo, com o seu coração, com

seus desejos e anseios. Na oração, a pessoa acredita que todos os seus desejos

podem ser satisfeitos. Trata-se do poder da afetividade humana almejando

satisfação110. (8) A fé outra coisa não é senão a crença na divindade do homem.

Ela está relacionada com as coisas que objetivam a onipotência dos desejos

humanos em contradição com as limitações impostas pela natureza e pela razão111.

“A fé desata os desejos humanos dos grilhões da razão natural; ela permite o que a

natureza e a razão negam”112. (9) O milagre nada mais é que o poder da

103 Cf. Ibid., p. 93-101. 104 Cf. Ibid., p.103-108. 105 Cf. Ibid., p. 109-116. 106 Cf. Ibid., p. 117-123. 107 Cf. Ibid., p. 125-129. 108 Cf. Ibid., p. 143-152. 109 Ibid., p. 163-164. 110 Cf. Ibid., p. 161-166. 111 Cf. Ibid., p. 167-169. 112 Ibid., p. 267.

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imaginação a serviço da satisfação imediata dos desejos humanos113. (10) O

mistério da ressurreição, tanto de Cristo como a do ser humano, consiste na

objetivação do desejo humano de não morrer114. Cristo ressuscitado é a

objetivação da necessidade que o homem “tem de uma certeza imediata da sua

continuação pessoal após a morte”115. (11) O mistério da divindade de Cristo

corresponde à objetivação da afetividade humana realizada, pois somente “em

Cristo torna-se a afetividade totalmente certa e segura de si mesma, livre de

qualquer dúvida quanto à verdade e divindade da sua própria essência; porque

Cristo não nega nada à afetividade, ele realiza todos os seus pedidos”116. Cristo,

uma vez que é a realização de todos os anseios do cristão, é, em primeiro lugar, a

objetivação do desejo de realizar todos os seus desejos117. (12) O caráter pessoal

de Deus é produto da afetividade do homem que necessita de um Deus subjetivo,

afetivo, pessoal, humano, sentimental118. (13) O céu ou a imortalidade pessoal

equivale a ser somente a objetivação da crença na divindade do homem enquanto

essência, espécie119.

De fato, Feuerbach empreende uma redução do cristianismo ao dado

simplesmente antropológico, mediante sua teoria da projeção da essência humana.

Nada no cristianismo tem fundamento num Deus como realidade objetiva

independente do ser humano. Seu fundamento está no próprio homem, em sua

essência, pois “Deus é homem, o homem é Deus”120. Para ele, o homem é o início,

o meio e o fim da religião cristã121. Desta forma, Feuerbach demonstra sua tese de

que o discurso teológico nada mais é que um discurso sobre o homem, pois o

cristianismo é o espelho onde se encontra refletida a própria imagem do homem e

não a consciência da revelação de um Deus como entidade objetiva. Portanto, no

seu entender, o Deus do cristianismo não passa de uma personificação imaginária

113 Cf. Ibid., p. 169-174. 114 Cf. Ibid., p. 175-179. 115 Ibid., p. 175. 116 Ibid., p. 184. 117 Cf. Ibid., p. 181-186. 118 Cf. Ibid., p. 186-189. 119 Cf. Ibid., p. 211-223. 120 Cf. Ibid., p. 29. 121 No fim da primeira parte de “A essência do cristianismo”, nas últimas frases do capítulo 19, Feuerbach afirma o seguinte a respeito da redução antropológica do cristianismo que ele havia realizado nos capítulos precedentes: “Nosso propósito foi realizado aqui. Reduzimos a essência extramundana, sobrenatural e sobre-humana de Deus às partes componentes da essência humana como suas partes componentes fundamentais. No fim voltamos ao início. O homem é o início da religião, o homem é o meio da religião, o homem é o fim da religião”. Ibid., p. 223.

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ou uma representação fantasiosa da essência humana projetada em uma única

pessoa.

1.2.2. O cristianismo como alienação da essência humana Como pudemos averiguar, a crítica que Feuerbach faz ao cristianismo

reside em sua interpretação do fenômeno religioso cristão reduzido à

antropologia. Nenhuma crítica pode ser mais devastadora que reduzir todo o

fundamento do cristianismo ao imanentismo humano. No fundo, este filósofo

enreda o cristianismo no próprio homem. Nada há no cristianismo de revelação

divina. Contudo, é verdade que Feuerbach considera algo de positivo no

cristianismo. A religião cristã, conforme já acenamos acima, é, para ele, uma

forma de possibilitar ao homem descobrir a própria essência humana, pois, por

meio dela, ele reconhece, embora indiretamente, e atribui a Deus as determinações

próprias da sua essência122. No entanto, o cristianismo pertence à etapa infantil da

humanidade; àquela etapa na qual o ser humano ainda toma a sua própria essência

como uma outra essência123. Por isso o cristianismo, para ele, deve ser superado

pela etapa de maturidade da humanidade, que corresponde àquela etapa histórica

em que o homem tomará consciência de sua essência como sua realidade própria e

não mais como algo fora dele. Aqui encontramos o núcleo da crítica que

Feuerbach faz ao cristianismo: este deve ser superado porque aliena o ser humano

da sua essência. Tentaremos agora delimitar nossa atenção à crítica que este

filósofo faz ao cristianismo de forma mais detalhada.

1.2.2.1. O homem alienado de sua essência

De acordo com Feuerbach, o cristianismo é a alienação do homem de si

mesmo, pois nela se realiza a cisão entre Deus e o homem124. E a “cisão entre

Deus e o homem...é uma cisão do homem com sua própria essência”125. Ora, na

visão deste filósofo, a projeção da essência humana em Deus provoca a alienação

do homem de sua essência. O ser humano, crendo em Deus, se distancia de si

122 Cf. Ibid., p.56. 123 Cf. Ibid., p. 56. 124 Cf. Ibid., p. 77. 125 Ibid., p. 56.

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mesmo e daquilo que é próprio da humanidade. Isto porque ao crer em Deus, a

pessoa adora a própria essência, mas como uma essência diferente. Aquilo que ela

deveria valorizar como seu, valoriza em Deus.

A alienação produzida pela projeção religiosa tende a diminuir o valor do

ser humano. Não tendo consciência de sua essência projetada em Deus, o homem

supervaloriza Deus em detrimento da riqueza própria da humanidade. Assim,

Deus é considerado como a suma positividade e o ser humano é visto como sendo

o oposto, a pura negatividade.

“A religião é a cisão do homem consigo mesmo: ele estabelece Deus como um ser anteposto a ele. Deus não é o que o homem é, o homem não é o que Deus é. Deus é o ser infinito, o homem o finito; Deus é perfeito, o homem imperfeito; Deus é eterno, o homem transitório; Deus é plenipotente, o homem impotente; Deus é santo, o homem pecador. Deus e o homem são extremos: Deus é o unicamente positivo, o cerne de todas as realidades, o homem é o unicamente negativo, o cerne de todas as nulidades”126. Portanto, a projeção religiosa ao mesmo tempo em que consiste na

afirmação da positividade de Deus, consiste também no esvaziamento e no

empobrecimento do ser humano.

Na projeção do homem em Deus, todos os predicados de sua essência são

reportados para Deus e passa a desconsiderar a sua grandeza. Isto significa dizer

que a pessoa afirma em Deus o que nega em si próprio. É por isso que a crença

em Deus impede ao ser humano de se relacionar de modo consciente com a sua

essência, ou seja, impede a ele de reconhecer a potencialidade e a grandiosidade

da humanidade. Assim, o cristianismo reduz, como realizador e legitimador da

atividade projetiva, a complexidade daquilo que é o ser humano, enquanto gênero

humano, ao indivíduo. Em outros termos, o cristianismo reduz “a humanidade a

uma poeirada de indivíduos, deixando cada qual entregue a si próprio e tornando

os indivíduos naturalmente isolados e concentrados em si”127. Isto porque, ao se

projetar todas as qualidades da humanidade em Deus, o cristianismo anula o valor

da humanidade e não consegue perceber a sua riqueza.

Para Feuerbach, a alienação do homem da sua essência se expressa de

múltiplos modos no cristianismo. Primeiramente, esta alienação se dá sob a forma

de dualismo entre Deus e o homem, e, consequentemente, ela se expressa em

outros dualismos secundários: a afirmação do sobrenatural em detrimento do

126 Ibid., p. 77. 127 DE LUBAC, H., op. cit., p. 27.

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natural; a afirmação da vida celeste em detrimento da vida terrestre; e a afirmação

da fé em detrimento da razão. Ora, sob estes dualismos, a pessoa expressa sua

alienação das realidades fundamentais da existência humana, a saber: da própria

humanidade com suas potencialidades e qualidades, da relação com os outros, da

condição natural-corporal, da relação com o mundo, e da própria existência

terrena e histórica. A seguir vamos apresentar cada um desses dualismos que

Feuerbach constatou existir no cristianismo e que produzem a alienação humana.

1.2.2.1.1. O Dualismo entre Deus e o homem

O primeiro e o mais problemático dualismo que configura o cristianismo,

segundo Feuerbach, é aquele que se dá como oposição entre Deus e o ser humano.

Para ele, o Deus cristão, por ser a projeção da essência humana, se apresenta como

a negação do próprio homem. Fazendo de Deus, o ser infinitamente perfeito, o seu

objeto de adoração, o cristão, no seu entender, por se considerar imperfeito e

limitado, direciona sua atenção para Deus e não para o ser humano. A Deus, o

homem religioso “tudo oferece, tudo sacrifica”128. O “homem sacrifica o homem a

Deus”129. As potencialidades humanas são colocadas, sob a lógica cristã, não para

o serviço ao próprio ser humano e sim para o serviço a Deus.

“Todas as intenções que devem ser voltadas para a vida, para o homem, todas as melhores energias desperdiça o homem no ser desnecessitado. A causa real torna-se um meio inútil; uma causa só imaginada, idealizada torna-se a causa verdadeira, real”130.

Desta forma, para este filósofo, a dinâmica do cristianismo é a da

afirmação de Deus em detrimento do ser humano: “Para enriquecer Deus, deve o

homem se tornar pobre para que Deus seja tudo e o homem nada”131. Aquilo que

consiste em ser próprio da essência humana, como constitutivo de sua perfeição, a

saber, a razão, o amor e a vontade, o cristão adora como qualidades de Deus. Por

isso, no cristianismo essas qualidades se apresentam alienadas do homem, que é o

seu verdadeiro sujeito, e se apresentam alienadas também de si mesmas, porque

estão submetidas e subordinadas à força da fé. Assim no cristianismo, a razão se

encontra em contradição com a própria razão. A teologia é uma prova disto. A

128 FEUERBACH, L., A essência do cristianismo, p. 240. 129 Ibid., p. 311. 130 Ibid., p. 311. 131 Ibid., p. 68.

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razão é utilizada para fundamentar, contra a própria lógica da razão, as “verdades”

de fé. Do mesmo modo, a vontade está em contradição com a própria vontade,

pois a vontade religiosa trata-se de uma vontade heterônoma, uma vontade divina

e não humana. E da mesma forma também, o amor está em contradição com o

próprio amor, pois o amor religioso tem como destinatário primeiramente a Deus

e não os homens. Em nome do amor a Deus, o amor entra em contradição consigo

mesmo, pois em função do amor a Deus, o ódio e as maiores atrocidades contra o

ser humano podem ser legitimadas132.

Por conseguinte, a oposição entre Deus e o homem, vivenciada no

cristianismo, equivale a ser, segundo Feuerbach, a desvalorização das relações da

pessoa religiosa com o conjunto da humanidade133. O cristianismo, para ele, é a

dissolução da unidade comunitária, visto que para os cristãos a relação com Deus

consiste na relação alterativa fundamental. No cristianismo, a pessoa distancia-se

de sua essência e volta-se para Deus, que é concebido como a realização dos

desejos mais profundos do cristão (desejo de perfeição, de imortalidade e de

infinitude). Destarte, o que importa para o cristão é a sua relação pessoal com o

seu Deus. A relação com os outros, numa relação de completude e de

reciprocidade, só possui valor se estiver determinada por uma exigência divina.

Por isso, o cristianismo não contém em si o princípio da cultura134. A meta do

cristão é unicamente Deus e não as relações humanas. Feuerbach recorda, nesse

caso, que a idéia de salvação cristã exige do homem uma atitude ética e altruísta.

Contudo, esta atitude se apresenta subordinada ao cumprimento de uma vontade

de Deus e não aparece aos cristãos como uma necessidade decorrente da própria

relação entre as pessoas135. Isso equivale a dizer que a moralidade e o amor

fraterno são determinados pela fé e não pelo valor que possuem em si mesmos,

como atitudes humanas em benefício das relações entre as pessoas. Portanto, para

Feuerbach, no cristianismo em primeiro lugar se encontra o amor a Deus, e, em

relação com este, é que tem lugar o amor aos homens.

132 Cf. BIRCHAL, T.S., Nota bibliográfica: Feuerbach revisitado. In: Síntese Nova fase, 47, vol. XVI, 1989, p. 82. 133 Cf. FEUERBACH, L., A essência do cristianismo, p. 201. 134 Cf. Ibid., p. 201. 135 Cf. Ibid., p. 201-202.

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Neste sentido, Feuerbach não deixa de apontar a contradição existente

entre a fé e o amor136. Para ele, a fé em Deus contém um caráter negativo. Ela

impede a manifestação do amor do homem pelo homem, porque ela concentra a

atenção do homem em Deus de forma exclusiva. A fé separa os homens, isto é,

anula a união natural da humanidade. Ela induz ao confronto entre os homens. A

expressão desta afirmação está na arrogância e na intolerância do cristão perante

os não-cristãos e os descrentes. A história do cristianismo, segundo Feuerbach,

está repleta de testemunhos contra o amor à humanidade por causa da fé. As

perseguições religiosas, as torturas e as condenações promovidas pelos cristãos, os

conflitos sangrentos por causa da religião ao longo da história ocidental são, para

ele, provas de que a fé mais desune do que unifica. Na sua opinião, a fé em Deus

limita o amor dos cristãos somente ao que é cristão. Deste modo, o amor cristão,

fundamentado na fé, não é um amor autenticamente humano. O verdadeiro amor é

aquele “idêntico à razão, mas não à fé; pois como a razão, é o amor de natureza

mais livre, mais universal... Somente onde existe a razão impera o amor geral”137.

Além disso, a fé cristã, de acordo com Feuerbach, está em contradição

com a moral verdadeiramente humana138. Para ele, a moral cristã, fundamentada

na fé, é pseudo-moral, pois a verdadeira moral compromete o homem com o

homem e tem em si mesma o seu fundamento. Ora, para ele, o cristão pratica o

bem, não pelo homem e sim por Deus.

Ademais, no seu entender, a moral cristã está em contradição com a

própria natureza do homem. A moral de sacrifício, própria do catolicismo, com a

afirmação da castidade e da virgindade é uma prova disso. Esta moral apresenta

algo que está em contradição com a natureza humana como, por exemplo, a

castidade e a virgindade como as virtudes mais significativas para a fé cristã. O

valor do amor sexual entre homem e mulher, que é peculiarmente humano, é

negado por esta moral. Por isso, é que, para ele, se pode afirmar que a fé

transforma em virtude o que na verdade não é virtude. Por conseguinte, quando “a

moral é fundada sobre a teologia, o direito sobre a instituição divina, então se

136 Cf. Ibid., p. 287-307. 137 Ibid., p. 296. 138 Cf. Ibid., p. 299-301; 312-313.

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pode justificar e fundamentar as coisas mais imorais, mais injustas, mais

vergonhosas”139.

1.2.2.1.2. O dualismo entre sobrenatural e natural A contradição entre Deus e o ser humano também se expressa no

cristianismo, segundo Feuerbach, no dualismo entre o sobrenatural e a natureza140.

Para ele, o cristianismo é a negação da natureza, ou seja, da realidade sensível e

empírica da qual o homem vitalmente necessita e participa. Tudo no cristianismo,

para ele, aponta para uma depreciação da natureza: a existência do próprio Deus

como criador e interventor na natureza141, os milagres142, a providência e a graça

divinas143, os sacramentos do batismo e da eucaristia144, o céu ou a vida eterna145 e

a moral cristã146.

O fundamento da negação da natureza se encontra, segundo nosso filósofo,

na fé em Deus. Em verdade, como projeção dos desejos do cristão de ser um ser

perfeito, não-sensorial, livre da necessidade corporal, imortal e divino147, o Deus

139 Ibid., p. 312. 140 Feuerbach entende a natureza como sendo “tudo aquilo o que se mostra ao homem imediatamente, sensorialmente, como a base e o objeto de sua vida. Natureza é luz, é eletricidade, é magnetismo, é ar, é água, é fogo, é terra, é animal, é planta, é homem enquanto ser que age espontânea e inconscientemente... é tudo aquilo o que tu vês e que não se origina das mãos e dos pensamentos humanos... ela é o cerne ou a essência dos seres e das coisas cujos fenômenos, exteriorizações ou efeitos...não têm fundamento em pensamentos, intenções e decisões mas em forças ou causas astronômicas, cósmicas, mecânicas, químicas, físicas, fisiológicas ou orgânicas”. FEUERBACH, L., Preleções sobre a essência da religião, p. 81-82. 141 Para este filósofo, a ação de Deus na natureza contraria a autonomia desta. Se Deus age na natureza, a natureza não é autônoma. Cf. FEUERBACH, L., A essência do cristianismo, p. 227-237. 142 Cf. FEUERBACH, L., Preleções sobre a essência da religião, p. 113-128 (Décima quinta e décima sexta preleções). 143 Para Feuerbach, a providência divina e a ação de Deus na vida e na história do homem anulam a autonomia da natureza e a liberdade humana, pois a ação divina e a ação natural e humana são inconciliáveis. Cf. Ibid., p. 136-144 (Décima oitava preleção); Id., A essência do cristianismo, p. 144-145. 144 Os objetos sacramentais, a saber, a água, o pão e o vinho, que são elementos naturais, recebem no cristianismo, segundo Feuerbach, um significado e uma finalidade contraditórios à sua natureza. Cf. FEUERBACH, L., A essência do cristianismo, p. 277-286. 145 De acordo com Feuerbach, o céu cristão é a anulação de realidades propriamente humanas, a saber: o amor sexual ou a vida conjugal e a própria sexualidade enquanto determinação masculina ou feminina, pois no céu existem somente indivíduos puros e assexuados. Cf. Ibid., p. 201-209. 146 Feuerbach considera a moral cristã, determinada pela crença na vida eterna, como renúncia a este mundo e como negação da vida. Cf. Ibid., p. 203. 147 Em Preleções sobre a essência da religião, Feuerbach afirma que o Deus cristão é a realização dos desejos imaginários do cristão. Desejos esses que se opõem à realidade limitada da natureza humana, a saber: desejo de ser ilimitado, ou seja, não ser limitado ao tempo e ao espaço; desejo de vida eterna; desejo de onisciência e de perfeição; desejo de felicidade em outra vida, pois nesta

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cristão é concebido como um ser espiritual, supraterreno e sobrenatural; como um

ser não natural148. Ao se colocar a serviço deste Deus, ao adorá-lo, como

realização dos seus desejos mais profundos, o cristão entra em contradição com a

dinâmica intrínseca da natureza, pois a fé cristã induz o crente a uma negação da

realidade natural. E isto na verdade, para Feuerbach, consiste na negação do

próprio homem, pois este não pode existir sem relação com a natureza149.

Além disso, nosso autor afirma que o ideal religioso, de possuir a vida

espiritual ou de querer ser um espírito puro, põe o cristão em contradição com a

sua própria natureza corporal. Feuerbach constata que crente combate a sua

essência sensorial150. Na sua visão, a corporeidade para o cristão “é como uma

mácula e uma ignomínia que está agarrada desde seu nascimento a sua dignidade,

a sua honra de ser em si um ser espiritual”151. O cristão despreza seu corpo para

garantir a imortalidade de sua alma. Destarte, o cristianismo, além de alienar o ser

humano do conjunto do mundo natural, o aliena também de sua própria natureza,

dissociando nele o espírito e a matéria152.

Deste modo, o cristianismo torna patente a oposição entre a natureza e o

espírito, entre o sensível e o supra-sensível, entre a corporeidade e a alma, se

convertendo assim em “um platonismo ou espiritualismo popular” em contradição

com a natureza e o mundo153.

“O cristianismo se converteu, em sua evolução histórica, em uma religião anticósmica e negativa, distante da natureza, do homem, da vida e do mundo (não somente do negativo, mas também do positivo do mundo), desconhecendo e negando deste modo sua verdadeira essência”154.

vida o ser humano é constantemente insatisfeito. Cf. FEUERBACH, L., Preleções sobre a essência da religião, p. 230-233 (Trigésima preleção). 148 Cf. FEUERBACH, L., A essência do cristianismo, p. 195-196. 149 Para Feuerbach, o homem não pode ser compreendido sem relação com a natureza. Ele é natureza. Nela o homem vive, trabalha e existe. Por isso, a aniquilação da natureza seria a negação da existência humana. A natureza é o fundamento último da existência humana. Tudo além dela não passaria de ilusão. Cf. Ibid., p. 72, 91 e 110-112. 150 Cf. FEUERBACH, L., Preleções sobre a essência da religião, p. 216-218. 151 Ibid., p. 216. 152 Para Feuerbach, o espírito e o corpo não se contrapõem, e, sim, se articulam: “O espírito só se desenvolve com o corpo, com os sentidos, com o homem em geral, ele está ligado aos sentidos, à cabeça, aos órgãos corporais em geral...ele é um produto da natureza”. Ainda: “o espírito humano existe, não podemos duvidar de sua existência; existe algo invisível, incorpóreo em nós que pensa, que quer e sente; mas o saber, querer e poder do espírito humano é falho, limitado pelos sentidos, dependente do corpo”. Ibid., p. 132 e 218. 153 Cf. CABADA CASTRO, op. cit., p. 123. 154 Palavras de Feuerbach citadas por CABADA CASTRO, M., op. cit., p. 123.

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1.2.2.1.3. O dualismo entre a vida eterna e a vida terrestre

Outro dualismo decorrente da relação de oposição entre Deus e o homem

no cristianismo, segundo Feuerbach, consiste naquele que se estabelece entre a

vida eterna (céu) e a vida terrestre (terra)155. Ora, por causa do desejo do cristão de

ser espírito libertado das limitações corporais e naturais, a vida eterna e celestial

se apresenta, para o cristão, como o alvo das atenções em detrimento desta vida

natural e histórica, pois somente naquela vida o cristão pensa poder realizar seu

desejo mais profundo. “A meta e o objetivo prático do cristão – afirma Feuerbach

- é exclusivamente o céu, isto é, a realização da alma”156. Assim, esta vida com

sua história não é valorizada em si, e sim negada para afirmar a outra vida,

considerada a mais importante. A esperança do cristão está, por isso, voltada para

o além e não para o aquém, para o céu e não para a história. A expressão maior

desta negação da vida presente pelo cristianismo, de acordo com Feuerbach, está

no estilo de vida monástico157, na qual se dá uma negação desta vida com toda a

sua positividade por causa da esperança de realização de todos os seus desejos na

vida eterna.

Dentro dessa perspectiva, Feuerbach apresenta algumas considerações

críticas ao cristianismo, a partir da oposição (dualismo) entre o céu e a terra.

Vejamos.

a) Por concentrar seu interesse na felicidade celestial, o cristianismo, segundo

nosso filósofo, aliena o cristão de sua única existência; o aliena desta vida, pois

quando “a vida celestial é uma verdade, é a vida terrena uma mentira, quando a

fantasia é tudo a realidade não é nada. Quem crê numa vida celestial eterna para

ele esta vida perde o seu valor”158.

b) Ademais, para ele, o cristianismo está em oposição ao progresso científico da

modernidade. Uma vez voltado para o além, o cristianismo não tem favorecido as

descobertas e os êxitos científicos. A natureza ou o mundo não desperta no cristão

o entusiasmo e o interesse pela investigação científica, visto que, para este, as

realidades naturais são realidades não-divinas e distanciadas de Deus159.

155 Cf. FEUERBACH, L., A essência do cristianismo, p. 110, 201, 202, 220-223, 227. 156 Ibid., p. 332. 157 Cf. Ibid., p. 202. 158 Ibid., p. 202. 159 Cf. CABADA CASTRO, M., op. cit., p. 127-128.

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c) Além de estar em oposição às ciências naturais, o cristianismo, no entender de

Feuerbach, é a “religião que destrói a energia política dos homens”160. E isto por

dois motivos. Primeiro, porque substitui o protagonismo humano nas relações

sociais pela necessidade unicamente de Deus, aquele que, pelo governo da Igreja,

rege e legisla as relações na sociedade161. Segundo, porque distrai o homem, com

a promessa de vida eterna, do compromisso com a vida temporal e da busca de

realização de seus desejos nesta vida162.

d) O cristianismo, para ele, legitima o sofrimento e as injustiças afirmando que a

vida eterna será a grande recompensa para as vítimas da miséria e dos

sofrimentos163. Com efeito, o consolo concedido pela crença na vida celestial, na

sua opinião, induz o crente, em situação de sofrimento e injustiça, a não se

preocupar com o melhoramento de sua condição de vida neste mundo, além de

não permitir que ele compreenda ser vítima das situações de injustiça geradas pela

ganância humana.

1.2.2.1.4. O dualismo entre a fé e a razão

Um outro dualismo estabelecido pelo cristianismo, segundo Feuerbach,

devido à oposição entre Deus e o homem, consiste naquele que se dá entre a razão

e a fé. Para ele, o cristianismo com o aporte da reflexão teológica utiliza a razão

em função da fé ou contra a própria razão, visto que as verdades do cristianismo

não passam simplesmente de objetos da imaginação e da fantasia humanas.

Assim, a reflexão teológica sobre a existência de Deus não deixa de ser

contraditória, pois a razão somente pode afirmar e confirmar a existência real do

que pode ser experimentado sensorialmente. Ela não pode deduzir a existência

real de uma realidade apenas a partir do conceito, como se dá nas provas da

existência de Deus da tradição teológico-filosófico-cristã. Deus, por não ser uma

existência sensorial, física e demonstrável empiricamente, não pode ser

considerado como real pela razão. Daí que a afirmação da existência de Deus pela

razão, determinada pela fé na teologia, é descabida racionalmente164.

160 FUERBACH, L., Necessidade de uma reforma da filosofia. In: Id., Princípios da filosofia do futuro, p. 17. 161 Cf. Ibid., p. 16-17. 162 Cf. FUERBACH, L., Preleções sobre a essência da religião, p. 233-234 (Trigésima preleção). 163 Cf. Ibid., p. 233-234. 164 FEUERBACH, L., A essência do cristianismo, p. 239-245.

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Da mesma forma, a teologia da revelação de Deus está em contradição

com a razão. Como a revelação divina foi conservada por escrito na bíblia, a

crença na revelação se identifica com a crença naquilo que a bíblia testifica.

Então, o que está contido neste livro é assumido pelo cristão como verdade de

fato, mesmo que contradiga diretamente a razão. Ora, a bíblia está em contradição

com a razão muitas vezes. Na verdade, segundo Feuerbach, ela é fruto da

superstição e da sofistica cristã e não definitivamente de uma revelação divina

objetiva, pois se assim fosse não haveria nela contradições tão grotescas. Aceitá-la

como palavra eterna, absoluta, universalmente válida para todos os homens é um

disparate lógico. Por isso é que ele afirma que quando a razão é utilizada pela fé

na reflexão teológica para explicitar a revelação divina, testemunhada na bíblia,

ela é colocada em contradição com a sua essência165.

Para Feuerbach, a crença na Trindade e a teologia trinitária também

contradizem a razão. Ora, na Trindade há uma essência e diversidade de pessoas

divinas, mas estas não têm, de forma isolada, uma subsistência própria. A

individualidade de cada pessoa divina é afirmada unicamente na relação entre

elas. A contradição à razão reside, portanto, na negação da individualidade

objetiva numa pluralidade. Na Trindade, a unidade nega a personalidade. A

individualidade de cada pessoa divina se dissolve na pluralidade. As pessoas

divinas não têm uma existência autônoma, separada, independente uma das

outras. Isto é contraditório à razão, pois a razão concorda com a autonomia de

cada homem. Cada um tem a base de sua existência, ou seja, sua objetividade em

si mesmo. Embora o estabelecimento de relações com os outros homens seja

fundamental, esta relação não anula a individualidade de cada um, como acontece

no dogma trinitário. Por isso, esta anulação da individualidade das pessoas divinas

em uma substância contradiz a razão166.

A doutrina da criação, por sua vez, conforme nosso autor, também se

coloca em oposição à lógica racional. Na teologia da criação, para ele, a razão está

em oposição a si mesma. A teologia postula que toda a realidade natural, empírica

e física tem origem num Deus criador. Isto, na verdade, de acordo com Feuerbach,

é fruto da imaginação humana. A razão não aceita a lógica de que algo material e

corporal possa surgir de algo abstrato e espiritual. A lógica própria da razão é

165 Cf. Ibid., p. 247-254, especialmente p. 252-254. 166 Cf. Ibid., p. 273-276.

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afirmar que as realidades materiais se originem de realidades materiais e não de

uma realidade supranaturalista. Portanto, a razão pode dar conta de explicar os

fenômenos naturais, mas é contra a própria razão afirmar ou provar que o mundo

tenha origem em Deus. A crença na criação do mundo por Deus e a teologia da

criação são distorções da razão provocadas pela fantasia e pela imaginação167.

De toda esta incursão pelo pensamento de Feuerbach, pudemos constatar

que, para ele, o cristianismo apresenta como característica negativa fundamental a

contradição flagrante do homem consigo mesmo, através da alienação da essência

humana por causa da projeção religiosa em Deus. Com a religião cristã, o homem

entra em contradição com o mundo da natureza, com o seu próprio dinamismo

natural, com sua vida histórica e política, com os outros homens e com os

elementos constitutivos da essência humana, a saber, a razão, a vontade e o amor.

Num aforismo publicado postumamente, Feuerbach, em poucas linhas, descreve a

contradição que o cristianismo, segundo ele, estabelece na vida do cristão:

“O cristão vive numa contínua dissociação e contradição consigo mesmo. A essência do cristão é esta dissociação. A razão nega nele a fé, e esta aquela; sua vontade e consciência estão em contradição com a graça, e esta com aquelas. O homem se opõe a Deus, quer confiar em si e não pode negar-se a si mesmo..., e Deus se opõe ao homem: quer tê-lo todo para si mesmo...e não deixar nada ao homem. O cristão está num mundo temporal e visível, e pertence, no entanto, a outro mundo, eterno e invisível; está com o corpo na terra, e com a alma no céu... Tudo é contradição no cristianismo”168.

Por causa da interpretação do fenômeno cristão, reduzido à atividade

projetiva da psicologia humana e concebido como alienação do homem,

Feuerbach propôs a superação do cristianismo pela nova religião, a saber, o

ateísmo, ou, num termo mais adequado, o “antropoteísmo”. Para ele, a negação do

homem pela afirmação de Deus deverá ser substituída pela crença no homem

como deus do homem, “Homo homini Deus”. O amor a Deus deverá ceder lugar

ao amor aos homens. Nada mais de adoração a Deus e sim adoração ao próprio

homem169.

O ateísmo de Feuerbach se apresenta como a negação da “essência do

homem abstraída que é e se chama Deus, para substituí-la pela essência do

167 Cf. FEUERBACH, L., Preleções sobre a essência da religião, p. 89-92 (Décima segunda preleção), 117-118 (Décima quinta preleção). 168 Texto de Feuerbach extraído de CABADA CASTRO, M., op. cit., p. 122. 169 Cf. Ibid., p. 234-237; Id., A essência do cristianismo, p. 310.

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homem como a verdadeira”170. Evidentemente o ateísmo e a crítica ao

cristianismo de Feuerbach não podem ser concebidos como uma pura negação

gratuita. Trata-se de uma negação com a finalidade de afirmar e desenvolver a

maioridade do ser humano. Feuerbach acreditava que a única forma de acabar

com a alienação humana estava na tomada de consciência desta alienação

provocada pela religião, sobretudo pelo cristianismo. Uma vez tendo consciência

da alienação religiosa, o homem poderia negar a Deus e voltar para si ou se

reapropriar de sua essência, que antes lhe fora alienada. Por isso, podemos afirmar

que seu ateísmo constitui uma proposta humanista. Deus e o cristianismo são

rechaçados por impedir a humanização. Nesta perspectiva, o ateísmo se mostra

como um caminho propício para que o homem possa se realizar na unidade com a

sua essência171.

Conclusão Todo este percurso reflexivo feito neste primeiro capítulo nos ajudou a

constatar que o cristianismo, tanto em sua perspectiva católica quanto protestante,

foi rechaçado por causa de uma interpretação que o concebia como um entrave ao

desenvolvimento do processo de maturação humana. E isto fundamentalmente

porque o cristianismo se apresentou em oposição, ou pelo menos não se

enquadrou, ao paradigma da modernidade.

A modernidade, assentada sob a crença absoluta na razão experimental, se

apresentou como sendo a “saída da época das trevas” ou o novo período da

humanidade em que se acreditara confiantemente que o ser humano pudesse

realizar todo seu potencial como protagonista único de sua história. O lento

processo de gestação da modernidade foi todo ele marcado, portanto, pelo anseio

do homem por autonomia frente a tudo aquilo que representasse o tempo passado

da ignorância medieval e da tutela religiosa. Este anseio foi sendo aparentemente

realizado pela inauguração da filosofia da subjetividade com Descartes e pelo

desenvolvimento do método científico de experimentação da realidade empírica

com Bacon, Galileu e Newton, além do próprio Descartes. Com isso, o saber

científico passou a se impor como a única forma de saber capaz de fornecer um

conhecimento exato da realidade. O surgimento e o desenvolvimento das ciências

170 FEUERBACH, L., Preleções sobre a essência da religião, p. 235. 171 KUNG, H., op. cit., p. 286-287.

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naturais possibilitaram ao ser humano sonhar com o progresso técnico mediante a

manipulação da natureza. Aos poucos, o anseio de autonomia também se fez

sentir na esfera política e na ética. O homem moderno lentamente foi substituindo

as relações sociais normatizadas pela religião cristã e uma ética de cunho

religioso, por uma política e uma ética fundadas na razão. O cristianismo, tal

como estava configurado, representava um perigo à realização do anseio de

autonomia. Para as ciências naturais emergentes, o cristianismo não passava de

superstição, pois sua pregação e seu fundamento se encontravam em realidades

não confirmadas pela análise experimental da natureza. O próprio Deus cristão

chegou a ser negado, depois de ter sido considerado como o “grande relojoeiro”,

por causa exatamente da impossibilidade de comprovar cientificamente a sua ação

no mundo. Já para os corações ávidos pelas mudanças nas relações sociais, o

cristianismo representava um entrave, pois este insistia nas monarquias

absolutistas. No âmbito da moral, a religião cristã foi rechaçada porque insistia em

impor uma moral delimitada pela fé. De qualquer modo, o cristianismo foi

concebido como aquilo que impedia a realização do anseio moderno por

autonomia.

Podemos dizer que a modernidade não surgiu como um projeto anticristão.

Prova disso está no fato de que os teóricos que lançaram as bases do paradigma

moderno não se opuseram diretamente ao cristianismo. Não obstante, a

modernidade se desenvolveu lentamente em oposição ao cristianismo. E isto pelos

seguintes motivos: a) O cristianismo, configurado como cristandade medieval,

que tudo ordenava e tutelava, cultural e socialmente, representava uma época da

qual a mentalidade moderna procurava se libertar; b) O racionalismo ou a crença

na razão se impôs em detrimento dos outros saberes e em oposição à fé religiosa;

c) O método científico, considerado como a única forma de conhecimento seguro

da realidade, estabeleceu as “verdades da religião” como invenções fantasiosas e

falaciosas da mente humana; d) O processo de secularização se identificou com a

realização do anseio moderno por autonomia nas diversas áreas da cultura e da

sociedade.

Entretanto, o agravante maior da oposição da modernidade ao cristianismo

estava na postura do próprio cristianismo, representado pelo catolicismo e o

protestantismo, à mentalidade moderna. Enquanto o catolicismo condenava como

podia os avanços da modernidade, o protestantismo buscou, em certas orientações

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teológicas, se adaptar ao novo paradigma quase diluindo a fé cristã em sistemas

filosóficos e em interpretações cientificistas. A falta de uma abertura prudente, de

um acompanhamento respeitoso e de uma adaptação coerente das instituições

cristãs ao pensamento moderno convergiu numa oposição radical que, por parte da

Igreja Católica, chegou até o Concílio Vaticano II (1962-1965). Certamente, estas

atitudes por parte das instituições representantes do cristianismo, desde o século

XVI, só tenderam a aguçar uma concepção negativa do cristianismo por parte dos

representantes da mentalidade moderna.

É a partir destes dados que se deve compreender a concepção ateísta do

século XIX que acusava o cristianismo de impedir o desenvolvimento ou a

realização das potencialidades do ser humano.

Feuerbach, como representante do anseio moderno de autonomia, foi o

primeiro a sistematizar um ateísmo com a clara finalidade de libertar o ser

humano das amarras alienantes da religião cristã. Ele concebeu a idéia de Deus

como projeção da essência do ser humano e o cristianismo, como uma invenção

humana para legitimar e enriquecer esta atividade projetiva. Foi o primeiro

também a especular sobre a origem antropológica da religião. Sua teoria da

religião como projeção do próprio homem em Deus serviu como base

inquestionável para o ateísmo posterior.

Este filósofo, além de tentar descortinar a “essência do cristianismo”,

apontou os elementos desumanizadores da religião cristã. O cristianismo foi

acusado por ele de alienar o ser humano de sua própria essência. Isto significa

dizer que quanto mais uma pessoa assumir a fé cristã mais alienada ela se tornará.

A alienação ocorre porque o cristão projeta em Deus as qualidades de toda a

humanidade não as reconhecendo como patrimônio humano. Ou seja, a atividade

projetiva empobrece o homem, porque toda sua riqueza ele a atribui a Deus. Por

causa disso, Deus é supervalorizado e o ser humano menosprezado. Ademais, esta

alienação se faz sentir na negação, por causa da fé em Deus, daquilo que é próprio

ao ser humano, a saber: a relação comunitária entre as pessoas; a razão, o amor e a

vontade como qualidades humanas essenciais; a realidade natural da pessoa, ou

seja, a sua corporeidade; o mundo natural no qual o homem está inserido e do qual

depende para existir; e esta vida terrestre e histórica.

Feuerbach desferiu um golpe poderoso contra o cristianismo. Além de ter

reduzido todo conteúdo da fé cristã ao dado simplesmente antropológico, apontou

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a alienação do ser humano como a característica fundamental da religião cristã. A

sua crítica religiosa se mostrou tão pertinente que foi retomada e enriquecida,

embora não com poucas críticas, pelos teóricos de um ateísmo humanista anti-

cristão até os dias de hoje.

A acusação, sistematizada por Feuerbach, de ser o cristianismo uma

configuração religiosa desumanizante, aparecerá, sobretudo, na crítica religiosa

dos “mestres da suspeita”.

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2. A crítica do ateísmo humanista dos “mestres da susp eita” Paradoxalmente, o pensamento de Marx, de Nietzsche e de Freud se

configura como crítica ao paradigma moderno, e, ao mesmo tempo, como a maior

expressão da mentalidade moderna no que diz respeito à crítica ao discurso

religioso-cristão feita por um ateísmo sistematizado em função da humanização da

pessoa humana.

Os assim chamados “mestres da suspeita”, segundo terminologia de Paul

Ricouer1, além de criticar o império da razão suficiente, “suspeitam” da

capacidade da razão em prestar contas da existência humana efetiva e de

possibilitar ao ser humano condições que favoreçam sua realização. Marx

constata, em sua análise sociológica, que o projeto moderno, ansioso pela

autonomia do ser humano, descambou na configuração de uma sociedade

desumana, dominada pela lógica da economia capitalista. Nietzsche, por sua vez,

percebe que a racionalidade moderna, o apolíneo, se encontra em oposição aos

instintos, à vida, ao dionisíaco, o que impossibilita o desenvolvimento das

potencialidades da existência humana. Freud, ao descobrir o inconsciente e os

impulsos sexuais (=libido) como elementos fundamentais e determinantes da

constituição da personalidade humana, dá um golpe decisivo na pretensão da

racionalidade moderna de manter-se como soberana na condução por si só do

comportamento humano2.

Entretanto, os “mestres da suspeita”, com exceção de Nietzsche, não

conseguem romper de modo definitivo com a crença de que a racionalidade

técnico-científica pudesse tornar possível a realização do ser humano nesta

história. Marx considera que, com o desenvolvimento de um estudo profundo da

economia política, é possível descobrir os verdadeiros mecanismos desumanos

das relações sociais, e, assim, conscientizar os proletários para a revolução contra

a burguesia, instaurando o comunismo. Freud, por sua vez, mesmo tendo

descoberto a pulsão sexual como a força motriz do comportamento humano, não

deixa de acreditar na possibilidade de se chegar a um determinado ponto da

história, em que, mediante uma “educação para a realidade”, possibilitada pela

1 Cf. RICOUER, P., O conflito das interpretações. Ensaio de hermenêutica; Id., Da interpretação: ensaio sobre Freud, p. 28-40. 2 Id., Da interpretação: ensaio sobre Freud, p. 28-40.

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linguagem científica, o ser humano superará a fase infantil da humanidade pela

fase da maioridade, na qual se viverá em função do “princípio da realidade” e não

mais em função do “princípio do prazer”.

As críticas ao cristianismo feitas por Marx e Freud encontram sua origem

nesta crença de uma possível realização do ser humano na história mediante o

impulso da razão científica. Assim, é o conhecimento científico somado ao anseio

de realização imanentista do ser humano na história que fornecem a Marx e a

Freud a base para se criticar o cristianismo como configuração religiosa

desumanizante. Marx, a partir da análise sócio-econômica, considera o

cristianismo como alienação e como ideologia. Ou seja, o cristianismo é

interpretado como um produto social que tende a impedir a realização do ser

humano porque está relacionado profundamente com a estrutura econômica de

uma sociedade que produz a alienação humana. Freud, por sua vez, a partir da

investigação do psiquismo humano, acusa a religião de ser “neurose obssessiva

universal” e também “ilusão” em função dos desejos infantis. Deste modo, para

Freud, o cristianismo impede a pessoa de superar a fase infantil norteada pelo

desejo de realização do “principio do prazer”.

Nietzsche, por sua vez, entre os “mestres da suspeita”, é um caso sui

generis. Trata-se de um filósofo que, com grande perspicácia filosófica e

sensibilidade histórica, além de criticar os fundamentos axiológicos de toda

modernidade, profetiza a superação da modernidade com o advento do niilismo.

No que concerne à crítica religiosa, Nietzsche condena o cristianismo em nome da

vida. Para ele, o cristianismo é uma fonte de sentido enganosa para a vida, porque

direciona a força da vida, a vontade de potência, não para esta que é a única

existência, mas para a vida eterna e para Deus, o nada hipostasiado.

Marx, Nietzsche e Freud, seguindo a mesma lógica de Feuerbach da

interpretação que concebe a oposição entre Deus e o ser humano, condenam o

cristianismo como entrave ao processo de humanização da pessoa humana. Cada

um destes filósofos critica o cristianismo a partir de abordagens diferentes. Marx

parte da análise sociológica feita a partir da economia política. Nietzsche, por sua

vez, parte da investigação genealógica dos valores da civilização ocidental. Freud,

por fim, critica o cristianismo a partir da análise do psiquismo humano. Destarte,

o cristianismo se torna alvo de uma crítica sociológica, axiológica e psicológica.

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Consideramos que a apresentação da crítica que os “mestres da suspeita”

fazem ao cristianismo é de grande importância para podermos avaliar até que

ponto tem sentido a acusação de ser o cristianismo entrave à humanização.

Ademais, esta interpretação do cristianismo de Marx, de Nietzsche e de Freud,

além de ter sido assumida pelo ateísmo militante do século XX, continua a ter

futuro na cabeça de muitos intelectuais e cientistas da atualidade. Por causa disso,

não é impertinente e nem irrelevante abordamos a consideração crítica que o

ateísmo humanista dos “mestres da suspeita” tece ao cristianismo.

Deste modo, gostaríamos, neste capítulo, de focalizar nossa atenção sobre

a crítica que Marx, Nietzsche e Freud apresentam contra o cristianismo a partir do

enfoque da desumanização. Por isso, o capítulo constará de três seções. Na

primeira, vamos nos pautar sobre a crítica sociológica de Marx. Na segunda,

abordaremos a crítica de Nietzsche a partir de sua valorização da vida dionisíaca.

E, por fim, na terceira, nossa atenção se orientará para a crítica religiosa de Freud.

Não obstante, queremos deixar bem claro que, neste capítulo, não faz parte do

nosso objetivo a apresentação de críticas feitas de nossa parte à concepção do

cristianismo destes pensadores expoentes do ateísmo anti-cristão humanista.

2.1. A crítica de Karl Marx Depois de Feuerbach, o ateísmo humanista com sua crítica ao cristianismo

adquire com Karl Marx uma nova abordagem. Enquanto Feuerbach reduz o

cristianismo à projeção da psicologia humana em um ser imaginário transcendente

realizando a alienação humana, Marx procura investigar os motivos de tal

projeção a partir da análise do dinamismo social, sobretudo, a partir do estudo das

relações políticas e econômicas. Assim, chega à conclusão de que o cristianismo é

uma das expressões da alienação humana fundamental que têm raízes econômicas.

Para Marx, a religião trata-se de um fenômeno simplesmente humano-

social; equivale a ser uma ilusão consoladora que surge a partir de relações sociais

desumanas, e identifica-se com uma superestrutura ideológica a serviço da

legitimação da infra-estrutura econômico-capitalista. Na verdade, para Marx, a

fonte da alienação do homem, ou seja, da sua desumanização, não estaria

propriamente no cristianismo, como pensava Feuerbach, e sim na economia

capitalista, do qual o cristianismo seria apenas uma expressão ideológica. Por isso,

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a crítica de Marx à religião está inserida na crítica que ele faz à sociedade fundada

no modo de produção capitalista.

A religião, sobretudo o cristianismo, interessa a Marx apenas como fato

social. Mas mesmo assim não se trata de um tema abordado com freqüência e de

forma sistemática por ele. Diferentemente de Feuerbach, Marx não escreve

nenhum tratado específico sobre a religião. A visão de Marx sobre a religião está

presente em vários escritos seus3. No entanto, os textos explícitos sobre a religião

são poucos numerosos e se encontram diluídos nas obras que não versam

diretamente sobre a temática religiosa4. E isto provavelmente se deu, porque Marx

considerava o enigma da religião como um assunto resolvido desde Feuerbach5.

Como fato social, a religião, para Marx, pode ser explicada por meio da

categoria antropológica de “alienação” e por meio da categoria epistemológica de

“ideologia”6. A crítica de Marx à religião, particularmente ao cristianismo,

encontra aqui seu ponto central. Isto porque sua crítica está indissociavelmente

ligada a sua concepção de religião. Em outros termos, o modo como Marx

interpreta a religião constitui ao mesmo tempo sua crítica ao fenômeno religioso.

Procuremos apresentar a visão de Marx a respeito do fenômeno religioso

destacando o que este possui de desumanizador. No primeiro momento, vamos

expor a concepção da religião como alienação do ser humano. No segundo, nossa

atenção se voltará para a concepção da religião como ideologia. Todavia, em

ambas as etapas de nossa apresentação não deixaremos de destacar, em meio à

crítica religiosa, a crítica explícita ao cristianismo.

3 A crítica religiosa de Marx encontra-se com especial relevância nos seus seguintes escritos: “Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel” (1843); “A questão judaica” (1843); “Manuscritos econômico-filosóficos” (1844); “A sagrada família” (1845); “A ideologia alemã” (1845-1846); e “O Capital” (1867), sobretudo, no que tange ao fetichismo da mercadoria. 4 Os textos de Marx sobre a religião foram recolhidos na antologia organizada pelo Instituto Marx-Engels-Lenin de Moscou e traduzida em várias línguas. Entre nós as versões francesa e portuguesa são as mais conhecidas: MARX, K. – ENGELS, F., Sur la religion. Paris: Ed. Sociales, 1972; MARX, K. – ENGELS, F., Sobre a religião. Lisboa: Edições 70, 1980. 5 Marx considera que, no “caso da Alemanha, a crítica da religião foi em grande parte completada”. MARX, K., Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel. In: MARX, K., Manuscritos econômico-filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1964, p. 77. 6 Cf. LIMA VAZ, H.C., Marx e o cristianismo. In: Perspectiva Teológica, n. 37, 1983, p. 351-364.

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2.1.1. A religião como alienação do ser humano 2.1.1.1. O ateísmo de Marx Embora tenha sido educado em escolas cristãs, Marx desde cedo assume

uma postura de indiferença e de crítica à religião. Entretanto, até os dezoitos anos,

ele não havia professado seu ateísmo. Isto só acontece quando começa a

freqüentar, em Berlim, o “Doktor-club”, o círculo dos jovens hegelianos

empenhados em combater a religião em nome da filosofia7. Em 1841,

influenciado por Bruno Bauer e Feuerbach, Marx apresenta sua tese de doutorado

em filosofia, intitulada “Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e de

Epicuro”. Nesta tese, o autor defende abertamente opiniões ateístas, destaca a

inconciliabilidade entre a filosofia e a religião e professa claramente, no prefácio

da obra, o ateísmo como seu credo8.

De fato, o ateísmo não deixa de marcar profundamente todo o pensamento

de Marx. A sua visão do homem, da sociedade, da história e da religião se

restringe a uma explicação imanentista ou materialista da realidade. Assim, o ser

humano é compreendido como “homo faber”; como um ser material ou natural,

um ser de necessidade, que se faz na relação ativa e consciente (trabalho) com a

natureza9. A sociedade, por sua vez, é compreendida como o conjunto das

relações estabelecidas entre os homens a partir de um modo de produção, uma

base material ou uma estrutura econômica, que condiciona todo processo social,

político, espiritual e cultural10. Já a história é concebida como um desenrolar

dinâmico e dialético de vários modos de produção, sucedendo um ao outro e

implicando a luta de classes, até culminar na realização da história com a

7 Cf. KÜNG, H., op. cit., 306-313; MOREL, G., Un ateo absoluto: Karl Marx. In: VV.AA., Ateísmo en nuestro tiempo. Barcelona: Editorial Nova Terra, 1967, p. 185-191. 8 Cf. MARX, K., A diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro. In: MARX, K. – ENGELS, F., Sur la religion; INSTITUTO DE MARXISMO-LENINISMO, Karl Marx: Biografia. Moscou-Lisboa: Edições Progresso, 1983, p. 28-32; STACCONE, G., op. cit. 106-108; NEUSCH, M., op. cit., 1977, p. 80-83. 9 Sobre o conceito de homem em Marx conferir a seguinte referência bibliográfica: MARX, K. Manuscritos econômicos e filosóficos. In: FROMM, E., Conceito marxista do homem. Rio de Janeiro: Zahar, p. 89-102 (Primeiro manuscrito); MARX, K. – ENGELS, F., A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, p. 7-21; LIMA VAZ, H.C., Antropologia filosófica I, p. 127-131. 10 Cf. MARX, K. – ENGELS, F., A ideologia alemã, p. 18-19.

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passagem da sociedade capitalista para a sociedade comunista11. E, por fim, a

religião é interpretada como simplesmente um produto social12.

Entretanto, a crítica religiosa de Marx não parte simplesmente de seu

ateísmo. É verdade que este determina sua interpretação da religião. Mas não só.

Sua crítica religiosa está relacionada à crítica de toda estrutura social capitalista.

Marx não crítica apenas a religião como fizeram os hegelianos de esquerda. Ele

percebe a religião como um epifenômeno de uma estrutura social desumanizante.

Sua crítica visa profundamente não à religião unicamente, mas à estrutura social

que a produz.

2.1.1.2. A concepção de religião A compreensão de Marx sobre a religião é devedora, em grande parte, de

Feuerbach. O autor de “A essência do cristianismo” fornece-lhe a teoria da

religião como projeção antropológica em Deus e também a idéia da alienação13.

Por isso é que Marx compreende, assim como Feuerbach, a religião como uma

projeção do homem e como alienação. Entretanto, Marx, como crítico do

idealismo hegeliano, que Feuerbach não havia superado, concebe a religião como

projeção feita pela pessoa humana a partir de suas condições sócio-econômicas.

Para ele, não é suficiente afirmar, como fez Feuerbach, que o homem na religião

cria um mundo ilusório para realizar nele os seus desejos e ideais. Marx se

interessa em descobrir a razão pela qual o homem cria uma consciência ilusória a

partir de sua situação histórico-social. Ele não se satisfaz em afirmar que na

religião o homem se encontra alienado. Seu interesse é investigar o motivo pelo

qual o homem procura se alienar na religião.

11 Cf. Ibid., p. 21-34; Id., Manifesto do partido comunista. Petrópolis: Vozes, 1989. 12 Cf. MARX, K., Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel. In: MARX, K., Manuscritos econômico-filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1964. Id., A questão judaica. São Paulo: Centauro, 2003; Id., Manuscritos econômico-filosóficos. In: FROMM, E., op. cit.; Id. Teses sobre Feuerbach. In: MARX, K. – ENGELS, F., A ideologia alemã, p. 99-103; MARX, K. – ENGELS, F., A ideologia alemã; Id., Prefácio a “Uma contribuição à crítica da economia política”. In: FROMM, E., op. cit., p.187-188. 13 De acordo com Cabada Castro, “não somente a crítica da religião em Marx é de origem diretamente feuerbachiana, mas também a estrutura, os esquemas mentais da crítica política ou econômica do jovem Marx são muito próximas da análise ou da explicação da projeção religiosa de Feuerbach”. CABADA CASTRO, M., El humanismo premaxista de Ludwig Feuerbach, p. 169.

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2.1.1.3. A religião como projeção social e como alienação

A questão da religião como alienação do homem aparece pela primeira vez

no pensamento de Marx em sua tese doutoral e vai sendo abordada em outras

obras em relação, sobretudo, à alienação política e econômica. Precisamente,

aborda o tema da religião concebida como alienação até os seus “Manuscritos

econômico-filosóficos”, de 1844. A partir dessa obra, passa a conceber a religião

como ideologia, apesar de não abandonar a concepção da religião como alienação.

Em sua tese doutoral, influenciado pelos hegelianos de esquerda, Marx

rejeita toda a fé religiosa em nome da filosofia, pautada unicamente sobre a razão,

e em nome do homem prometeico, que fundamenta a sua existência em si mesmo

e não em Deus. Ora, Marx rejeita a religião porque a compreende como sendo

superstição em oposição à razão, e, também, porque a interpreta como sendo algo

que distancia o ser humano de si mesmo, impedindo que ele centralize suas forças

em sua existência. A religião, assim, é concebida como irracional e alienante.

Desta forma, segue a lógica moderna da oposição e incompatibilidade entre a

razão e a fé e entre Deus e o ser humano.

Ademais, em sua tese de doutorado, Marx apresenta sua teoria sobre o

surgimento da religião. Para ele, a religião é uma criação humana e nada mais.

Sua origem se encontra no sentimento humano de desproteção e na falta de

sentido da vida. O ser humano, por se sentir desprotegido frente à realidade

caótica da natureza e por se sentir incapaz de dar por si mesmo um sentido a sua

vida, em meio à realidade incerta e desafiadora do mundo, busca encontrar

proteção e sentido para a vida em realidades ou seres transcendentes criados por

ele mesmo. Deste modo, Deus não passa de uma idéia, um produto do espírito

humano que aliena o ser humano de sua própria existência. Isto porque a idéia de

Deus desvia a atenção do homem. Ao invés do ser humano se assumir como

sujeito ativo do mundo, ele se posiciona de forma passiva, à mercê dos desígnios e

forças divinas que, na realidade, não existem independentes do próprio homem.

Assim, a religião aparece como um elemento alienante do ser humano, porque o

torna distante, alheio a si próprio e à tarefa própria de construir a sua história neste

mundo14.

14 Cf. MARX, K., A diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro. In: MARX, K. – ENGELS, F., Sur la religion; NEUSCH, M., op. cit., p. 6-83.

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Em “Contribuições à crítica da filosofia do direito de Hegel”15, Marx

enfoca a religião como alienação e apresenta o motivo pelo qual o ser humano

procura se alienar na esfera religiosa.

“...O homem, que na realidade fantástica do céu, onde procurara um ser sobre-humano, encontrou apenas o seu próprio reflexo (...) É este o fundamento da crítica religiosa: o homem faz a religião; a religião não faz o homem. E a religião é de fato a autoconsciência e o sentimento de si do homem, que ou não se encontrou ainda ou voltou-se a perder-se. Mas o homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade. Este Estado e esta sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião é a teoria geral deste mundo, o seu resumo enciclopédico, a sua lógica em forma popular, o seu point d’ honneur espiritualista, o seu entusiasmo, a sua sanção moral, o seu complemento solene, a sua base geral de consolação e de justificação. É a realização fantástica da essência humana, porque a essência humana não possui verdadeira realidade. Por conseguinte, a luta contra a religião é indiretamente a luta contra aquele mundo cujo aroma espiritual é a religião. A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o intimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. É o ópio do povo”16.

Este texto contém diversos pontos interessantes sobre o tema da religião.

Em primeiro lugar, aparece explicitamente a influência da teoria da projeção

religiosa de Feuerbach. A religião consiste numa atividade de projeção

antropológica alienante. Deus é o reflexo do ser humano e a religião é a

“autoconsciência” do ser humano alienado, isto é, ainda distanciado de si mesmo.

Portanto, a religião é um produto unicamente humano. Entretanto, para Marx, o

ponto de partida da religião não é o homem em si, e sim o homem social, ou seja,

o ser humano que faz parte de relações sociais bem determinadas. Isto quer dizer

que a religião outra coisa não é que um produto das relações sociais. Mas trata-se

de uma “consciência invertida do mundo”; uma ilusão; algo produzido pela

sociedade para escamotear ou justificar seus reais mecanismos injustos e

desumanos.

15 Este artigo foi publicado pela primeira vez em fevereiro de 1844, juntamente com “A questão judaica”, no número duplo da revista “Os Anais franco-alemães” (Deutsch-franzözische Jahrbücher). Além dos escritos de Marx, esta revista continha os artigos de Engels (“Esboço para uma crítica da economia nacional” e “A situação da Inglaterra: ‘passado e presente’ por Thomas Carlyle’”), poemas de Heine e de Herwegh, artigos de Hess e de Bernays, assim como uma série de outros materiais. 16 MARX, K., Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel. In: MARX, K., Manuscritos econômico-filosóficos, p. 77-78. (O destaque de algumas palavras em itálico não é nosso; é da própria publicação).

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Em segundo lugar, a luta contra a religião aparece como luta indireta

contra a sociedade que gera a religião. Para Marx, o ataque à religião é também

um ataque à sociedade que a produz. O problema fundamental não está na

religião, como pensavam os hegelianos de esquerda, e sim na sociedade que cria a

“consciência invertida”. Na verdade não é a religião que é desumana ou

alienadora, mas a sociedade que a produz. Se a religião é o aparato da produção

ilusória para a legitimação dos mecanismos opressores da sociedade, ela o é não

por si mesma, mas porque assim foi produzida. Por isso, a crítica à religião se faz

necessária para se atingir o aparato social que a produziu.

Em terceiro lugar, a religião é apresentada como expressão da miséria

real. Isto significa que a religião só existe porque as relações sociais são

desumanas e perversas. Se assim não fosse, não haveria necessidade da projeção

de um mundo ilusório. Deus, céu e vida eterna aparecem como expressões de uma

realidade social que não promove a realização do homem. Assim, uma vez sendo

destruída a sociedade que produz a “consciência invertida”, a religião perderá seu

fundamento e deixará de existir.

Por fim, a religião é apresentada em aspecto aparentemente positivo; ela é

protesto contra a miséria real; é ópio do povo. Para Marx, ela é protesto entendido

como consolo, ou seja, é “o suspiro do crente por uma felicidade ilusória para

esquecer a sua desgraça presente”17. As vítimas das relações sociais desumanas

encontram na religião uma forma de enfrentá-las. Mas esse enfrentamento se dá

de forma alienante. Ela não gera uma mobilização para transformação das bases

da sociedade. Pelo contrário, desvia toda a atenção para o além ou para o céu

promovendo uma evasão para um mundo imaginário e, conseqüentemente,

impedindo toda ação transformadora e revolucionária neste mundo. Assim sendo,

fica claro, que, para Marx, a religião não é considerada como ópio para o povo,

ou seja, como algo inventado pelos clérigos ou pelos governantes com a intenção

de manter o povo na opressão18. Ela é ópio do povo, algo que este se administra a

si mesmo para suportar sua miséria e sua exploração; é “a expressão da

humanidade doente que busca consolo”19.

17 ZILLES, U., Filosofia da religião, p. 127-128. 18 A concepção de Marx da religião como algo produzido por uma classe dominante para justificar e legitimar os seus interesses só aparecerá explicitamente a partir de “A ideologia alemã”. 19 KUNG, H., op. cit., p. 322.

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Como se vê, em “Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel”,

Marx expõe os motivos pelos quais se dá a projeção religiosa ou a produção da

consciência ilusória. Os motivos são os seguintes: a) A religião existe para

esconder a verdadeira realidade de injustiça e de opressão das relações sociais; b)

Ela é produzida para legitimar e justificar as relações sociais desumanas; c) É

conseqüência da miséria real produzida pela sociedade; d) Aparece como algo

necessário para suportar os sofrimentos causados pela vida em sociedade.

Desta forma, Marx opera uma redução sociológica da religião. Para ele,

esta nada mais é que um produto, uma expressão e uma justificação de um

condicionamento social. Pensando assim, Marx desmascara o caráter alienante da

religião. Na verdade, para ele, a religião se apresenta não como alienação básica

do homem, e sim como uma expressão de uma alienação social que provoca a

necessidade de o homem projetar uma realidade ilusória20.

Por conseguinte, por ser “ópio do povo”, reflexo ilusório da sociedade ou

“consciência invertida do mundo”, a religião, produzida por uma alienação social,

torna o homem alheio, distante de si próprio, pois, enquanto ser social, projetando

uma realidade fantástica, o céu ou a vida eterna, deixa de assumir de forma

consciente a tarefa de realizar sua libertação e sua felicidade reais mediante o

compromisso transformador da sociedade opressora e desumana. Assim, a

religião, ao mesmo tempo, em que aliena o homem de si mesmo, o aliena também

de seu mundo verdadeiro. Ela faz o homem projetar para o céu aquilo que pode e

deve ser buscado aqui na terra.

Por causa do caráter alienante da religião, Marx julga a luta contra ela um

momento indispensável da luta social. Para ele, a crítica filosófica da religião é

indispensável para a transformação das relações sociais. Pois o homem não pode

estar disponível para uma luta real neste mundo se ele não renunciar a sua ilusão

de um outro mundo.

“A crítica da religião liberta o homem da ilusão, de modo que pense, atue e configure a sua realidade como homem que perdeu as ilusões e reconquistou a razão, a fim de que ele gire em torno de si mesmo e, assim, à volta do seu verdadeiro céu”21.

20 Em “Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel”, Marx apenas apresenta esta intuição. É nos “Manuscritos econômico-filsóficos” que apresenta a alienação econômica como a alienação básica, ou seja, alienação que produz as demais alienações, inclusive a religiosa. 21 MARX, K., Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel. In: MARX, K., op. cit., p. 78.

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Entretanto, para Marx, a crítica da religião não é suficiente para

transformar a sociedade, tal como pensavam os jovens hegelianos. Para ele, a

crítica religiosa deve levar à crítica do direito, da política, da economia, enfim de

toda sociedade, como também deve alavancar a práxis revolucionária22. Deste

modo, reconhece que a alienação religiosa não é a única e a mais prejudicial

forma de alienação. A este respeito ele escreve o seguinte:

“A imediata tarefa da filosofia, que está a serviço da história, é desmascarar a auto-alienação humana nas suas formas não-sagradas, agora que ela foi desmascarada na sua forma sagrada”23. Ora, Marx acredita perfeitamente que a superação da alienação religiosa,

como também das demais formas de alienação, somente é possível com a

revolução prática realizada pela classe do proletariado, e não somente com uma

revolução teórica24.

2.1.1.4. Alienação religiosa e a alienação política

Em “A Questão judaica”, Marx não deixa de considerar a religião como

alienação, mas a atenção predominante é dada ao tema da alienação política.

Neste artigo, aplica a lógica da alienação religiosa à esfera política. Polemiza com

Bruno Bauer, que havia escrito um artigo intitulado igualmente “A questão

judaica” (Die Judenfrage), onde defendia que a emancipação civil e política na

Alemanha só seriam possíveis mediante a abolição da religião cristã da

configuração do Estado25. Para Bauer, a extinção da religião, quer seja o judaísmo

quer seja o cristianismo, estaria relacionada à emancipação do Estado em relação

à religião. Não tendo como se legitimar politicamente, a religião, que Bauer

concebe precisamente como fase infantil do desenvolvimento do espírito humano,

perderia sua sustentabilidade e, assim, deixaria de existir, sendo substituída pela

fundamentação racional do Estado26. Marx não concorda totalmente com Bauer.

Aceita que a religião seja uma expressão falsa da realidade, mas não concorda que

ela seja a alienação básica do homem. Argumenta, contra Bauer, que não basta

suprimir a religião do Estado para que possa acontecer a emancipação do ser

22 Cf. Ibid., p. 78. 23 Ibid., p. 78. (As palavras destacadas em itálico são próprias da publicação). 24 Cf. Ibid., p. 92-93. 25 Cf. MARX, K., A questão judaica, p. 13-17. 26 Cf. Ibid., p. 15.

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humano. Prova disso, de acordo com Marx, se dá nos países em que o Estado

conquistou sua laicidade, isto é, sua independência da religião. Nestes países, ela

tornou-se uma questão privada, o que não deixa de ser sintoma de que o ser

humano continua sendo vítima de uma situação social desumana que o faz

refugiar-se ainda na esfera religiosa, e o que pressupõe também que a religião

serve de algum modo às mesmas lógicas que fundamentam esta forma de Estado,

pois nela a religião não é suprimida27.

A emancipação política ou a conquista da laicidade do Estado, para Marx,

não se identifica com a emancipação total do ser humano, porque mesmo quando

a vida política adquire autonomia da religião, o homem permanece ainda alienado,

continua sujeito às forças que impedem sua realização humana28. Por isso, para

Marx, o problema da alienação humana passa também pelo aparato do Estado.

Este constitui igualmente uma forma de alienação a serviço da legitimação da

sociedade burguesa29. Ele se apresenta como uma projeção dos interesses de uma

classe, assumindo uma existência autônoma, e determinando o modo de existir

dos homens a partir dos interesses desta classe dirigente. Deste modo, o Estado e a

sociedade burguesa se relacionam. O interesse do Estado identifica-se com os

interesses da burguesia. Assim, a “vida política se declara como simples meio,

cujo fim é a vida da sociedade burguesa”30.

Como se pode perceber, Marx aplica a teoria da projeção religiosa de

Feuerbach sobre o Estado. Assim como na religião o homem projeta a si mesmo

num ser absoluto (=Deus), conferindo-lhe uma existência própria e prestando-lhe

obediência, o mesmo se dá no plano político. O Estado é uma entidade projetada

pelo espírito burguês, que adquire uma existência autônoma e que passa a

conduzir a vida dos homens como cidadãos voltados para o cumprimento dos

interesses burgueses. Deste modo, o ser humano é um ser alienado no Estado

como o é na religião, visto que num e noutro caso, está submetido a poderes

estranhos que ele mesmo produziu e erigiu em absoluto.

Não obstante, ainda em “A questão judaica”, Marx faz a consideração de

que o cristianismo tem grande responsabilidade na configuração da sociedade

burguesa alienadora do ser humano. Para ele, a sociedade burguesa encontrou na

27 Cf. Ibid., p. 19-20. 28 Cf. Ibid., p. 21-23. 29 Cf. Ibid., p. 22-42. 30 Ibid., p. 38.

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lógica cristã da abstração das relações humanas a possibilidade de dividir o ser

humano entre duas formas de vida na sociedade: a vida particular com seus

interesses particulares (sociedade civil) e a vida pública com os “interesses

coletivos” (Estado).

“O judaísmo atinge seu apogeu com a consagração da sociedade burguesa; mas a sociedade burguesa só alcança a consagração no mundo cristão. Somente sob a égide do cristianismo, que converte em relações puramente externas para o homem todas as relações nacionais, naturais, morais e teóricas, podia a sociedade civil chegar a se separar totalmente da vida do Estado, romper todos os vínculos genéricos do homem, suplantar estes vínculos genéricos no egoísmo, pela necessidade egoísta, dissolver o mundo dos homens num mundo de indivíduos que se enfrentam uns aos outros atomística, hostilmente”31.

Com isso, Marx acusa o cristianismo de ser alienante, porque ele não

colabora com o relacionamento essencial entre os homens. Pelo contrário, separa-

os acentuando a importância do indivíduo sobre a coletividade, pois uma vez que

o cristianismo valoriza a relação pessoal do indivíduo com Deus, todas as outras

relações com os outros homens são tidas como relações secundárias submetidas

àquela relação mais fundamental. Na verdade, o que Marx afirma é que devido à

tradição cristã, com esta tendência de colocar a relação com Deus acima da

relação direta entre os homens, centrando atenção no indivíduo, a sociedade

burguesa pôde lançar as bases do individualismo pautado no egoísmo.

Ademais, no final de “A questão judaica”, Marx afirma que a tendência do

homem de projetar algo e adorá-lo como uma realidade superior a ele, tal como

acontece na religião, é o que possibilita à sociedade burguesa atribuir ao dinheiro

um caráter de centralidade e de divindade para o ser humano. Assim como na

religião Deus é o objeto projetado e, ao mesmo tempo, adorado pelo homem, na

sociedade burguesa, o dinheiro é um produto humano, adorado e desejado como

uma entidade que determina a vida do ser humano32.

“A venda é a prática da alienação. Assim como o homem – enquanto permanece sujeito às cadeias religiosas – só sabe expressar sua essência convertendo-se num ser fantástico, num ser estranho a ele, assim também só poderá conduzir-se praticamente sob o império da necessidade egoísta, só poderá produzir praticamente objetos, colocando seus produtos e sua atividade sob o império de um ser estranho e conferindo-lhe o significado de uma essência estranha, do dinheiro”33.

31 Ibid., p. 49-50. 32 Para a sociedade burguesa, o dinheiro, segundo Marx, “é o Deus da necessidade prática e do egoísmo”. “O dinheiro é a essência do trabalho e da existência do homem, alienada deste, esta essência estranha o domina e é adorada por ele”. Ibid., p. 48. 33 Ibid., p. 50.

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2.1.1.5. Alienação religiosa e alienação econômica Em “Manuscritos econômico-filosóficos”34, Marx dá continuidade à

intuição que havia apresentado na parte final de “A questão judaica”. Se antes ele

tinha abordado a questão da alienação política, nos “Manuscritos” trata da

alienação econômica sem desconsiderar a religião como alienação. Assim como

naquele escrito ele apresenta uma analogia entre a alienação religiosa e a

alienação política, agora Marx apresenta a analogia entre a alienação religiosa e a

alienação econômica. Exibe também a idéia fundamental que vai nortear todo o

seu pensamento posterior: a base de toda a alienação humana se encontra no

sistema econômico da sociedade burguesa. A alienação fundamental não é nem a

alienação religiosa nem a política, e sim a econômica.

Segundo Marx, a mesma lógica da projeção e da alienação religiosa pode

ser aplicada e verificada na atividade produtora (=trabalho) do homem

desenvolvida na sociedade capitalista. Para ele, o homem se aliena totalmente em

seu trabalho. E esta alienação se dá da seguinte maneira: a) O trabalhador se

aliena do produto que produz, pois o objeto produzido por esse adquire

autonomia, tornando-se estranho a ele e voltando-se contra ele como uma força

hostil35. b) O trabalhador se aliena da própria atividade produtiva, pois o trabalho

é realizado para outrem. A força de trabalho é vendida, por isso, o trabalho, que

deveria ser realizado como algo voluntário e prazeroso, é exercido como sacrifício

desgastante e desumano36. c) O trabalhador se aliena da “vida-espécie”, isto é, se

aliena da “essência do homem”. Isto porque aquilo que distingue o homem dos

animais é a atividade produtiva realizada consciente e livremente. Quando o

homem assume o trabalho não como uma atividade vital, e sim como um meio de

subsistência, vendendo sua força de trabalho, tornando-se uma mercadoria, ele

perde seu caráter humano37. Em outras palavras, quando isto acontece, o trabalho

34 “Os manuscritos econômico-filosóficos” compreendem quatro manuscritos que Marx escreveu entre abril e agosto de 1844. Entretanto, só foram publicados pela primeira vez em 1932. São estudos de Marx sobre questões de economia política. Um versa sobre a alienação do trabalho humano na sociedade burguesa, outro trata sobre as relações da propriedade privada, um outro apresenta a relação entre a propriedade privada e o trabalho, e um traz a crítica de Marx à filosofia dialética de Hegel. Cf. MARX, K., Manuscritos econômico-filosóficos. In: FROMM, E., op. cit., p. 83-170. 35 Cf. Ibid., p. 91-92. 36 Cf. Ibid., p. 93-94. 37 Cf. Ibid., p. 95-97.

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“nulifica a relação transformadora e criadora entre o homem e a natureza,

reduzindo-o ao nível dos animais, que só procuram satisfazer as suas necessidades

imediatas”38. d) O trabalhador se aliena da relação humana com os outros homens,

porque “na relação do trabalho alienado cada homem encara os demais de acordo

com os padrões e relações em que se encontra situado como trabalhador”39.

Desta forma, podemos perceber que, para Marx, a alienação do trabalho se

processa tal como a alienação religiosa. Assim como Deus é um produto do

homem que passa a dominá-lo, alienando o homem de si mesmo e dos outros, o

produto do trabalhador na sociedade burguesa adquire a dimensão de um deus. O

que se processa na sociedade capitalista, segundo Marx, é o mesmo que se

processa na religião: o produto do homem (Deus ou mercadoria) se torna um valor

absoluto, e o homem (trabalhador ou religioso) se transforma em objeto daquele.

Em ambos os casos, o homem perde seu caráter fundamentalmente humano e se

vê enredado nas malhas da submissão a algo que ele próprio criou.

“...quanto mais o trabalhador se desgasta no trabalho tanto mais poderoso se torna o mundo dos objetos por ele criado em face dele mesmo, tanto mais pobre se torna sua vida interior, e tanto menos ele se pertence a si próprio. Quanto mais de si mesmo o homem atribui a Deus, tanto menos lhe resta. O trabalhador põe a sua vida no objeto, e sua vida, então, não mais lhe pertence, porém ao objeto...que existe independentemente, fora dele mesmo, e a ele estranho, e que se lhe opõe como uma força autônoma. A vida que ele deu ao objeto volta-se contra ele como uma força estranha e hostil”40.

Nesta citação aparece, claramente, a idéia que Marx faz do fenômeno

religioso. Para ele, a religião é alienação, porque em Deus o homem se distancia

de si mesmo se desumanizando. A afirmação de Deus equivale à negação do

homem. Deus é o produto do homem e se torna uma força estranha e hostil contra

o próprio homem. E, por isso, quanto mais para Deus o homem se volta, tanto

mais desumano ele se torna. Isto porque fica mais distante de si mesmo e alheio

aos outros.

Entretanto, para Marx, a alienação religiosa se diferencia num aspecto da

alienação econômica. A primeira se efetua simplesmente no nível da consciência,

enquanto a segunda se dá no nível da realidade. Por isso é que Marx postula a tese

de que a alienação econômica se relaciona com as demais alienações; ela é a fonte

38 STACONNE, G., op. cit. p.134-135. 39 MARX, K., Manuscritos econômico-filosóficos. In: FROMM, E., op. cit., p. 97. 40 Ibid., p. 91.

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das outras, e, uma vez suprimindo esta, as outras formas de alienação deixam de

existir.

“A alienação religiosa como tal ocorre somente no nível da consciência, na vida interior do homem, mas a alienação econômica é a da vida real, e por isso sua substituição afeta ambos os aspectos”41.

Portanto, para Marx, a alienação econômica é a alienação básica do ser

humano, porque ela envolve toda a realidade do homem e suas relações sociais.

Tendo como fundamento primordial a propriedade privada, a alienação econômica

faz com que o homem seja dominado pelo desejo do ter, criando uma cisão entre o

interesse particular e o interesse comum. E, por sua vez, o desejo de ter faz da

realidade material comercializada (=mercadoria), que se almeja possuir, e do

dinheiro, que a permite adquirir, “realidades divinas” pelas quais o homem vive

escravizado. Dinheiro e mercadoria são os poderes que dominam os homens e as

suas relações, e não o contrário42.

Além disso, Marx considera que as várias instituições sociais, inclusive a

religião, estão impregnadas desta lógica capitalista alienante e o único modo de

extirpar delas esta lógica passa pela abolição positiva da propriedade privada pelo

comunismo43.

“A religião, a família, o estado, o Direito, a moral, a ciência, a arte etc., são apenas formas de produção particulares e enquadram-se em sua lei geral [lei da propriedade privada]. A substituição positiva da propriedade privada como apropriação da vida humana, portanto, é a substituição positiva de toda alienação, e o retorno do homem, da religião, do Estado, da família etc., para sua vida humana, isto é, social”44.

Nesta citação, embora a religião, juntamente com outras instituições

sociais sejam apresentadas como formas de produção da propriedade privada,

41 Ibid., p. 117. 42Por causa desta lógica capitalista o homem se encontra fundamentalmente alienado; está alienado de si mesmo porque vive apenas em função da produção ou do consumo e acúmulo de bens; e está também alienado dos outros, porque vive enredado em si mesmo estabelecendo relações de interesse mercantilista, ao invés de estabelecer relações verdadeiramente sociais. Veja-se o tratamento que Marx faz desse assunto no terceiro manuscrito que versa sobre a relação entre a propriedade privada e o trabalho. Cf. Ibid., p. 110-149. 43 Para Marx, a solução da alienação não se encontra no ateísmo, como defendia a esquerda hegeliana, mas no comunismo. Assim escreve Marx: “...o ateísmo como anulação de Deus é o suprimento do humanismo teórico, e o comunismo como anulação da propriedade privada é a defesa da vida humana real como propriedade do homem. O último é, também, a emergência do humanismo prático, pois o ateísmo é o humanismo mediado para si mesmo pela anulação da religião, ao passo que o comunismo é o humanismo mediado para si mesmo pela anulação da propriedade privada. Só pela superação dessa mediação (que, no entanto, é uma pré-condição indispensável) pode aparecer o humanismo positivo autogerador.” Ibid., p. 164-165. 44 Ibid., p. 117.

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Marx não defende a abolição da religião com o fim da propriedade privada. Ele

afirma o fim da alienação religiosa, mas não o fim da religião como instituição

social. Apresenta a possibilidade das instituições sociais, inclusive a religião, se

configurarem de forma não-alienante.

No entanto, esta idéia não encontra futuro no pensamento de Marx. A

partir dos seus escritos posteriores aos “Manuscritos econômico-filosóficos”,

passa a defender a tese de que ao transformar a base material da sociedade

capitalista, a religião tende a deixar de existir. Isto porque esta é, interpretada por

ele, como superestrutura ideológica da base material da sociedade capitalista.

2.1.2. A religião como superestrutura ideológica 2.1.2.1. A religião como ideologia

Nos escritos de Marx, a partir dos “Manuscritos econômico-filosóficos”, a

religião aparece não mais caracterizada como alienação e, embora Marx não

desconsidere esta idéia, ela é apresentada sob a categoria de “ideologia”45.

É em “A ideologia alemã”46 que Marx, tendo a colaboração de Engels,

apresenta pela primeira vez a sua concepção da religião como ideologia. Nesta

obra, Marx considera a religião como desprovida de existência própria e

dependente essencialmente da base econômica. Por isso, critica toda filosofia da

esquerda hegeliana que, segundo ele, postulou o “domínio da religião”. Para os

jovens hegelianos a religião se apresentava como uma representação determinante

para as demais determinações sociais como a política, a moral, as relações

jurídicas etc. Enquanto esta tendência filosófica partia da crítica religiosa, porque

concebia que o problema da alienação humana estava centrado unicamente na

religião e na sua influência sobre os outros âmbitos da sociedade, Marx não

considera que o problema esteja simplesmente na consciência religiosa, e sim na

base real da sociedade, nas relações econômicas, das quais a própria religião é um

reflexo. Por conseguinte, para Marx, o problema não se dá unicamente no nível da

consciência, como enfatizavam os hegelianos de esquerda, mas no nível da 45 Cf. LIMA VAZ, H.C., Marx e o cristianismo. In: Perspectiva Teológica, 37, p. 362; NEUSCH, M., op. cit., p. 95-102. Esta concepção da religião se encontra explicitada, mesmo que em pouquíssimas palavras, nas seguintes obras de Marx: em “A ideologia alemã” e no Prefácio de “Uma Contribuição à crítica da economia política”. 46 Esta obra, escrita em 1846, só foi publicada pela primeira vez em 1932.

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realidade, da vida real dos homens. Deste modo, Marx critica a filosofia alemã por

não partir da existência real dos homens, essencialmente ancorada nas relações de

produção, que determinam e condicionam toda consciência do homem47. Ora,

para Marx, diferentemente dos hegelianos, “não é a consciência que determina a

vida, mas sim a vida que determina a consciência”48.

Partindo da idéia de que a base da sociedade é a produção material que se

relaciona intrinsecamente com os mecanismos econômicos, Marx assevera que

toda produção intelectual e teórica (ideologia), tal como se apresenta na

linguagem da política, das leis, da moral, da ciência, da filosofia, da religião e da

metafísica, trata-se de uma produção condicionada pelo desenvolvimento das

forças produtivas do homem ou por um determinado modo de produção

material49.

“Assim, a moral, a religião, a metafísica e todo o restante da ideologia, bem como as formas de consciência a elas correspondentes, perdem logo toda a aparência de autonomia. Não têm história, não têm desenvolvimento; ao contrário, são os homens que, desenvolvendo sua produção material e suas relações materiais, transformam, com a realidade que lhes é própria, seu pensamento e também os produtos do seu pensamento”50.

Portanto, para Marx, a base econômica da sociedade, a infra-estrutura, se

apresenta como determinante para a produção teórica, a superestrutura51.

Como umas das produções teóricas humanas (ideologia), a religião carece

de consistência própria e de autonomia, pois seu fundamento é a base material da

sociedade, isto é, as relações econômicas. Ademais, como ideologia, ela reflete as

lógicas do mundo econômico. Entretanto, ela reflete o mundo não de forma

realista ou como de fato o mundo se apresenta, e sim de forma mistificada,

47 Cf. MARX, K. – ENGELS, F., A ideologia alemã, p. 7-11. 48 Ibid., p. 20. 49 Cf. Ibid., p. 18-21. 50 Ibid., p. 19-20. 51 No prefácio de “Uma contribuição à crítica da economia política”, Marx retoma esta idéia apresentando-a como fio condutor de seus estudos sobre a economia política: “O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de fio condutor aos meus estudos pode ser formulado em poucas palavras: na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral da vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário é seu ser social que determina sua consciência”. MARX, K., Uma contribuição à crítica da economia política. In: Id., Obras escolhidas. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 135-136. Coleção: Os Pensadores, vol. XXXV.

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escamoteada, ilusória. E isto com o objetivo de consolidar e perpetuar a estrutura

sócio-econômica dominada por uma classe social52.

Ora, como a religião se enquadra como uma produção ideológica, ela é

simplesmente uma elaboração ou representação teórica aparentemente desligada

da base material da sociedade. Sua origem, de acordo com Marx, está relacionada

à divisão entre o trabalho material e o trabalho intelectual, que se realizou num

dado estágio da história da humanidade53. Ao se dar a “ruptura” da consciência

teórica da força produtiva (consciência prática), a consciência teórica, segundo

Marx,

“pode de fato imaginar que é algo mais do que a consciência da prática existente, que ela representa realmente algo, sem representar algo real. A partir desse momento, a consciência está em condições de se emancipar do mundo e de passar à formação da teoria ‘pura’, teologia, filosofia, moral etc.”54. Assim, a consciência teórica é o fundamento da religião como ideologia.

Pois foi a consciência “desligada” da prática produtiva que possibilitou no tecido

social a elaboração de um mundo teórico-abstrato, no qual se inclui também a

religião, ao lado do trabalho material.

Contudo, a religião, como uma elaboração da “consciência teórica”, não se

separa da força produtiva organizada como modo de produção. A separação, tal

como acenamos acima, é apenas aparente e não real. Expressão disto é que a

religião, segundo Marx, se apresenta manipulada em cada época por aqueles que

detêm as forças produtivas da sociedade. Isto porque quem detém na sociedade o

domínio das forças produtivas, controla igualmente todo conjunto ideológico,

inclusive a religião55. Este é, no entender deste filósofo, um dado norteador de

toda a história. A classe dominante, em todos os períodos da história, tem forjado

seus pensamentos como pensamentos dominantes; pensamentos que expressam

unicamente o ideal das relações materiais dominantes, ou, em outros termos,

idéias de dominação56. Deste modo, as idéias religiosas, assim como as demais

52 Cf. ESTRADA, J.A., op. cit., p. 164-167; NEUSCH, M., op. cit., p. 96-100; STACONNE, G., op. cit., p. 148-150. 53 Cf. MARX, K. – ENGELS, F., A ideologia alemã, p. 25-26. 54 Ibid., p. 26. 55Veja a abordagem de Marx a esta questão no capítulo primeiro de “A ideologia alemã”, no item segundo, intitulado “Da produção da consciência”. Cf. Ibid., p. 34-54, especialmente p. 48-49. 56 Escreve Marx: “...a classe que é o poder material dominante numa determinada sociedade é também o poder espiritual dominante (...). Os pensamentos dominantes nada mais são do que expressão ideal das relações materiais dominantes; eles são essas relações materiais dominantes

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produções ideológicas, se mostram, em todos os tempos, como idéias dominantes

a serviço da dominação de uma classe social sobre as demais.

2.1.2.2. O cristianismo como expressão ideológica da burgues ia

Na sociedade capitalista, a classe detentora dos meios de produção, de

acordo com Marx, é a burguesia. Assim, a superestrutura ideológica da sociedade

capitalista reflete e legitima os interesses da burguesia57. Como a religião não faz

parte da base das relações sociais, e, sim, trata-se apenas de um reflexo

ideológico, ela se apresenta como defensora e justificadora do modo de produção

capitalista e da classe social que o detém, a classe burguesa.

Em algumas parcas passagens de seus escritos, Marx critica diretamente o

cristianismo por considerá-lo, explícita ou implicitamente, uma ideologia a

serviço do capitalismo e da burguesia.

Numa carta circular (Zircular gegen Kriege), escrita em 1846, contra

Hermann Kriege, que tentava difundir o comunismo utópico nos Estados Unidos

sob o discurso do amor cristão, Marx denuncia a ineficácia deste tipo de amor

para a realização de qualquer transformação social.

“Mas quando a experiência ensina que este amor não tornou-se eficaz em 1800 anos, durante os quais não conseguiu mudar as relações sociais, nem fundar o seu reino, segue-se como conseqüência manifesta que tal amor, incapaz de vencer o ódio, não tem a força de impacto necessária para provocar as reformas sociais”58. Nestes termos, Marx constata que o amor cristão consiste em ser apenas

um discurso teórico sem incidência transformadora sobre a realidade social.

Combatendo a Kriege, por fazer alusão ao amor cristão como força

revolucionária, Marx deixa claro a sua opinião de que o amor pregado pelo

cristianismo é impotente como força revolucionária no âmbito econômico-social.

Certamente Marx interpreta o amor cristão desta forma, porque o vê como um

elemento ideológico da religião a serviço dos interesses da classe dominante ou

das estruturas de dominação da sociedade.

consideradas sob forma de idéias, portanto a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante; em outras palavras, são idéias de dominação”. Ibid., p. 48. 57 Cf. Ibid., p. 48-49. 58 MARX, K., Circular contra Kriege. In: MARX, K. – ENGELS, F., Sobre a religião. Lisboa: Edições 70, p. 390.

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Ademais, em 1847, Marx escreve uma carta para responder a Hermann

Wagener, presidente do consistório prussiano, que havia publicado um artigo

defendendo o valor dos princípios sociais do cristianismo contra a ação

comunista. Nesta carta, em tons claramente anticristãos, Marx tece uma crítica

violenta aos princípios sociais do cristianismo.

“Os princípios sociais do cristianismo justificaram a escravidão antiga, abençoaram a servidão medieval e aprontam-se igualmente, se for preciso, para defender a opressão do proletariado, ainda que o façam com arzinhos angustiados. Os princípios sociais do cristianismo pregam a necessidade de uma classe dominante e de uma classe oprimida, e para oferecerem a esta não têm apenas o piedoso voto de que a primeira queira mostrar-se caridosa. Os princípios sociais do cristianismo colocam no céu a recompensa por todas essas infâmias de que fala o conselheiro, justificando assim a sua permanência nesta terra. Os princípios sociais do cristianismo declaram que todas as vilanias dos opressores sobre os oprimidos são, ou o justo castigo do pecado original e dos outros pecados, ou as provas que o Senhor, na sua infinita sabedoria, inflige àqueles que resgatou. Os princípios sociais do cristianismo pregam a covardia, o desprezo por si próprio, o aviltamento, a subserviência, a humildade, em suma todas as qualidades do canalha; o proletariado, que não quer deixar-se tratar como canalha, precisa de coragem, do sentimento de dignidade, do seu orgulho e do espírito de independência, muito mais ainda do que do seu pão. Os princípios sociais do cristianismo são os princípios dos derrotados e o proletariado é revolucionário. E já chega sobre os princípios sociais do cristianismo”59.

Com estas palavras, Marx quer afirmar que por trás dos princípios sociais

cristãos, há um “composto ideológico”, do qual o cristianismo faz uso para

colocar-se a serviço da legitimação da infra-estrutura econômica e da classe social

dominante. Este “composto ideológico”, com roupagem de discurso teológico,

além de consistir em justificar a opressão e a dominação de uma classe social por

outra, intenta inibir a força revolucionária dos cristãos com a promessa de um

mundo melhor no céu e com a pregação de qualidades passivas como valores

evangélicos.

Em “O capital”, ao desenvolver a temática do fetichismo da mercadoria60,

Marx defende a idéia de que o cristianismo consiste na forma de religião mais

59 Ibid., p. 95-96. 60 Por fetichismo da mercadoria, Marx entende a forma misteriosa como os produtos do trabalho são concebidos. Tais produtos na sociedade capitalista adquirem um valor tal, como produtos autônomos de quem os produziu, que passam a se relacionar com os homens como objetos dotados de vida própria, e que exercem sobre as pessoas um certo domínio. Cf. MARX, K., O capital. Crítica da economia política. Vol. 1. São Paulo: Bertrand Brasil, 1987, p. 81.

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adequada à sociedade capitalista61. E isto por dois motivos que se implicam.

Primeiro, porque o cristianismo não dá a devida atenção ao ser humano real que

se encontra nas malhas da lógica desumana da infra-estrutura econômica. Sua

atenção se destina ao homem abstrato, desligado deste mundo e amarrado ao céu.

Por causa disso, o cristianismo não apresenta ameaça alguma para a sociedade

burguesa, porque sua força de transformação social é nula. Segundo, porque o

cristianismo é o resultado da projeção humana em um ser idealizado e

transcendente (=Deus) que, como produto do homem, passa a dominar a vida do

ser humano com a exigência de atenção exclusiva. O cristianismo compartilha a

mesma lógica, presente na sociedade capitalista, que atua nas relações entre o

homem, a mercadoria e o dinheiro: a lógica da projeção alienante. Enquanto a

religião cristã constitui o exercício da projeção do homem em Deus, a sociedade

capitalista realiza o exercício da projeção da mercadoria e do dinheiro, produtos

humanos, como sendo os deuses do ser humano62. Desta forma, o cristianismo se

afigura, por sua relação com o capitalismo e a classe burguesa, como instrumento

de exploração das classes sociais dominadas. Trata-se de uma religião de cunho

burguês, que reforça, justifica e legitima as raízes econômicas da sociedade

capitalista.

De forma resumida, podemos dizer, mais uma vez, que, para Marx, o

cristianismo se coloca em função da infra-estrutura econômica determinante e da

burguesia por pelo menos quatro motivos: Primeiro, ele apregoa o homem

idealizado, aquele que se personifica em Cristo, e desconhece o homem real.

Segundo, ele substitui esta realidade terrena, histórica e social pela ilusão da

realidade celestial, proclamando a resignação e a conformidade com o presente

histórico caótico. Terceiro, ele prega e exige dos cristãos a vivência de certas

“virtudes” que impedem o compromisso transformador com a sociedade: a

paciência, a subserviência, a resignação, o conformismo, a passividade, o

servilismo etc. Quarto, a lógica da projeção alienante do cristianismo reforça a

lógica alienante do endeusamento do dinheiro e da mercadoria.

Assim sendo, o cristianismo, com seu “composto ideológico”, se configura

com uma funcionalidade social bem clara, a saber: encobrir e confirmar os

61 Cf. Ibid., p. 88. 62 Uma frase de “O Capital” resume bem esta idéia: “Como o homem é dominado na religião pelo produto de sua própria cabeça, assim também a produção capitalista pelo produto de suas mãos”. Citação de Marx extraída de ESTRADA, J.A., op. cit., p. 165, nota 14.

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interesses materiais que determinam o status quo da sociedade e dar legitimidade

aos poderes sociais dominantes63.

Por conta da relação intrínseca entre a superestrutura ideológica e o modo

de produção capitalista, a religião cristã, para Marx, não tende a desaparecer

simplesmente com a crítica religiosa ou com a consciência atéia, mas com a

superação das relações capitalistas de produção por “relações racionais claras

entre os homens e entre estes e a natureza”64. Assim, o cristianismo tenderá a

desaparecer apenas com a substituição do capitalismo pelo comunismo. Com a

superação daquela infra-estrutura norteada pela propriedade privada, pela divisão

do trabalho e pela luta de classes, a religião cristã, como aparato ideológico

capitalista e burguês, perderá o seu apoio, a sua base determinante e, assim, aos

poucos desaparecerá da configuração histórico-social65.

Além disso, no comunismo, não haverá lugar para a religião, porque, no

entender de Marx, as relações sociais serão humanizadas e a alienação será, assim,

superada. Com isso, não haverá necessidade de a pessoa humana projetar um

outro mundo consolador, nem tampouco haverá necessidade de se submeter aos

desígnios de um Deus, que é criação do próprio ser humano66.

Deste modo, o comunismo é apresentado como a impossibilidade de

configuração social da religião, sobretudo a cristã, tanto como alienação do ser

humano, quanto como superestrutura ideológica.

Fica claro, com esta nossa exposição, que Marx, por conceber o

cristianismo como alienação do ser humano e como superestrutura ideológica de

uma estrutura social pautada no endeusamento do capital, o considera como

oposição à humanização do ser humano. Por um lado, como alienação, o

cristianismo, além de fazer com que o homem viva submetido a algo que ele

mesmo criou pela atividade projetiva (=Deus), desvia para o além celestial a

atenção que o ser humano deveria dar a esta vida presente e histórica com sua

contribuição como protagonista da construção do tecido social. Por outro lado,

como reflexo ideológico, o cristianismo se coloca a serviço da infra-estrutura

capitalista, que é o fundamento da alienação do ser humano visto como escravo do

capital. Destarte, o cristianismo, no pensamento de Marx, está relacionado

63 Cf. Ibid., p. 164-167. 64 Cf. MARX, K., O capital, p. 88. 65 Cf. MARX, K. – ENGELS, F., A ideologia alemã, p. 39-40 66 Cf. MARX, K., Manuscritos econômico-filosóficos. In: FROMM, E., op. cit., p. 126.

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profundamente a uma estrutura social desumana. Por isso, ele é interpretado como

uma construção ideológica e alienante.

2.2. A crítica de Friedrich Nietzsche Feuerbach e Marx, como representantes de um hegelianismo invertido e do

anseio da Ilustração de emancipação do homem, combateram, por enfoques

diferentes, o cristianismo como sendo alienação do ser humano. Para eles a

superação da religião cristã se apresentava como condição do desenvolvimento do

ser humano. Daí tal ateísmo ser considerado como “humanista”. Entretanto, nem

Feuerbach nem Marx romperam definitivamente com os ideais do cristianismo. A

noção de realização da história, a moralidade cristã, resumida no altruísmo, e, até

mesmo, a metafísica fizeram parte, de certo modo, do pensamento destes

filósofos67. Feuerbach supunha uma realidade metafísica, a “essência humana”, e

sonhava com a possível realização do homem mediante a ciência e a técnica.

Marx, por sua vez, considerava o comunismo como a escatologia cristã realizada

na história. Ora, o ateísmo de Feuerbach e de Marx tinha como pressuposto a idéia

de que o ser humano pudesse se realizar historicamente superando a fé em Deus

ou instaurando a sociedade comunista. Para Nietzsche, um outro grande expoente

da crítica ao cristianismo, isso não é tão simples assim.

Assim como o ateísmo de Feuerbach e de Marx, o ateísmo de Nietzsche é

marcado por um anticristianismo radical em nome da afirmação e do

desenvolvimento do ser humano. Entretanto, diferentemente do ateísmo de

Feuerbach e de Marx, que nega o teísmo mas considera os valores cristãos68, o

ateísmo de Nietzsche, ao mesmo tempo em que considera a não existência de

Deus, propõe a superação do homem ocidental mediante a configuração de uma

nova escala de valores69. Para Nietzsche, a condição de humanização será

possibilitada quando o homem da “pós-morte de Deus” configurar novos valores

não mais pautados em Deus e sim nesta vida sem sentido. Assim, para ele, toda a

proposta de humanização, se não se apresentar a partir de uma nova escala de

67 Cf. ESTRADA, J.A., op. cit., p. 173. 68 Cf. Ibid. 69 Sobre a diferença entre o ateísmo de Feuerbach, Marx e Nietzsche, cf. MOURA, C. A. R. de., Nietzsche: civilização e cultura. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 10-21.

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valores, não deixará de ser uma proposta de conservação do homem “doente” e

“decadente”, gerado pela tradição platônico-cristã.

Segundo o diagnóstico de Nietzsche, a modernidade, com todas as suas

propostas e projetos de emancipação do homem, não colaborou com a

humanização, porque ao invés de afirmar a vida como valor supremo, ela

construiu “ídolos” e colocou a existência humana sob seus domínios. Por isso, é

que a filosofia de Nietzsche, além de criticar o cristianismo, não poupa de sua

crítica avassaladora nem a razão, nem a ciência, nem a idéia de progresso, nem o

Estado, nem a proposta de democracia70.

Ademais, Nietzsche concebe os valores e os ideais que norteiam estes

“ídolos” da modernidade como oposição à vida. Pois, para ele, tudo aquilo que

está na base da civilização ocidental, a saber, o socratismo, o platonismo e o

cristianismo, são movimentos negadores da vida e do mundo em função de uma

realidade idealizada ou de um “mundo verdadeiro”, do qual Deus é a sua

expressão mais sublime.

Ora, o pensamento de Nietzsche constitui uma crítica axiológica de toda

civilização ocidental. Para Nietzsche, o problema da desumanização não é apenas

antropológico ou sociológico, mas sim de valor. São os valores ocidentais,

segundo ele, que impedem o ser humano de afirmar e desenvolver a sua vida com

todas as suas possibilidades e potencialidades. A crítica de Nietzsche ao

cristianismo se inscreve neste horizonte. Trata-se de uma crítica dos valores

cristãos em nome da vida71.

Nesta seção pretendemos expor a visão crítica de Nietzsche ao

cristianismo. Para tanto, consideramos necessário dividir esta apresentação em

dois momentos. No primeiro, nosso objetivo consiste em apresentar o ateísmo

anticristão de Nietzsche, sob o tema da “morte de Deus”, com a finalidade de

mostrar que os temas fundamentais da filosofia de Nietzsche estão todos

relacionados à sua crítica ao cristianismo. No segundo, por sua vez, tentaremos

expor a crítica peculiar que Nietzsche tece ao cristianismo como negação da vida.

70 Todas as obras de Nietzsche trazem uma crítica dos resultados da modernidade. Entretanto duas merecem destaque pela sua amplitude: “Além do bem e do mal” e “Crepúsculo dos ídolos”. 71 Duas obras de Nietzsche tratam predominantemente da crítica ao cristianismo, são elas: “Genealogia da moral” e “O Anticristo”.

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2.2.1. O ateísmo da “morte de Deus” e o cristianismo 2.2.1.1. O tema da “morte de Deus”

Diferentemente dos ateus de sua época, Nietzsche não tem como

preocupação fundamental formular argumentos contra a existência de Deus ou

mostrar, com o intuito de desautorizar a crença teísta, como surge a fé religiosa.

Sua grande preocupação está na linha das conseqüências da descrença para a

sociedade moderna72. Por isso, Nietzsche profetiza o niilismo e apresenta a

necessidade da tresvaloração dos valores73. Na verdade, o que Nietzsche propõe é

a superação do paradigma cristão-ocidental por uma nova fase da história humana,

na qual os seres humanos terão de se tornar deuses eles próprios em substituição

ao “Deus morto”.

É em torno do tema da “morte de Deus” que Nietzsche articula os temas

principais de sua filosofia, a saber: crítica de todos os valores, niilismo,

tresvalorização dos valores, vontade de potência, eterno retorno e “super-

homem”74. A crítica de Nietzsche ao cristianismo encontra seu lugar neste bojo de

temas articulados sob o tema da “morte de Deus”.

A expressão “morte de Deus” aparece pela primeira vez nos escritos de

Nietzsche em “A Gaia Ciência” (1882)75 e é retomado em “Assim falou

Zaratustra” (1885)76. Com a utilização desta expressão, que aparece antes em

Pascal, Jean Paul e Hegel77, Nietzsche tem uma dupla intenção: em primeiro

72 Nietzsche critica o ateísmo inconseqüente que prega a não-existência de Deus, mas não se dá conta das conseqüências da “morte de Deus”. Cf. HUNG, H., op. cit., p. 507-512. 73 “Tresvaloração dos valores” é a tradução feita por Paulo César de Souza, tradutor das obras de Nietzsche para o português, para o termo alemão Umwertung der Werte. Em outras traduções o termo alemão aparece traduzido como “transvaloração”, “transmutação dos valores” e “transvalorização dos valores”. “Tresvaloração dos valores” significa a substituição radical de uma escala de valores morais por outra. Nietzsche utiliza este termo para designar a tarefa de substituição dos valores metafísico-cristãos, que impregnam a civilização ocidental, por outros valores, que afirmem o valor da vida imanente. A respeito da tradução e do sentido do termo traduzido por Paulo César, cf. NIETZSCHE, F., Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia de Bolso, 2005, p. 212. Por fazer uso da tradução das obras de Nietzsche deste tradutor, utilizaremos nesta seção o termo “tresvaloração dos valores”. 74 Em “Assim falou Zaratustra”, Nietzsche aborda todos estes temas a partir do anúncio da “morte de Deus”. Cf. MACHADO, R., Zaratustra: tragédia nietzschiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001; HÉBER-SUFRRIN, P., O “Zaratustra” de Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991. 75 O tema “morte de Deus” aparece nos seguintes parágrafos desta obra: 108, 125,153, 343. 76 Em “Assim falou Zaratustra”, o tema da “morte de Deus” aparece nos seguintes títulos: no § 2 do prólogo, “Sem ofício”, “O mais feio dos homens”, “Do homem superior”. 77 Cf. KASPER, W., op. cit., p. 58.

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lugar, constatar o crepúsculo da crença em Deus na cultura européia moderna, e,

em segundo lugar, alertar sobre as conseqüências deste acontecimento e a tarefa

do ser humano diante deste fato.

É bastante significativa sobre este tema a parábola do louco que, com uma

lanterna, entra pela manhã no mercado à procura de Deus, anunciando a sua

morte78: “Procuro Deus! Procuro Deus! ... Para onde foi Deus? ... Nós o

matamos”79. Na figura do louco, Nietzsche constata que o processo de

secularização, iniciado com a modernidade e do qual o ateísmo é um resultado, é

o responsável por um acontecimento colossal e epocal: a “morte de Deus”. “Nós o

matamos – vocês e eu!80”. Entretanto, para Nietzsche, tal acontecimento ainda não

fora completado, pois “não chegou ainda aos ouvidos dos homens”81. Trata-se de

um processo que se estenderá por muito tempo, porque dificilmente os homens

dissiparão imediatamente a “sombra de Deus”82. “Novas batalhas” serão

necessárias para consumar por completo a “morte de Deus” na teoria e na práxis.

O período do teísmo deve ser superado por uma “história mais elevada”, por um

novo homem, o “super-homem”83.

Ora, Nietzsche anuncia a lenta “morte de Deus” e propõe a substituição

dos valores assentados sobre sua existência, a saber: a fé na verdade ou na razão, a

busca de fundamentos absolutos, a afirmação do sentido da vida, a certeza de uma

realização da história mediante o progresso, o amor ao próximo, a distinção moral

entre bom e mau, e a distinção entre verdadeiro e falso. Para Nietzsche, “a ‘morte

de Deus’ é um acontecimento de dimensões gigantescas, que arrasta consigo a fé

78 A parábola se encontra no § 125 de “A Gaia ciência”. 79 NIETZSCHE, F., A Gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 147 ( § 125). 80 Ibid., p. 147-148. 81 Ibid. p. 148. 82 Alusão ao § 108 de “A Gaia ciência”, que diz: “Depois que Buda morreu, sua sombra ainda foi mostrada numa caverna durante séculos – uma sombra imensa e terrível! Deus está morto; mas tal são os homens, durante séculos ainda haverá cavernas em que sua sombra será mostrada. – Quanto a nós – nós teremos de vencer também sua sombra!”. Ibid., p. 135. 83 O primeiro discurso de Zaratustra ilustra bem o processo de superação do próprio homem com relação à crença em Deus: “Das três metamorfoses: como o espírito se torna camelo e o camelo, leão e o leão, por fim, criança”. Como “camelo”, o homem se submete à vontade de Deus como um imperativo (“Tu deves”). Como “leão”, o homem se revolta com os ideais de uma moral fundada na transcendência em nome de sua liberdade (“Eu quero”). Como “criança”, o homem se apresenta como criador de novos valores (“Eu sou”). Cada “metamorfose do espírito” representa uma etapa da história humana. O “camelo” representa o homem religioso, teísta, cristão. O “leão” representa o homem moderno, ávido por emancipação. A “criança” representa o “super-homem”, o homem “pós-morte de Deus”, o criador de novos valores não mais assentados no além-mundo e sim na vida, na natureza, na terra. Cf. NIETZSCHE, F., Assim falou Zaratustra. 13ª.,Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 51-53.

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na razão, no sujeito, na verdade e na liberdade, no progresso e, acima de tudo, no

sentido da vida e da história”84. Com a “morte de Deus”, todo quadro de valores

sustentado pela noção de Deus perde seu fundamento, e, assim, surge a

possibilidade desafiadora de criação de novos valores, não mais de caráter

metafísico-dualista, e sim valores que afirmem a vida, os instintos e a terra.

Em “Assim falou Zaratustra”, a “morte de Deus” é a condição primária

para o aparecimento do “super-homem”, aquele tipo de homem que é a superação

do homem moderno “doente”, aquele que é o “sentido da terra”, que não dá

ouvidos à “esperanças ultraterrenas”85. Desta forma, Nietzsche quer afirmar que a

crença em Deus tem bloqueado o desenvolvimento do ser humano em seu devir

ou o impedido de ser o valor absoluto para si mesmo. Assim, somente com a

superação de Deus é que o homem, segundo Nietzsche, poderá de fato assumir

uma existência centrada em si mesmo. Mas que tipo de Deus, segundo Nietzsche,

tem privado o homem de ser “super-homem”? E por quê?

Nietzsche anuncia sob o tema da “morte de Deus”, como constatação

histórica, o início da morte da metafísica ou a morte de toda idéia de Deus e em

particular do Deus cristão86. Mas mais do que anunciar a “morte de Deus”,

Nietzsche não deixa de criticar aquela metafísica de origem platônica, a metafísica

cristã apoiada no conceito de Deus que configura como pano-de-fundo toda a

civilização ocidental87.

Nietzsche se opõe à metafísica, cuja expressão maior é a idéia de Deus,

porque, para ele, ela comporta uma desvalorização da existência humana.

Segundo ele, a metafísica platônico-cristã88 possibilita e legitima o ideal ascético,

que significa o sacrifício da vida, da existência e da realidade terrena em função

de um além hipotético. O transmundo metafísico retira deste mundo e desta vida

todo o seu valor. Tudo aquilo que é natural, real, imediato é visto com

84 ESTRADA, J.A., Imagens de Deus. A filosofia ante a linguagem religiosa. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 222. 85 Cf. NIETZSCHE, F., Assim falou Zaratustra, p. 36. 86 Sobre a constatação de Nietzsche a respeito do enfraquecimento e, até mesmo, do fim da crença em Deus, cf.: “Humano demasiado humano”, § 113; “Aurora”, § 92, “A Gaia ciência”, §§ 343 e 358, “Além do bem e do mal”, § 53. 87 Uma série de condenações feitas por Nietzsche ao conceito cristão de Deus pode ser encontrada nos seguintes parágrafos de “O Anticristo”: 16, 18 e 47. 88 Para Nietzsche, o platonismo e o cristianismo estão intimamente relacionados. “O cristianismo é platonismo para o povo” (cf. o prólogo de “Além do bem e do mal”); trata-se de um prolongamento do platonismo. No fundo, a metafísica cristã é a metafísica platônica renovada com os dados cristãos.

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desconfiança, como ilusão, como aparência. Daí o pessimismo, assumido por toda

a cultura ocidental, com relação ao mundo e à vida em si mesma. Até mesmo na

ciência repousa uma crença metafísica, porque o cientista acredita poder encontrar

uma verdade que dê conta de explicar a realidade.

Em outras palavras, a metafísica platônico-cristã, apoiada no conceito de

Deus, é negativa, segundo a compreensão de Nietzsche, porque ela fundamenta

diversos dualismos que tendem a realizar a depreciação desta única existência, a

saber: o metafísico (sobrenatural versus natural), o antropológico (alma versus

corpo e razão versus instinto), o cósmico (mundo divino versus mundo humano),

o ontológico (essência versus acidentes, ser versus devir), o epistemológico

(verdade versus falsidade; realidade versus aparência), e o moral (bem versus

mal)89.

Para Nietzsche é incontestável o empobrecimento produzido pela

metafísica assentada sob o conceito de Deus. Este mundo fragmentário, sem

sentido e complexo, o ser humano em sua totalidade de instinto e racionalidade, a

pluralidade de perspectivas da visão da realidade, o valor da existência

independentemente de uma finalidade, uma moral de afirmação do querer humano

para além do bem e do mal, tudo isto não encontra lugar, segundo Nietzsche, num

horizonte metafísico. Tudo o que é propriamente terreno, humano, é desprezado

por causa do transmundo platônico-cristão. Por isso, o conceito de Deus se

apresenta, de acordo com Nietzsche, como “a maior objeção à existência”90.

Neste caso, a crítica de Nietzsche se dirige especialmente ao Deus cristão,

o qual fundamenta toda metafísica ocidental. Segundo ele, o conceito cristão de

Deus consiste em ser contradição direta à vida.

“O conceito cristão de Deus – Deus como deus dos doentes, Deus como aranha, Deus como espírito – é um dos mais corruptos conceitos de Deus que já foi alcançado na Terra; talvez represente o nadir na evolução descendente dos tipos divinos. Deus degenerado em contradição da vida, em vez de ser transfiguração e eterna afirmação desta! Em Deus a hostilidade declarada à vida, à natureza, à vontade de vida! Deus como fórmula para toda difamação do ‘aquém’, para toda mentira sobre o ‘além’! Em Deus o nada divinizado, a vontade de nada canonizada!...”91.

89 Cf. ESTRADA, J.A., op. cit., p. 224-225. 90 NIETZSCHE, F., Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 47, VI-8; Cf. Id., Ecce Homo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 116, (Por que sou um destino, § 8). 91 NIETZSCHE, F., O Anticristo. Maldição ao cristianismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 23 (§ 18).

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Deste modo, com a “morte de Deus”, entendida como crepúsculo da

metafísica e como descrença no Deus cristão, surge, segundo Nietzsche, a

oportunidade para uma nova época, em que o homem, criando um novo quadro de

valores, impregnado do ideal dionisíaco, poderá superar as quimeras do céu em

função do “amor à vida” e da “fidelidade à terra”. Trata-se da possibilidade da

metamorfose do “leão” em “criança”; a possibilidade do “super-homem”, o que

implica uma nova orientação para a ciência, a política, a moral e a filosofia. Mas

para que isto aconteça o homem tem que enfrentar o niilismo.

2.2.1.2. O niilismo Com a “morte de Deus”, todos os antigos valores do mundo ocidental

perdem o seu fundamento metafísico. Estes são desvalorizados e os homens se

encontram perdidos, sem as referências que antes norteavam suas vidas;

encontram-se diante da perspectiva do nada, da falta de sentido para a própria

“existência”, do sem sentido e da falta de valor da realidade. Niilismo significa

exatamente o seguinte: “...que os valores supremos se desvalorizaram. Falta um

fim. Falta a resposta ao ‘porquê’”92; “não há verdade alguma, não existe nenhuma

qualidade absoluta nas coisas, não existe ‘coisa em si’” 93.

Ora, relacionado à “morte de Deus”, o niilismo, de acordo com Nietzsche,

não surge por acaso, mas sim por necessidade histórica; ele é a conseqüência

necessária da descoberta da metafísica platônico-cristã como fornecedora ilusória

de sentido ao existir humano a partir de valores e ideais fundamentados em

realidades abstratas consideradas autônomas da realidade. A consciência de que

não existem valores em-si que atribuem significado à vida é o próprio niilismo94.

92 NIETZSCHE, F., Fragmentos póstumos, 9 [35], KSA, vol. 12, p.350. Citado por MOURA, C.A.R. op. cit., p. 23. 93 Ibid. 94 Nietzsche explica, em três etapas psicológicas, como se dá a recusa de um sentido metafísico para a existência ou como se dá a irrupção do niilismo como desvalorização dos valores estabelecidos, a saber: 1. Quando o ser humano que procura um sentido fora de si, não o achando, perde o ânimo da busca; ele deixa de procurar tal sentido porque passa a considerar o esforço da busca um “desperdício de força”; 2. Quando o ser humano, que acreditava em fazer parte de um todo organizado, descobre que esta totalidade não existe; 3. Quando o ser humano descobre que o mundo metafísico, que considerava uma realidade, não passa de uma ilusão ou de uma invenção. Em outras palavras, o niilismo surge quando o homem reconhece que não existe nenhuma finalidade para a vida, nem nenhuma organização presidindo o mundo, nem tampouco outro mundo. Cf. NIETZSCHE, F., Sobre o niilismo. A vontade de Potência. In: NIETZSCHE, F., Obras incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 380-381. Coleção: Os Pensadores.

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Entretanto, Nietzsche também considera a desvalorização da vida em

função de um além-mundo como niilismo. Assim, o niilismo como ausência de

valores é a conseqüência daquela outra forma de niilismo. Ou seja, o niilismo se

apresenta, no primeiro momento, como a tentativa de buscar no nada o sentido do

mundo e da existência. Antes do niilismo como desvalorização de todos os

valores, há o niilismo da “vontade de nada”. Quando este é desmascarado, quando

a ilusão é descoberta, quando não mais estes ideais e valores fornecem sentido à

vida e ao mundo, então surge o niilismo como ausência de sentido e de valor.

Assim, Nietzsche reconhece duas formas de niilismo95: aquele que desvaloriza

este mundo e deprecia esta vida, fazendo-a adquirir valor de nada, em nome de

um além-mundo, em nome do nada; e aquele niilismo que, depreciando e negando

o além-mundo, desvaloriza todos os valores e provoca a falta de sentido da vida e

do mundo, fazendo nada valer96.

O cristianismo, segundo Nietzsche, está relacionado com as duas formas

de niilismo. Por um lado, o cristianismo “é uma religião niilista”. E isto porque

“está orientado a valores fúteis, hostis à vida, e particularmente para Deus, o valor

supremo absolutamente nulo”97. Neste sentido, a moral cristã é o objeto

privilegiado da crítica religiosa de Nietzsche, pois, para ele, trata-se de uma moral

niilista, que canaliza toda força da vida não para a própria vida e sim para o nada.

Por outro lado, o declínio do cristianismo é o surgimento do niilismo de falta de

sentido. Deste modo, o cristianismo é visto por Nietzsche como debilidade e

negação da vida, porque, num primeiro momento, direciona a força da vida para o

nada, e, num segundo, produz a sua falta de sentido98.

Em “Assim falou Zaratustra”, Nietzsche considera, diante do fato histórico

do niilismo da desvalorização dos valores, duas possibilidades de posicionamento

do homem moderno, que são: a de se resignar diante do sem-sentido da vida e do

mundo, assumindo de forma covarde aqueles valores que perderam seu

fundamento (“último homem”99 e “homem superior”100), e a de criar novos

95 Para Nietzsche estas duas formas de niilismo não se opõem. Elas fazem parte de um mesmo processo. Cf. NIETZSCHE, F., Crepúsculo dos ídolos, p. 31-32 (“Como o ‘mundo verdadeiro’ se tornou finalmente fábula: história de um erro”). 96 Sobre o conceito de niilismo em Nietzsche, cf. DELEUZE, G., Nietzsche e a filosofia. Porto: Rés, [s.d], p. 221-223. 97 KÜNG, H., op. cit., p. 534. 98 Cf. MOURA, C.A.R., op. cit. p. 250-257. 99 “Último homem” é o homem do niilismo, aquele que reconhece a ausência total de fundamento dos antigos valores; ele sabe que Deus está morto. Mas, contente ao ver desaparecer toda a coação

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valores voltados para a afirmação da vida (“super-homem”). O primeiro

posicionamento diz respeito a um “niilismo cansado” ou “niilismo passivo”. Já o

segundo posicionamento se refere ao “niilismo da força” ou “niilismo ativo”,

aquele que traz em si a possibilidade de sua superação com a tresvaloração dos

valores101. Ora Nietzsche convida o homem moderno à superação do niilismo

mediante a criação de novos valores.

“Á desvalorização de todos os valores deve seguir um ‘movimento contrário’, uma transmutação de todos os valores”102. “Companheiros, procurem o criador, e não cadáveres; nem tampouco, rebanhos, crentes. Participantes na criação, procurem o criador, escrevam novos valores em novas tábuas”103.

Entretanto, para Nietzsche, a superação do niilismo não acontecerá de

forma espontânea como uma necessidade do movimento da história, nem

tampouco como uma etapa no processo de evolução biológica, nem ainda como

uma práxis revolucionária. Acontecerá, sim, com a afirmação da vida como valor

supremo de toda a existência. No entanto, para isto, segundo Nietzsche, será

necessário o desenvolvimento da “vontade de potência afirmativa”.

2.2.1.3. A vontade de potência Para Nietzsche, toda realidade é “vontade de potência”104. Há em tudo

forças ativas e reativas. As forças ativas tendem para o poder, para a dominação,

e toda exigência, não tenta criar novos valores. Cf. HÉBER-SUFFRIN, P., op. cit., p. 142-143; LEFRANC, J., Compreender Nietzsche. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 205-219. 100 “Homem superior” trata-se do niilista que está informado sobre a morte de Deus, mas não consegue convencer-se imediatamente disso, e continua a agir como se Deus existisse. Ele substitui o fundamento divino dos valores por um fundamento humano, mas a transmutação não se faz e reencontram-se os mesmos valores. Cf. HÉBER-SUFRIN, P., op. cit., p. 144; LEFRANC, J., op. cit., p. 220-229. 101 A distinção entre “niilismo cansado” ou “passivo” e “niilismo forte” ou “ativo” se encontra nos fragmentos póstumos publicados em “A Vontade Potência”. Várias citações de Nietzsche a este respeito podem ser encontradas em KÜNG, H., op. cit., p. 536-537. 102 Frase de Nietzsche citada em KÜNG, H., op. cit., p. 537. 103 NIETZSCHE, F., Assim falou Zaratustra, p. 47 (§ 9 do Prólogo). 104 “Vontade de potência” é um conceito bastante complexo da filosofia de Nietzsche. Trata-se de um conceito que norteia toda a análise genealógica dos valores feita por Nietzsche. No entanto, embora tenha utilizado com freqüência a expressão e o seu sentido em suas obras de maturidade, Nietzsche não dedicou nenhum estudo particular ao tema. Uma concentração de textos sobre o assunto pode ser encontrada na publicação póstuma que recolhe várias anotações e fragmentos de Nietzsche: “A Vontade de Potência”. Uma apresentação sistemática da “vontade de potência” na obra de Nietzsche pode ser encontrada em DELEUZE, G., op. cit., p. 76-103; Cf. também “Vontade de poder”. In: FERRATER MORA, J., Dicionário de filosofia. Tomo IV. São Paulo: Loyola, 2001, p. 3049-3050; HEIDEGGER, M., Nietzsche. Volume II. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 200-206.

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para a superação. Já as forças reativas tendem para a negação, para a

conformidade, porque são forças que se opõem às forças ativas. A “vontade de

potência” é um “querer interno” às forças ativas e reativas. Ela é a orientação da

força para o poder, para a afirmação ou orientação para a negação da própria

força. Daí que a vontade de potência pode ser afirmativa ou negativa105. É

afirmativa quando o “querer interno” à força volta-se para a afirmação da própria

força, e é negativa quando este “querer” se volta contra as forças ativas reagindo

como oposição. Enquanto a “vontade de potência afirmativa” é vontade, desejo,

querer de superação, de mais vida, de mais existência, de mais poder, a “vontade

de potência negativa” é a “vontade de nada”, vontade de negação, vontade de

destruição106. Com relação à vida, a “vontade de potência afirmativa” diz respeito

à “tendência a subir, vitória sobre si mesma, domínio de si mesma, esforço por

mais potência”107, já a “vontade de potência negativa” significa a força desejosa

da negação da vida. Com relação ao ser humano, é “vontade de potência

afirmativa” a afirmação e o desejo de desenvolver ao máximo a vida, mesmo

sendo ela descabida e transitória. Por outro lado, o impor limites à existência,

encarar a vida de forma pessimista, procurar fugir aos desafios da vida, subestimar

a vida em nome de valores tidos como absolutos, negar esta vida em função de

uma vida no além, diz respeito à “vontade de potência negativa”.

De acordo com Nietzsche, por causa da tradição platônico-cristã, impera

no ocidente a “vontade de potência negativa”, sobretudo no âmbito da moral. A

moral ocidental é a moral dos valores hostis à vida. Trata-se de uma moral que

atua em sentido oposto às tendências vitais; uma moral repressora dos instintos,

das paixões, dos desejos, enfim, uma moral antinatural108.

2.2.1.4. O “super-homem” e o eterno retorno

Ora, para Nietzsche, com a “morte de Deus” surge a possibilidade de

afirmação da “vontade de potência afirmativa”109. É, por isso, que em “Assim

105 Esta é uma distinção não aparece nos escritos de Nietzsche. Trata-se de uma distinção apresentada por G. Deleuze. Cf. DELEUZE, G., op.cit., p. 82. 106 Cf. DELEUZE, G., op. cit., p. 61-109. 107 MACHADO, R., op. cit., p. 101. 108 Cf. NIETZSCHE, F., Crepúsculo dos ídolos, p. 33-38 (Capítulo IV: Moral como antinatureza). 109 A tresvaloração dos valores significa uma mudança de qualidade na vontade de poder. Significa a superação da “vontade de potência negativa” pela “vontade de potência afirmativa”. Assim, “os valores, e o seu valor, não derivam já do negativo, mas da afirmação como tal. Afirma-se a vida

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falou Zaratustra”, ele anuncia o “super-homem”. O “super-homem” é a superação

do homem110. Trata-se daquele que se conduzirá pela “vontade de potência

afirmativa”, ou seja, pelo amor à vida, a si mesmo, e à terra; é o homem

convertido em Deus, que ocupará o lugar do Deus desaparecido e morto; é aquele

que criará uma nova escala de valores a partir do “eterno retorno” e do “amor

fati”111.

Com a “morte de Deus”, Nietzsche considera desautorizada a visão

histórico-escatológica do cristianismo. Sem Deus, a história passa a não ter nem

origem nem fim. Ela recebe uma nova concepção: é cíclica. Tudo que aconteceu e

acontece, acontecerá infinitas vezes. Por isso, cada instante da história assume um

caráter de eternidade112.

“Tudo vai, tudo volta; eternamente gira a roda do ser. Tudo morre, tudo refloresce, eternamente transcorre o ano do ser. Tudo se desfaz, tudo é refeito; eternamente constrói-se a mesma casa do ser. Tudo separa-se, tudo volta a encontrar-se; eternamente fiel a si mesmo permanece o anel do ser. Em cada instante começa o ser; em torno de todo o ‘aqui’ rola a bola ‘acolá’. O meio está em toda a parte. Curvo é o caminho da eternidade”113. “Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é infalivelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma seqüência e ordem”114

Diante do eterno retorno do mundo e da vida, o ser humano, segundo

Nietzsche, poderá assumir, como atitude existencial, por um lado, a afirmação da

vida em tudo o que ela tem de bom e ruim, desejando que sempre tudo retorne, ou

poderá, por outro lado, negá-la, rejeitando o retorno115. A primeira reação, para

Nietzsche, consiste no “amor fati” [amor ao destino], naquela atitude dionisíaca

em lugar de depreciá-la, e até a expressão ‘em lugar’ é falível. É o próprio lugar que muda, já não há lugar para um outro mundo”. DELEUZE, G., op. cit., p. 262. 110 Para Nietzsche, o “homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem – uma corda sobre um abismo”. Isto quer dizer que “o homem é algo que deve ser superado”; Ele é apenas transição e não meta. Meta é o “super-homem”. E o “super-homem é o sentido da terra”. Cf. NIETZSCHE, F., Assim falou Zaratustra, p. 36 (Prólogo, §§ 3 e 4). 111 “Amor fati” é a fórmula utilizada por Nietzsche para expressar a aceitação desta vida em sua plenitude, reconhecendo a beleza que a vida é. A este respeito Nietzsche escreve o seguinte: “Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas: - assim me tornarei um daqueles que fazem belas as coisas. Amor fati [amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor”. NIETZSCHE, F., A Gaia Ciência, p. 187-188 (Livro IV, § 276); Cf. NIETZSCHE, F., A vontade de potência, § 1041. In: NIETZSCHE, F., Obras incompletas, p. 393 (Coleção: Os Pensadores). 112 A concepção do eterno retorno aparece pela primeira vez no § 341 de “A Gaia Ciência”, reaparece de modo vago em “Assim falou Zaratustra”, e é elaborada filosoficamente nos chamados “Fragmentos póstumos” ou em “A vontade de potência”. 113 Ibid., p. 259-260 (O convalescente, § 2) 114 NIETZSCHE, F., A Gaia Ciência, p. 230 (§ 341). 115 Cf. Ibid.

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diante da existência, o dizer-sim à vida tal como ela é. Já a segunda reação

consiste no pessimismo, na acusação da existência, na própria negação da vida.

Entretanto, Nietzsche concebe o eterno retorno como seletivo116. Isto quer

dizer que, com relação à atitude existencial, o eterno retorno superará aquele

pessimismo diante da existência por uma afirmação da vida. Aquela segunda

reação diante da eternidade do mundo e da vida não terá lugar no movimento do

eterno retorno, pois “o eterno retorno produz o devir-ativo”117. Ele “elimina do

querer tudo aquilo que cai fora do eterno retorno, faz do querer uma criação,

efetua a equação querer=criar”118. Daí, a possibilidade de aparecimento do “super-

homem”, anunciado por Nietzsche pela boca de Zaratustra. Por causa do eterno

retorno seletivo, o homem decadente, reativo, negador da vida, será substituído

pelo homem de querer criativo.

Destarte, com a concepção de eterno retorno, Nietzsche propõe a

valorização da vida em cada momento da existência. Pois se não existe um fim

para a história, e se cada momento traz em si a presença da eternidade, não

existirá uma meta ideal para a vida. A vida passa a ter validade nela mesma e em

cada acontecimento da existência. Por isso, a noção do eterno retorno implica uma

transformação na atitude diante da existência, uma aprovação da existência tal

como ela é e o desejo de viver outra vez aquilo que já sucedeu119. Se a existência

não possui meta alguma e tudo retorna, o ser humano é impelido a considerar

bom, prazeroso e valioso, mesmo diante das mazelas e dos sofrimentos, cada

instante da existência. Todos os momentos da vida têm igual valor. A vida passa a

ser afirmada no seu conjunto. Deste modo, a afirmação da vida se torna afirmação

do todo da existência e não apenas de um segmento destacado e isolado dela.

Assim, a noção de eterno retorno, além de contradizer a noção cristã de

história, se apresenta como uma crítica dos valores cristãos presentes na

116 Gilles Deleuze interpreta o eterno retorno como seletivo, e, por isso, nem tudo que já aconteceu retornaria. Para ele, as forças reativas e o homem pequeno e pessimista não retornariam. Cf. DELEUZE, G., op. cit., p. 72-109. No entanto, nem todos os especialistas na filosofia de Nietzsche concordam com Deleuze. Alguns negam o caráter seletivo do eterno retorno, interpretando-o como eterno retorno do mesmo. Cf. HEIDEGGER, M., op. cit., p. 214-221; MOURA, C.A.R. de., op. cit., p. 278-283. Por falta de uma análise profunda da obra de Nietzsche e por ser mais adequada com nossa abordagem, assumimos a interpretação de Deleuze sobre o eterno retorno seletivo. 117 DELEUZE, G., op. cit., 107. 118 Ibid., p. 105. 119 A este respeito Nietzsche afirma o seguinte: “Meu ensinamento diz: viver de tal modo que tenhas de desejar viver outra vez, é a tarefa, - pois assim será em todo caso!” NIETZSCHE, F., Obras incompletas, p. 390 (Coleção: Os Pensadores).

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configuração de toda a civilização ocidental. Com o eterno retorno, Nietzsche

quer apresentar, em lugar da negação da vida promovida pela tradição platônico-

cristã, o início de um novo tempo, no qual a existência com suas contradições será

valorizada e desejada em si mesma. Este novo tempo será o do “super-homem”,

aquele que criará novos valores (= tresvaloração dos valores) que expressem não

uma “vontade de nada”, e sim “a vontade de potência afirmativa”.

Desta nossa pequena exposição, fica claro que os temas fundamentais da

filosofia de Nietzsche, articulados com o tema da “morte de Deus”, contêm todos

eles uma relação crítica com o cristianismo. Sua filosofia é a tentativa de

superação dos valores e ideais cristãos por indicações de outros valores que

possibilitem ao ser humano viver centrado em si e “fiel à terra”, e não mais

voltado para o céu ou para realidades idealizadas, das quais Deus é a maior

expressão. Trata-se de uma filosofia que se configura como anti-cristã e que se

propõe como “pós-cristã”.

Tendo cumprido o primeiro objetivo desta seção, resta-nos agora pontuar a

crítica que Nietzsche faz ao cristianismo como negação da vida ou como “vontade

de nada”.

2.2.2. O cristianismo como negação da vida 2.2.2.1. Uma crítica feita em nome da vida

Uma visão negativa do cristianismo perpassa toda a obra filosófica de

Nietzsche120. A polêmica se apresenta tão intensa que Nietzsche chega a

considerar o cristianismo como a “grande maldição” e a “perene mácula da

humanidade”121. Por que este filósofo deprecia tanto o cristianismo em seu

pensamento? Certamente por causa e em nome da vida.

Influenciado pela corrente vitalista de Schopenhauer, Nietzsche

desenvolve uma filosofia em defesa da vida. Para ele, a vida com as suas

contradições é o único valor absoluto, a verdade última ou o bem supremo. Ela é o

critério do verdadeiro e do falso, pois verdadeiro é o que é útil para a vida, e falso 120 Cf. JASPERS, K., Nietzsche et le christianisme. Paris: Minuit, 1949; VALADIER, P., Nietzsche et la critique du christianisme. Paris: Les Éditions de Cerf, 1974; GOEDERT, G., Nietzsche critique des valeurs chrétiennes: souffrance et compaission. Paris: Beauchesne, 1977; Barbuy, B.S., Nietzsche e o cristianismo. São Paulo: GRD, 2005. 121 NIETZSCHE, F., O Anticristo, p. 79-80 (§62).

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é aquilo que a prejudica122. Grande parte da crítica filosófica de Nietzsche

encontra diante da noção de vida sua fundamentação. Quando combate a

metafísica, o racionalismo, as propostas humanistas da modernidade e, sobretudo

o cristianismo, ele o faz em nome da vida.

Nietzsche interpreta a vida como “vontade de potência”123. Para ele, esta

consiste na realidade existencial portadora de uma força dinâmica criadora-

destruidora (=potência) que a impulsiona para o desenvolvimento de “mais vida”.

No entanto, por vida não se deve entender apenas a existência condicionada por

um querer consciente e racional de desenvolvimento e de preservação. Segundo

Nietzsche, a vida significa a existência determinada por todo conjunto biológico

(corporeidade, sentimentos, pulsões, afetos, racionalidade) dinamizado por uma

força própria e natural que não depende totalmente da razão, a “vontade de

potência”. A vida é o movimento instintivo, sem excluir a dimensão da

racionalidade, de “vontade de vida”. “A vida mesma é, para mim – afirma -,

instinto de crescimento, de duração, de acumulação de forças, de poder” 124. Ela

contém uma aspiração de “ser mais”, um desejo por superação de um estado por

outro mais elevado. Ela é movimento, busca de superação, vontade de realização

insaciável.

Para Nietzsche, o símbolo da valorização da vida, que não é harmônica e

sim um movimento de tensões e conflitos, é Dionísio, o deus grego da

exuberância e da desmedida. Dionísio representa, para este pensador, a vida tal

como ela é de fato: como “vontade de potência”, como existência ansiosa e

desejosa de vivenciar as várias possibilidades fornecidas pela própria vida. Por

isso é que ele afirma que o termo “dionisíaco” expressa a atitude existencial de

“dizer-sim ao caráter global da vida...; a grande participação panteísta em alegria e

sofrimento, que aprova e santifica até mesmo as mais terríveis e problemáticas

propriedades da vida; a eterna vontade de geração, de fecundidade, de retorno”125.

O modelo de existência dionisíaca encontra-se, segundo Nietzsche, entre

os gregos pré-socráticos, pois estes encaravam a vida com exuberância, com

122 Cf. KÜNG, H., op. cit., p. 538. 123 Cf. NIETZSCHE, F., Além do bem e do mal, p. 19, 39-40, 154-155 (§§13,36 e 259); Id., Assim falou Zaratustra, p. 143-147 (Do superar a si mesmo). Id., Fragmentos póstumos, 2 [190], KSA, vol. 12, p. 161. 124 Id., O Anticristo, p. 13 (§ 6). 125 NIETZSCHE, F., A vontade de potência, (§ 1050). In: Id. Obras incompletas, p. 393 (Coleção: Os Pensadores).

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prazer, como desejo de viver, a vida como arte; neles havia equilíbrio entre o

apolíneo e o dionisíaco, ou seja, entre a racionalidade e os instintos126. Para

Nietzsche, em oposição a este modo de viver dionisíaco, se encontra toda a

história da civilização ocidental ancorada na depreciação da vida fomentada pela

influência de Sócrates127, de Platão e do cristianismo. Depreciação da vida,

justamente porque a partir de Sócrates e de Platão, esta vida passa a ser medida,

limitada, julgada em nome de valores “superiores” como o Bem, o Belo e o

Verdadeiro. A vida, a partir de então, deixa de ter valor em si mesma. A “vontade

de potência”, o desejo ou ânsia de ser mais, de viver mais, é desviado por valores

que apontam não para a vida real, e, sim, para uma realidade inventada pelo ser

humano.

Por isso, a sua filosofia suspeita das conquistas culturais do ocidente

(racionalismo, ciência, ateísmo, idéia de progresso etc.) exatamente porque os

valores que estão em sua base são valores depreciativos da vida. São valores que

canalizam a força da vida na direção oposta à própria vida. Todavia, o alvo

preferido das suas críticas é o cristianismo.

2.2.2.2. Cristianismo como depreciação da vida

Nietzsche considera de forma negativa o cristianismo. Ele o acusa de ter

popularizado a metafísica socrático-platônica, isto é, de ter difundido à toda uma

civilização a negação desta vida real em nome de uma vida idealizada

supostamente superior. Por isso, afirma ser o cristianismo, “platonismo para o

povo”128. Trata-se do responsável de ter legitimado e configurado toda cultura

ocidental sob o dualismo metafísico dos dois mundos129. Enquanto Sócrates e

Platão desprezaram a vida real em nome de valores “superiores” relacionados ao

“mundo verdadeiro”, o “mundo das essências”, o cristianismo, segundo

Nietzsche, pregou o desprezo da vida terrena em nome da vida eterna, do céu ou

126 Cf. Id., O nascimento da tragédia. In: Id., Obras incompletas, p. 7-15 (Coleção: Os Pensadores). 127 Além de criticar Sócrates por ter criado a metafísica, Nietzsche também o critica por ter estabelecido a ruptura entre “racionalidade” e vida, entre o apolíneo e o dionisíaco, que antes se articulavam de forma harmoniosa. A partir de Sócrates, segundo Nietzsche, a razão se apresenta como “força perigosa, solapadora da vida”. Cf. Id., Ecce homo. Como alguém se torna o que é. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 61-62 (O nascimento da tragédia, §§1-2); Id., Crepúsculo dos ídolos, p. 17-29 (O problema de Sócrates). 128 Cf. Id., Além do bem e do mal, p. 8 (Prólogo). 129 Cf. HEIDEGGER, M., op. cit., p. 60.

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da comunhão definitiva com Deus. Assim, o cristianismo, no seu entender, ao

invés de desenvolver a superioridade desta vida terrena sobre toda e qualquer

outra realidade, promoveu a desvalorização dela por meio da perpetuação do

platonismo130.

Em sua crítica ao cristianismo, Nietzsche concentra seu ataque à moral

cristã, embora critique de forma menos intensa também a teologia. Para ele, o

cristianismo, com sua teologia e sua moral, direciona a “vontade de potência” da

vida contra a própria vida. Esta deixa de ser acolhida, querida e vivida por si

mesma. Ela é reprimida em função de uma ilusão e de uma “má-consciência”

culpabilizante que tende a caluniar tudo nesta vida como negativo e falso. Deste

modo, o cristianismo, segundo Nietzsche, desenvolve a “vontade de nada”. Ou

seja, o cristianismo significa o domínio da “vontade de potência negativa”, aquela

vontade de vida que reage contra a própria vida. Em outras palavras, no

cristianismo, a ânsia de vida eterna, de salvação, que nada mais é que a “vontade

de nada”, dinamiza o cristão numa direção contrária à afirmação e ao

desenvolvimento das possibilidades e potencialidades desta vida real.

2.2.2.2.1. Crítica à leitura teológica da vida Neste sentido, Nietzsche constata que a teologia cristã nada mais é do que

uma releitura depreciativa desta vida. Para ele, a religião cristã ao dar um sentido

e uma finalidade para esta vida, a partir da relação do ser humano com Deus,

realiza a negação dela promovendo um movimento de anseio por algo que na

verdade é o nada hipostasiado. As noções teológicas, para este filósofo, exercem

na vida das pessoas religiosas a diminuição da força da vida ou da vontade de

potência afirmativa. Com isso, o cristão canaliza suas forças para algo que se opõe

à própria vida. Daí, a negação do prazer, dos sentidos, da sexualidade, do valor da

vida individual.

A “teologização da vida”131 ou a sua interpretação teológica produz uma

concepção negativa da própria vida. Isto aparece claramente, segundo Nietzsche,

sob as noções cristãs de “pecado”, de “castigo”, de “culpa”, de “redenção”, de 130 Neste sentido, Nietzsche acusa o cristianismo de não ter ponto algum de contato com a realidade. Para ele, tudo no cristianismo é ilusão e ficção que falseiam, desvalorizam e negam a realidade. Isto porque “todo esse mundo fictício [do cristianismo] tem raízes no ódio ao natural ( - a realidade! -)”. Cf. NIETZSCHE, F., O Anticristo, p. 20-21 (§ 15). 131 Cf. ESTRADA, J.A., Deus nas tradições filosóficas. Vol. II, p. 180-185.

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“salvação”, de “graça”, de “alma”, de “vida após a morte”, entre outras132. Trata-

se, para ele, de noções que não correspondem à realidade, e, igualmente, não

passam de ilusões que apenas caluniam e depreciam a existência133. Quando se

afirma que uma ação humana é pecaminosa, quando se acredita que uma mazela é

castigo de Deus, quando se afirma que o ser humano tende para um fim que é a

salvação celestial, quando se diz que a graça divina transforma o ser humano

pecador, quando se afirma que existe uma alma imortal, se está atribuindo a esta

existência um sentido que, de certo modo, se contrapõe a sua identidade que é

finita, sem sentido, fragmentada e sem finalidade. A interpretação teológica da

vida, que para Nietzsche se apresenta como psicologia imaginária do

cristianismo134, só tende a menosprezar a vida tal como ela é. E isto porque a

atenção que se deveria dar a esta vida é desviada para outra, a vida eterna.

A noção teológica mais criticada por Nietzsche é a do pecado. E isto

porque ele constata que esta noção é central no cristianismo135. Para ele, no

cristianismo tudo o que é humano é colocado sob suspeita por causa do pecado136.

O ser humano, com sua constituição biológica e sua capacidade de ação, é visto

como mau por causa do pecado original. A noção de pecado original concebe o

ser humano como um ser totalmente corrompido, indigno e mau137. Daí, o sentido

da visão cristã negativa da sensualidade e da sexualidade como realidades

marcadas pelo pecado138. Daí, também, o motivo dos tormentos na consciência do

cristão, a saber: remorso, culpabilidade mórbida, tortura de si mesmo, auto-

desprezo, agressividade voltada sobre si mesmo etc. Por isso é que Nietzsche

interpreta o cristianismo como crueldade do ser humano organizada

religiosamente contra ele mesmo139. “O cristianismo é a metafísica do

132 Cf. NIETZSCHE, F., O Anticristo, p. 20-21 (§ 15). 133 Ibid. 134 Ibid. 135 Cf. NIETZSCHE, F., A Gaia ciência, p. 152-153 (§ 135); Id., Humano demasiado humano. Um livro para espíritos livres. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 95, 102-103, 108-111 (§§ 117, 133 e 141); Id., Aurora. Reflexões sobre os preconceitos morais. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 31-32 (§ 29); Id., Genealogia da moral. Uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 117-119, 128-131 (Terceira dissertação: §§ 16 e 20); Id. O Anticristo, p. 58-59, 79 (§§ 49 e 62). 136 Cf. Id., Humano demasiado humano, p. 109 (§ 141). 137 Cf. Ibid., p. 94-95 (§ 114). 138 Cf. Ibid., p. 108-111 (§ 141); Id., Aurora, p. 59-60 (§ 76); Id., Além do bem e do mal, p. 72 (§ 168). 139 Cf. Id., Além do bem e do mal, p. 121-122 (§ 229); Id., Genealogia da moral. Uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 50-59 (Segunda dissertação, §§ 3-7).

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carrasco...”140. Em outros termos, no cristianismo, segundo este filósofo, há uma

lógica, maquiada pela argumentação teológica, que tende a canalizar a crueldade

do ser humano contra si mesmo de forma masoquista e contra o outro como um

sadismo.

Nietzsche considera que sob a noção de pecado se desenvolve uma

consciência doentia e também uma neurose. A consciência doentia é produzida

quando se estabelece a relação entre infelicidade e culpa ou entre pecado e

castigo, pois o cristão “em tudo o que sucede de mau, sente-se moralmente

reprovado e reprovável”141. Já a neurose se dá por causa da noção de pecado

somada ao anseio por salvação. Para alcançar a salvação, o cristão renuncia de

forma doentia ao que constitui esta vida, porque a vê como realidade marcada

pelo pecado142. Esta renúncia, da qual o santo é a melhor expressão, se traduz,

segundo constatação de Nietzsche, por uma compulsão de penitência, por uma

negação do mundo, fuga mundi, e por uma negação da vontade143.

Além do mais, para ele, a noção cristã de pecado, que se fundamenta na

comparação entre o ser humano e Deus, é bastante depreciativa do potencial de

ação do ser humano, pois o cristão se mede em comparação a Deus. Sendo Deus,

infinita perfeição, o cristão se vê como infinitamente inferior a Deus. Deste modo,

tende obedecer à vontade divina. Não fazendo isto, comete pecado. Sua

autodeterminação da vontade ou a sua liberdade, sob a imposição do “tu deves”,

fica impedida pela fé em Deus144. A própria noção de livre arbítrio, segundo

Nietzsche, é uma noção teológica para culpar o ser humano pelo exercício de sua

liberdade145. Assim, a idéia de Deus é fundamental para a noção de pecado e,

concomitantemente, é limitação para a ação ou a vontade humana146. Por isso,

“acabando a idéia de Deus, acaba também o sentimento do ‘pecado’, da violação

de preceitos divinos, da mácula numa criatura consagrada a Deus”147. Acaba ainda

a censura para a atuação da vontade ou da liberdade humana.

Deste modo, fica claro que, para Nietzsche, a interpretação teológica da

vida “surge como um protesto para escapar à caducidade humana e dar-lhe um 140 Id., Crepúsculo dos ídolos, p. 46 (§ 7). 141 Cf. Id., Aurora, p. 62-63 (§ 78). 142 Cf. Id., Humano demasiado humano, p. 100-101 (§ 132). 143Cf. Id., Além do bem e do mal, p. 49-50 (§ 47). 144 Cf. Id., A Gaia ciência, p. 240-241 (§ 347). 145 Cf. Id., Crepúsculo dos ídolos, p. 45-46 (Os quatro grandes erros, § 7). 146 Cf. Id., A Gaia ciência, p. 240-241 (§ 347). 147 Id., Humano demasiado humano, p. 103 (§ 133).

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significado infinito”148. Trata-se do “reverso da incapacidade para aceitar a

finitude humana, que tende a negativizar a vida real, a simplificar a complexidade

do real e as contradições da existência, e refugiar-se em um outro mundo de além

túmulo que, em última instância, não é mais que uma hipostaziação do nada”149.

2.2.2.2.2. Crítica à moral cristã

Além da “teologização da vida”, Nietzsche critica de forma mais intensa e

sistematizada a moral cristã150. Trata-se de uma crítica complexa que implica

vários enfoques. O que nos interessa é o enfoque que dá à moralidade cristã como

negação da vida. Neste sentido, sua crítica à moralidade cristã pode ser resumida

em três acusações. Primeiro, trata-se de uma moral anti-natural ou ascética,

porque se fundamenta em valores metafísicos contrapostos à realidade151.

Segundo, diz respeito à moral de ressentimento, porque tem origem na reação

vingativa dos “fracos”, dos sacerdotes, dos escravos, ao espírito guerreiro e

dionisíaco dos “fortes”, dos “senhores”152. Terceiro, consiste numa moral

dominada pela “má-consciência” e pela “culpabilização”153. Interessa-nos

apresentar, de modo sucinto, esta crítica que Nietzsche dirige à moral cristã com o

objetivo de perceber em que sentido ela se opõe à vida.

Nietzsche concebe a moral cristã como hostilidade ao que é natural, à

própria vida. Pois se trata da moral que impõe valores não inspirados na vida e

nem voltados para a afirmação dela; é a moral “de condenação, ora secreta, ora

ruidosa e insolente, dos instintos de vida”154; é a moral fundamentada na “negação

da vontade de vida” ou no “instinto de décadence” 155. Na moral cristã, segundo

Nietzsche, as paixões e os desejos (sensualidade, orgulho, avidez de domínio,

ânsia de vingança) são atacados como realidades negativas. “Mas atacar as

paixões pela raiz significa atacar a vida pela raiz: a prática da Igreja é hostil à

148 ESTRADA, J.A., op. cit., p. 182. 149 Ibid. 150 A crítica da moralidade cristã feita por Nietzsche tem início em Humano, demasiado humano, e é desenvolvida, especialmente em Aurora, Crepúsculo dos ídolos, Genealogia da moral e em O Anticristo. 151 Cf. NIETZSCHE, F., Crepúsculo dos ídolos, p. 33-38 (Moral como anti-natureza); Id., Genealogia da moral, p. 87-149 (Terceira dissertação). 152 Cf. Id., Genealogia da moral, p. 17-46 (Primeira dissertação). 153 Cf. Ibid., p. 47-85 (Segunda dissertação). 154 Id., Crepúsculo dos ídolos, p. 36 (§ 4). 155 Ibid., p. 37 (§ 5).

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vida...”156. A moral cristã hostiliza a vida, porque os conceitos que a norteiam são

conceitos concebidos como antítese desta vida com toda sua complexidade.

“Que sentido têm aqueles conceitos mentirosos, os conceitos auxiliares de moral, ‘alma’, ‘espírito’, ‘livre-arbítrio’, ‘Deus’, senão o de arruinar fisiologicamente a humanidade?... Quando se retira a seriedade da autoconservação, da fortificação do corpo, ou seja, da vida, quando se faz da anemia ideal, do desprezo ao corpo a ‘salvação da alma’, que é isto, senão uma receita de décadence?– A perda do centro de gravidade, a resistência aos instintos naturais, em uma palavra, a ‘ausência de si” – a isto se chamou moral até agora...”157.

Nietzsche não deixa de considerar como problema fundamental da moral

cristã sua fundamentação sob o ideal ascético criado por uma “vontade de nada”

ou por uma “vontade de potência” orientada contra a própria vida158. Por meio de

uma investigação genealógica, constata que a configuração do ideal ascético da

moral cristã, como também de toda moralidade ocidental, tem origem na classe

sacerdotal, que se impôs na construção da “moral dos escravos”, em oposição à

“moral dos senhores”. Assim, o ideal ascético expressa a vontade ou o interesse

do sacerdote. E como para o sacerdote esta vida só tem sentido se colocada em

relação com uma outra existência considerada a mais valiosa, esta vida, frágil e

passageira, deve ser negada para servir de ponte para a outra, a vida eterna. Em

nome de uma outra vida, o sacerdote prega a negação desta. Portanto, ideal

ascético significa hostilidade a esta vida em vista de uma outra existência;

significa, nas próprias palavras de Nietzsche,

“esse ódio ao que é humano, mais ainda ao que é animal, mais ainda ao que é matéria, esse horror aos sentidos, à razão mesma, o medo da felicidade, da beleza, o anseio de afastar-se do que seja aparência, mudança, morte, devir, desejo, anseio – tudo isto significa, ousemos compreendê-lo, uma vontade de nada, uma aversão à vida, uma revolta contra os mais fundamentais pressupostos da vida...”159. Desta forma, Nietzsche vai à origem da moralidade cristã e constata que

ela se opõe, em seus valores, a esta vida, a esta existência por causa de sua

centralidade sobre o ideal ascético, próprio da mentalidade sacerdotal que tem sua

expressão maior no sacerdócio judaico.

Ademais, este filósofo, pautado na investigação genealógica, chega à

conclusão de que a moral cristã é uma moral de ressentimento. A origem da moral

156 Ibid., p. 34 (§ 1). 157 Id., Ecce homo, p. 80 (Aurora: pensamentos sobre a moral como preconceito, § 2). 158 Cf. Id., Genealogia da moral, p. 87-149 (Terceira dissertação). 159 Ibid., p. 149 (Terceira dissertação, § 28).

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cristã está na “moral de escravos”, que acaba triunfando sobre o outro tipo de

moralidade, a “moral dos senhores”160. No seu entender, a moral cristã se

configura como negação da vida porque sua origem se encontra no ódio ressentido

daqueles que viviam covardemente a vida contra aqueles que assumiam a vida

com todos os seus riscos e possibilidades.

Nos primórdios da civilização ocidental, segundo Nietzsche, se

configuraram dois tipos de moralidade, a dos “senhores” (= aqueles que

glorificavam a vida e a si mesmos e a partir disso criavam valores), e a “dos

escravos” (= aqueles que encaravam a vida de forma pessimista e necessitavam de

valores para aliviar o peso da existência)161. A primeira é afirmativa da vida tal

como ela é. É afirmação dos desejos, das paixões e corresponde ao querer-

dominar, ao querer-vencer, ao querer-subjulgar. É a moral do orgulho, da

generosidade e do individualismo. Trata-se de uma moral ativa, porque nasce da

afirmação de si mesma. É a moral dos guerreiros, desenvolvida particularmente na

Grécia do período pré-socrático e na Roma antiga. Já a “moral dos escravos” é

uma moral reativa, ou seja, aquela que se afirma negando ou se opondo à

valoração da “moral de senhores”; é aquela moral que se fundamenta no ódio, no

sentimento de vingança e no ressentimento contra a outra moralidade e seus

representantes162.

Enquanto que para a “moral de senhores” a noção básica do “bom” se

identifica aos nobres, aos poderosos, aos superiores em posição e pensamento, e

ao modo como estes experimentam a existência163, na “moral de escravos”, o

“bom” é uma noção criada em oposição ao que é “bom” da “moral de senhores”.

Ou seja, para a moral do ressentimento, é “mau” “precisamente o ‘bom’ da outra

moral, o nobre, o poderoso, o dominador, apenas pintado de outra cor,

interpretado e visto de outro modo pelo olho e veneno do ressentimento”164.

Assim, a “moral de escravos” configura sua valoração em oposição odiosa e

caluniadora aos valores da outra moral. É moral do ressentimento, a “moral dos

escravos”, exatamente porque ela é a valoração das forças reativas, ou seja,

valoração daquelas forças que limitam as forças de ação. Trata-se, segundo

160 Cf. Ibid., p. 17-46 (Primeira dissertação). 161 Cf. Ibid., p. 17-46 (Primeira dissertação). Nietzsche estabelece uma distinção entre estes dois tipos de moralidade em Além do Bem e do mal, p. 155-158 (§ 260). 162 Cf. Id., Genealogia da moral, p. 28-31 (Primeira dissertação, § 10). 163 Cf. Ibid., p. 19 (Primeira dissertação, § 2). 164 Ibid., p. 32 (Primeira dissertação, § 11).

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Nietzsche, daquela moral desenvolvida pelo povo judeu, “o povo sacerdotal do

ressentimento par excellence” 165.

Nietzsche considera a “moral de escravos” como negativa. Isto porque ele

a compreende com uma moral que impõe valores que obstaculizam o

desenvolvimento das forças ativas da vida de cada indivíduo, porque ela se

fundamenta em oposição àquela moralidade, a “moral de senhores”, que assume

como valor a própria vida com sua “vontade de potência” e a sua glorificação. A

“moral de escravos”, para Nietzsche, é a moral dos “ressentidos”, dos “fracos”,

daqueles que precisam de valores como meios de suportar a pressão da

existência166. A partir do ressentimento dos “escravos”, do espírito de vingança,

esta moral cria os seus valores como antítese às forças ativas da vida

desenvolvidas pela “moralidade de senhores”. Humildade, obediência, paciência,

amor aos inimigos e compaixão são valores gerados pelo ressentimento; são

valores que afirmam, mediante o ódio e a vingança, a vitória dos “fracos” ou dos

“escravos” sobre os “fortes” ou os “senhores”167.

A “moral de escravos”, segundo Nietzsche, se expressa na moral cristã. Ou

sendo mais preciso, a moral cristã é o triunfo da “moral de escravos” sobre a

“moral de senhores”. Deste modo, considera que a moral cristã consiste naquela

moralidade que, tendo como base o ressentimento, procura tornar a existência

mais aceitável e suportável a partir de uma valoração negativa desta vida168.

“No cristianismo, os instintos dos sujeitados e oprimidos vêm ao primeiro plano: são as classes mais baixas que nele buscam sua salvação (...) Cristã é a hostilidade de morte aos senhores da Terra, aos ‘nobres’ – e, ao mesmo tempo, uma oculta, secreta concorrência (- deixam-lhes o ‘corpo, querem apenas a ‘alma’...). Cristão é o ódio ao espírito, ao orgulho, coragem, liberdade, libertinage do espírito; cristão é ódio aos sentidos, às alegrias dos sentidos, à alegria mesma...”169 “Em minha Genealogia da moral expus pela primeira vez, em termos psicológicos, os conceitos antitéticos de uma moral nobre e uma moral de ressentiment, esta se originando do Não àquela: mas esta última é pura e simplesmente a moral cristã. Para poder dizer Não a tudo o que constitui o movimento ascendente da vida, a tudo o que na Terra vingou, o poder, a beleza, a auto-afirmação, o instinto do ressentiment, aqui tornado gênio, teve de inventar

165 Ibid., p. 44 (Primeira dissertação, § 16). 166 Cf. Id., Além do bem e do mal, p. 155-158 (§ 260). 167 Cf. Id., Genealogia da moral, p. 37-39 (Primeira dissertação, § 14). 168 Nietzsche considera o cristianismo como a religião do ressentimento. E isto é devido a Paulo de Tarso – que para Nietzsche é o verdadeiro fundador do cristianismo -, que movido pelo ódio e pela vingança, distorceu profundamente a mensagem de Jesus, criando toda uma valoração moral fundamentada no instinto de ressentimento do sacerdócio judaico. Cf. Id., O Anticristo, p. 48-51 (§§ 41-43); Id., Aurora, p. 52-55 (§68). 169 Id., O Anticristo, p. 26 (§ 21).

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um outro mundo, a partir do qual a afirmação da vida apareceu como o mau, como o condenável em si”170. Na compreensão de Nietzsche, tudo o que aponta para a dinâmica de

desenvolvimento das forças ativas da vida (=vontade de potência afirmativa) é

avaliado como negatividade pela moral cristã, que apenas defende e promove a

fraqueza, o declínio da vontade de poder171. É por isso que Nietzsche considera os

valores morais cristãos como valores de décadence ou de deteriorização do

homem172. Neste sentido, ele não deixa de criticar aqueles que são considerados os

valores morais mais expressivos do cristianismo, a saber: a compaixão

(=piedade)173 e o amor ao próximo174. A compaixão, para ele, “se opõe aos afetos

tônicos, que elevam a energia de vida: ela tem efeito depressivo”175. Ela é

“instinto depressivo e contagioso que entrava os instintos que tendem à

conservação e elevação do valor da vida”176. O amor ao próximo, por sua vez, é a

negação do amor a si próprio; é canalização da “vontade de poder” contra o querer

individual; é a “santificação do tu” e o desprezo do eu.

Além de tudo isso, Nietzsche considera que a moral cristã é negação da

vida porque se trata de uma moral que desenvolve a “má consciência”177. Em

“Genealogia da Moral”, Nietzsche, ao investigar a origem desta “coisa sombria”

que é a “má consciência”, constata que o cristianismo a desenvolveu

enormemente sob o sentimento de culpa relacionado a Deus178. No cristianismo,

segundo ele, o homem aparece sempre como um devedor de Deus, um culpado,

um ser totalmente indigno. Isto se dá porque o homem interpreta seus instintos de

agressividade, de crueldade “como culpa em relação a Deus” e como culpa

voltada contra a própria pessoa. Por isso estes instintos são reprimidos. Ora, uma

vez reprimidos, eles se voltam contra o próprio homem como uma vontade

170 Ibid., p. 29-30 (§ 24). 171 Cf. Ibid., p. 11-13 (§§ 2-6). 172 Cf. Ibid., p. 12-13 (§ 6). 173 Cf. Id., Aurora, p. 102-107 (§§ 133-139); Id., O Anticristo, p. 13-14 (§ 7). 174 Id., Crepúsculo dos ídolos, p. 87 (Incursões de um extemporâneo, § 37); Id., Assim falou Zaratustra, p. 87-88 (Do amor ao próximo). 175 Id., O Anticristo, p. 13 (§ 7). 176 Ibid., p. 14 (§ 7). 177 Nietzsche entende por “má-consciência”, a vontade do ser humano por maltratar-se a si mesmo. Trata-se da conseqüência da repressão dos instintos humanos de agressão, de crueldade e de hostilidade que se interiorizam e se voltam contra o próprio indivíduo. Em outras palavras, “má consciência” é a crueldade do ser humano contra si próprio. Cf. Id., Genealogia da Moral, p. 72-74, 80-82 (Segunda dissertação, §§ 16 e 22). 178 Cf. Ibid., p. 47-85, especialmente p. 72-85 (Segunda dissertação, especialmente §§ 16-25).

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doentia de se castigar, de se maltratar, de se condenar e de se culpar. Trata-se da

“má consciência”, daquela “crueldade psíquica”, do ressentimento direcionado

contra a própria pessoa fazendo-a enxergar a sua vida como algo sem valor, como

pura negatividade179.

Nietzsche defende a tese de que a “má consciência” desenvolvida pelo

cristianismo tem origem no sacerdote ascético do judaísmo. Foi o sacerdote

ascético, segundo a análise genealógica de Nietzsche, que transformou o

sentimento de culpa em pecado para dar uma explicação ao sentido do sofrimento

ao longo da existência humana180. O sofrimento interpretado como conseqüência

do pecado ou como punição por causa do pecado é herança judaica que o

cristianismo desenvolveu como uma mensagem fundamental. Por causa disso,

afirma que o cristianismo é a deturpação da mensagem do “evangelho”, ou seja,

da mensagem de Jesus181. Pois Jesus não pregou a centralidade do pecado. Pelo

contrário, a verdadeira “boa nova” é a negação da doutrina judia do pecado.

“Não se acha, em toda psicologia do ‘evangelho’, o conceito de culpa e castigo; nem o conceito de recompensa. O ‘pecado’, qualquer relação distanciada entre Deus e homem, está abolido – justamente isso é a ‘boa nova’. A beatitude não é prometida, não é ligada a condições: é a única realidade – o resto é signo para dela falar...”182. “O que foi liquidado com o evangelho foi o judaísmo dos conceitos ‘pecado’, ‘perdão dos pecados’, ‘fé’, ‘redenção pela fé’ – toda doutrina eclesiástica judia foi negada na ‘boa nova’”183.

Deste modo, Nietzsche condena a moral cristã por ser uma moral dolorista

ou culpabilizante devido a seu centralismo sob a noção teológica de pecado ou

culpa. Além de seu ascetismo, a moral cristã, nascida do ressentimento, diminui a

“vontade de vida” porque, condicionada pela “má-consciência”, direciona a

agressividade ou crueldade dos instintos humanos contra o próprio ser humano.

179 Cf. Ibid., p. 80-82 (Segunda Dissertação, § 22). 180 Cf. Ibid., p. 129-131 (Terceira Dissertação, § 20); Id., O Anticristo, p. 58-59 (§ 49). 181 Em “O Anticristo”, Nietzsche apresenta uma visão simpática de Jesus. Para ele, Jesus foi um homem que viveu a vida com intensidade e que ensinou, mediante a sua prática de vida, como “alguém pode sentir-se ‘divino’, ‘bem-aventurado’, ‘evangélico’, a qualquer momento um ‘filho de Deus’”; ensinou, em outras palavras, “como alguém deve viver a fim de sentir-se ‘no céu’, sentir-se ‘eterno’”. Para ele, portanto, a mensagem de Jesus consiste em sua prática de vida que ensina a enxergar esta vida como algo valoroso. Cf. Id., O Anticristo, p. 40-41 (§ 33). Entretanto, Nietzsche constata que no cristianismo todo o “evangelho” foi distorcido pela mentalidade judaica do ascetismo e do ressentimento. Por isso é que ele afirma que “no fundo, houve apenas um cristão, e ele morreu na cruz. O que desde então se chamou ‘evangelho’ já era o oposto daquilo que ele viveu: uma ‘má nova’, um disangelho”. Ibid., p. 45 (§ 39). 182 Id., O Anticristo, p. 40 (§ 33). 183 Ibid., p. 41 (§ 33).

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Está claro, de tudo que apresentamos até aqui, que é em nome da vida que

Nietzsche critica o cristianismo sob o enfoque axiológico. Tudo o que constitui o

cristianismo, segundo seu entender, consiste em ser depreciação da vida.

Principalmente porque o cristianismo se origina da metafísica platônica e do

ascetismo e do ressentimento do sacerdote judaico. Por isso, os valores cristãos

não favorecem a humanização do ser humano; são valores que deslocam o valor

desta vida para uma outra, a vida idealizada ou divinizada fazendo com que a

“vontade de potência” se canalize para o “nada”. Além disso, como já afirmamos,

trata-se de valores que direcionam a crueldade do ser humano contra si mesmo.

Para Nietzsche, o ser humano só desenvolve suas potencialidades amando

esta vida tal como ela é, a saber, sem finalidade, sem sentido, única, complexa.

Deste modo, humanização, segundo ele, consiste na vontade de superar a si

mesmo constantemente. Trata-se, em outras palavras, de constituir a existência

como aceitação jubilosa da vida mediante o “sim” absoluto em face do devir;

equivale a assumir a vida como “vontade de potência afirmativa”, isto é, a vontade

de viver tudo aquilo que esta única vida proporciona com todas as suas

possibilidades.

Humanização, para Nietzsche, é sinônimo de “super-homem”. Entretanto,

para que o ser humano se humanize ou para que ele se torne “super-homem” é

necessário que o paradigma platônico-cristão seja superado. Pois, no seu entender,

somente quando esta vida ou esta existência for considerada como o único valor

absoluto é que o “super-homem” aparecerá. E isto os valores pregados pelo

cristianismo têm impedido até então.

Portanto, no pensamento de Nietzsche, o cristianismo impede a

humanização, porque impede o ser humano de valorizar esta vida com o espírito

dionisíaco. O cristianismo obstaculiza o surgimento do “super-homem”.

2.3. A crítica de Sigmund Freud Além de Feuerbach, de Marx e de Nietzsche, Freud é um outro expoente

do ateísmo humanista que não pode deixar de ser mencionado no que se refere à

crítica ao cristianismo. Sua visão do fenômeno religioso apresenta-se como uma

crítica relevante de toda a religião, inclusive a cristã, como sendo um artifício

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psíquico que mantém o ser humano sob o véu da infantilidade impedindo o seu

amadurecimento psicológico.

Da mesma forma que os outros ateus humanistas, o fundador da

Psicanálise, como representante da mentalidade moderna determinada pelo

espírito positivista184, além de desconsiderar a possibilidade de afirmação da

existência de Deus como um ser pessoal independente do homem, também

desconfia do valor humanizante da religião. Com efeito, sua novidade na

consideração da temática da religião se encontra na abordagem psicológica. Freud

analisa o fenômeno religioso a partir dos elementos que constituem a dinâmica do

psiquismo humano na tentativa de explicá-lo sob a ótica científico-positivista.

Desta forma, chega à conclusão de que a religião tem sua origem no complexo de

Édipo e se configura como um tipo de perpetuação do culto paterno infantil. Para

ele, Deus é concebido como a projeção inconsciente da figura paterna e a religião

é vista como uma construção do psiquismo com a intenção de realizar os desejos

infantis do ser humano com relação à figura do pai. Para Freud, portanto, a

religião consiste numa projeção no mundo exterior de um psiquismo humano que

não atingiu sua maturidade.

Esta interpretação da religião leva em conta alguns pressupostos. O

primeiro deles consiste em sua posição ateísta. De acordo com os biógrafos, Freud

cresceu sem nenhuma fé em Deus185. Na infância, duas experiências parecem tê-lo

marcado negativamente com relação à religião186. A primeira diz respeito à sua

babá, uma idosa e gentil católica tcheca, que lhe transmitia “as verdades do

catolicismo” e o levava consigo para assistir às missas187. A segunda experiência

está ligada ao anti-semitismo. Por ser judeu, sofria diariamente na escola

humilhações de toda sorte por parte de “cristãos”188. No entanto, o que parece

determinante para seu ateísmo foi a sua formação acadêmica profundamente

184 Sobre a tendência positivista de Freud, cf. CAPRA, F., O ponto de mutação, p. 168-179; PALMER, M., Freud e Jung. Sobre a religião. São Paulo: Loyola, 2001, p. 18-21. 185 Cf. JONES, E., A vida e a obra de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1989; GAY, P., Freud. Uma vida para o nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; Id., Um judeu sem Deus. Porto Alegre: Imago, 1992. 186 Cf. KÜNG, H., Freud e a questão da religião. Campinas: Verus, 2005, p. 16-17. 187 Cf. RIZZUTO, A.M., Por que Freud rejeitou Deus? Uma interpretação psicodinâmica. São Paulo: Loyola, p. 137-140. 188 Cf. KÜNG, H., op. cit., p. 17.

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marcada pela ideologia científico-materialista189. Isto significa dizer que procurou

rejeitar a Deus por causa, sobretudo, de sua mentalidade científica.

O segundo pressuposto está ligado ao divã e diz respeito à prática analista

com a sua interpretação dos fenômenos psíquicos dos pacientes analisados. Freud

procura explicar cientificamente, a partir de sua técnica psicológica e dos casos

por ele analisados, o significado, a gênese e o dinamismo do fenômeno religioso.

A sua concepção religiosa parte da experiência adquirida como psicanalista. O

interesse pelo tema da religião certamente se relaciona com o objetivo de suas

análises terapêuticas, que pode ser resumido no desejo de libertar seus pacientes

de suas doenças psíquicas. Para ele, a religião se apresenta como expressão de

anomalias psíquicas que precisam ser tratadas para que a pessoa possa

desenvolver sadiamente sua psicologia.

O terceiro pressuposto consiste na antropologia freudiana. A descoberta do

inconsciente e do processo de funcionamento do aparelho psíquico (Ego, Id e

Superego), mais a descoberta da libido e de suas fases de desenvolvimento,

levaram Freud a uma nova concepção do psiquismo humano, da estruturação da

personalidade e, assim, do próprio ser humano. Contrariando toda a tradição do

cogito e desferindo um golpe decisivo sobre a auto-suficiência humana190, Freud

vê o ser humano como marcado profundamente, desde a infância, pelo primado da

pulsão sexual (=libido) e também pela forte influência do inconsciente. Por isso,

para ele, o ser humano consiste num ser instintivo, de desejos e toda sua estrutura

psíquica depende das experiências libidinais da infância em relação com a figura

paterna.

Assim, é a partir de experiências negativas da religião, das análises

psicanalíticas e de descobertas sobre o psiquismo que Freud encontra o

fundamento de sua compreensão da religião. Para ele, esta nada tem a ver com

189 Cf. Ibid., p. 12-24. 190 O próprio Freud considerou a psicanálise como a terceira grande ferida provocada contra o narcisismo humano ao longo da história do pensamento. A primeira ferida se deve à revolução copernicana que fez com que o homem deixasse de se situar como centro do universo. A segunda consiste naquela provocada pelo evolucionismo darwiniano que fez com que o ser humano fosse visto como um organismo complexo, entre outros, dentro da dinâmica da evolução biológica. Já a psicanálise se configura como a terceira ferida ao narcisismo humano, porque a partir dela se constata que o homem já não mais pode considerar-se como “senhor de si mesmo”, pois o inconsciente e as forças instintivas condicionam e determinam grandemente o nosso agir e a nossa configuração como pessoas. Cf. FREUD, S., Uma dificuldade no caminho da psicanálise. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1995, p. 149-151.

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uma divindade transcendente. Trata-se de uma criação simplesmente humana. Sua

origem está no complexo de Édipo e nos desejos relacionados à figura paterna; e

sua natureza e finalidade consistem em um sistema ilusório de satisfação dos

desejos humanos à margem da realidade.

Entretanto, embora assumindo o ateísmo e o positivismo científico, Freud

concede ao tema da religião uma atenção considerável em suas obras. É possível

encontrar referências ao tema diluídas em grande parte dos seus escritos191. Em

alguns, chega até a se dedicar de uma forma mais pormenorizada192. Nestes

escritos aparecem duas chaves de leitura para a compreensão da religião: ela é

interpretada como “neurose obsessiva” e como “ilusão”193.

Nesta seção queremos apresentar de forma sucinta a concepção de Freud a

respeito da religião e, ao mesmo tempo, destacar a sua crítica ao fenômeno

religioso como uma construção do psiquismo humano que impede a maioridade

psicológica da pessoa. A seção constará de duas partes. Na primeira vamos

resgatar a sua compreensão da religião como “neurose obsessiva”, e, na segunda,

daremos destaque a sua interpretação da religião como “ilusão”.

2.3.1. A religião como neurose

O primeiro escrito de Freud que versa sobre o tema da religião de forma

mais explícita consiste num artigo, publicado em 1907, intitulado “Atos

obsessivos e práticas religiosas”. Neste opúsculo, Freud apresenta, pela primeira

vez, o fenômeno da “neurose obsessiva” como chave interpretativa para a

religião194.

191 Carlos Domíngues Morano apresenta uma análise de todos os textos de Freud a respeito do tema da religião. É impressionante constatar que uma variedade grande dos escritos de Freud aborda esse tema. Cf. MORANO, C.D., El psicoanálisis freudiano de la religión. Análisis textual y comentario crítico. Madri: Ediciones Paulinas, 1991. 192 As obras de Freud que mais dão atenção à temática religiosa são as seguintes: “Atos obsessivos e práticas religiosas” (1907), “Totem e Tabu” (1913), “O futuro de uma ilusão” (1927), “O mal-estar na civilização” (1930 [1929]), “A questão de uma Weltanschauung” (1933) e “Moisés e o monoteísmo – Três ensaios” (1939 [1934-1938]). 193 Cf. RICOUER, P., op. cit., p. 194; MORANO, C.D., Crer depois de Freud. São Paulo: Loyola, 2003, p. 35. 194 Para Freud, a neurose é a conseqüência de uma série de fenômenos psíquicos. Em “Moisés e o monoteísmo”, ele apresenta a seguinte fórmula para o desenvolvimento de uma neurose: trauma primitivo (impressões de cunho sexual e agressivo experimentadas na infância e mais tarde esquecidas), defesa (repressão destas impressões, pelo superego, para que elas não sejam recordadas nem repetidas), latência (período em que estas impressões ficam ocultadas e reprimidas), desencadeamento da doença neurótica (sintomas de anomalia psíquica conseqüentes

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Antes deste artigo, o tema da religião aparece associado aos estudos sobre

a neurose histérica195. Nesses estudos, Freud percebe que a experiência religiosa,

que se expressa como delírios e devoções religiosas exageradas, aparece como

fator repressor do mundo dos desejos e das pulsões do indivíduo. Os atos

religiosos pessoais se configuram como expressão sintomática do recalcamento

pulsional contribuindo para o surgimento de neuroses. Mais tarde, esta visão é

enriquecida com as análises dos casos de neurose obsessiva. A partir do estudo

desses casos, constata que as expressões religiosas não se configuram apenas

como força de controle sobre os desejos básicos do indivíduo – fundamentalmente

aqueles relacionados à figura paterna -, mas também como expressões camufladas

destes mesmos desejos e dos sentimentos de culpa deles derivados. Por isso, nas

práticas religiosas encontram-se conjugados o desejo de satisfazer os impulsos

sexuais reprimidos no inconsciente e a sua proibição mediante certos interditos.

Processa-se nestas práticas uma “formação de compromisso” entre a proibição e o

desejo196. Isto quer dizer que na religião o indivíduo ao mesmo tempo em que

encontra regras e normas para manter reprimidos os desejos, também os realiza de

forma camuflada nas práticas religiosas. Os desejos relacionados ao complexo de

Édipo - desejo de viver constantemente sob a proteção do pai, de se revoltar

contra ele e o desejo de “possuir a mãe” – são abafados pelos preceitos sociais e

também religiosos, mas na prática individual da religião, a pessoa encontra

oportunidade para realizar esses desejos de uma outra forma. Por exemplo, o

desejo de proteção constante do pai pode se encontrar manifesto na prática da

oração, na qual a pessoa acredita que Deus pode protegê-la constantemente dos

perigos, dos males e das desventuras da existência de uma forma mágica.

Portanto, encontramos nas práticas da religião, segundo Freud, um jogo de

do trauma primitivo), retorno parcial do reprimido (re-aparecimento do trauma primitivo sob uma nova forma na configuração da personalidade da pessoa). Cf. FREUD, S., Moisés e o monoteísmo. Três ensaios. In: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XXIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 87-95. Em “Atos obsessivos e práticas religiosas”, Freud não havia ainda estabelecido esta fórmula para o desenvolvimento das neuroses. É à medida que vai investigando as causas da neurose obsessiva que vai também relacionando a neurose com a religião. Por isso, neste escrito de 1907, Freud não apresenta ainda uma identidade entre neurose e religião. Mas a partir deste texto estabelece o seu marco de interpretação para o fenômeno religioso. 195 Cf. FREUD, S., Estudos sobre a histeria. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. II. Rio de Janeiro: Imago, 1995. Sobre a relação entre religião e neurose histérica, Cf. MORANO, C.D., El psicoanálisis freudiano de la religión, p.27-54; Id., Crer depois de Freud, p. 35-36. 196 Sobre a “formação de compromisso” entre desejo e proibição, cf. Id., Crer depois de Freud, p. 36-37.

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repressão e expressão dos desejos. O problema disso é que, dessa forma, a religião

mantém o indivíduo atrelado à fase infantil do desenvolvimento da psicologia

humana.

Para entendermos isto é necessário fazer uma breve explicação de como a

neurose e a religião, na perspectiva do indivíduo, surgem do complexo edipiano.

Freud postula como núcleo de cada caso de neurose os impulsos sexuais infantis

relacionados com a figura do pai e da mãe. Segundo ele, toda pessoa experimenta,

quando criança, de forma inconsciente, uma atitude contraditória, de ambivalência

afetiva de amor e ódio com relação ao pai. Por um lado, a criança ama o seu pai,

porque ele representa a proteção e a segurança tão necessárias nesta fase da vida;

por outro lado, o odeia, porque ele é a figura que representa a disputa pelo amor

da mãe197. Desta ambigüidade afetiva surge o sentimento de culpa, advindo da

repressão do ódio à figura paterna, e a submissão e a adoração a esta figura,

produzidas pela necessidade da criança de proteção e amparo. A maturidade

psicológica de cada pessoa depende do modo como cada um resolve o conflito

que envolve o complexo de Édipo, ou seja, o desejo libidinoso da mãe e a

ambivalência de amor e ódio com relação ao pai. A neurose se apresenta como

uma forma anômala de resolver este conflito ou como uma forma de perpetuá-lo.

No ser humano é normal que o complexo de Édipo seja resolvido já na infância

com a formação do superego. Nesse período, os impulsos instintuais são

reprimidos e recalcados de forma que permanecem no inconsciente e aí ficam ao

longo de toda a vida da pessoa, pressionando o consciente para que sejam

satisfeitos. Por isso há no ser humano, sem que este se dê conta, um conflito

constante entre os impulsos recalcados e o consciente. A neurose é conseqüência

deste conflito. Ela “é o resultado de uma forma incompleta de recalque”198. Trata-

se da irrupção ou descarga destes impulsos recalcados de forma anormal; consiste

numa forma de “retorno do reprimido”. O neurótico é aquela pessoa que revive o

conflito do complexo de Édipo de forma figurada em seu comportamento.

A religião ou, melhor, a experiência religiosa individual, assim como o

fenômeno da neurose, encontram sua origem no complexo de Édipo. E, ao mesmo

197 Sobre a teoria do Complexo de Édipo, Cf. FREUD, S., Três ensaios sobre a teoria sexual. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. VII. Rio de janeiro: Imago, 1995, p. 117-197. 198 PALMER, M. op. cit., p. 29.

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tempo, como a neurose, são uma forma de perpetuá-lo na psicologia da pessoa199.

A religião, na perspectiva individual, se configura como pseudo-solução para o

conflito que envolve o complexo paternal. Na religião, a ambivalência afetiva de

amor e ódio com relação ao pai encontra uma aparente solução. O pai é projetado

como Deus e, como tal, é adorado e obedecido. Assim, a adoração e a obediência

à vontade de Deus expressam de forma camuflada o amor pela figura do pai. Já o

ódio com relação ao pai aparece com a criação de uma réplica negativa de Deus, o

demônio, ao qual se pode odiar de forma justificada200. Entretanto, esta

hostilidade canalizada para o demônio não resolve o conflito, porque, ainda que

dirigida conscientemente para esta figura religiosa, é inconscientemente uma

hostilidade dirigida ao “pai glorificado”. É por causa disso que o sentimento de

culpa está tão presente na religião. O pai continua a ser odiado. A ambivalência

afetiva não é resolvida. O indivíduo em sua experiência religiosa revive o

complexo paternal. Esta experiência faz prolongar aquela inconsciente

necessidade do pai e repulsão a ele tão normal na psicologia da criancinha.

A experiência religiosa pessoal, segundo Freud, devido à projeção

psicológica do pai como Deus, se caracteriza por dois elementos fundamentais: a

adoração e a reparação201. A adoração corresponde à manifestação camuflada de

amor ao pai. E a reparação, por sua vez, corresponde, como resultado do

sentimento de culpa, à tentativa de resolver o sentimento de ódio inconsciente a

ele. Deste modo, a religião se afigura, concomitantemente, como uma neurose,

porque consiste numa forma camuflada do retorno dos impulsos recalcados com

relação à mãe e ao pai, e como um importante auxílio na defesa contra as

neuroses, porque busca responder ao conflito que envolve o complexo paternal

canalizando a ambivalência do sentimento com relação ao pai para a figura de

Deus, o “pai glorificado”202. Entretanto, a religião não colabora com a maturidade

199 Cf. DROGUETT, J.G., Desejo de Deus. Diálogo entre psicanálise e fé. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 68-70. 200 Freud constata em diversos casos de neurose que Deus e o Demônio se apresentam como projeções psicológicas de sentimentos ambivalentes com relação ao pai. Cf. FREUD, S., História de uma neurose infantil. In: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. XVII. Rio de janeiro: Imago, 1995; Id., Uma neurose demoníaca do século XVII. In: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. XIX. Rio de janeiro: Imago, 1995. 201 Na verdade, não é Freud quem apresenta esta idéia. Trata-se de uma interpretação feita a partir do estudo da religião nos escritos freudianos, cf. DROGUETT, J.G., op. cit., p. 70. 202 Com relação à importância da religião contra o surgimento de neurose, Freud afirma o seguinte: “A proteção contra as doenças neurológicas, que a religião concede aos seus crentes, é facilmente

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psicológica da pessoa, porque a mantém enredada no conflito edipiano mal-

resolvido. Com a religião, o crente se encontra dominado pela dependência

infantilizante do pai e pelo sentimento de culpa, originado da ambivalência afetiva

inconsciente com relação a este.

Deste modo, Freud demonstra que existe uma relação entre a religião e a

neurose. Ambas têm uma base psicológica comum, o complexo paternal, e ambas

se apresentam como mecanismos de “retorno do recalcado” relacionados ao

sentimento de culpa originado do desejo pela mãe e do ódio ao pai. Além disso,

ambas são impedimentos para a maturidade psicológica da pessoa; são

psicopatologias.

Esta visão de Freud a respeito da religião começa a ser elaborada, como já

acenamos acima, em “Atos obsessivos e práticas religiosas”203. Neste artigo, o

fundador da Psicanálise estabelece uma analogia entre os atos obsessivos

realizados por pessoas que sofrem de um distúrbio psíquico – neurose -, e as

práticas religiosas executadas pelas pessoas para expressarem a sua fé e devoção.

Em primeiro lugar, partindo da visão do senso comum, Freud pontua as

semelhanças e as diferenças entre ambos. Em seguida, faz a mesma coisa a partir

da investigação psicanalítica. Termina apontando uma base comum para os dois.

A partir do senso comum, destaca que a semelhança entre os atos

obsessivos e as práticas religiosas está nos seguintes dados: (1) ambos são

executados como rituais; (2) são realizados de forma exclusivista, ou seja, exigem

a exclusão de todos os outros atos que não estejam ligados a eles; (3) são

executados de forma minuciosa204. Já a diferença entre eles é assim pontuada por

este autor: (1) os atos obsessivos são rituais próprios inventados por cada

indivíduo e as práticas religiosas são rituais convencionados pela religião; (2) os

primeiros possuem caráter privado, enquanto as práticas religiosas possuem

caráter público e comunitário; (3) os atos obsessivos parecem desprovidos de

explicável: ela afasta o complexo paternal, do qual depende o sentimento de culpa, quer no indivíduo quer na totalidade da raça humana, resolvendo-o para ele, enquanto o incrédulo tem de resolver sozinho o seu problema”. FREUD, S., Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. XI. Rio de janeiro: Imago, 1995, p. 129. 203 Cf. FREUD, S., Atos obsessivos e práticas religiosas. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. IX. Rio de janeiro: Imago, 1995, p. 107-117. 204 Cf. Ibid., p. 109-111.

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sentido simbólico, e as práticas religiosas são significativas e explicitamente

simbólicas205.

A partir do ponto de vista psicanalítico, Freud apresenta a semelhança e

diferença entre ambos os rituais206. Para ele, as semelhanças são as seguintes: (1)

ambos são significativos e podem ser interpretados pela psicanálise; (2) ambos

têm fundamento na repressão de impulsos instintuais; (3) estão relacionados ao

sentimento de culpa; (4) parecem ter o valor de medidas protetoras ou de defesa;

(5) são realizados por medo de alguma punição.

As diferenças entre eles, do ponto de vista psicanalítico, são elencadas por

Freud da seguinte maneira: (1) o fundamento dos atos obsessivos se encontra na

repressão de impulsos instintuais de caráter exclusivamente sexuais; o

fundamento das práticas religiosas consiste na repressão de certos impulsos

instintuais egoístas; (2) os atos obsessivos são realizados por pessoas dominadas

por um sentimento inconsciente de culpa; já as práticas religiosas são realizadas

por pessoas que se sentem culpadas ou pecadoras diante de Deus; (3) os primeiros

são atos de defesa ou de segurança contra os impulsos instintuais sexuais

reprimidos que forçam o consciente para serem satisfeitos; as práticas religiosas

são medidas protetoras contra os impulsos instintuais egoístas; (4) os atos

obsessivos são realizados minuciosamente com a intenção de evitar algum mal,

embora não se saiba qual; as práticas religiosas são realizadas também como

medida protetora contra a punição divina.

Depois de estabelecer as semelhanças e diferenças entre os atos obsessivos

e as práticas religiosas, Freud conclui que se pode “considerar a neurose obsessiva

com o correlato patológico da formação de uma religião, descrevendo a neurose

como uma religiosidade individual e a religião como uma neurose obsessiva

universal”207. O ponto principal no qual Freud se fundamenta para chegar a esta

conclusão de proximidade entre religião e neurose consiste do dado de que tanto

os atos obsessivos como as práticas religiosas têm como origem a renúncia dos

impulsos instintuais. Entretanto, ele deixa claro que a renúncia, por um rito e por

outro, são de impulsos diferentes. Os atos obsessivos se fundamentam na renúncia

205 Cf. Ibid., p. 111. 206 Cf. Ibid., p. 113-117. 207 Ibid., p. 116.

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dos impulsos instintuais sexuais e as práticas religiosas, na renúncia de impulsos

egoístas que são prejudiciais ao relacionamento social208.

Assim, em “Atos obsessivos e práticas religiosas”, Freud apenas

estabelece uma analogia entre religião e neurose. Não chega a identificá-las. Isto

porque, neste artigo, ainda não postula o complexo de Édipo como a origem das

práticas religiosas. Esta identificação aparecerá nos escritos posteriores.

É em seu ensaio “Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância”

(1910) que Freud apresenta, de modo embrionário, a tese de que o complexo de

Édipo está na origem das práticas religiosas do indivíduo. Nesta obra, expõe um

argumento que norteará toda a sua compreensão da religião. O argumento

corresponde ao postulado de que Deus é a projeção psicológica da figura paterna.

Ora, com esta visão de Deus, fica autorizada a vinculação da experiência religiosa

pessoal ao complexo de Édipo e à sua relação com a neurose obsessiva, visto que

esta anomalia psíquica, para Freud, tem origem na repressão de impulsos

instintuais sexuais ligados às figuras paterna e materna. Deste modo, o complexo

de Édipo começa a aparecer no pensamento de Freud como a fonte originária

tanto das neuroses obsessivas como também da religião em sua forma

individual209.

“A psicanálise tornou conhecida a íntima conexão existente entre o complexo do pai e a crença em Deus. Fez-nos ver que um Deus pessoal nada mais é, psicologicamente, do que uma exaltação do pai, e diariamente podemos observar jovens que abandonam suas crenças religiosas logo que a autoridade paterna se desmorona. Verificamos, assim, que as raízes da necessidade da religião se encontram no complexo paternal. O Deus Todo-Poderoso e justo e a Natureza bondosa aparecem-nos como magnas sublimações das idéias infantis sobre os mesmos”210.

O complexo de Édipo somente é visto por Freud como a origem tanto das

neuroses como da experiência religiosa privada a partir, sobretudo, da análise de

alguns casos de neurose nos quais aparece o elemento religioso. Na análise do

delírio paranóico do “Caso Schereber”211, na análise da neurose obsessiva do

208 Desta maneira, Freud considera que a religião presta um serviço ao desenvolvimento da civilização. Isto porque ela contribui com a repressão daqueles instintos egoísticos que impedem o relacionamento social. Cf. Ibid., p. 116-117. 209 Cf. PALMER, M., op. cit., p. 27-29. 210 FREUD, S., Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância, p. 128-129. Esta concepção de Deus como projeção psicológica da figura paterna aparece claramente em boa parte da literatura freudiana, cf. RIZZUTO, A.M., op. cit., p. 160-181. 211 Cf. FREUD, S., Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (dementia paranoides). Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. XIX. Rio de janeiro: Imago, 1995.

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“homem dos ratos”212 e do “homem dos lobos”213, e na análise da neurose

demoníaca do pintor Christoph Haitzmann214, Freud constata uma estreita ligação

entre a neurose, a religião e a figura paterna. Ele observa que o neurótico

manifesta nos seus atos obsessivos uma ambigüidade afetiva direcionada para

algo (ele mesmo, um animal, Deus, outra pessoa). Esta ambivalência, segundo sua

interpretação, consiste na expressão da ambivalência do conflito edipiano que é

revivido inconscientemente na forma de neurose. Isto quer dizer que o neurótico

transfere para algo o amor e o ódio ao pai; ele revive o complexo de Édipo. Ora,

nestes casos de neurose, Freud percebe uma manifestação intensa de religiosidade.

O neurótico assume práticas religiosas obsessivas, nas quais Deus é, ao mesmo

tempo, amado e odiado. Interpreta isto como manifestação também da

ambivalência afetiva à figura paterna. Deste modo, encontra fundamento

comprobatório para formular a tese de que a experiência religiosa pessoal está

relacionada às neuroses porque ela também tem base no conflito edipiano e o

atualiza.

Embora tenha postulado esta tese, Freud não escreve nenhum livro ou

artigo para explicar exclusivamente a psicogênese da religião em sua forma

privada. Escreve sim algumas obras para explicar a psicogênese da religião em

sua forma coletiva. Procurando entender por que a religião manifesta um caráter

neurótico de atualização da ambivalência afetiva do conflito edipiano, Freud

escreve duas obras para responder a este questionamento: “Totem e tabu” (1913) e

“Moisés e o monoteísmo” (1939).

Em “Totem e Tabu”, Freud defende a tese de que a religião possui um

caráter neurótico obsessivo porque ela se origina de um complexo de Édipo

primitivo e o atualiza historicamente. Ora, nesta obra, o complexo de Édipo é

apresentado como uma categoria antropológica fundamental215. Isto porque este

aparece como a categoria para explicar a origem não só da religião ou do conflito

neurótico, mas também a origem da cultura, da organização social, enfim, da

própria civilização.

212Cf. Id., Notas sobre um caso de neurose obsessiva. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. X. Rio de janeiro: Imago, 1995. 213 Cf. Id., História de uma neurose infantil. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. XVII. Rio de janeiro: Imago, 1995. 214 Cf. Id., Uma neurose demoníaca do séc. XVII. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. XIX. Rio de janeiro: Imago, 1995. 215 Cf. MORANO, C. D., Crer depois de Freud, p. 38.

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Para Freud, o complexo de Édipo consiste numa categoria fundamental

para explicar a origem da civilização, porque esta origem se encontra num

acontecimento histórico primitivo e nas suas conseqüências. Este acontecimento

corresponde ao assassinato de um “pai primitivo” cometido por seus “filhos”216.

Fundamentado em teorias étnicas e antropológicas217, Freud imagina um

drama primordial entre um “pai” e os “filhos”. O drama é o seguinte. Em épocas

primevas, o homem vivia em pequenas hordas, cada qual dominada por um macho

poderoso – designado por Freud como “proto-pai” - que exercia com violência um

poder irrestrito sobre o restante da horda. Este, por causa de sua força, oferecia

proteção aos seus subordinados e, em troca desta proteção, tinha o direito de

possuir todas as fêmeas da horda como propriedade unicamente sua. Os outros

machos, por não possuírem a força do “proto-pai”, nem o direito às fêmeas,

invejavam e almejavam a sua posição. Por isso, a relação entre eles era de

confronto. Mas aqueles que se rebelavam ou que despertavam o ciúme do pai

primevo eram mortos, castrados ou expulsos da horda. Ora, aconteceu que num

determinado momento, os machos expulsos da horda, vivendo numa comunidade,

se rebelaram em conjunto contra o macho-dominador, assassinaram-no e

devoraram o seu corpo. Depois deste assassinato, os machos mais fortes tentaram

assumir o lugar do “proto-pai” morto, mas ao fazê-lo, provocavam o mesmo

conflito com os outros e, assim, tiveram o mesmo destino. Por certo tempo se

perpetuou o conflito até o momento em que todos os machos estabeleceram entre

eles uma espécie de contrato social. Cada um renunciou à vontade de assumir o

lugar do “proto-pai” e de possuir as mulheres da horda.

Segundo Freud, este crime primitivo marca profundamente não só o

desenvolvimento psicológico do ser humano, mas também constitui o surgimento

da própria cultura e do relacionamento social. A partir deste acontecimento, se

realiza culturalmente um recalcamento do desejo instintual de possuir a mãe

(incesto) e as mulheres da família (endogamia), também se produz o sentimento

de culpa e uma ambivalência afetiva com relação ao pai primitivo assassinado a se

216 Cf. FREUD, S., Totem e Tabu. Rio de Janeiro: Imago, 2005, p. 146-148. 217 Freud se apóia na teoria da horda primitiva de C. Darwin (“Evolução das espécies”) e de Atkinson e na teoria da “refeição totêmica” de W. Robertson Smith (“Religion of Semites”). Cf. FREUD, S., Moisés e o monoteísmo, p. 95-97.

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perpetuar em cada pessoa218 e na religião219. Assim, com o assassinato do “proto-

pai” se produz historicamente um complexo de Édipo das origens ou, nos termos

de Paul Ricouer, um “Édipo da espécie”220.

Com isso, Freud defende a idéia de que a religião possui caráter neurótico

não porque encontra sua origem histórica no complexo edipiano produzido pela

morte do pai primitivo. Se fosse assim todas as produções culturais também

seriam neurotizantes, visto que todas elas, de certa forma, surgem deste complexo.

Diferentemente destas produções, somente a religião é neurotizante porque ela

atualiza ao longo da história este drama do início dos tempos.

A religião, segundo Freud, joga com a mesma ambivalência afetiva de

amor e ódio que norteava a vida dos machos da horda primitiva com relação ao

macho dominador. Ora, aqueles amavam o “proto-pai” por causa de sua posição

privilegiada e por causa da proteção que ele oferecia, e o odiavam porque queriam

ocupar o seu lugar, sobretudo, para poder possuir as fêmeas do grupo. Na religião,

segundo Freud, o “ser divino” (totem, deuses, Deus, Cristo) é uma representação

psicológica deste pai primitivo221. Por isso, a ambivalência afetiva com relação ao

“ser divino” nada mais é do que a atualização do amor e do ódio à figura deste pai

das origens. Mas por que a religião perpetua esta ambivalência afetiva? Por causa

do sentimento de culpa. O sentimento de culpa gerado pela morte do pai primitivo

produziu uma forma de mantê-lo “vivo”, ou seja, criou uma forma de anular o

parricídio. Esta forma é a religião222. Na religião, a culpa pela morte do “proto-

pai” é amenizada porque este, sob a forma de um “ser divino”, continua a existir e

a ser adorado. No entanto, esta presença do pai primitivo na religião desperta,

além da atitude de adoração e reverência a esta figura, a atitude de revolta a ele.

Freud chega a este postulado a partir da análise psicanalítica do totemismo.

Para ele, esta é a primeira forma de religião na história, e, por isso, aquela que

mais se aproxima do evento que produziu o complexo de Édipo das origens. Nesta

218 Isto significa dizer que “o complexo de Édipo torna-se a repetição pessoal (e ontogenética) de algo que se acha embutido no inconsciente, isto é, a experiência universal (e filogenética) do assassinato do pai”. PALMER, M., op. cit., p. 48. Para defender a idéia de que o complexo de Édipo primitivo tenha marcado toda a humanidade até hoje, Freud recorre ao postulado da “herança arcaica” que afirma a possibilidade de transmissão de geração a geração de traços mnêmicos inconscientes de experiências de nossos antepassados. Cf. FREUD, S., Moisés e o monoteísmo, p. 107-116. Sobre o assunto, cf. JONES, E., op. cit., capítulo 10. 219 Cf. Id., Totem e tabu, p. 146-148. 220 Cf. RICOUER, P., op. cit., p. 197. 221 Cf. FREUD, S., Totem e tabu, p. 148-149. 222 Cf. Ibid.

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religião percebe-se claramente, segundo ele, a ambivalência do complexo

edipiano223. No sistema totêmico, o totem ou o animal sagrado, é adorado porque

representa a proteção para a tribo. Além de adorado, o animal totêmico é

preservado mediante a proibição legal de seu sacrifício. Entretanto, uma ou outra

vez, a tribo comemora uma celebração, uma refeição cerimonial, na qual este

animal é sacrificado e todos do clã devoram-no cru. Ora, Freud interpreta o totem

como a representação do “proto-pai”. A adoração do totem e a crença de que ele

protege o clã corresponde à atitude de submissão àquele “pai” e à necessidade de

sua proteção. A preservação legal do animal totêmico, que diz respeito à anulação

do crime cometido pelos filhos, é conseqüência do remorso ou da culpa pelo

assassinato do pai primitivo. E a refeição totêmica representa a celebração da

vitória dos filhos sobre ele; é a “recordação do triunfo sobre o pai”224. Assim, a

atitude do clã com relação ao animal totêmico expressa a ambigüidade afetiva

com relação ao pai originário.

Desta maneira, na visão de Freud, o totemismo consiste numa das

primeiras tentativas na história de se resolverem os conflitos psicológicos

produzidos pelo assassinato do “proto-pai”. O totemismo “tornou possível

esquecer o acontecimento a que devia a sua origem”225. E isto por causa do

recalcamento dos instintos mais primitivos através dos interditos legais da religião

e por causa também da mitigação da culpa através do ritual totêmico. Entretanto, o

totemismo mediante o culto ao animal totêmico não resolve o complexo de Édipo

das origens. Apenas o atualiza, porque o pai primitivo continua a ser adorado e

rejeitado em sua representação religiosa, o totem.

A partir da interpretação psicanalítica do totemismo, Freud defende a tese

de que em todas as religiões se revive o drama primordial da relação afetiva

conflituosa com o “proto-pai” e do seu assassinato226. Por isso é que podemos

encontrar em todas elas, segundo ele, alguns elementos fundamentais comuns,

embora camuflados, que estiveram relacionados àquele evento: o acentuado

sentimento de culpa, o desejo constante de proteção e uma rebeldia escamoteada à

divindade227. O drama das origens é revivido nas religiões porque nelas se

223 Cf. Ibid., p.144-153. 224 Ibid., p. 149. 225 Ibid., p. 148. 226 Cf. Ibid., p. 150-164. 227 Cf. Ibid., p. 155.

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processa o “retorno” do pai primitivo sob a forma de uma divindade228. Ora, é

porque existe este “retorno” que se dá o conflito afetivo. Ao realizar o “retorno”

daquele pai, as religiões possibilitam a perpetuação do drama primordial. Amor e

ódio, adoração e rejeição, submissão e rebeldia à divindade, representação

psicológica do pai das origens, são os paradoxos que configuram as religiões.

Assim, segundo Freud, na religião de forma geral se celebra o “retorno” do

“proto-pai” e concomitantemente, o desejo de assumir seu lugar. Por isso, os

principiais rituais religiosos, além de serem celebração da presença paterna,

consistem na “eliminação cerimonial do pai”229 ou na “comemoração despistada

do triunfo sobre o pai ou na revolta filial dissimulada”230. A própria eucaristia

cristã, por exemplo, se configura “essencialmente como uma nova eliminação do

pai, uma repetição do ato culposo”231. Ela é “a associação de irmãos que consome

a carne e o sangue do filho [a representação do “pai primitivo] para obter a

santidade e se identificar com ele”232. Na comunhão cristã se repete o conteúdo da

antiga refeição totêmica, a saber, a ambivalência afetiva com relação ao pai. Ao

incorporar, simbolicamente, o corpo e o sangue de seu Deus, o cristão, além de

celebrar a morte do pai, que é representado pelo Cristo, também expressa o desejo

nostálgico do pai e, ao mesmo tempo, o seu anseio de colocar-se em seu lugar233.

Dessa maneira, acontece na religião algo semelhante ao que se dá nos

processos de neurose obsessiva, o “retorno do reprimido”234. Neste sentido, a

religião judaica, por sua representação paternal de um único Deus como pessoal,

como Pai, constitui a religião na qual a figura do pai primitivo retorna com toda

sua força. O judaísmo constitui o domínio do pai sobre os filhos235. Já o

cristianismo, na concepção de Freud, é a religião que representa a tentativa de

228 Para Freud, o retorno do “proto-pai” na religião se deu sob várias representações religiosas. Primeiro, como animal (totem), depois como deuses ou demônios e, por último, como Deus-Pai único. Cf. Id., Totem e tabu, p. 151-158; Id., Moisés e o monoteísmo, p. 97-98. 229 Id., Totem e tabu, p.155. 230 RICOUER, P., op. cit., p. 199. 231 Ibid., 158. 232 Ibid. 233 Cf. Ibid., p. 157-158; Id., Moisés e o monoteísmo, p. 98, 101-102. 234 Em “Moisés e o monoteísmo: três ensaios”, Freud apresenta um estudo psicanalítico das origens do judaísmo postulando uma proximidade desta religião com a neurose. Para ele, no judaísmo se processa a mesma dinâmica encontrada nos casos de neurose obsessiva. Ele descobre que a mesma fórmula estabelecida para o desenvolvimento de uma neurose (Trauma primitivo – defesa – latência – desencadeamento da doença neurótica – retorno parcial reprimido) pode ser aplicada à origem e desenvolvimento do judaísmo. 235 Cf. Id., Moisés e o monoteísmo, p. 102.

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substituição do pai pelo filho. Trata-se de uma religião da rebeldia filial. Por isso,

enquanto o

“ judaísmo [– escreve Freud -] fora uma religião do pai; o cristianismo tornou-se uma religião do filho. O antigo Deus Pai tombou para trás de Cristo; Cristo, o Filho, tomou seu lugar, tal como todo filho tivera esperanças de fazê-lo, nos tempos primevos”236. Não obstante, segundo Freud, o cristianismo não consegue se livrar do

fantasma do pai, pois com o Cristo, o “proto-pai” retorna transfigurado. O Cristo,

ao mesmo tempo em que representa a rebeldia filial contra o pai primevo, também

representa o domínio do pai, pois ao se colocar no lugar do pai se torna uma

representação paterna. Desta maneira, o Cristo é também uma representação

psicológica do pai das origens.

“Vale a pena notar como a nova religião [o cristianismo] lidou com a antiga ambivalência na relação com o pai. Seu conteúdo principal foi, é verdade, a reconciliação com o Deus pai, a expiação pelo crime cometido contra ele, mas o outro lado da relação emocional mostrava-se no fato de o filho, que tomara a expiação sobre si, tornar-se um deus, ele próprio, ao lado do pai, e, na realidade, em lugar deste. O cristianismo, tendo surgido de uma religião paterna [o judaísmo], tornou-se uma religião filial. Não escapou ao destino de ter de livrar-se do pai”237.

Para Freud, o cristianismo “revive” de forma mais patente do que as

outras religiões o drama da morte do pai primitivo238. As doutrinas do pecado

original e da redenção, realizada pela morte de Cristo, apontam para o fato do

assassinato deste pai e para a expiação da culpa por causa deste crime. Isto porque

Freud vê na doutrina do pecado original a descrição do próprio crime cometido

pelos filhos primitivos. Ele identifica a doutrina do pecado original ao evento do

assassinato do “proto-pai”. Do mesmo modo, interpreta o sacrifício de Cristo

como expiação pelo parricídio primitivo e como manifestação do desejo do filho

de se colocar no lugar do pai.

“Não pode haver dúvida de que no mito cristão o pecado original foi um pecado cometido contra o Deus-Pai. Se, entretanto, Cristo redimiu a humanidade do peso do pecado original pelo sacrifício da própria vida, somos levados a concluir que o pecado foi um homicício. A lei de talião, que se acha tão profundamente enraizada nos sentimentos humanos, estabelece que um homicídio só pode ser expiado pelo sacrifício de outra vida: o auto-sacrifício aponta para a culpa sangüinea. E se este sacrifício de uma vida ocasionou uma expiação para com o Deus-Pai, o crime a ser expiado só pode ter sido o homicídio do pai. (...) O próprio ato pelo qual o filho oferecia a maior expiação possível ao pai conduzia-

236 Ibid. 237 Ibid., p. 149-150. 238 Cf. Id., Totem e tabu, p. 156-158; Id., Moisés e o monoteísmo, p. 100-102.

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o, ao mesmo tempo, à realização de seus desejos contra o pai. Ele próprio tornava-se Deus, ao lado, ou, mais corretamente, em lugar do pai”239.

Desta forma, segundo Freud, o cristianismo na ordem da fantasia

dogmática, ao mesmo tempo em que procura a reconciliação com o pai primitivo,

mediante a mitigação da culpa pelo sacrifício do “filho”, revela também a rebeldia

contra ele ou o desejo de substituí-lo, mediante o endeusamento do “Cristo”, ou

seja, do “filho”. Assim, perpetua-se na doutrina cristã a ambivalência afetiva com

relação ao “proto-pai”.

Em “Moisés e o monoteísmo” (1939), Freud dá continuidade à

investigação psicanalítica, que havia sido iniciada em “Totem e tabu”, sobre a

origem e o desenvolvimento da religião. Nesta obra, analisa a origem e o

desenvolvimento do judaísmo e de seu monoteísmo a partir do fenômeno das

neuroses obsessivas. Acredita que aquilo que se processa com os neuróticos

acontece, de forma coletiva, na religião judaica. A fórmula que ele elabora para o

desenvolvimento de uma neurose (trauma primitivo + defesa + latência +

desenvolvimento da doença neurótica + retorno parcial reprimido = neurose

obsessiva)240, ele a aplica ao monoteísmo judaico241. Para ele, o trauma primitivo

corresponde ao assassinato de Moisés242; a defesa equivale ao recalcamento da

culpa ou o esquecimento do ato cometido por causa do arrependimento dos

hebreus por terem matado o seu líder; a latência diz respeito ao período histórico

em que na história judaica não havia sinal da idéia monoteísta – o que revela o

sucesso do recalcamento da culpa; e o desenvolvimento da doença neurótica ou o

retorno do recalcado corresponde à adesão dos hebreus novamente ao

monoteísmo, o culto a um único Deus-Pai - que nada mais é do que a

representação psicológica do Moisés assassinado. Desta maneira, Freud interpreta

239 Id., Totem e tabu, p. 157. 240 Id., Moisés e o monoteísmo, p. 95. 241 Cf. Ibid., p. 95-105. 242 Freud se pautou em teorias históricas equivocadas a respeito da origem do monoteísmo. Ele parte da hipótese da existência de dois Moisés. Um teria sido um aristocrata egípcio associado às reformas monoteístas do rei Akenáton no século XIV a.C. O outro, tratar-se-ia do personagem bíblico, o hebreu madianita. O Moisés egípcio, segundo Freud, é que teria dado início ao monoteísmo judaico. Este Moisés, depois da morte do rei Akenáton, teria deixado o Egito e se tornado o chefe dos judeus, aos quais teria transmitido o monoteísmo de origem egípcia. Contudo, no processo de transmissão do monoteísmo, os judeus teriam se rebelado contra seu líder e o mataram. O outro Moisés teria aparecido um século mais tarde ao acontecimento deste crime. Como havia um forte sentimento de culpa, inconsciente, nos judeus por causa da morte do primeiro Moisés, o líder madianita passou a ser uma representação daquele Moisés. Este segundo Moisés é que teria transformado o monoteísmo original no culto do deus vulcânico Iahweh. Cf. Ibid., p. 73-86.

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o judaísmo como neurose coletiva e o monoteísmo como um sintoma do retorno

do recalcado. Sendo assim, o monoteísmo “representa a reemergência do pai, a

reelevação do macho forte à posição de dominância, estimulada pelo sentimento

redesperto e avassalador de culpa pelo crime original cometido contra ele”243.

Ao conceber o judaísmo em relação com a neurose, Freud considera-o

como culto ao pai, ou seja, ao “proto-pai” e ao Moisés assassinado pelos

hebreus244. Os mandamentos judaicos e a circuncisão, para Freud, demonstram, de

forma mais patente possível, o domínio exercido pelo pai na religião judaica. Isto

porque estes elementos religiosos correspondem à subserviência ao poder paterno.

Trata-se de elementos motivados pelo remorso inconsciente pelo assassinato de

Moisés245.

Ademais, Freud atribui ao cristianismo o mesmo caráter de neurose

obsessiva atribuída ao judaísmo. Para ele, o cristianismo não deixa de realizar o

“retorno do recalcado”. Isto porque nesta religião o pai primitivo e o “Moisés

assassinado” também são revividos e perpetuados sob a forma de Cristo246.

Cristo, para Freud, é uma criação de Paulo de Tarso. Este teria se

aproveitado da expectativa messiânica judaica, produzida pelo remorso do

assassinato de Moisés, para identificar um agitador político-religioso de nome

Jesus ao Messias aguardado247. No entanto, Freud acredita que o artifício de Paulo

somente obteve sucesso porque este associou a morte deste agitador à expiação do

“pecado original”. Ao fazer isto, para este autor, Paulo teria descoberto o motivo

do sentimento de culpa experimentado intensamente pelo povo judeu. Para Paulo,

a culpa seria a resultante de um crime realizado contra Deus e este somente

poderia ser expiado pela morte do Filho de Deus. Segundo o fundador da

Psicanálise, com a doutrina do “pecado original” e da “expiação redentora”, Paulo

teria reconhecido, embora implicitamente, o crime contra o “proto-pai” e, ao

mesmo tempo, colaborado para mitigar a culpa pelo seu assassinato. Mitigar a

culpa porque, na sua visão, o redentor, como representante de toda a humanidade

243 PALMER, M., op. cit., p. 63. 244 Ao postular a hipótese do assassinato do Moisés egípcio pelos hebreus, Freud não abre mão do seu postulado do crime do “pai primitivo”. Para ele, o parricídio dos primórdios da humanidade continua sendo o evento fundante de toda religião. O que se processa no judaísmo com o Moisés assassinado é conseqüência da ambigüidade afetiva do complexo edipiano com relação ao “pai primitivo”. 245 Cf. PALMER, M., op. cit., p. 63-64. 246 Cf. FREUD, S., Moisés e o monoteísmo, p. 103. 247 Cf. Ibid., p. 100 e 103.

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– ou seja, dos filhos - havia sacrificado a sua vida para nos absolver da culpa

daquele crime. O sacrifício de Cristo seria a remissão da culpa pelo parricídio

primitivo realizado pelo conjunto de irmãos. Por isso, segundo Freud, enquanto o

cristianismo consiste na religião da superação da culpa primitiva, o judaísmo é a

religião na qual a culpa prevalece com toda intensidade, pois esta religião não

reconhece o “assassinato do pai”248.

Entretanto, para Freud, o cristianismo, embora seja a “religião do Filho”,

não está libertada do pai primitivo. Paulo de Tarso ao identificar Jesus ao Cristo,

ao Messias e ao Filho de Deus que morreu para expiar o “pecado original”, fez

com que este assumisse o lugar do pai. No cristianismo, portanto, o domínio do

“proto-pai” continua sua história. Vigora ainda nele a ambivalência com relação

ao pai, pois apesar da expiação da culpa, o filho substitui o pai e se torna ele

mesmo Deus, representação da figura paterna.

“É plausível conjecturar que o remorso pelo assassinato de Moisés forneceu o estímulo para a fantasia de desejo do Messias, que deveria retornar e conduzir seu povo à redenção e ao prometido domínio mundial. Se Moisés foi o primeiro Messias, Cristo tornou-se seu substituto e sucessor, e Paulo poderia exclamar para os povos, com certa justificação histórica: ‘Olhai! O Messias realmente veio: ele foi assassinado perante vossos olhos!’ Além disso, também, existe um fragmento de verdade histórica na ressurreição de Cristo, pois ele foi o Moisés ressurrecto e, por trás deste, o pai primevo retornado da horda primitiva, transfigurado e, como o filho, colocado no lugar do pai”249

As considerações de Freud, feitas em “Totem e tabu” e em “Moisés e o

monoteísmo”, a respeito da relação da religião com a neurose obsessiva,

expressam uma visão negativa da religião. Embora Freud veja nela uma forma de

contribuição para a manutenção da vida social, mediante a repressão de certos

instintos, ele também a considera como algo nocivo à humanidade por causa do

ser caráter de neurose. Sua acusação é de que a religião impossibilita a fase adulta

da humanidade porque a mantém relacionada à figura do pai primitivo e à

ambivalência afetiva a ele.

Neste sentido, ele compara a religião à fase infantil do desenvolvimento

pessoal. Assim como a criança tem que passar por uma fase de neurose para

completar com sucesso o seu desenvolvimento para a maturidade, a humanidade

tem que passar pela fase da religião, a fase neurótica, para manifestar o seu

248 Cf. Ibid., p. 102. 249 Ibid., p. 103.

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máximo potencial250. Nestes termos, Freud compreende a religião como a fase

infantil da humanidade; aquela fase em que o ser humano não consegue se

desvencilhar da obediência servil ao pai e da rejeição a ele.

Para Freud, a religião não é negativa somente para a humanidade. Ela é

também, como vimos no início desta seção, nociva para a pessoa particular. Isto

porque ela se evidencia como uma forma de manutenção da infantilidade.

Atualiza o complexo de Édipo na vida das pessoas. Impede que ele seja resolvido,

pois a ambivalência afetiva com relação à figura paterna é sempre revivida nas

práticas da religião. Sob a forma de Deus, o pai é perpetuamente amado e odiado.

O pai se torna um “fantasma” sempre presente a rondar o mecanismo psicológico

daqueles que assumem as práticas religiosas. Por isso é que, para Freud, a religião

tem algo de desumanizante. Com a religião, a pessoa vive constantemente sob a

dependência infantilizante do pai vivenciando uma tensão psicológica entre a

obediência e a rebeldia. Assim se explica o caráter compulsivo de alguns pela

observância dos ritos e das prescrições morais religiosas e também o sentimento

de culpa que surge quando estes não são observados. A religião mantém a pessoa

sob o domínio escravizador do pai. E isso vale inclusive para o cristianismo.

2.3.2. A religião como ilusão O dado básico para a compreensão da religião no pensamento de Freud é

que esta tem origem no complexo edipiano e o atualiza. A ambivalência afetiva

paternal, vivenciada na religião diante da imagem de Deus, é um elemento para

explicar tanto o caráter neurótico da religião, como também seu caráter ilusório.

Na religião, a pessoa além de vivenciar de forma camuflada o conflito afetivo de

amor e ódio ao pai, também encontra satisfação para o seu desejo infantil de

amparo, cuidado e proteção. Isto porque projeta em seres divinos a figura de um

pai onipotente que pode defendê-la contra a dureza da realidade e da própria

existência. Ora, na religião, a representação paternal, ou seja, Deus, no caso do

monoteísmo, realiza a mesma tarefa de proteção que o pai desempenha com

relação à criancinha. O religioso encontra em Deus a realização do desejo de

proteção que o pai lhe concedia antes quando criança. Por isso, Deus aparece

250 Cf. Id., O futuro de uma ilusão. In: Id. Obras escolhidas. São Paulo: Abril Cultural, 1978, Coleção Os Pensadores, p. 117; Id. O futuro de uma ilusão. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1995.

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como uma criação do psiquismo humano para satisfazer o desejo do homem de

ser amparado constantemente. Desta maneira, Freud considera que o sentimento

de desamparo infantil do ser humano consiste no fundamento último da religião.

Pensando desta forma, assevera que a religião tem origem no “princípio de

prazer” e se coloca a serviço deste em oposição ao “princípio de realidade”. Ora,

para Freud, o ser humano é marcado em seu funcionamento psíquico por dois

princípios: o de prazer e o de realidade251. O primeiro está relacionado aos desejos

humanos; trata-se do princípio que fundamenta as fantasias, os sonhos, as ilusões

e as alucinações. O segundo diz respeito à abertura e aceitação da realidade;

consiste na adequação do consciente com o real. Enquanto o primeiro princípio

busca criar uma realidade ficcional, um mundo fantasista que torne possível a

satisfação dos desejos humanos, especialmente o desejo de felicidade, o segundo

procura chegar a uma correspondência com a realidade. Embora possa parecer que

estes princípios estejam em oposição, isto não se dá. Eles se articulam. Na pessoa

amadurecida, o “princípio de prazer” é regulado pelo “princípio de realidade”. Ou

seja, a pessoa procura realizar seus desejos, mas em correspondência com a

realidade. O problema se dá quando o “princípio de realidade” aparece com pouca

força reguladora diante do “princípio de prazer”. Daí a constituição da

imaturidade psicológica de uma pessoa, pois esta estabelece, de forma semelhante

à criancinha, um mundo ilusório em oposição ao mundo real com o objetivo de

realizar de forma fácil os seus desejos. A pessoa que desconsidera a força

reguladora do “princípio de realidade” fica prisioneira de seu narcisismo e

egoísmo, isto é, fica enredada, como a criancinha, sobre si mesma fazendo do

mundo externo, modificado pela sua imaginação, e da alteridade humana um meio

para a satisfação de suas vontades.

Para Freud, o “princípio de prazer” está relacionado aos impulsos

emocionais egocêntricos e o “princípio de realidade”, ao intelecto, à razão. A

maturidade psicológica do ser humano se encontra garantida quando o intelecto

ou a razão estabelece seu domínio sobre a vida mental da pessoa ou quando este

251 Cf. FREUD, S., Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1995; RICOUER, P., op. cit., p. 219-233; SEGUNDO, J.L., Que mundo? Que homem? Que Deus? Aproximações entre ciência, filosofia e teologia. São Paulo: Paulinas, 1995, p. 195-239.

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detém o controle sobre aqueles impulsos emocionais252. Por isso, Freud associa a

religião ao “princípio de prazer” e a ciência ao “princípio de realidade”. Enquanto

a religião mantém a pessoa sob o véu da infantilidade narcisista devido ao

estabelecimento do domínio dos impulsos sobre o intelecto, a ciência realiza o

domínio do intelecto sobre os desejos egocêntricos. Ademais, enquanto a religião

modifica a realidade em função dos desejos infantis, a ciência procura se adequar

ao mundo real, transformando-o para conceber melhores condições de vida para

os homens, realizando assim o desejo humano de felicidade. Deste modo, Freud

coloca a religião e a ciência em oposição. A primeira é sinônimo do impedimento

do crescimento psicológico humano e, mesmo tempo, o caminho errado para

procurar a realização dos desejos humanos; a segunda, por sua vez, é a garantia

deste crescimento e também o caminho certo para a realização do desejo humano

por causa de sua adequação com o mundo real. Na religião, a pessoa se refugia em

Deus para fugir da dureza da realidade: eis aí a imaturidade. Já com a ciência, a

pessoa assume as durezas da vida e do mundo real: eis aí a maturidade.

A categoria que Freud utiliza para apresentar a religião segundo este

enfoque consiste na chamada “ilusão”. Ou seja, para ele, a religião configura-se

como ilusão a serviço de desejos infantis à margem da realidade253.

Freud elabora sua compreensão da religião como ilusão em,

fundamentalmente, dois escritos: “O futuro de uma ilusão” (1927) e “A questão

de uma Weltanschauung” (1933 [1932]).

Em “O futuro de uma ilusão”, ele, ao procurar investigar sobre o valor que

têm as idéias religiosas na configuração da civilização, chega à conclusão de que a

religião deve sua origem à tríade: complexo paterno, desamparo e necessidade de

proteção do homem254. Assim, como já acenamos acima, interpreta a religião

como a projeção psicológica da figura paterna protetora da infância em seres

divinos - em Deus – para garantir o amparo desejado pelo ser humano255.

252 Cf. FREUD, S., O futuro de uma ilusão, p. 126; Id., A questão de uma Weltanschauung. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XXII. Rio de Janeiro: Imago, 1995, p. 167. 253 Cf. MORANO, C.D., El psicoanálisis freudiano de la religión, p. 365-379; Id., Crer depois de Freud, p. 58-61; KUNG, H., op. cit., p. 38-48; DROGUETT, J.G., op. cit., p. 76-78; RICOUER, P., op. cit., p. 193-211; ZILLES, U., op. cit., p. 147-151; PALMER, M., op. cit., 51-70; NEUSCH, M., op. cit., p. 131-135. 254Cf. FREUD, S., O futuro de uma ilusão, p. 102. 255 Cf. Ibid.

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Seguindo esta concepção, Freud afirma que as idéias religiosas, que

passaram por um longo processo de desenvolvimento, possuem uma função bem

determinada, a saber, a de responder ao desamparo do ser humano sentido frente à

natureza, ao destino existencial (=morte) e aos perigos avindos da própria

sociedade256. É por isso que ele desconsidera estas idéias como descrição segura

da realidade. Para ele, elas “são ilusões, realizações dos mais antigos, fortes e

prementes desejos da humanidade. O segredo de sua força reside na força desses

desejos”257. Portanto, é assim que Freud chega à conclusão de que a religião tem a

ver com a ilusão em função dos desejos humanos258.

A ilusão, para Freud, não se identifica com o erro259. O erro deriva de um

engano, de uma leitura equivocada da realidade. A ilusão, por sua vez, deriva dos

desejos humanos. O que caracteriza uma ilusão é o papel que o desejo

desempenha. A ilusão consiste numa crença motivada pelo desejo. E, como a

força do desejo faz a pessoa a ver a realidade de outro modo, a ilusão é o enxergar

na realidade aquilo que se deseja. De certa maneira, a ilusão é um distanciamento

da realidade. Em outros termos, ilusão significa a forma de realizar os desejos

humanos à margem da realidade260. Ora, partindo desta noção, Freud afirma que

as idéias religiosas não revelam um conhecimento da realidade, mas são,

simplesmente, expressões dos desejos humanos, especialmente relacionados à

figura do pai.

Por entender a religião como ilusão, Freud a considera como um mal para

a civilização. Reconhece que ela contribuiu muito para “domar os instintos

associais, mas não o suficiente”261. Segundo ele, a religião, além de não ter

conseguido tornar feliz a maioria da humanidade, não contribuiu com a

humanização das relações sociais nem com a moralidade humana262. Com isso,

Freud questiona o domínio dos desejos, sob a forma de religião, na configuração

da sociedade ocidental. Por conta disso, ele se apresenta como um militante da

ciência e como um profeta de um novo tempo, um tempo sem ilusões, sem

256 Cf. Ibid.,p. 95-99. 257 Ibid., p. 107. 258 Cf. Ibid., p. 107-109. 259 Cf. Ibid.., p. 107-108. 260 Cf. MORANO, C.D., Crer depois de Freud, p. 58, nota 10. 261 FREUD, S., O futuro de uma ilusão, p. 112. 262 Cf. Ibid., p. 112-113.

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religião, o tempo do domínio da razão263. Ora, Freud defende a idéia de que

mediante uma “educação para a realidade”, ao invés de uma busca de satisfação

dos desejos desconsiderando o mundo real, o homem conseguirá “alcançar um

estado de coisas em que a vida se tornará tolerável para todos e a civilização não

mais será opressiva para ninguém”264. Ele rejeita a religião em nome da ciência ou

em nome do seu deus, o Logos265.

Em “O mal-estar na civilização” (1930 [1929]), Freud expressa a idéia de

que a religião “deforma o quadro do mundo real de maneira delirante – maneira

que pressupõe uma intimidação da inteligência”266. Com esta visão, volta a

apresentar a religião como ilusão. Ora, a religião constitui, para ele, o exercício da

mentalidade mágica infantil que processa, contra o intelecto, uma transformação

delirante da realidade com o objetivo de buscar a realização para os desejos

infantis. Por causa disso, considera que a religião mantém a pessoa religiosa “num

estado de infantilismo psicológico” comprometendo o desenvolvimento de sua

maturidade psíquica267.

Em “A questão de uma Weltanschauung”, Freud retoma, mais uma vez, a

interpretação da religião como ilusão em função dos desejos egocêntricos. Exibe,

novamente, a sua tese de que Deus é a projeção psicológica do pai – uma ilusão -

realizada com a intenção de satisfazer os desejos de amparo e de proteção do ser

humano268. Para explicar isto, afirma que a experiência que a pessoa faz, quando

criança, de ser amada, protegida e cuidada pelo pai, a marca profundamente.

Quando adulto, manifesta o desejo de reviver esta experiência. E um dos modos

que encontra para satisfazer este desejo consiste na crença em Deus. A pessoa

acredita – aqui está sua ilusão – que um ser divino a está protegendo

constantemente, como o pai a protegia, de todos os perigos e dos percalços do

mundo e da vida. Assim, a religião deriva do reconhecimento do próprio

desamparo e da procura de um pai divino que possa dar proteção tal como o pai na

infância fazia. Entretanto, ao realizar a projeção religiosa, a pessoa, mesmo na

263 Cf. Ibid., p. 120-128. 264 Ibid., p. 123. 265 Cf. Ibid., p. 126. 266 Id., O mal-estar na civilização. In: Id. Obras escolhidas. São Paulo: Abril Cultural, 1978, Coleção Os Pensadores, p. 147. 267 Cf. Ibid. 268 Cf. Id., A questão de uma Weltanschauung, p. 159, 163, 170.

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fase adulta, se mantém estacionada na infância por causa do domínio da figura do

pai sobre ela.

“Quando um ser humano se torna adulto, ele sabe, na verdade, que possui uma força maior, mas sua compreensão interna (insight) dos perigos da vida também se tornou maior, e com razão conclui que fundamentalmente ainda permanece tão desamparado e desprotegido como era na infância; ele sabe que, na sua confrontação com o mundo, ainda é uma criança. Mesmo agora, portanto, não pode prescindir da proteção que usufruía na infância. Também reconheceu, desde então, que seu pai é um ser que possui um poder muito limitado e não está dotado de todas as virtudes. Por esse motivo, retorna à imagem mnêmica do pai, a quem, na infância, tanto supervalorizava. Exalta a imagem transformando-a em divindade e torna-a contemporânea e real. A força afetiva dessa imagem mnêmica e a persistência de sua necessidade de proteção conjuntamente sustentam sua crença em Deus”269.

Não obstante, Freud considera que a religião para realizar os desejos

humanos de proteção e consolo necessita de criar uma visão própria do mundo.

“A religião é uma tentativa de obter domínio do mundo perceptível no qual nos situamos, através do mundo dos desejos que desenvolvemos dentro de nós em conseqüência de necessidades biológicas e psicológicas”270

Assim, a religião evidencia claramente seu caráter ilusório. Ela deturpa,

falseia, pinta a realidade de forma que possa realizar seu objetivo, que consiste na

satisfação de desejos infantis. Os dogmas e as concepções religiosas nada mais

são do que artifícios do desejo humano para conceber o mundo e a vida de

maneira diferente do que na verdade são, pois, somente deste modo, a religião

consegue canalizar a força das emoções do ser humano. Neste sentido, a religião,

segundo Freud, preenche três funções originadas da projeção paternal a serviço

dos desejos infantis: primeiro, fornece um conhecimento próprio do mundo, uma

cosmovisão religiosa que apresenta o mundo não como uma força ameaçadora ao

homem, mas como criação dominada por Deus; segundo, acalma o medo que o

homem sente em relação aos perigos e desventuras da existência, mediante uma

leitura teológica da vida e do destino humano que afirma que o ser humano não

está só neste mundo e que a vida não termina com a morte; terceiro, cria normas e

orientações para ordenar a conduta de vida legitimando seu cumprimento

mediante o discurso de recompensa e castigo. Desta forma, Freud afirma que na

religião se combinam três funções: ensino, consolo e exigências271.

269 Ibid., 159-160. 270 Ibid., p. 164. 271 Cf. Ibid., p. 158.

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Segundo ele, a projeção paterna se dá da seguinte maneira em cada uma

dessas funções: na cosmovisão religiosa, se processa a projeção do pai criador; na

interpretação religiosa da vida e do seu destino, acontece a projeção da figura do

pai protetor; e nas orientações morais religiosas, a projeção do pai educador272.

Com isso, Freud postula que a religião consiste num aparato complexo da

psicologia humana que projeta uma visão diferente da realidade, especialmente

relacionada à figura paterna, para satisfazer os desejos infantis do ser humano273.

Com esta interpretação da religião, feita por Freud, fica fácil dizer que, na

religião, o “princípio do prazer” se sobrepõe ao “princípio da realidade”. O

homem, na religião, se deixa dominar por seus desejos de infância sem levar em

conta a correspondência com o mundo real. Por isso, a pessoa religiosa não

consegue superar satisfatoriamente a fase infantil; vive atrelada, na religião, à

figura do pai e à sua ambivalência afetiva. Assim, a religião não consegue realizar

a dissolução do complexo de Édipo. Desta forma, ela revela seu caráter

infantilizante obsessivo e ilusório.

Conclusão Toda esta extensa apresentação deste capítulo nos mostra como o

cristianismo foi compreendido como uma estrutura religiosa desumanizadora.

Cada um dos “mestres da suspeita”, a partir de enfoques diferentes, procura

denunciar o cristianismo como obstáculo ao desenvolvimento da maturidade do

ser humano. Por isso, desumanização e cristianismo aparecem estreitamente

relacionados.

Marx desenvolve uma crítica sociológica. Para ele, o cristianismo não

passa de alienação e ideologia. Como alienação, trata-se de um produto social

com o objetivo de alienar a pessoa de sua tarefa histórica como protagonista da

edificação do tecido social, porque projeta numa realidade fantástica e ilusória,

um Deus e uma outra vida, que consolam e confortam os oprimidos pela

configuração social desumana e que desviam a atenção do homem desta vida e da

alteridade. E como ideologia, o cristianismo se apresenta como uma expressão

legitimadora da infra-estrutura econômica capitalista que considera a mercadoria e 272 Cf. Ibid.159-160. 273 Sobre isso, Freud escreve o seguinte: “... a religião se originou a partir do desamparo da criança, e ao atribuir seu conteúdo à sobrevivência, na idade madura, de desejos e necessidades da infância”. Ibid., p. 163.

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o dinheiro como os valores absolutos da vida. Ora, o cristianismo se apresenta

como desumanizador porque impede o ser humano de assumir a sua verdadeira

vocação de ser histórico e de ser social, pois nesta religião, a projeção humana,

Deus e vida eterna, são mais valorizados que o próprio homem e a sua existência.

Ademais, o cristianismo é desumanizador porque tem como fundamento ou base a

infra-estrutura econômica que reduz o sentido da vida ao ter, ou seja, ao consumo

de mercadorias e ao acúmulo de capital.

Nietzsche faz uma crítica axiológica ao cristianismo. Para ele, os ideais e

valores do cristianismo estão assentados em idéias metafísicas que impedem a

valorização da vida. No seu entender, o cristianismo realiza um deslocamento de

atenção desta vida para uma outra, a vida eterna. Este deslocamento é efetuado,

sobretudo, pela teologia ou pela leitura teológica da existência e pela moral que se

apresenta como antinatural, de ressentimento e culpabilizante. O cristianismo é

desumanizador, para ele, porque impede o desenvolvimento da vida com todas as

suas potencialidades e possibilidades. Esta vida, que deve ser vista como absoluta,

é menosprezada em nome de Deus. Toda a força da sexualidade, das paixões, dos

instintos é reprimida em função de um além metafísico hipotético. No

cristianismo, o amor a esta vida, cede lugar ao amor ao nada. Nos termos de

Nietzsche, o cristianismo desenvolve a “vontade de potência” para o nada, ou seja,

toda a força do ser humano e de sua vida está orientada não para a afirmação desta

existência, mas para Deus e para a vida eterna que nada mais são do que o nada

hipostasiado. Daí o sentido da proclamação da “morte de Deus” para que surja um

novo tempo, pós-cristão, no qual o ser humano seja “super-homem”, capaz de

criar valores que afirmem a vida como o valor absoluto.

Freud, por sua vez, realiza uma crítica psicanalítica à religião, incluindo o

cristianismo. Segundo seu pensamento, a religião se configura como neurose e

como ilusão. Isto porque seu fundamento se encontra no complexo de Édipo que

essa procura perpetuar no dinamismo psicológico da pessoa. Assim como a

neurose obsessiva, a religião aparece relacionada à ambivalência afetiva com

relação ao pai. Ela se apresenta como desumanizadora porque impede a pessoa de

resolver satisfatoriamente este conflito. Na religião, a pessoa revive o conflito

edipiano na sua relação com Deus, a representação religiosa do pai. Devido a esta

relação, a pessoa, além de desenvolver o sentimento de culpa por causa da

hostilidade infantil manifestada contra o pai, se refugia na figura paterna religiosa

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(Deus), assim como a criancinha, por causa da dureza da realidade e para

satisfazer os seus desejos infantis. Ora, a religião se mantém com o sentimento de

desamparo do ser humano. A pessoa encontra na religião um mundo ilusório

capaz de satisfazer os seus desejos de criança relacionados à figura protetora do

pai. Desta maneira, a religião, inclusive o cristianismo, se apresenta como

desumanizadora porque mantém a pessoa na infantilidade, ou seja, numa

dependência do pai onipotente. Isto impede o indivíduo de desenvolver sua

maturidade psicológica que se realiza com a dissolução do complexo de Édipo, no

controle dos impulsos egoísticos pelo intelecto e na relação de abertura e

aceitação da realidade.

Com estas críticas ao cristianismo feitas pelos “mestres da suspeita”, a

visão depreciativa da religião, surgida na modernidade e reforçada por Feuerbach,

encontra uma sistematização bem desenvolvida em função da humanização da

pessoa humana a partir de um pressuposto imanentista. Para todos os três “mestres

da suspeita”, a negação de Deus e do cristianismo é imprescindível para que o

homem possa se afirmar e desenvolver-se a nível pessoal e coletivo, pois a

religião se contrapõe a historicidade e sociabilidade do ser humano (Marx), ao

valor absoluto que esta vida possui (Nietzsche) e à maturidade psicológica da

pessoa e da humanidade (Freud).

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3. A crítica do ateísmo humanista contemporâneo O substrato do ateísmo humanista de Feuerbach e dos “mestres da

suspeita” continua vigorando até hoje. A negação de Deus e da religião em nome

de um suposto humanismo não deixou de ser uma constante. No século XX, este

ateísmo se fez presente de forma moderada e até radicalmente. De forma

moderada, foi desenvolvido no existencialismo ateu, especialmente, com J.P.

Sartre (1905-1980) e A. Camus (1913-1960). Estes filósofos buscaram negar Deus

para afirmar a liberdade e o sentido da existência humana diante do “nada” e do

“absurdo”1. Moderadamente também, foi desenvolvido pela fenomenologia de B.

Russell (1872-1970) e de M. Merleau-Ponty (1908-1961). Russell, o pai desta

orientação filosófica, considerou, em seu livro “Por que não sou cristão”, o

cristianismo como entrave ao conhecimento científico, ao progresso e ao

desenvolvimento de uma moralidade coerente com a humanização2. Merleau-

Ponty, por sua vez, em sua psicologia fenomenológica, rejeitou a existência de

Deus por considerá-la incompatível com a ciência e a moral3. Todavia, nenhum

dos dois hostilizou a religião de forma intensa e militante como Feuerbach e

Nietzsche. Por outro lado, a forma radical do ateísmo humanista se configurou

como ateísmo doutrinário e político relacionado ao regime comunista. A

interpretação equivocada dos escritos de Marx sobre a religião, feita por alguns

teóricos do marxismo, produziu um regime econômico-político-social que

combateu e proibiu a religião em geral, especialmente o cristianismo, porque a

concebia como cúmplice do capitalismo e como fonte de alienação, ou seja, como

1 Cf. SARTRE, J.P. O ser e o nada. Ensaio de ontologia fenomenológica. Petrópolis: Vozes, 1997; Id. O existencialismo é um humanismo. In: Id. Obras escolhidas. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores); CAMUS, A. Le mythe de Sysyphe. In: Id. Euvres complètes. Tome I. Paris: Gallimard, 2007 (Collection de la Plêiade); Id. O homem revoltado. Rio de Janeiro: Record, 1999. A respeito do ateísmo destes autores, cf.: INVITTO, G., Deus não existe: a indemonstrabilidade de uma certeza. In: PENZO, G. – GIBELLINI, R. (Orgs.). Deus na filosofia do século XX. São Paulo: Loyola, 1998, p. 409-420; MONTANO, A. Albert Camus: um místico sem Deus. In: PENZO, G. – GIBELLINI, R. (orgs.). op. cit., p. 479-493. 2 Cf. RUSSELL, B. Por que não sou cristão. E outros ensaios a respeito da religião e assuntos afins. Porto Alegre: L&PM Editores, 2008. 3Cf. MERLEAU-PONTY, M. La structure du comportement. Paris: PUF, 1942; Id. La phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 1945. Sobre o ateísmo deste filósofo, cf. BLOND, J.M. El humanismo ateo en el Colegio de Francia. VVAA. Deus está morto. Religião e ateísmo num mundo em mutação. Petrópolis: Vozes, 1970, p. 229-237; NEPI, P. Interrogação filosófica e opção religiosa. In: PENZO, G. – GIBELLINI, R. (orgs.), op. cit., p. 471-478.

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um obstáculo à realização social do ser humano4. Na extinta União Soviética, a

partir da revolução bolchevista de 1917, com a implantação do regime socialista,

o ateísmo se tornou uma espécie de doutrina oficial apregoada por todos os meios

disponibilizados pelo Estado. E, como a ideologia marxista não ficou restrita ao

“bloco socialista”, o ateísmo combatente da religião transformou-se num

fenômeno presente em toda cultura ocidental.

Atualmente, o fenômeno do ateísmo não é tão marcante como nas décadas

de 60,70 e 80 do século passado; é um fenômeno quase insignificante

estatisticamente5. Hoje não vivemos o “fim da religião” como profetizaram os

“mestres da suspeita”; vivemos numa época em que coexistem o fenômeno da

efervescência religiosa e o fenômeno da indiferença à religião. No entanto, nos

últimos anos têm surgido no ocidente algumas vozes contra a religião, sobretudo

contra o monoteísmo. Alguns escritores têm procurado reviver a militância contra

Deus e contra a religião6. E isto, em nome de um suposto humanismo pós-

moderno. Para estes escritores, as religiões monoteístas, em sua essência e em sua

configuração social, consistem em instâncias simplesmente humanas que

impedem, de algum modo, a realização pessoal e coletiva do homem. Por isso,

podemos dizer que se trata de escritores que representam, embora não tenham a

mesma profundidade, o ateísmo humanista inaugurado por Feuerbach e

fundamentado pelos “mestres da suspeita”.

Neste capítulo, nosso objetivo consiste em fazer a exposição da crítica que

alguns destes escritores ateus tecem contra a religião, sobretudo contra o

4 Sobre o ateísmo do regime comunista, cf. ARVON, H., op. cit., p. 98-103; COLOMER, E. (Org.). Ateísmo en nuestro tiempo. Barcelona: Editorial Nova Terra, 1967, p. 135-210; MIANO, V. Religião e ateísmo no mundo moderno. In: VVAA. Deus está morto?, p. 99-132; NEUSCH, M. op. cit., p. 103-110. 5 Uma pesquisa feita pelo Instituto Gallup em 2005 revela que apenas 2,5% da população mundial se declara atéia. No Brasil, este número fica abaixo de 1%. No entanto, os fenômenos da indiferença religiosa e a ausência de Deus na vida privada estão em crescimento. Uma pesquisa mundial, encomendada pelo Conselho Pontifício para a Cultura, constatou este dado. Uma outra pesquisa realizada pelo CERIS em 2001 revelou que a indiferença religiosa (os “sem religião”) é um fenômeno assumido por 7,4% dos brasileiros. Estes dados estatísticos comprovam que, embora o ateísmo militante e teórico-sistemático esteja em retrocesso, o ateísmo prático, sob o véu da indiferença religiosa, consiste num fenômeno que ganha força a cada dia. 6 Além das obras dos escritores que escolheremos para analisar neste capítulo, há algumas outras que foram publicadas recentemente com a finalidade de questionar a religião em nome de um humanismo, cf.: HITCHENS, C. Deus não é grande. Como a religião evenena tudo. Rio de Janairo: Ediouro, 2007; HARRIS, S. The end of faith: religion, terror and the future of reason. New York: W.W. Norton, 2005; Id. Carta a uma nação cristã. São Paulo: Companhia das Letras, 2007; DENNETT, D. Quebrando o encanto. A religião como fenômeno natural. São Paulo: Editora Globo, 2006; SHANKS, N. God, the devil, and Darwin: a critique of intelligent design theory. New York: Oxford University Press, 2004.

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cristianismo, em função de um humanismo imanentista. Como são muitos,

escolheremos somente três, a saber: José Saramago7, Michel Onfray8 e Richard

Dawkins9. Escolheremos estes três por dois motivos. Primeiro, porque cada um

representa uma área diferente de conhecimento. Segundo, por causa da enorme

repercussão e influência que a obra de cada um pode exercer sobre os seus

leitores. Não podemos esquecer que os três bateram recordes de vendas. Suas

obras, que dizem respeito à religião, são consideradas best-seller e são lidas

mundialmente.

Por causa da escolha que fizemos de três autores, este capítulo será divido

em três seções. Na primeira, nossa intenção é a de expor a crítica que José

Saramago faz ao cristianismo. Na segunda, vamos nos deter na crítica que Michel

Onfray tece contra o monoteísmo. Na terceira, nosso objetivo é o de apresentar as

considerações críticas de Richard Dawkins à idéia religiosa de Deus e à própria

religião. No entanto, queremos deixar claro que, neste capítulo, não temos a

pretensão de tecer qualquer julgamento crítico às idéias destes autores. Isto será

realizado num outro momento. Nosso objetivo simplesmente consiste em

apresentar suas críticas feitas à religião em nome do ser humano.

3.1. A crítica de José Saramago José Saramago apresenta, em alguns de seus romances, artigos e

entrevistas, severas objeções ao cristianismo. A partir da consideração de que

Deus e o ser humano são incompatíveis, concorrentes e opostos, acusa o

cristianismo de ser um entrave ao desenvolvimento das potencialidades e

possibilidades da existência humana. No seu entender, o cristianismo, assim como

as demais religiões monoteístas, menospreza o valor da vida humana em nome de 7 José Saramago é um escritor profícuo. É autor de diversos romances, crônicas, obras de teatros, contos e artigos. Nasceu em Portugal, em 1922, e reside atualmente nas Ilhas Canárias. Ganhou o prêmio Nobel de literatura em 1998. Alguns de seus romances foram adaptados para o teatro e para o cinema. É ateu de orientação marxista. 8 Michel Onfray é filósofo. Nasceu na França, em 1959. É autor de várias obras filosóficas. Foi professor de História da Filosofia na Universidade Sainte-Ursule de Caen de 1983 a 2002. Em 2002, fundou a Université Populaire de Caen, onde ensina, até hoje, Filosofia de orientação ateísta e hedonista. 9 Richard Dawkins é biólogo. Nasceu no Quênia, em 1941, e cresceu na Inglaterra. Doutorou-se pela Universidade de Oxford. Lecionou Zoologia na Universidade da Califórnia em Berkeley. Atualmente, é titular da cátedra de Compreensão Pública da Ciência de Oxford. É conferencista de renome. Faz documentários científicos para a televisão britânica. Idealizou a Fundação Richard Dawkins para a Razão e a Ciência, a qual tem como objetivo apregoar a ciência e combater a religião (cf. o site: www.richarddawkins.net.). É o evolucionista de mais visibilidade no momento.

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um Deus que nada mais é que “uma criação humana que, como muitas criações

humanas, a certa altura toma o freio nos dentes e passa a condicionar o seres que

criaram essa idéia”10.

Para este escritor, a pessoa religiosa, integrante de qualquer religião

monoteísta11, vive em função de uma idéia, a idéia “Deus”, ao ponto de relativizar

a sua própria existência, as dimensões de seu ser e a existência de seus

semelhantes. No cristianismo, segundo ele, esta relativização da vida se fez e se

faz mediante o desprezo por esta existência, pela repressão da corporeidade e da

sexualidade e pela suspeita da alegria de viver12. Por outro lado, a negação da vida

do outro se expressa na hostilidade, mediante a intolerância religiosa, contra

aquele que não é cristão ou contra aquele que, mesmo sendo cristão, professa uma

doutrina cristã diferente. Neste sentido, as guerras entre cristãos e muçulmanos e

entre católicos e protestantes, ao longo da história, servem, segundo ele, como

provas comprobatórias de que o cristianismo historicamente não serviu para

aproximar as pessoas nem para afirmar o valor da vida, pois em nome de Deus

muitas pessoas morreram e mataram13.

Desta forma, assim como Feuerbach e os “mestres da suspeita” teceram

críticas ao cristianismo a partir da relação do ser humano com Deus, Saramago

segue estes pensadores na sua visão do cristianismo, considerando que a idéia

10 Frase de José Saramago encontrada em: MOURA DE BASTO, J. Deus é grande e José Samarago, o seu evangelista. Lisboa: Do Autor, 1993, p. 13. 11 Para Saramago o que diferencia fundamentalmente as diversas religiões monoteístas é a idéia que cada uma tem de Deus. 12 Em entrevista ao jornalista Torcato Sepúlvea, Saramago afirma que o cristianismo, que valoriza “o sangue, o sofrimento, a angústia, a renúncia e o pecado, é uma religião de onde a alegria está ausente, ou então há um certo tipo de alegria que não passa pelo humano, pelo corpo”. In: Público, 02 de novembro de 1991. No episódio do segundo encontro de Jesus com Deus no romance “O evangelho segundo Jesus Cristo”, Saramago elenca o martírio, a vida celibatária, o jejum e a oração intensos, as penitências e mortificações e a vida solitária eremítica como formas de negação desta vida em nome de Deus. Cf. SARAMAGO, J. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 379-387. 13 No romance “O evangelho segundo Jesus Cristo”, Saramago lembra que, com as Cruzadas e com a Inquisição, o cristianismo legitimou a violência e mortes em nome de Deus. Cf. Ibid., p. 387-391. Já na peça teatral “In nomine Dei”, ele retrata um conflito sangrento entre católicos e protestantes numa cidade da Alemanha, no século XVI. No prólogo desta obra, escreve o seguinte: “Não é culpa minha nem do meu discreto ateísmo se em Münster, no século XVI, como em tantos lugares, católicos e protestantes andaram a trucidar-se uns aos outros em nome de Deus – In Nomine Dei – para virem alcançar, na eternidade, o mesmo paraíso”. Cf. Id. In Nomine Dei. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. No artigo “El factor Dios”, escrito por ocasião do atentado terrorista contra as “Torres Gêmeas”, ele afirma que “as religiões, todas elas, sem exceção, nunca serviram para aproximar e congraçar os homens, pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos inenarráveis, de morticínios, de monstruosas violências físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da miserável história humana”. Cf. Id. El factor Dios. In: El País, Madri, 18 de setembro de 2001.

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cristã de Deus realiza a despersonalização e desumanização da pessoa.

Lembramos que, para Feuerbach, a projeção antropológica, que é a idéia de Deus,

realiza a alienação do ser humano de si mesmo e dos outros. Para Marx, a idéia de

Deus, que é a projeção do ser humano oprimido socialmente para obter consolo

frente à dureza e às injustiças da vida em sociedade, distancia a pessoa de sua

essência como protagonista da história. Para Nietzsche, Deus é uma construção da

mente humana que desvia a força desta vida na direção do nada. Para Freud, Deus

é a projeção psicológica da figura paterna mantendo a pessoa como criança sob o

domínio constante do pai. Ora, todos estes expoentes do ateísmo humanista

concebem Deus como um produto humano que atrapalha, de alguma forma, o

desenvolvimento da vida e da maturidade do homem. Para eles, a afirmação de

Deus resulta na negação do ser humano. Saramago não pensa diferente. Para ele,

Deus não passa de uma idéia da cabeça humana14 que impossibilita ao crente de

vivenciar sua única existência de forma sadia, pois em nome de Deus ele renuncia

a si mesmo e se torna capaz de cometer as maiores atrocidades contra o seu

semelhante. Por isso é que, para Saramago, o cristianismo, assim como as demais

religiões monoteístas, se apresenta como desumanizador. Este faz com que o ser

humano viva em função, como um verdadeiro escravo, de uma idéia, “Deus”.

Entretanto, Saramago não sistematiza a sua concepção de religião nem a

sua crítica ao cristianismo. Não podemos esquecer que se trata de um literato. Sua

preocupação não é com a sistematização, e sim com a literatura. Por isso, o que

ele realiza é a apresentação da temática religiosa de forma irônica em seus escritos

literários. Sua preferência é, sobretudo, pelo tema “Deus”. Especialmente em seus

romances este tema se apresenta como fundamental e se configura como o eixo

estruturador de sua obra15. É, portanto, a partir da exposição das várias faces de

Deus na obra deste autor que podemos encontrar sua crítica ao cristianismo.

Nosso interesse nesta seção consiste em apresentar a relação problemática

que se estabelece entre Deus e o ser humano subjacente nos romances deste

14 Numa entrevista feita por Alexandra Lucas Coelho, Saramago afirma o seguinte: “O milagre, a coisa genial, é que fomos capazes de inventar tudo. Até fomos capazes de inventar Deus. O que é que há fora da minha cabeça? Na minha cabeça pode estar Deus, pode estar o Diabo”. “Nem preciso de Deus”. In: Público, de 11 de novembro de 2000. 15 Esta tese é defendida na pesquisa de doutorado em Literatura Portuguesa de Salma Ferraz. Cf. FERRAZ, S. As faces de Deus na obra de um ateu. Juiz de Fora: Editora UFJF – Editora da FURB, 2003.

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autor16. E isto, porque é a partir desta relação que ele tece sua crítica corrosiva ao

cristianismo. Entretanto, não faremos uma análise profunda de todos os romances

nos quais aparecem a temática “Deus” nem realizaremos um estudo minucioso

sobre as faces de Deus nas obras deste autor; apenas vamos apontar as idéias mais

fundamentais que são exibidas nestas obras que expressam uma visão de que o

Deus do monoteísmo impede a afirmação e o desenvolvimento do ser humano. No

entanto, um romance será analisado de forma mais detalhada. Trata-se de “O

evangelho segundo Jesus Cristo”, pois é nesta narrativa que a crítica ao

cristianismo, a partir da concepção de uma oposição entre o ser humano e Deus,

encontra sua maior expressão.

3.1.1. A crítica nos vários romances O núcleo da crítica de Saramago ao cristianismo, como já acenamos

acima, está na acusação que este faz de que a pessoa seja prisioneira de uma idéia

(Deus) que atrapalha a valorização e o desenvolvimento desta vida com tudo

aquilo que lhe é constitutivo e peculiar. Esta crítica se faz presente em todos os

romances em que a temática “Deus” é abordada. Interessa-nos aqui conferir como

isto aparece nestas obras.

Em “Terra do pecado” (1947), seu primeiro romance, Saramago denuncia

a imagem de um Deus que fundamenta o moralismo repressor da sexualidade e

que faz desenvolver o sentimento de culpa e de remorso17. O romance traz como

trama, a história de uma viúva (Leonor) que se envolve num caso amoroso com

dois homens, seu cunhado (Antônio) e um médico ateu (Viegas). Esta mulher vive

um conflito moral entre o desejo sexual e o moralismo religioso. É dominada por

um sentimento de culpa por causa das idéias de pecado original e de castigo

eterno, e, também, por causa de sua empregada (Benedita) que, como

representante da moralidade católica, a acusa constantemente de ser pecadora por

conta de seus casos amorosos. Ora, a idéia de Deus, neste romance, é a de “um

Deus que desde o Éden condena a desobediência e condena o sexo”18. A face de

16 Embora Saramago tenha escrito crônicas, poemas, contos e diários, é somente nos romances que ele apresenta a sua visão sobre a relação entre Deus e o homem. 17 Cf. SARAMAGO, J. Terra do pecado. Lisboa: Editoral Minerva, 1947. Cf. a apresentação que Salma Ferraz faz desta obra destacando a “face de Deus” apresentada pelo autor: FERRAZ, S. op. cit., p. 39-73. 18 FERRAZ, S. op. cit., p. 72.

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Deus revelada aqui é a face da culpa pelo prazer sexual. Ao retratar Deus dessa

forma, o autor acusa o cristianismo, especialmente a moralidade católica

fundamentada na idéia de um Deus que reprime e condena a sexualidade, de

atormentar a consciência humana considerando como pecado aquilo que é

constitutivo do ser humano.

Em “Levantando do chão” (1980), este escritor português conta a história

de uma família de trabalhadores rurais, os Mau-tempo, da região do Alentejo, no

sul de Portugal, descrevendo os seus sofrimentos conseqüentes da miséria e da

exploração por parte do Estado, dos latifundiários e também da Igreja19. Neste

romance o ataque ao cristianismo se dá sob o enfoque sociológico. Deus é

mostrado como aquele que não enxerga a miséria, o sofrimento e a exploração

sofrida pelos camponeses do Alentejo. É acusado de ser uma idéia utilizada pela

Igreja para apoiar o latifundiário e a própria escravidão. Ora, o autor tece, assim, a

crítica de que o cristianismo, representado, sobretudo, pela Igreja Católica aliada

ao Estado e aos latifundiários, legitima a situação precária dos trabalhadores

alentejanos20. O cristianismo, portanto, é acusado de desumanizante porque não

colabora com a promoção da libertação dos injustiçados. Justifica a desigualdade

social obstaculizando a superação de uma situação social desumana.

Em “Memorial do convento” (1982)21, Saramago revela a face do Deus

dos conventos, dando destaque para a Igreja Católica como a sua principal

representante22. Neste romance, um frade franciscano faz uma barganha com o rei

Dom João V (1689-1750): se ele construísse um convento em Mafra, distrito de

Lisboa, para os franciscanos, Deus daria certamente a ele um herdeiro. Ora, Deus,

além de ser mostrado como um instrumento para beneficiar a Igreja, se apresenta

também como aquele que concede favores aos poderosos e como aquele que está

alheio ao sofrimento dos pobres e trabalhadores que darão a vida na construção do

convento. O romance conta a história de três personagens que constituem uma

“trindade profana”: o padre alquimista Bartolomeu, a feiticeira Blimunda e seu

marido, o soldado maneta Baltasar. Estes personagens se juntam para realizar o

sonho de criar uma máquina voadora, a “passarola”. Trata-se de personagens que

simbolizam o anseio de libertação das amarras das regras de vida fornecidas pela

19 Cf. SARAMAGO, J. Levantando do chão. Lisboa: Editorial Caminho, 1980. 20 Cf. FERRAZ, S. op. cit., p. 22-25. 21 Cf. SARAMAGO, J. Memorial do convento. Lisboa: Editorial Caminho, 1982. 22 FERRAZ, S. op. cit., p. 75-107.

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Igreja Católica que reprime a liberdade de pensamento e de comportamento. Na

verdade, esta obra procura mostrar que a idéia de Deus legitima os interesses da

Igreja Católica e o seu poder controlador sobre as pessoas. Por isso, trata-se de um

romance que considera a relação problemática entre Deus e o ser humano. De um

lado está a Igreja, representante oficial de Deus, que nega a liberdade às pessoas

ditando e exigindo o cumprimento de suas regras como vontade de Deus. De

outro, estão os três personagens que procuram burlar o controle eclesial mediante

a construção da “passarola”. Desse modo, o cristianismo, representado pela Igreja

Católica, é revelado pelo autor como desumanizante porque impede a liberdade do

ser humano se mostrando controlador e legislador da vida de seus adeptos.

No romance intitulado “O ano da morte de Ricardo Reis” (1984),

Saramago faz de Ricardo Reis, um dos heterônimos inventados pelo poeta

português Fernando Pessoa (1888-1935), o seu grande protagonista23. Nesta obra

fica revelada mais uma face de Deus para Saramago, a face do Deus dos milagres

que não acontecem24. Num episódio deste romance, Ricardo Reis vai ao Santuário

de N.Sra. de Fátima e observa a quantidade de peregrinos doentes à procura de

milagres, mas nenhum acontece, e observa também o comércio explícito da fé

envolvendo a venda de imagens, santinhos, crucifixos, rosários, medalhinhas e

esculturas. Com isso, o autor questiona, além da comercialização da fé para

explorar financeiramente as pessoas piedosas, a ilusão ou a falsa esperança,

pregada pela Igreja, de que os doentes podem recuperar a saúde de forma mágica

pela ação de Deus atuando na imagem de Fátima; questiona ainda o discurso

culpabilizante que acusa os peregrinos de não terem recebido milagre algum por

causa de seus pecados e da fé insuficiente para merecê-lo. Assim, nesta obra, o

cristianismo é considerado, por este escritor, como desumanizante porque faz uso

da idéia “Deus” para iludir, culpabilizar e explorar as pessoas fragilizadas pela

limitação da enfermidade e da situação de pobreza.

“História do cerco de Lisboa” (1989) traz a trama de uma editora lisboeta

que encomenda a um revisor, Raimundo Silva, a correção de um livro de história

que trata de um fato do século XII, a retomada pelos portugueses, auxiliados pelos

cruzados, do domínio de Lisboa, que antes se encontrava nas mãos dos mouros25.

23 Cf. SARAMAGO, J. O ano da morte de Ricardo Reis. Lisboa: Editorial Caminho, 1984. 24 Cf. FERRAZ, S. op. cit., p. 27-34. 25 Cf. SARAMAGO, J. História do cerco de Lisboa. Lisboa: Editorial Caminho, 1989.

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Ao fazer a correção da obra, o revisor começa a recontar a história de forma

ficcional dando destaque para o conflito religioso que motivou a matança dos

muçulmanos pelos católicos com o objetivo de defender o seu Deus e a sua fé. A

versão ficcional privilegia o conflito entre os deuses étnicos como o fundamento

da guerra entre católicos e mouros: de um lado estão os católicos morrendo e

matando por causa de seu Deus, do outro, os muçulmanos também matando e

morrendo em nome de Alá. Esta batalha histórica é mostrada como uma “guerra

santa”. Ora, neste romance, Saramago revela a face do Deus das guerras

religiosas26. O narrador, por várias vezes, condena os conflitos gerados pela

intolerância religiosa. Na verdade, trata-se do autor questionando o absurdo de

qualquer violência que os homens são capazes de cometer em nome de uma

religião e em nome de Deus. Ele denuncia até que ponto pode chegar uma pessoa

quando obcecada por uma determinada crença: ao ato insano de matar e morrer

em nome de Deus. Assim, para ele, Deus é considerado como uma idéia bastante

nociva ao ser humano, pois consiste numa idéia que condiciona negativamente o

modo de viver da pessoa ao ponto de fazê-la cometer ações ou tomar decisões

descabidas que tende contra sua própria vida ou a vida de outrem. O cristianismo

é aqui criticado como o responsável por pregar e legitimar a relativização do valor

da vida humana em função da absolutização de um Deus irreal. O autor critica,

sobretudo, a intolerância e o fanatismo religiosos que tende a fazer com que as

pessoas se desrespeitem e se maltratem por causa de diferenças religiosas.

Na peça teatral “In nomine Dei” (1993), Saramago retoma mais uma vez o

conflito gerado entre os homens por causa da fé. Desta vez, trata-se de um conflito

entre cristãos, católicos e protestantes. Esta peça retrata as disputas sangrentas

entre os fanáticos anabatistas e os católicos em Münster em 153227. O autor

apresenta, nesta obra, a face do Deus dos conflitos sangrentos entre os próprios

cristãos. Com este drama, o autor critica não só um fato tenebroso da história do

cristianismo, mas também o enfrentamento atual entre os cristãos por causa de

diferenças doutrinais. Questiona o descabimento, a irracionalidade, a maldade a

que se pode chegar por conta da defesa da fé. E mostra como uma mesma

concepção de Deus pode ser motivo de conflito desrespeitoso devido às

divergências doutrinais. A acusação de Saramago é a de que o cristianismo não

26 Cf. FERRAZ, S. op. cit., p. 109-143. 27 Cf. SARAMAGO, J. In nomine Dei.

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serve nem para unir as pessoas que professam a fé no mesmo Deus cristão. Ora, o

cristianismo se configura, para ele, como desumanizante porque atrapalha, devido

à intolerância e ao fanatismo religioso, a unidade fraterna entre as pessoas; impede

o acolhimento da alteridade e o reconhecimento do valor absoluto da vida

humana. Nesta religião, esta é a sua objeção, o cristão dá mais valor a uma

doutrina, a uma igreja, a uma visão teológica do que à vida daquele que professa

uma visão cristã diferente.

Em “As intermitências da morte” (2005), Saramago conta uma história

inaudita e desconcertante: num determinado país, na passagem do ano, a morte

deixa de agir; ninguém morre mais, e, assim, as várias instituições que estão

relacionadas, de alguma forma, à morte entram em colapso28. Uma destas

instituições consiste na Igreja Católica, pois “sem morte não há ressurreição, e

sem ressurreição não há igreja”29. Neste romance, o autor transmite a idéia de que

a morte é a “viga mestra, a pedra angular” do cristianismo. Isto porque o

cristianismo, assim como todas as religiões, procura dar um sentido ao destino

último do ser humano. Ora, para Saramago, as religiões somente existem por

causa da morte. Elas são formas de iludir o ser humano; de contradizer a realidade

própria desta vida; de lhe conceder uma falsa esperança; de alimentar o desejo

humano de imortalidade. Relacionado a isso, o romance apresenta Deus como a

outra face da morte30. Ou seja, Deus consiste numa idéia para dar sentido à morte.

Segundo a consideração do autor, o ser humano necessita da idéia de Deus para

poder aceitar a morte, pois é a crença em Deus que sustenta a crença na

imortalidade, na ressurreição e na vida eterna. Dessa maneira, Saramago critica o

cristianismo, especialmente a Igreja Católica, por alimentar com seus discursos

teológicos, fundamentados na existência de Deus, um engodo, um disparate, a

saber, a vida após a morte, fazendo, assim, desta existência histórica uma

preparação para aquela. Isto, para este autor, se configura como desumanizante

porque impede ao ser humano de enxergar a morte como aquilo que na verdade é:

como um fato natural e definitivo da vida; e impede a valorização e absolutização

desta vida como a única existência que deve ser aproveitada maximamente.

28 Cf. SARAMAGO, J. As intermitências da morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 29 Ibid., p. 18. 30 Ibid., p. 121.

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Assim, constatamos até aqui, desta nossa exposição, que, para Saramago, o

cristianismo consiste na religião que promove o seguinte: a culpabilidade

mórbida, a desvalorização da sexualidade, a alienação social, a legitimação da

injustiça sobre os trabalhadores, o controle eclesiástico sobre a vida dos

religiosos, a exploração financeira dos pobres e enfermos mediante a

comercialização da fé, o conflito religioso com os que são e não são cristãos, e a

ilusão de uma vida após a morte desvalorizando esta existência. Estas várias

acusações ao cristianismo, presentes em vários romances, são feitas a partir das

imagens de Deus que o autor destaca em cada uma de suas obras. Isto revela que,

para ele, é a partir da imagem de Deus pregada pelo cristianismo que este se

configura de forma desumanizante. Ou seja, o cristianismo, representado

especialmente pela Igreja Católica, coloca, segundo ele, a pessoa em relação com

uma determinada imagem de Deus que não colabora com a valorização da vida do

ser humano nem com o estabelecimento de relações respeitosas entre os homens.

1.3.2. A crítica em “O evangelho segundo Jesus Cristo”

“O evangelho segundo Jesus Cristo” (1991) é o romance no qual

Saramago expõe, de forma mais trabalhada, aquilo que é fundamental em sua

crítica ao cristianismo: a relação problemática e desumanizante entre o ser

humano e Deus.

A trama deste “evangelho” mostra uma oposição entre o ser humano,

representado pelo personagem Jesus, e Deus, representado ele mesmo como um

personagem. O enredo é o seguinte: Jesus é escolhido por Deus para realizar uma

missão, a de morrer na cruz como “filho de Deus” para dar origem ao

cristianismo. Jesus, entretanto, recusa a filiação divina e também esta missão,

mas, Deus, desrespeitando a sua liberdade, encaminha forçosamente a sua vida

para que esta culmine com o seu martírio na cruz31.

Saramago privilegia, portanto, de forma ficcional, a figura central,

fundamental e fundante do cristianismo: Jesus de Nazaré e a sua relação com

Deus. O romance reconta a origem do cristianismo, mostrando que este surge de

um conflito entre o humano e o divino, culminando num martírio realizado pela

31 Cf. SARAMAGO, J. O Evangelho segundo Jesus Cristo. Lisboa: Editorial Caminho, 1991. As citações deste item serão feitas a partir da seguinte edição brasileira: O Evangelho segundo Jesus Cristo. 26ª. ed. São Paulo: Companhia Das Letras, 2001.

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vontade de Deus. Trata-se de uma narrativa que descreve como o cristianismo está

assentado sobre uma morte ou um não à vida e um não ao ser humano. Por isso, a

morte de Jesus é o tema que perpassa toda a história. O romance tem início com a

descrição de uma gravura do artista alemão A. Dürer (1471-1528), “A grande

paixão”, sobre a crucificação de Jesus, se desenvolve com a trama de Deus

preparando Jesus para morrer na cruz e termina com a narração da morte de Jesus

e o seu sangue gotejando numa tigela.

O romance é singular. A vida de Jesus é narrada de forma bastante

diferente daquela que é apresentada pelos evangelhos canônicos. Convém lembrar

que se trata de um romance, isto é, uma “ficção em prosa”32 e não de uma

recuperação historiográfica de dados biográficos sobre Jesus de Nazaré ou uma

obra de teologia cristã. Por isso, o autor não é obrigado a se manter fiel nem aos

dados históricos a respeito de Jesus de Nazaré nem tampouco à visão que dele tem

a fé cristã. É livre para compor a narrativa a partir de sua imaginação. No entanto,

não se trata de uma obra inocente, pois, além de uma “satirização” às figuras

bíblicas33, consiste numa crítica ao cristianismo a partir da apresentação da

relação problemática entre Jesus e Deus. Este “evangelho” descreve uma relação

tensa e conflituosa entre os dois. Trata-se de uma história que narra a tentativa

desesperada e frustrada do homem Jesus de se libertar do poder dominador e

opressor de Deus. Em vinte e quatro capítulos – na verdade, interrupções no texto

–, o autor conta a história da vida de Jesus, que é instrumentalizado e conduzido

por Deus, desde o momento de sua concepção até o seu derradeiro momento na

cruz, para realizar uma missão divina: fundar o cristianismo para que Deus se

torne um Deus universal.

A história é a seguinte. Jesus é concebido pelo relacionamento sexual entre

José e Maria (cap.2). A anunciação de seu nascimento a Maria é feita pelo Diabo

sob a forma de um “mendigo-anjo” (cap.3). Maria e José saem de Nazaré para o

recenseamento (cap. 4-5). Jesus nasce em Belém, numa gruta, com a ajuda de uma

parteira chamada Zelomi (cap.6). Os primeiros a visitarem o recém-nascido são

três pastores, dentre os quais um é o Diabo, que oferecem seus presentes: leite,

queijo e pão (cap. 6). O menino é circuncidado no oitavo dia depois do

32 Cf. BERRINI, B. Ler Saramago: o romance. Lisboa: Editorial Caminho, 1998, p. 158. 33 Cf. FERRAZ, S. O quinto evangelista. O (des)evangelho segundo José Saramago. Brasília: Editora UnB, 1998, p. 59-137. FLORES, C. Do mito ao romance. Uma leitura do evangelho segundo Saramago. Natal: Editora da UFRN, 2000.

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nascimento numa sinagoga em Belém, e José começa a trabalhar no templo de

Jerusalém como carpinteiro (cap.7). Jesus é salvo da matança promovida em

Belém pelos soldados de Herodes, pois José fica sabendo com antecedência dos

planos deste infanticídio. Vinte e cinco crianças, no entanto, são mortas por causa

da omissão de José: ele não avisa as famílias de Belém sobre o plano da matança.

Por isso, José é atormentado pela culpa e começa a ter um pesadelo pavoroso

todas as noites: sonha que é um dos soldados de Herodes dirigindo-se para seu

filho com a intenção de matá-lo (cap.8). Quanto a Jesus, tem uma infância normal

em Nazaré com os seus pais e seus oito irmãos. Ajuda o pai na carpintaria, se

instrui no judaísmo e brinca com os irmãos (cap.9 e 10). Aos treze anos de idade,

depois da morte de seu pai, que havia sido inocentemente crucificado aos 33 anos

como revoltoso político em Séforis (cap.11), herda misteriosamente a culpa que

atormentava José e tem um pesadelo constante: sonha que é uma criancinha de

Belém e que o seu pai, como soldado de Herodes, vem a seu encontro para matá-

lo (cap.12). Sai de casa, depois de uma discussão com sua mãe, para procurar

respostas a respeito da culpa que o consumia e dirige-se para Jerusalém (cap. 13),

onde, no templo, questiona um escriba sobre a culpa e o remorso (cap.14). Depois

de ficar sabendo do escriba que “a culpa é um lobo que come o filho depois de ter

devorado o pai”, vai até Belém para obter informações a respeito dos fatos que

cercaram o seu nascimento (cap.15). Por quatro anos, reside no território da

Judéia como ajudante de um estranho Pastor, o Diabo, aprendendo a cuidar de

ovelhas (cap.15-16). Com dezoito anos, tem um encontro com Deus no deserto.

Deus, que se lhe revela numa pequena nuvem, faz com ele uma aliança. Deus

promete a ele poder e glória em troca de sua vida (cap.16). Depois deste encontro,

o Pastor o manda ir embora, porque havia descumprido uma ordem sua: havia

sacrificado a sua ovelha a Deus. Então, torna-se ajudante dos pescadores do Lago

de Genezaré. Faz amizade com Simão, André, Tiago e João e realiza o seu

primeiro milagre, a pesca milagrosa. Conhece a prostituta Maria de Magdala e faz

com ela sua primeira experiência sexual (cap.17). Depois de passar uma semana

na casa desta mulher, retorna a Nazaré, mas sua família não acredita que ele teve

um encontro com Deus. Aborrecido, sai de casa pela segunda vez e passa a viver

no litoral com Maria de Magdala (cap.18). Depois de um anjo ter revelado a

Maria de Nazaré que Jesus é filho de Deus, ela envia José e Tiago à procura dele

com a intenção de lhe pedir desculpas e para lhe solicitar que volte para casa. Mas

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ele não retorna, porque seus irmãos continuam não acreditando que ele havia se

encontrado com Deus (cap. 19). Nas bodas de Caná, se encontra com sua mãe e

rompe definitivamente a relação com ela (cap.20). Sem saber qual é sua missão,

realiza alguns prodígios: acalma uma tempestade, transforma água em vinho nas

bodas de Caná (cap.20), cura a sogra de Simão, dissipa a formação de uma

tempestade, expulsa os demônios de um gadareno, multiplica alguns pães e peixes

para matar a fome de quinze mil pessoas e faz secar uma figueira (cap. 21). Numa

manhã de denso nevoeiro, toma um barquinho e em alto-mar se encontra com

Deus pela segunda vez. O Diabo desta vez também se faz presente. O encontro

dura quarenta dias. Na barca, Deus revela a filiação divina de Jesus e a sua

missão, que consistirá em morrer crucificado com “filho de Deus” para aumentar

o domínio de Deus em todo mundo, com o surgimento do cristianismo (cap.22).

Depois desse encontro, Jesus constitui o grupo dos Doze (cap.22). Realiza alguns

outros milagres, anuncia o arrependimento dos pecados e a proximidade do Reino,

envia os discípulos em missão e é batizado por João Batista (cap.23). Consciente

do terrível futuro de violência e derramamento de sangue que sua morte

provocaria e legitimaria, se revolta contra os planos de Deus e procura ser

condenado à morte, não como “filho de Deus”, mas como “rei dos Judeus”. E

assim consegue. É crucificado como inimigo do Estado. Entretanto, a sua intenção

fica frustrada, pois nos instantes finais de sua vida na cruz, Deus aparece nos céus,

por sobre a cruz, bradando que Jesus é o seu filho amado. Sentindo-se enganado e

como cordeiro levado ao matadouro, Jesus faz um pedido aos homens: “perdoai-

lhe, porque ele não sabe o que fez”. O romance termina com o sangue de Jesus

gotejando numa enigmática tigela negra, o santo graal.

O que nos interessa dessa história ficcional consiste na identidade que

Saramago confere tanto ao seu personagem Jesus como ao personagem Deus e à

relação que é estabelecida entre eles. Acreditamos que isto seja importante,

porque, para o autor, o personagem Jesus, além de representar o fundador do

cristianismo, também representa toda pessoa que assume a fé no Deus cristão; e o

personagem Deus representa, por sua vez, uma idéia poderosa, criada pelo ser

humano e utilizada pelo cristianismo, que determina e condiciona a vida dos

cristãos em função dela. Assim, nesta trama da relação entre Jesus e Deus

podemos encontrar a maior objeção do autor ao Deus cristão e, com isso, ao

próprio cristianismo, a saber: a idéia “Deus”, pregada pela fé cristã, relativiza a

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importância da vida e do homem; o cristianismo se fundamenta na absolutização

de uma ficção humana em detrimento do próprio valor do ser humano e de sua

existência.

No romance, o personagem Jesus é descrito pelo autor como humano e

divino. Por um lado, para afirmar a humanidade de seu personagem, o autor o

apresenta com características marcadamente humanas: a concepção34 e o

nascimento são normais35; é semelhante às demais crianças recém-nascidas36; a

infância é comum em Nazaré, junto com os pais e os irmãos37; o seu corpo se

desenvolve normalmente e sente a força das pulsões sexuais38; se relaciona afetiva

e sexualmente com Maria de Magdala39; experimenta tensões e conflitos no

relacionamento com os outros, especialmente com sua mãe40; é marcado pelo

sentimento de solidão e de abandono41; sofre com a culpa e o remorso42; e faz a

experiência do sofrimento e da morte definitiva43. Esta caracterização humana

deste personagem revela que o autor tem interesse em salientar a sua humanidade.

Trata-se de um personagem bastante humano; igual a todos nós.

Por outro lado, o autor também descreve o personagem com se fosse

portador de uma divindade: sua concepção se dá por causa de uma ação de Deus

que aproveita a relação sexual entre José e Maria44; ele se encontra duas vezes

com Deus45; realiza vários milagres (faz com que os peixes apareçam onde não

havia mais esperança em encontrá-los46, acalma uma tempestade47, cura doentes e

expulsa demônios48, multiplica pães e peixes49, transforma água em vinho50 etc.);

anuncia a proximidade do Reino de Deus, centralizando-se na pregação sobre o

arrependimento51; e morre como “filho de Deus”52. Não obstante, todos os

34 Cf. SARAMAGO, J. O evangelho segundo Jesus Cristo, p. 26-27. 35 Cf. Ibid., p. 82-83. 36 Cf. Ibid., p. 89 e 127-128. 37 Cf. Ibid., p. 121-149. 38 Cf. Ibid., p. 228 e 271. 39 Cf. Ibid., p. 279-284. 40 Cf. Ibid., p. 186-194 e 343-347. 41 Cf. Ibid., p. 189, 234, 269, 298, 303, 338. 42 Cf. Ibid., p. 188-189, 200, 211-213, 223, 287-288, 404. 43 Cf. Ibid., p. 444-445. 44 Cf. Ibid., p. 311 e 370. 45 Cf. Ibid., p. 262-265, 363-394. 46 Cf. Ibid., p. 274-276. 47 Cf. Ibid., p. 336. 48 Cf. Ibid., p. 352-354. 49 Cf. Ibid., p. 361. 50 Cf. Ibid., p. 346. 51 Cf. Ibid. p. 401.

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episódios que descrevem a divindade deste personagem revelam que esta é algo

estranho, alheio e até rejeitado por Jesus.

A humanidade e a divindade do personagem Jesus não se articulam

intrinsecamente como afirma o dogma cristão da união hipostática a respeito de

Jesus Cristo. Trata-se de uma relação extrínseca, em que a humanidade e a

divindade se chocam e se repelem. Na verdade, o Jesus do romance é apenas

humano. Não se trata do Verbo eterno encarnado da fé cristã; sua divindade ou

“filiação divina” consiste apenas em ter sido escolhido por Deus para realizar uma

missão: morrer na cruz. Este Jesus não é “consubstancial ao Pai”; consiste num

ser humano, nada mais que isso, escolhido para servir a Deus. “Filiação divina”

aqui tem sinônimo de escravidão ao poder de Deus. Os próprios milagres e o

anúncio do Reino de Deus são realizados por este Jesus sem sua vontade e sem

sua consciência; ele é forçado por Deus a realizar aquilo que este quer para dar

cabo a seu plano expansionista; trata-se de um “simples joguete nas mãos de

Deus”53. Jesus tem sua humanidade desrespeitada pela sua divindade extrínseca.

Ora, com esta descrição do personagem Jesus, o autor não poderia tê-lo criado

como uma representação do próprio fundador do cristianismo, Jesus de Nazaré,

como, também, de todo o ser humano que experimenta a relação com o Deus

cristão? É bem provável que sim.

É importante que levemos em conta também a imagem que o autor

apresenta de seu personagem Deus. No “evangelho”, este personagem é retratado

como o único portador de uma divindade intrínseca. Somente ele é divino. Além

do mais, se revela como um ser ávido por poder e afirmação; é um

megalomaníaco. Trata-se de um Deus que, por estar insatisfeito com o seu

pequeno domínio restrito aos judeus, planeja expandi-lo a todo mundo com a

criação de uma nova religião, o cristianismo. Entretanto, a realização deste projeto

implica a instrumentalização de um homem, Jesus de Nazaré, que deverá morrer

como “filho de Deus” para que os outros homens, sensibilizados com a sua morte,

possam se tornar seus novos adoradores. A face do Deus exposta aqui pelo autor é

a do “Deus cruel”54; é a face do Deus que deseja a morte de Jesus. Ora, como o

autor relaciona este personagem com o personagem Jesus e com o cristianismo,

52 Cf. Ibid., p. 444. 53 Ibid., p. 220. 54 Cf. FERRAZ, S. op. cit., p. 147-196.

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não podemos dizer que o Deus da ficção simboliza a imagem do Deus da fé

cristã? Não seria este personagem uma representação da imagem do Deus que

podemos abstrair de uma leitura deturpada da “teoria da satisfação”, a saber, a

imagem de um Deus sádico que realiza a morte do Filho? Certamente que sim.

Por isso, é bem provável que Saramago, com o seu personagem, ironiza e contesta

uma imagem cristã de Deus.

Tendo apresentado a identidade dos dois personagens principais, importa-

nos, neste momento, mostrar como a relação é estabelecida entre eles. A relação

entre Jesus e Deus é descrita como conflito. Deus procura manipular o seu “filho”

e encaminha-lo à morte, e Jesus, por sua vez, tenta desesperadamente fugir do

controle divino. Três episódios deste “evangelho” retratam bem a disparidade de

interesses entre esses dois personagens, a saber: (1) o encontro no deserto; (2) o

encontro na barca; (3) a tentativa de Jesus de ser crucificado como “rei dos

judeus” e não como “filho de Deus”.

O primeiro episódio consiste no primeiro encontro de Jesus com Deus55.

Neste episódio, Deus, que aparece sob a forma de “uma nuvem da altura de dois

homens, como uma coluna de fumo girando lentamente sobre si mesma”56, revela

que Jesus havia sido escolhido para dar a sua vida em troca de poder e glória

depois de sua morte.

“A voz disse, Eu sou o senhor, e Jesus soube por que tivera de despir-se no limiar do deserto. Trouxeste-me aqui, que queres de mim, perguntou, Por enquanto nada, mas um dia hei-de querer tudo, Que é tudo, A vida, Tu és o Senhor, sempre vais levando de nós as vidas que nos dás, Não tenho outro remédio, não podia deixar atravancar-se o mundo, E a minha vida, quere-la para quê, Não é ainda tempo de o saberes, ainda tens muito que viver, mas venho anunciar-te, para que vás bem dispondo o espírito e o corpo, que é de ventura suprema o destino que estou a preparar para ti, Senhor, meu Senhor, não compreendo nem o que dizes nem o que queres de mim, Terás o poder o poder e a glória, Que poder, que glória, Sabe-lo-ás quando chegar a hora de te chamar outra vez”57.

O texto descreve que Deus impõe a Jesus, sem sua consciência e consenso,

a morte como seu destino. Aqui o conflito entre Deus e Jesus não aparece tão

claro, porque Jesus desconhece as intenções e o plano de Deus a seu respeito; não

sabe para quê Deus deseja a sua morte. Mas, a narração revela que a vida deste

Jesus será conduzida à cruz pela vontade divina. Para Deus, a liberdade e a vida

55 Cf. SARAMAGO, J. op. cit., p. 262-264. 56 Ibid., p. 262. 57 Ibid., p. 263.

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de Jesus não têm grande importância. O que dá valor a vida deste Jesus é o fato de

que ele irá morrer para realizar o plano de Deus.

O segundo episódio trata-se do segundo encontro de Jesus com Deus58.

Neste episódio, o conflito de interesses é mostrado claramente. Deus faz várias

revelações a Jesus. Primeiro, revela a identidade de Jesus, a sua filiação divina;

diz que tinha misturado seu sêmen ao sêmen de José para concebê-lo no ventre de

Maria. Segundo, revela a finalidade desta filiação: ajudá-lo “a ser deus de muito

mais gente”, deixando de ser o deus dos hebreus para se tornar o deus dos

católicos. Terceiro, revela o modo como este plano será realizado: pela morte

dolorosa de Jesus na cruz. Diante destas revelações, Jesus se nega a colaborar com

Deus em seu projeto. Todavia, sua vontade não é respeitada por Deus: “Foste

escolhido, não podes escolher, Rompo o contrato, desligo-me de ti, quero viver

como um homem qualquer, Palavras inúteis, meu filho, ainda não percebestes que

estás em meu poder...”59. Jesus argumenta que não realizará milagre algum para

não ser reconhecido como “filho de Deus”, ao que responde Deus:

“...admitindo que levarias por diante esta obstinação contra minha vontade, se fosses por esse mundo, é um exemplo, a clamar que não és o filho de Deus, o que eu faria seria suscitar à tua passagem tantos e tais milagres que não terias outro remédio senão renderes-te a quem tos estivesse agradecendo, e, em conseqüência, a mim”60.

Jesus, percebendo a impossibilidade de fugir ao controle divino, aceita

colaborar com o plano de Deus, com a condição que ele responda como será o

futuro depois de sua morte. Jesus quer saber se a pessoas serão mais felizes. Deus

faz, então, a Jesus a quarta revelação. Revela o futuro da história da humanidade

dando destaque ao surgimento da Igreja Católica, a morte dos mártires cristãos –

uma ladainha de cinco páginas -, a renúncia da vida e as mortificações corporais

feitas pelos religiosos, as guerras promovidas pelas Cruzadas, e o extremo da

intolerância católica expressa pela Inquisição. Depois desta revelação, o diálogo

entre estes personagens termina com o pedido de Jesus, “Pai afasta de mim este

cálice”, mostrando claramente que a sua vontade não é a de fazer a vontade

divina.

58 Cf. Ibid., p. 363-394. 59 Ibid., p. 371. 60 Ibid., p. 374.

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O terceiro episódio trata-se da revolta de Jesus e do seu plano para não

morrer como “filho de Deus”. Depois da conversa com Deus, Jesus assume a sua

missão. Realiza milagres, anuncia o Reino de Deus, e faz apelos de

arrependimento e conversão. Mas tudo isso sem o seu querer. Deus é quem fala

por sua boca e age por suas mãos. Ao longo da caminhada missionária, Jesus se

sente culpado pela história futura que há de se realizar com a sua crucificação

como “filho de Deus”; uma história marcada por sofrimentos, guerras e mortes.

Por isso, na tentativa de evitar este futuro, ele elabora um plano contra Deus.

Tenta ser condenado à morte como “rei dos judeus”, inimigo do império, e não

como “filho de Deus”61. Mas seu plano fica frustrado, pois quando está na cruz,

tendo sido condenado à morte como “rei dos judeus”, Deus aparece nos céus para

confirmar a filiação divina de Jesus e desmentir o motivo de sua condenação: “Tu

és o meu Filho muito amado, em ti pus toda a minha complacência”. Com esta

afirmação, Deus acaba com o plano que foi arquitetado por Jesus para não morrer

com “filho de Deus”. E Jesus, em seu último instante de vida, toma consciência

daquilo que havia sido a sua vida: uma história determinada e traçada por Deus,

desde o início, para que tivesse aquele fim. Jesus se sente como um cordeiro

levado ao sacrifício pela vontade de Deus. E sabendo de tudo o que iria acontecer

na história futura por causa de sua morte, pede a humanidade para que perdoe a

Deus pelo descabimento do seu projeto expansionista. Jesus morre sonhando com

seu pai José, que lhe diz: “Nem eu posso fazer-te todas as perguntas, nem tu podes

dar-me todas as respostas”62. Assim, o plano de Deus é realizado.

Estes três episódios nos mostram que o autor estabelece uma relação de

oposição entre Deus e Jesus. São interesses e vontades diferentes e opostas.

Contudo, nesta relação é a vontade de Deus que se impõe e não a vontade de

Jesus. Tudo na vida de Jesus aparece como imposição e controle por parte de

Deus. Ele é uma marionete de um jogo paternalista de prodígios e milagres com a

finalidade de executar o destino traçado por Deus.

Assim, Saramago exibe, em termos literários, a crítica de que Deus é um

obstáculo para o desenvolvimento do ser humano. Ao apresentar um Jesus

marcadamente humano e com uma divindade extrínseca, faz deste personagem um

representante tanto de Jesus de Nazaré como também de todo ser humano que faz

61 Cf. Ibid., p. 436-444. 62 Ibid., p. 444.

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a experiência do Deus cristão. Com este personagem, o autor tenciona afirmar que

o ser humano se desumaniza quando se submete ao domínio do Deus pessoal

cristão, e, ao mesmo tempo, questiona o valor da humanidade do verdadeiro Jesus

de Nazaré que é levado à morte de cruz, segundo a “teoria da satisfação”, para

realizar o plano salvífico do Pai.

O autor acusa o cristianismo de apresentar uma imagem de um Cristo

desumanizado. Ao narrar a história de seu personagem Jesus sendo conduzido

pelo personagem Deus à morte de cruz, o escritor mostra que a imagem de Jesus

pregada pela fé cristã é a de um homem que tem sua liberdade suprimida e sua

existência negada por Deus, pois, o que, de fato, importa na sua vida é o

acontecimento de sua morte. Deste modo, critica o cristianismo mostrando que

este está assentado sobre a negação do humano, pois o seu próprio fundador é

apresentado de forma desumanizada. Portanto, para ele, o cristianismo apresenta a

vida de seu fundador como uma “tragédia grega”, visto que Deus determina antes

do seu nascimento um destino do qual é impossível de se libertar. Por

conseguinte, acusa o cristianismo de centralizar sua atenção sobre a morte de

Jesus e não sobre a sua vida e história.

O Jesus do romance é o modelo da desumanização; é o objeto de uma

despersonalização realizada por Deus. As dimensões básicas e constitutivas do ser

humano lhe são negadas. Este Jesus não dispõe de si mesmo; não é livre para

decidir sobre a sua existência; não tem autonomia para ser senhor de sua própria

vida. Ele é manipulado pela vontade de Deus. Não possui “perseidade”, isto é,

não é possuidor de uma finalidade em si mesmo; seu ser e sua vida são

relativizados; ele consiste simplesmente em ser um “meio” para realizar um

“fim”, o projeto de Deus; trata-se de uma figura que não tem sua dignidade

humana respeitada e valorizada.

Desta maneira, o autor apresenta, em seu personagem Jesus, a concepção

de que a experiência humana do Deus pessoal cristão não colabora com a

afirmação e o desenvolvimento do ser humano. Assim como o personagem Jesus,

a pessoa religiosa em sua relação com Deus é dominada por um poder

desumanizante e escravizador. No episódio do “diálogo da barca”63, o autor, ao

descrever os martírios e as guerras religiosas, constata que o cristão é capaz de

63 Cf. Ibid., p. 364-394.

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morrer, de matar e de renunciar à sua própria corporeidade em nome de Deus. Isto

significa que, por causa desta “servidão” a Deus, fica autorizada a renúncia, o

desprezo, a repressão e a calúnia da própria vida. Deus, para o cristão, é a

realidade absoluta, mais significativa do que a própria vida. Assim, a lógica que

reside na relação entre Deus e o ser humano, segundo o escritor, é a de que quanto

mais a pessoa se entrega ao Deus pessoal mais ela menospreza o seu ser e sua

existência.

Portanto, o romance traz uma crítica explícita à imagem do Deus cristão.

Faz a acusação de que a imagem cristã de Deus é prejudicial ao ser humano que

vivencia sua experiência religiosa. Lembremos mais uma vez que o personagem

Deus nada mais é do que uma representação literária do Deus do cristianismo.

Prova disso é que o autor o descreve como o pai que predestina seu filho Jesus à

morte de cruz. Ora, a concepção de Deus como Pai e a visão de que Deus tenha

desejado e realizado a morte de Jesus Cristo não é algo inventado pelo escritor;

faz parte de uma concepção cristã bastante criticada atualmente pela própria

teologia. Isto mostra que o personagem foi pensado a partir de uma tradição cristã.

Por isso, a imagem do Deus do autor é a imagem que ele captou do cristianismo.

Ao retratar o seu Deus como cruel e que tem gosto por sangue64, o escritor, nada

mais fez do que fazer uso de uma imagem já existente. Por isso, o romance

consiste numa crítica ao Deus cristão que é visto, pelo autor, como uma força

desumanizante.

Entretanto, como para o autor, Deus, como ser absoluto e independente do

homem, não existe, sua crítica se dirige às religiões monoteístas, especialmente ao

cristianismo. Para ele, são as religiões que colaboram com a desumanização do ser

humano, pois elas afirmam e pregam a existência de Deus e fazem com que as

pessoas religiosas vivam em função desta idéia.

Concluindo, o romance se configura como uma crítica ao cristianismo.

Para o autor, o cristianismo em nada pode ser considerado como o portador de

uma “boa nova” para a humanidade. Pelo contrário, no romance, a história do

cristianismo, desde sua origem, é apresentada como um não à vida; uma história

64 No episódio do “diálogo da barca”, o personagem Diabo afirma o seguinte a respeito de Deus: “É preciso ser-se Deus para gostar tanto de sangue”. Ibid., p. 391. Com isso, o autor que dizer que o Deus cristão fundamenta uma fé que leva as pessoas a rejeitarem a própria vida e a vida dos outros. Trata-se de um Deus que fundamenta e legitima a violência.

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de sangue, intolerância e renúncias em nome de Deus65. Por isso, afirma que não

foi a salvação do ser humano que o cristianismo procurou pregar e realizar, mas, a

sua condenação, ou seja, o não ao homem e à sua vida em nome de uma idéia

absolutizada.

“Morrerão milhares, Centenas de milhares de homens e mulheres, a terra encher-se-á de gritos de dor, de uivos e roncos de agonia, o fumo dos queimados cobrirá o sol, a gordura deles rechinará sobre as brasas, o cheiro agoniará, e tudo isto será por minha culpa, Não por tua culpa, por tua causa, Pai afasta de mim este cálice, Que tu o bebas é a condição do meu poder e da tua glória, Não quero esta glória, Mas eu quero esse poder”66.

Ao final desta exposição, podemos dizer que Saramago, através de seu

romance, toma partido pelo ser humano e se opõe a Deus e à religião. Para ele,

nem o cristianismo nem o Deus pessoal colaboram com a afirmação e o

desenvolvimento da existência humana. Pelo contrário, trata-se, segundo ele, de

criações nefastas para a vida, porque apenas colaboram para que o ser humano

faça experiência da “crucificação” de sua vida de forma análoga ao personagem

Jesus que morre crucificado no final da história do romance.

3.2. A crítica de Michel Onfray Além de José Saramago, um outro nome que segue o legado dos grandes

expoentes do ateísmo humanista do século XIX é o do filósofo francês Michel

Onfray, defensor de um projeto hedonista pós-moderno67. Assim como Feuerbach

e os “mestres da suspeita”, desenvolve uma crítica à religião, especialmente ao

monoteísmo, supostamente em defesa do ser humano. Para ele, a religião é uma

criação da própria psicologia humana; uma criação patológica que atenta contra a

afirmação e o desenvolvimento da existência imanente do homem. Em outros

termos, trata-se do resultado de uma força destruitiva do psiquismo que contamina

65 Cf. Ibid., p. 381-391. 66 Ibid., p. 391. 67 Onfray formula um projeto hedonista nas seguintes obras: L’ art de jouir: pour um matérialisme hédoniste. Paris: Éditions Grasset, 1991; La sculpture de soi: la morale esthétique. Paris: Éditions Grasset, 1991; La raison gourmande. Philosophie du goût. Paris: Éditions Grasset, 1995; Politique du rebelle: traité de résistance et d’insoumission. Paris: Éditions Grasset, 1997; Théorie du corps amoureux: pour une érotique solaire. Paris: Éditions Grasset, 2000; L’ antimanuel de philosophie: leçons socratiques et alternatives. Paris: Éditions Bréal, 2001; Féeries anatomiques. Paris: Éditions Grasset, 2003; Archéologie du présent, manifeste pour l’art contemporain, 2003; La puissance d’exister. Manifeste hédoniste. Paris: Éditions Grasset, 2006.

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a vida e impulsiona o ser humano para sua destruição. Ele define a religião,

utilizando termos freudianos, como “pulsão de morte”.

Nossa intenção nesta seção é a de expor a visão a respeito da religião que

este autor postula. Vamos dividir a exposição em dois momentos. No primeiro,

pretendemos apresentar a sua proposta ateísta de uma ateologia, pois é em relação

a esta proposta que aparece a sua concepção negativa da religião, especialmente

do monoteísmo. No segundo, tentaremos expor a crítica que faz à religião

acusando-a de “pulsão de morte”.

3.2.1. A proposta de uma ateologia A noção e, concomitantemente, a crítica de Onfray à religião e a Deus

podem ser encontradas, especialmente, em seu “Traité d’athéologie”68. Esta obra

consiste numa tentativa de propor e elaborar uma nova disciplina filosófica, a

ateologia, a qual tem como objetivo realizar, mediante a mobilização de várias

ciências (psicologia, psicanálise, arqueologia, paleografia, história, comparatismo,

mitologia, hermenêutica, lingüística e estética) coordenadas pela filosofia, uma

desconstrução da religião e do discurso teológico69. Trata-se, por isto, de um

escrito com a pretensão de dar início a “uma física da metafísica, portanto uma

real teoria da imanência, uma ontologia materialista”70.

O tratado filosófico de ateologia, proposto por Onfray, tem como

finalidade colaborar com o processo, iniciado pelo iluminismo do século XVIII e

radicalizado pelos ateus humanistas oitocentistas, de fazer com que o ser humano

atinja sua maioridade com o aporte da razão, superando as ficções infantilizantes

da religião que o alienam por causa da afirmação de uma realidade

transcendente71.

Assim, a ateologia afigura-se como parte de um projeto ateístico militante

contra a religião, especialmente contra o monoteísmo, em favor do domínio da

razão e da leitura imanentista da realidade. Entretanto, o objetivo deste tratado

68 Cf. ONFRAY, M., Traité d’ athéologie. Paris: Éditions Grasset & Fasquelle, 2005. Esta obra foi publicada recentemente no Brasil com o título: Tratado de ateologia: física da metafísica. São Paulo: Martins Fontes, 2007. As citações feitas nesta seção terão como base a publicação brasileira. 69 Cf. Ibid., p. XXIV-XXV. 70 Ibid., p. XXV. 71 Cf. Ibid., p. XXIII-XIV.

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filosófico, segundo Onfray, não se restringe apenas em desconstruir a religião,

mas em possibilitar a formulação, dentro da perspectiva ensinada por Nietzsche,

de novos valores éticos assentados somente na imanência e não mais na

transcendência. Por isso, este filósofo acredita que depois da realização dos três

empreendimentos inaugurais, determinados por ele, que cabem à ateologia72,

haverá bastante material para se trabalhar

“uma nova ordem ética e produzir no Ocidente as condições de uma de uma verdadeira moral pós-cristã em que o corpo deixe de ser uma punição, a terra um vale de lágrimas, a vida uma catástrofe, o prazer um pecado, as mulheres uma maldição, a inteligência uma presunção, a volúpia uma danação”73.

O autor propõe a ateologia porque percebe que o contexto global é

marcado pela religião. Para ele, ao contrário do que possa parecer, estamos

vivendo um período da história caracterizado pelo domínio da religião

monoteísta74. Ainda vivemos, segundo seu entender, numa época em que não

conseguimos alcançar a maioridade da humanidade, pois a religião impede o

desenvolvimento da razão, fazendo do homem um prisioneiro de suas ilusões e

ficções. Neste contexto, a ateologia é uma tentativa ateísta, pautada na crença do

poder da razão, especialmente filosófica, de combater e superar a religião e de

propor uma nova época, na qual o ser humano possa alcançar sua maioridade com

a libertação da crença alienante de uma realidade transcendente.

Para este filósofo, portanto, a militância ateísta tem grande relevância,

particularmente na sociedade ocidental por causa da grande influência do

cristianismo. Para ele, a história do Ocidente pode ser dividida em três períodos:

pré-cristão, cristão e pós-cristão75. A nossa época no Ocidente, de acordo com o

seu diagnóstico, é ainda cristã, mas a presença do fenômeno do niilismo indica um

processo de transição para a uma era pós-cristã. Sua tese é a de que assim como

“uma era cristã sucedeu uma era pagã, uma era pós-cristã se sucederá

inevitavelmente”76. No entanto, ele acredita que esta passagem de uma era cristã

para uma era pós-cristã não acontecerá naturalmente. Isto somente será possível

72 Os três empreendimentos inaugurais, determinados por Onfray, para a ateologia são: (1) descontruir os monoteísmos ou mostrar que as três religiões monoteístas se assentam num mesmo fundamento; (2) desconstruir cada uma destas religiões; (3) desconstruir as teocracias monoteístas. Cf. Ibid., p. 45-48. 73 Ibid., p. 47. 74 Cf. Ibid., p. 27. 75 Cf. Ibid., p. 27. 76 Ibid., p. 28.

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com uma mudança de mentalidade cultural, ou seja, com a substituição de uma

mentalidade religiosa por uma mentalidade racionalista. Daí, a justificação para

uma nova disciplina filosófica, a ateologia, e a militância ateísta.

De acordo com Onfray, o Ocidente é ainda cristão, não por causa

evidentemente do crédito conferido às instituições cristãs, mas por causa dos

valores ou da ideologia cristã que impregnam as engrenagens da civilização e de

nossa cultura. Fazendo uso de uma noção de Michel Foucault, afirma que este

tempo é marcado pela “episteme judeu-cristã”77, que se expressa, principalmente,

numa idéia vaga “de que a matéria, o real e o mundo não esgotam a totalidade”78.

Para ele, a idéia difusa de uma transcendência utilizada para explicar, de algum

modo, a imanência é legado do cristianismo79. Ademais, esta “episteme”, segundo

ele, se faz bastante presente na forma como o corpo humano é compreendido e

tratado pela cultura ocidental80 e no modo como o direito ou a lógica jurídica são

configurados81.

Na opinião deste pensador, até mesmo o ateísmo hodierno está

influenciado pela “ideologia cristã”. Critica aquilo que Deleuze chama de

“ateísmo tranqüilo” ou, segundo sua terminologia, o “ateísmo cristão”, porque

este diz respeito àquela forma de ateísmo que nega a existência de Deus, mas

“afirma ao mesmo tempo a excelência dos valores cristãos e o caráter insuperável

da moral evangélica”82. Por isso, este ateísmo, para ele, é ineficiente para

colaborar com criação da época pós-cristã. Trata-se, no seu entender, de um

ateísmo que, embora faça uma leitura laica e imanente do cristianismo, está

aferrado à mentalidade cristã 83. Ou seja, este ateísmo ao apregoar, por exemplo, a

moralidade cristã, embora laicizada, mantém os valores éticos que a

fundamentam. E estes valores, segundo Onfray, são prejudiciais à existência

humana, porque apontam para a repressão do corpo, dos desejos, dos prazeres, das

77 Cf. Ibid., p. 31-42. 78 Ibid. p. 33. 79 Cf. Ibid. 80 Cf. Ibid., 34-36. 81 Cf. Ibid., p. 36-38. 82 Ibid., p. 42. 83 Onfray elenca os seguintes nomes como representantes de um “ateísmo cristão” contemporâneo: Luc Ferry, André Comte-Sponville, Vladimir Jankélévith, Emmanuel Levinas, Bernard Henri Lévy e Alain Finkielkraut. Cf. Ibid., p. 42-44.

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pulsões e das paixões próprias do ser humano84. Ora, deste modo, o “ateísmo

cristão” se configura, para este autor, tão negativo quanto o próprio cristianismo.

Assim, para ele, é somente com a superação do “ateísmo cristão” que o

ateísmo poderá se apresentar como “um autentico ateísmo ateu”85. E é somente

com a contribuição de um ateísmo radicalmente imanente e não-cristão que uma

nova “episteme pós-cristã” poderá ser legitimada e se firmar historicamente,

produzindo novos valores e desenvolvendo uma moralidade pragmática e

hedonista86.

A ateologia, proposta pelo autor, assume a seguinte pretensão: quer ser um

projeto ateístico pós-cristão de militância contra a religião para possibilitar uma

nova “episteme” ou a configuração de novos valores éticos para o surgimento de

uma nova época, na qual o homem possa se realizar mediante a superação das

ilusões religiosas que se apresentam alienantes e destrutivas. Neste sentido, o

“Tratado de ateologia” é uma suposta contribuição para a humanização do ser

humano. Trata-se de uma obra com a pretensão de oferecer indicações para que o

ateísmo possa ajudar os homens contemporâneos a se conscientizarem sobre o

mal que as religiões, especialmente as monoteístas, representam para a vida

humana e para o progresso da humanidade.

Em “Tratado de ateologia” são ensaiados os três empreendimentos

estabelecidos por Onfray como fundamentais para a disciplina de ateologia. O

livro está dividido em quatro partes. Na primeira, o autor apresenta a proposta da

ateologia como nova disciplina filosófica87. Na segunda, intenta desconstruir as

religiões monoteístas apresentando aquilo que, segundo ele, é o que se encontra na

base do monoteísmo: a pulsão de morte88. Na terceira, se propõe a desconstruir o

cristianismo defendendo a idéia de que em torno da figura conceitual de Jesus se

forjou uma crença, alimentada pela neurose de Paulo de Tarso, que universalizou

a “pulsão de morte”89. Na quarta, busca realizar a desconstrução das teocracias

monoteístas mostrando que todas estas, em oposição à democracia, instauraram a

pulsão de morte nas instâncias de toda a sociedade90.

84 Cf. Ibid., p. 43. 85 Cf. Ibid., p. 44-45. 86 Cf. Ibid., p. 44. 87 Cf. Ibid., p. 3- 48. 88 Cf. Ibid., p. 51-93. 89 Cf. Ibid., p. 97-128. 90 Cf. Ibid., p. 131-189.

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A partir desta proposta ateológica, o ateísmo de Onfray se revela

radicalmente antimonoteísta e especialmente anticristão. Diante desta orientação

filosófica podemos levantar a seguinte pergunta: Por que este filósofo combate o

monoteísmo, sobretudo o cristianismo, e propõe a superação dos seus valores? A

resposta a esta questão é o que nos interessa a seguir.

3.2.2. A religião como “pulsão de morte” Como já afirmamos, no “Tratado de ateologia”, Onfray combate as três

religiões monoteístas que configuram o cenário mundial atual: o cristianismo, o

islamismo e o judaísmo. Todavia, sua atenção se dirige mais ao cristianismo, por

causa do seu papel fundamental na configuração da civilização ocidental91.

Fazendo uso de uma terminologia freudiana, o filósofo francês considera

estas religiões como “pulsão de morte”. Ele não precisa o significado da

expressão. Deixa entender simplesmente que se trata de uma força psíquica

destruitiva orientada contra o próprio ser humano92. Por isso, para ele, as religiões,

além de serem criações da psicologia do homem, são danosas aos seus criadores.

Portanto, no seu entender, o cristianismo, o judaísmo e o islamismo, mesmo sendo

diferentes formalmente, têm uma identidade comum: todas não passam de “pulsão

de morte”.

Mas por qual razão Onfray considera as religiões monoteístas como

“pulsão de morte”? Ao analisar fenomenologicamente cada uma dessas religiões,

este pensador encontra em todas elas elementos comuns que apontam para a

negação da imanência e que impedem que a razão seja norteadora da vida do ser

humano. Sua conclusão, a partir de sua constatação, é a de que uma mesma

“pulsão de morte” está na origem destas religiões. Por isso, todas elas, na

variedade dos elementos que a compõem, orientam o ser humano em oposição a si

mesmo, à sua vida e ao seu desenvolvimento.

“Os três monoteísmos, animados por uma mesma pulsão de morte genealógica, partilham uma série de desprezos idênticos: ódio da razão e da inteligência; ódio da liberdade; ódio de todos os livros em nome de um único; ódio da vida; ódio da

91 A terceira parte da obra trata unicamente do cristianismo, cf. Ibid., p. 95-128. 92 Sobre a “pulsão de morte”, Onfray afirma o seguinte: “Essa estranha força obscura no fundo do ser trabalha na destruição do que é. Onde algo vive, se difunde, vibra, move-se uma contraforça necessária ao equilíbrio que quer deter o movimento, imobilizar os fluxos. Quando a vitalidade abre passagens, escava galerias, a morte se ativa, é o seu modo de vida, sua maneira de ser. Ela corrompe os projetos do ser para fazer o conjunto desmoronar”. Ibid., p. 52.

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sexualidade, das mulheres e do prazer; ódio do feminino; ódio do corpo, dos desejos, das pulsões”93.

O autor considera que tudo o que faz parte das religiões monoteístas é

prejudicial ao homem. Condena sua imagem de Deus, sua teologia, sua moral,

seus valores, sua história, sua configuração cultural e seu domínio sobre a

sociedade como teocracia. Para ele, tudo isto é “pulsão de morte”, ou seja, a força

destruitiva do homem voltada contra si mesmo.

O próprio Deus do monoteísmo é visto como simplesmente uma criação

humana. Defende a tese de que o ser humano inventa inconscientemente a Deus

por causa “do sentimento do vazio diante de uma vida que termina”94. Isto quer

dizer que Deus somente existe por causa da incapacidade do ser humano de

integrar a morte como um processo natural e inevitável da existência. Diante da

não-aceitação da morte, o psiquismo humano produz a idéia de Deus como um

subterfúgio para dar um sentido à vida. Por isso, Deus é considerado, por ele, uma

ficção, uma ilusão ou um mito pertencente “ao bestiário mitológico, como

milhares de outras criaturas repertoriadas em dicionários de inúmeras entradas,

entre Deméter e Dionísio”95.

Entretanto, para ele, Deus se configura não como uma ilusão qualquer,

mas sim como uma ilusão noviça, pois trata de um resultado da “pulsão de

morte”. E isto por três motivos: Primeiro, porque Deus é uma imagem projetada e

hipostasiada do homem. Mas, diferentemente de Feuerbach que considera que

Deus seja a projeção das mais nobres qualidades do ser humano, Onfray postula a

idéia de que Deus seja a projeção hipostasiada do que há de mais sombrio e

negativo no homem.

“...os homens, quando resolvem dar à luz um Deus único, fazem-no à sua imagem: violento, ciumento, vingativo, misógino, agressivo, tirânico, intolerante. Em suma, esculpem sua pulsão de morte, sua parte sombria, e fazem uma máquina lançada a toda velocidade contra eles mesmos...”96.

Segundo, porque sendo uma criação da dimensão irracional do ser

humano, ou seja, da força inconsciente dos desejos, Deus consiste numa ilusão

que se opõe vigorosamente a tudo o que lhe resiste, a saber: a razão, a inteligência

93 Ibid., p. 53. 94 Ibid., p. 6. 95 Ibid., p. 4. 96 Cf. Ibid., p. 51.

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e o espírito crítico97. Deus impede e limita o domínio da razão e não permite que o

ser humano se relacione com o real tal como de fato ele se apresenta. Trata-se de

um obstáculo ao desenvolvimento das potencialidades humanas, pois faz com que

o homem viva alienado de si mesmo em função de uma ilusão.

Terceiro, porque, como expressão primordial da transcendência fictícia,

Deus consiste na idéia principal que legitima e justifica a negação de tudo o que é

natural e peculiar a esta existência98. Por causa de Deus, o homem renuncia a si

próprio menosprezando o valor de sua vida e do mundo; Deus é o sacrifício da

imanência.

Além da idéia de Deus, na segunda parte de seu “Tratado de ateologia”,

Onfray, ao tentar desconstruir teoricamente o monoteísmo, apresenta outros

elementos comuns às três religiões, que expressam, no seu entender, a “pulsão de

morte”. Estes elementos são os seguintes: (1) exaltação de um além (fictício) em

detrimento deste mundo (real), deslocando a atenção da imanência para a

transcendência inexistente99; (2) menosprezo pela razão crítica ou “proibição da

inteligência” em função da ilusão religiosa que escamoteia a visão trágica da

realidade100; (3) a existência de prescrições, proibições e exortações religiosas que

codificam a vontade de Deus e exigem observância fidedigna e acrítica por parte

da pessoa religiosa, fazendo com que ela deixe de assumir autonomamente a

condução de sua vida 101; (4) a obsessão pela pureza corporal por causa de uma

visão dualista que compreende o corpo humano como algo impuro a necessitar

constantemente de purificação para se poder alcançar a salvação102; (5) a crença

de que a vontade de Deus está contida em um único livro que foi por ele inspirado

(Torah para os judeus, Novo Testamento para os cristãos e Corão e os Hadith para

os muçulmanos) e a pretensão de que este livro contém a “totalidade do que é

preciso saber e conhecer”103; (6) a visão depreciativa da ciência ou sua

instrumentalização ou rejeição por causa da leitura fundamentalista dos livros

sagrados104; (7) a aversão à matéria e ao real ou a toda forma de imanência em

97 Cf. Ibid., p. 51. 98 Cf. Ibid., p. 51-52. 99 Cf. Ibid., p. 52. 100 Cf. Ibid., p. 53-55. 101 Cf. Ibid., p. 55-57. 102 Cf. Ibid., p. 57-61. 103 Cf. Ibid., p. 63-66. 104 Cf. Ibid., p. 66-77.

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nome de um mundo de antimatéria; desprezo do aquém por causa do além105; (8)

crença em seres fictícios, como os anjos e o paraíso, que são projetados como

figuras anti-humanas e como realidade antimundo106; (9) o ódio às mulheres e

uma depreciação a tudo o que elas representam para os homens: o desejo, o

prazer, a sexualidade e a vida107; (10) a preocupação exagerada em conter a libido

e destruir o desejo mediante o elogio da continência, a celebração do valor da

castidade e do celibato, a promoção do casamento com fidelidade à esposa, e a

concentração da sexualidade na direção da procriação108; (11) a mutilação do

corpo ou sua negação como prova da pertença da pessoa a Deus, como por

exemplo a circuncisão real para os judeus e a circuncisão mental para os

cristãos109.

Todos estes elementos religiosos, segundo Onfray, são produtos da

“pulsão de morte”. E isto, porque se trata de criações do próprio homem,

configuradas como formas religiosas, para negar e obstaculizar a sua autonomia

em poder gerenciar a sua existência de forma lúcida, mediante a razão, e para

negar a sua vida, seu corpo, seus desejos e paixões em prol de uma realidade

fictícia inexistente.

Estas várias acusações que o filósofo francês faz ao monoteísmo podem

ser sintetizadas em duas críticas convergentes: (1) este menospreza a razão

impedindo o progresso da pessoa e da humanidade (2) e deprecia ou despreza a

imanência, ou seja, o mundo e a vida.

O monoteísmo, segundo Onfray, apresenta um “estranho paradoxo”. Ao

surgir para dar uma resposta consoladora ao ser humano diante do fato da morte,

idealiza uma outra realidade em oposição a esta, legitimando a negação desta

vida. Para ele, as religiões “instalam a morte na terra em nome da eternidade no

céu”110; elas “estragam o único bem de que dispomos: a matéria viva de uma

existência assassinada no ovo sob o pretexto de sua finitude”111.

Entre as religiões monoteístas, este pensador escolhe o cristianismo para

mostrar que este está relacionado à “pulsão de morte” desde o seu momento

105 Cf. Ibid., p. 79-80. 106 Cf. Ibid., p. 80-84. 107 Cf. Ibid., p. 84-87. 108 Cf. Ibid., p. 87-89. 109 Cf. Ibid., p. 91-93. 110 Ibid., p. 52. 111 Ibid., p. 52.

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inicial112. Para ele, o cristianismo surge desta pulsão e contamina tudo com esta

força destruitiva113.

Defende a idéia de que a origem do cristianismo se deve a dois impulsos

da “pulsão de morte”: (1) a criação de uma fábula - a história de Jesus - que se

impõe e é acreditada como realidade114; (2) e a patologia histérica de Paulo de

Tarso que se traduz numa visão negativa do mundo, da vida e do corpo115.

Com relação ao primeiro dado, postula a tese de que Jesus não se trata de

uma figura histórica, mas de um “personagem conceitual” inventado pelos judeus

a partir das aspirações messiânicas surgidas no contexto da dominação romana.

Ele se apóia para defender esta tese no fato de que não existe nenhum dado que

comprove a existência histórica de Jesus. Os próprios evangelhos, para ele, se

comparados, evidenciam várias contradições sobre a vida de Jesus. Por isso, para

este autor, os evangelhos não passam de elaborações ficcionalizantes com caráter

performativo, ou seja, ao enunciar a história de Jesus, criam uma “verdade”

acreditada como realidade.

A “pulsão de morte” com relação ao “Jesus conceitual” reside na alienação

que este provoca. Para Onfray, o problema na origem do cristianismo está no fato

de conferir a esta ficção um sentido de realidade. Ora, quando o mito de Jesus é

cultuado como verdade e quando este se torna parâmetro para a existência

humana, o homem se aliena numa ficção criada originalmente por ele. Isto quer

dizer, que a pessoa, além de sacrificar sua inteligência à crença, deixa de existir

para si mesma e passa a existir para uma ficção, ou seja, canaliza suas forças

positivas não em função do seu crescimento, mas na afirmação de uma

irrealidade.

“Jesus é portanto um personagem conceitual. Toda a sua realidade está nesta definição. Certamente, ele existiu, mas não como figura histórica – a não ser que de maneira tão improvável que pouco importa a existência ou não. Ele existe como cristalização das aspirações proféticas de sua época e do maravilhoso próprio dos autores antigos, isto de acordo com o registro performativo que cria dando nome. Os evangelistas escrevem uma história...eles criam o mito e são criados por ele. Os crentes inventam sua criatura, depois lhe prestam culto: o próprio princípio da alienação...”116

112 Cf. Ibid., p. 95-128. 113 Cf. Ibid., p. 93. 114 Cf. Ibid., p. 97-110. 115 Cf. Ibid., 111-118. 116 Ibid., p. 110.

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No que concerne ao segundo dado, o filósofo francês defende a idéia de

que Paulo de Tarso, ao assumir a fé cristã, contaminou o “Jesus conceitual” com

uma visão negativa da existência. Ele apresenta a idéia de que Paulo era um

homem doente; um neurótico histérico que lidava com sua patologia projetando a

visão de um mundo à imagem de si mesmo. O relato da vocação de Paulo, seu

ressentimento, sua vontade de se fazer ouvido por todos, a visão depreciativa da

sexualidade, o desprezo às mulheres, a desconsideração deste mundo por um

além, a desvalorização desta vida em nome de outra, o elogio à submissão e à

obediência, o ódio à inteligência, o desejo de se maltratar são, na compreensão

deste filósofo, provas de que Paulo possuía sérios problemas psíquicos, pois tudo

isso faz parte da fenomenologia sintomática das neuroses histéricas. Portanto, na

sua visão, Paulo aparece como um homem desequilibrado e dominado pela

“pulsão de morte”. O ódio que Paulo tem de si mesmo se manifesta como ódio

contra toda imanência.

O problema, para o autor, é que a doença de Paulo não se limita a ele.

Paulo faz com que sua neurose se estenda ao mundo todo. Mediante a propagação

pessoal de sua experiência religiosa por vários lugares e mediante seus escritos,

Paulo “neurotiza” o mundo com a sua doutrina ou a interpretação que faz de

Jesus. Com Paulo, o mito de Jesus recebe um sentido danoso à existência e é

difundido para além da Palestina. Assim, o “Jesus conceitual” se torna uma

armadilha contra a vida de um número maior de pessoas. Toda visão negativa de

Paulo a respeito da vida e do mundo ganha crédito entre os não-judeus. Deste

modo, Paulo é um dos maiores responsáveis pela propagação do cristianismo

como “pulsão de morte”. Tudo que há de negação à vida do cristianismo,

inclusive o radicalismo anti-hedonista, procede da “pulsão de morte” de Paulo117.

A “pulsão de morte” paulina, segundo Onfray, se oficializa e atinge toda a

sociedade com a cristandade ou com o estado totalitário cristão118. Tudo começa

com Constantino e Teodósio que, no século IV, relacionam o cristianismo ao

Império, e a Igreja ao Estado. Tornando-se religião oficial, o cristianismo

transforma a “pulsão de morte” em elemento configurador de toda a civilização

ocidental.

117 Cf. Ibid., p. 111. 118 Cf. Ibid., p. 119-128.

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De acordo com este autor, a cristandade se relevou como “pulsão de

morte”, sobretudo contra os pagãos e não-cristãos e suas culturas119. Tudo aquilo

que representava o paganismo ou outra religião foi visto de forma negativa e, por

isso, condenado. Grande parte da riqueza cultural pagã, inclusive a produção do

seu pensamento, foi destruída. O cristianismo impôs sua doutrina; fez da “pulsão

de morte” uma máquina do Estado. O estado totalitário cristão não contribuiu com

o desenvolvimento e afirmação da vida e do ser humano. Pelo contrário, produziu

“cultura de morte, cultura de ódio, cultura de desprezo e de intolerância”120;

impediu a liberdade, a alteridade cultural, o progresso do pensamento laico, a

democracia, a fraternidade entre os povos. Enfim, o cristianismo, configurado

como cristandade, maximizou a “pulsão de morte” contra o próprio cristão e,

especialmente, contra os não-cristãos, impedindo que o homem ocidental

desenvolvesse as potencialidades de vida e de cultura.

Portanto, Onfray avalia negativamente a teocracia cristã ou a cristandade

medieval. Chega a afirmar que o estado cristão medieval se equipara aos regimes

totalitários de ontem e de hoje.

“O que define hoje os regimes totalitários corresponde ponto por ponto ao Estado cristão tal como é fabricado pelos sucessores de Constantino: uso de repressão, perseguições, torturas, atos de vandalismo, destruição de bibliotecas e de lugares simbólicos, impunidade dos assassínios, onipresença da propaganda, poder absoluto do chefe, remodelagem de toda a sociedade segundo os princípios da ideologia do governo, extermínio dos oponentes, monopólio da violência legal e dos meios de comunicação, abolição da fronteira entre vida privada e espaço público, polarização geral da sociedade, destruição do pluralismo, organização burocrática, expansionismo, sinais estes que qualificam o totalitarismo de sempre e o do Império cristão”121.

É pensando desta forma que Onfray procura criticar a teocracia

monoteísta. Na quarta parte de seu “Tratado de ateologia”, apresenta argumentos

para desconstruir as teocracias122. Por teocracia, o autor entende, embora não a

defina, o domínio ou a influência marcadamente determinante das concepções

religiosas ou da própria religião sobre o governo da sociedade; trata-se da

gerência das relações pessoais e sociais – o que deve ser feito, pensado, vivido e

praticado – em nome de Deus ou segundo sua vontade; consiste, em outros

termos, no domínio da transcendência sobre a imanência.

119 Cf. Ibid., p. 125-128. 120 Ibid., p. 127. 121 Ibid., p. 124. 122 Cf. Ibid., p. 129-189.

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O filósofo constata que o judaísmo, o cristianismo e o islamismo têm

grande incidência social no mundo atual. Cada religião monoteísta, segundo ele,

tenta estabelecer a vontade divina sobre os diversos âmbitos da configuração da

sociedade. O mundo muçulmano, para ele, por exemplo, é o mais teocrático

literalmente, pois o próprio Estado rende-se à ideologia islâmica. Já o mundo

ocidental, embora niilista e secularizado, pode ser considerado como teocrático

porque, além de sofrer com as interferências das instituições cristãs, é

condicionado pelos valores ético-cristãos. Por isso, neste século, segundo seu

diagnóstico, trava-se ainda uma guerra entre as religiões monoteístas; um conflito

teocrático. De um lado está o Ocidente judeu-cristão e do outro, o mundo

muçulmano.

A primeira crítica que Onfray tece as teocracias é que estas se

fundamentam em fontes frágeis123. Os livros sagrados, para ele, são intempestivos,

enigmáticos, cheios de contradições, incoerentes e fabulosos. Por isso, não podem

servir como base segura para a moralidade do ser humano. Ademais, por causa da

contradição que envolve os textos, estes dão margem tanto para justificar a

violência, o ódio e a intolerância, quanto um “indefectível amor ao próximo”124.

Neste sentido, o autor lembra, como exemplo, que o episódio neo-testamentário

em que Jesus expulsa os mercadores do templo pode fundamentar a violência e,

assim, invalidar todos os outros excertos bíblicos que transmitem a figura de um

Jesus pacífico125.

A segunda crítica que este filósofo faz diz respeito à “pulsão de morte” da

religião que se torna mais poderosa na teocracia. O problema das teocracias,

segundo Onfray, é que estas aumentam o poder de destruição da religião; fazem

com que a “pulsão de morte” da religião atinja toda a sociedade. Neste sentido,

afirma que, devido à “pulsão de morte”, os cristãos, judeus e muçulmanos tendem

a assumir, acriticamente, como vontade de Deus somente aquelas páginas dos

livros sagrados que legitimam e justificam a violência. Assim, aqueles preceitos

“sagrados” positivos à vida, como a proibição de matar e o amor ao próximo são

relegados ao esquecimento ou são apenas observados entre as pessoas que

partilham a mesma fé. Os livros sagrados, deste modo, são colocados a serviço da

123 Cf. Ibid., p. 131-147. 124 Ibid., p. 136. 125 Cf. Ibid., p. 140.

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“pulsão de morte”; eles servem para fundamentar e autorizar as maiores

atrocidades cometidas contra o valor da vida humana126.

Com relação ao cristianismo, Onfray elenca vários acontecimentos

históricos que mostram que esta religião ignorou, ou interpretou a partir da

“pulsão de morte”, os textos positivos do Novo Testamento que afirmam e

valorizam a vida. Os fatos elencados são os seguintes: (1) o anti-semitismo127; (2)

a colaboração ativa do Vaticano com o nazismo128; (3) a justificação, feita pelo

papa João Paulo II e pelo episcopado francês, do uso de armas atômicas,

especialmente contra os comunistas129; (4) a justificação, ao longo da história, da

escravidão dos não-cristãos130; (5) o colonialismo, genocídio e etnocídio

legitimados e realizados em nome de um imperialismo cristão131. E ainda, de

forma sintetizada, apresenta os resultados negativos do cristianismo com as

seguintes palavras:

“A história comprova: milhões de mortos, milhões, em todos os continentes, durante séculos, em nome de Deus, com a Bíblia em uma mão, o gládio na outra; a Inquisição, a tortura, o suplício; as Cruzadas, os massacres, as pilhagens, as violações, os enforcamentos, os extermínios; o tráfico de negros, a humilhação, a exploração, a servidão, o comércio de homens, de mulheres e de crianças; os genocídios, os etnocídios dos conquistadores muito cristãos, certamente, mas também, recentemente, do clero ruandês ao lado dos exterminadores hútus; a parceria com todos os fascismos do século XX – Mussolini, Pétain, Franco, Hitler, Pinochet, Salazar, os coronéis da Grécia, os ditadores da América do Sul, etc. Milhões de mortos pelo amor ao próximo”132.

Deste modo, Onfray considera que o cristianismo, assim como as demais

religiões monoteístas, não contribuiu positivamente para a configuração de uma

história em que a vida humana fosse afirmada e desenvolvida. Pelo contrário, sua

opinião é a de que estas religiões realizaram e ainda realizam aquilo que há de

mais negativo contra a vida: a sua negação em nome de ficções, mitos e fábulas.

Para ele, o monoteísmo realiza a alienação da vida. Ao criar um único

Deus, o céu e a vida eterna exatamente para responder ao vazio da morte, o

homem atribui a estas ficções, geradas pelo temor do nada, uma importância

maior que o mundo e a existência reais. Na verdade, o autor considera, por isso, o

126 Cf. Ibid., p. 149-151. 127 Cf. Ibid., p. 155-156. 128 Cf. Ibid., p. 157-163. 129 Cf. Ibid., p. 163-164. 130 Cf. Ibid., p. 164-167. 131 Cf. Ibid., p. 167-169. 132 Ibid., p. 155.

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monoteísmo como uma das formas mais eficientes de recalcamento da “pulsão de

vida” e manifestação da “pulsão de morte”133. Isto quer dizer que ao

supervalorizar o transcendente inventado, a realidade ou a imanência é

desprezada. Há, desta forma, nas religiões, segundo ele, um “recalcamento de

tudo o que vive” e “uma celebração de tudo o que morre, do sangue, da guerra, do

que mata – dos que matam”134. Por isso, é que nestas atua, segundo ele, um ódio

que contamina tudo aquilo que diz respeito ao ser humano e a sua única existência

imanente.

“Daí tantas ocasiões de ver esse ódio atuar: com o corpo, os desejos, as paixões, as pulsões, com a carne, as mulheres, o amor, o sexo, com a vida sob todas as formas, com a matéria, com o que aumenta a presença no mundo, ou seja, a razão, a inteligência, os livros, a ciência e a cultura”135.

Por causa desta visão do monoteísmo, sobretudo do cristianismo, é que

Onfray justifica seu ateísmo e sua proposta de ateologia. Para ele, se faz urgente

combater as religiões monoteístas. A tolerância com relação a elas representa

conformidade com seus resultados, ou seja, com a negação da vida e com a

obstaculização do progresso humano. Assim, a atitude mais coerente, no seu

entender, consiste em buscar minar o pensamento mágico, a fábula, o mito, ou

seja, aquilo que dá aporte para a fundamentação da religião. O relativismo pós-

moderno que iguala todos os discursos é danoso, pois se trata de uma visão que

justifica ou torna plausível todos os discursos, inclusive o religioso. O autor apóia

a plausibilidade de apenas um discurso, o da razão. Somente a força da razão,

segundo ele, poderá colocar fim à história das religiões e à sua “pulsão de

morte”136.

No entanto, acredita que no Ocidente isto implica algo muito mais

profundo do que somente impor a razão contra o pensamento mágico e religioso.

Implica também a superação da “laicidade militante” atual, que se apóia na ética e

na moralidade judaico-cristã, pela “laicidade pós-cristã”, que, além de se basear

no pensamento racional, também elabora um novo quadro de valores éticos para a

sociedade137. Dessa forma, Onfray, propõe, com seu ateísmo ateológico militante,

a superação das religiões monoteístas que configuram grande parte do cenário

133 Cf. Ibid., p. 169-170. 134 Ibid., p. 169. 135 Ibid. 136 Cf. Ibid., p. 185-189. 137 Cf. Ibid., p. 187-189.

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mundial, especialmente o Ocidente, por um novo tempo caracterizado pelo

domínio da razão e da imanência. Assim, o filósofo anuncia a necessidade de um

novo iluminismo para que a “pulsão de vida” supere a “pulsão de morte” do

monoteísmo.

Por fim, constatamos que este pensador, seguindo a lógica do ateísmo

humanista, defende a incompatibilidade entre Deus e o ser humano. A afirmação

de um supõe a negação do outro. O Deus do monoteísmo, para ele, deve ser

negado para que o homem assuma a sua existência de forma prazerosa e

desenvolva sua maioridade por meio do progresso racional. Em outros termos,

podemos dizer que ele rejeita a Deus em nome tanto da razão quanto das paixões

ou do prazer de viver; enfim, rejeita a Deus em nome da afirmação do ser

humano. A filosofia de Onfray atualiza, sobretudo, a crítica à religião feita por

Nietzsche e Freud.

3.3. A crítica de Richard Dawkins Richard Dawkins, diferentemente de José Saramago e de Michel Onfray,

não critica a religião a partir da literatura ou da filosofia. Sua crítica parte da

ciência, especificamente da biologia, sobretudo da teoria evolucionista

darwiniana. Como um dos mais proeminentes evolucionistas da atualidade,

combate a religião por considerá-la incompatível com a ciência, visto que suas

“verdades” são improváveis cientificamente por carecerem totalmente de

evidência. Por isso, no seu entender, a religião postula a “crença sem provas”, o

que representa um sério entrave ao conhecimento científico, pois, ao exigir a

aceitação de suas verdades cristalizadas, ela desautoriza qualquer investigação

científica que possa contradizê-la. Assim, a religião mina o empreendimento

científico; impede o progresso da razão, do intelecto, do conhecimento.

Na verdade, Dawkins desconsidera a religião, especialmente a monoteísta,

porque esta professa, contra todas as evidências científicas, a existência de um

Deus pessoal e inteligente que tenha criado toda matéria e toda forma de vida

existente com a finalidade bem determinada. Portanto, o ponto de partida do

combate que Dawkins empreende contra a religião está na sua oposição teórica ao

criacionismo e à teoria do “design inteligente”. Seu ateísmo militante é em favor

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da teoria evolucionista e em favor da leitura científica da complexidade biológica

da vida e da natureza.

Em suas várias obras, concernentes à biologia evolucionista, Dawkins

ataca a fé num Deus pessoal e a crença religiosa na criação do mundo por um ser

divino138. No entanto, é em seu “The God delusion”139 que a crítica ao Deus

pessoal e criador, como também à religião, é apresentada de forma mais explícita

e sistematizada. Neste livro, procurando defender a teoria evolucionista, considera

que Deus consiste, como aparece no título da obra, num “delírio”. Ou seja, para

ele, Deus corresponde a uma falsa crença que persiste em se sustentar mesmo

diante das fortes evidências científicas que a contradizem140.

O referido livro é um projeto ateístico em prol do pensamento científico.

Isto pode ser comprovado claramente no objetivo desta obra. Segundo o autor,

“Deus, um delírio” tem como objetivo a realização de quatro conscientizações: (1)

“conscientizar para o fato de que ser ateu é uma aspiração realista, e uma

aspiração corajosa e esplêndida”141; (2) conscientizar de que a seleção natural

darwiniana é uma teoria bastante plausível para explicar e entender a origem e a

dinâmica da vida no mundo142; (3) conscientizar para o mal que a educação

religiosa promove nas crianças143; (4) conscientizar para o fato de que ser ateu não

é algo negativo, mas trata-se de algo do qual a pessoa tem que se orgulhar144.

Deste modo, o autor manifesta a pretensão de colaborar para que os ateus

possam “sair do armário”, ou seja, possam assumir o ateísmo explicitamente, sem

medo145. Sua pretensão é tamanha que chega a afirmar que até os leitores

138 Dawkins é autor de uma literatura considerável sobre o evolucionismo, cf. DAWKINS, R. The selfish gene. Oxford: Oxford University Press, 1976. Id. The Extended Phenotype: the gene as the unit of selection. Oxford: Oxford Universit Press, 1982; Id. River out of Eden: a darwinian view of life. London: Phoenix, 1995; Id. The blind watchmaker: why the evidence of evolution reveals a universe without design. Nova York-London: W.W. Norton, 1996; Id. Climbing mount improbable. London: Viking Peguin, 1996; Id. A Devil’s chaplain: reflections on hope, lies, science, and love. Boston: Houghton Mifflin, 2003; Id. The ancestor’s tale: a pilgrimage to the dawn of life. London: Weidenfeld & Nicolson, 2004. O biofísico molecular e teólogo Alister McGrath publicou uma obra, na qual investiga o conceito de Deus nos escritos de Dawkins, cf. McGRATH, A., Dawkins’ God: genes, memes and the meaning of life. Oxford: Blackwell, 2004. 139 Cf. DAWKINS, R. The God delusion. London: Bantam, 2006. Nesta seção vamos utilizar a versão traduzida para o português: Deus, um delírio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 140 Cf. Ibid., p. 28-29. 141 Ibid., p. 23. 142 Cf. Ibid., p. 25. 143 Cf. Ibid., p. 26. 144 Cf. Ibid., p. 26-27. 145 Cf. Ibid., p. 28.

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religiosos que lerem o referido livro serão ateus quando terminarem a leitura146.

Ora, sua obra se apresenta como incentivadora da posição ateísta. Ademais, trata-

se de uma manifestação contra a educação ou doutrinação religiosa das crianças.

Pois, no seu entender, é mediante a educação religiosa familiar e escolar que a

religião se propaga. Para ele, o fim da doutrinação religiosa infantil é

indispensável para o progresso das pesquisas científicas, pois a criança aprenderá

a pensar e não somente acreditar nas “verdades prontas” e equivocadas da

religião147.

Nesta seção, nosso objetivo consiste em apresentar, pautado unicamente

em “Deus, um delírio”, a concepção crítica que Dawkins desenvolve contra o

Deus pessoal e a religião monoteísta. Iremos dividir a seção em três momentos.

No primeiro, vamos nos concentrar na oposição de Dawkins à crença na

existência de Deus. No segundo, nossa atenção estará voltada para a sua teoria

biológica para explicar o fenômeno religioso no ser humano. No terceiro,

destacaremos as suas objeções à religião.

3.3.1. Deus como delírio

Dawkins esclarece que o Deus que ele combate diretamente não é o Deus

dos filósofos nem o Deus panteísta ou deísta de alguns cientistas, mas o Deus do

monoteísmo, aquele “Deus intervencionista, milagreiro, telepata, castigador de

pecados, atendedor de preces da Bíblia, dos padres, mulás e rabinos, e do

linguajar do dia-a-dia”148. Não combate a noção filosófica ou até mesmo científica

de Deus, porque esta não é tão nociva e propagada quanto à noção de Deus da

religião. Faz isto porque percebe que o Deus da religião é a noção que subsiste

culturalmente, mediante a educação religiosa das crianças, dificultando ou

impedido-as de aceitarem os dados científicos a respeito da origem e

desenvolvimento da vida.

Para o biólogo, o Deus da religião na verdade não existe; só existe como

delírio. No seu entender, a existência de um Deus criador, pessoal e inteligente, tal

como professa o monoteísmo, contraria a teoria da evolução darwiniana, pois,

146 A frase literal é a seguinte: “Se este livro funcionar do modo como pretendo, os leitores religiosos que o abrirem serão ateus quando o terminarem”. Ibid., p. 29. 147 Cf. Ibid., p. 396-437. 148 Ibid., p. 44.

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para esta, “qualquer inteligência criativa, de complexidade suficiente para projetar

qualquer coisa, só existe como produto final de um processo extenso de evolução

gradativa”149. Em outras palavras, isto quer dizer que qualquer inteligência

criativa é produto da evolução. “Entidades complexas o bastante para serem

inteligentes são resultado de um processo evolutivo”150. Ora, segundo esta lógica

darwiniana, Deus é improvável, porque na origem da evolução não pode haver

nenhum ser pessoal com tamanha complexidade e se este existisse, sua existência

seria algo evidente.

Dawkins considera que não está ultrapassando o limite da ciência quando

faz considerações a respeito do Deus da religião. Para ele, é coerente que a ciência

procure fazer investigações sobre Deus. A existência de Deus, no seu entender,

deve e pode ser uma hipótese a ser investigada e comprovada ou não pela ciência.

E isto, porque desde o momento em que a religião profere como “verdade” algo

que diz respeito ao campo de pesquisa da ciência, esta tem o direito de realizar sua

investigação para comprovar se aquela “verdade” pode ser verificável ou não.

Ora, na religião monoteísta Deus é acreditado como criador, como aquele que age

na história e como aquele que se comunica conosco de alguma maneira. Diante

dessa crença, a ciência tem o direito de averiguar se isto de fato é ou não provável,

pois a afirmação de um Deus que cria todas as formas de vida e que age no mundo

contraria a teoria científica da evolução.

Deste modo, ao contrário da tendência agnóstica que afirma a

impossibilidade de afirmar a existência ou a inexistência de Deus, Dawkins

defende a idéia de que a ciência pode dizer quase com certeza se Deus existe ou

não, a partir das evidências a favor ou contra sua existência presentes nas lógicas

da natureza e da dinâmica biológica da vida151.

De acordo com sua visão, Deus provavelmente não existe, porque não há

nenhuma evidência de sua existência. Para fortalecer seu argumento, retoma o

resultado de uma pesquisa realizada com a intenção de medir a eficácia da oração

feita para as pessoas doentes152. O resultado revela que a oração não tem eficácia

149 Ibid. 150 Ibid., p. 109. 151 Cf. Ibid., p. 74-93. 152 Cf. Ibid., p. 93-99.

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alguma, pois “não houve diferença entre os pacientes que foram alvo de preces e

os que não foram”153.

Partindo da tese de que Deus não é evidente, Dawkins critica os vários

argumentos elaborados para defender a existência divina154. De acordo com sua

avaliação, nenhum dos argumentos prova a existência de Deus. Os cinco

argumentos de Tomás de Aquino, para ele, não demonstram nada, pois todos

pressupõem a crença em Deus155. Os argumentos do motor imóvel, da causa sem

causa e o cosmológico, que se baseiam na idéia da regressão infinita ou de uma

origem para tudo o que existe, apenas postulam que Deus é esta origem. Ora, para

o autor, não existe nada no mundo que evidencie de forma clara que Deus seja

“uma terminação natural para a regressão de Tomás de Aquino”156. Segundo ele,

os outros argumentos tomistas, isto é, o argumento do grau e o teleológico ou

argumento do design também não provam coisa alguma. Este último argumento

foi derrubado, de acordo com este cientista, por Darwin, o qual provou que

nenhum organismo vivo é projetado por um ser divino, mas é fruto do dinamismo

evolutivo. Portanto, afirmar que Deus seja o projetista das coisas do mundo,

especialmente da vida, por causa de sua complexidade e perfeição natural não

comprova a existência de Deus. Os organismos vivos são complexos e perfeitos

naturalmente por causa da evolução pela seleção natural.

Do mesmo modo, o argumento ontológico de Anselmo de Canterbury,

para Dawkins, se revela falho157. Afirmar que Deus é o ser do qual não se pode

pensar nada de maior, consiste, segundo ele, num argumento que impõe uma

conclusão “sem utilizar um único dado proveniente do mundo real”158. Portanto,

se trata de um argumento falacioso: lógico, mas não evidente.

Dawkins rechaça ainda, como vazio e sem lógica, o argumento da beleza

que afirma que algo esplendidamente belo, como as grandes produções artísticas

da humanidade, evidencia que Deus existe159. Rejeita o argumento da

“experiência” pessoal do divino, a qual pode acontecer mediante visões, audições

e sonhos. Para ele, estas “experiências” nada mais são do que fenômenos

153 Ibid., p. 96. 154 Cf. Ibid., 111-153. 155 Cf. Ibid., p. 111-115. 156 Ibid., p. 113. 157 Cf. Ibid., p. 115-122. 158 Ibid., p. 119. 159 Cf. Ibid., p. 122-124.

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produzidos pelo cérebro humano como “programas de simulação”160. Condena

também o argumento das Escrituras. Pois, no seu entender, os “livros sagrados”

não são garantia de que Deus exista, porque são livros com “status de lenda, tão

duvidosos em termos factuais quanto as histórias do rei Arthur e seus Cavaleiros

da Távola Redonda”161. Descarta ainda, como sem sentido, alguns outros

argumentos populares162.

Deste modo, Dawkins conclui, depois de analisar os vários argumentos a

favor da existência de Deus, que todos eles não conseguem provar que Deus

exista. Segundo ele, estes argumentos são provas que apontam para a

improbabilidade de Deus163.

Apoiando-se na teoria da seleção natural darwiniana, Dawkins dedica um

capítulo inteiro desta sua obra, precisamente, para defender o argumento da

improbabilidade164. Na sua compreensão, este argumento, “empregado de forma

adequada, chega perto de provar que Deus não existe”165. Para ele, o argumento

da improbabilidade afirma que os seres vivos complexos não podem ter surgido

por acaso. No seu entender, os organismos vivos mais complexos são produtos da

evolução e não do acaso ou de um design. Isto significa dizer que os seres vivos

não foram criados por um ser inteligente, mas existem como tais, por causa do

processo evolutivo provocado pela seleção natural. Ora, a seleção natural defende

que a complexidade organizada dos seres vivos somente pode surgir de princípios

simplórios, ou seja, de organismos vivos bastante simples. Assim, para esta teoria,

a existência de uma complexidade irredutível antes do processo evolutivo é algo

não provável. Por isso, segundo o autor, afirmar a existência de um Deus,

portador de complexidade supostamente irredutível, que teria projetado a

diversidade da vida é improvável. Deste modo, o biólogo rejeita a existência de

Deus porque não há indício algum na evolução biológica de que a vida tenha tido

origem num ser complexo e nem existe indícios de que esta evolução obedeça a

um projeto teleológico criador.

Dawkins reconhece que a seleção natural não dá conta de explicar a

origem da vida. Para ele, a origem da vida consiste num “evento altamente

160 Cf. Ibid., p. 124-131. 161 Ibid., p. 136. 162 Cf. Ibid., p. 138-153. 163 Cf. Ibid., p. 153. 164 Cf. Ibid., p. 154-214. 165 Ibid. p. 154.

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improvável e singular”, que aconteceu uma única vez e que possibilitou a

evolução de milhões e milhões de formas de vida166. Neste caso, a biologia pode

explicar somente a evolução das espécies. A origem da vida escapa ao seu

alcance. Entretanto, mesmo assim, a teoria da seleção natural indica que esta

origem não pode ter sido obra de um criador divino, pois é improvável a

existência de um ser complexo antes do surgimento da vida e da evolução.

Para Dawkins, a seleção natural é uma teoria tão plausível que, além de

destruir “a ilusão do design dentro do domínio da biologia, nos incita a desconfiar

de qualquer hipótese de design também na física e na cosmologia”167. Pensando

desta forma, o biólogo recorre ao princípio antrópico para corroborar com a tese

biológica da improbabilidade do design ou da criação realizada por Deus. A

intenção do autor é mostrar que a idéia de criação é algo improvável também em

outras orientações científicas168.

O princípio antrópico, de acordo com Dawkins, consiste na hipótese

científica de que a origem e a evolução da vida somente se tornaram possíveis por

causa de uma gama de fatores e elementos de ordem física e química que se

articularam de modo a propiciar a nossa existência. Portanto, o princípio antrópico

consiste numa explicação racional para a origem da vida em contraposição à

crença religiosa do design, da criação por Deus.

O biólogo se remete, para mostrar a improbabilidade da idéia de criação, a

uma versão planetária do princípio antrópico169 e a uma versão cosmológica170. O

princípio antrópico na versão planetária defende a tese de que o nosso planeta, por

causa de uma variedade de fatores, é um planeta que oferece as condições certas

para a vida. A origem da vida que, segundo o autor, “foi um evento químico, ou a

série de eventos, através dos quais as condições para a seleção natural surgiram

pela primeira vez”171, aconteceu em nosso planeta porque este favoreceu este

acontecimento. Entre bilhões de planetas em nossa galáxia, o nosso é aquele que

aglutina tudo aquilo que é necessário para o surgimento e o desenvolvimento da

vida: a órbita adequada, a distância certa em relação ao sol, sua posição em

relação aos outros planetas do sistema solar, a estabilidade que a lua dá a seu eixo

166 Cf. Ibid., p. 183. 167 Ibid., p. 161. 168 Cf. Ibid., p. 183-204. 169 Cf. Ibid., p. 183-191. 170 Cf. Ibid., p. 191-204. 171 Ibid., p. 186.

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de rotação, a água em estado líquido, a temperatura adequada, os gases na medida

certa e etc. Isto mostra, segundo Dawkins, que a origem da vida aconteceu em

nosso planeta não por causa de uma ação divina, mas por causa da casualidade da

convergência de vários fatores.

A versão cosmológica do princípio antrópico, afirma que não só o nosso

planeta é amistoso à vida, mas também todo o universo. Ora, se existe vida em

nosso planeta é porque, de algum modo, o próprio universo favoreceu esta

possibilidade. “Os físicos calculam que, se as leis e constantes da física fossem

ligeiramente diferentes, o universo teria se desenvolvido de tal forma que a vida

seria impossível”172. Da mesma forma, se a química do universo fosse diferente, a

vida seria impossível. Assim, a física e a química do universo oferecem condições

para a origem e o desenvolvimento da vida. Desta forma, para Dawkins, a origem

da vida é improvável que tenha acontecido pela ação de Deus. O provável é que

ela consista no resultado de um universo que pôde nos produzir.

A partir do princípio antrópico, o biólogo afirma, portanto, que é

improvável cientificamente comprovar a idéia de criação por um ser divino. Para

ele, como postula o próprio princípio antrópico, o início da vida em nosso planeta

trata-se de uma possibilidade em um bilhão; uma possibilidade do acaso173. Neste

caso, a resposta da ciência à origem da vida é mais satisfatória que a resposta

teísta. A ciência dá uma resposta provável. Já a resposta teísta, que afirma que

Deus é o projetista do universo e o autor da vida, é improvável, porque deixa

inexplicada a existência deste Deus. Um Deus capaz de calcular todas as

possibilidades para o surgimento da vida em nosso planeta, segundo Dawkins,

seria um ser bastante complexo e, por isso, seria também provável. Ora, se a

existência de Deus é improvável é porque “quase com certeza Deus não existe”.

Se Deus existisse deveria haver evidências de sua existência. Ademais, se ele

existisse como ser complexo, sua existência seria dependente de outro ser, pois a

existência de um ser complexo irredutível não é provável cientificamente. Assim,

a existência de Deus exigiria também explicação. E como é improvável uma

172 Ibid., p. 192. 173 Para Dawkins, o início da vida em nosso planeta é fruto do acaso. Entretanto, para ele, a evolução da vida nada tem de acaso; é conseqüência da seleção natural. A este respeito, afirma que “o acaso jamais seria suficiente para explicar a luxuriante diversidade de organismos complexos na Terra do mesmo modo que o utilizamos para explicar a existência da vida aqui”. Ibid., p. 189.

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existência irredutível, a ciência prova que é bem provável a improbabilidade de

Deus.

“Um Deus projetista não pode ser usado para explicar a complexidade organizada porque qualquer Deus capaz de projetar qualquer coisa teria que ser complexo o suficiente para exigir o mesmo tipo de explicação para si mesmo. A existência de Deus nos coloca diante de uma regressão infinita da qual não consegue nos ajudar a fugir”174.

Se Deus para a ciência, como postula Dawkins, “quase com certeza não

existe”, de onde procede, então, a fé teísta? Para o biólogo evolucionista, Deus é

uma crença irracional, uma ilusão criada pelo cérebro. Chega a relacionar o

fenômeno do amigo imaginário, muito comum entre as crianças, com a crença em

Deus175. Deus, para ele, pode ter ligação como a capacidade de algumas crianças

de projetarem um “amigo imaginário” que exerce o papel de consolo e

conselheiro. A este respeito, questiona: “Teriam os deuses, em seu papel de

confortadores e conselheiros, evoluído a partir de binkers, por uma espécie de

‘pedomorfose’?”176. Embora não responda à pergunta, revela, com seu

questionamento, que Deus é um produto da mente humana. Sendo assim, de onde

procede esta capacidade humana de projetar e acreditar em ilusões confortadoras e

consoladoras? Qual a origem da religião?

3.3.2. A religião como “subproduto acidental” Assumindo a teoria da evolução darwiniana como horizonte de

interpretação, Dawkins elabora sua explicação biológica para a origem da

religião177. Procura mostrar “que pressão ou pressões exercidas pela seleção

natural favoreceram o impulso à religião”178.

Primeiramente, questiona a “utilidade” da religião no processo

evolutivo179. Isto porque a seleção darwiniana, segundo ele, é utilitarista e

econômica; favorece os organismos vivos que dedicam tempo e energia à sua

sobrevivência e reprodução. Por isso, os seres vivos que demandam energias em

inutilidades são superados pelos seus rivais no processo evolutivo. Para ele, a

174 Ibid., p. 153. 175 Cf. Ibid., 439-445. 176 “A pedamorfose é a manutenção de características da infância na vida adulta”. Ibid., p. 442. 177 Cf. Ibid., p. 215-273. 178 Ibid., p. 215-216. 179 Cf. Ibid., p. 215-220.

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religião não manifesta nenhum “benefício”180 ou utilidade para a sobrevivência do

indivíduo. Ela demanda energia na direção oposta à sobrevivência e à reprodução.

Trata-se de um comportamento humano inútil e extravagante que “pode colocar

em risco a vida do individuo devoto, assim como a de outras pessoas”181.

Entretanto, é inegável que a religião tenha perdurado pelos tempos. Ora, se a

religião não beneficia diretamente o indivíduo devoto, como ela pôde perdurar até

hoje? E se ela perdura, não é por que tem alguma utilidade para a espécie humana

no seu dinamismo evolutivo?

Dawkins investiga a questão recorrendo às possíveis vantagens diretas da

religião para o ser humano182. Analisa as teorias do placebo, do sentido e do

consolo. A primeira defende que a religião é importante para o ser humano porque

ela é semelhante ao placebo que prolonga a vida do indivíduo reduzindo o

estresse. A segunda afirma que ela é significativa porque dá uma explicação para

o sentido da vida humana; a terceira considera que a religião seja válida porque

ela oferece ao ser humano consolo diante das situações problemáticas e difíceis da

existência. Na avaliação do biólogo, nenhuma das dessas teorias responde

satisfatoriamente a pergunta sobre a utilidade da religião para o ser humano. Para

ele, a primeira teoria carece de evidências, pois a religião ao invés de reduzir o

estresse, o provoca e o intensifica. A segunda teoria, de acordo com ele, não

corresponde à verdade, visto que a religião não oferece explicação satisfatória

para as questões filosóficas da nossa existência. A terceira teoria, por sua vez,

também é falha, pois a religião não nos consola realmente; ela apenas nos ilude.

Deste modo, segundo ele, não tem utilidade alguma a religião para a nossa vida.

Mas se é assim, como ela se originou e como ela se perpetua na evolução

humana?

A teoria que Dawkins defende para explicar a origem e a sobrevivência da

religião consiste em considerá-la como “subproduto de outra coisa” ou “um efeito

colateral de uma coisa útil”183. Para ele, a religião não tem um valor direto de

sobrevivência para a espécie humana, mas consiste num subproduto de outra coisa

que tem. Em outras palavras, a religião em si mesma não tem utilidade alguma

180 “Por ‘benefício’, o darwinista normalmente quer dizer alguma vantagem para a sobrevivência dos genes do indivíduo”; trata-se da sobrevivência individual e sua reprodução. Ibid., p. 218-219. 181 Ibid., p. 217. 182 Cf. Ibid., p. 220-224. 183 Cf. Ibid., p. 227-252.

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para a sobrevivência e a reprodução do indivíduo, mas aparece intimamente

relacionada a algo que favorece este “benefício”. Qual é, então, esta “coisa” ou

este “algo” do qual a religião é um subproduto?

Para Dawkins, é bem provável que a religião seja o subproduto de uma

propensão natural do cérebro humano para acreditar nos ensinamentos,

considerados como valiosos para a sobrevivência, transmitidos pelas gerações

anteriores184. Parte, para chegar a esta conclusão, da constatação de que o cérebro

das crianças possui uma tendência para confiar e acreditar em tudo o que seus pais

e educadores lhe disserem em tom exortativo. Para ele, esta tendência do cérebro

infantil é produto da seleção natural. O cérebro infantil foi construído e

programado, pela seleção natural, segundo ele, para que pudesse armazenar, de

forma confiante, as informações necessárias, transmitidas pelas gerações

anteriores, para a preservação da espécie. Portanto, no seu entender, esta

propensão natural do cérebro em acreditar nos ensinamentos transmitidos

manifesta uma utilidade ou vantagem seletiva. Entretanto, para ele, esta mesma

propensão, além da vantagem seletiva, torna a mente humana vulnerável “à

infecção por vírus mentais”185. Esta propensão do cérebro das crianças pode

também favorecer a “credulidade escrava”, ou seja, a crença em ensinamentos

transmitidos que não apresentam vantagem seletiva alguma. Deste modo, a

programabilidade do cérebro infantil para a credulidade é algo útil para a

evolução, mas algumas mensagens transmitidas e recebidas não o são. Neste

sentido, Dawkins interpreta a religião como um “vírus mental” ou como uma

“infecção” propiciada pela vulnerabilidade da mente da criança. Em outras

palavras, compreende a religião como uma mensagem que é perpetuada por causa

da programação natural do cérebro infantil, mas que não contribui para a evolução

da espécie humana. Por isso é que a religião é um subproduto inútil de algo útil.

Dawkins também concorda com as várias teorias da psicologia da

evolução que apresentam a religião como “subproduto de alguma coisa”. Uma

teoria defende que a religião é um subproduto do “erro” de vários módulos do

cérebro, “por exemplo os módulos para a formação de teorias sobre outras mentes,

para a formação de coalizões e para a discriminação a favor de indivíduos de

184 Cf. Ibid., p. 230-237. 185 Ibid., p. 233.

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dentro do grupo, em detrimento de estranhos”186. Outra afirma que a religião é

subproduto de uma tendência natural, que existe no cérebro humano, ao dualismo

mente e corpo187. Outra ainda postula que esta é subproduto de uma predisposição

inata ao ser humano para dar propósito a tudo188. Uma outra defende a religião

como subproduto de um mecanismo interno específico de irracionalidade do

cérebro189. Concordando com estas teorias, Dawkins afirma que a religião é “um

efeito colateral” de tendências naturais úteis à seleção darwiniana. Em outras

palavras, defende a idéia de que a religião consiste numa conseqüência errada e

negativa de certas tendências naturais positivas ao dinamismo evolutivo da

espécie humana.

Dessa maneira, Dawkins responde à questão sobre a identidade e a origem

da religião, mas não explica o motivo pelo qual ela se perpetua. Se a religião é um

subproduto ou uma conseqüência inútil de propensões naturais úteis para o

dinamismo seletivo, por que ela sobrevive neste dinamismo? Ou em outros

termos: se a religião não nos serve em nossa evolução, porque ela continua a

existir? Como podemos explicar a sua perpetuação histórica?

Dawkins reconhece que a origem da religião se dá por causa da seleção

natural que projetou o cérebro humano propenso à recepção de idéias religiosas

transmitidas como ensinamentos. Entretanto, para ele, a evolução da religião,

como também os seus detalhes, não pode ser explicada diretamente pela seleção

darwiniana, pois as idéias religiosas não são genes e sim memes190. Todavia,

segundo ele, é possível aplicar, a modo de analogia, a teoria evolucionista da vida

ao desenvolvimento cultural.

Pensando dessa forma, Dawkins elabora uma teoria evolucionista da

cultura, a chamada teoria dos memes, para explicar a sobrevivência e o

desenvolvimento da religião191. Ele explica que no mundo da cultura humana,

assim como no mundo biológico, há uma espécie de gene replicador, aquilo que

ele chama de meme. O meme é uma unidade de herança cultural. Trata-se, em

186 Cf. Ibid., p. 237. 187 Cf. Ibid., p. 237-239. 188 Cf. Ibid., p. 239. 189 Cf. Ibid., p. 244-248. 190 “Meme” é um termo cunhado pelo próprio Dawkins. Aparece pela primeira vez em O gene egoísta. Designa o replicador na evolução cultural; consiste num dado ou idéia que se transmite culturalmente. Cf. McGRATH, A. – McGRATH, J. O Delírio de Dawkins. Uma resposta ao fundamentalismo ateísta de Richard Dawkins. São Paulo: Mundo Cristão, 2007, p. 98-103. 191 Cf. DAWKINS, R., op. cit., p. 252-266.

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outros termos, de informações culturais que arrumam formas de se adaptar aos

tempos e de ser transmitidas de uma geração para a outra. Isto quer dizer que um

meme consiste em qualquer dado informativo ou idéia que pode ou não se

perpetuar na evolução cultural. Para ter futuro, um meme precisa ser replicado. O

meme que prevalece culturalmente é aquele que consegue se copiar bem. Deus,

por exemplo, é um meme que funciona bem porque tem grande valor de

sobrevivência na cultura humana. No entanto, o meme, diferente do gene, implica

a atividade consciente do ser humano para se desenvolver. Um meme é replicado

pelo ser humano. Quando um simples dado ou uma idéia é transmitido

sucessivamente às outras mentes, um meme é replicado e adquire permanência.

Mas para que um meme tenha mais chances de ser perpetuado, ele precisa fazer

parte de um memeplexo legitimado culturalmente. A cultura, neste caso, é o lugar

onde os memes se evoluem ou não. Ela é um complexo de milhares de

memeplexos, isto é, conjuntos de memes afins. Cada orientação científica, cada

religião, cada sistema filosófico, o mundo da informática, dos esportes, das

tendências políticas etc. são memeplexos. As religiões mundiais, por exemplo, são

vários memeplexos. O cristianismo é um memeplexo diferente do memeplexo

judaico, embora alguns memes sejam idênticos em ambos. Neste sentido, a

sobrevivência de um meme ou de um memeplexo implica sua transmissão cultural

às gerações futuras. Ora, todo dado cultural ou os elementos complexos da

cultura, como a ciência, a religião, as artes, a filosofia, necessitam ser

transmitidos, com certa fidelidade, para que possam se perpetuar. Ademais, os

memes ou memeplexos transmitidos podem evoluir. Esta evolução se dá na

relação com outros memeplexos. No cristianismo, por exemplo, muitas

concepções foram mudadas por causa da influência de outros dados culturais.

Assim, para Dawkins, a explicação para a sobrevivência histórica da religião na

cultura humana reside no fato de que seus dados são bem transmitidos a cada

geração humana e adaptados conforme cada tempo.

Segundo o cientista, o sucesso da transmissão e evolução memética da

religião se dá porque suas idéias são transmitidas como uma “infecção” a

contaminar a mente de cada geração. Para ele, a doutrinação religiosa das crianças

é a forma mais eficaz de transmissão de memes religiosos, visto que as crianças

são propensas acolher com confiança o ensinamento dos pais. É, por isso, que

combate a doutrinação religiosa das crianças. Acredita que uma “vez infectada

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[com o “vírus” da religião], a criança crescerá e infectará a geração seguinte com

o mesmo absurdo, aconteça o que acontecer”192. Com efeito, para o biólogo, o

combate militante ao ensinamento da religião às crianças se configura como a

melhor maneira para se minar a sobrevivência e a evolução dos memes religiosos.

Deste modo, considera os memes da religião como prejudiciais ao ser humano.

Enquanto alguns memes oferecem benefícios para os homens, como os memes da

filosofia e da ciência, os da religião não oferecem benefício algum.

Esta visão revela que Dawkins concebe a religião como algo negativo.

Para ele, como vimos acima, a religião é o resultado tanto da seleção natural,

porque consiste num subproduto de algo útil, quanto dos processos meméticos

culturais. A religião, segundo ele, é negativa na sua origem e no seu

desenvolvimento. É negativa em sua origem, porque não se configura como algo

útil para a evolução humana; não surge para colaborar com a sobrevivência e

perpetuação da espécie humana. Pelo contrário, trata-se de um gasto de energia

que pode atrapalhar o indivíduo religioso no processo seletivo. Ademais, é

negativa também em seu desenvolvimento e evolução memética, porque suas

idéias, concepções e noções não contribuem em nada para o progresso da cultura

humana. A religião não é útil ao ser humano. Ela é útil apenas para si mesma, ou

seja, para a sobrevivência e evolução de seus próprios memes.

Diante desta concepção, podemos fazer duas perguntas: Por que Dawkins

concebe a religião de forma depreciativa? Por que, para ele, a religião é útil

apenas para si mesma e não para o ser humano? Isto é o que pretendemos

responder no item seguinte.

3.3.3. Religião, moral e ciência O biólogo, além de defender a “quase não existência de Deus” e de

interpretar a religião como algo desnecessário à evolução humana, também

apresenta algumas objeções a ela, sobretudo ao monoteísmo. Estas objeções, de

caráter teórico, dizem respeito à moral e à ciência. Resumidamente, sua acusação

é de que, além da religião não ser essencial para a moralidade, ela consiste numa

base insegura para a moral. E, também, a acusa de configurar-se em oposição à

192 Ibid., p. 248.

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ciência. Examinemos, neste item, os argumentos deste autor, para sustentar estas

acusações à religião.

Dawkins constata que “a questão da moralidade é um poço profundo de

hostilidade contra o ateísmo”193. Os ateus, por rejeitarem a existência de Deus, são

taxados de imorais pelas pessoas religiosas. Este julgamento é feito porque a

moralidade, para estas pessoas, aparece relacionada unicamente à religião. De

fato, a visão da moral associada à religião induz a concepção de que a pessoa

religiosa seja portadora de uma base para moralidade e o ateu não. Daí a visão

equivocada de que o indivíduo religioso seja moralmente melhor que o ateu: um é

bom e o outro, mau; um é moral e o outro, imoral. Com o intuito de mostrar que a

moralidade não está associada fundamentalmente à religião ou à crença em Deus,

Dawkins postula a tese de que “nosso senso moral de certo e errado pode ser

resultado de nosso passado darwiniano”194. Procura defender a idéia de que o

senso moral não é algo dependente da religião, mas algo próprio da evolução

humana195.

Sua teoria é a de que na constituição biológica do ser humano existem

impulsos196, independentes da razão, produzidos pela dinâmica da seleção natural,

que nos impele a escolher a melhor forma de comportamento para a sobrevivência

individual e da espécie. Sem estes impulsos, nem o indivíduo nem o grupo

humano teriam futuro na seleção natural. Um destes impulsos é o de fazer o bem;

é o impulso que corresponde à bondade, generosidade, empatia e compaixão197.

Para fundamentar sua teoria, Dawkins, parte das teorias do altruísmo no

mundo animal198. De acordo com estas teorias, os animais realizam naturalmente,

para manter a sobrevivência, dois tipos de altruísmo: o “altruísmo genético”,

aquele que é realizado entre a própria espécie ou entre aqueles animais com

parentesco genético; e o “altruísmo recíproco”, que corresponde àquele que

implica o “relacionamento mutualista” entre as espécies diferentes ou entre grupos

diferentes de uma mesma espécie para a satisfação de necessidades. O autor

193 Ibid., p. 278. 194 Ibid., p. 279. 195 Cf. Ibid. p. 274-304. 196 Estes impulsos consistem em regras instaladas, pela seleção natural, em nosso cérebro desde os primórdios da humanidade. Trata-se de regras úteis para a preservação da espécie. O desejo sexual, a necessidade de alimentação, a nossa capacidade para a linguagem, a nossa tendência para à vida em sociedade são alguns exemplos destes impulsos. 197 Cf. Ibid., p. 288. 198 Cf. Ibid., p. 281-286.

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acredita que as teorias do altruísmo podem ser aplicadas ao ser humano. Isto quer

dizer que os impulsos altruístas naturais constatados nos animais podem ser

constatados também na espécie humana. O fato de sentirmos compaixão ao ver

alguém que sofre ou o fato de ajudar de imediato alguém em apuros são provas

destes impulsos que foram produzidos em nosso cérebro pela seleção natural,

assim como os impulsos sexuais, para possibilitar a sobrevivência de nossa

espécie.

“A seleção natural, nos tempos ancestrais, quando vivíamos em bandos pequenos e estáveis como o dos babuínos, programou impulsos altruístas em nosso cérebro, junto com impulsos sexuais, impulsos de fome, impulsos xenofóbicos, e assim por diante”199.

Entretanto, Dawkins enfatiza que, diferentemente dos animais, o ser

humano, por causa de sua capacidade racional, pôde desenvolver este altruísmo

natural como moralidade. “Nos tempos ancestrais [afirma], só tínhamos a

oportunidade de ser altruístas em relação aos parentes próximos e a potenciais

replicadores. Hoje essa restrição não existe mais, mas a regra geral persiste”200. A

evolução nos permitiu desenvolver estes impulsos, que existem em nós

independentemente de nossa racionalidade, como ações altruístas conscientes e

racionalizadas mediante a convenção de regras morais.

Ao postular que a moralidade ou o agir moral consciente encontra sua

origem nos impulsos naturais altruístas, o autor a apresenta, assim como a

religião, como um “subproduto de algo útil”. Dessa maneira, prova que a

moralidade não existe unicamente por causa da religião. Sua teoria mostra que a

moralidade precede à religião, pois há um “senso moral impresso em nosso

cérebro” que nos leva a tomarmos decisões morais independentemente das

crenças religiosas. Assim, afirma que o agir moral não é privilégio de pessoas

religiosas, mas um patrimônio de toda espécie humana, inclusive dos ateus. Para

ele, portanto, “não precisamos de Deus para sermos bons – ou maus”201.

Além de tentar mostrar que a moralidade independe da religião, critica a

moralidade apoiada na crença em Deus202. Sua crítica é um composto de vários

argumentos que podem ser assim pontuados. Em primeiro lugar, para ele, esta

199 Ibid., p. 288. 200 Ibid. 201 Ibid., p. 295. 202 Cf. Ibid., p. 295-359.

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moralidade é “falsa”, porque é exercida de forma interesseira ou de modo

coercitivo por causa do medo de Deus; consiste na moralidade realizada apenas

para agradar a Deus ou para obter alguma recompensa divina ou para evitar

alguma punição203. Por isso, não corresponde a uma moralidade autônoma, pois

não é valorizada em si mesma.

Em segundo lugar, trata-se de uma moralidade superficial e de pouca

eficácia, pois não impede que a pessoa religiosa, sem a pressão da religião,

cometa atos imorais204. Para o autor, o senso de moral religioso enfraquece

quando não há o policiamento ou a vigilância por parte da religião. Ele faz esta

crítica porque, pautado em alguns dados de pesquisas, constata que nos lugares

onde se encontra um percentual maior de pessoas religiosas é que acontece um

número maior de ações imorais como os homicídios, a mortalidade infantil e

juvenil, as altas taxas de infecção por doenças sexualmente transmissíveis, a

gravidez na adolescência e etc. Para ele, os dados comprovam que a religião não

contribui para a formação de uma moralidade forte ou um senso moral capaz de

persistir sem a vigilância religiosa.

Em terceiro lugar, critica a moralidade da religião por ser absolutista205.

No seu entender, a moralidade religiosa impõe seus princípios como se fossem

princípios absolutos; trata-se da moralidade que tem a pretensão de apresentar os

padrões de bem e mal, do certo e errado, como padrões universais, válidos para

todas as situações e para todas as pessoas. Ora, constata que, embora nossa

moralidade não seja determinada unicamente pela religião, o absolutismo da

moral religiosa “domina a mente de um número grande de pessoas no mundo

atual, de forma mais perigosa no mundo muçulmano e na teocracia americana

incipiente”206. Como exemplo da imposição cultural deste absolutismo, cita os

seguintes dados: (1) a proibição legal, que existem em muitos países, que prevê

até a condenação à morte, de colocar em questionamento as verdades religiosas ou

de mudar de religião207; (2) a condenação preconceituosa, pregada nas religiões,

das pessoas homossexuais208; (3) a visão, sobretudo da Igreja Católica, de que o

203 Cf. Ibid., p. 295-296. 204 Cf. Ibid., 296-300. 205 Cf. Ibid., p. 300-304. 206 Ibid., p. 367. 207 Cf. Ibid., p. 368-370. 208 Cf. Ibid., p. 370-373.

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aborto é simplesmente errado, porque se trata de um assassinato declarado209. O

problema da moralidade absolutista, segundo ele, é que ela desenvolve o

extremismo ou o fanatismo. No caso da defesa contra o aborto, por exemplo, há

“pessoas que, por causa de suas convicções religiosas, acham que o aborto é um

assassinato e estão dispostas a matar em defesa dos embriões, que preferem

chamar de ‘bebês’”210.

Em quarto lugar, acusa a base desta moralidade absoluta de ser algo

inadequado para fundamentar qualquer princípio moral. Para ele, a fonte da

moralidade da religião “é normalmente algum tipo de livro sagrado, interpretado

como detentor de uma autoridade que supera em muito sua capacidade histórica

de justificá-la”211. Por isso, questiona, especialmente, o valor moral da Bíblia, o

livro fundamental para o judaísmo e o cristianismo212. Ressalta que a Bíblia pode

servir de duas maneiras como fonte para os princípios morais ou normas para a

vida: uma, por meio da instrução direta, como, por exemplo, os Dez

mandamentos; e outra, pelo exemplo moral de Deus ou algum personagem

bíblico213. No entanto, condena estas duas maneiras, pois não concorda que a

Bíblia possa servir como fonte infalível de nossos princípios morais e de nossas

normas para viver. Para ele, os ensinamentos e os personagens bíblicos não

transmitem princípios capazes de fundamentar uma moralidade respeitosa da vida

e do ser humano. Prova disso, para ele, são alguns episódios e doutrinas que

aparecem tanto no Antigo como no Novo Testamento e que são repulsivos se

comparados à nossa moralidade atual. No Antigo Testamento, dá destaque para os

seguintes episódios: Deus que condena à destruição com o dilúvio os seres

humanos por causa do pecado; a idéia de que os desastres naturais e a morte são

conseqüências do pecado humano; Ló que entrega suas duas filhas virgens aos

homens de Sodoma para defender os enviados de Deus; o mesmo Ló que mantém

relação sexual com as filhas; Abraão que quase sacrifica o seu filho para agradar a

Deus; Jefté que sacrifica a sua filha por causa de uma promessa feita a Deus;

Moisés que lidera o povo hebreu para massacrar os midianitas; o ciúme maníaco

de Deus contra os outros deuses; Josué que massacra os outros povos para

209 Cf. Ibid., p. 374-387. 210 Ibid., p. 380. 211 Ibid., p. 304. 212 Cf. Ibid., 305-327. 213 Cf. Ibid., p. 305.

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conquistar a Terra Prometida; a lista das ofensas que merecem a pena de morte em

Levítico 20. No Novo Testamento elenca, especialmente, duas idéias que

considera repulsivas em termos de moralidade: a idéia de pecado original e a de

expiação pela morte sanguinolenta de Cristo. Embora reconheça que Jesus tenha

sido um dos grandes inovadores éticos da história, enfatiza que estas idéias – que,

para ele, é o cerne da teologia neotestamentária – são cruéis, sadomasoquistas e

repugnantes. Isto, especialmente, porque favorecem o desenvolvimento de uma

moral culpabilizante, na qual o pecado se torna a preocupação dominante na vida

da pessoa.

Em quinto lugar, interpreta a moralidade fundamentada na religião como

uma moralidade exclusivista que tende a estabelecer divisões214. Para o autor, a

religião “é sem dúvida uma força que provoca divisões”215, porque nela há uma

tendência a favorecer unicamente os integrantes de seu grupo e a rejeitar aqueles

que estão fora. Neste caso, a moralidade religiosa se restringe aos integrantes do

grupo religioso. Isto quer dizer que as ações imorais ficam desautorizadas entre

esses integrantes, mas são autorizadas em relação àqueles que não fazem parte do

grupo. Prova disso, para ele, são os massacres, os atos de violência provocados

por causa da divergência religiosa. Neste sentido, segundo ele, a prescrição do

“amor ao próximo” não extrapola o âmbito das relações entre os membros de uma

mesma religião. O “amor ao próximo” significa “ame somente aquele que

pertence a sua religião”. Por causa disto, interpreta a religião como uma força

maligna para a humanidade.

“Mesmo que a religião em si não fizesse nenhum outro mal, sua característica divisora, perversa e cuidadosamente cultivada – sua apropriação deliberada da tendência natural da humanidade de favorecer os integrantes de seu próprio grupo e rejeitar os forasteiros – já seria suficiente para fazer dela uma força maligna significativa para o mundo”216.

Depois de tecer a crítica da moralidade da religião, o autor critica a

religião, porque esta, no seu entender, se opõe ao conhecimento e às pesquisas

científicas217.

“Como cientista, sou hostil à religião fundamentalista porque ela debocha ativamente do empreendimento científico. Ela nos ensina a não mudar de idéia, e

214 Cf. Ibid., 328-338. 215 Ibid., p. 334. 216 Ibid., p. 338. 217 Cf. Ibid., p. 362-367.

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a não querer saber de coisas emocionantes que estão por aí para ser apreendidas. Ela subverte a ciência e mina o intelecto”218

Na verdade, o biólogo critica a religião, não somente por causa das

orientações fundamentalistas, mas porque ela ensina que “a fé inquestionável é

uma virtude”219. Ora, segundo ele, a religião ao ensinar a acreditar acriticamente

nas suas “verdades”, está possibilitando o surgimento do fundamentalismo que

obstaculiza a busca do conhecimento do mundo real; impede, portanto, o

empreendimento científico.

Neste sentido, o autor se posiciona contrário à educação religiosa das

crianças220. Para ele, a educação religiosa familiar e escolar ou o impor a religião

a uma criança é um grande mal. Pois esta educação, além de fazer com que a

criança seja martirizada psicologicamente com doutrinas repulsivas – como, por

exemplo, a doutrina do pecado original, do juízo final e do inferno – faz com que

ela se desinteresse pela investigação científica, visto que aquilo que lhe é

comunicado por esta educação possui caráter de “verdade absoluta”.

Por esta razão, condena que se ensine nas escolas o criacionismo bíblico

literal. No seu entender, a criança que aprende o criacionismo na escola terá muita

dificuldade em aceitar a teoria evolucionista. Assim, a educação religiosa escolar,

para ele, pode atrapalhar o empreendimento científico, visto que as crianças

formadas por esta mentalidade se tornarão pessoas que acreditarão em “verdades

prontas e inquestionáveis”, fornecidas pela religião, sobre o mundo real.

Na verdade, a objeção fundamental de Dawkins a respeito da religião em

relação à ciência, é a de que a religião, sobretudo, a monoteísta, acredita, contra

todas as evidências científicas, que exista um Deus que tenha criado tudo o que

existe. Portanto, o grande problema, para ele, é que a religião acredita e divulga o

criacionismo, especialmente através da educação religiosa escolar, impedindo que

a teoria da evolução seja acolhida como a explicação científica mais provável para

explicar o desenvolvimento da vida e das espécies.

Concluindo, podemos dizer que Dawkins compreende a religião como

uma produção do processo evolutivo do ser humano com efeitos danosos. Estes

efeitos consistem no entrave do progresso cultural humano e no obstáculo ao

218 Ibid., p. 364. 219 Ibid., p. 367. 220 Cf. Ibid., p. 396-437.

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estabelecimento de relações respeitosas, inclusivas e amistosas entre os homens.

O primeiro efeito se dá por causa da crença religiosa que tende a aceitar como

“verdades” inquestionáveis as informações apregoadas pela religião. A crença

religiosa desautoriza o espírito científico. Ao pregar a crença nas verdades

religiosas, a religião impede que a ciência se desenvolva. E impedindo, o

desenvolvimento da ciência, a religião impede o progresso a ser realizado por

meio das descobertas científicas. O segundo efeito, por sua vez, é conseqüência da

moralidade religiosa. Por tratar-se de uma moralidade heterônoma, absolutista e

exclusivista, a moralidade da religião não contribui para a paz e a fraternidade

universais. Pelo contrário, consiste numa moralidade que legitima a segregação, a

violência, o desrespeito e a guerra. De certo modo, ao apresentar a religião como

um efeito danoso, quer seja por causa de sua crença, quer seja por causa de sua

moralidade, o autor a está considerando como um produto secundário da seleção

natural que coloca em risco a evolução da espécie humana.

Conclusão Neste capítulo, ao analisarmos a visão crítica de três autores a respeito da

religião, pudemos constatar que o ateísmo humanista de Feuerbach e dos “mestres

da suspeita”, embora sendo matizado de modo diferente, continua vigorando até

os dias de hoje. Cada um dos três autores atualiza, por caminhos diferentes, a tese

de que o Deus pessoal e de que o cristianismo são obstáculos à afirmação e ao

desenvolvimento da existência humana.

Vimos que, para José Saramago, o Deus pessoal nada mais é do que uma

simples idéia que, nos termos de Feuerbach e de Marx, aliena o homem do valor

de sua existência e o coloca em atrito com seu semelhante. Para este autor, Deus é

uma idéia com valor absoluto sobre a existência relativizada do ser humano. Neste

sentido, o cristianismo é o responsável por impedir a humanização, pois ele dá

vigor à existência desta idéia absoluta mediante todo seu aparato religioso: fé,

Igreja, doutrinas, teologia, liturgia, valores e prescrições morais. Esta é a acusação

fundamental do autor. O cristianismo em função de uma idéia legitima a

“crucificação” do ser humano pessoal e coletivo. Pessoal, porque o indivíduo

religioso, em nome de Deus, renuncia aquilo que constitui o seu ser e seu existir.

E, coletivo, porque, em nome de Deus, o respeito pelo semelhante fica

desautorizado. Prova disso é a violência legitimada e promovida pela religião

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contra aqueles que não são teístas ou que não professam o mesmo credo religioso.

Deste modo, interpreta o cristianismo como um grande mal para o homem. Por

isso é que o autor, através da ironia literária em seus romances, realiza o combate

e a condenação do Deus pessoal e também da religião cristã.

Comprovamos também neste capítulo que Michel Onfray apresenta

críticas à religião em nome do ser humano. O filósofo, seguindo mais a linha de

Feuerbach, Nietzsche e Freud, interpreta o Deus pessoal e a religião monoteísta

como projeção da “pulsão de morte”. Para ele, o monoteísmo aliena o homem de

sua realidade imanente e o faz direcionar contra si mesmo a sua força destruidora.

O filósofo critica o monoteísmo, sobretudo, por obstaculizar o progresso humano

a ser possibilitado pelo domínio da razão filosófica. No seu entender, ainda

vivemos um período da história caracterizado pelos valores do monoteísmo; um

período em que o domínio não é o da razão, e sim da ilusão, das ficções

alienantes, e da transcendência. Por isso, seguindo a perspectiva de Nietzsche,

propõe a ateologia como uma das formas de combater e superar esta época

religiosa. Para ele, a humanização, que diz respeito a existência imanente do

homem regida pelo domínio do racional, embora sem menosprezar os

sentimentos, as sensações e o prazer, só poderá ser realizada com a inauguração

de novos valores e com o fim do monoteísmo.

Detectamos ainda que Richard Dawkins, embora não proceda diretamente

do ateísmo filosófico de Feuerbach e dos “mestres da suspeita”, mas de uma

postura iluminista que superestima a ciência, também procura combater a religião

em função do bem do ser humano. Conforme expomos, o autor, a partir da

biologia evolucionista, questiona a existência de um Deus pessoal por causa de

sua improbabilidade científica e defende a tese de que a religião consiste numa

produção secundária da seleção natural que não traz benefício algum para a

evolução humana. Pelo contrário, para ele, a religião consiste num memeplexo que

só serve a si mesmo e que é prejudicial ao homem. Para ele, a religião, além de

desenvolver uma moralidade frágil que não contribui para o relacionamento

respeitoso entre os homens, também impede o progresso civilizatório por causa do

entrave que ela representa à ciência. A religião, segundo ele, mesmo não sendo

fundamentalista, possibilita o fundamentalismo religioso que é intransigente às

outras visões da realidade e que tende à violência. Assim, o autor acredita que a

religião representa uma ameaça à humanidade.

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Conferimos, portanto, que, por diferentes caminhos, três autores

contemporâneos apregoam o ateísmo anti-religioso porque interpretaram o Deus

pessoal e o monoteísmo, especialmente o cristianismo, como desumanizantes, no

sentido de que são prejudiciais, de alguma forma, à afirmação e ao

desenvolvimento do ser humano. Deste modo comprovamos que o substrato do

ateísmo humanista de Feuerbach e dos “mestres da suspeita” se revela como uma

constante também em nossa época considerada pós-moderna.

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Parte II O cristianismo como afirmação e desenvolvimento int egral do humano 4. A fé cristã como afirmação do humano na afirmação d e Deus

O substrato do ateísmo humanista consiste na tese de que a afirmação de

Deus e a afirmação do ser humano são incompatíveis. Por isso, para esse ateísmo

a fé cristã consiste na afirmação de Deus em detrimento da afirmação do ser

humano. Como já apresentamos nos capítulos anteriores essa suspeita do ateísmo

à fé cristã, nos próximos objetivamos apresentar uma outra tese: a de que a fé

cristã ao afirmar Deus, afirma fundamentalmente o humano. Pretendemos mostrar

que essa fé não pressupõe concorrência alguma entre Deus e o ser humano nem

provoca a sua alienação. Ao contrário, ela pressupõe, sim, como critério de sua

autenticidade, a afirmação e o desenvolvimento do humano na afirmação de Deus.

Neste capítulo, precisamente, assumimos a tarefa de mostrar como Andrés

Torres Queiruga (1940) defende a idéia de que o dado fundamental da fé cristã e

sua explicitação teológica não proclamam a desvalorização ou a alienação do

humano em detrimento da afirmação do divino. Pelo contrário, mostraremos que,

para ele, a fé cristã é essencialmente afirmação do humano. Por isso, vamos nos

focar no esforço que o referido teólogo realiza para explicitar alguns temas

fundamentais da fé cristã na tentativa de mostrar que a afirmação de Deus

pressupõe sempre a afirmação do humano.

Andrés Torres Queiruga, natural da Galícia (Espanha), é teólogo e

filósofo. É especialista em Teologia Fundamental1 e em Filosofia da Religião2.

Trata-se de um autor fecundo que articula em seus escritos o pensamento

teológico e o filosófico. Sua preocupação intelectual fundamental consiste em

romper o mal-entendido que desde o início da modernidade tem levado a conceber

1 Doutorou-se em Teologia, em 1976, pela Universidade Gregoriana (Roma) com a apresentação da tese que versava sobre a constituição e a evolução do dogma no pensamento de Amor Ruibal, publicada em 1977, cf: TORRES QUEIRUGA, A. Constitución y evolución del Dogma. La teoria de Amor Ruibal y su aportación. Madri: Marova, 1977. 2 Doutorou-se também em Filosofia pela Universidade de Santiago de Compostela (Espanha) com a tese sobre o conhecimento de Deus em dois filósofos galegos, Amor Ruibal e Xavier Zubiri, cf. Id. Noción, religación, trascendencia. O coñecemento de Deus en Amor Ruibal e Xavier Zubiri. Corunã: Ed. Barrié de la Maza – Real Academia Galega, 1990. Atualmente leciona Filosofia da Religião nessa Universidade.

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o Deus cristão como rival do ser humano e o cristianismo como obstáculo ao

progresso humano. Sua reflexão, no entanto, não consiste numa apologética

intransigente e defensora míope da fé cristã. Sua teologia, enriquecida pelo aporte

filosófico, leva em conta os questionamentos culturais, sobretudo da ilustração

moderna e do ateísmo, e procura respondê-los de forma respeitosa. Trata-se de

uma teologia em diálogo com a cultura e a mentalidade moderna secularizante3.

O ponto de partida de seu pensamento é a experiência fundante do

cristianismo, a saber, a revelação de Deus em e por Jesus de Nazaré. A partir

disso, além de questionar os conceitos teológicos cristalizados, as imagens de

Deus e a práxis cristã que não traduzem com fidelidade a experiência originária da

fé cristã, busca repensar alguns temas fundamentais da teologia apresentando-os

em concordância com o horizonte interpretativo da modernidade. Por isso é que

os termos recuperar e repensar são essenciais em seu pensamento; eles

expressam a metodologia do seu pensar teológico. Recuperar significa refletir

sobre um tema fundamental da fé cristã, procurando ser o mais fiel possível à

intuição originária de Deus como afirmação do ser humano. Repensar, por sua

vez, diz respeito à explicitação deste dado levando-se em consideração os

determinados pressupostos culturais.

Nesse sentido, seu propósito teológico é o de manter fidelidade ao dado da

revelação e tentar interpretá-lo e explicitá-lo em categorias próprias da cultura

moderna secular. E, no seu entender, quanto mais positivo para o ser humano for

o resultado desta interpretação ou explicitação, tanto mais estará de acordo com o

autêntico espírito do cristianismo. Por isso é que, para ele, “toda a teologia tem

que se pensar e repensar-se a partir da convicção radical de que tudo o que vem de

Deus só é interpretado legitimamente quando assume um sentido positivo e

libertador para nós”4.

Todavia, este autor não se propõe a recuperar e repensar todos os temas da

fé cristã. Em seus escritos apenas alguns são privilegiados. Por ser especialista em

Teologia Fundamental, dá preferência à abordagem dos temas relacionados a esta

3 Para este autor a modernidade ainda não foi superada. Ele vê a pós-modernidade não como superação da modernidade, mas como um episódio dentro dela. Portanto, segundo ele, vivemos uma época ainda marcada pelo paradigma moderno. 4 TORRES QUEIRUGA, A. Fim do cristianismo pré-moderno. Desafios para um novo horizonte. São Paulo: Paulus, 2003, p. 41.

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área, a saber: a revelação divina5, a criação6, a salvação7, o diálogo religioso8, o

problema do mal9, o discurso teológico10, e a ressurreição de Jesus11. Entretanto, o

tema principal e também articulador de sua teologia consiste no tema da imagem

de Deus12.

Podemos constatar que Torres Queiruga se preocupa em apresentar em

cada tema abordado, em cada obra e artigo, uma imagem positiva de Deus que

esteja em concordância com a imagem do Deus revelado em e por Jesus de

Nazaré. Isto mostra que, para ele, a teologia tem um papel fundamental, que é o de

apresentar e explicitar esta imagem de Deus para que a fé cristã ou o cristianismo

possa se configurar, ser compreendido e ser experimentado não como rival da

condição humana, mas como sua afirmação e possibilidade segura de seu

desenvolvimento.

É exatamente por se tratar de uma teologia a serviço da superação do mal-

entendido da modernidade, que tende a considerar Deus e a fé cristã como

negação do humano, que nos propomos a abordar a reflexão deste teólogo. Assim,

neste capítulo, nosso objetivo consiste, como já expusemos acima, em apresentar

a explicitação teológica de alguns temas fundamentais da fé cristã, feita por este

autor, com a intenção de mostrar que esta, longe de realizar a negação do humano

em vista da afirmação de Deus, implica inseparavelmente a afirmação do humano

na afirmação de Deus.

5 Cf. Id. A revelação de Deus na realização humana. São Paulo: Paulus: 1995. 6 Cf. Id. Recuperar a criação. Por uma religião humanizadora. São Paulo: Paulus, 1999. 7 Cf. Id. Recuperar a salvação. Por uma interpretação libertadora da experiência cristã. São Paulo: Paulus: 1999. 8 Cf. Id. O cristianismo no mundo de hoje. São Paulo: Paulus, 1992; Id. O diálogo das religiões. São Paulo: Paulus, 1997; Id. Autocompreensão cristã. Diálogo das religiões. São Paulo: Paulinas, 2007. 9 Sobre a temática do mal, a bibliografia do autor é extensa. Vamos apresentá-la mais a frente nesta nossa exposição. 10 Cf. Id. Fim do cristianismo pré-moderno; Id. Creer de otra manera. Santander: Sal Terrae, 1999. (Col. Cuadernos Aqui y Ahora); Id. La razón teológica en diálogo con la cultura. In: Iglesia Viva, 192 (1997). 11 Cf. Id. Repensar a ressurreição. A diferença cristã na continuidade das religiões e da cultura. São Paulo: Paulinas, 2004. 12 O tema da imagem de Deus é o tema principal da teologia de Torres Queiruga. Em todas as suas obras este tema é considerado. Entretanto em algumas o tema é abordado de forma mais matizada, cf. Id. Creio em Deus Pai. O Deus de Jesus como afirmação do humano. São Paulo: 1993; Id. El Dios de Jesús. Aproximación en cuatro metáforas. Santander: Sal Terrae, 1991; Id. Um Deus para hoje. São Paulo: Paulus, 1998; Id. El problema de Dios en la modernidad. Estella: Verbo Divino, 1998; Id. Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus. Por uma nova imagem de Deus. São Paulo: Paulinas, 2001.

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O capítulo constará de cinco seções. Na primeira, focaremos nossa atenção

naquilo que este autor afirma a respeito da revelação de Deus em e por Jesus de

Nazaré, que é o dado fundamental da fé cristã ou do cristianismo. Nas três

seguintes, daremos destaque a sua explicitação teológica sobre o Deus de Jesus a

partir da interpretação exigida pelo paradigma moderno. Mostraremos que a

criação contínua por Deus (segunda seção) e sua revelação (terceira seção) não

contrariam o dado da autonomia do mundo nem a liberdade humana e sua

realização. Além disso, mostraremos, na quarta seção, que o Deus criador-

salvador não pode ser acusado, de forma alguma, de ser o responsável pelo mal

que experimentamos em nossa existência.

4.1. O Deus revelado em e por Jesus de Nazaré Torres Queiruga tem consciência de que o cristianismo em sua origem não

se assenta sobre a negação do humano, pois em Jesus de Nazaré não encontramos

um ser humano diminuído em sua humanidade por causa de sua relação com

Deus. Pelo contrário, encontramos nele uma autêntica humanidade fundamentada

numa experiência de intimidade com o Deus intuído como Abbá13 e lugar da

manifestação deste Deus.

Partindo da cristologia de orientação ascendente, este teólogo afirma que

Jesus nos revela o verdadeiro rosto de Deus mediante sua compreensão de Deus14

e mediante sua própria humanidade15. E, nesta revelação nada aparece como

diminuição do humano, mas sim como sua afirmação. Pois, por um lado, a

divindade de Jesus não anula sua humanidade, mas a supõe e se expressa por ela.

E, por outro, o conhecimento de Jesus a respeito de Deus não resulta de uma

revelação mágica ou da onisciência, mas é conseqüência das suas experiências de

vida. Portanto, a humanidade de Jesus e a sua experiência de Deus são os

“lugares” profundos da revelação divina.

13 Cf. Id. Creio em Deus pai, p. 96-98; 110-113. 14 Cf. Ibid.; Id. Recuperar a criação, p. 68-72; Id. De uma religião de escravos a uma religião de filhos. In: Theologica, vol. 34, fasc. 1, 1999, p. 22-25; Id. El Dios de Jesús en el nuevo contexto de las religiones. In: Iglesia Viva, 180 (1995), p. 563-571. 15 Cf. Id. Deus para o homem e o homem para Deus. In: Id. Repensar a cristologia. Sondagens para um novo paradigma. São Paulo: Paulinas, p. 17-24; Id. Jesus, homem verdadeiro. In: Ibid., p. 173-206; Id. A significatividade de Cristo para o homem de hoje. In: Ibid., p. 253-289; Id. Confessar Jesus Cristo hoje. In: Ibid., p. 291-368.

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Interessa-nos mostrar como Torres Queiruga desenvolve esta temática. Por

isso, dividiremos esta seção em três itens: um sobre a revelação de Deus na

humanidade de Jesus; outro sobre sua experiência de Deus como Abbá; e outro

ainda sobre o mal-entendido, surgido na modernidade, que considera o Deus de

Jesus como inimigo ou rival do ser humano.

4.1.1. A revelação de Deus na humanidade de Jesus

Para Torres Queiruga, “Jesus é Deus em sua simples e compartilhada

humanidade”16. Sua humanidade é lugar de acesso a sua divindade. Trata-se de

uma humanidade “que é a epifania de Deus para os homens”17. E, ao mesmo

tempo, é “a mais autêntica existência do homem diante de Deus e do homem ao

lado do homem”18. Isto significa dizer que a revelação de Deus em Jesus não se dá

por meio de ações que contrariam as leis da natureza, e sim por meio de uma

existência humana orientada-para-Deus e para-o-homem; uma existência marcada

pelo espírito filial, pela prática do amor gratuito, pela alegria de viver, pela

solidariedade com os pobres e os marginalizados e pela coragem de combater as

estruturas sociais desumanas em nome do Reino de Deus19.

No entanto, a humanidade de Jesus não pode ser considerada diferente da

nossa. Não cabe falar que Jesus tenha sido um super-homem ou um não-homem.

O correto é vê-lo como homem verdadeiro20; como homem completo em todos os

sentidos. Assim como nós, seu conhecimento, sua consciência, sua fé conheceram

a dinâmica do desenvolvimento e amadurecimento. Sua humanidade era, assim

como a nossa, por causa dos condicionamentos históricos e biológicos, limitada e

finita. Por isso, sua abertura existencial ao Pai se deu “por meio do tenteio, da

prova, da crise e até do ‘erro’”21. Do mesmo modo, o homem Jesus não estava

isento da dor, do sofrimento ou da morte. Igual a nós, sentia o que sentimos

quando nos deparamos com a limitação desta existência. Neste caso, o nosso autor

16 Id. Repensar a cristologia, p. 19. 17 Ibid., p. 20. 18 Ibid. 19 Cf. Ibid. 20 Cf. Id. Repensar a cristologia, p. 173-206. 21 Ibid., p. 182.

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afirma que Jesus chega de verdade a todo o homem porque assumiu

expressamente a negatividade da dor e da morte22.

É por causa, sobretudo, da cruz, da experiência da morte que podemos

falar, segundo Torres Queiruga, da universalidade salvífica de Jesus. Isto significa

dizer que a universalidade do Cristo se encontra antecipada no Jesus terreno. A

realidade do sofrimento de Jesus que o coloca em relação direta e inquestionável

com nossa humanidade, permite que a salvação realizada nele e por ele chegue a

“todo o homem” – universalidade intensiva – e a “todos os homens” –

universalidade extensiva23. Neste caso, a Jesus pode ser aplicado um termo

marxiano, a saber: “proletário”. Jesus é o “proletário absoluto”, ou seja, por causa

de sua humanidade vivenciada até ao extremo, ele pode apresentar-se para todos

nós como o caminho de salvação24. Com esta perspectiva se vê que o sofrimento

de Jesus como também a sua morte não podem ser compreendidos “como fruto da

causalidade cega nem como preço a ser pago a um Deus tomado pela ira”25, mas

sim como conseqüência de uma humanidade vivida maximamente. E se a

humanidade de Jesus nos revela de fato Deus, seu sofrimento e sua morte nos

manifestam “o verdadeiro rosto do amor universal, que quer chegar a todos e que

por isso se situa no ponto mais baixo: “aos pés” da humanidade (cf. Jo 13,5-

14)”26.

Todavia, na humanidade de Jesus – e aqui reside a diferença desta

humanidade para a nossa - encontramos não somente uma orientação intensa para

Deus, mas um assumir constantemente a relação com Ele e viver a partir Dele.

Nesta humanidade encontramos, em outros termos, a unidade total com Deus. Por

causa disso, em Jesus se dá a plenitude da revelação divina. Em sua humanidade

se manifesta o autêntico de sua divindade. Pois, o modo com ele assume sua

humanidade revela o mistério de sua pessoa. Ora, “se em Jesus se alcançou uma

plenitude definitiva e insuperável [da revelação de Deus], só pode ter acontecido

porque nele a união com Deus é também tão profunda e tão íntima que não cabe

22 Cf. Ibid., p. 31. 23 Cf. Ibid., p. 30. 24 Cf. Ibid., p. 25-35; Id. Recuperar a salvação, p. 186-191. 25 Id. Recuperar a salvação, p. 191. 26 Ibid.

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superação possível”27. Assim, Jesus nos revela Deus à medida que vai relevando,

com sua vida terrena, a sua identidade: a sua filiação divina.

Para Torres Queiruga, esta visão não é heterodoxa, pois não nega o

“princípio calcedônico” que afirma que Jesus é tão consubstancial ao Pai quanto

consubstancial conosco28. A concepção de que a humanidade de Jesus revela Deus

é algo que podemos encontrar entre os próprios apóstolos. Eles “encontraram um

homem real e verdadeiro, e em sua humanidade nunca negada descobriram pouco

a pouco o mistério de sua divindade”29. Trata-se da experiência fundante que eles

fizeram de Deus no encontro com um homem que viveu intensamente sua

humanidade. A própria cristologia do Novo Testamento parte da humanidade de

Jesus para desvendar a sua identidade, o seu mistério.

“Nela e por meio dela [da humanidade de Jesus]: na profundidade do seu amor, na autoridade de sua palavra, na generosidade de sua entrega, as primeiras testemunhas experimentaram a presença imediata de Deus; experiência que a luz da ressurreição afirmou e aprofundou. Mas foi sempre a concretíssima humanidade de Jesus o húmus nutrício do ‘fazer-se da cristologia...”30.

Esta concepção, longe de anular a humanidade e mesmo a divindade, as

articula. A humanidade de Jesus não é vista como roupagem de sua divindade,

mas constitui a realidade essencial pela qual a divindade se expressa. Por isso, não

se revela em Jesus de Nazaré um Deus hostil à humanidade. Pelo contrário, em

Jesus encontramos um Deus que assume profundamente o humano, e o humano

que, por sua vez, assume com a mesma intensidade a Deus.

Esta concepção desautoriza uma leitura de um Deus “desde fora”

assumindo a humanidade e abre a perspectiva de uma nova abordagem

cristológica. Remetendo-se a K. Rahner, o nosso autor afirma que a leitura da

encarnação “desde fora” é mitológica, porque apresenta Deus e o homem como

realidades paralelas; e herética, porque eleva tanto a humanidade de Jesus que

tende a esvaziá-la de sua densidade ou deformá-la pela presença do divino31. A

concepção que remonta à experiência fundante de que na humanidade de Jesus se

revela Deus impede o “criptomonofisismo” e nos ajuda a compreender a

encarnação não mais no antigo esquema de que o Verbo chega de fora do mundo

e da humanidade e se faz carne. Na encarnação não se deve falar de um Deus que 27 Id. Repensar a cristologia, p. 346. 28 Cf. Ibid., p. 196. 29 Ibid., p. 205. 30 Ibid.,p. 205-206. 31 Cf. Ibid., p. 297.

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rompe a autonomia do mundo e da humanidade e sim entendê-la como algo que se

produz por dentro do mundo32. Ora, Deus não está fora do mundo; está dentro

sustentando continuamente a criação. Assim, Jesus “vem” de Deus e não “desde

fora”. A humanidade de Jesus revela sua divindade porque se trata de uma

humanidade que participa profundamente e de modo insuperável “dessa mesma

fonte que está nos fazendo ser”33, ou seja, de Deus mesmo. Deste modo, não há

concorrência entre a humanidade de Jesus e sua divindade. Ao contrário, “quanto

mais íntima e profundamente o ser de Jesus está enraizado em Deus, mais pura,

profunda e decisivamente humano ele é”34. Por isso, o grau de humanidade que

Jesus vivenciou nos revela quão relacionado a Deus ele se encontrava. Podemos

dizer, portanto, que a revelação de Deus ou a identidade do próprio Jesus se dá no

processo de sua humanização. Sua divindade se manifesta na máxima realização e

potencialização de sua humanidade.

Para Torres Queiruga, a revelação de Deus na humanidade de Jesus

acontece, sobretudo, como já acenamos acima, pela sua relação com Deus e com

os homens. Veremos mais à frente como Jesus se relacionou com Deus. Agora

nos interessa ressaltar o modo como se relacionou com os outros.

Em Jesus, de acordo com nosso teólogo, não encontramos uma pessoa

egoísta, apática ou insensível aos problemas humanos, inclusive aqueles

produzidos pela ação social. Para ele, Jesus foi uma pessoa que viveu

radicalmente o amor, um defensor incondicional dos pobres e um combatente

contra o mal.

Torres Queiruga considera ser o amor o núcleo fundamental da experiência

cristã, porque Jesus nos revelou um Deus amor em suas pregações e em suas

atitudes35. Jesus manifestou um amor profundíssimo por Deus e pelo ser humano,

sobretudo por aquele que na sua época era vítima da marginalização e da exclusão

social. Um amor manifestado por palavras e ações, por sinais e milagres, e,

especialmente pela doação de sua vida à morte como conseqüência de sua

coerência de vida. Por isso, Jesus pode ser visto como “a ágape feita carne”36. Por

meio de sua humanidade, o amor de Deus se concretizou na vida de muitas

32 Cf. Ibid., p. 203, 263, 297, 341, 355-359. 33 Ibid., p. 356. 34 Ibid., p. 357-358. 35 Cf. Id. Deus e o amor: o amor-agápe, princípio do cristianismo. In: Id. Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus, p. 109-180. 36 Ibid., p. 134.

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pessoas que puderam experimentá-lo. E devemos lembrar que se tratava de um

amor gratuito, universal ou includente e absoluto37.

Jesus foi um homem solidário com os pobres e empenhado em defendê-

los38. Neste sentido, nosso teólogo afirma que Jesus defendeu os pobres em

pregações e em suas atitudes. Prova disso, são as “bem-aventuranças”, a

proximidade com os “pecadores” e doentes, sua crítica aos ricos e poderosos e sua

morte violenta, a qual foi resultado do seu “tomar partido” pelos pobres.

A defesa destes por Jesus, nos lembra nosso autor, foi motivada por sua

experiência de Deus. Ao fazer experiência de um Deus Abbá, não podia concordar

com a exclusão ou desvalorização social de qualquer homem ou mulher39. Ora, a

pobreza para Jesus não era compreendida como querida por Deus e, sim, como

conseqüência de uma situação social anti-humana e antidivina. Por isso, ele a

combateu. Tentou, assim, realizar a justiça salvadora e libertadora do Pai.

Colocando-se ao lado dos pobres e defendendo-os, Jesus teria lutado para que a

realidade social desumana fosse destruída. Deste modo, revelou-se como uma

pessoa empenhada na luta contra o mal. Neste sentido, a realidade do mal, quer

seja como produto do exercício da liberdade humana, isto é, o pecado pessoal e

social, quer seja como aquilo que se opõe à vida, como por exemplo, a doença e a

morte, foi combatida duramente por Jesus. A sua missão consistia em anunciar e

realizar o Reino de Deus e outra coisa não foi senão uma luta contra tudo aquilo

que se opunha à realização da criação contínua e da salvação querida por Deus.

Por isso podemos dizer que nas atitudes fundamentais de Jesus, Deus se revelou

ao lado do homem contra o mal40.

Para o nosso teólogo, Jesus, além de revelar Deus em sua humanidade, nos

revela a identidade profunda do próprio ser humano. Pois, ele

“ao ir reconhecendo em si mesmo e em sua história o sentido autentico da presença salvífica de Deus, está descobrindo-o também para nós, pois essa presença é a mesma que trabalha igualmente a intimidade e a história de todos os homens e mulheres”41.

37 Cf. Ibid., p. 135-136. 38 Cf. Id. Deus e os pobres: a justiça do Deus cristão. In: Ibid., p. 265-314; Id. Creio em Deus Pai, p. 63-73. 39 Cf. Id. Creio em Deus pai, p. 63-64. 40 Esta temática do enfrentamento do mal por Jesus será aprofundada na segunda seção deste capítulo. 41 Id. Repensar a cristologia, p. 342.

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Isto quer dizer que na humanidade de Jesus encontramos a revelação de

algo que está presente e atuante em todo ser humano: a ação criadora e salvífica

de Deus. O modo como Jesus viveu nos mostra que o homem é capaz, na abertura

infinita de seu espírito, de acolher a Deus. Mas, não devemos esquecer que isto

somente é possível, porque Deus antes se entrega ao homem na constituição do

seu ser e na orientação para a salvação. Em outros termos, Jesus nos revela a

identidade do ser do homem; revela que não estamos entregues a nós mesmos. O

fundamento de nosso ser e de nossa vida não se encontra na auto-suficiência

humana, mas na presença divina que atua “escondida” em nós. A liberdade de

Jesus, sua capacidade de entregar-se aos outros, seu espírito filial em relação a

Deus nos mostra o que é de fato ser ser humano. Quanto mais a pessoa, a exemplo

de Jesus, se descentraliza de si; quanto mais se doar e se relacionar

respeitosamente com os outros, mais humana ela se torna e mais expressa sua

intimidade e unidade com o Deus criador-salvador que age em nós. Desta forma,

vê-se que não existe concorrência ou rivalidade entre Deus e o humano. Ao

contrário, “quando mais presente Deus se faz no homem, mais afirmado ele sente

seu ser; e quanto mais o homem ou a mulher se entregam a Deus, com mais

profundidade e plenitude se recebem a si mesmos, e mais humanos são”42.

A realidade da salvação, segundo o nosso autor, encontra nesta relação

profunda com Deus a sua significação. A salvação, longe de ser um ato mágico

produzido por Deus com a morte cruenta de Cristo, consiste naquilo que

encontramos em toda existência de Jesus: uma vida em abertura profunda a

Deus43. Fazer a experiência da salvação na história significa se identificar com a

história existencial de Jesus. Ele nos possibilitou o caminho da salvação. “Seu

viver, de dentro mesmo de nossa finitude e de nossa impotência, uma vida de

plena abertura a Deus e ao ser humano [...], vai simultaneamente tornando

possível que o homem finito e impotente também seja capaz de vivê-lo”44.

Salvação na história consiste, então, em humanização à luz da humanidade de

Jesus de Nazaré. Mas não se trata de uma humanização realizada unicamente por

nós mesmos, e sim possibilitada pela ação de Deus que, ao agir no profundo de

nós mesmos, potencializa o nosso ser e nossa liberdade. A conseqüência final da

42 Ibid., p. 333. 43 Cf. Id. Recuperar a salvação, p. 171-178, 204-206. 44 Ibid., p. 174.

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humanização ou de uma existência salva é a “infinitização da criatura”, a

divinização ou ressurreição45. Isto se faz claro a partir da ressurreição do próprio

Jesus. Sua ressurreição não foi algo extrínseco à sua existência, mas conseqüência

dela46. Aquilo que Jesus viveu ao longo da vida, sua abertura a Deus e aos homens

se plenifica na ressurreição. O destino de Jesus, portanto, se apresenta ao homem

como esperança47. Deste modo, a humanidade de Jesus não somente nos revela o

ser do ser humano, mas também o seu destino. Por isso, em Jesus encontramos a

chave última, embora não exclusiva, para as grandes perguntas sobre a identidade

do ser humano.

Tendo feita esta exposição a respeito de como Deus nos é revelado em

Jesus de Nazaré, nos interessa agora mostrar como Torres Queiruga nos fala da

revelação de Deus por Jesus. Por isso, neste momento daremos destaque à

intuição de Jesus a respeito de Deus como Abbá.

4.1.2. O Abbá revelado por Jesus

Para Torres Queiruga, “somente o rosto verdadeiro do Deus de Jesus

poderá romper a ambigüidade e desmascarar como um ídolo – rejeitado com razão

– a idéia de um deus-rival-do-homem”48. Isto porque Deus foi captado e

experimentado por Jesus de Nazaré como Abbá que nos ama incondicionalmente;

que nos perdoa sem restrições; como Aquele que está total e plenamente a serviço

de nossa vida, criando e salvando49. Isto significa dizer que no Abbá de Jesus não

é possível extrair nenhuma interpretação de que Deus seja concorrente do ser

humano ou que Ele esteja na contramão de nossa afirmação e de nosso

desenvolvimento como pessoa.

O nosso autor, no entanto, ressalta, respeitando o dado do realismo da

encarnação do Filho, que Jesus chegou ao conhecimento de Deus não por uma

revelação especial caída do céu, nem porque possuía um conhecimento prévio

dele, mas por meio de sua inserção na cultura judaica. Para ele, Jesus primeiro

teria captado ou intuído, a partir de suas experiências de vida, como Deus é e

depois teria feito desta imagem o motor fundamental de toda a sua existência. 45 Cf. Ibid., p. 213-220. 46 Cf. Ibid., p. 206. 47 Cf. Ibid., p. 203. 48 Id. Creio em Deus Pai, p. 79. 49 Cf. Id. Ibid., pp. 43-45 e 74-113.

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Para Jesus, “a vivência do Abbá constitui o núcleo mais íntimo e original de sua

personalidade”50.

Segundo Torres Queiruga, “Deus se revela sempre, em todas as partes e a

todos quanto lhe é possível, na generosidade irrestrita de um amor sempre em ato,

que se quer dar plenamente”51. Entretanto, devido as nossas limitações e aos

condicionamentos históricos não conseguimos captar imediatamente o verdadeiro

rosto de Deus. Daí que as nossas imagens de Deus podem não condizer com

aquilo que Deus de fato é. Por isso é que ao longo da história podemos constatar

um movimento de purificação ou de superação de imagens equivocadas a que

chegamos a respeito de Deus52. O Antigo Testamento é exemplo disso. Neste

encontramos algumas imagens de Deus que para nós hoje nos são inaceitáveis.

Mas encontramos também algumas que condizem com o Deus revelado por Jesus.

Por isso, há no Antigo Testamento um movimento no qual o “fascinans”

(fascinante) vai superando o “tremendum” (tremendo, pavoroso)53. De início

Deus vai sendo captado como fonte de medo e temor – daí alguns traços

demoníacos em Deus – e mais tarde Ele é percebido, sobretudo com os profetas,

como presença protetora, amorosa e salvadora. Nos profetas, o “tremendum não

desaparece de todo, mas cede continuamente lugar ao fascinans” 54. Assim, na

tradição bíblica a deformação da identidade de Deus pelos fantasmas humanos, o

tremendum, vai cedendo espaço lentamente ao seu verdadeiro rosto, o fascinans.

A verdadeira imagem de Deus, no entender de nosso teólogo, foi captada

por Jesus de Nazaré, o qual se relacionava com Deus como Abbá55. Em sua

experiência de Deus culminou a percepção humana do que Deus, desde sempre,

quer ser para nós, a saber: “Pai entregue em seu amor tão infinito como seu

próprio ser e que unicamente espera de nós que, compreendendo-o, ousemos

responder-lhe com a máxima confiança de que nosso coração for capaz”56. Como

já aludimos acima, essa compreensão de Deus como Abbá por Jesus consiste na

50 Ibid., p. 96. 51 Id. A revelação de Deus na realização humana, p.15. 52 Cf. Id. Recuperar a criação, pp. 57-68. 53 Cf. Ibid., p. 65-68. O autor faz aqui uso de uma terminologia utilizada por Agostinho: Deus como fascinans et tremendum. Esta terminologia é também utilizada por Rudolf Otto em sua análise fenomenológica do sagrado, cf. OTTO, R., O sagrado. Os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional. Petrópolis: Vozes-Sinodal-EST, 2007. 54 TORRES QUEIRUGA, A. Recuperar a criação, p. 66. 55 Cf. Ibid., p. 68-72. A respeito da plenitude da revelação, cf. Id. A revelação de Deus na realização humana, p. 414-415. 56 Id. Recuperar a criação, pp. 70-71.

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culminação de um processo que vinha sendo gestado há muito tempo pela tradição

bíblica. Os profetas já haviam compreendido Deus como amor afirmativo e como

ternura desbordada. E haviam traduzido isto em algumas imagens, a saber:

“pastor” (cf. Ez 34), “vinhateiro” (cf. Is 5; Ez 17,6-10), “esposo” – Deus como

esposo fiel e amoroso apesar de todas as infidelidades - (cf. Os 2,18; Jz 2,2; 31,3;

Ez 16,1-43.59-63), “pai do povo” e “rei do povo” (cf. Sl 103,13-14; Is 64,7-8; Os

3,8-9; Jr 31,20)57. Jesus seguiu essa tradição e chegou a uma captação insuperável

da revelação de Deus58. Ao intuir Deus como Abbá, Jesus teria recolhido do

Antigo Testamento não os fantasmas ou as caricaturas de Deus, “mas o melhor

que a consciência religiosa, ou que a revelação de Deus foi descobrindo”59. Deus

foi percebido e experienciado por Jesus como Abbá de ternura infinita e perdão

incondicional; um Deus que se preocupa com o ser humano; um Deus

absolutamente empenhado em nossa criação e salvação60. Na compreensão de

Jesus a respeito de Deus, o tremendum é superado radicalmente pelo fascinans.

Pois, para Jesus, Deus não é ambíguo, mas unicamente amor.

Nosso autor ressalta, entretanto, que a intuição do Abbá não foi

simplesmente uma idéia vaga para Jesus, mas sim uma verdade interior que

configurou toda sua existência e que foi adquirida a partir das experiências da

vida. Ele acredita que Jesus não tenha vivido recluso na aldeia de Nazaré até aos

trinta anos. Para ele, Jesus provavelmente andou buscando sua vocação e fazendo

muitas experiências, inclusive com João Batista, de quem talvez tenha sido

discípulo. Sua intuição de Deus como Abbá foi sendo desenvolvida a partir dessas

experiências61, e, sobretudo a partir de seu relacionamento pessoal com Deus62, no

qual depositava uma confiança e obediência incondicional63.

Jesus provavelmente teria rompido com o movimento de João Batista,

segundo Torres Queiruga, porque sua imagem de Deus não estava em

57 Cf. Id. Recuperar a criação, pp. 71-72. 58 Cf. Id. O cristianismo no mundo de hoje, São Paulo: Paulus, 1994, p. 23; Id. O diálogo das religiões. São Paulo: Paulus, 1997, pp. 49. 59 Id. De uma religião de escravos a uma religião de filhos, p. 22. 60 Cf. Ibid., p.23; Id. El Dios de Jesús en el nuevo contexto de las religiones, p. 565-569. 61 Cf. Id. De uma religião de escravos a uma religião de filhos, p. 22-23. 62 A respeito disso, o autor afirma o seguinte: “Para expressar sua própria vivência precisou [Jesus] forjar uma palavra que fosse menos infiel ao que ele sentia de Deus: Abbá, ‘papá’”. Id. El Dios de Jesús en el nuevo contexto de las religiones, p. 566. 63 Cf. Id. De uma religião de escravos a uma religião de filhos, p. 24; Id. Creio em Deus Pai, p. 96-98.

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concordância com a do Deus juiz do Batista64. Ao deixar este movimento, Jesus

teria assumido uma missão independente, a saber, a de anunciar a mensagem da

proximidade do Reino de Deus como “evangelho” ou boa-nova, sobretudo aos

marginalizados. Ora, a intensa experiência de Deus feita por Jesus o colocou em

relação profunda com os pobres e demais excluídos de sua época. Isto porque ao

experienciar a Deus como Abbá amoroso, não podia aceitar a lógica excludente da

religião oficial que via os pobres, os doentes e os pequenos como pessoas

excluídas do amor e da salvação de Deus. Para Jesus, Deus não está

comprometido apenas com a salvação dos judeus zelosos e observadores da Lei,

mas está obstinado na salvação de todos, especialmente daqueles que sofrem com

a exclusão social e religiosa65. Uma prova disso é o anúncio feito por ele de que

são “bem aventurados os pobres porque deles é o Reino de Deus” (Lc 6,20b; Mt

5,3). Ao pregar o Reino de Deus aos pobres e ao realizá-lo mediante suas atitudes,

estava expressando aquilo que sentia em sua relação com Deus: a experiência do

amor salvífico. Portanto, Jesus foi homem-para-os-outros por causa de sua

compreensão e experiência de Deus.

O nosso autor nos lembra que Jesus se sentia tão acolhido e apoiado por

Deus que se dirigia a Ele em suas orações como Abbá e ensinava a seus discípulos

a fazerem o mesmo: “quando rezardes, dizei: Abbá” (cf. Mt 6,7-15; Lc 11,2-4)66.

Ensinou aos discípulos a confiança filial em Deus que, para ele, era unicamente

amor e ternura. Ao ensinar a orar, pedia aos discípulos que tivessem a mesma

confiança que a criancinha tem com relação ao seu papai. Não uma confiança

infantilizante, mas uma confiança no sentido de relação íntima e humanizante,

porque se trata de uma relação que leva a pessoa a superar sua a auto-suficiência

narcisística.

Neste ponto, Torres Queiruga não deixa de considerar a crítica de Freud à

religião67. A suspeita de Freud é a de que Deus, sobretudo sua imagem como Pai,

nada mais é do que a projeção do desejo infantil de onipotência ou a projeção que

aplaca o sentimento de culpa; uma projeção que impede a pessoa de enfrentar a

dureza da realidade e que a mantém prisioneira da ambivalência do complexo de

64 Cf. Id. El Dios de Jesús en el nuevo contexto de las religiones, p. 566; Id. De uma religião de escravos a uma religião de filhos, p. 23-24. 65 Cf. Id. Recuperar a criação, p. 69. 66 Cf. Id. De uma religião de escravos a uma religião de filhos, p. 24; Id. Creio em Deus Pai, p. 97. 67 Cf. Id. De uma religião de escravos..., p. 26-30; Creio em Deus Pai, p. 102-113.

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Édipo. Seja como for, para Freud, Deus impede o crescimento adulto do homem.

O nosso autor, diante da acusação freudiana, defende a tese de que a relação de

Jesus com o Abbá nada tem de infantilizante68. Ao contrário, a experiência de

Deus como Abbá, que serviu de núcleo para a pessoa e a missão de Jesus, fez com

que ele desenvolvesse uma humanidade vivida num grau de maturidade

insuperável. Por isso, não é permitido dizer que Jesus tenha sido norteado pelo

“princípio do prazer” por causa de sua relação com o Abbá; nem tampouco se

pode dizer que ele não tenha superado a ambivalência edipiana. Ora, Jesus, em

sua experiência do Abbá, segundo o autor, foi um homem extremamente livre,

realista, crítico, servidor. E isto a ponto de, para defender os humildes, enfrentar

as autoridades políticas e religiosas e morrer crucificado. Portanto, o que norteou

a sua vida foi o “princípio de realidade” e unicamente o amor – e não também o

ódio da ambivalência edipiana – pelo Abbá. Por isso, em Jesus não encontramos

uma pessoa infantil, alienada de si e do compromisso com a realidade e com os

outros. Desta forma podemos dizer que a experiência do Abbá foi fundamental

para a expressão da humanização de Jesus de Nazaré.

Além do mais, segundo o nosso teólogo, Jesus teria enriquecido sua

compreensão de Deus como Abbá relacionando-a com a visão veterotestamentária

de Deus como criador69. Para Jesus, Deus é “Pai, Senhor do céu e da terra” (Mt

11,25b); o Abbá e o Criador se identificam. Por isso, o Criador não é visto por

Jesus como Aquele que cria com a finalidade de possuir súditos à sua disposição

para servi-lo. Jesus “não nos mostra um Deus preocupado egocentricamente com

‘sua glória’”70. Para ele, o Abbá-Criador cria por gratuidade e para a afirmação e

realização da criatura. Deste modo, para Jesus, o Abbá-Criador não está

interessado num ritualismo litúrgico ou numa observância legalista realizada para

agradá-lo. Como Ele age para sustentar e promover a vida de suas criaturas, o

Abbá-Criador se interessa pelas ações humanas que expressam esta mesma

preocupação, a saber: a afirmação e promoção da vida. Deste modo, o verdadeiro

ato religioso não é, em primeiro lugar, a observância do culto e da lei, mas a ação

em prol da vida. Por isso, segundo o autor, é que Jesus criticou duramente o

legalismo, especialmente a lei a respeito do sábado: “O sábado foi feito para o

68 Cf. Id. De uma religião de escravos..., p. 28-30; Id. Creio em Deus Pai, p. 110-113. 69 Cf. Id. El Dios de Jesús en el nuevo contexto de las religiones, pp. 563-569. 70 Cf. Ibid., p. 563.

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homem, e não o homem para o sábado” (Mc 2,27). E criticou também o ritualismo

do sacrifício desvinculado da prática do amor fraterno: “deixa a tua oferta ali

diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão” (Mt 5,23-24).

Portanto, a conseqüência prática da imagem do Abbá-criador é a fraternidade

entre os homens.

Torres Queiruga afirma que Jesus não somente ensinou aos discípulos a

orar a Deus como Abbá, mas também os ensinou a considerar que todos os

homens e mulheres são irmãos. Para Jesus, o Abbá-Criador é o fundamento da

fraternidade universal71. Ora, se Deus é Abbá-Criador, os homens são “irmãos”;

humanidade e irmandade são duas condições inseparáveis72. Neste sentido, a

fraternidade ou o amor fraterno consiste na atitude religiosa por excelência. A

maior expressão do amor a Deus passa pelo amor efetivo às pessoas concretas.

Por isso é que Jesus fez de sua vida um contínuo ato de amor aos homens. É por

isso também que ele deixou como mandamento fundamental aos seus discípulos a

prática do amor aos “irmãos”. Para Jesus, quem ama ao “irmão” está amando ao

Abbá. Assim, “qualquer pretensão de amar ao Pai sem amar ao irmão, fica

revelada como mentira, de maneira total e irreversível: é o que aparece com

claridade estremecedora na parábola do Juízo Final (Mt 25,31-46)”73.

Por fim, a revelação de Deus por Jesus, segundo o nosso autor, foi tão

radical e desconcertante que os autores do Novo Testamento tiveram imenso

trabalho em captá-la74. Algumas palavras colocadas na boca de Jesus a respeito do

julgamento divino ou referências ao inferno são provas desta dificuldade. No

entanto, no núcleo fundamental do Novo Testamento radica esta revelação feita

por Jesus. Para Torres Queiruga, dois textos paradigmáticos expressam a

revelação profunda de Deus em e por Jesus, a saber: Rm 8, 31-39 e 1Jo 4,8.1675.

Nestes textos, para ele, encontramos a verdade sobre o cristianismo, seu núcleo

mais radical: Deus é amor e nada pode nos separar do amor Dele. Isto quer dizer

que de Deus não podemos ter medo, pois “Deus é um abismo de luz do qual a nós

só pode chegar amor, só nos pode chegar a salvação, só nos pode chegar a

71 Cf. Ibid., p. 569-572. 72 Cf. Ibid., p. 569. 73 Ibid., p. 570. 74 Cf. Id., De uma religião de escravos a uma religião de filhos, p. 24-25. 75 Cf. Ibid.

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alegria”76. Ora, se “Deus é amor” todo o seu ser consiste em nos amar. Ele não

sabe nem quer nem pode fazer outra coisa, senão amar77.

4.1.3. O mal-entendido sobre o Deus de Jesus

Embora não possamos encontrar nada que se oponha ou diminua o ser

humano na revelação de Deus em e por Jesus de Nazaré, Torres Queiruga constata

que o Deus de Jesus e também o cristianismo foram e continuam sendo

considerados inimigos da afirmação, do progresso e da realização humana. Esta

consideração negativa, segundo o nosso autor, provém tanto do ateísmo

moderno78, quanto dos próprios cristãos que vivem a religião e a experiência de

Deus como sendo algo alienante e opressor79.

Para Torres Queiruga, o fenômeno do ateísmo com sua convicção difusa

de que a afirmação de Deus corresponde à negação do humano surge, em grande

parte, do choque entre dois mundos culturais: o pré-moderno e o moderno80. O

problema é que o cristianismo que estava vinculado ao mundo mental pré-

moderno não soube transformar-se o suficiente para assimilar os novos dados da

modernidade. A própria fé cristã não foi devidamente interpretada a partir do novo

paradigma. Ao contrário, continuou por séculos a ser interpretada de acordo com

o esquema mental pré-moderno. A fixação do cristianismo ao paradigma pré-

moderno o levou a ser interpretado no seu conjunto como algo contrário ao

desenvolvimento das potencialidades da humanidade a ser possibilitado pela

modernidade. Enquanto a modernidade com sua proposta de autonomia, em seu

aspecto objetivo e subjetivo, representava para o homem moderno a esperança de

realização, a religião cristã foi considerada “inimiga de seu progresso, de sua

autonomia e, definitivamente, de sua felicidade”81. Ao se colocar na contramão da

experiência moderna, o cristianismo fez com que também o seu símbolo maior,

Deus, fosse visto pelo homem moderno como seu rival opressor. Assim, o ateísmo

surge como protesto visceral contra um cristianismo e um Deus que impedem o

crescimento do homem ou, nos termos de Kant, seu acesso à “maioridade”.

76 Ibid., p. 26. 77 Cf. Id. El Dios de Jesús: Aproximación en cuatro metáforas, p. 20. 78 Cf. Id. Creio em Deus Pai, p. 11-73; Id. Recuperar a salvação, p. 32-34. 79 Cf. Id. Recuperar a salvação, p. 11-32. 80 Cf. Id. Creio em Deus Pai, p. 24-30. 81 Ibid., p. 30.

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O cristianismo, segundo constatação de nosso teólogo, é também

interpretado e vivido por não poucos cristãos como um fardo à existência. A causa

disto se encontra relacionada a uma imagem deturpada ou equivocada do Deus

Abbá de Jesus. Ora, a presença de Deus é experimentada, em muitos casos, sob a

veste do temor e do medo. Para muitos cristãos, Deus é experienciado como juiz

severo que incute medo; como presença opressora que torna a vida mais pesada e

mais incomoda; como Aquele que impõe o cumprimento de certos mandamentos

alheios ao nosso interesse; como Aquele que nos faz sofrer ou que é impassível e

insensível às nossas dores; como Aquele que se encontra distante de nós e que só

intervém no mundo quando quer ou quando é muito solicitado.

“Deus habita o fundo comum da consciência cristã como uma presença exigente, que torna mais incomoda a existência e mais pesada a vida, que impõe obrigações duras e difíceis, que pode manifestar-se em castigos obscuros, dolorosos e inexplicáveis. Em conseqüência disso, no fundo da consciência de muitos cristãos parece despontar muitas vezes uma espécie de pesar secreto pela existência de Deus, um desejo incofesso de que o cristianismo não tivesse aparecido; parece que assim se viveria mais livre e mais leve: livre do peso que a religião pressupõe em relação à espontaneidade da vida”82.

O pior, segundo Torres Queiruga, é que a imagem equivocada do Deus

Abbá de Jesus consiste num produto criado pela própria pregação cristã reforçada

pela teologia83. Quando a teologia fundamenta ou busca explicitar “doutrinas” que

não são fiéis à revelação realizada em e por Jesus, ela está contribuindo para que

uma imagem equivocada de Deus se instale na consciência dos cristãos e em sua

vivência da fé84. “Doutrinas” como a da dupla predestinação, do inferno, da

concepção jurídica da redenção, da versão cruel e legalista do pecado original

fazem de Deus um fantasma extremamente negativo à existência humana. Por isso

é que, para alguns cristãos, a vivência espontânea da fé é experimentada como

legalista, culpabilizante, enfadonha e até aterrorizante.

Portanto, para o nosso teólogo, a visão negativa do ateísmo e também de

muitos cristãos a respeito de Deus tem seu fundamento em dois dados: (1) numa

interpretação da fé pouco fiel ao dado da revelação, isto é, ao Deus revelado em e

82 Id. Recuperar a salvação, p. 14. 83 Ibid., p. 30-31. 84 Para o autor, a deturpação do Deus Abbá de Jesus acontece especialmente quando a reflexão teológica não considera uma leitura hermenêutica da Bíblia nem da Tradição ou quando esta leitura é feita de modo errôneo. A leitura deformada do ciclo da criação e do ciclo da redenção, por exemplo, permitiu que o rosto de Deus fosse apresentado de modo bem diferente e até mesmo em oposição ao Deus revelado em e por Jesus de Nazaré. Cf. Id. Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus, p. 21-107; Id. Creer de outra manera, p. 15-29.

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por Jesus de Nazaré; e (2) e numa interpretação da fé que não levou em conta o

paradigma moderno. Por isso, cabe à teologia atual a realização de uma tarefa

imprescindível, a saber: repensar todas as “verdades” da fé cristã a partir das

coordenadas do paradigma moderno mantendo-se fiel ao dado da revelação85.

Somente assim, segundo ele, a teologia conseguirá colaborar com a superação do

mal-entendido que apresenta Deus e o cristianismo em rivalidade com o ser

humano.

4.2. Deus-criador como afirmação da criatura

O paradigma moderno, segundo Torres Queiruga, constitui, em

comparação com o paradigma pré-moderno, um novo modo de compreender o

mundo e o próprio ser humano. A palavra-chave que resume, para ele, a

experiência moderna é autonomia86. Com a modernidade, o homem toma

consciência de que é um ser que deve construir sua existência por conta própria a

partir de sua liberdade e com o poder da razão. Deste modo, o mundo social e a lei

moral não são mais vistos como algo previamente imposto de modo autoritário

por uma divindade exterior, mas como realidades a serem construídas pelo próprio

homem. Além do mais, descobre-se também que o mundo físico possui leis

próprias e intrínsecas que regulam o seu funcionamento. Ora, esta visão “mina

pela raiz toda concepção intervencionista da atividade divina”87. A modernidade

desautoriza o discurso teológico pré-moderno. Daí que a teologia atual se depara

com um grande desafio: repensar os dados da fé a partir da autonomia moderna.

Se a teologia não se empenhar nesta tarefa poderá contribuir, como já aconteceu,

para que Deus e o cristianismo sejam vistos como disparates e como algo que se

opõe ao ser humano e a sua plenitude. Pensando desta forma, o próprio autor se

propõe a repensar alguns temas fundamentais da fé cristã. Nesta seção daremos

destaque ao tema da criação, sem desconsiderar um outro tema que se articula

essencialmente a este, a saber, o da salvação. A seção será dividida em três itens.

No primeiro, daremos destaque à intuição de que Deus não está fora da criação,

mas presente profundamente nela sem desrespeitar sua autonomia. No segundo,

vamos considerar a relação entre criação e salvação, pois a presença de Deus na

85 Cf. Id. Fim do cristianismo pré-moderno, p. 13-67. 86 Cf. Ibid., p. 20; Creio em Deus Pai, p. 32. 87 Id. Fim do cristianismo pré-moderno, p. 26.

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criação é uma presença que dinamiza a realização da criatura. E no terceiro item,

vamos apresentar o novo esquema da história da salvação que o nosso autor

propõe a partir de sua abordagem sobre a temática.

4.2.1. A presença de Deus na criação

A reflexão sobre o tema da criação é assumida pelo autor porque se trata

de um tema fundamental que, devido a uma leitura pouco fiel ao dado da

revelação, levou e tem levado Deus a ser rejeitado ou a ser concebido como

desrespeitoso da autonomia do mundo e da autonomia do homem. Conforme

apresentamos na primeira seção deste capítulo, o Abbá-Criador revelado por Jesus

de Nazaré consiste no Deus que cria por amor. Por isso, Deus não pode ser

concebido como inimigo das realizações humanas nem como aquele que tolhe

nossa liberdade ou que anula nossa autonomia e a do mundo físico. Torres

Queiruga tem consciência que para superar o mal-entendido moderno com relação

ao Deus de Jesus é necessário recuperá-lo e apresentá-lo em consonância com as

coordenadas da modernidade, especialmente com a autonomia.

O nosso autor constata que, com o surgimento da modernidade, os

teólogos tiveram que dar uma resposta ao problema da relação entre Deus e o

mundo, pois a visão pré-moderna que concebia a existência de forças celestes para

organizar e movimentar não era mais plausível. Assim, enquanto alguns filósofos

afirmavam o deísmo (Deus cria e se ausenta da criação) e outros, o panteísmo

(Deus é toda criação), a teologia postulou o deísmo intervencionista88. E isto

porque a teologia não encontrou no deísmo a fidelidade ao dado bíblico que

apresenta Deus atuante no mundo e na história humana. Nem encontrou fidelidade

no panteísmo por causa da negação da distinção entre transcendência e imanência.

O deísmo intervencionista se mostrou, portanto, adequado para defender a ação de

Deus e a distinção entre Deus, o mundo e nós. Seu postulado é o de que Deus não

está atuando constante e permanentemente no mundo, mas age nele de forma

esporádica.

No entanto, Torres Queiruga considera o deísmo intervencionista como

uma resposta falha, pois concebe Deus separado da criação e permite que se

mantenha a crença em intervenções divinas concretas e pontuais, o que vem a ser

88 Cf. Ibid., p. 29-31.

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um desrespeito a autonomia do mundo e do próprio ser humano. Para ele, a

resposta teológica mais coerente com o dado da autonomia moderna e também

mais fiel à revelação de Deus por Jesus de Nazaré está em se pensar a íntima

relação entre imanência e transcendência, entre Deus e a criação. Portanto, a

proposta do teólogo é a de pensar a Deus a partir de dentro. Segundo ele, “Deus

não tem que vir ao mundo, porque já desde sempre em sua raiz mais profunda e

originária; não tem de intervir, pois é sua própria ação que está sustentando e pro-

movendo tudo”89.

Para explicitar a relação entre Deus e o mundo na perspectiva do

paradigma moderno, Torres Queiruga faz uso de duas intuições fundamentais que

permitem afirmar a diferença e, ao mesmo tempo, a unidade radical entre Deus e o

mundo, a saber: a nova concepção filosófica do “infinito positivo” tal como foi

postulada pelos filósofos da era moderna (Hegel, Fichte, Schelling, Kierkegaard,

etc.) e a idéia teológica de “criação”90.

Para o nosso autor, a intuição de “infinito positivo” possibilita pensar a

presença de Deus como fundamento do mundo sem que sua autonomia seja

desrespeitada. Segundo ele, devido à contribuição de alguns filósofos modernos,

sobretudo de Hegel, a idéia de infinito deixa de ser pensada, diferentemente da

concepção grega, como oposição-negação ao finito, para ser re-pensada em

relação e como o fundamento do finito. A partir dessa nova compreensão, o finito

passa a encontrar sua verdade no infinito, pois este supõe o finito para ser infinito,

tal como afirma Hegel: “o finito tem sua verdade no infinito” 91. Nesse caso,

pensar o infinito em oposição ou como negação do finito seria contraditório. O

finito está inserido na dinâmica do infinito e não fora. É o infinito que possibilita a

existência do finito, fundando-o e dinamizando-o. Há, sim, uma diferença

qualitativa entre o infinito e o finito, mas essa diferença não é oposição ou

negação. O infinito não está no mesmo nível do finito. Existe entre os dois uma

distinção, mas não uma distância. O infinito é capaz de produzir o finito, de estar

nele fundando-o e o mantendo em si.

89 Ibid., p. 30. 90 Cf. Ibid., p. 31-36; Id. Recuperar a criação, p. 40-186; Id. “La idea de creación: radicación filosófica y fecundidad teológica”. In: Iglesia Viva, 83, 1996, p. 211-234; Id. La fe en Dios creador y salvador. In: Didaskalia, volume XXX, fasc. 1, 2000, p. 69-89; Id. O cristianismo no mundo de hoje, p. 18-20. 91 Citado por Queiruga em Fim do cristianismo pré-moderno, p. 32.

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Torres Queiruga faz referências a Hegel, Fichte e Schelling que, a partir da

nova compreensão, identificam o infinito com Deus. Deus é o Infinito. Para

Hegel, “o verdadeiro ser do infinito é O Infinito (Deus) que o funda, dinamiza e

realiza transcendendo-o”92. Para Fichte, Deus aparece como o ser verdadeiro;

como aquele que “é” e se expressa através do todo, principalmente da natureza

humana93. Em Schelling, por sua vez, Deus aparece como o fundamento de todas

as coisas (Deus et res cunctas)94.

Ora, a identificação filosófica de Deus com o infinito possibilita, dessa

maneira, compreender que nada pode existir fora Dele, visto que tudo o que não

seja Deus tem Nele não somente sua origem, mas sua própria consistência. Tudo

está em Deus, sendo Nele e desde Ele. São Paulo já havia captado essa intuição

quando diz que “Nele (em Deus) vivemos, nos movemos e existimos” (At 17,28).

A partir dessa visão, segundo o autor, é impossível sustentar a idéia de que

Deus/Infinito produza a anulação da criação/finito. Muito pelo contrário, é

precisamente o infinito que permite afirmar plenamente o finito, pois não há

competição entre os dois. E isto porque o infinito não está no mesmo nível do

finito. Entre as realidades finitas pode haver competição, mas entre o infinito e o

finito não. Daí que Schelling e Kierkegaard afirmam, em termos diferentes, que

somente Deus pode criar liberdades sem oprimi-las, visto que não necessita

competir com elas, pois quando mais as afirma mais Ele as cria95. Isto quer dizer

que Deus como Infinito é o que faz ser todo resto. Por isso, quanto mais presente

Deus/Infinito, tanto mais faz ser a criatura/finito.

A idéia teológica de criação, segundo o nosso autor, aponta para uma

intuição semelhante à da relação infinito-finito. Ela permite acentuar a identidade

e a diferença entre Deus e o mundo96. Isso porque tal idéia tem sua raiz na

experiência do caráter contingente do mundo, caráter esse que remete para a

existência duma realidade que fundamenta o ser e a existência do mundo e do ser

humano. A diferença entre Deus e o mundo é clara a partir dessa intuição. Deus é

descoberto como sendo diferente do mundo, como o necessário frente ao

92 Id. Recuperar a criação, p. 47. 93 Cf. Ibid., p.47-48. 94 Cf. Ibid. p. 48. 95 Cf. Id. Fim do cristianismo pré-moderno, p. 33. Conferir sobretudo a nota 22 que traz uma citação de Kierkegaard e um resumo do pensamento de Schelling a esse respeito feito por W. Kasper. 96 Cf. Id. La fé en Dios creador y salvador, p. 80-82; Id. Recuperar a criação, p. 43-49.

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contingente, o absoluto frente ao relativo ou como o infinito frente ao finito. Deus

é “totalmente o outro”; é Aquele que cria o mundo, o fundamenta e o sustenta.

Disso resulta que Deus e a criatura, em última análise, são o que o outro não é.

Deus é Deus e a criatura é criatura. Essa diferença não pode ser interpretada como

distância ou como justaposição de Deus em relação às criaturas. Há uma relação

muito íntima e profunda entre Deus e a criação. Essa profundidade infinita da

diferença entre os dois se realiza, por mais paradoxal que seja, na máxima

unidade97. Deus é, segundo a terminologia do filósofo Xavier Zubiri, adotada por

Torres Queiruga, “ortogonal” ou perpendicular às criaturas. Isso significa dizer

que Deus não está em competição com as criaturas, mas presente nelas, dando a

elas o ser98. O criador é o fundamento da criatura, a razão de sua existência. Por

isso, “quanto mais presente o criador, tanto mais faz ser a criatura: quanto mais

esta ‘se receba’ dele, tanto mais se realiza nela a força criadora”99. Aí radica

unidade entre Deus e a criatura. Deus está no mais profundo da criatura como

origem e dinamismo da sua existência. A sua presença, neste caso, é tão profunda

e necessária que se pode até intuir uma identidade do criador com a criatura100.

Em outros termos, se pode dizer que o criador se faz imanência na criação. Assim,

toda existência criatural está transpassada pela presença ativa de Deus. E isso de

um modo tão profundo que se pode afirmar, sobretudo a respeito do ser humano,

que todo o nosso viver é vivido por Deus. E sendo assim, podemos afirmar

também que vivemos com a mesma vida de Deus101.

97 Torres Queiruga afirma que essa unidade possui um caráter tão único e incomparável que até a relação amorosa da mãe com o seu filhinho não pode se igualar a essa unidade entre o Criador e a criatura. Cf. Id. La fe en Dios creador y salvador, p. 81; Id. Recuperar a criação, p. 45. 98 Essa idéia só é possível de ser afirmada a partir da compreensão de criação contínua. A criação não se trata unicamente de um ato divino pontual que ocorreu lá no início, mas consiste num processo vivo que acontece permanentemente, pois Deus está dando o ser (existência) à criatura em cada momento. Ora, como a criatura é incapaz de dar o ser a si mesma, ela tem que estar sendo continuamente posta na existência por aquele que a “faz ser”, concedendo-lhe o ser. Cf. Id. Recuperar a criação, p. 42; Id. Creio em Deus Pai, p. 85-86. 99 Ibid., p. 45. 100 Torres Queiruga não afirma o panteísmo, no qual Deus se identifica com as criaturas e as criaturas com Deus. Afirma um panenteísmo, ou seja, a distinção e também a relação íntima e inseparável entre Deus e a criatura. Para ele, é a da presença de Deus tão profunda na criatura que até se pode falar de uma identificação de Deus com ela. Cf. Id. Recuperar a criação, p. 72-76. 101 Torres Queiruga chega a essa conclusão a partir do título de uma obra de Xavier Zubiri, “O homem, experiência de Deus”. Cf. Id. Recuperar a criação, p. 55.

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4.2.2. A ação salvífica de Deus na criação

A presença de Deus em toda criação e de modo particular no ser humano é

uma presença permanentemente ativa102. Não se trata, portanto, de uma

onipresença neutra ou abstrata. Deus “‘está’ no dinamismo que impulsiona o real

à realização , na força salvadora que incita, potencia e solicita nossa vida rumo à

plenitude”103. Pode-se dizer, nesse sentido, que “Deus acontece”, isto é, que Deus

está trabalhando em sua criação, se manifestando nela e se comprazendo quando

esta se realiza104. Mas é importante destacar, segundo Torres Queiruga, que Deus

só está nos dinamismos positivos, a saber, no funcionamento de sua criação para

frente e para cima; nas forças, circunstâncias e realidades que ajudam o avanço da

humanidade. “Tudo o mais – o peso da finitude, a entropia do real, a inércia da

história, o pecado da liberdade... -, à medida que se opõe a esse avanço, opõe-se

igualmente a Deus, que luta contra isso conosco, em nós e em nosso favor”105. Em

outros termos, Deus consiste num amor ativo que tudo inunda e que deseja tudo

transformar para o bem. Daí que o autor afirma que não existem lugares mais

seguros para perceber a presença de Deus do que aqueles onde acontece algum

tipo de amor, pois a efetividade do amor humano é um lugar privilegiado para a

epifania do amor divino106.

Essa presença de Deus, segundo nosso teólogo, não tem nada a ver com

anulação da criatura, mas sim com sua afirmação e potencialização107. Sobretudo

no ser humano, a presença de Deus significa a criação do seu espaço vital, a

possibilidade de sua liberdade e o alimento de sua realização; de sua salvação

histórica e definitiva. Isso se dá porque a relação com Deus não é de competição

ou de dominação, tal como se percebe numa “economia carencial” onde o ganho

de um produz-se necessariamente às custas de outrem. Entre Deus e o ser humano

se dá um “regime do dom”, pois da parte de Deus só podemos esperar

gratuitamente o amor que é sempre positivo.

Para fundamentar a intuição de que a afirmação da criatura e a

potencialização da liberdade humana se encontram na ação de Deus, Torres

102 Cf. Ibid., p. 94-115. 103 Ibid., p. 96. 104 Cf. Ibid., p. 97. 105 Ibid., p. 98. 106 Cf. Ibid., p. 99-102. 107 Cf. Ibid., p. 50.

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Queiruga se remete à reflexão filosófica de alguns pensadores que abordaram o

assunto: Kierkegaard defende que só a onipotência pode retomar-se a si mesma

quando se dá, e essa relação constitui justamente a independência daquele que

recebe; Schelling afirma que Deus é tão livre que pode conceder espaço ao outro

sem absorvê-lo; para Karl Jaspers, a liberdade humana está fundada na

transcendência e se torna mais livre quanto mais fundada se experimenta 108.

Além da filosofia, o nosso autor alude também à revelação bíblica que

mostra, apesar da presença de algumas imagens terríveis de Deus, que Deus é

captado progressivamente, até culminar em Jesus de Nazaré, como amor

afirmativo e ternura desbordada; como Abbá-Criador que se faz presente na

criação para salvar, isto é, para afirmar e possibilitar a realização da criatura109.

Dessa maneira, para o nosso teólogo, tanto a filosofia quanto a revelação bíblica

fundamentam a idéia de que Deus está a serviço da criação fazendo-a, sustentanto-

a e dinamizando-a para a sua realização plena.

A partir dessa perspectiva, Torres Queiruga se opõe a uma visão

tradicional presente no próprio cristianismo que tende a ver a Deus como Aquele

que nos cria apenas para que a gente o possa servir110. A partir do Abbá de Jesus,

afirma que Deus nos cria por amor111. Para ele, Deus não nos cria para que

possamos servi-lo. Ao contrário, Deus nos cria simplesmente pela gratuidade do

seu amor. Por isso, se Ele nos cria é somente para o nosso bem e nossa felicidade

que o faz. O seu interesse é a realização dos interesses da criatura. Não há na

essência do nosso existir disparidade alguma entre os interesses divinos e

humanos. Se o interesse maior da criatura é a vida, a existência e a realização

plena desta, outro interesse não é o de Deus. Nesse sentido, este teólogo propõe

que se elimine do vocabulário religioso e do discurso teológico expressões que

falam de um Deus que nos cria “para que o sirvamos” ou de um Deus que nos cria

“para sua glória”112, pois tais expressões acabam fundamentando e legitimando

um dualismo de interesses que fortalece a falsa idéia de rivalidade entre Deus e o

homem.

108 Cf. Ibid., p. 52-53. 109 Cf. Ibid., p. 57-123. 110 Cf. Um Deus para hoje, p. 24. 111 Cf. Id. Recuperar a criação, p. 77-123; Id. El Dios de Jesús en el nuevo contexto de las religiones, p. 563-565; Id. Um Deus para hoje, p. 24-30; Id. O cristianismo no mundo de hoje, p. 18-20; Id. El Dios de Jesús: aproximación en cuatro metáforas. 112 Cf. Id. La fe en Dios creador y salvador, p. 82.

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O nosso autor retoma uma afirmação de santo Irineu para expressar a

identidade de interesses entre Deus e o ser humano: “A glória de Deus é a vida

dos homens” (Gloria Dei, vivens homo)113. Desta forma, o interesse de Deus

quando cria não está numa conveniência própria, mas está voltado para a vida e a

realização da criatura. A ação de Deus é infinitamente transitiva, pois quanto mais

a criatura, especialmente o ser humano, se realiza tanto mais a ação de Deus é e

mais se expande114. Isso corresponde a dizer que o interesse de Deus, que é

infinitamente livre de todo egoísmo, está todo ele voltado para a realização

positiva da criação. Deus não nos cria para satisfazer uma necessidade particular

ou para satisfazer interesses próprios, mas sim por e para nós mesmos. Isso fica

mais claro quando partimos da afirmação de que Deus é amor. Ora, todo ser de

Deus consiste em amar. Por isso, outra coisa não podemos esperar dele senão o

amor. Portanto, a ação criadora não tem nem pode ter outra finalidade a não ser a

de Deus se pôr amorosamente ao nosso serviço para nos dar o ser e nos

possibilitar a participação em sua felicidade115. Assim, “a glória e o serviço de

Deus identificam-se com o bem do homem”116

Essa visão do interesse infinitamente transitivo de Deus, segundo Torres

Queiruga, mina pela raiz o dualismo sagrado e profano117. Por causa da presença e

ação de Deus na criação tudo pode ser considerado sagrado. E, como a criação

não se identifica com Deus, tudo pode ser considerado profano. Assim, a criação é

sagrada e profana. O que interessa a Deus, portanto, não são unicamente os ritos e

ações praticadas na religião. Seu interesse gratuito é por toda a criação. Neste

caso, o ser humano não vale para Ele somente se pertencer a uma religião ou se

realizar determinados atos ritualísticos. Vale e é amado porque é criatura. Deus

não cria pessoas religiosas. Ele cria pessoas humanas. Por isso, o que Deus busca

é a realização de nossa existência e de nosso ser em todas as suas dimensões.

Deus não exige de nós atos “religiosos” para lhe servir ou lhe agradar. Daí a

afirmação do autor de que “Deus não é nada religioso”118. Sendo assim a melhor

maneira de servir a Deus ou de ser religioso é assumindo o empenho pela 113 Torres Queiruga faz uso dessa citação de Santo Irineu em quase todas as suas obras em que aborda o tema da criação, cf. especialmente: Recuperar a criação, p. 78-94. 114 Cf. Id. La fe en Dios creador y salvador, p. 83. 115 Cf. Id. El Dios de Jesús: aproximacíon en cuatro metáforas, p. 20. 116 Id. Um Deus para hoje, p. 27. 117 Cf. Id. Recuperar a criação, p. 78-83; Id. Um Deus para hoje, p. 27-30; Id. La fe en Dios creador y salvador, p. 83-84; Id. Fim do cristianismo pré-moderno, p. 34-36. 118 Id. Um Deus para hoje, p. 28.

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realização do nosso ser e de nossa vida como criatura dinamizada pela sua

presença. Isto quer dizer que o ser humano mais se realiza quando assume sua

condição de criatura e quando mais assume sua inserção no mundo.

O interesse de Deus, segundo Torres Queiruga, é, portanto, a realização da

criatura. Sua ação criadora está empenhada nisso. No entanto, isso não quer dizer

que a ação de Deus anula o protagonismo da criatura na busca pela sua realização.

A idéia de criação por amor permite afirmar uma integração entre a ação de Deus

e a ação criatural119. As duas ações não são concorrentes, pois não estão no

mesmo plano. Uma ação integra a outra. A ação transcendente de Deus não

substitui a ação da criatura. Ela é a razão de ser da ação da criatura, e esta última é

que torna visível e efetiva aquela. Por isso, se pode afirmar, com referência às

criaturas, que Deus não faz coisa alguma ao lado delas, para completá-las, nem

em seu lugar, para supri-las. A ação de Deus como criador é fazer com que as

criaturas façam, pois estas estão recebendo de Deus a si mesmas, tanto em seu ser

como em sua capacidade de agir. As criaturas agem no agir de Deus. Dessa

maneira não podemos falar de duas ações. “A criatura é ela mesma ação de Deus,

e ação concreta, densificada, não mera aparência evanescente; mas precisamente

por isso é ela mesma: por assim dizer, ‘sendo-se’ e ‘atuando-se’ a si mesma é a

maneira de a criatura ser ação de Deus”120. O que existe, portanto, é uma co-

realização e unidade total. Cada ação se exerce em um plano distinto, de forma

que se pode dizer que tudo é feito por Deus, e tudo é feito pela criatura. Em

outras palavras,

“Deus age na mesma ação da criatura e essa age sustentada pela ação divina, a qual é de ordem transcendente e só toma corpo empírico agindo através daquela, que por sua vez só existe enquanto apoiada na divina: agimos porque Deus age (ordem transcendente); e Deus age de maneira eficaz no mundo porque agimos nós (ordem categorial)”121.

Por causa dessa unidade integrada da ação divina e da ação criatural,

podemos afirmar que a liberdade humana não é negada pelo influxo da ação

divina (graça). A ação Deus de forma alguma substitui a liberdade humana, que é

exatamente a capacidade do ser humano se construir a si mesmo escolhendo entre

diferentes direções e possibilidades. Deus não se coloca no lugar do ser humano

119 A respeito da relação entre ação divina e ação criatural, cf. Id. Recuperar a criação, p. 125-136. La Idea de creación: radicación filosófica y fecundidad teológica, p. 224-228. 120 Cf. Id. Recuperar a criação, p. 128. 121 Ibid., p. 131.

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no que se refere à construção de sua existência. Suplantar isso seria a anulação da

liberdade; anulação do próprio ser humano. Pelo contrário, é Deus quem

possibilita a liberdade. Criando desde a transcendência de sua plenitude infinita,

Deus não substitui a ação humana, mas “cria criadores”122, isto é, nos entrega

totalmente a nós mesmos para que possamos nos construir e nos realizar por conta

própria. Mas isso não quer dizer que não haja um influxo divino na liberdade

humana. Existe sim uma ação constante de Deus, como oferta gratuita, a modo de

atração e solicitação, que busca “atrair” o ser humano para a liberdade, no sentido

de se construir como pessoa realizada123. Em outros termos, Deus cria o ser

humano com liberdade e, ao mesmo tempo, faz de tudo, sem impor absolutamente

nada, para que através dessa liberdade possamos alcançar nossa realização mais

plena. Dessa maneira, portanto, dois aspectos fundamentais da presença de Deus

em nós ficam esclarecidos:

“1) que ela só tem sentido enquanto quer a construção de nós mesmos por nós e, por conseguinte, não quer a anulação e sim a máxima realização de nosso eu; e 2) que, entregando-nos verdadeiramente a nós mesmos, nem por isso nos abandona ou fica passivo, mas continua sendo quem incansavelmente promove nossa própria atividade”124.

Devido à diferença de planos da ação divina (transcendente) e da ação

criatural (imanente e categorial) e de sua unidade radical e também do respeito

divino pela liberdade humana, Deus não pode agir concreta e efetivamente no

mundo sem a nossa ajuda. Deus precisa da mediação indispensável da ação

humana para realizar efetivamente seu amor às criaturas125. Ele, em outras

palavras, necessita do exercício da liberdade para agir efetivamente. Daí que o

autor afirma que a liberdade humana é a porta para a novidade da intervenção

divina no mundo126. Deus não pode realizar nenhuma ação concreta no mundo

122 Expressão de Henri Bergson muito presente nos escritos de Torres Queiruga, cf. Id. Recuperar a criação, p. 124-186, especialmente, p. 133; Id. La idea de creación: radicación filosófica y fecundidad teológica, p. 224-228, especialmente, p. 225; Id. Um Deus para hoje, p. 29; Id. La fe en Dios creador y salvador, p. 83. 123 Segundo Torres Queiruga, a intenção mais profunda e radical da liberdade é a construção de nosso ser pessoa, de nosso eu autêntico e verdadeiro. Dessa maneira, o exercício da liberdade significa se construir autenticamente como pessoa, negando, por isso, tudo o que estiver em oposição a essa construção. A ação de Deus em nós nos convida constantemente a negar tudo o que aponta para a negação de nossa realização. Cf. Id. Recuperar a criação, p. 141-142; Id. La Idea de creación...p. 226-227. 124 Id. Recuperar a criação, p. 142. 125 Cf. Ibid, p. 151-166; Id. La idea de creación...p. 227-228. 126 Cf. Id. Recuperar a criação, p. 135.

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sem nós127. Por isso somos co-criadores com Deus, mediadores indispensáveis de

sua eficácia no mundo. Para ilustrar essa idéia, o teólogo recorre à parábola do

“bom samaritano” (cf. Lc 10,29-38), a qual mostra que Deus só pôde ajudar ou

socorrer o homem que havia sido espancado através do samaritano128, sem o qual

Deus concretamente não poderia fazer absolutamente nada.

Entretanto, para o nosso autor, Deus não “acontece” em todas as ações

humanas. É verdade que ele fundamenta todo nosso agir, mas as ações humanas

contrárias à vida não manifestam categoricamente a ação divina. Deus somente

“acontece” ou se manifesta categoricamente nas ações humanas que promovem a

vida, ou seja, no amor, na compaixão, na solidariedade, no empenho pela paz e

pela justiça e, sobretudo no amor aos pobres e necessitados129.

Diante disso tudo que expusemos até aqui, fica claro que, para o nosso

autor, Deus está radicalmente próximo da criação, de uma maneira tão profunda

que nem nós nem o mundo podemos ser pensados sem esta presença. Esta é a

condição fundamental do nosso ser, do nosso existir e de nossa realização. Trata-

se, portanto, de uma presença que possibilita, afirma e realiza a criatura, visto que

se trata da presença de um Deus totalmente amoroso e terno tal como podemos

deduzir da revelação de Deus em e por Jesus de Nazaré. Por isso, a criação e a

salvação não podem ser concebidas de forma dualista. A “criação é já desde

sempre, ab initio, salvação”130. Criação e salvação fazem parte de uma única ação

divina, porque Deus cria unicamente para salvar e salvando.

4.2.3. Um novo esquema da história da salvação A partir da concepção da unidade entre criação e salvação, Torres

Queiruga propõe um novo esquema da história da salvação131. Segundo ele, o

esquema que marcou a mentalidade cristã diz respeito àquele que pode ser

extraído de uma leitura fundamentalista do texto bíblico: paraíso-queda-castigo-

redenção-tempo da Igreja-glória. Esse esquema, no seu entender, apresenta alguns

problemas. Primeiro, considera o relato genesíaco da criação e da queda, de teor

127 Aqui encontramos uma dialética de ações que pode ser expressa nos seguintes termos: vivemos e agimos a partir de Deus, e, Deus, por sua vez, somente pode agir categorialmente a partir de nós. 128 Cf. Ibid., p. 152-154. 129 Cf. Ibid., p. 154-166. 130 Id. La fe en Dios creador y salvador, p. 79. 131 Ibid., p. 70-76; Id. Esperança apesar do mal, p. 72-92.

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mítico, como histórico; segundo, perverte a imagem do Deus de Jesus

concebendo-o como Aquele que inflige um castigo terrível à humanidade por

causa do pecado de Adão e Eva; terceiro, apresenta a criação e a salvação como

eventos isolados e separados, pois Deus somente começa a agir de forma salvífica

a partir da redenção realizada pelo sacrifício doloroso de Cristo. Para ele, esse

esquema clássico, embora hoje não se aceite mais uma leitura fundamentalista da

Sagrada Escritura nem uma imagem cruel de Deus, “continua condicionando

profundamente não só o imaginário coletivo dos fiéis, como também condiciona

muitos arrazoados teológicos”132. Por isso, segundo ele, cabe à reflexão teológica

repensar o esquema da história da salvação.

O nosso autor afirma que a idéia de criação por amor nos permite formular

um outro esquema mais coerente com uma visão dinâmica da história e com o

Deus revelado. O esquema é o seguinte: criação-crescimento histórico-culminação

em Cristo-tempo da Igreja-glória. Enquanto o esquema clássico traz em si a

concepção dualista e extrínseca entre criação e salvação. O novo esquema

apresenta a unidade intrínseca destas duas grandezas teológicas. No esquema

anterior, Deus cria primeiro o ser humano como criatura neutra, “natural”, e

somente depois é que Ele lhe oferece a graça salvífica; a criação e a salvação

aparecem como uma sucessão temporal; a escatologia é vista como conseqüência

unicamente da redenção realizada em Jesus Cristo; criação, redenção e escatologia

são eventos estanques. No novo esquema, a pessoa é apresentada como aquela que

“está desde sempre envolvida na graça salvadora de Deus, que a sustenta em seu

ser e a promove até sua realização possível na história até a plenitude da

comunhão definitiva na glória”133. Para esse esquema, todo ser humano em

qualquer momento da história se encontra dinamizado, desde o primeiro instante

de vida, pela ação criadora e salvadora de Deus. Neste caso, a criação se orienta

intrinsecamente para a escatologia.

Segundo Torres Queiruga, o esquema dinâmico da história da salvação não

nega nem a realidade do que pretende indicar a doutrina do pecado original, nem a

centralidade da redenção, mas permite que sejam repensadas134. No novo

esquema, o pecado original deixa de ser considerado como um episódio empírico

132 Id. Esperança apesar do mal, p. 75. 133 Ibid., p. 78. 134 Cf. Ibid, p. 89-91; La fe en Dios creador y salvador, p. 74-75.

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do começo da história da humanidade, para ser entendido como algo real na

estrutura íntima e permanente de nossa humanidade, a saber: a nossa incapacidade

de fazer sempre o bem ou de voltar-se plenamente para Deus, por causa de nossa

liberdade finita. Em outros termos, diz respeito a nossa impotência para

alcançarmos a salvação por conta própria. Já a redenção realizada por Cristo, por

sua vez, deixa de ser vista como um evento divino que irrompe externamente da

história para por fim a inimizade entre o ser humano e Deus por causa do pecado

do casal primitivo. Ou seja, redenção não pode ser mais entendida como

restabelecimento da relação entre Deus e o homem realizada unicamente pela

morte de Jesus na cruz. Deve ser compreendida como algo em continuidade com o

processo histórico e humano. Redenção é a existência salvífica realizada em Jesus

de Nazaré. Nele a impotência humana para se voltar plenamente para Deus é

superada. Assim, Jesus “abre a cada ser humano o caminho de uma realização

sempre progressiva e plena”135; ele nos possibilita a vitória sobre o egoísmo e a

auto-suficiência; nos mostra o caminho possível de uma existência humana vivida

na abertura total ao amor. Por isso,

“a salvação em Jesus Cristo não é o preço a se pagar a um ‘deus’ irado; é extamente o contrário: a culminação da ‘luta amorosa’ que, ao longo e nos espaço de toda história, o Deus Abbá sustenta contra nossos limites inevitáveis e contra nossas resistências culpáveis, com o único fim de nos dar a conhecer seu amor e fazer-nos capazes de acolher sua ajuda”136.

Do mesmo modo, o novo esquema, segundo Torres Queiruga, nos leva a

explicitar a salvação como um acontecimento dinâmico, a saber: acontece na

criação como presença amorosa de Deus que afirma e realiza a criatura; alcança

sua maior expressão com a existência de Jesus; e se realizará plenamente na

glória, na escatologia definitiva quando “Deus será tudo em todos” (1Cor 15,28).

Assim, no novo esquema, a criação, a redenção e a glorificação não são eventos

estanques, mas formam “o continuum do amor divino, que, criando-nos filhos, nos

acompanha na dura luta do crescimento histórico, até conseguir acolher-nos na

filiação plenamente realizada, quando ‘conheceremos como somos conhecidos’

(cf. 1Cor 13,12)”137.

135 Id. Recuperar a salvação, p. 175. 136 Id. Esperança apesar do mal, p. 79. 137 Ibid., p. 90. Id. La fe en Dios creador y salvador, p. 75.

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4.3. A revelação de Deus como realização humana Um outro tema ao qual Torres Queiruga dedica sua atenção é o da

revelação divina138. Ora, se Deus está na criação dinamizando-a salvificamente, a

sua revelação não pode ser vista como algo que acontece de forma

intervencionista, como uma revelação “caída do céu” ou como um “ditado

milagroso” de “verdades” que o ser humano deve acatar sem questionar. Para ele,

a compreensão da revelação divina como algo acontecendo desde sempre na

criação é a conclusão mais lógica a que se pode chegar partindo das intuições de

“criação por amor” e de “infinito positivo”.

Para este teólogo, Deus, como amor infinito e sempre ativo, já está desde

sempre se revelando maximamente na criação, a todas as criaturas e em sua

história. No mundo natural, Deus manifesta-se no funcionamento das leis físicas e

no âmbito humano, no dinamismo da liberdade, no chamado ao bem e nos

impulsos para a realização da própria pessoa e da coletividade. No entanto, como

é óbvio, cabe unicamente ao ser humano, por causa de sua consciência,

racionalidade e liberdade, a percepção consciente e tematizada desta revelação.

Entretanto, por causa de nossa inevitável limitação, temos dificuldade em captar o

rosto de Deus tal como Ele se revela e se manifesta. Daí que a nossa imagem de

Deus, não poucas vezes, contradiz ou deforma a sua verdadeira identidade, pois

projetamos em Deus aquilo que pertence a nós. Portanto, os limites da revelação

divina não estão em Deus, mas no ser humano. Os “limites na revelação efetiva

nascem apenas da incapacidade e do pecado humano, que freia, deforma ou não

reconhece a manifestação divina”139.

A revelação divina, segundo Torres Queiruga, consiste em perceber ou

captar que Deus como origem fundante está habitando e sustentando toda criação,

inclusive, a nossa existência humana. Isto quer dizer que Deus se manifesta a nós

contínua e profundamente. Quando atentamos e percebemos essa presença, a

revelação “acontece” para nós. Nesse caso, a “revelação divina” consiste 138 Cf. Id. A revelação de Deus na realização humana; Id. Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus, p. 21-70; Id. O que queremos dizer quando dizemos “inferno”?, p. 18-23; Id. Creer de otra manera, p. 32-34; Id. El Dios de Jesús: aproximación en cuatro metáforas; Id. “Revelação”. In: TORRES QUEIRUGA, A. (dir.). 10 palabras clave en religión. Estella: Editorial Verbo Divino, 1997, p. 177-224; Id. “Qué significa afirmar que Dios habla? Hacia un concepto actual de revelación”. In: Sal Terrae, 82, 1994, p. 331-347; Id. Fim do cristianismo pré-moderno, p. 47-52; Id. Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus, p. 21-48. 139 Id. A revelação de Deus na realização humana, p. 15.

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exatamente na tomada de consciência da presença de Deus. Para o autor, é,

sobretudo, nas religiões que o ser humano descobre a manifestação de Deus sobre

o mundo e a nossa vida140. Por isso, a revelação divina faz parte de todas as

religiões. Todas podem ser consideradas como religiões reveladas, pois em cada

uma delas, Deus se manifesta maximamente e se faz sentir e ser captado nelas.

Nesse sentido, todas as religiões são verdadeiras e se constituem como caminhos

reais de salvação para os que honestamente as praticam141. Entretanto, a percepção

de Deus em cada uma delas é diferente. E isto porque cada uma se relaciona com

uma situação histórica, um contexto cultural, uma situação geográfica que podem

favorecer ou dificultar esta percepção. Por causa disso, segundo este teólogo, não

existe religião sem alguma verdade nem existe religião absolutamente perfeita,

“pois nenhuma logra esgotar em sua tradução humana a riqueza do mistério

divino”142. Ora, se não existe religião perfeita, todas têm algo a dar e a receber

frente às demais. Assim, ficam desautorizadas todas as idéias de “particularismo

salvífico”, de “favoritismo divino”, de “povo escolhido”, de “eleição exclusiva”;

como também ficam desautorizadas as atitudes de fechamento e de desrespeito

entre as religiões. Segundo o nosso autor, o diálogo respeitoso entre as religiões é

fundamental para a amistosidade entre as nações. Para ele, as religiões devem

aprender a se unir, tomando como critério de diálogo o humanun, para o bem da

humanidade143.

Torres Queiruga cria uma categoria própria para expressar o sentido da

revelação divina que aparece em uma perspectiva dialética entre a manifestação

máxima de Deus e a sua captação limitada por parte do ser humano. A categoria é

“maiêutica histórica”144. O autor faz uso da expressão socrática “maiêutica”,

porque esta diz respeito ao conhecimento de algo que está presente naquele que

busca conhecer, bastando que este, com ajuda de alguém ou de algo exterior,

140 Cf.: Id. O diálogo das religiões. São Paulo: Paulus, 1997; Id. Cristianismo y religiones: “inreligionación” y cristianismo asimétrico. In: Sal Terrae, 997, p. 3-19. Id. Um Deus para hoje, p. 31-39; Id. Autocompreensão cristã. 141Cf. Id. Um Deus para hoje, p. 34. 142 Ibid., p. 34. Ao tratar este assunto, Torres Queiruga não deixa de lado a consideração da plenitude e da definitividade da revelação cristã. Para ele, o cristianismo é a religião da culminância da percepção da revelação de Deus, pois a revelação divina culminou de forma insuperável em Jesus Cristo. No entanto, para ele, este dado não deve ser assumido como um argumento contra o diálogo do cristianismo com as demais religiões. A respeito desta temática, cf. Id. Um Deus para hoje, p. 31-45; O diálogo das religiões; Id. Autocompreensão cristã. 143 Cf. Id. Um Deus para hoje, p.37-39; Id. Auto compreensão cristã, p. 82-87. 144 Cf. Id. A revelação de Deus na realização humana, p. 99-138.

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venha a “dar à luz” a verdade que já existe dentro de si. A revelação divina é

designada pelo autor pelo termo “maiêutica”, porque, através da palavra-escrita ou

da palavra-obras ou da palavra-signos de alguém que já percebeu a profunda

presença de Deus na criação, outras pessoas são despertadas para descobrirem a

realidade em que estão colocadas. Em outros termos, a revelação é maiêutica

porque “ajudada pela palavra do mediador [do maiêuta], ‘nasce’ a consciência da

nova realidade que estava ali lutando por fazer sentir sua presença; o homem

descobre Deus que o está fazendo ser e determinando de uma maneira nova e

inesperada”145.

No entanto, o nosso autor se distancia do significado da maiêutica grega.

Para ele, a revelação divina não se produz a modo de reminiscência do “mundo

das idéias” ou como mera aproximação da “essência” supraceleste por meio da

filosofia. A revelação acontece por causa da manifestação constante e contínua de

Deus no mais profundo da criação e, por causa disso, na vida e na história do ser

humano. A revelação divina, portanto, se processa na história. Como “maiêutica

histórica”, a revelação é a percepção, provocada por outrem, da presença de Deus

no mais profundo do real. Assim, a revelação é vista não como um dado eterno e

imutável ou como algo externo e a-histórcio a ser descoberto por sucessivas

gerações humanas, mas como um processo, no qual a própria revelação, “em sua

realidade de nascimento contínuo, de irrupção histórica, transforma quem a

recebe e, por reação, faz com que ela mesma cresça graças às novas possibilidades

abertas por essa transformação”146. Deste modo, “a revelação aparece, partindo de

sua própria raiz, não só nascendo na história, mas também criando história e

realizando-se nela”147.

Para Torres Queiruga, a compreensão da revelação divina como

“maiêutica histórica” nos ajuda a entender a verdadeiro valor da palavra bíblica148.

A Bíblia longe de ser um “ditado milagroso” feito por Deus, nada mais é do que

vários textos que traduzem o processo de captação da revelação de Deus que

acontece historicamente. Ela nasce “do descobrimento de Deus na vida de um

povo e do progressivo aprofundamento na compreensão tanto do seu modo de

relacionar-se com os homens e mulheres como dos modos de conduta que procura

145 Ibid., p. 113. 146 Ibid., p. 140. 147 Ibid. 148 Cf. Id. Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus, p. 40-48.

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suscitar neles”149. Por isso, a palavra bíblica, além de não ser uma palavra

estranha a nós, não traz para nós um sentido postiço que informa sobre mistérios

divinos externos e distantes. Ela se apresenta como a palavra que ajuda a “dar à

luz”, como maiêuta, a realidade mais íntima e profunda que já somos pela livre

iniciativa do amor divino que nos cria e nos salva150. A Bíblia, nesse sentido, se

torna parteira da identidade mais radical do mundo e do ser humano. Ela nos

ajuda a perceber que somos dinamizados pela presença e pela ação de Deus que

sempre se nos manifestou maximamente. Daí que uma vida religiosa autêntica não

consiste num “viver de memória”, segundo o que foi dito por uma revelação

divina arbitrária do passado, mas no viver, no assumir a existência a partir da

constatação de que Deus nos envolve com seu amor151.

Entretanto, o nosso autor tem consciência de que a Bíblia somente é

parteira da revelação de Deus quando é interpretada corretamente. Qualquer

leitura fundamentalista do texto bíblico pode provocar a deturpação e

desfiguração da identidade de Deus como puro amor e salvação, como também

pode legitimar e justificar as atitudes humanas mais desumanas152. Isto quer dizer

que o texto bíblico tanto pode nos ajudar a “dar conta” da revelação divina como

também pode atrapalhar a percepção de Deus em nossa vida e em nossa história.

Tudo depende do modo como o texto bíblico é lido.

A revelação divina vista na perspectiva da “maiêutica histórica” não é algo

que contraria a autonomia humana. Ao contrário, é algo positivo que nos

transforma e que tende a promover nossa última e autêntica realização, pois cada

vez que captamos corretamente a presença de Deus, como amor paterno-maternal,

somos interpelados a configurar o nosso existir de uma forma qualitativamente

diferenciada153. A revelação divina, segundo o nosso autor, “evita as falsas

clausuras e impede que o homem permaneça rebaixado à banalidade do puramente

sensível, anônimo e infrapessoal ou aos diversos totalitarismos que o mantêm

preso na finitude”154. Além do mais, a captação da manifestação de Deus

dinamiza o ser humano e o mantém aberto à sua realização, ou seja, ela “torna

possível que a emergência humana, elevando-se sobre si mesma no encontro com

149 Ibid., p. 40. 150 Cf. Id. A revelação de Deus na realização humana, p. 15. 151 Cf. Id. Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus, p. 46. 152 Cf. Ibid., p. 71-107; Id. Creer de otra manera, p. 15-29. 153 Cf. Id. A revelação de Deus na realização humana, p. 218-222. 154 Ibid., p. 220.

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Deus, vá desdobrando toda sua potencialidade”155. Em outros termos, o ser

humano quanto mais descobre a presença e a ação de Deus na criação, descobre

também a verdadeira orientação do próprio ser e da própria conduta. Por isso,

quanto mais o ser humano faz a experiência da percepção do Deus amor e

salvador, mais humana a pessoa se torna. Jesus é o maior exemplo disso. Ele

captou a revelação divina de uma forma culminante156, não podendo ser superado

de forma alguma, e tal captação possibilitou a ele viver a humanidade plenamente,

uma “existência humana autêntica”157.

Para Torres Queiruga, a revelação divina, sempre em ato por parte de

Deus, porque Ele está sempre em ação, se realiza no novum ontológico da

liberdade histórica do ser humano158. Isso quer dizer que a revelação divina só

chega à sua realização efetiva e concreta na acolhida-resposta do ser humano.

Deus convida interiormente, sem violência, no dinamismo da liberdade, ao ser

humano a se deixar guiar pela Sua presença-ação. Se o ser humano não responder

a esse convite através de uma conduta prática que efetive o amor, a revelação de

Deus não se faz realidade concreta. Por outro lado, quando a prática do amor

acontece, Deus está se revelando efetivamente através de nossa liberdade. Isso

acontece porque no ser humano a presença divina se revela no modo de liberdade.

Em Jesus e mediante sua atividade, por exemplo, Deus revela toda sua força

amorosa e salvífica. O uso da liberdade de Jesus, neste caso, se torna revelador da

presença de Deus.

Neste sentido, o ser humano não permanece imutado em seu ser frente à

dinâmica da revelação divina, mas avança no processo de realização de si mesmo,

pois acaba construindo, desde a última radicalidade, a história do seu ser. Por isso,

“o processo da revelação se identifica com a história mesma do homem,

avançando em seu avanço e realizando-se em sua realização”159. Cada vez que

Deus é captado pela pessoa humana e esta se deixa configurar por essa captação,

155 Ibid. 156 A respeito da culminação da revelação divina em Jesus, cf. Id. A revelação de Deus na realização humana, p. 239-245; 414-415; Id. Recuperar a criação, p. 68-72. 157 Torres Queiruga expõe o que ele entende por existência humana autêntica vivida por Jesus: “Espírito filial, que une sem tensões a adoração e a confiança sem limites. Alegria de viver, que não escapa das durezas da vida, e valentia, que não crispa jamais o ódio. Fraternidade como estilo, e amor como norma suprema. Comunhão com todos, sem cair em qualquer armadilha, porque desde sempre e sem vacilação se situa embaixo: com os pobres e os marginalizados, com os doentes e desgraçados, com os humilhados e ofendidos”. Id. Repensar a cristologia, p. 20. 158 Cf. Id. A revelação de Deus na realização humana, p. 200-206. 159 Ibid., p. 200.

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as ações de sua liberdade tornam a revelação de Deus efetiva na história e, ao

mesmo tempo, lançam esta pessoa para frente, tornando sua existência mais

autêntica. Isso se dá porque quanto maior a aceitação do influxo de Deus na

liberdade humana, mais humana a pessoa se torna e Deus age efetivamente no

mundo. No processo revelador há, portanto, uma simultaneidade entre a ação de

Deus e a realização do ser humano.

“O homem descobre em sua emergência a força criadora e salvadora de Deus que o pressiona para sua realização, mas sabe também que essa realização é sua, que é ele mesmo quem cresce. E compreende, ademais, que essa descoberta pertence como constitutivo à sua realização: descobrir-se desde Deus é maturar o próprio ser, ir dando a ele a substância de seu último e mais autentico crescimento; ao mesmo tempo que esse crescimento vai possibilitando, em dialética progressiva, novas capacidades de acolher a ação de Deus”160.

Portanto, a revelação de Deus não está em oposição à autonomia, à

liberdade ou à realização humana. Pelo contrário, ela é promotora da realização

autêntica do ser humano. Nestes termos, a revelação de Deus acontece na

realização humana e vice-versa.

4.4. Deus como afirmação do ser humano frente ao mal Nesta exposição, vimos até agora que, para Torres Queiruga, o Deus da fé

cristã, revelado em e por Jesus de Nazaré como Abbá criador e salvador, não pode

ser apresentado de forma alguma como inimigo da afirmação e da realização

humana. Isto porque não se trata de um Deus que age de forma intervencionista na

criação e na existência da pessoa, de modo que desrespeite o dinamismo

autônomo do mundo e do ser humano. Nem se trata de um Deus que se manifesta

e se revela arbitrariamente apenas a um povo escolhido. Trata-se de um Deus que

cria por amor e que se manifesta, no mais profundo da realidade criada e em sua

história, exclusivamente como salvador, pois sendo fundamento da criação a

dinamiza para sua realização definitiva.

Entretanto, a evidente realidade do mal no mundo parece contradizer os

dados teológicos da fé cristã a respeito de Deus. Ora, se Deus cria por amor e é

exclusivamente salvador, por que então existe o mal? Deus é o responsável pelo

mal? Ele o permite? Não é o mal a evidência maior de que Deus não existe?

Portanto, o mal se apresenta como um questionamento à existência de Deus ou,

160 Ibid., p. 202.

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pelo menos, ao seu poder e à sua bondade. Assim, trata-se de um tema que não

pode deixar de ser abordado quando se enfatiza a identidade do Deus cristão como

afirmação do humano.

Por isso é que Torres Queiruga se dedica, em boa parte de seus escritos

teológicos, à reflexão da referida temática161. Sua reflexão nos apresenta uma

tentativa de responder à problemática de se afirmar a existência e o amor de Deus

diante da realidade do mal no mundo. Sua intuição principal a esse respeito é a de

que Deus está do lado da criatura, especialmente do ser humano, contra o mal, o

qual consiste em algo inevitável à criatura por causa da sua finitude e limitação.

Nesta seção iremos apresentar o caminho que o nosso autor percorre para

dar uma resposta à existência do mal no mundo sem ferir a imagem do Deus Abbá

revelado em e por Jesus de Nazaré. Por isso, a seção será dividida em seis itens.

No primeiro, vamos apresentar a problemática levantada pelo dilema de Epicuro

que atinge diretamente a fé em Deus. No segundo, veremos a explicação que o

autor dá para a realidade do mal no mundo. No terceiro, apresentaremos sua

intuição ao afirmar que, apesar do mal, o mundo e a existência têm sentido e valor

porque Deus nos cria para a realização ou salvação. No quarto, vamos expor os

dados que, para o nosso autor, são o fundamento da fé cristã em Deus como

aquele que enfrenta, sofre e vence o mal. No quinto, daremos atenção a uma

pergunta a que procura responder: por que Deus não criou o ser humano como

portador da salvação definitiva? E, no sexto item falaremos sobre a necessidade

que Torres Queiruga apresenta de se repensar a teologia, a práxis e a vivência da

fé cristã a partir do dado de que Deus está ao lado da criatura contra o mal.

161 A referência bibliográfica de Torres Queiruga a respeito da temática do mal é extensa, cf. algumas: Id. Recuperar a salvação, p. 81-152; Id. Creio em Deus Pai, p. 114-159; Id. Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus, p. 181-264; Id. Um Deus para hoje, p. 17-24; Id. Fim do cristianismo pré-moderno, p. 36-40; Id. Esperança apesar do mal, p. 121-180; Id. El Dios de Jesús. Aproximación en cuatro metáforas. In: Sal Terrae, 89, 1991, 5-37; Id. “Repensar o mal na nova situação secular”. In: Perspectiva Teológica, 33. São Paulo: Loyola, 2001, p. 309-330; Id. “Ponerología y resurrección: el Mal entre la Filosofia y la teología”. In: Revista Portuguesa de Filosofia, tomo 57, 3. Braga: Faculdade de Filosofia da U.C.P., 2001, p. 539-574; Id. “El mal inevitable: replanteamiento de la teodicea”. In: Iglesia Viva, 175-176, 1995, p. 37-69; Id. “El rumor de Dios en las derrotas de lo humano”. In: Sal Terrae, 74, 1986, p. 773-784; Id. El mal, entre el misterio y la explicación. In: Razón y Fe, 1989, p. 359-376; Id. Mal y omnipotencia: del fantasma abstracto al compromiso del amor. In: Razón y Fe, 236, 1997, p. 399-421; Id. Glória de Deus na vida humana num mundo de crucificados. In: LIMA, D.N. de – TRUDEL, J. Teologia em diálogo. São Paulo: Paulinas, 2002, p. 141-174.

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4.4.1. O dilema de Epicuro

Torres Queiruga constata que o mal, além de ser uma experiência radical

que afeta a humanidade em sua raiz desde o começo, foi sempre um problema

especulativo para todas as religiões e também para a filosofia162. Entretanto,

segundo ele, é no cristianismo que o problema se torna mais agudo. Isso porque o

mal se apresenta no cristianismo como o desafio à própria essência de Deus, que

foi revelada em e por Jesus de Nazaré como amor sem limites nem medidas163. Se

Deus permite ou causa o mal ou se é impotente diante dele, aquilo que Jesus nos

revelou a seu respeito seria um equívoco.

Uma grande responsabilidade da teologia cristã atualmente consiste em

refletir corretamente sobre o mal. Isso é algo, segundo o nosso autor, do qual a

teologia não pode se esquivar, muito menos depois de Auschwitz e Gulag, e das

grandes situações de sofrimento que a humanidade experimenta, pois a fé em

Deus, como criador e salvador amoroso, se torna, a partir daí, questionável164 e a

imagem do Deus Abbá de Jesus pode ser deformada completamente. Para ele, no

entanto, a teologia deve refletir sobre o mal numa nova perspectiva,

diferentemente da abordagem tradicional (teodicéia clássica) que, fundamentada

em pressupostos incoerentes com a mentalidade moderna, não era capaz de dar

uma resposta coerente ao problema do mal sem recorrer a Deus. A proposta de

Torres Queiruga é a de que o mal deve ser refletido como uma realidade secular

desvinculada da premissa “Deus”.

O grande problema, segundo este teólogo, em torno da temática do mal foi

e, ainda, é o de se refleti-lo sempre em relação com o tema Deus, e, pior ainda,

partindo de pressupostos negativos que impedem de inocentar Deus pela

existência do mal. Para ele, os dois piores pressupostos para a formulação do

problema correspondem a um “fantasma” e a uma “ilusão”165. O primeiro se

refere à concepção imaginária e acrítica da onipotência divina como um poder

abstrato e arbitrário, que é tida como “fantasma” porque a concepção de Deus

como potente e poderoso, que pode fazer no mundo tudo o que quiser, constitui

162 Cf. Id. Creio em Deus Pai, p. 116-118; Id. Ponerologia y resurrección: el mal entre la filosofia y la teología, p. 540. 163 Cf. Id. Creio em Deus Pai, p. 117-118. 164 Cf. Id. Um Deus para hoje, p. 17. 165 Cf. Id. Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus, p. 183-186.

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uma longa e espessa nuvem que obscurece o imaginário religioso da humanidade

em todos os tempos. O segundo pressuposto é o da ilusão do paraíso na Terra

como algo suposto ou evidente ou, em outros termos, a possibilidade de um

mundo sem mal. Partindo, portanto, desses pressupostos, o mal só pode ser visto

como responsabilidade de Deus: se há o mal no mundo é porque Deus assim o

quer, pois sendo Ele todo-poderoso poderia, se quisesse, eliminar todos os males e

sofrimentos do mundo. Tal visão, segundo o autor, acaba minando pela raiz a

possibilidade de crer, pois não seria nem humanamente digno nem

intelectualmente possível crer em um Deus que, podendo, não impede o

sofrimento da humanidade166.

Dessa maneira, a concepção de onipotência abstrata e arbitrária e a idéia

de que um mundo sem males é possível criam a impossibilidade de se conciliar o

poder e a bondade de Deus. Isso porque, sob estes pressupostos, se existe o mal é

porque Deus o quer, pois Ele sendo onipotente poderia eliminá-lo e, assim, Deus

não é bom porque deixa o mal acontecer ou o permite. Se, por outro lado,

afirmamos a bondade de Deus, a sua onipotência é negada, visto que não há como

compreender que Deus seja bom e o mal exista se não for pela sua impotência

diante do mal.

Segundo Torres Queiruga, o problema da relação entre o poder e a

bondade de Deus diante da realidade do mal encontra sua formulação clássica no

dilema de Epicuro: “ou Deus pode e não quer evitar o mal, e então não é bom; ou

quer e não pode, e então não é onipotente; ou nem pode nem quer, e então não é

Deus”167. O autor considera tal dilema escandaloso, pois as alternativas que ele

apresenta são insuperáveis168. Sob os pressupostos de uma onipotência abstrata e

arbitrária e da ilusão de um possível paraíso na terra, a única solução consiste em

escolher entre uma das seguintes alternativas: ou Deus pode e não quer ou quer e

não pode eliminar o mal do mundo. A primeira alternativa afirma a onipotência

divina e nega sua bondade; a segunda, ao contrário, afirma a bondade divina e

nega a onipotência. Para o nosso teólogo, as duas alternativas apontam para uma 166 Cf. Id. Um Deus para hoje, p. 18. 167 Essa é a versão do dilema simplificada por Torres Queiruga. O dilema original é o seguinte: “Ou Deus quer eliminar o mal do mundo, mas não pode; ou pode, mas não quer eliminá-lo; ou não pode nem quer; ou pode e quer. Se quer e não pode, é impotente; se pode e não quer, não nos ama; se não quer nem pode, não é o Deus bom e, ademais, é impotente; se pode e quer – e isto é o mais seguro -, então, de onde vem o mal e por que ele não o elimina?” Cf. Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus, p. 187. 168 Cf. Id. Recuperar a salvação, p. 85-90.

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única solução lógica: o ateísmo. Isto porque ambas alternativas negam a Deus.

Um “deus” que podendo, não quisesse evitar o imenso horror do mal do mundo,

não seria Deus; e um “deus” que em si mesmo fosse impotente e limitado também

não seria Deus169. Deus não pode ser nem mau nem impotente. Seria uma

contradição ou uma anulação de Deus, afirmar que Ele é mau ou que é limitado.

O grande problema, entretanto, tal como constata Torres Queiruga,

consiste na “malícia” do dilema. Sua lógica somente na aparência é neutra; no

fundo o dilema está pressupondo ou condicionando a seguinte solução170: a

existência do mal tem algo a ver com Deus. O dilema em ambas alternativas

introduz o mal em Deus. Ele de alguma maneira acaba se tornando o responsável

pela existência do mal no mundo: ou pela sua limitação ou pela sua indiferença.

Partindo do dilema, o mal no mundo seria explicado, de um lado, pelo fato de

Deus onipotente não querer eliminá-lo ou de estar permitindo sua existência, e, de

outro lado, se Deus for bom, o mal existe por causa da impotência de Deus que

não pode eliminá-lo.

Ao longo da história, segundo Torres Queiruga, a lógica do dilema de

Epicuro foi aceita acriticamente, devido à permanência do “fantasma” da

onipotência arbitrária e da “ilusão” de que um mundo sem mal é possível171. O

dilema com sua contradição sempre se manteve insuperável devido aos seus

pressupostos. Entre as alternativas do dilema a única saída lógica estava na

escolha de uma das alternativas: a onipotência (pode e não quer) ou a bondade de

Deus (quer e não pode).

O nosso autor constata que, entre um Deus que “pode e não quer” e um

Deus que “quer e não pode”, a reação espontânea e generalizada sempre se

inclinou para a primeira alternativa172. E isso por dois motivos: (a) porque

“a imagem de Deus como ‘potência’ está entranhada nos mais primitivos estratos da consciência religiosa da humanidade e (b) porque a imaginação coletiva está cheia de fantasmas, símbolos e mitos em que a divindade aparece diretamente implicada em todas as classes de mal e do sofrimento humano173.

169 Cf. Id. Do Terror de Isaac ao Abbá de Jesus, p. 187. 170 Cf. Id. Creio em Deus Pai, p. 118. 171 Cf. Id. Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus, p. 189-205; Id. Recuperar a salvação, p. 85. 172 Cf. Id. Recuperar a salvação, p. 85-90. 173 Cf. Id. Creio em Deus Pai, p. 120; Id. Recuperar a salvação, p. 88.

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Entretanto, segundo Torres Queiruga, mesmo havendo a preferência pela

onipotência de Deus, sempre, ao mesmo tempo, se resistiu negar definitivamente a

bondade divina. Assim, para afirmar o amor de Deus, seguindo a lógica do dilema

e não negando a onipotência, muitas das vezes se supôs que Deus permite o mal

com vista a um bem maior. A linguagem espontânea expressou e expressa isso

claramente do seguinte modo: “se Deus te manda esta enfermidade será para teu

bem”; “se Deus levou o teu ente querido, é porque assim era melhor para ele”;

“Deus aperta, mas não sufoca”; “Deus escreve certo por linhas tortas”174. A

própria teologia para defender a bondade de Deus, inocentando-o de ser o

responsável pelo mal, recorreu a algumas explicações insatisfatórias que acabaram

relacionando o mal com Deus, a saber: ao demônio ou às “forças do mal”; a

“nadeidade” (o das Nichtige de K.Barth), uma indefinível “não-realidade” oposta

e intermediária entre Deus e o mundo; ao pecado; ao recurso da permissão (Deus

não quer, só permite)175.

Para o nosso teólogo, até o surgimento da modernidade era possível

conviver com as contradições do dilema, visto que, enquanto estas se moviam no

horizonte da evidência tradicional do Divino, podiam ser absorvidas na vivência

religiosa, pois nela a força viva do simbólico, unida à plausibilidade social, podia

mais do que a evidência intelectual dos conceitos. O próprio Epicuro continuou

acreditando nos deuses depois de formular o dilema. E no cristianismo, a imagem

de um Deus Abbá e a “evidência vivencial” da cruz conseguiram manter a

proximidade do amor divino acima de qualquer possível contradição lógica176. A

partir da modernidade, entretanto, essa situação dilemática, de contradição, se

torna impossível, pois o rompimento cultural provocado pelo Iluminismo, com

sua valorização da razão, não permitiu mais manter tão pacificamente a dicotomia

entre a vivência e o pensamento, entre a emoção e o conceito. Por isso, o ateísmo

torna-se uma possibilidade real, visto que a contradição lógica ameaça romper as

barreiras da vivência religiosa, e o problema da teodicéia adquire toda sua

seriedade177.

174 Cf. Id. Creio em Deus Pai, p. 119. 175 Cf. Ibid., p. 122-125; Id. Recuperar a salvação, p. 103-110. 176 Cf. Id. Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus, p. 188; Id. Ponerología y ressurrección: el mal entre la filosofía y la teología, p. 543. 177 Cf. Id. Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus, p. 188-189.

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Com o surgimento da modernidade, portanto, o problema se torna mais

agudo. Entretanto, sem uma crítica dos pressupostos do dilema e sem poder

aceitar pacificamente as duas alternativas ao mesmo tempo, a solução continuou

apontando inevitavelmente numa única direção, a saber: a escolha entre uma das

alternativas. Muitos pensadores modernos, que sucumbiram ao poder do dilema,

tiveram de escolher entre um “deus impotente”, que é bom, mas que não tem

poder sobre o mal, e um “deus sádico”, que é onipotente, mas que permite a

existência do mal no mundo178. As duas posturas, com efeito, longe de resolver o

problema, apenas acentuaram a contradição das alternativas, pois em rigor

conceitual, a afirmação de deus-finito ou um deus-mal é uma contradição179. Além

disso, a postura a favor da onipotência de Deus favoreceu o ateísmo, visto que

muitos preferiram negar a existência de Deus, que acreditar que Deus, sendo

onipotente, permita que tanto sofrimento aconteça no mundo. Não obstante, o

autor ressalta que muitos outros pensadores se negaram a sucumbir à força lógica

do dilema. Esses, no entanto, da mesma maneira que aqueles que se prenderam ao

dilema, não contribuíram para a solução do problema, porque continuaram a

recorrer ao “mistério” para explicar o mal no mundo, e porque não abdicaram

totalmente dos pressupostos presentes no dilema. Três são as posturas adotadas

por estes, a saber: (1) a de um fideísmo encoberto que propõe duas respostas

contraditórias ao problema do mal: uma que parte da onipotência abstrata como

um dado indiscutível e tenta defender a bondade de Deus (o mal existe por

motivos divinos misteriosos, mas para remediar o mal que existe, Deus envia o

Filho), e outra que parte da bondade divina negando a onipotência (Deus não quer

o mal mas Ele é limitado, “impotente”, “fraco” contra ele, não pode vencê-lo, mas

sofre conosco); (2) a que recorre a incompreensibilidade divina, isto é, aquela que

afirma que o mal está inserido nos desígnios de Deus que não podemos

compreender; (3) a que nega totalmente a teodicéia por esta ser um discurso

prejudicial e “destruidor”, que encobre os males reais e cria outros pela via

ideológica180.

Para Torres Queiruga, o mal será sempre relacionado a Deus se se tentar

solucionar o dilema de Epicuro, pois este supõe, entre suas proposições, que Deus

178 Cf. Ibid., p. 190-194. 179 Cf. Ibid., p. 192. 180 Cf. Ibid., p. 195-204.

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seja, de alguma maneira, o responsável pela existência do mal. A saída, segundo o

teólogo, consiste em mudar o modo de enfrentar o problema já que a teodicéia

tradicional, presa à armadilha dos pressupostos do dilema, não responde com

satisfação ao problema. A questão do mal deve, então, ser formulada de acordo

com as novas exigências do paradigma moderno, a saber: partir do dado da

secularidade e da autonomia. Dessa maneira, o mal deve ser refletido, num

primeiro momento, sem uma referência a Deus, visto que atribuir o mal a Deus

equivale a negar a autonomia do mundo, pois o mal seria algo extrínseco ao

mundo. O mal é uma realidade mundana e um problema humano universal, por

isso deve ser tratado enquanto tal. As respostas religiosa e atéia devem partir

desse dado. Isso significa que antes de qualquer consideração religiosa ou atéia, o

problema do mal deve ser tratado em e por si mesmo181. O tratamento da questão

realizada pelo autor segue exatamente essa proposta. Ele parte daquilo que chama

de ponerologia (do grego ponerós, mau), o tratado sobre o mal, para, num

segundo momento, realizar uma pisteodicéia cristã (do grego pistis, fé), ou seja, a

resposta ao problema do mal a partir da fé cristã182. Essa é, segundo ele, a única

maneira de demonstrar que o dilema de Epicuro não tem sentido, e, também, a

única maneira coerente de se refletir sobre a realidade do mal na modernidade183.

4.4.2. O mal como algo inevitável à criação A ponerologia, de acordo com Torres Queiruga, é essencialmente

necessária hoje para uma posterior reflexão cristã sobre o problema do mal,

porque ela o insere no seu devido lugar, a saber, na realidade do mundo, deixando

de lado a idéia de que Deus seja o responsável pela sua existência.

Respeitando o dado da autonomia do mundo e seguindo a lógica da

imanentização moderna, a ponerologia procura buscar uma explicação para a

realidade do mal na trama da causalidade histórica e mundana. Com a

181 Cf. Ibid., p. 205-206; Id. Repensar o mal na nova situação secular, p. 309-311. 182 Para Torres Queiruga, a pisteodicéia pode ser tanto de orientação religiosa como atéia. A de orientação religiosa é chamada de “pisteodicéia cristã” e a de orientação atéia se apresenta como “pisteodicéia não-religiosa ou anti-religiosa”. A primeira assume o lugar da teodicéia tradicional e a segunda, o lugar da a-teodicéia tradicional. O autor aborda somente a pisteodicéia cristã. Cf. Id. Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus, p. 205-206; Id. Repensar o mal na nova situação secular, p. 311; Id. El mal inevitable: replanteamiento de la teodicea, p. 40-41. 183 Torres Queiruga afirma que o primeiro filósofo a levantar o problema do mal a partir desta perspectiva foi Leibniz, cf.: Id. El mal inevitable, p. 39-40.

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ponerologia, o mal deixa de ser concebido como algo que existe porque Deus quer

ou permite, e passa a ser considerado como algo inerente à realidade, tendo nela

mesmo a sua origem184.

Assumindo a intuição básica de G.W. Leibniz (1646-1716) a respeito do

mal, Torres Queiruga defende a idéia de que o mal encontra sua origem não numa

realidade exterior ao mundo, mas na sua limitação e finitude 185. Isso quer dizer

que o mundo não é mau em si mesmo, mas, devido a sua limitação, se apresenta

como condição de possibilidade que torna inevitável a existência do mal186. O

mundo é em si bom, mas, como não é perfeito, acaba sendo afetado pelo mal. Este

aparece, então, como uma realidade inevitável devido ao caráter carencial da

realidade finita; ou como uma manifestação necessária da limitação e da

contradição interna do finito. Dessa maneira, se existe o mundo, a presença do

mal se torna uma possibilidade. Somente no ser que é infinito e sem limitação, no

caso Deus, é pensável a total ausência de mal187.

Fundamentando essa tese, Torres Queiruga faz uso da seguinte intuição

filosófica de B. Espinosa (1632-1677): omnis determinatio est negatio – “toda

determinação é (também) negação”188. Com isso, ele enfatiza que toda realidade

finita não pode realizar-se sem choques e conflitos. Isso porque a finitude não é

infinitude ou perfeição. Ela implica necessariamente “contradições” que não

podem ser evitadas. Um mundo em evolução, por exemplo, não pode se realizar

sem conflitos. Uma vida limitada não pode escapar ao conflito da dor ou da

morte; uma liberdade finita não pode excluir a falha ou a culpa. Toda realidade

finita, por ser uma “determinação”, implica uma “negação”. Uma realidade finita,

por sua “determinação”, está essencialmente em conflito ou em competição com

outras realidades finitas. Uma realidade não pode ser a outra ao mesmo tempo. No

mundo natural, certas qualidades ou realidades excluem ou negam outras. É o que

acontece também com a vida, que se faz à custa da destruição de outras vidas:

mors tua vita mea, “tua morte é minha vida”189. Devido a sua determinação, o

finito não pode ser perfeito. A finitude só alcança uma “perfeição imperfeita”, que 184 Cf. Id. Repensar o mal na nova situação secular, p. 314-315; Id. El mal inevitable, p. 42-43. 185 Para Torres Queiruga, a genialidade de Leibniz consistiu precisamente em defender a idéia de que o mal é inerente ao mundo devido sua limitação e finitude. Cf. Id. Repensar o mal na nova situação secular, p. 316. 186 Cf. Id. Do Terror de Isaac ao Abbá de Jesus, p. 208. 187 Cf. Id. Recuperar a salvação, p. 99. 188 Cf. Id. Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus, p. 209; Id. Um Deus para hoje, p. 19-20. 189 Cf. Id. Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus, p. 209; Id. Creio em Deus Pai, p. 129-131.

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é a perfeição às custas de outra perfeição, isto é, uma realidade só evolui ou existe

às custas de uma outra realidade negada190.

Torres Queiruga utiliza a categoria leibniziana de “mal metafísico” para

afirmar a idéia de que toda realidade finita, devido a sua limitação e determinação,

constitui a possibilidade de existência do mal. Segundo ele, o “metafísico” do

“mal” não é uma metáfora, mas uma denominação rigorosa, visto que o mal se

enraíza na própria essência da finitude. E o “mal” qualificado pelo “metafísico”

constitui a condição estrutural que torna inevitável o aparecimento do mal

concreto191.

É, portanto, da limitação intrínseca da realidade finita, chamada de “mal

metafísico” que, segundo o autor, existe o mal físico (conseqüência dos

inevitáveis desajustes da realidade finita em seu funcionamento) e o mal moral

(conseqüência do exercício da liberdade finita)192. Desse modo, o mal se apresenta

como uma realidade que existe, tanto devido à limitação da realidade física, pois

nela se produzem desajustes e tragédias, quanto também ao uso da liberdade

humana que, não podendo ser perfeita, origina culpas e misérias193.

Como o mal é uma realidade intrínseca ao mundo finito, não tem sentido,

portanto, defender a idéia de que seja possível um mundo sem mal. Nesse sentido,

Torres Queiruga afirma que um mundo sem o mal seria a mesma coisa que um

“círculo quadrado”194; uma contradição; algo impossível. Qualquer mundo

possível, por ser necessariamente finito, implicará a realidade do mal. Isso porque

a finitude em si mesma é incompatível com a perfeição plena e com a exclusão de

todo mal. Mas isso não significa dizer que a realidade finita seja intrinsecamente

má. Ela é intrinsecamente boa, mas não de modo total e acabado. Segundo uma 190 Cf. Id. Creio em Deus Pai, p. 130. 191 Cf. Ibid., p. 131. 192 Cf. Ibid., p. 131-134. 193 A respeito do tema da liberdade, Torres Queiruga afirma que esta precisa também “enfrentar a dura necessidade de realizar-se entre erros, deficiências e conflitos: por ser limitada, uma escolha exclui necessariamente a oposta; além disso, não pode ser totalmente dona de si mesma, nem no conhecimento dos motivos, nem no esclarecimento da infindável complexidade de seus condicionamentos, nem no domínio de seu fundo instintivo. A liberdade humana não é má, mas não é capaz de estar sempre à altura de sua exigência: em seu exercício, acaba sendo também ‘culpável’”. Id. Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus, p. 209. Por isso, a liberdade engendra o mal moral, quando em tensão entre duas opções, por não ser totalmente senhora de si mesma nem de suas circunstâncias, cede e escolhe a pior. Cf. Ibid., p. 213. 194 Torres Queiruga faz uso desta comparação em quase todos os seus escritos em que aborda a temática do mal. Ele insiste nessa comparação por causa de sua justeza e de sua força de demonstração intuitiva, pois essa abstração matemática, ao “reduzir” a realidade à sua única dimensão de figura, permite ver como uma propriedade (ser círculo) exclui necessariamente a outra (ser quadrado). Cf. Ibid., p. 212, nota 50.

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expressão do autor, a realidade finita é “boa-afetada-pelo-mal”195. Assim, a

finitude não é o mal; é condição de possibilidade para este. Isso significa que a

realidade finita não equivale à realização concreta do mal, pois se assim fosse não

poderíamos falar da existência do bem. O mal só se realiza quando determinadas

condições se mostram incapazes de ser conciliadas entre si ou quando há

competição e conflito entre as criaturas196.

Para Torres Queiruga, a ponerologia, com o seu dado da inevitabilidade do

mal no mundo, levanta uma pergunta fundamental: vale a pena a existência do

mundo apesar do mal ?197 Tal pergunta, por ser universal, exige não uma única

resposta, mas inúmeras justificações ou pisteodicéias198. A intenção deste teólogo

é a de responder à questão com uma pisteodicéia cristã, aquela que supõe

concretamente a fé no Deus de Jesus que é amor.

4.4.3. Apesar do mal, a criação tem sentido e valor Segundo o nosso autor, a ponerologia mina na base o dilema de Epicuro. O

pressuposto fundamental do dilema, que aponta para a possibilidade de existência

de um mundo sem o mal ou de um mundo perfeito, carece de sentido, visto que tal

possibilidade é uma contradição ou algo impossível. Fica claro que a questão não

é a de que Deus não criando um mundo-perfeito permita ou queira o mal. O fato é

que Deus não pode criar e manter um mundo sem mal, uma vez que o mal é uma

possibilidade no mundo devido a sua finitude e limitação. Ao mesmo tempo, o

pressuposto da onipotência divina passa a ser melhor compreendido. Deus não

pode fazer o que seja logicamente impossível. Ele não poderia, assim, criar um

mundo finito-perfeito ou, do mesmo modo, um círculo-quadrado ou um ferro de

madeira, o que seria um absurdo. A onipotência divina significa que Deus pode

realizar qualquer coisa que não seja logicamente impossível199.

195 Cf. Ibid., p. 212. 196 Cf. Ibid., p. 212-213. 197 Cf. Ibid., p. 219 e 225. Id. Recuperar a salvação, p. 110-116; Id. Creio em Deus Pai, p. 134-136. Id. Repensar o mal na nova situação secular, p. 318-319. Id. Ponerología y resurrección, p. 558-559. 198 Para o autor, um dos méritos da ponerologia consiste em abrir um espaço igualitário para as distintas pisteodicéias. A resposta cristã já não aparece mais como a única via possível para encarar o enigma do mal. Com a ponerologia, várias pisteodicéias (crentes ou atéias) são possibilitadas. Cada uma, portanto, deve encarar o problema a seu modo. Cf. Id. Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus, p. 223. 199 Cf. Ibid., p. 223-224.

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Entretanto, a questão do mal, com o dado da inevitabilidade e com a

superação do dilema de Epicuro, não fica resolvida no âmbito teológico. Antes

havia a seguinte pergunta: por que Deus criou um mundo mau, podendo tê-lo

criado perfeito e bom? Agora o questionamento fundamental é outro: por que

Deus, sabendo que, se criasse um mundo, este seria inevitavelmente atingido pelo

mal, criou-o apesar de tudo? Ou perguntando de modo mais simples: o mundo

vale a pena apesar do mal? Ou ainda: por que há algo assim (tão duramente ferido

pelo mal) e não simplesmente nada?200

Torres Queiruga apresenta dois caminhos para responder a estas

indagações, a saber: (1) o caminho longo da ponerologia e (2) o caminho curto da

fé no amor de Deus201. O primeiro parte do dado da inevitabilidade do mal no

mundo para chegar a afirmar que o mundo tem sentido, pois Deus não poderia

criar um mundo-perfeito ou sem o mal; se o cria, apesar disso, é porque vale a

pena. E o segundo parte do dado do “amor de Deus”, próprio da fé cristã, que leva

à compreensão de que se Deus nos cria é para a nossa felicidade e nossa

realização. Ambos os caminhos, mesmo sendo independentes, podem se

relacionar mediante uma circularidade hermenêutica. Isso porque a ponerologia se

revela como uma mediação indispensável para a coerência do discurso da fé cristã

a respeito do mal, apesar desta última possuir sua própria coerência.

A primeira resposta ressalta que todo discurso de fé sobre o mal

(pisteodicéia cristã) deve partir da ponerologia e do seu dado de que o mal é

inevitável à realidade finita. Dessa forma, Deus deixa de ser o responsável pela

existência do mal no mundo, pois este aparece como algo inevitável à criatura. O

mal é um problema da criatura ou do ente e não do Ser. Por isso, não convém

questionar nem a bondade nem a onipotência de Deus, visto que ele não pode

fazer o impossível e nem pode ser considerado como mau porque não cria um

mundo-perfeito. Deus não poderia ter criado o mundo de outra maneira. Por ser

criação e não extensão de Deus, o mundo é finito e, por isso, passível de ser

afetado pelo mal. Não obstante, este dado não nos leva a negar a bondade de Deus

e a validade do mundo. Se Deus cria o mundo, mesmo sabendo que ele

200 Cf. Ibid., p. 219 e 225; Id. Recuperar a salvação, p. 110-116; Id. Creio em Deus Pai, p. 134-136. Id. Repensar o mal na nova situação secular, p. 318-319. Id. Ponerología y resurrección, p. 558-559. 201 Cf. Id. Ponerología y resurrección, pp. 559-564; Id. Repensar o mal na nova situação secular, pp. 319-323.

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necessariamente poderá comportar o mal, é porque o mundo tem sentido e vale à

pena. Deus cria o mundo não para este padecer sobre o poder do mal, mas para o

bem e felicidade das criaturas. Isso fica claro, porque não se pode admitir que

Deus crie por “motivos inferiores”, ou seja, por malícia, capricho ou egoísmo,

pois isso suporia a negação de Deus como valor supremo; nem se pode admitir

que Ele crie por necessidade, pois isso negaria sua liberdade incondicionada.

Assim, um Deus criador só é concebível quando cria por pura gratuidade e amor;

quando cria para o bem da realidade criada, mesmo que esta seja passível de

sofrer com o mal. Deste modo, o mal não é absoluto. O mundo encontra sua

justificação no amor absoluto de Deus e encontra seu sentido no bem e não no

mal202. Além do mais, levando em consideração o fato de que o mundo não é algo

estático, mas algo em processo de realização e o ser humano um ser carencial em

busca da plenitude, pode-se afirmar que Deus cria não simplesmente para que

possamos padecer com o mal, mas nos cria constantemente com vista à nossa

realização máxima. Por isso mesmo, Ele se coloca ao nosso lado contra a entropia

ou contra tudo o que obstaculiza a realização e expansão da criatura. Em outras

palavras, Deus está do lado da criatura e contra o mal203.

A segunda resposta parte da própria fé cristã que recorre ao dado do amor

de Deus204. Se a fé cristã confessa que “Deus é amor” (cf. 1 Jo 4,8.16), nada é

mais lógico que afirmar que todo o ser de Deus e todo seu agir consiste

unicamente em amar. Isso vale também para o ato contínuo de criar. Deus cria por

amor; e nos cria dessa maneira com o único fim de nos tornar partícipes de sua

felicidade. Portanto, Deus cria para salvar. Por isso, se torna incompreensível a

afirmação de que Deus tenha alguma coisa a ver com o mal no mundo. Se Deus é

amor e nos cria nesse amor, fica evidente que tudo o que é oposto ao nosso bem se

opõe a Ele. Nesse sentido, a fé cristã, enraizada na intuição do amor de Deus,

compreende quase por instinto que se existe o mal no mundo não é porque Deus o

queira ou o permita, mas porque não pode ser de outra forma, porque o mal é

202 Cf. Id. Recuperar a salvação, p. 114-115; Id. Creio em Deus Pai, p. 137-138. 203 Cf. Id. Creio em Deus Pai, p. 137-138. 204 Para Torres Queiruga, a fé cristã, mesmo sem a mediação da ponerologia, é capaz de responder com coerência ao questionamento sobre o sentido ou o valor do mundo e da existência humana apesar da realidade do mal. Mas isso com duas condições: (1) que a fé cristã leve a sério a força interna de sua própria lógica e (2) que aproveite as novas possibilidades abertas pela atual crítica bíblica, pois qualquer fundamentalismo pode ser fatal, visto que pode favorecer a idéia de que o mal está relacionado a Deus. Cf. Id. Ponerología y resurrección, p. 561-562; Id. Repensar o mal na nova situação secular, p. 319-320.

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inevitável205. Então, o mundo tem sentido, apesar do mal, porque é o resultado de

um amor que cria e o empurra à realização ou à salvação. A existência de toda

criação, longe de ser um existir somente submetido à força do mal e do

sofrimento, é a inevitável condição de possibilidade para que a salvação possa

acontecer. A razão disso é clara: “para que Deus nos ‘salve’, quer dizer, para que

possa fazer-nos definitivamente plenos e felizes, precisamos existir, e existir como

finitos, como seres que crescem e se realizam eles mesmos na história de sua

liberdade”206.

Ambas as respostas, como podemos observar, apontam para uma mesma

intuição, a saber: Deus nos cria por amor para podermos alcançar a nossa

realização plena. Assim, o mundo e a vida têm sentido, mesmo com a inevitável

presença do mal, pois fomos criados por um amor que nos envolve

constantemente e que nos impulsiona à realização máxima, o que implica a vitória

final sobre o sofrimento, a morte, o mal. Com isso, se percebe que Deus não pode

evitar o mal da criatura, enquanto limitada ou finita, mas no final do processo de

nossa realização isso será possível, pois é o bem e não o mal que já detém a última

palavra sobre a criação e sua história207.

4.4.4. Deus como antimal 208 A pisteodicéia cristã, dando uma resposta à pergunta sobre o sentido do

mundo e das criaturas diante da realidade do mal, nos garante coerentemente que

Deus não só não quer e nem permite o mal no mundo, como também está ao

nosso lado contra ele. De acordo com Torres Queiruga, longe de se tratar de um

belo sonho de nosso desejo, essa verdade encontra sua verificação nas sagradas

205 Para Torres Queiruga, a fé cristã, entretanto, pode ser vítima de algumas incoerências suscitadas pelo conceito abstrato da onipotência divina que, alimentado pelo desejo de onipotência infantil (“papai pode tudo”) e reforçado por uma mentalidade “mítica” de um contínuo intervencionismo no mundo, pode nos levar a intuir que Deus pode fazer o que quiser, até mesmo, eliminar todo o mal do mundo. É por causa disso, segundo o autor, que a fé cristã necessita da ponerologia para afirmar sua coerência diante do questionamento sobre a presença do mal no mundo. Cf. Id. Repensar o mal na nova situação secular, p. 320. 206 Id. Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus, p. 227. 207 Cf. Id. Recuperar a salvação, p. 118. 208 “Antimal” é um neologismo de E. Schillebeeckx atribuído a Deus. Torres Queiruga assume este neologismo para expressar sua intuição teológica a respeito da proximidade ativa de Deus ao lado do ser humano contra o mal. “Deus como antimal” consiste numa expressão que aparece em quase todas as reflexões teológicas de Torres Queiruga sobre a temática do mal.

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escrituras, sobretudo na vida e no destino de Jesus de Nazaré209. Por isso, em e por

Jesus, Deus se revela maximamente como antimal. Entretanto, Deus não é

percebido como antimal somente a partir de Jesus de Nazaré. Já no Antigo

Testamento existem intuições que descrevem Deus em oposição ao mal. Neste

item mostraremos, então, como este teólogo expõe a consideração de Deus como

antimal no Antigo Testamento e em Jesus de Nazaré.

4.4.4.1. Deus contra o mal no Antigo Testamento Para Torres Queiruga, no Antigo Testamento, apesar dos inúmeros “traços

demoníacos” atribuídos a Deus, existe uma intuição que vai se desenvolvendo

cada vez mais, em meio a grandes questionamentos, até alcançar sua culminância

em Jesus. A intuição é a seguinte: Deus se preocupa unicamente com o bem do ser

humano e, por isso, está a seu lado contra o mal. De acordo com este teólogo, essa

intuição estava já presente na experiência fundante de Israel, a saber: a libertação

do Egito. A partir dela foi posto no próprio cerne da compreensão de Deus seu

caráter libertador-salvador. Deus é concebido como aquele que se coloca ao lado

de um povo sofredor contra o mal que o oprimia. A confissão de fé de todo

israelita (cf. Dt 26,5-9) é prova disso. Essa consiste na expressão da certeza de que

Deus se colocou ao lado de Israel contra o mal da escravidão egípcia. Nesse

credo, Deus aparece como aquele que livra do mal – “tirou-nos do Egito” – e

conduz à felicidade – “dando-nos esta terra: uma terra onde correm leite e mel”.

Os profetas foram aqueles que deram mais vida a essa evidência central.

Para eles, Deus se apresenta como “aliado”, como promotor ético da justiça, como

amor ao ser humano e como perdão incondicional (cf. Os 11,8-9). Além disso,

tentaram levar Israel à compreensão fundamental de que a vida está envolvida

num amor sem medidas, por meio da utilização de alguns símbolos, a saber: pai

(Os 11), mãe (Is 49,14-15), esposo (Is 1,21-23; 49,14-26; 54; 62; Jr 2; Ez 16). Até

mesmo nos casos em que aparecem, nos livros proféticos, os temas do castigo e da

ira de Deus não querem expressar que Deus seja o responsável direto pelo mal,

mas, com o sentido de exortação pedagógica, querem ressaltar a seriedade do

pecado humano diante da negação do amor de Deus.

209 Cf. Id. Creio em Deus Pai, p. 138-147; Id. Recuperar a salvação, p. 118-134.

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Também as narrativas da criação, tanto javista como sacerdotal, nessa

mesma linha intuitiva, mostram que a intenção de Deus ao criar o ser humano é

unicamente para a felicidade plena deste e não para fazê-lo sofrer. A apocalíptica,

da mesma forma, revela que Deus se mostra como a plenitude e o futuro do ser

humano, pois ela incute uma expectativa escatológica de que Deus acabará com

toda a injustiça e instaurará um novo mundo e um novo tempo.

Outros escritos, como alguns salmos e o livro de Jó, sem ceder ao esquema

da retribuição, negam que Deus seja o responsável pelo sofrimento e afirmam que

Deus se põe ao lado daquele que sofre. Os poemas do Servo Sofredor de Isaías

são, nesse sentido, a expressão mais clara e inequívoca no Antigo Testamento de

que Deus está com quem sofre, se identificando com ele e apoiando-o diante do

mal que o envolve.

Portanto, o que se percebe no Antigo Testamento, embora de maneira não

tão clara, é que Deus está em oposição ao mal. Por isso, no Antigo Testamento

reside o início da compreensão de que Deus só pode está na zona da luz e o mal

do outro lado, nas trevas, contra o ser humano e contra Deus210.

4.4.4.2. Em Jesus, Deus ao nosso lado contra o mal

Não obstante, é somente em Jesus que a compreensão de Deus como

antimal adquire toda sua força e clareza. Isso porque em Jesus, nas suas ações

fundamentais e no seu destino, Deus se revela absolutamente contrário à realidade

do mal, do sofrimento e de dor que a pessoa experimenta. Além disso, em Jesus

vemos a solidariedade de Deus conosco diante do mal, pois nele, o próprio Deus

assume a finitude submetendo-se à mesma e idêntica limitação humana, e, por

isso, se torna passível de experimentar a força do mal. Devemos contar também,

que no destino de Jesus, Deus vence o mal nos revelando que o absoluto não é o

mal, mas a vida afirmada pelo seu amor. Assim, resumidamente, em Jesus, Deus

se coloca ao nosso lado contra o mal, faz a experiência dele e o vence211. Daí que

em Jesus, Deus de forma alguma pode ser considerado como “impotente” ou

“apático” frente à realidade do mal. Ao contrário, está absolutamente conosco

contra o mal, nos ajudando a assegurar a vitória definitiva sobre ele.

210 Cf. Id. Creio em Deus Pai, p. 139-142; Id. Recuperar a salvação, p. 118-122. 211 Cf. Id. Creio em Deus Pai, p. 142-154; Id. Recuperar a salvação, p. 123-134.

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Torres Queiruga ressalta que toda vida de Jesus, desde o começo em

Nazaré até a morte de cruz, se situou no escalão mais baixo do espaço social, para

onde confluíam todos os afluentes da miséria humana: os pobres de pão e de

cultura, os enfermos de corpo e espírito, os desprezados pela religião e pela

sociedade. Para ele, Jesus viveu realmente na miséria, como humano entre os

humanos, e, mais especificamente, como pobre entre os pobres. Por isso, nele não

encontramos, de forma alguma, um Deus afastado da miséria humana existencial

ou da miséria provocada pela injustiça social212.

Entretanto, no entender deste teólogo, Jesus não viveu conformado ou

apático frente às injustiças e aos males que impedem a realização da vida. Sua

atitude durante toda a vida foi a de se colocar, de modo incondicional, ao lado das

vítimas contra o mal que as oprimia. Por isso é que Jesus aparece “em toda sua

conduta, compadecendo-se dos que sofrem, defendendo-os de quem os oprime,

lutando contra o mal, a ponto de dar a sua vida”213.

Torres Queiruga reconhece que Jesus não agia contra o mal casualmente.

O seu agir era consciente, reflexivo e constante. O que o motivava a agir em

oposição ao mal e em solidariedade com as vítimas da miséria humana era

certamente a intuição profunda que possuía a respeito de Deus como Abbá de

ternura e bondade. Ele, numa atitude filial, buscava expressar, em sua vida e

através de seu agir, o amor-libertador de Deus para com todos. E como o amor

não “permite” ou “possibilita” o mal, Jesus acabou se colocando radicalmente

contra ele, por este estar em oposição ao Abbá. Por isso, Jesus sempre agiu para

libertar a vida das pessoas do poder do mal. Perdoava os pecados, curava os

doentes, acolhia e comia com os pecadores etc214.

A missão de Jesus consistiu justamente no anúncio e na realização da

“boa-notícia” de que o Abbá de ternura e bondade está presente na vida e na

história do ser humano, manifestando seu amor e seu poder para libertar e salvar a

todos do poder do mal. A sua missão, em outros termos, consistiu no anúncio e na

realização do reino de Deus. Com a proclamação da chegada do reino de Deus,

Jesus revelou que tudo o que se opõe ao bem do ser humano havia começado a ser

destruído pela presença de Deus. Deste modo, o reino de Deus aparece em Jesus

212 Cf. Id. Recuperar a salvação, p. 124. 213 Id. Creio em Deus Pai, p. 143. 214 Cf. Id. Recuperar a salvação, p. 126.

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como o momento decisivo e efetivo do rompimento do poder do mal pelo poder

de Deus, a partir do qual o ser humano poderá alcançar à plenitude final de sua

existência. Não obstante, o autor nos alerta para que não compreendamos o reino

de Deus como algo mágico. Este não acontece de forma mágica, como algo caído

pronto do céu. Ele tem início mediante as ações fundamentais de Jesus. São as

ações de Jesus contra o mal que inauguram a chegada do reino. Pelas palavras e

obras de Jesus, Deus se coloca efetivamente ao lado do ser humano contra toda

forma de mal. Portanto, o reino de Deus consiste na oposição radical e

incondicional de Deus ao mal215.

Em Jesus, portanto, não aparece nenhuma conivência com o mal; aparece

sim, uma oposição radical a ele. Ele se encontra diante do fato do mal e dedica

todo o esforço para combatê-lo. Com isso fica claro que Deus, visto que Jesus é o

Filho encarnado, não pode ser a origem do mal ou sequer permitir sua existência,

“porque em sua manifestação genuína e definitiva [Deus] aparece-nos como

aquele que se opõe ao mal e o destrói pela raiz”216.

4.4.4.3. Em Jesus, Deus implicado na realidade do mal

Torres Queiruga afirma que, além de nos revelar definitivamente que Deus

está do nosso lado contra o mal, Jesus nos revela, com sua humanidade, que Deus

passou também pela experiência do mal217. Isso porque em Jesus, Deus assume a

condição humana com tudo o que ela implica, inclusive, a “mordedura do mal”,

visto que esta última é inevitável à finitude e à limitação humana.

Nesse sentido, o testemunho neotestamentário evidencia que Jesus, mesmo

sendo de condição divina, não ficou imune aos sofrimentos e à força do mal.

Mesmo assumindo uma fidelidade incomparável a Deus durante toda vida, não foi

poupado da dificuldade e do sofrimento que todo ser humano tem que enfrentar.

Ele fez a experiência até da morte, e o pior, de uma morte injusta e escandalosa218,

215 Cf. Id. Creio em Deus Pai, p. 143-144. 216 Id. Recuperar a salvação, p. 128. 217 Cf. Id. Recuperar a salvação, p. 128-132. 218 Torres Queiruga afirma que Jesus de Nazaré, por ser autenticamente humano, trazia a morte física inscrita em sua biologia do mesmo modo que trazia a necessidade de comer ou a capacidade de sofrimento. Se Jesus não tivesse feito a experiência da morte, a sua humanidade não seria verdadeira. A morte, nesse caso, é uma necessidade da encarnação do Filho. Entretanto, “ter que morrer” não equivale a “morrer na cruz”. A morte violenta de Jesus na cruz é algo que não mais pertence à “necessidade” da encarnação. A cruz foi o produto terrível do pecado humano. Mas, se

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visto que foi condenado à morte de cruz, não para satisfazer uma vontade de

Deus, mas porque era bom e havia se colocado ao lado dos oprimidos sem

retroceder diante das conseqüências219. A Carta aos Hebreus enfatiza essa

realidade do sentido profundo da encarnação: “Ele mesmo [Jesus] foi provado

como nós, em todas as coisas, menos no pecado” 220 (4,15).

Para Torres Queiruga, a constatação de que Jesus tenha passado pelo

sofrimento é o ponto de partida de duas linhas de pensamento que confluem para

testemunhar a inevitabilidade fáctica do mal221. A primeira diz respeito ao próprio

Filho de Deus. Se o Pai “pudesse” livrar seu “Filho predileto” (Mc 1,11) da

terrível servidão da finitude, é claro que o faria. Se não o faz, é porque não é

possível, pois seria uma contradição Deus assumir uma “humanidade perfeita” ou

uma humanidade não finita e limitada. A encarnação do Filho implica a

submissão às condições concretas da finitude. Se a encarnação não respeitasse

isso, seria uma farsa de Deus.

A segunda linha de pensamento tem apoio na “nova” consciência da

teologia sobre o realismo da encarnação. Esta afirma que a encarnação consiste

em tomar a carne concreta da humanidade para viver nela, a partir dela e através

dela. Nesses termos, falar de uma encarnação que escapasse às conseqüências da

finitude ou de um Cristo que não fosse concreta e verdadeiramente humano seria

sua própria negação, pois um ser humano ilimitado e perfeito não seria um ser

humano. Assim, o Filho de Deus não fez uma experiência superficial de ser ser

humano humano, mas se fez ser humano radicalmente.

Torres Queiruga utiliza o dado da limitação e da finitude assumida pela

encarnação do Filho de Deus para fundamentar sua hipótese de que o mal nas

criaturas, longe de ser uma possibilidade facultativa de Deus (“se quisesse”

poderia eliminar), é uma inevitabilidade ôntica que surge da própria limitação

Jesus não tivesse morrido na cruz, morreria de qualquer maneira por ser humano de verdade. Cf. Ibid., p. 179-182. 219 Para Torres Queiruga, Jesus morre na cruz não para satisfazer um princípio abstrato, a saber, a satisfação de Deus. Ele morre porque alguns grupos providenciaram a sua morte. “Para os escribas, os fariseus e os anciãos, Jesus rompia com todos os esquemas religiosos e interditava um sistema social que estava profundamente sacralizado e lhes conferia sua própria identidade (e, de passagem, seus privilégios sociais): ‘que um só morra pelo povo e não pereça a nação toda’ (Jo 11,50)”. Cf. Ibid., p. 181-182. 220 Torres Queiruga explica que a expressão “menos no pecado” assinala o núcleo mesmo do mistério de Jesus, pois sendo humano e também de condição divina, Jesus não pode pecar, ou seja, fazer algo que contrarie a vontade do Pai, porque, se assim ocorresse, nele Deus iria contra o próprio Deus. Cf. Id. Recuperar a salvação, p. 129-130. 221 Cf. Ibid., p. 131-133.

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constitutiva da criatura, de modo que a eliminação do mal equivaleria a uma

anulação da própria criatura, pois sem o mal ela tornar-se-ia infinita, semelhante a

Deus, o que seria uma contradição222.

Com isso fica claro que, em Jesus, Deus se submete à realidade do mal,

visto que a encarnação não foi uma ficção ou algo superficial, mas o assumir

radicalmente a condição humana, a qual traz presente em si, devido a sua

limitação e finitude, a possibilidade de fazer a experiência do mal.

4.4.4.4. Em Jesus, Deus vence o mal

Em Jesus, Deus não somente enfrenta ou faz a experiência da mordedura

do mal, mas também vence o seu poder. Nas ações fundamentais de Jesus, o poder

de Deus vai vencendo o mal que obstaculiza a realização da vida. Todavia, a

vitória radical e definitiva sobre ele encontra seu lugar no destino último de Jesus,

a saber, na sua morte e ressurreição223.

A morte de Jesus foi, e continua sendo, alvo de uma gama diversa de

interpretações teológicas. A mais nociva para a fé cristã, segundo o autor, é a que

afirma que a morte de Jesus foi um acontecimento necessário para reparar a honra

de Deus e para que Ele pudesse realizar o perdão da humanidade. Tal

interpretação, elaborada por Anselmo de Catenburry (1033-1109), mesmo levando

em conta os atenuantes do contexto medieval da honra, trouxe um prejuízo

incalculável à fé cristã. Isso porque essa teoria anula a força corrente central de

toda revelação de Deus como amor. É incompreensível que Deus, o Abbá de

ternura e bondade de Jesus, tenha desejado ou exigido a morte do Filho. Isso vai

contra a própria essência de Deus. A partir da revelação que Jesus nos faz de

Deus, o mais correto consiste em afirmar que na cruz Deus não está contra Jesus,

mas a seu lado, apoiando-o e sofrendo com ele, dando-lhe a razão de sua

inocência contra os que, em seu nome, se tornam instrumentos do mal224.

Portanto, a cruz, longe de ser o destino querido por Deus para Jesus, é um

produto terrível do pecado humano ou da rejeição ao Deus anunciado e

222 Cf. Ibid., p. 133-134. 223 Cf. Id. Ponerología y resurrección, p. 564-572; Id. Creio em Deus Pai, p. 146-147. 224 Cf. Id. Creio em Deus Pai, p. 144-145; Id. Recuperar a salvação, p. 167-170.

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experienciado por Jesus de Nazaré225. Por isso, Jesus não morre assassinado na

cruz para satisfazer um princípio abstrato. Morre por causa da maldade e injustiça

de alguns. Morre condenado pela religião e pela política. Entretanto, Deus não

abandona o Filho na hora da morte. A cruz se revela como o supremo indicador

do amor de Deus226. Na cruz não há um “abandono” do Pai. Há um “silêncio de

Deus”, no sentido de que Deus respeita a legalidade intrínseca da criação, sem

agir de maneira intervencionista para mudar o rumo da história. Nesse sentido,

Deus “age como o autêntico pai que acompanha o filho na vida sem nunca inibir

sua iniciativa nem anular sua personalidade”227. De uma maneira que ultrapassa o

nosso entendimento, Deus sofre com seu Filho na cruz, sem poder livrá-lo da

morte, visto que precisa deixar que tal acontecimento se realize e “se consuma”. O

próprio Jesus, a partir de sua profunda experiência do Abbá como amor

incondicional, intuiu de alguma maneira, no momento derradeiro da cruz, que

apesar de tudo, Deus estava com ele naquele momento. Mesmo padecendo com a

dor, Jesus consegue sentir a companhia do Pai e seu íntimo alento. É por isso que

“Jesus não morre desesperado: na ponta decisiva de sua liberdade, no extremo

mais profundo de seu coração, permanece uma confiança inquebrantável: ‘Pai, em

tuas mãos entrego o meu espírito’ (Lc 23,46)”228. Segundo o autor, esta teria sido

a última lição que Jesus aprendeu: o Abbá não nos abandona jamais229.

Entretanto, para Torres Queiruga, não teria sentido algum falar da presença

de Deus na cruz de Jesus se esta fosse definitivamente a última e absoluta palavra

sobre a sua vida. E de nada adiantaria falar que Deus está ao nosso lado contra o

mal, se esse tivesse um valor absoluto sobre nossa vida. O que acontece com Jesus

depois da sua morte é o que nos revela que a vida está submetida não somente ao

poder inevitável do mal, mas, sobretudo, ao poder do amor de Deus, que tende a

encaminhar a vida à sua plena realização. O fato é que Jesus ressuscitou. Sua

ressurreição demonstra que nem o sentido nem a realidade de sua vida puderam

225 Cf. Id. Recuperar a salvação, p. 181-182. A respeito da morte de Jesus na cruz, Torres Queiruga escreve o seguinte: “A cruz não é um decreto divino nem o ‘preço’ que Deus exige, mas algo terrível que, como Jesus, o Pai quer suportar porque lhe é imposto pela finitude e pela malícia de liberdades humanas que não aceitaram deixar-se impulsionar para o bem”. Id. Repensar o mal na nova situação secular, p.324. 226 Cf. Id. Recuperar a salvação, p. 183-186. 227 Ibid., p. 183. 228 Ibid., p.184. 229 Cf. Id. Esperança apesar do mal, p. 144-147; Id. Ponerologia y Resurrección. In: Revista Portuguesa de Filosofia, 57 (2001), 564-565.

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ser destruídos. Pelo contrário, mediante a ressurreição, fica definitivamente

afirmada e infinitamente fortalecida a esperança-certeza de que em Jesus se

cumpre o projeto criador de plenitude e felicidade para o ser humano230.

A ressurreição de Jesus é a prova mais contundente de que Deus nem quer

nem permite o mal. Ela é a certeza de que Deus é contrário ao mal. Não foi Deus

o responsável pela morte de Jesus. Deus foi, sim, o responsável pela vitória sobre

a sua morte. Portanto, sua responsabilidade não é pela realidade do mal, mas pela

salvação. Jesus, mediante a ressurreição, faz a experiência do que é viver da

salvação definitiva. Sua vida adquire uma grandeza infinita, pois as próprias

amarras da finitude são todas rompidas. Isso porque o Ressuscitado é, segundo

terminologia de Paulo, “corpo espiritual” (cf. 1Cor 15,44). Ou seja, como

Ressuscitado, Jesus continua sendo aquele que sempre foi, mas agora se encontra

transpassado totalmente pela divindade, sendo pura transparência espiritual,

liberdade absoluta e presença ilimitada231.

Torres Queiruga destaca que a ressurreição ou a salvação definitiva não é

algo só destinado somente a Jesus, mas a todas as pessoas. Entretanto, é algo que

somente é possível por meio dele. Neste caso, Jesus é o “proletário absoluto”, no

sentido de que a libertação de toda humanidade das amarras do mal encontra nele

seu único caminho. Devido à sua universalidade pelo sofrimento, ele atinge a

todos com sua salvação. Dessa maneira, o seu destino se torna o destino de todos.

O Novo Testamento testemunha que a ressurreição de Jesus interessa não pelo que

tem de insólito e extraordinário, mas porque é pro nobis, “para nós”, isto é, ele

ressuscita para nossa salvação (cf. Rm 4,25)232. Portanto, no destino de Jesus está

presente uma “solidariedade anamnésica” com todas as pessoas, sobretudo, com

aquelas pessoas que fazem mais frontalmente a experiência do mal. Deste modo,

sua ressurreição é o fundamento da esperança na vitória definitiva sobre o

sofrimento, a dor, enfim, o mal; é a segurança de que, apesar de tudo, “o carrasco

não triunfará sobre a vítima” (Horkheimer)233.

Asism, para Torres Queiruga, a ressurreição de Jesus aparece em toda sua

profundidade como resposta de Deus ao problema do mal. Ela permite

compreender o modo como Deus age em nosso favor contra o mal ao longo de

230 Cf. Id. Creio em Deus Pai, p.146. 231 Cf. Id. Recuperar a salvação, p. 193-197. 232 Cf. Ibid., p. 200. 233 Cf. Id. Creio em Deus Pai, p. 154.

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toda história234. Mediante o fato da ressurreição, fica claro que Deus está voltado

sobre o ser humano com toda a força de seu amor compassivo e libertador.

Entretanto, como a ressurreição é um acontecimento transcendente, visto que não

interfere nas leis da história, e, também, real, porque realmente Jesus foi resgatado

do mal e elevado à sua realização acabada e gloriosa, a ação de Deus ao longo da

história contra o mal se dá da mesma forma. A ação de Deus se revela como a

máxima possível nas condições da história, mas não de uma forma

intervencionista. Deus está sempre conosco fazendo todo o possível para romper o

poder do mal. Como presença-salvífica contínua e ativa na criação, Deus é o

primeiro empenhado – e não o ser humano - na luta contra o mal. Por isso, é Ele

quem está continuamente solicitando nossa colaboração no combate contra a força

do mal235, pois seu desejo é a nossa realização plena. A ressurreição de Jesus é a

grande prova disso. Por isso, a existência humana vale a pena, porque, apesar da

experiência do mal, Deus possibilita a vitória sobre ele com a salvação definitiva.

4.4.5. A salvação definitiva a partir da história

Segundo Torres Queiruga, a resposta ao problema do mal dada pela

pisteodicéia cristã, que supõe a salvação escatológica, levanta duas objeções de

alcance profundo que necessitam ser respondidas. A primeira surge

espontaneamente: se Deus pensa exclusivamente no bem do ser humano e se, no

final, irá dar-lhe a salvação definitiva, por que não já o faz desde o princípio,

poupando-o de todos os sofrimentos? A segunda objeção aparece num plano mais

profundo e reflexivo: se a finitude é a raiz que torna inevitável o mal, seria

concebível uma salvação perfeita? Ou em outros termos: sendo os salvos finitos,

podem eles ser imunes ao mal, uma vez que a finitude é a condição de

possibilidade do mal?236

Torres Queiruga afirma que a primeira objeção é muita antiga, visto que

remete ao questionamento que os pagãos dirigiam aos primeiros cristãos

referindo-se a salvação em seu conjunto: cur tam sero? Se a salvação é algo certo,

234 Cf. Id. Ponerología e Resurrección, p. 566-567. 235 Cf. Id. Creio em Deus Pai, p.151-154. 236 Cf. Id. Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus, p. 235-239; Id. Repensar o mal na nova situação secular, p. 325; Id. Ponerología y Resurrección, p. 568-570; Id. Creio em Deus Pai, p. 154-155; Id. Recuperar a salvação, p. 149.

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por que Deus não a realiza logo?237 A resposta, segundo ele, é também antiga,

pois foi dada por Irineu de Lião no século II. Irineu responde a questão partindo

da necessária mediação do tempo e de sua “pedagogia” como fator essencial na

constituição da liberdade finita238. Para Irineu, o ser humano se forja no lento e

profundo amadurecer da história, de modo que, se fosse constituído de repente em

perfeição, não seria ele mesmo. Por isso, nem tudo o que é possível no fim, é

possível desde o início. Por exemplo, “a mãe por mais carinho que tenha não pode

dar carne à criança de peito”239.

Para Torres Queiruga, somente o mito do paraíso pode anular a força da

idéia de Irineu, pois quando se leva a sério, em toda a sua radicalidade, que

“a pessoa é aquilo que se faz, aquilo que chega a ser no lento e livre amadurecer de sua própria história, intui-se a impossibilidade de que possa ser criada já pronta: um homem ou uma mulher, criados adultos de repente, constituídos de um golpe só na claridade da consciência, não seriam eles mesmos, mas algo fantasmagórico, autênticos ‘aparecidos’, sem consistência até para si mesmos. Seriam uma contradição”240. Torres Queiruga constata que não só Irineu, mas também a grande

tradição teológica, desde o início da Patrística até Tomás de Aquino e, mais ainda,

depois dele, já haviam apontado a resposta a essa primeira objeção, negando a

possibilidade de que Deus possa criar uma liberdade finita e já perfeita241.

Seguindo a mesma linha da “grande tradição teológica”, o nosso teólogo

responde à primeira objeção afirmando que Deus não nos criou perfeitos e

plenamente realizados ou na salvação definitiva porque isso seria impossível. A

condição da existência humana tem que passar pela finitude, pela história, pois se

não for dessa maneira, não é possível existir. A história aparece como condição

para nossa salvação: ou somos assim ou não podemos ser em absoluto. O único

modo de nos realizarmos plenamente é a partir da história. Daí que o

“tempo da história, com sua exposição às terríveis mordacidades do mal, não é nem ‘avareza’ de um deus que poderia ter-nos poupado, nem sequer uma provação ou uma condição para obter ‘méritos’. É simplesmente a necessidade intrínseca de nossa constituição como seres finitos”242.

237 Cf. Id. Ponerología y Resurrección, p. 568. 238 Cf. Id. Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus, p. 240. 239 Ibid. 240 Ibid. 241Ibid., p. 241; Id. Ponerología e Resurreción, p. 569; Id. Repensar o mal na nova situação secular, p. 326. 242 Id. Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus, p. 242.

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Quanto à segunda objeção, segundo Torres Queiruga, trata-se de uma

objeção mais formidável243, visto que parece contradizer o dado fundamental da

ponerologia, a saber, a inevitabilidade do mal. Se a finitude é a raiz que torna

inevitável o mal, como podemos falar da salvação definitiva ou da realização

plena da pessoa humana se esta continua nesse estado sendo finita? De um lado a

finitude não pode ser negada, e, de outro, cremos na salvação como libertação de

todo mal, o que parece anular a finitude244.

A saída a essa objeção, segundo o nosso autor, se encontra na coerência de

dois traços que impedem a contradição entre a finitude e a salvação definitiva, a

saber: (1) o caráter dinâmico e aberto da liberdade; e (2) a relação única entre o

criador e a criatura245.

Devido ao seu caráter dinâmico, a liberdade humana, que é chamada a se

construir a si mesma através de uma história inevitavelmente exposta ao erro e à

deficiência, se descobre como aspiração infinita ou aberta à plenitude sem falhas.

A liberdade humana é finita, mas ao mesmo tempo, não se contenta com nada

limitado. Ela anseia sempre a plenitude. Mas como a pessoa está inserida na

finitude, a liberdade humana por si mesma não pode se plenificar, devido às

condições limitadas da história. No entanto, é possível afirmar com coerência a

idéia de que a liberdade, uma vez sendo dinâmica e aberta, pode acolher uma

plenificação que lhe seja presenteada tornando-a capaz de romper os limites da

história. No caso, a liberdade humana finita é capaz de acolher a plenitude ou a

perfeição dada gratuitamente por Deus.

Além disso, entre o criador e a criatura existe uma relação tão profunda

que não é errado pensar na “infinitização” da criatura pelo criador. Entre Deus e

nós não existe concorrência de nenhum tipo. Deus não quer nossa destruição. Se

Deus nos cria por amor e, por isso, para salvar, é possível especular sobre a

eternidade da criação junto do criador. Assim, “não se pode afirmar que seja

contraditório que, ao intensificar-se a presença criadora fora dos limites do espaço

e do tempo, a criatura de algum modo participe com força tal em sua infinitude

que se torne livre do mal”246.

243 Cf. Ibid., p. 235. 244 Cf. Ibid., p. 243. 245 Cf. Ibid, p. 244-249; Id. Repensar o mal na nova situação secular, p. 327-330; Id. Ponerología y Resurrección, p. 571-574. 246 Id. Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus, p. 245.

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Se o ser humano pode chegar à perfeição ou à salvação definitiva, isso

acontece porque Deus o faz participar de sua infinitude e perfeição. Neste caso, a

identidade finita da pessoa não é negada, mas “infinitizada”. Por isso, não há na

salvação definitiva nenhuma alienação da condição de finitude, pois aqui não

acontece uma criação em estado perfeito. O que se dá “é uma potencialização

inaudita da própria identidade, e, portanto, da própria liberdade, ao ser plenificada

a pessoa a partir do que livremente escolheu ser”247.

Diante desses argumentos, fica claro que Deus não poderia ter-nos feito

perfeitos ou salvos desde o princípio. Somente passando pela finitude é que Ele

pode nos “infinitizar” ou nos salvar. Neste mundo estamos submetidos à

experiência do mal, devido à nossa finitude. Mas na “glória de Deus”, mesmo

com nossa finitude, não existirá mais o mal, pois a nossa finitude participará da

infinitude e da perfeição de Deus. Portanto, a salvação definitiva consiste em

participar da vida infinita de Deus; consiste na vitória definitiva sobre o mal248.

4.4.6. O núcleo de uma nova coerência Torres Queiruga insiste que a intuição de Deus como antimal deve ser o

núcleo de uma nova coerência para a teologia, a práxis e a vivência religiosa

cristãs249.

A teologia cristã, no seu entender, devido aos íntimos fantasmas de nosso

inconsciente – a ânsia de onipotência infantil e a implacável vontade de poder –

acabou sustentando alguns conceitos e idéias que, em muitos aspectos,

contradizem frontalmente a imagem do Deus Abbá, porque o relacionam de

alguma forma com o mal. Para o nosso autor, toda a reflexão teológica tem que

buscar uma coerência com o Deus antimal, revelado em e por Jesus de Nazaré. E

isto adquire urgência para os seguintes temas da fé cristã – que não serão

considerados aqui - que, explicitados de forma equivocada, não deixam de

apresentar uma imagem negativa de Deus: o pecado original, toda fantasmagoria

acerca do demônio, o inferno, a revelação divina, os milagres e a oração de

petição250.

247 Ibid., p. 249. 248 Cf. Id. Recuperar a salvação, p. 213-220. 249 Cf. Id. Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus, p. 249-264. 250 Cf. Ibid., p. 249-255.

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Para Torres Queiruga além da coerência teológica na concepção de Deus

como antimal, deve haver, por parte do cristão e das instituições cristãs, uma

coerência práxica251. Proclamar a Deus como o nosso “grande companheiro” na

luta contra o mal não tem sentido se não houver, da parte de quem acredite nisso,

um empenho contra o poder do mal. Neste sentido, Jesus de Nazaré é o maior

exemplo. Isto porque ele, partindo da convicção de que Deus é Abbá de bondade e

ternura, lutou contra o mal em todas as suas formas, desmascarando-o como o

antideus. Desse modo, crer e anunciar Deus como antimal é “atuar, inserindo-se

na ação criadora e salvadora de Deus, combatendo aquilo que se opõe à nossa

realização e à dos demais”252. Daí que o cristianismo é chamado constantemente a

uma práxis concreta e realista contra o mal que obstaculiza a realização da vida.

Somente dessa maneira, o cristianismo poderá ter crédito no anúncio de Deus.

Além da coerência teológica e práxica, Torres Queiruga propõe, pautado

numa intuição de Paul Ricouer, a coerência do sentir, isto é, da resposta vivencial

e emotiva253. Com isso, o autor quer dizer que há uma necessidade de transformar

os próprios sentimentos de acordo com o que Deus representa realmente diante do

mal. Se Deus revela como antimal, devem ser eliminados os mal-entendidos, quer

seja no âmbito do espontâneo ou do teológico, que afirmam o contrário. Por

exemplo, expressões como: “por que Deus me manda isso?”, “por que permite

que isso aconteça?”, “isso aconteceu porque foi da vontade de Deus”, expressam

uma imagem deturpada de Deus; algo que Deus não é. Trata-se de expressões que

revelam como Deus é sentido e experimentado pela pessoa. Estas experiências de

imagens negativas de Deus provocam o ressentimento contra Ele e até mesmo o

ateísmo declarado. Por isso, é incoerência crer em Deus e não acreditar que Ele

está nos ajudando contra o mal. Daí que a vivência ou a experiência de Deus deve

estar em coerência com a certeza maior da fé cristã, a saber: Deus não é inimigo

das realizações humanas; Deus está sempre com o ser humano, lutando contra o

mal, e encaminhando esse ser para sua realização definitiva.

251 Cf. Ibid., p. 255-258. 252 Ibid., p. 255. 253 Cf. Ibid., p. 258-264.

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Conclusão

Todo este percurso transcorrido no capítulo teve como objetivo expor uma

outra visão da fé cristã bem diferente daquela apresentada pelo ateísmo

humanista. Longe de afirmar a negação do humano, esta fé, tal como pudemos

perceber na reflexão teológica de Andrés Torres Queiruga, consiste na afirmação

de Deus e na afirmação do humano. A exposição da reflexão teológica deste autor,

a partir de alguns temas fundamentais, nos ajudou a ver que o dualismo entre

Deus e o ser humano não faz parte do fundamento ou da essência do cristianismo.

O primeiro tema que apresentamos foi o dado fundamental da fé cristã: a

revelação de Deus em e por Jesus de Nazaré. Constatamos que o autor

compreende essa fé como essencialmente valorizadora do humano, pois em e por

Jesus Cristo, Deus nos é revelado em relação profunda com o humano. Ora, em

Jesus, a divindade se manifesta humanamente. O divino e o humano em Jesus se

articulam perfeitamente. Nele não encontramos um homem suplantado pelo

divino nem um Deus suplantado pelo humano. Encontramos o humano divinizado

e o divino humanizado. Por isso, em Jesus de Nazaré, Deus se revela na

profundidade da existência humana. Mas não numa existência qualquer e, sim,

numa existência orientada profundamente para Deus e altamente comprometida

com a promoção da vida dos homens, sobretudo dos pobres. Além disso, Deus nos

é revelado por Jesus. Ao viver uma relação de profunda confiança e obediência a

Deus como Abbá, Jesus nos revela um Deus de amor incondicional pelo ser

humano. Destarte, na revelação de Deus, em e por Jesus, nada podemos encontrar

que desvalorize o humano. Pelo contrário, trata-se de uma revelação que mostra

que o divino somente se afirma a partir da afirmação do humano. Por isso,

qualquer visão da fé cristã que a considere como negação do humano em função

da afirmação de Deus consiste numa visão equivocada ou num grande mal-

entendido.

O segundo tema que abordamos foi o da relação entre Deus, o mundo e o

ser humano. Ao contrário de uma visão que não consegue conciliar o dado da

autonomia das realidades físicas e da liberdade humana com a existência de Deus,

pudemos ver, com Torres Queiruga, que é possível afirmar a existência de Deus e,

ao mesmo tempo, falar de sua relação com o mundo e com o ser humano sem ferir

o dado da autonomia apregoado pelo paradigma moderno. Pois Deus não age

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arbitrariamente de modo intervencionista no mundo e na existência dos homens e

mulheres. Se assim de fato fosse, poderíamos com razão acusar o Deus pregado

pelo cristianismo como desrespeitoso da autonomia da natureza e da liberdade

humana. No entanto, conforme pudemos averiguar, para este teólogo, Deus não

está fora do mundo. Está nos dinamismos próprios da natureza e no mais íntimo

de cada pessoa. Sua presença transcendente – e não meramente categorial - é o

que possibilita o dinamismo do ser e da existência. Por isso, não se trata uma

presença neutra ou arbitrária, mas uma presença-dinâmica que, como tal,

possibilita o existir e a realização da criação, especialmente da vida humana.

Assim, a presença-atuação de Deus é presença criadora e salvadora. Deste modo,

Torres Queiruga nos mostra que a fé cristã ao afirmar a existência de Deus como

criador e salvador não nega, em hipótese alguma, o humano. Pelo contrário,

afirma radicalmente a autonomia do mundo e a liberdade de cada pessoa.

O terceiro tema que abordamos foi o da revelação divina. Vimos que o

autor compreende a revelação como “maiêutica histórica”, ou seja, como

manifestação máxima de Deus na história e como captação progressiva dessa por

parte do ser humano. Assim, supera o mal-entendido que concebe a revelação

como apresentação arbitrária de Deus e mostra como esta contribui para a

realização humana, pois, na medida em que a pessoa descobre o verdadeiro rosto

de Deus, se sente interpelada a vivenciar a sua humanidade com mais

profundidade. Desta forma, o cristianismo se apresenta como caminho de

humanização, visto que em Jesus Cristo se deu a culminância da percepção

humana de Deus. O Deus revelado e captado de modo insuperável em e por Jesus

se torna para todos os que professam a fé cristã interpelação à humanização à luz

de Jesus de Nazaré. Neste sentido, a revelação divina é condição para a afirmação

e o desenvolvimento do ser humano.

Por fim, o quarto tema que consideramos da teologia de Torres Queiruga

foi o do teodicéia, ou seja, o discurso sobre Deus diante da realidade do mal. Ora,

o mal se apresenta como a realidade que suscita o questionamento sobre a

existência de Deus ou sobre a sua bondade ou seu amor. A grande pergunta que se

levanta diante da realidade do mal, considerando a existência de Deus, é a

seguinte: Deus é o responsável pelo mal? Qualquer resposta que seja afirmativa

não deixa de apresentar um Deus que se revela inimigo do ser humano. Por isso, a

única resposta que o dado revelado possibilita é a negativa. Deus não é o

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responsável pelo mal. Neste sentido, vimos que Queiruga consegue mostrar que é

impossível responsabilizar a Deus pela existência do mal no mundo, pois esse é

uma possibilidade da finitude do ser criado. Partindo de Jesus de Nazaré, este

teólogo afirma, além do mais, que Deus é antimal, pois ele está ao nosso lado

contra o mal e nos encaminha à realização definitiva, à salvação, à vitória total

sobre ele. Deste modo, nos mostra que a fé cristã, mesmo diante da realidade do

mal, não nos apresenta um Deus rival do homem. Ao contrário, a fé cristã diante

do mal, nos apresenta um Deus ao lado de cada pessoa contra o mal.

Portanto, com esta exposição pudemos perceber que a fé cristã, para

Torres Queiruga, não contraria o dado da afirmação do ser humano. Pelo

contrário, para ele, essa fé, embora possa ser vítima de interpretações errôneas e

deturpadoras, se assenta sobre o critério do humanum. A revelação de Deus em e

por Jesus, não menospreza a condição humana nem exige de cada homem e

mulher uma renúncia de sua humanidade. No dado fundamental da fé cristã, o

humano encontra o sentido de sua identidade e, ao mesmo tempo, o caminho para

sua realização.

Sendo assim, a reflexão de Torres Queiruga nos auxilia a concluir que o

cristianismo é, essencialmente, afirmação e possibilidade de realização do ser

humano, pois não se trata de teoria e sim de um modo de existir tal como o de

Jesus de Nazaré. Por isso é que no cristianismo não devemos encontrar nenhuma

explicitação teológica nem atitudes que contrariem o dado da humanização.

Qualquer elemento do cristianismo que se apresente como negação do humano ou

como infantilizante e alienante não provém de Jesus de Nazaré nem da revelação

divina que acontece nele e por ele.

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5. A fé cristã como práxis histórico-social No capítulo anterior nos dedicamos a apresentar alguns temas da reflexão

teológica de Andrés Torres Queiruga para mostrar que a fé cristã, tal como este

autor a aborda, não pode ser acusada de realizar a alienação do humano em função

da afirmação de Deus. Pelo contrário, vimos que esta, fundamentada na revelação

de Deus em e por Jesus de Nazaré, supõe de modo imprescindível a afirmação de

Deus como afirmação do humano. Por isso, vimos também que qualquer

consideração da fé cristã como oposição ou diminuição da dignidade do humano

se revela equivocada.

Entretanto, reconhecemos que a reflexão de Torres Queiruga não é

suficiente, por si só, para mostrar que a fé cristã consiste na afirmação e

desenvolvimento do ser humano. E isto, porque este autor, embora se proponha a

dialogar com o pensamento secularizado a partir da explicitação da fé respeitando

o dado moderno da autonomia, não explicita de forma tão matizada o

compromisso histórico-social que esta fé radicalmente implica nem a sua

contribuição para a maturidade psicológica do cristão. Ora, acreditamos que a

humanização da pessoa, dito de forma superficial, implica a sua relação respeitosa

e o seu compromisso com o semelhante no âmbito pessoal e social, como também

a superação do infantilismo psicológico para o desenvolvimento de uma

personalidade amadurecida. Pensando assim, para mostrar que a fé cristã não

somente consiste na afirmação do humano, mas igualmente colabora com o

processo de humanização da pessoa, recorreremos à reflexão teológica de dois

outros autores: Jon Sobrino1 e Carlos Domínguez Morano2.

1 Jon Sobrino nasceu em Barcelona (Espanha) em 1938, mas desde 1957 até hoje, como integrante da Companhia de Jesus, reside em El Salvador. Obteve, em 1963, a licenciatura em Filosofia pela St. Louis University (Estados Unidos) e, em 1965, o título de mestre em Engenharia pela mesma universidade. Em teologia, sua área de especialização é a cristologia. Em 1975, doutorou-se em Teologia pela Hochschule Sankt Georgen, de Frankfurt (Alemanha), com a tese intitulada “Significado de la cruz y resurrección de Jesús en las cristologías sistemáticas de W. Pannenberg y J. Moltmann”. Com a publicação de sua primeira obra de cristologia, “Cristología desde América Latina: Esbozo a partir del seguimiento del Jesús Histórico”, de 1976, assume o “espírito” e a orientação da Teologia da Libertação. A sua reflexão cristológica encontra-se sistematizada, especialmente, em duas obras: “Jesucristo libertador. Lectura histórico-teológica de Jesús de Nazaret”, de 1991, e “La fe en Jesucristo. Ensayo desde las víctimas”, de 1999. É doutor honoris causa pela Université Catholique de Louvain (Bélgica) e pela Santa Clara University, na Califórnia (Estados Unidos). Foi professor de Teologia por mais de duas décadas na Universidade Centroamericana de San Salvador (UCA). Atualmente, é responsável pelo Centro de Pastoral Dom Oscar Romero, diretor da “Revista Latinoamericana de Teología” e do informativo “Carta a las

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Com o primeiro, queremos mostrar que a fé cristã, longe de alienar o

cristão do compromisso com a edificação histórica de relações sociais

promovedoras da vida, exige-o radicalmente como critério de verificação de sua

autenticidade. Com o segundo, pretendemos expor a idéia de que a fé cristã,

assumida profundamente, contribui para que o cristão desenvolva sua maturidade

psicológica ou, pelo menos, a superação do egocentrismo e da ambivalência

edipiana tão presentes na fase infantil de cada pessoa. Sendo assim, neste capítulo,

focaremos nossa atenção unicamente na abordagem teológica de Sobrino e no

próximo na de Morano.

Nossa preferência pela reflexão teológica de Sobrino se explica pelo fato

de que esta pode nos ajudar a fundamentar a dimensão práxica da fé cristã3 por

dois motivos. Primeiro, porque sua cristologia a enfatiza, partindo exatamente da

pessoa e da história de Jesus de Nazaré4. E segundo, porque sua reflexão quer ser

uma explicitação da fé a serviço de sua vivência ou de sua prática5.

Iglesias”. Desde novembro de 2006, por causa da notificação da Congregação Para a Doutrina da Fé, está proibido de lecionar em centros eclesiais ou publicar livros com o nihil obstat da autoridade eclesiática. A notificação sobre as obras de Sobrino pode ser encontrada em SEDOC, vol. 39, n. 321, março-abril de 2007, p. 471-487. 2 A apresentação deste teólogo será feita no próximo capítulo. 3 Ao falar em dimensão práxica da fé cristã queremos afirmar que esta fé exige, como critério de sua autenticidade, certas opções, ações, atitudes e comportamentos que a traduzam concretamente na realidade histórico-social. Neste sentido, a fé cristã implica necessariamente uma “prática cristã” que extrapola as práticas devocionais e os ritos litúrgicos. Trata-se de uma prática que historiciza aquilo em que se acredita: a pessoa e a história de Jesus Cristo. Isto significa dizer que assumir a fé cristã consiste em configurar a existência à luz de Jesus de Nazaré, assumindo o que norteou a sua vida e procurando concretizar aquilo que ele mesmo procurou realizar: o Reino de Deus. Por conseguinte, para que a fé cristã possa ser vista e assumida não como alienação, mas como atuação histórico-social em favor do estabelecimento de relações respeitosas entre os seres humanos, deve-se mostrar que Jesus de Nazaré esteve implicado radicalmente com a história e comprometido com a edificação de relações sociais que pudessem oferecer vida, dignidade e justiça às vítimas de uma configuração social desumana e desumanizante. O que queremos dizer é que só podemos determinar o específico do agir cristão a partir do específico do agir do Deus humanizado em Jesus de Nazaré. 4 A cristologia de Sobrino configura-se como “cristologia latino-americana”. Trata-se de uma cristologia que se diferencia da reflexão cristológica européia tradicional de orientação descendente, pois não parte do “Cristo da fé”. Pelo contrário, assume a orientação ascendente da cristologia européia contemporânea, porque parte metodologicamente do “Jesus histórico”. Neste sentido, é devedora em muitos conceitos e matizações da cristologia européia atual, mas se distancia e se distingue desta por causa de seu ponto de partida hermenêutico e por causa de sua finalidade. A cristologia de Sobrino possui três pontos de partida. Um é o ponto de partida real, que consiste na fé total em Jesus Cristo. Outro é o ponto de partida hermenêutico, que é o pobre latino-americano. E, por fim, o outro é o ponto de partida metodológico, que consiste no Jesus histórico, especialmente a prática de Jesus e o espírito com que a executou. 5 A cristologia de Sobrino é elaborada tendo em vista alcançar três objetivos. O primeiro consiste na apresentação da “verdade de Jesus Cristo a partir da perspectiva da libertação”, isto é, pretende apresentar um Cristo que seja aliado da libertação dos oprimidos da sociedade, do mysterium liberationis, e não da opressão e da exclusão, do mysterium iniquitatis. É, por causa disso, que privilegia a apresentação de Cristo sob o título de “Libertador”. O segundo objetivo diz respeito à

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Precisamente, neste capítulo, nos dedicaremos abordar os fundamentos

cristológicos, apresentados na reflexão de Sobrino, que sustentam a fé cristã como

compromisso histórico-social com a edificação de um mundo mais humano e

justo. Em outros termos, abordaremos aqueles temas cristológicos da teologia de

Sobrino que podem fundamentar a dimensão práxica da fé cristã, a saber: o Reino

de Deus anunciado e realizado por Jesus; sua relação com Deus; sua práxis

profética; sua morte; sua ressurreição e o seguimento exigido por ele.

O capítulo será dividido em seis seções. Cada tema escolhido será

apresentado numa seção específica. Deste modo, o capítulo será assim dividido.

Na primeira seção abordaremos o tema do Reino de Deus como a realidade central

da missão de Jesus. Na segunda, trataremos da compreensão que Jesus tinha a

respeito de Deus e como esta determinou suas ações e sua vida. Na terceira,

focalizaremos a prática profética realizada por Jesus em nome de Deus e de seu

Reino. Na quarta, daremos destaque à morte de Jesus como conseqüência de seu

compromisso histórico-social com a vontade de Deus e veremos também o

sentido libertador desta morte, sobretudo, para os injustiçados e oprimidos deste

mundo. Na quinta, trataremos do tema da ressurreição de Jesus procurando

considerá-la como mensagem de esperança para as vítimas de um mundo

desumano e como uma das mensagens que fundamenta o agir comprometedor do

cristão com o estabelecimento de relações sociais mais humanas. E na sexta seção,

apresentaremos o seguimento de Jesus Cristo como pressuposto fundamental da

identidade do ser cristão. Ora, com tudo isto, queremos expor a idéia de que o

cristianismo na sua essência não se fundamenta na alienação social nem a

proporciona.

legitimação, ao incentivo e à realização da práxis libertadora, por parte dos cristãos, em favor dos pobres latino-americanos. Em outras palavras, este objetivo consiste em apresentar a totalidade de Cristo, a partir do Jesus histórico, para que o cristão prossiga a história de Jesus, assumindo sua prática na atualidade. Por causa disso, pode-se afirmar que esta cristologia tem como objetivo o seguimento de Jesus, pois, para Sobrino, este significa o prosseguimento da prática de Jesus. O terceiro objetivo diz respeito ao discernimento histórico-teológico da vontade de Deus para o mundo. Quer dizer, esta cristologia busca colaborar para que os cristãos tenham conhecimento sobre o que é a libertação e o que é a opressão, sobre quem é o Deus da vida e quem são os ídolos da morte, sobre o que é o Reino de Deus e o que é o anti-reino.

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5.1. A missão de Jesus: o Reino de Deus 6

Para Sobrino, a vida de Jesus “foi uma vida descentrada e centrada em

torno de algo distinto de si mesmo”7. O centro de sua vida foi o Reino de Deus8.

Com efeito, esta realidade última na qual ele centralizou sua atividade não

consistiu em algo que o alienou de si mesmo nem o alienou da práxis histórico-

social. Pelo contrário, ao colocar-se em função do Reino, Jesus expressou a sua

opção fundamental de estar a serviço, livremente, da “soberania real de Deus”

assumindo uma determinada atuação na sociedade.

Mas o que significou, precisamente, para Jesus, o Reino e como ele

procurou estar a sua disposição? Para Sobrino, a resposta não é fácil, porque o

próprio Jesus, embora tenha pregado sobre o Reino diversas vezes, jamais o

definiu9. Mas para chegar a uma resposta, Sobrino se propõe a averiguar o que,

provavelmente, Jesus teria compreendido a respeito da referida realidade, a partir

de três caminhos de investigação10: 1) O caminho nocional, que consiste em

investigar a compreensão de Jesus a respeito do Reino, comparando-a com as

noções prévias desta realidade encontradas no Antigo Testamento e no seu tempo;

2) O caminho do destinatário, que consiste em deduzir o que Jesus entendia por

Reino a partir dos destinatários privilegiados de sua pregação (os pobres); 3) O

caminho da prática, que diz respeito à investigação do que Jesus poderia ter

compreendido a respeito desta realidade, a partir do conjunto de sua atividade, ou

seja, das suas palavras e dos seus atos. Vamos, a seguir, apresentar a investigação

de Sobrino a partir destes três caminhos.

6 O tema do Reino de Deus é bastante abordado na teologia de Sobrino, cf. SOBRINO, J. Cristologia a partir da América Latina, Petrópolis: Vozes, 1983, p. 61-88, 360-366; Id. Jesus na América Latina. Seu significado para a fé e a cristologia. São Paulo: Loyola, 1985, p. 121-143; Id. Jesus, o libertador. A história de Jesus de Nazaré. Petrópolis: Vozes, 1996. Coleção Teologia e Libertação, II/3, p. 105-201; Id. Espiritualidade da libertação. Estrutura e conteúdos. São Paulo: Loyola, 1992, p. 141-157; Id. Fora dos pobres não há salvação. Pequenos ensaios utópicos-proféticos. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 121-145; Id. Centralidad del Reino de Dios en la Teología de la Liberación. In: ELLACURÍA, I. – SOBRINO, J. (Orgs.). Mysterium Liberationis. Tomo I. Madrid: Trotta, 1990, p. 467-510; Id. Cristologia sistemática. Jesucristo, el mediador absoluto del Reino de Dios. In: Ibid., p, 575-599. 7 Id. Jesus, o libertador, p. 105. 8 Para Sobrino, só podemos conhecer o Jesus histórico ou a história de Jesus considerando aquilo que norteou toda a sua vida, a saber: o Reino de Deus. Neste sentido, afirma expressamente o seguinte: “Jesus deve ser compreendido a partir de algo distinto dele, a partir do Reino de Deus. A partir dali sua pessoa aparece como alguém cuja essência é estar ‘a serviço de’, cuja essência é relacional e não absoluta em si mesmo”. Id. Cristologia a partir da América Latina, p. 71-72. 9 Cf. Id. Jesus, o libertador, p. 108. 10 Cf. Ibid., p. 108-109.

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5.1.1. O Reino de Deus no AT e a compreensão de Jesus a se u respeito 11

A compreensão que Jesus teve de Reino de Deus, segundo Sobrino, estava

relacionada a uma noção prévia encontrada com freqüência no Antigo Testamento

e na própria expectativa do povo em sua época12. Isto quer dizer que Jesus não

criou a expressão “reino de Deus”, nem a sua expectativa, nem conferiu a esta um

significado que contradissesse a sua noção prévia. Pelo contrário, além de ter feito

uso desta expressão, bastante comum em sua cultura, ele assumiu o seu sentido

fundamental e o enriqueceu com a sua compreensão.

Sobrino enfatiza que Jesus assumiu uma visão a respeito do Reino de Deus

que não tinha nada a ver com a de uma realidade celestial em oposição radical a

este mundo e à história humana. Isto porque a noção de Reino de Deus, tanto no

Antigo Testamento como na expectativa do povo na época de Jesus, dizia respeito

à ação soberana de Deus na história e em favor do seu povo, Israel.

No Antigo Testamento, segundo a análise de Sobrino, a noção

fundamental que deu origem à expressão “Reino de Deus” (em hebraico: malkuta

Jahweh; e em grego: basileia tou theou), que apareceu tardiamente com a

literatura apocalíptica, consistia na confissão de fé, feita por Israel ao longo de

toda sua história, de que Javé, por intervir na história e em favor de seu povo, é

soberano, é rei13. Com efeito, no AT a “Realeza de Javé”, segundo Sobrino, era

entendida como o governo de Deus em ação a realizar a transformação da

realidade histórico-social má e injusta em outra boa e justa14.

Nosso autor afirma que se deve insistir em três coisas para se

compreender bem o que o AT compreendia por “Realeza de Deus”15. A primeira

diz respeito à sua incidência real na história. A “Realeza de Deus” no AT não foi

identificada com um sonho trans-histórico, e, por isso, produtora da resignação;

pelo contrário, tratou-se da ação histórica de Deus e, portanto, estava relacionada

à esperança histórica de que Deus poderia mudar a realidade má e injusta em

realidade boa e justa. A segunda coisa é que a “Realeza de Deus” não era vista

como algo individualizante, mas, sim, como uma realidade fundamentalmente

11 Cf. Ibid., p. 110-123. 12 Cf. Ibid., p. 110-116; Id. Cristologia a partir da América Latina, p. 62-67; Id. Jesus na América Latina, p. 126-132. 13 Cf. Id. Jesus, o libertador, p. 110-111. 14 Cf. Ibid., p. 111. 15 Cf. Ibid., p. 112-113.

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coletiva. Dizia respeito à esperança popular de que Deus poderia realizar a

transformação das relações sociais, bem como de toda a história. E a terceira coisa

é que a “Realeza de Deus” era concebida como boa-notícia diante das situações de

morte institucionalizada (anti-reino); ou seja, uma realidade que não surgia do

nada, mas, sim, a partir e contra a realidade de injustiça e opressão. Por isso,

tratou-se de uma expectativa que gestava uma esperança ativa de luta contra o que

contrariava a vontade de Deus.

Para Sobrino, foi com a literatura profética e com a literatura apocalíptica

que esta compreensão de “Realeza de Javé” como realidade histórica, coletiva e

transformadora foi mais acentuada16. Isto porque estas literaturas, que surgiram

em momentos críticos da história de Israel, apresentaram a “Realeza” como

expectativa de que a ação de Deus iria transformar radicalmente a história. Na

literatura profética, a “Realeza” consistia naquela realidade histórico-social a ser

instaurada pelo Deus, visto como Pai amoroso (Os 11,1), como Esposo fiel (Os

2,18) e como Mãe consoladora (Is 66,13). Tratava-se da superação do mundo

social israelita de opressão e de injustiça por uma nova ordem social que realizaria

a reconciliação entre os homens. Reconciliação que se expressaria, sobretudo, pela

implantação do direito e da justiça aos pobres (cf. Jr 22,13-16; Os 4,16).

Na literatura apocalíptica, por sua vez, a “Realeza de Javé” era concebida

como a expectativa da realização da justiça de Deus que iria renovar toda a

realidade, acabando definitivamente com a injustiça e o sofrimento. Nesta

literatura, a visão de “Realeza” estava relacionada à crença na “ressurreição dos

mortos”. Compreendia-se que no final dos tempos, os injustiçados, os oprimidos e

os pobres iriam ressuscitar para gozarem do novo eón realizado por Deus.

Com efeito, tanto na literatura profética como apocalíptica, a “Realeza de

Javé” dizia respeito à expectativa de um agir histórico renovador de Deus.

Tratava-se de uma expectativa que teria surgido a partir do descontentamento com

a concreta realidade histórica. A “Realeza” aparecia, assim, como fruto da

esperança, sobretudo, dos pobres na ação de um Deus justo que reinaria tanto

sobre Israel como também sobre todo o mundo.

Na época de Jesus, segundo Sobrino, a concepção de “Reino de Deus”

(basileia tou theou) não divergia da do AT, especialmente da literatura profética e

16 Cf. Id. Jesus na América Latina, p. 129-132; Id. Cristologia a partir da América Latina, p. 63-67.

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apocalíptica. Era também concebida como expectativa da ação histórica iminente

de Deus em transformar a realidade e, sobretudo, dizia respeito à expectativa de

libertação de Israel do domínio romano. Entretanto, esta expectativa divergia entre

os vários grupos e movimentos religiosos quanto ao seu conteúdo e quanto ao

modo como ela se realizaria17. Para os essênios, o Reino seria a instauração,

depois da vitória apocalíptica de Deus sobre as forças do mal, de um mundo novo

para o “resto de Israel”. Para os fariseus, seria a instauração, acelerada pela

observância rigorosa da pureza legal, de uma teocracia, na qual a lei poderia ser

observada integralmente por todos. Para os saduceus, o Reino seria uma teocracia

centralizada em torno do templo de Jerusalém sem a influência de um poder

estrangeiro. Para os zelotes, seria uma teocracia autônoma conquistada pela

revolução armada. Para o movimento do Batista, seria o “juízo de Deus”, a

manifestação escatológica da “ira de Deus”, que devia ser preparada pela

conversão, expressada simbolicamente pelo rito batismal. Para os pobres e

marginalizados, por sua vez, o Reino seria o fim, realizado por Deus, da injustiça

e da opressão sócio-político-religiosa.

Para Sobrino, a compreensão que Jesus tinha do Reino se aproximava mais

do conteúdo da expectativa do movimento do Batista e dos pobres, e se

distanciava da noção dos fariseus, dos essênios, dos saduceus e dos zelotes.

Segundo nosso autor, o entendimento de Jesus concernente ao Reino se

relacionava profundamente com o pensamento profético e apocalíptico, além de

ser influenciado pela pregação de João Batista18. Do pensamento profético, Jesus

assumiu a noção do Reino como ação de Deus em favor dos pobres e contra a

injustiça geradora da pobreza. Do pensamento apocalíptico, assumiu a noção de

que o Reino consistiria no irromper de Deus realizando uma nova ordem histórica.

Da pregação do Batista, herdou a mensagem da proximidade deste Reino e sua

exigência de arrependimento e conversão (cf. Mc 1,14-15; Mt 4,17).

Entretanto, Sobrino afirma que Jesus, além de ter se inserido na tradição

nocional a respeito do Reino de Deus do AT e de seu tempo, conferiu a esta

expectativa a sua própria compreensão.

17 Cf. Id. Jesus, o libertador, p. 113-114. 18 Cf. Ibid., p. 110-123.

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O específico da noção de Jesus a respeito do Reino de Deus, de acordo

com Sobrino, se pauta em três pontos19. O primeiro se deduz da pregação de Jesus

que afirmava a proximidade do Reino (cf. Mc 1,15; 9,1; Mt 4,17), e, até mesmo, a

chegada desta realidade coincidindo com o exercício de sua atividade missionária

(cf. Lc 17,21; Mt 12,28). Com efeito, a pregação de Jesus sobre a proximidade do

Reino nos mostra que, para ele, este não era somente objeto de esperança, mas de

certeza, porque se tratava de uma realidade cuja vinda seria iminente. Ao pregar

essa proximidade, Jesus, provavelmente, considerava que a “hora escatológica de

Deus” se daria brevemente durante a sua vida ou no final dela (cf. Mt 10,23; Mc

13,10; 9,1). Mas, diferentemente de João Batista que concebia esta “hora

escatológica” como realização da ira de Deus, Jesus a viu como superação

definitiva do anti-reino com a chegada salvífica de um Deus misericordioso.

O segundo ponto específico da compreensão de Jesus é que, para este, o

Reino consistia na pura iniciativa de Deus, como dom e graça. Diferentemente dos

fariseus, dos essênios e dos zelotes que acreditavam que esta realidade chegaria

como resposta à ação dos homens, Jesus concebeu o Reino como resultado da

ação gratuita de Deus. Para ele, a aproximação do Reino acontecia não pela

iniciativa humana, mas pela iniciativa divina. Por isso, simplesmente afirmou: “o

Reino de Deus já se aproxima”. E se aproxima pela iniciativa de Deus, como um

presente. Por isso, a vinda do Reino, para Jesus, consistia em algo que o ser

humano podia apenas pedir e aceitar (cf. Mt 6,10; Lc 11,2).

No entanto, Sobrino argumenta que Jesus não entendia a gratuidade do

Reino em oposição à ação humana. O Reino não foi concebido por Jesus como

uma realidade “caída do céu”, sem exigir qualquer esforço humano. O próprio

Jesus não o aguardou apaticamente. Pelo contrário, realizou uma série de

atividades relacionadas ao Reino. Atividades executadas, porque concebeu o

Reino como manifestação salvífica e gratuita de Deus que exigia um

compromisso do ser humano para que esta pudesse se realizar historicamente.

Jesus também exigiu dos ouvintes de suas pregações sobre o Reino de Deus

atitudes relacionadas a esta realidade. Para Jesus, o Reino exigia radicalmente a

19 Cf. Ibid., p. 118-123.

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conversão, metanóia, ou seja, a superação do pecado pela conduta norteada pela

abertura a Deus20.

E o terceiro ponto sobre a especificidade da compreensão de Jesus

concernente ao Reino, segundo Sobrino, é que, para ele, este consistia em ser boa-

notícia. O evangelho de Mateus apresenta o Reino anunciado por Jesus como “eu-

aggelion” (cf. Mt 4,23; 9,35; 24,14). Ora, mesmo que o próprio Jesus não tenha

atribuído esse qualitativo ao Reino, mas tenha sido atribuição do evangelista, isto

não deixa de revelar o que Jesus compreendia a respeito do Reino. De acordo

como nosso autor, a partir destas referências mateanas é possível dizer que, para

Jesus, o Reino era visto como boa-notícia entendida como proximidade de um

Deus bom que se aproximava unicamente para salvar.

Do que foi dito até aqui, fica claro que Jesus não criou nem a expectativa

sobre o Reino nem atribuiu a ela um sentido totalmente novo, mas se inseriu na

tradição de esperança de Israel e a enriqueceu concebendo o Reino como algo

próximo, gratuito, e como boa-notícia. Agora, veremos, com Sobrino, o que se

pode afirmar a respeito do Reino de Deus a partir dos destinatários da pregação de

Jesus.

5.1.2. A compreensão de Jesus a respeito do Reino a partir dos destinatários de sua pregação 21 Sobrino afirma que os destinatários específicos da pregação de Jesus a

respeito do Reino de Deus, a saber, os pobres, nos permitem dizer algo mais sobre

o que representou esta realidade para ele. Em verdade, os pobres revelam outra

fundamental novidade de Jesus a respeito da compreensão do Reino: a

parcialidade.

Fundamentado em análises exegéticas, Sobrino assevera que a missão de

Jesus se encontrou relacionada diretamente com os pobres. De fato, algumas

perícopes evangélicas mencionam que o próprio Jesus compreendia sua missão

como dirigida aos pobres (Cf. Lc 4,18; 6,20; 7,22; Mt 11,5). É verdade que não

compartilhou da mentalidade sectária dos movimentos religiosos de sua época no

que diz respeito aos beneficiários da salvação. Pelo contrário, ele se interessou

20 Sobre a relação entre o Reino de Deus, pecado e conversão, cf. Id. Cristologia a partir da América Latina, p. 72-82. 21 Cf. Id. Jesus, o libertador, p. 123-135.

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pela salvação de todos. Prova disso é que não excluiu ninguém da possibilidade de

fazer parte do Reino de Deus. No entanto, dirigia sua pregação sobre o Reino

diretamente aos pobres.

Para esclarecer quem foram os destinatários da pregação de Jesus, Sobrino

apresenta a compreensão que os sinóticos têm de pobres. Estes indicam dois

sentidos para pobres. Primeiro, “pobres são os que gemem sob algum tipo de

necessidade básica na linha de Is 61,1s”22, ou seja, “são os famintos e sedentos, os

nus, os forasteiros, os enfermos, os prisioneiros, os que choram, os que estão

oprimidos por um peso real (Lc 6,20-21; Mt 25,35s)”23. Em linguagem atual, os

pobres são aqueles que não têm acesso ao mínimo para poder sobreviver; são os

pobres econômicos. No segundo sentido, por pobres se entende também aqueles

que são desprezados pela sociedade vigente, a saber: os tidos por pecadores, os

publicanos, as prostitutas, os simples, os pequenos, os menores, os que exercem

profissões desprezadas. Neste sentido, pobres são os marginalizados, aqueles que

têm sua dignidade negada. Em termos atuais, estes são os pobres sociológicos,

“no sentido de que lhes é negado o ser socius (símbolo de relações inter-humanas

fundamentais) e, com isso, o mínimo de dignidade”24. Ora, nos dois sentidos, os

pobres que aparecem nos evangelhos constituem uma realidade provocada pela

injustiça social. “Pobres são os que estão embaixo na história e os que são

oprimidos pela sociedade e segregados por ela; não são, portanto, todos os seres

humanos, mas os que estão embaixo, e este estar embaixo significa ser

oprimido”25.

Para Sobrino, foi para estes dois tipos de pobres que Jesus pregou a

proximidade do Reino de Deus, porque, para Jesus, esta realidade era vista como

pertencente primordialmente a eles26.

22 Ibid., p. 125. 23 Ibid. 24 Ibid., p. 126. 25 Ibid. 26 Sobrino explica que o Reino pode ser dito como pertencente aos pobres não porque eles podem de alguma forma conquistá-lo ou merecê-lo como recompensa pela realização de alguma atividade virtuosa, mas, sim, pelo simples fato de serem pobres. O Reino é dos pobres, porque a ação salvífica de Deus é libertadora. Sendo os pobres as vítimas da injustiça social, eles são os que necessitam em primeiro lugar da afirmação da vida e da libertação integral (que leva em conta a libertação da miséria material) ou da salvação a serem realizadas por Deus. O Reino é a gratuita ação de Deus em favor dos injustiçados e oprimidos da sociedade; é a ação de Deus contra o anti-reino e suas conseqüências. Por isso, consiste em ser boa-notícia para os pobres (cf. Mt 11,5; Lc 4,18), porque diz respeito à libertação da situação que produz a pobreza. Cf. Ibid., p. 124-125.

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Para Sobrino, quando Jesus anunciava que o Reino de Deus se aproximaria

para os pobres, ele estava revelando que compreendia o Reino como algo parcial.

Ora, Jesus, embora considerasse a universalidade do Reino ou possibilidade de

todos fazerem parte dele, entendia que este se caracterizava fundamentalmente

pela sua parcialidade. Para Jesus, o Reino seria parcial, porque a aproximação de

Deus não seria genericamente universal, mas uma aproximação que teria como

destinatário privilegiado, os pobres.

Jesus não só anunciou o Reino de Deus aos pobres, mas também agiu

diretamente em seu favor. Por isso, a sua atividade em favor deles, segundo nosso

autor, também pode nos revelar algo mais da compreensão de Jesus a respeito do

Reino. É o que veremos a seguir.

5.1.3. A compreensão de Jesus a respeito do Reino a partir de sua atividade 27

Sobrino destaca que Jesus pregou a proximidade do Reino, mas não o

aguardou passivamente. Sua esperança não foi uma esperança inerte e inoperante,

mas ativa. Jesus colocou em prática o que compreendia sobre o Reino. Os

milagres, as expulsões de demônios, a acolhida dos pecadores, suas pregações em

parábolas, suas refeições simbólicas, tudo isso diz respeito ao modo como Jesus se

propôs a realizar o Reino na vida dos pobres. Jesus se apresentou como

anunciador e iniciador do Reino de Deus. Vejamos, a seguir, com Sobrino, como

cada uma dessas atividades está relacionada com o Reino e o que elas revelam de

sua compreensão a respeito dessa realidade.

Nosso autor nos recorda que os evangelhos sinóticos testemunham que

Jesus realizou diversos milagres que são confirmados hoje em sua historicidade

pela exegese bíblica. Com efeito, Jesus realizou alguns milagres, sobretudo na

primeira grande etapa de seu ministério público, e atribuiu a eles um significado

conexo com sua compreensão de Reino de Deus.

Para se evitarem mal-entendidos, Sobrino afirma duas coisas a respeito dos

milagres nos evangelhos. A primeira é que estes não são vistos como violação das

leis da natureza por um Deus intervencionista. Como o judeu entendia a natureza

como uma realidade aberta à ação de Deus, o milagre deve ser visto como ação

27 Cf. Ibid., p. 135-159.

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salvífica poderosa de Deus se realizando no mundo. A segunda coisa é que não se

deve considerar, de modo fundamental, os milagres como algo que possa

expressar a descontinuidade de Jesus com os homens, ou seja, como ação que

permita identificar a sua divindade. Sobrino recorda que os evangelhos

compreendem os milagres como sinais libertadores da presença do Reino. Nos

relatos evangélicos a tradução grega de milagres não é teras nem thauma, termos

que indicam o aspecto extraordinário de um fato incompreensível, mas semeia

(sinais), dynameis (atos de poder) e erga (obras). Ao utilizar estes termos para

expressar os milagres de Jesus, os evangelhos querem mostrar que com ele o

Reino de Deus se concretiza parcialmente na história. Seus milagres constituem a

pregação sobre o Reino em atos; “neles aparece visivelmente a proximidade de

Deus”28. Por isso, são compreendidos como sinais benéficos e libertadores; são

sinais em favor dos pobres e contra o anti-reino.

Se os evangelhos apresentam os milagres de Jesus associados ao Reino de

Deus, é porque, provavelmente, o próprio Jesus assim os tenha interpretado. Neste

sentido, Sobrino afirma que Jesus “deu grande importância aos milagres, pois

eram sinal da proximidade do Reino”29. Prova disso é que nos evangelhos, Jesus

não aparece como um taumaturgo profissional. Ele realizava o milagre a partir da

fé daqueles que o pediam e como reação a uma situação de opressão, injustiça e

morte. Os seus milagres não eram como obras prodigiosas, mas obras em favor de

pessoas sofredoras e oprimidas, que confiavam incondicionalmente na ação

salvífica de Deus (fé); obras que realizavam a “transformação da realidade má em

outra boa”30; obras que expressavam a misericórdia e a solidariedade de Jesus

com os pobres; obras que constituíam uma das formas de Jesus responder às

conseqüências do anti-reino.

Ora, para Sobrino, a provável interpretação que Jesus conferiu aos seus

milagres como sinais libertadores do Reino revela que, para ele, o Reino de Deus

aparecia como uma realidade que se realizava, a partir de sua própria atividade, na

vida dos pobres (cf. Mt 11,5). Para Jesus, no entender de nosso autor, o Reino não

acontecia de forma mágica; acontecia, sim, quando se dava a superação da

situação negativa que oprimia e diminuía a vida dos pobres. Com efeito, Jesus via

28 Id. Cristologia a partir da América Latina, p. 70. 29 Id. Jesus, o libertador, p. 139. 30 Id. Jesus na América Latina, p. 133.

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os seus milagres como sinais do Reino, porque, com eles, a ação libertadora e

sanadora de Deus, contra os males que afetavam os pobres no seu cotidiano, se

realizava. Jesus tinha consciência que fazia o Reino acontecer quando agia contra

o anti-reino realizando seus milagres.

A visão de Jesus a respeito do Reino de Deus, como realidade que se

aproxima em confronto com o anti-reino, fica ainda mais clara, segundo Sobrino,

a partir dos exorcismos que ele realizou. Inserido numa cultura que acreditava na

influência dos demônios sobre o ser humano, Jesus, compartilhando desta mesma

visão, se colocava em luta contra os demônios, porque os via em relação com o

poder do mal e com o anti-reino. Neste caso, os evangelhos testemunham que

Jesus expulsou demônios. No entanto, ele não aparece neles como exorcista

profissional. Os evangelhos descrevem os exorcismos de Jesus com os termos

ekballo (mandar, expulsar) e epitimao (ameaçar), e não com o termo exorkidzo,

utilizado para designar a função de bruxos e magos. Para os evangelhos, Jesus não

expulsou demônios sem mais nem menos. Ele os expulsava por causa do Reino de

Deus. E o próprio Jesus interpretou os exorcismos que realizava como chegada do

Reino (cf. Mt 12,28). Ao realizá-los, Jesus revelava que o Reino acontecia não a

partir de uma tabula rasa, mas se aproximava diante da situação de anti-reino, do

qual os demônios eram considerados como um dos seus mediadores. Por isso,

para Jesus, a “vinda do Reino é tudo, menos pacífica e ingênua”31. Esta vinda se

processa no duelo com o anti-reino, seus ídolos e seus mediadores.

Outra atividade de Jesus que revela o que ele pensava a respeito do Reino

de Deus, de acordo com nosso autor, consiste na sua acolhida daqueles que eram

considerados pecadores. Nos evangelhos, Jesus aparece muito próximo deles. E

trata-se de uma proximidade não de juízo condenatório, mas de acolhida solidária

e libertadora.

Sobrino explica que os evangelhos sinóticos consideram dois tipos de

pecadores: aqueles cujo “pecado fundamental consiste em oprimir, pôr cargas

intoleráveis, praticar a injustiça”32 - em linguagem atual, trata-se do “opressor”; e

aqueles que são considerados “legalmente pecadores” de acordo com a

religiosidade vigente, como por exemplo, as prostitutas, os cobradores de

31 Id. Jesus, o libertador, p. 147. 32 Ibid., p. 149.

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impostos, os ladrões, os publicanos, os deficientes físicos e os leprosos – em

linguagem atual, consistem naqueles que são vítimas do preconceito excludente.

A atitude de Jesus, conforme Sobrino, foi muito diferente diante dos dois

tipos de pecadores, embora aos dois ele oferecesse a possibilidade de salvação.

Jesus não acolhia igualmente aos dois tipos. Do primeiro, exigia conversão

radical, ou seja, exigia que deixasse de realizar a opressão. Neste caso, sua

acolhida era crítica, pois não justificava a opressão realizada pelos opressores.

Mas a eles, Jesus acolhia convidando-os à conversão e à participação no Reino.

No entanto, os evangelhos mostram o quanto estes se fechavam à mensagem e à

pessoa de Jesus. Quanto ao segundo tipo, exigia que superassem a imagem de

Deus introjetada pela religião imperante; ou seja, que aceitassem a Deus não como

juiz severo, e, sim, como verdadeiro amor e salvação gratuitos.

Os evangelhos mostram que foi ao segundo tipo de pecadores que Jesus

dedicou mais atenção. Enquanto a religião oficial os excluía da manifestação da

salvação de Deus, Jesus lhes mostrava que Deus se aproxima como amor gratuito

que quer “acolher a todos aqueles que pensam que não podem se aproximar dele

por causa de seu pecado”33. Pregou a eles a imagem de um Deus que se importa

mais em acolher e perdoar, do que em condenar e castigar. Todavia, não apenas

pregou, mas também agiu de forma libertadora na vida dessas pessoas vitimadas

pelo preconceito. O fato de Jesus ter se aproximado delas, de ter acolhido-as, de

ter perdoado-as, de lhes ter pregado a vinda do Reino, consistiu em verdadeira

libertação. Pois ao agir assim, além de ter devolvido a elas a dignidade, ajudou-as

a perceberem que sua condição de pecadores perante a religião não as impedia de

experimentar o amor e a salvação de Deus. Assim, a proximidade e acolhida de

Jesus libertava intrínseca e extrinsecamente. Libertava da escravidão do pecado,

porque possibilitava a conversão da pessoa; e da exclusão, porque superava a

separação social-religiosa daquele que era rotulado como pecador.

A proximidade e acolhida de Jesus aos pecadores se articulava com a

mensagem do Reino de Deus. Jesus se relacionou com eles, porque entendia que o

Reino era gratuito, parcial e includente. Ele se aproximava dos pecadores não

porque se considerava um “confessor absolvedor” de pecados, mas porque

acreditava que ao fazer isto estaria realizando o advento do Reino. Pois, para ele,

33 Ibid., p. 149.

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o Reino se aproximava como dom de Deus que não podia ser comprado pela

observância cega das leis da religião, e se aproximava, sobretudo, para os

excluídos e oprimidos da história como perdão, libertação e salvação. E, sendo

assim, “lá onde os pecadores se deixavam acolher por Jesus, lá se tornavam

presentes os sinais da vinda do Reino”34.

Além da prática de Jesus de milagres, de exorcismos e de acolhida dos

pecadores, realizadas como sinais do Reino de Deus, também a sua pregação, no

entender de Sobrino, revela bastante sobre o que ele compreendia por essa

realidade. Os evangelhos testemunham que Jesus falou sobre o Reino de Deus em

ensinamentos, em exigências, em discursos apocalípticos, em orações e,

sobretudo, em parábolas. Aqui vamos nos concentrar apenas nas parábolas, pois é

sobre elas que também Sobrino se concentra35.

Os evangelhos sinóticos apresentam várias parábolas de Jesus sobre o

Reino de Deus. Isto revela que, embora estas possam ter sido modificadas pelas

primeiras comunidades cristãs, o próprio Jesus tenha falado sobre o Reino no

gênero lingüístico parabólico. Assim, provavelmente, as parábolas de Jesus têm

um núcleo histórico, o que mostra que Jesus procurou esclarecer o que seria o

Reino numa linguagem interpelante e de fácil acesso aos seus ouvintes.

Entretanto, não encontramos nelas definição alguma, feita por Jesus, a respeito do

Reino. Vale dizer que o gênero literário da parábola consiste “em relatos baseados

em fatos da vida cotidiana”36. Não é sua função apresentar conceitos e definições.

Sua função, segundo Sobrino, pode ser caracterizada em três pontos. Primeiro:

apresentar uma mensagem sobre determinada realidade a partir de comparações;

Segundo: exigir de seus ouvintes uma tomada de posição, a partir da própria

conclusão tirada por eles do fato relatado; Terceiro: questionar, polemizar e

criticar. Sendo assim, as parábolas de Jesus se apresentam com tríplice função:

anunciar o Reino, interpelar para sua acolhida e criticar a ideologia opressora do

anti-reino, pregada pelos seus mediadores.

Portanto, as parábolas de Jesus estão relacionadas diretamente com a sua

missão de anunciar e realizar o Reino de Deus. Sobrino lembra que a mensagem

central das parábolas é a mesma do anúncio e da prática de Jesus, a saber: “o

34 Ibid., p. 151. 35 Cf. Ibid., p. 152-157. 36 Ibid., p. 153.

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Reino de Deus se aproxima para os pobres e marginalizados, é parcial e por isso

causa escândalo”37. De certa forma, para nosso teólogo, Jesus fez uso das

parábolas para “sair em defesa dos pobres e justificar sua própria atuação parcial

em favor deles”38. De fato, as parábolas mais provocadoras foram contadas por

Jesus àquelas pessoas – as autoridades religiosas - que o criticavam por causa de

sua parcialidade para com os pobres e pecadores. Sobrino apresenta como

exemplo disso, as seguintes parábolas: as da ovelha e da dracma perdidas e do

filho pródigo (Lc 15, 2-32), contadas aos escribas e fariseus; a parábola do fariseu

e do publicano (Lc 18,9-14), contada aos que desprezavam os outros por ser

considerarem justos; e a dos dois filhos (Mt 21,28-32), dirigida aos sacerdotes e

aos anciãos do povo. Embora não falem explicitamente do Reino, afirmam a

parcialidade do Deus do Reino para com os pecadores por causa de seu amor e

misericórdia gratuitos. Além do mais, são parábolas críticas que desmascaram a

hipocrisia de seus adversários. Nelas, os fariseus, os “justos”, os sacerdotes e

anciãos do povo são acusados de se oporem ao Reino de Deus por causa de sua

mentalidade sectária e de suas atitudes opressoras e excludentes.

Além da parcialidade do Reino, as parábolas de Jesus, para Sobrino,

esclarecem outros elementos desta realidade. Algumas falam de seu caráter de

crise. Chamam a atenção para a necessidade de se fazer algo por causa da

proximidade iminente do Reino. É o caso da parábola das minas (Lc 19, 11-27),

dos talentos (Mt 25, 14-30; Lc 19,12-27), do mordomo fiel e prudente (Mt 24,45-

51; Lc 12,42-46), do porteiro que deve estar vigilante (Mc 13,33-37), das dez

virgens (Mt 25,1-13; Lc 12,35-38). Neste caso, duas outras, embora não falem

explicitamente do Reino, são essenciais para saber o que se deve fazer diante do

Reino que se aproxima. Trata-se da parábola do bom samaritano (Lc 10,29-37),

que ensina que é preciso ser misericordioso com o necessitado; e da parábola do

último julgamento (Mt 25,31-46), que ensina a atender gratuitamente ao

necessitado. Em outras palavras, a exigência fundamental de Jesus diante da

proximidade do Reino foi a de assumir a mesma práxis que ele assumiu frente aos

pobres. Ou seja, trata-se de assumir a parcialidade do Reino.

Outras parábolas revelam algo mais a respeito do Reino. Há aquelas que

afirmam que este não se dará imediatamente de forma estupenda e grandiosa, mas

37 Ibid., p. 154. 38 Ibid.

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de forma progressiva, tendo um começo muito pequeno. São as que geram

esperança, pois falam do crescimento da atuação do Reino já presente na história.

Estas parábolas são as seguintes: do grão de mostarda (Mc 4,30-32; Mt 13,31s; Lc

13,18s), do fermento na massa (Mt 13,33; Lc 13,20s), do semeador (Mc 4,3-8; Mt

13,1-9; Lc 8,4-8); e da semente que germina por si só (Mc 4,26-29). Trata-se de

parábolas que se relacionam com a realidade de Deus, pois se Deus é bom,

amoroso e misericordioso deve-se ter confiança de que ele realizará muito mais

pelos seus filhos.

Algumas outras “expressam o caráter de alegria que o Reino de Deus

produz por ser boa-notícia”39. As parábolas do tesouro escondido e da pérola

preciosa (Mt 13,44-46) falam da alegria que esse produz para aqueles que

assumem a dinâmica de sua chegada. Com estas parábolas, Jesus teria apresentado

o Reino não como algo pesado à existência, mas, pelo contrário, como algo que

alegra a vida. Para Jesus, o Reino seria incompatível com a tristeza.

Para Sobrino, é por causa dessa visão do Reino de Deus como alegria, que

Jesus, além de tê-lo pregado e o realizado com sua atividade, também o

celebrou40. E o celebrou, especialmente em forma de refeições simbólicas. De

fato, os evangelhos relatam que Jesus valorizava as refeições com os pobres e

pecadores (Mc 2,15; Lc 7,36-50), tanto que foi censurado por causa disso pelos

fariseus e escribas (Lc 15,2; Mc 2,16 e par.). Certamente, para Jesus, as refeições

com os desprezados da sociedade representavam muito mais que simplesmente a

comida. Para ele, elas eram sinais da vinda do Reino. E isto porque nelas já se

realizavam os seus ideais: a superação da exclusão, a comunhão de vidas, o

respeito, a alegria. Suas refeições celebravam a parcialidade do Reino e

interpelavam os opressores à superação da lógica do anti-reino.

Tudo isso que apresentamos até aqui mostra que, de acordo com Sobrino,

o Reino de Deus, tal como foi compreendido e assumido por Jesus, foi a motriz de

sua atividade pública em favor dos excluídos da sociedade. Ao compreender o

Reino como próximo, como dom e graça, como boa-notícia e, sobretudo, como

parcial, Jesus teria se proposto a construir novas relações entre as pessoas,

sinalizando a chegada da ação salvífica e libertadora de Deus na história. Deste

modo, sua missão não pode ser acusada de não levar em conta as relações sociais

39 Ibid., p. 156. 40 Cf. Ibid., p. 157-159.

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e o compromisso por transformá-las. Pelo contrário, esta missão, centrada no

anúncio e realização do Reino de Deus, se revela profundamente como práxis

histórico-social. No entanto, para nosso autor, não se pode fundamentar essa

práxis de Jesus unicamente naquilo que ele compreendia por Reino de Deus. É

necessário que ela seja fundamentada também na sua compreensão de Deus e no

modo como expressava a sua fé Nele. Isto porque, para Jesus, o Reino de Deus e o

Deus do Reino eram realidades que se complementavam. O “Reino dá razão do

ser de Deus como abba e a paternidade de Deus dá fundamento e razão de ser ao

Reino”41. Portanto, para não deixar incompleta a fundamentação teórica da práxis

de Jesus, abordaremos no item seguinte, pautados nos estudos de Sobrino, o que

Jesus pensava a respeito de Deus, como fez a experiência Dele e qual foi a sua

práxis fundamentada pela noção e experiência de Deus.

5.2. O Deus Pai de Jesus 42 De acordo com Sobrino, Jesus, assim como todo ser humano, teve que se

deparar com a necessidade de buscar e dar um sentido a sua vida e a sua história43.

E o sentido que ele assumiu foi um sentido religioso. Precisamente, assumiu como

sentido último de sua vida algo que considerava bom e pessoal, a saber: um Deus

a quem chamou de Pai. Os evangelhos mostram que toda sua vida esteve

centralizada em duas realidades articuladas: o Reino de Deus e Deus como Pai

(Abbá). Isto revela que a noção e a experiência de Deus para Jesus foram

fundamentais para o rumo que tomou em sua vida como anunciador e realizador

do Reino.

Entretanto, para Sobrino, somente a afirmação de que Jesus compreendeu

e fez a experiência de Deus como Pai não é suficiente, embora este dado seja

fundamental, para responder à pergunta sobre o que Jesus pensou a respeito de

Deus e que experiência fez Dele. É necessário ir mais além. Neste sentido, nosso

autor se propõe a responder quem foi Deus para Jesus analisando as noções que

pôde ter tido de Deus a partir do conjunto de suas palavras e a partir das

41 Ibid., p. 105. 42 Cf. Id. Ibid., p. 202-284; Id. Cristologia a partir da América Latina, p. 97-127, 159-190; Id. Jesus na América Latina, p. 144-189; Id. A oração de Jesus e do cristão. São Paulo: Loyola, 1981. p. 23-37. 43 Cf. Id. Jesus, o libertador, p. 202.

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“expressões externas do que foram suas atitudes internas últimas – a oração, a

confiança, a disponibilidade e a fé”44.

5.2.1. A compreensão de Jesus a respeito de Deus Para Sobrino, a compreensão de Deus que aparece no conjunto das

palavras de Jesus e em suas atitudes não é totalmente diferente das várias

tradições nocionais sobre Deus que aparecem no AT45. Ao contrário, trata-se de

uma compreensão proveniente dessas tradições. Da tradição profética provém a

visão de Jesus de que Deus é parcial e defensor dos pobres, que age contra a

injustiça e que exige conversão pessoal e interior do ser humano. Da tradição

apocalíptica, herda a visão de que Deus, como Senhor da história, ao realizar o

final dos tempos, transformará total e absolutamente essa realidade de opressão e

injustiça. Da tradição sapiencial, provém a idéia que Jesus tem de Deus como

criador e providente, “que cuida de suas criaturas e vela por suas necessidades

cotidianas, que permite que na história cresçam juntos bons e maus, deixando para

o fim a distribuição da justiça”46. E da tradição existencial das lamentações de

Jeremias, do Qohelet, de Jó e de alguns salmos, herda a visão de que a Deus só se

escuta no silêncio. Portanto, é o conjunto de tradições do AT sobre Deus que

determina a compreensão de Jesus sobre o conteúdo da realidade de Deus.

Por isso, a visão de Jesus a respeito de Deus, segundo nosso teólogo,

consiste num mosaico feito de várias tradições, distintas e dificilmente

conciliáveis, que não podem ser sintetizadas facilmente de uma maneira

puramente conceitual47. Mas se pode dizer que a sua noção de Deus consiste na

síntese de várias tradições do AT sobre Deus. E a sua originalidade no que se

refere à visão de Deus se encontra exatamente nessa síntese que ele faz ao longo

de sua vida.

Outra novidade relevante de Jesus concernente à visão de Deus consiste,

segundo Sobrino, na concepção de transcendência. Ao herdar as tradições do AT a

respeito de Deus, herda também as diversas visões sobre a sua transcendência. No

AT, Deus era visto pelas várias tradições como soberano, como um Deus sempre

44 Ibid. 45 Cf. Ibid., p. 203-207. 46 Ibid., p. 204. 47 Cf. Ibid.

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maior. Para Jesus, a visão de Deus não é diferente. Para ele, Deus é maior que a

natureza e a história, pois Ele é criador (Mc 10,6; 13,19), soberano (Mt 18,23-25;

10,28), incompreensível (Mt 11,25s; Lc 10,21s); diante Dele o homem é servo (Lc

17,7-10) e escravo (Mt 6,24; Lc 16,13); Ele tem poder sobre a vida e a morte (Mt

10,28); e para Ele tudo é possível (Mt 19,26). Entretanto, o específico da visão de

Jesus sobre a transcendência de Deus é que, para ele, Deus é maior por ser amor,

por ser bom, por ser gratuito e, sobretudo, por ser parcial. Para Jesus, o ser maior

de Deus se mostra na sua parcialidade para com os pobres. “Deus é amor para

Jesus porque ama aqueles a quem ninguém ama, porque se preocupa com aqueles

com os quais ninguém se preocupa”48. A transcendência de Deus, longe de ser

vista como distância infinita de Deus de suas criaturas, é vista como proximidade

amorosa e gratuita. Para Jesus, “o infinitamente distante se torna radicalmente

próximo”49 e se manifesta salvificamente, especialmente aos injustiçados e

oprimidos da história.

Desta forma, Sobrino considera que, das palavras e das ações de Jesus a

respeito de Deus, embora não se possa conceituar com facilidade quem foi Deus

para Jesus, é possível dizer que para ele “Deus tem um conteúdo que, em sua

generalidade máxima, é o de ser ‘o bom’, e tem uma formalidade que é a

‘transcendência’”50. Para Jesus, portanto, Deus é bom e age com bondade na

história de forma parcial em benefício daqueles que mais esperam e necessitam de

seu agir libertador e salvador.

5.2.2. Deus segundo a oração de Jesus Sobrino considera que também é possível dizer quem foi Deus para Jesus

analisando a sua vida de oração51, pois a “oração de Jesus mostra, em todo caso,

que Jesus se dirigia a Deus e, sobretudo, mostra a que Deus se dirigia”52.

Os evangelhos mostram que Jesus, como judeu piedoso, recitava algumas

orações próprias da tradição judaica (cf. Mt 15,36; 26,26 e par.), participava do

culto sabático na sinagoga e orava junto com a comunidade (Lc 4,16). Além disso,

testemunham que Jesus fazia da oração algo constante em sua vida (Lc 6,12s; 48 Id. Jesus na América Latina, p. 182. 49 Id. Jesus, o libertador, p. 206. 50 Ibid., p. 206. 51 Cf. Ibid., p. 207-211; Id. A oração de Jesus e do cristão, p. 23-37. 52 Id. Jesus, o libertador, p. 207.

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11,1; Mc 1,35; 6,46; 14,32). Entretanto, Sobrino enfatiza que os evangelhos não

apresentam Jesus como uma pessoa ingênua no que diz respeito à oração, como se

não conhecesse os perigos que podem envolvê-la. Pelo contrário, é apresentado

como crítico severo de vários tipos de orações. Nos relatos evangélicos, Jesus

condena a oração mecânica (Mt 6,7), a oração vaidosa e hipócrita (Mt 6,5), a

oração cínica (Lc 18,11), a oração alienante (Mt 7,21) e a oração opressora (Mc

12,38.40). Portanto, ao mesmo tempo em que fez da oração pessoal algo

fundamental em sua vida, também denunciou nela a vaidade e a hipocrisia, o

palavratório, a instrumentalização alienante e opressora, e seu deterioramento pelo

narcisismo espiritual.

O fato de Jesus fazer orações, segundo Sobrino, “mostra que existe para

ele um pólo referencial último de sentido pessoal, ante o qual se põe para recebê-

lo e expressá-lo”53. Jesus em suas orações se relacionava com Aquele que para ele

era o seu pólo referencial último, ou seja, o seu Deus. Na oração, Jesus se

colocava realmente diante de Deus, acolhendo-o como Deus e como o sentido de

sua vida e de sua atividade. Neste sentido, pode-se dizer que a oração de Jesus,

embora sendo distinta de sua atividade, conferiu a essa o seu sentido. Isto porque

na oração, Jesus, ao se pôr diante de Deus, se sentia interpelado a corresponder a

Ele com uma práxis determinada, mesmo que isso lhe custasse perseguição e

sofrimentos. Por isso, “a oração de Jesus aparece como busca da vontade de Deus,

como alegria de que seu reino chega, como aceitação de seu destino”54.

Mas qual a visão de Deus que Jesus apresentou em suas orações? Sobrino

considera que duas orações de Jesus, das quais os sinóticos transmitem seu

conteúdo, iluminam a realidade do seu Deus. A primeira é aquela que se encontra

em Mt 11,25 e Lc 10,21: “Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque

ocultastes estas coisas aos sábios e doutores e as revelastes aos pequeninos”. Esta

oração, para Sobrino, está relacionada com a prática de Jesus. Com ela, Jesus deu

graças ao Pai, porque foram precisamente os pequenos que compreenderam a sua

atividade como proximidade do Reino de Deus. A referida oração é expressão da

alegria de Jesus e sua ação de graças por Deus ser bom e parcial. Portanto, essa

53 Ibid., p. 211. 54 Ibid.

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oração revela que, para Jesus, Deus é “um Deus parcial para com o pequeno, e é

um Deus bom, amoroso com os pequenos”55.

A segunda oração é a seguinte: “Abba. Ó Pai! Tudo é possível para ti:

afasta de mim este cálice; porém, não o que quero, mas o que tu queres” (Mc

14,36; Mt 26,39; Lc 22,41-42). Esta oração, embora provavelmente consista numa

composição do evangelista, está assentada, na ótica de Sobrino, num dado

histórico: a angústia de Jesus diante da morte iminente. A oração expressa a

consciência que Jesus tem “de que vai ser entregue à morte, que sua alma está

triste e pede ao Pai que o livre dessa hora”56. Nesta oração, além de ficar revelada

a total disponibilidade de Jesus para fazer a vontade do Pai, também fica revelado

que, para Jesus, Deus é mistério insondável, uma realidade escandalosamente

obscura. A mencionada oração mostra que Jesus não força a Deus a fazer a sua

vontade. Por isso, para ele, Deus não é manipulável. Jesus o aceita como ele é;

aceita-o também em sua obscuridade.

5.2.3. Deus segundo a confiança de Jesus Para Sobrino, além da análise das orações de Jesus, é possível dizer algo a

respeito do que Jesus pensava sobre Deus a partir da sua confiança depositada em

Deus57.

Os evangelhos atestam que Jesus depositou sua confiança em Deus. Ora,

de acordo com nosso autor, o fato de Jesus ter tido confiança em Deus mostra que,

para ele, Deus foi visto como “bom”, pois caso contrário não haveria razão para se

confiar Nele. Se Jesus confiou em Deus foi porque este representou, para ele,

“Alguém bom” em que se podia confiar. Para Jesus, portanto, Deus é “Alguém”,

cuja essência é radicalmente positiva.

O próprio Jesus, segundo Sobrino, revelou em suas palavras, atitudes e

comportamentos a certeza que norteava a sua confiança em Deus, a saber: que

Deus é, por essência, bondade e amor para todos os seres humanos. De fato, na

“vida de Jesus não há nada que mostre Deus e os seres humanos em competição

ou que mostre Deus com ciúmes do bem dos seres humanos”58. Pelo contrário, ao

55 Ibid., p. 210. 56 Ibid. 57 Cf. Ibid., p. 211-219. 58 Ibid., p. 212.

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longo de sua vida, Jesus apresentou a visão de que Deus está a favor dos homens,

porque os estes são os mais importantes para Deus. Para ele, a causa de Deus é a

causa dos homens. Deus não é nem mesquinho nem ciumento das realizações

humanas, mas é bondade, amor e ternura; é salvação. “Deus não é um ser

egocêntrico, cuja realidade é ser para si mesmo, mas é para os outros”59. Para

Jesus, Deus não se opõe ao ser humano nem compete com ele. E isto porque Deus

ama gratuita e incondicionalmente todos os homens e mulheres.

Mas o mais significativo, segundo Sobrino, sobre a confiança de Jesus em

Deus como bondade e amor se encontra no fato, atestado pelos evangelhos, de que

Jesus em suas orações invocava a Deus com o termo aramaico palestinense

abbá60, que era utilizado pelas crianças da Palestina para se referir ao pai. O fato

de Jesus utilizar esse termo revela duas coisas: 1) como Jesus se relacionava com

Deus; 2) e o que Deus representava para ele. Por ter invocado a Deus como abbá,

Jesus nos mostra que sua relação com Deus era de simplicidade e de total

confiança, assim como deve ser a relação de uma criança com o seu pai. E, ao

mesmo tempo, nos mostra também que, para ele, Deus era uma realidade muito

próxima e terna, “alguém em que se pode confiar e descansar, alguém que dá

sentido à existência dos homens”61.

Neste sentido, Sobrino afirma que Jesus se dirigia a Deus como abbá,

porque percebia que o fundo último da realidade consistia no amor62. Se Jesus

tivesse considerado o poder como o sentido último da realidade, ele teria

escolhido outro termo para designar a Deus, como, por exemplo, o de “rei” ou de

“senhor”. Se Jesus escolheu o termo abbá, termo que para a criança representava a

proximidade terna, foi por causa de sua compreensão de que a realidade se funda

no amor. No entanto, para Jesus, “este Deus, cuja essência se revela como amor,

não é um amor abstrato e intemporal, mas um amor que se expressa na história e

dentro das condições da história”63.

Portanto, a confiança que Jesus teve em Deus nos mostra que, para ele,

Deus não foi uma realidade autoritária, opressora, indiferente, amedrontadora,

59 Id. Cristologia a partir da América Latina, p. 181. 60 Cf. Id. Jesus, o libertador, p. 218-219. 61 Ibid, p. 218. 62 Cf. Id. Cristologia a partir da América Latina, p. 179-181. 63 Ibid., p. 180.

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enfim, negativa para o ser humano. Pelo contrário, “Deus é assim para Jesus: Pai

bondoso em que se pode confiar e descansar”64.

5.2.4. Deus segundo a disponibilidade e a fé de Jesus

Para Sobrino, além da confiança absoluta de Jesus em Deus, expressa no

termo abbá, também a sua disponibilidade ativa e total para Deus revela o que

Deus representava para ele65.

A obediência de Jesus, segundo Sobrino, não diz respeito às obediências

concretas, categoriais, exigidas e realizadas pelos seres humanos; nem “pode ser

reduzida ao cumprimento dos preceitos divinos e menos ainda pode ser

compreendida como um modo escolhido por Jesus para ele chegar a sua perfeição

moral”66. Ao contrário, diz respeito a uma atitude fundamental e fundante da vida

de Jesus, a saber: a sua disponibilidade ativa para Deus “como a alguém que é um

‘outro’ radical”67. A obediência significa a abertura total de Jesus para Deus e, ao

mesmo tempo, a sua acolhida de Deus; significa assumir livremente a Deus como

a referência radical do viver e do atuar.

Segundo nosso autor, quatro temas que aparecem nos evangelhos sinóticos

evidenciam a disponibilidade de Jesus para Deus em meio às dificuldades próprias

da existência histórica. Os temas são os seguintes: a “conversão”, as “tentações”, a

“crise galilaica” e a “ignorância”68. O tema da “conversão” recorda que não foi

Jesus que conduziu a Deus, mas, ao contrário, foi Deus que conduziu a Jesus e

este livremente se deixou conduzir. Já o outro tema, o das “tentações”, revela que

Jesus se viu confrontado com uma outra forma de exercer o poder em seu

messianismo que não fosse o do serviço, e, assim, se viu confrontado também

com a própria possibilidade de rejeitar a vontade de Deus. Por sua vez, o tema da

“crise galilaica” mostra que Jesus passou por uma crise em seu ministério que

dividiu sua vida pública em duas grandes etapas, a saber: a etapa do anúncio

entusiasmado do Reino de Deus e a etapa da experiência do peso da perseguição e

de não ser compreendido pelo povo nem pelos seus discípulos, e a experiência do

abandono e silêncio de Deus. Por fim, o tema da “ignorância de Jesus” quer dizer 64 Id. Jesus, o libertador, p. 219. 65 Cf. Ibid., p. 219-230. 66 Ibid., p. 220. 67 Ibid. 68 Cf. Id. Ibid., p. 220-230.

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que ele, embora soubesse algo de Deus, “em sua consciência humana não pôde

sintetizar tudo o que Deus é”69.

Esses temas, para Sobrino, explicitam o quanto a experiência de Deus para

Jesus não foi tão tranqüila e o quanto foi humana. Jesus teve que sair de si mesmo

para Deus; teve que “esvaziar-se de si mesmo e ir muitas vezes contra si

mesmo”70. Passou pela tentação de assumir um outro caminho missionário

diferente daquele do serviço e da pregação da parcialidade do amor de Deus. Fez a

experiência de ser incompreendido pelos próprios amigos e experimentou o

“silêncio” de Deus no momento do sofrimento e da morte. Mas, mesmo em meio

a tudo isso, Jesus se manteve fiel a Deus até o fim. Embora sua relação com Ele

fosse de absoluta proximidade, Jesus fez a experiência do mistério de Deus,

acolhendo-o assim como Ele se manifestou e se mantendo fiel a Ele apesar de

tudo.

A disponibilidade de Jesus para Deus, realizada através da conversão, da

tentação, da crise e da ignorância, revela o que pensou a respeito da identidade de

Deus. Para Sobrino, se pode dizer que, para Jesus, Deus é mistério que não pode

ser manipulado. E, sendo assim, a atitude do ser humano diante de Deus deve ser

a de deixar Deus ser Deus. E isto corresponde à fé. A fé significa corresponder a

Deus sem procurar manipulá-lo. E a vida toda de Jesus foi assim. Por isso “a fé foi

o modo de existir de Jesus”71.

Para Sobrino, é da fé de Jesus que se pode deduzir definitivamente quem é

Deus para Jesus. E, neste caso, a dinâmica dialética agostiniana do Deus maior e

do Deus menor pode responder a pergunta72. Para Jesus, por um lado, Deus é um

Deus sempre maior, mistério santo e não manipulável e sua realidade mais

profunda é o amor. E, por outro lado, Deus é um Deus menor, visto que se

manifesta na história como amor parcial; como aquele que se faz presente

historicamente como salvação, especialmente, para os pobres; e como aquele que

se manifesta silenciosamente nos momentos obscuros de sofrimento e de morte.

Para Jesus, portanto, Deus é o Pai em quem se pode confiar e estar a ele

disponível, porque, embora continue sendo mistério e transcendência, realidade

69 Ibid., p. 229. 70 Ibid., p. 220. 71 Ibid., p. 230. Sobre a fé de Jesus, cf. Id. Ibid., p. 230-235. 72 Cf. Ibid., p. 235.

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última e fundamental de tudo, consiste em ser bondade e amor que se manifesta

na história como proximidade salvífica.

5.3. A práxis profética de Jesus A noção e a experiência que Jesus teve de Deus, de acordo com Sobrino,

não foram alienantes para ele. Pelo contrário, além de serem norteadoras de sua

personalidade73, foram as motrizes da sua atividade. Foi por causa disso que ele

realizou os milagres como sinais efetivos do Reino, como também os exorcismos,

a acolhida dos pobres e pequenos, e as refeições com os pecadores74. E foi por

conta disso também que ele assumiu aquilo que nosso autor chama de “práxis

profética”75, ou seja, as controvérsias, os desmascaramentos e as denúncias

dirigidas aos grupos ou classes detentoras do poder configurante da sociedade

como tal, com a finalidade de transformá-la de acordo com o Reino de Deus76.

Sobrino explica que para compreender o sentido e a finalidade da práxis

profética de Jesus é preciso ter um quadro globalizante de interpretação da

realidade social de seu tempo77. Por causa disso, propõe, como quadro, a estrutura

teologal idolátrica da realidade que a apresenta do seguinte modo:

“Na história existe o verdadeiro Deus (de vida), sua mediação (o reino) e seu mediador (Jesus); existem os ídolos (de morte), sua mediação (o anti-reino) e seus mediadores (os opressores). As realidades dos dois tipos são distintas, e aparecem formalmente numa disjuntiva duelística. São, portanto, excludentes, não complementares, e uma age contra a outra”78.

73 Sobrino considera que a visão e a experiência de Deus foram fundamentais para a constituição de sua personalidade. A liberdade de Jesus, sua autoridade exercida como serviço, sua forma amorosa de agir para com os oprimidos, tudo isso encontra fundamento na visão e experiência que Jesus teve de Deus. Cf. Id. Jesus, o libertador, p. 214-217; Id. Jesus na América Latina, p. 179-189. 74 Para Sobrino, embora os milagres, os exorcismos, a acolhida dos pobres e a refeição com os pecadores possam ser vistos como sinais realizadores da proximidade do Reino de Deus e, por isso, tenham grande incidência social, essas atitudes “não tornam presente a totalidade do reino nem se destinam a que seja realizada a transformação total da sociedade”. Isto quer dizer que essas atitudes não podem por si só fundamentar a práxis de Jesus, ou seja, a sua atividade com a finalidade de transformar a sociedade. Cf. Id. Jesus, o libertador, p. 239. 75 Cf. Ibid., p. 239-266. 76 Para Sobrino, as controvérsias, os desmascaramentos e as denúncias dos grupos representantes do poder religioso-político, realizados por Jesus, se configuram como “práxis profética” pelos seguintes motivos. Primeiro, trata-se de “práxis”, porque se direcionam contra os grupos sociais responsáveis pela configuração da sociedade; e porque sua finalidade é a transformação dessa sociedade. E, segundo, trata-se de “profética”, porque são atitudes de denúncia do anti-reino, ou seja, da injustiça e da opressão configurada socialmente. Cf. Ibid., p. 239-240. 77 Cf. Ibid., p. 241. 78 Ibid., p. 241.

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Este quadro da realidade possibilita compreender a práxis profética de

Jesus como combate contra os ídolos de morte por esta ser serviço à realização da

vontade do Deus da vida na história e na configuração social.

A base da práxis de Jesus, segundo Sobrino, não foi puramente social e

política, mas religiosa. A partir de sua visão e experiência de Deus, “lutou

decididamente contra qualquer tipo de força social que de uma ou outra forma,

mediata ou imediatamente, desumanizasse o homem e lhe desse a morte”79. Por

causa disso, combateu fortemente os grupos sociais detentores do poder. Jesus

constatou que esses grupos, assentados em visões religiosas e em nome de Deus,

promoviam e justificavam a opressão e a injustiça. Por isso, denunciou a

configuração social opressora; criticou as realidades religiosas utilizadas para

manter a opressão; e desmascarou as falsas imagens de Deus usadas para legitimar

e justificar este tipo de sociedade. Neste sentido, Jesus se posicionou contra a

estrutura social injusta e opressora (o anti-reino), combatendo os grupos

responsáveis por essa configuração social (os mediadores do anti-reino), e

condenando sua ideologia religiosa e sua visão teologal (os ídolos de morte). E

tudo isto ele realizou com o intuito de edificar o Reino, que é a mediação da

realidade do Deus de amor e de bondade na história. Deste modo, Jesus pode ser

interpretado como mediador do Reino, que, por sua vez, é mediação do Deus da

vida.

Para explicitar o que foi a “práxis profética” de Jesus, Sobrino apresenta as

controvérsias de Jesus, os desmascaramentos, feitos por ele, dos mecanismos

opressores da religião e as denúncias que dirigiu aos grupos opressores80.

No que concerne às controvérsias, Sobrino, pautado nos evangelhos,

recorda que Jesus discutiu com os representantes dos grupos detentores do poder

religioso-político a respeito da visão da realidade de Deus e da realidade social81.

Os evangelhos apresentam muitas controvérsias de Jesus com relação à visão de

Deus82. No entanto, nosso autor prioriza as cinco que Marcos apresenta quase no

início da atividade pública de Jesus, a saber: 1) a cura e perdão de um paralítico

(2,1-12); 2) a refeição com pecadores (2,15-17); 3) a questão sobre o jejum (2,18-

22); 4) as espigas arrancadas no sábado (2,23-28); 5) a cura do homem com a mão

79 Id. Jesus na América Latina, p. 150. 80 Cf. Id. Jesus, o libertador, p. 242-266; Id. Jesus na América Latina, p. 149-179. 81 Cf. Id. Jesus, o libertador, p. 242-249; Id. Jesus na América Latina, p. 164-169. 82 Sobrino elenca algumas dessas controvérsias, cf. Id. Jesus, o libertador, p. 242.

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seca (3,1-6). Para ele, embora estes textos apresentem aparentemente uma

discussão de Jesus com seus opositores, sobretudo os escribas e fariseus, a

respeito das normas sociais (controvérsias 2, 3 e 4) e religiosas (controvérsias 1 e

5), admitidas e exigidas socialmente e que Jesus havia transgredido, todos estes

textos mostram, na verdade, uma discussão sobre a imagem de Deus. De um lado,

há a visão teologal dos opositores de Jesus que utilizam uma determinada imagem

de Deus para fundamentar normas sociais e religiosas excludentes, opressoras e

injustas. E, por outro lado, há a visão teologal de Jesus que o faz transgredir as

normas estabelecidas. Ao agir de forma controvertida, Jesus se opõe, portanto,

não somente à norma social e religiosa, mas também ao fundamento dela, a sua

visão deturpada de Deus ou a um ídolo criado e utilizado com a função de

fundamentar e de legitimá-la. Para Jesus, Deus está a serviço da vida. E, sendo

assim, qualquer ordem social e religiosa que não afirme e desenvolva a vida não

se fundamenta no verdadeiro Deus, mas sim numa falsificação de Deus ou num

ídolo. Por isso, “qualquer suposta manifestação da vontade de Deus que vá contra

a vida real dos homens é negação automática da realidade mais profunda de

Deus”83. Portanto, ao ter agido de modo controvertido, Jesus se opôs àqueles

grupos que faziam uso de uma visão teologal para promover e manter a opressão.

Sobrino destaca também a controvérsia de Jesus sobre o mandamento

principal. Os evangelhos relatam que ao ser perguntado sobre qual seria o maior

dos mandamentos da lei de Deus, Jesus teria respondido com a equiparação do

amor a Deus e o amor ao próximo (Mc 12, 28-34 e par.). Ora, essa resposta,

embora não sendo novidade absoluta para o judaísmo, não deixou de ser uma

controvérsia apresentada por Jesus. Ao equiparar o amor a Deus com o amor ao

próximo, Jesus se opôs à visão, pregada pela religião, de que o amor a Deus se

demonstra unicamente na observância da lei. E, ao mesmo tempo, mostra que o

amor a Deus se demonstra de verdade no exercício do amor ao próximo. Isto

porque, para Jesus, o amor ao próximo é também amor a Deus, visto ser a forma

mais apropriada de corresponder à realidade de Deus. Sendo Deus bondade e

amor para com os homens, sobretudo, para com os pobres, quando a pessoa ama

ao pobre, realiza-se o que Deus é e o que Deus faz. Ao ter equiparado o amor a

Deus e ao próximo, Jesus expôs sua contraposição a uma configuração religiosa e

83 Ibid., p. 245.

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social que não exigia que as pessoas respondessem e se correspondessem com

seriedade ao Deus verdadeiro.

Além das controvérsias, Sobrino apresenta os desmascaramentos que Jesus

realizou dos mecanismos opressores da religião84. Para ele, o fundamental que

Jesus teria desmascarado foi a manipulação de Deus para justificar religiosamente

a opressão dos seres humanos. E essa aparecia, especialmente, sob a forma de

tradições religiosas. Os evangelhos mostram que Jesus não concordou nem

realizou determinadas ações rituais próprias das tradições da religião: omitiu as

abluções antes do almoço (Lc 11,38); não respeitou a lei do o sábado ( Mc 2,23s;

3,1s; Lc 13,10s; Mt 12,9s, etc.) nem a lei do jejum (Mc 2,18s e par.); deixou-se

tocar pela mulher que padecia de fluxo de sangue (Lc 8,43s); tocou num féretro

(Lc 7,14) e num leproso (Mc 1,41). Para Sobrino, o fato de Jesus não ter

respeitado alguns elementos da tradição religiosa revela que, para ele, esses

elementos estariam em contradição com a vontade de Deus. E, assim,

consistiriam, para ele, em algo inventado pelos detentores do poder religioso para

oprimir e excluir em nome de Deus.

Neste sentido, Sobrino lembra que Jesus criticou a tradição legal. Na

verdade, Jesus não se opôs à Torá, mas, pelo contrário, a radicalizou, porque

considerava que nela estivessem “as normas fundamentais da original vontade de

Deus”85. Mas Jesus se opôs à Halacá, ou seja, à interpretação escrita da Torá feita

pelos escribas e rabinos. Por exemplo, em Mc 7,8-13 (cf. Mt 15,3-9), Jesus teria

criticado alguns fariseus e escribas, porque teriam absolutizado as prescrições da

Halacá e se esquecido da vontade de Deus. Para Jesus, essas prescrições

consistiriam em tradições humanas feitas em nome de Deus, mas se contrapunham

à intenção original de Deus, que é a vida do homem. Na continuação deste logion,

em Mc 7, 14-23, Jesus teria dado uma resposta explícita ao problema do puro e do

impuro levantado pelos fariseus, afirmando que o que torna o ser humano puro ou

impuro não é a realização de prescrições exteriores, mas o seu coração, isto é, a

sua capacidade de amar ou não.

Outro exemplo de crítica à tradição legal judaica feita por Jesus

corresponde a sua não observância do sábado. Jesus não discordou da lei do

sábado como descanso exigido por Deus para o ser humano (Dt 5,14). Mas

84 Cf. Ibid., p. 249-254. 85 Id. Jesus na América Latina, p. 151.

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discordou da sua absolutização e de sua utilização para não se fazer o bem a quem

necessitasse (Mt 12,11s). Jesus ensinou que o verdadeiro sentido da observância

do sábado estava em fazer o bem aos outros. Pois, para Jesus, o que mais agradava

a Deus não era a observância externa de uma prescrição legal, mas o corresponder

a Deus com a prática do amor, da justiça e da solidariedade.

Assim, ao se posicionar contra algumas prescrições legais, Jesus teria

desmascarado a falsificação que a religião fazia da vontade de Deus com a

finalidade de manter a lógica da opressão e da exclusão. Com isso, Jesus

condenou uma configuração religiosa que, além de impedir a realização da

verdadeira vontade do Deus de bondade e amor, mascarava e legitimava a

realização da maldade humana com a preocupação exagerada com a casuística e o

legalismo.

Para Sobrino, fazem parte ainda da práxis profética de Jesus as denúncias

que ele dirigiu aos grupos opressores, aqueles pecadores coletivos, que produziam

o pecado estrutural86. Os evangelhos mostram que Jesus fez críticas pesadas aos

diversos grupos detentores do poder, a saber: os ricos (detentores do poder

econômico), os escribas e fariseus (detentores do poder intelectual e religioso), os

sacerdotes (detentores do poder religioso e político) e os governantes (detentores

do poder político). O fato de Jesus tê-los criticado revela que ele considerava

esses grupos responsáveis pela configuração social do anti-reino. Jesus constatou

que esses grupos usavam seu poder para seus próprios interesses, o que causava a

privação da vida a outros. Para Jesus, a configuração social opressora e excludente

era, portanto, fruto do pecado dos homens, ou melhor, dos grupos sociais.

Sobrino apresenta a denúncia que Jesus fez a esses grupos. Primeiro,

expõe a denúncia aos ricos. Para ele, neste caso, o texto fundamental é o que diz:

“Ai de vós, ricos, porque já tendes a vossa consolação” (Lc 6,24). Nesta citação

aparece a condenação que Jesus fez dos ricos e de sua riqueza. Mas por que Jesus

teria condenado os ricos e sua riqueza? Porque, para ele, a riqueza não seria

benção de Deus, mas fruto da injustiça social e, como tal, uma maldição. Para

Jesus, a riqueza desumaniza o rico orientando toda sua atenção para ela (Lc 12,34;

Mt 6,21), bem como impossibilita a abertura do rico para a acolhida do Reino de

Deus (Mc 10,23-25 e par.). Jesus, portanto, teria denunciado os ricos, porque a

86 Cf. Id. Jesus, o libertador, p. 254-265; Id. Jesus na América Latina, p. 159-164.

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riqueza os tornava fechados a Deus e indiferentes aos pobres. Na verdade, a

denúncia de Jesus estava relacionada à idolatria. Jesus teria condenado a riqueza,

porque seria um ídolo que “age contra Deus, desumaniza a quem lhe rende culto e

exige vítimas para subsistir”87. E teria denunciado os ricos por serem idólatras

desumanos e desumanizadores.

Além da denúncia de Jesus aos ricos, Sobrino apresenta também a

denúncia que Jesus fez aos escribas e fariseus. Nosso autor recorda que esses

grupos, diferentemente dos ricos, apareceram como adversários diretos de Jesus.

E a eles Jesus teria dirigido muitas críticas relacionadas, sobretudo, à interpretação

da lei, à casuística e ao legalismo. Para Sobrino, Jesus denunciou os fariseus e

escribas, especialmente, pela manipulação da lei para oprimir os pobres. Esta

denúncia, assim como outras, aparece em dois textos evangélicos que apresentam

explicitamente o discurso de Jesus contra esses grupos. Os textos são os seguintes:

Lc 11,37-53 e Mt 23,1-36. Nestes textos, Jesus aparece denunciando os escribas e

fariseus por sua vaidade e hipocrisia (cf. Mc 12,38-39); bem como também a sua

maldade opressora e objetiva dos pobres por meio da religião (cf. Mc 12,40).

“Jesus condena a vaidade e a hipocrisia [desses grupos] pela malícia acrescida que

supõem, além de condenar a base objetiva para que possa haver tal hipocrisia”88.

Jesus teria, assim, denunciado os escribas e fariseus por fazerem uso da religião

em benefício próprio e para oprimir.

Sobrino destaca que Jesus também fez duras censuras aos sacerdotes.

Censuras estas que aparecem condensadas implicitamente no episódio da

expulsão dos mercadores do templo de Jerusalém, narradas por todos os

evangelhos (Mc 11,15-19; Mt 21,12-17; Lc 19,45-48; Jo 2,14-16). As narrações

do episódio, de acordo com Sobrino, embora possam estar bastante teologizadas,

apresentam um núcleo histórico: o fato de Jesus se distanciar e criticar um culto

alienante e opressor. Ora, como os responsáveis pelo templo e pelos cultos eram

os sacerdotes, Jesus não teria criticado, neste episódio, apenas o templo em si,

mas o que havia sido feito dele pela casta sacerdotal. Para Jesus, os “sacerdotes

cometeram o horrendo crime de viciar a essência do templo”89, pois, para ele,

converteram o templo num mecanismo de exploração dos pobres. Assim, ao ter

87 Id. Jesus, o libertador, p. 259. 88 Id. Jesus na América Latina, p. 162. 89 Ibid., p. 162.

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expulsado os comerciantes do templo, Jesus teria denunciado a casta sacerdotal

por fazer uso do culto, dos sacrifícios e do próprio templo para contribuir com a

configuração social do anti-reino em vez de apontar a proximidade do Reino de

Deus como graça e salvação.

Por fim, Sobrino apresenta ainda a censura que Jesus fez aos

governantes. Na verdade não se trata de uma crítica explícita, mas de uma

constatação que Jesus teria feito a respeito daqueles que detêm o poder político. A

constatação é a seguinte: “Sabeis que aqueles que vemos governar as nações as

dominam, e os seus grandes as tiranizam” (Mc 10,42 e par.). Nesta constatação,

Jesus teria denunciado e condenado a utilização do poder “cuja conseqüência

histórica é a opressão, a privação da vida, aqui em nível de direitos políticos”90.

Para Sobrino, todas essas denúncias, feitas por Jesus, juntamente com suas

controvérsias e desmascaramentos estavam relacionadas diretamente com a

atividade missionária de Jesus como anunciador e realizador do Reino, bem como

também como conseqüência de sua experiência do Pai. Isto quer dizer que Jesus

assumiu a práxis profética exatamente em defesa do verdadeiro Deus e da

realização da proximidade de seu Reino. Tratou-se de uma práxis que se deu em

oposição aos ídolos que promoviam e justificavam o anti-reino e aqueles que o

mediatizavam. Jesus denunciou o anti-reino, desmascarou os ídolos e denunciou a

maldade opressora dos grupos detentores do poder, pois sua mensagem central era

a da “defesa dos oprimidos, a denúncia dos opressores e o desmascaramento da

opressão que se faz passar por boa e se justifica na religião”91.

O anti-reino, entretanto, nos lembra Sobrino, não deixou de reagir contra

Jesus. Muito pelo contrário, a sua reação foi violenta. Jesus foi perseguido,

condenado e morto pelo sistema idolátrico do templo de Jerusalém e da pax

romana. A morte de Jesus será o assunto que focalizaremos no item a seguir.

5.4. O sentido histórico e teológico da morte de Jesus 92 O tema da morte de Jesus é abordado por Sobrino histórica e

teologicamente. A abordagem histórica ressalta que a morte de Jesus aconteceu 90 Ibid., p. 163. 91 Id. Jesus, o libertador, p. 266. 92 Cf. Id. Cristologia a partir da América Latina, p. 191-244; Id. Jesus na América Latina, p. 168-179; Id. Jesus, o libertador, p. 287-390; Id. El crucificado. In: TAMAYO ACOSTA, J.J. (Dir.). 10 palabras clave sobre Jesus de Nazaret. Estella: Editorial Verbo Divino, 1999, p. 295-356.

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como conseqüência de sua missão. E a abordagem teológica, além de procurar

mostrar qual o sentido que tem essa morte para o NT e para os cristãos de hoje,

sobretudo, para as vítimas da injustiça e da opressão, reflete sobre a revelação de

Deus nesse acontecimento. Nosso interesse, neste item, consiste em apresentar de

forma bastante resumida essas duas abordagens desenvolvidas pelo nosso autor.

5.4.1. A análise histórica Ao analisar as razões históricas da morte de Jesus, Sobrino constata que

Jesus morreu na cruz não por causa de um desígnio arbitrário de Deus, mas por

causa de sua pregação e de sua atividade profética relacionada diretamente ao

Reino de Deus e à sua noção e experiência de Deus. O fato é que Jesus com sua

pregação e prática representou uma ameaça radical para os grupos detentores do

poder de seu tempo. Pois, conforme já vimos anteriormente, Jesus denunciou,

desmascarou e condenou esses grupos por causa da falsificação da imagem de

Deus, feita por eles, para fundamentar e justificar a opressão. Contudo, esses

grupos perseguiram Jesus até conseguirem condená-lo à morte.

A morte de Jesus, para Sobrino, deve ser compreendida como

conseqüência da sua ação numa sociedade configurada como anti-reino, cujos

mediadores não aceitam nem o Reino nem o Deus pregado por Jesus. Na verdade,

Jesus teria morrido crucificado por causa da sua fidelidade a Deus e ao Reino e

por causa da rejeição dos opressores sociais a essas realidades.

Para mostrar que a morte de Jesus teve, de fato, causas históricas, Sobrino

apresenta os dados dos sinóticos sobre a perseguição sofrida por Jesus; sobre a sua

consciência, ao longo do seu ministério, a respeito de uma morte violenta; e, por

fim, sobre o julgamento que o condenou à cruz93.

Sobrino mostra que os evangelhos apresentam não poucas narrações que

testemunham que Jesus foi perseguido ao longo de toda sua vida por

representantes dos grupos detentores do poder. Esses testemunham que Jesus foi

perseguido pelos fariseus (Mc 3,23,6 e par.; Jo 8,20; Jo 11, 53-54); pelos fariseus

e herodianos (Mc 3, 6 e par.; Mc 12,13-17 e par); pelos fariseus e escribas (Mc

10,2; Mt 19,3; 16,1; Mc 8,11; Lc 6,11; 11,16.53-54; 14,1); pelos fariseus e sumos

93 Cf. Id. Jesus, o libertador, p. 288-307; Id. El crucificado, p. 306-328; Id. Jesus na América Latina, p. 170-179.

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sacerdotes (Jo 7,32;11,47-53.57); pelos escribas e sumos sacerdotes (Lc 19, 47-

48; 20,19; 22,1; Mc 11,15-19 e par.; Mc 14,1; Mt 26,3-4); pelos judeus (Jo

5,16.18; 7,1.19.30; 10,31.39; 11,8); e pelos saduceus (Mc 12,18-23 e par.). E,

dentre esses testemunhos de perseguição, cinco descrevem que Jesus aparece

correndo perigo de vida.

Ora, segundo nosso teólogo, essa perseguição a Jesus, descrita pelos

evangelhos, evidencia várias coisas importantes: 1) Evidencia que se tratou de

uma perseguição sustentada e progressiva, “de modo que o final da vida de Jesus

não foi casual, mas a culminação de um processo histórico e necessário”94; 2)

Evidencia, também, que a totalidade da realidade, configurada como anti-reino,

reagiu contra Jesus, pois os responsáveis pela perseguição foram os grupos que

detinham algum tipo de poder na sociedade; 3) Evidencia, ainda, que a maioria a

que Jesus se dirigia, ou seja, os pobres e pequenos, não aparece entre os

responsáveis pela perseguição; 4) Evidencia, ainda mais, que as causas da

perseguição, não foram “outras causas senão as denúncias de Jesus contra o poder

opressor, diretamente o poder religioso, em cujo nome se justificavam outros

poderes”95; 5) Evidencia, por fim, que, subjetivamente, Jesus teria assumido a

perseguição e a provocado, pois ele não deixou de estar em conflito com os

grupos detentores do poder. Isto que foi dito por último, revela que Jesus se

manteve consciente do conflito e também ciente de suas conseqüências. Por isso,

ele, provavelmente, teria aguardado, sem recuar, como desfecho de sua vida, uma

morte violenta e provocada injustamente.

Os evangelhos, segundo Sobrino, além de apresentarem a perseguição

sofrida por Jesus, também mostram que Jesus tinha consciência de uma morte

provável como conseqüência de sua atividade. Em muitas passagens, ele aparece

pré-anunciando a sua morte (cf. Mc 8, 31 e par.; Mc 9, 30-32 e par.; Mc 10,33-34

e par.; Mt 17,12); e em outras, tem consciência do destino dos profetas (cf. Lc

4,24-27; 11,50; 13,34; Mt 23,34.37). O fato é que, provavelmente, Jesus depois da

morte de João Batista e, sobretudo, a partir da crise da Galiléia, teria começado a

perceber claramente que sua morte se daria de forma violenta, semelhante à morte

dos profetas. Isto revela, portanto, que ao sofrer a perseguição e ao continuar seu

ministério, ele sabia aonde ela podia levá-lo. Ora, se Jesus morreu crucificado foi

94 Id. Jesus, o libertador, p. 292. 95 Ibid., p. 294.

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porque ele assumiu com fidelidade sua missão até as últimas conseqüências. Sua

morte é o final de um processo de perseguição realizada contra ele e é também a

expressão mais radical de sua confiança e disponibilidade para Deus e para o

Reino.

Para Sobrino, além da consciência de que a perseguição podia levá-lo à

morte, Jesus também teria conferido à sua própria morte um significado.

Entretanto, esse significado não se identificaria com as interpretações teológicas

dos modelos soteriológicos elaboradas pelo NT. Jesus não conferiu, de acordo

com nosso autor, “um sentido absoluto transcendente a sua própria morte, como

fez depois o NT”96. Provavelmente, interpretou a sua própria morte em

continuidade com a sua causa e em favor dela. Neste sentido, os relatos da

instituição da eucaristia (Mc 14, 22-25; Mt 26, 26-29; Lc 22, 14-20; 1Cor 11,23-

27) confirmam esse dado. Embora se trate de interpretação teológica, esses relatos

não deixam de apresentar um núcleo histórico, a saber: Jesus teria consciência de

que a sua morte iminente não seria descabida ou absurda, mas portadora de um

significado. Isto quer dizer que ele interpretou a sua morte como uma morte

“para” e “em favor de” outros (hyper). Ao assumir o caminho da morte como

culminância de uma vida de serviço e de fidelidade ao Deus de amor e bondade,

Jesus teria mostrado aos seus discípulos que a confiança e a disponibilidade para

Deus e para o seu Reino podem ser assumidas profunda e incondicionalmente.

Neste sentido, os seus gestos de oferecer o pão e o cálice na última ceia são signos

do que teria sido toda a sua vida e um convite aos seus discípulos para

participarem em sua morte seguindo o mesmo caminho de serviço e de fidelidade

a Deus e ao Reino tal como ele trilhou.

“Neste sentido pode-se dizer que Jesus vai para a morte com confiança e a vê como último ato de serviço, antes à maneira de exemplo eficaz e motivante para os outros do que à maneira de mecanismo de salvação para os outros. Ser fiel até o fim, isso é ser humano”97.

Para Sobrino, um outro dado que revela que a morte de Jesus não

aconteceu por causa de desígnios arbitrários de Deus, mas, sim, por causa do

conflito que ele estabeleceu com os grupos detentores do poder, diz respeito ao

julgamento que o condenou à morte. Os evangelhos testemunham que antes de

sua morte houve um processo legal que o condenou a esse fim. E esse processo

96 Ibid., p. 296. 97 Ibid., p. 299.

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constou de dois julgamentos: o político e o religioso. Jesus foi condenado à morte

por razões políticas e religiosas.

Na verdade, segundo nosso autor, o processo contra Jesus deve ser visto

como um processo contra o mediador do Reino e de seu Deus. Trata-se de um

processo realizado para defender uma mediação, isto é, o anti-reino e o

mecanismo ideológico de sua justificação (os ídolos de morte). Ao julgá-lo à

morte por razões políticas e religiosas, os defensores do status quo se revelaram

radicalmente em oposição ao Deus de Jesus e à realização de sua vontade como

configuração social. Jesus foi julgado e condenado pelas forças opressoras da

sociedade que se legitimavam religiosamente nas divindades ou nas imagens

falsificadas de Deus. O seu julgamento e condenação à morte se deram em nome

de divindades ou de ídolos em situação duelística com o Deus da vida.

Os evangelhos mostram que Jesus foi acusado e condenado pelo Sinédrio

como blasfemo (Mc 14,60-64 e par.) e que também foi acusado e condenado pelo

poder romano como agitador político (Lc 23,2-5.14). Os dois julgamentos contra

ele, de acordo Sobrino, mostram o conflito entre as mediações dos ídolos de morte

e a mediação do Deus da vida: de um lado, a teocracia judaica em torno do templo

e o império romano (pax romana) como mediações dos ídolos de morte; e de

outro, o Reino de Deus como mediação do Deus abbá de Jesus. Para nosso autor,

Jesus morreu em virtude da reação contra ele das totalidades simbólicas

opressoras (ídolos) do império romano e da religião judaica. “Jesus foi vítima da

opressão, contra a qual ele pregou em vida, e da forma mais aguda de opressão

que é a morte”98.

O que provavelmente foi o mais decisivo no seu julgamento religioso,

segundo Sobrino, foi o seu ataque contra o templo (Mt 26,61; Mc 14,58; Jo 2,19).

Embora tenha se colocado em oposição ao status quo social e religioso de

diversas formas, foi sua crítica contra o templo o motivo maior de sua condenação

à morte. Ora, como o templo constituía o centro da teocracia política, social e

econômica de Israel, ao criticá-lo e rechaçá-lo, Jesus estava se opondo àquela

configuração social, justificada pela ideologia religiosa. Mas mais do que criticar

e rechaçar, ele também ofereceu uma alternativa distinta e contrária a essa

configuração social, a saber: o Reino de Deus. Por causa disso, o “anti-reino

98 Id. Jesus na América Latina, p. 174.

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(neste caso a sociedade configurada em volta do templo) rechaça ativamente o

Reino, e seus mediadores rejeitam ativamente o mediador [Jesus]”99. Neste

sentido, não foi somente o Sinédrio que tramou a sua morte, mas toda estrutura

social-religiosa opressiva e o que a fundamentava e a legitimava. Foi “a divindade

em cujo nome está baseado o templo que dá morte a Jesus”100.

No julgamento político de Jesus aconteceu coisa semelhante. O

determinante para a sua condenação não foi a acusação de que ele incitava à

rebelião e a não pagar os tributos a César, mas a sua crítica e rejeição da

dominação romana e a apresentação da alternativa do Reino de Deus contra ela. O

texto de Jo 19,12 diz que Pilatos o condenou à morte porque os judeus o

colocaram diante de uma alternativa: “Se soltas este homem, não és amigo de

César, porque quem se faz rei se declara contra César”. De acordo com esse texto,

Jesus teria morrido porque Pilatos fez a escolha a favor do império. Ora, isto

revela que a sua condenação consiste na reação opressiva e injusta do império

contra ele. Dito a partir da estrutura idolátrica da realidade, a condenação de Jesus

acontece por causa da oposição total entre o Deus de Jesus e César e entre as suas

mediações: o Reino e o império. Deste modo, é condenado à morte pela mediação

do ídolo “César”, a saber, a pax romana, e, esta, mediatizada por Pilatos. Por isso,

“Jesus foi crucificado pelos romanos não só por razões táticas e de política diária

de tranqüilidade e ordem em Jerusalém, mas, no fundo, em nome dos deuses do

Estado de Roma que garantiam a paz romana”101.

Portanto, para Sobrino, por causa da perseguição constante e progressiva a

Jesus, como também por sua provável consciência a respeito de uma morte

violenta e por causa, ainda, do processo condenatório, a sua morte teria acontecido

por razões históricas. Jesus morreu como vítima de um sistema social opressivo,

fundamentado e legitimado por uma ideologia religiosa que não aceitou a sua

mensagem sobre o Reino de Deus e o Deus do Reino.

5.4.2. A análise teológica

Ao analisar os motivos históricos da morte do Nazareno, nosso autor

responde à seguinte pergunta: “Por que matam Jesus?”. Entretanto, não fica

99 Id. Jesus, o libertador, p. 302. 100 Id. Jesus na América Latina, p. 177. 101 Ibid., p. 175.

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somente nessa análise. Sobrino aborda também o tema da cruz numa perspectiva

teológica. E faz isso de dois modos: 1) analisando o sentido salvífico da cruz, tal

como é apresentado pelo NT102; 2) e refletindo a respeito da revelação de Deus

neste acontecimento103.

Sobre a interpretação da cruz pelo NT, Sobrino destaca que nele

encontramos a tentativa dos primeiros cristãos em dar explicação e significado ao

fato escandaloso da morte de Jesus. Com relação à explicação de por que Jesus

morre na cruz, o NT considera a cruz como destino de um profeta (1Ts 2,14s; Rm

11,3; Mt 23,37; Mc 12,2ss...); como a realização do que estava predito nas

Escrituras (Lc 24,25s; Mc 8,31; 9,31; 10,33 e par.; 1Cor 15,4...); como a

realização dos desígnios da presciência de Deus (At 2,23; 4,28); e como um

acontecimento necessário (Lc 24,26; Mc 8,31). Contudo, para nosso autor, essas

explicações na verdade não explicam o porquê da morte de Jesus, mas apenas

apelam para o mistério de Deus. Para o NT a resposta para o porquê de sua morte

na cruz está escondida em Deus. Isto revela que para os primeiros cristãos,

embora a cruz pudesse parecer absurda, ela é portadora de um sentido, pois

pertence aos desígnios de Deus.

Quanto ao significado dado pelo NT à morte de Jesus, Sobrino destaca que

o NT a interpreta, fundamentalmente, como algo positivo, pois a vê como um

evento salvífico realizado por Deus. Para mostrar isso, nosso autor apresenta

alguns modelos teóricos utilizados pelo NT para explicar o sentido salvífico desse

acontecimento104. Os modelos apresentados são os seguintes: 1) O modelo teórico

sacrifical, que aparece, especialmente na carta aos Hebreus, e que afirma que

Jesus realiza a salvação, porque por meio de sua vida e de sua morte, agradáveis a

Deus, ele é “elevado mais alto que os céus” para se constituir como o autêntico

sumo sacerdote que intercede pelo ser humano junto a Deus; 2) O modelo teórico

da nova aliança, que afirma que na cruz acontece uma nova e definitiva aliança

entre Deus e os homens (cf. Hb 8,6-13; 9,15; 1Cor 11,25; Lc 22,20; Mt 26,28; Mc

14,24); 3) O modelo teórico que, ao relacionar a morte do Nazareno com a figura

do servo de Javé descrita em Is 42,1-9; 49,1-6; 50,4-11; 52,13-53,12, afirma que

este morre, inocentemente, em lugar e em favor dos pecadores, porque realiza a

102 Cf. Id. Jesus, o libertador, p. 320-337. 103 Cf. Ibid., p. 338-365. 104 Cf. Ibid., p. 325-331.

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expiação de seus pecados (cf. Rm 3,25s; 2Cor 5,21; Jo 1,29; 1Jo 2,2; 4,10; Mt 26,

28; Mc 14,24...); 4) E o modelo teórico da redenção, que afirma que a cruz é

salvação, por ser o preço pago (resgate) para libertar o homem da maldição da lei

(Gl 3,13), do pecado (Cl 1,14; Ef 1,7) e da morte (1Cor 15).

Para Sobrino, esses modelos teóricos, embora interpretem o fato da morte

de Jesus em relação com a salvação, estritamente falando, “não explicam nada”105.

E isto porque não constituem explicações bem elaboradas sobre o sentido

salvífico desta morte, mas apenas intuições e tentativas de mostrar, a partir de

imagens e temas comuns na época, que algo positivo se deu nesse acontecimento.

No entanto, nosso teólogo destaca que esses modelos soteriológicos não

apresentam apenas a morte de Jesus como realidade salvífica, mas toda a sua

história existencial, da qual a cruz é a culminância. Assim, o que radica, para

Sobrino, na profundidade intencional desses modelos é a certeza de que Jesus

realiza a salvação em definitivo, porque ele, em sua totalidade de vida, foi

“agradável a Deus” (Ef 5,2). Portanto, para Sobrino, as explicações do NT sobre o

significado salvífico da morte de Jesus não afirmam que essa seja salvífica sem a

relação com o conjunto de sua vida.

Partindo desse dado, Sobrino considera que a cruz tem algo a ver com a

salvação, porque nela o Crucificado revela, contra toda a expectativa, o humano

verdadeiro. O Jesus fiel e disponível a Deus até a cruz é salvação porque “é a

revelação do homo verus, do homem verdadeiro e cabal, [e] não só do vere homo,

quer dizer, de um ser humano no qual se teriam cumprido faticamente as

características de uma verdadeira natureza humana”106. A sua existência, assumida

radicalmente até a cruz, como misericórdia e defesa dos pobres, como fidelidade

incondicional a Deus, como entrega e serviço constante aos demais, como

máxima solidariedade, como encarnação verdadeira na realidade histórica, como

criatura diante de Deus e como prática incansável do bem, é que consiste em ser

salvação. Sua existência, que culmina na cruz, revela o que Deus quer que seja o

ser humano; revela, portanto, o ser humano verdadeiro. Assim, a vida de Jesus,

contando com a sua cruz, é salvação porque revela ao ser humano o caminho

existencial que ele deve reproduzir em sua vida para constituir-se como homo

verus, o humano verdadeiro.

105 Ibid., p. 331. 106 Ibid., p. 334.

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Desta forma, Sobrino considera que a eficácia salvífica da vida do

Nazareno e de sua morte deve ser entendida como causa exemplar107. Jesus, com

sua vida e morte, é o exemplo para que todo ser humano possa, fundamentado

pela graça de Deus, assumir a verdadeira e autêntica humanidade.

Entretanto, Sobrino tem consciência de que somente se pode falar da vida

e da morte de Jesus como eventos salvíficos se estas forem entendidas como

iniciativa de Deus108. Neste caso, ele recorda que o NT não apresenta a vida e a

cruz de Jesus como algo simplesmente pertencente a ele, mas como algo

fundamentalmente relacionado a Deus. Pois se trata de eventos cuja iniciativa é de

Deus (cf. Rm 3,28; Jo 3,16s). E essa iniciativa é incondicional (cf. 1Jo 4,10; Rm

5,6-8) e tem como finalidade mostrar o amor divino (cf. Jo 3,16s; 1Jo 4,9).

Portanto, a sua vida e a sua morte são salvíficas, porque “é aquilo que Deus

assume para expressar seu amor em um mundo de pecado”109. Dito em outras

palavras, Jesus, o homo verus, é caminho de salvação, pois este consiste em ser

iniciativa e expressão máxima do amor de Deus por todos os homens e mulheres.

No entanto, para Sobrino, não basta apresentar a vida e a morte de Jesus

como eventos salvíficos, é necessário que se reflita também sobre a revelação de

Deus no acontecimento da cruz110. E isto porque este acontecimento pode

favorecer uma leitura equivocada a respeito de Deus. O problema é que Deus

pode ser visto como indiferente ao sofrimento do ser humano, sobretudo, das

vítimas da injustiça; pode ser considerado como sádico ou responsável pela morte

do Filho e, assim, como Aquele que justifica as injustiças cometidas pelos

opressores; e pode ser visto como impassível, como um Deus que não é tocado

pela dor e o sofrimento humano. Ora, o fato é que, para o nosso autor, se não

consideramos que Deus estava presente na cruz de Jesus, passando pela

experiência do sofrimento, então, a mais profunda intuição do NT sobre Deus

como amor se revela como falsa. Por isso, para ele, a questão da revelação de

Deus na cruz de Jesus se revela como teodicéia.

Ao refletir sobre a revelação de Deus na cruz, a primeira coisa que nosso

autor acentua é que esta em si mesma consiste num escândalo para a razão. E é

107 Cf. Ibid., p. 334. 108 Cf. Ibid., p. 334-337. 109 Id. El crucificado, p. 340. 110 Cf. Id. Jesus, o libertador, p. 338-365; Id. Cristologia a partir da América Latina, p. 227-244; Id. El crucificado, p. 341-345.

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escândalo, porque se trata da condenação de um justo e inocente, e porque atinge

diretamente a Deus, visto que quem morre na cruz é Jesus, aquele que é

considerado na fé como Filho de Deus.

Sobrino recorda que o próprio NT descreve a cruz de Jesus como

escândalo. Sua morte “é descrita, no conjunto das tradições, como algo

surpreendente. Nelas sua morte não aparece como morte prazenteira e muito

menos como bela”111. Pelo contrário, é descrita de forma que acentua o seu caráter

trágico. Os evangelhos, neste caso, descrevem o sofrimento de Jesus, os insultos

sofridos por ele, a experiência do abandono de seus amigos e seu “grande grito”

antes de morrer. Mas, segundo Sobrino, é o evangelho de Marcos que apresenta

de forma mais enfática o caráter escandaloso desta morte. E isto porque em Mc

15,34 aparece a seguinte exclamação do Crucificado: “Meu Deus, meu Deus, por

que me abandonastes?”. Esta exclamação, embora Jesus não a tenha dito,

expressa, provavelmente, algo que os primeiros cristãos tiveram grande

dificuldade em aceitar e, que, por isso, tentaram suavizar nas narrações sobre a

morte de Jesus, a saber: o fato de que ele morreu fazendo a experiência de se

sentir abandonado por Deus112.

Essa provável experiência do Crucificado, segundo Sobrino, revela o que

constitui a tragédia objetiva e específica da sua morte, a saber: a descontinuidade

teologal com a sua vida no que concerne à sua missão e à sua experiência de

Deus. Efetivamente, a morte de Jesus expressa a descontinuidade com a sua

missão. Na cruz, o Nazareno não contempla a realização de sua expectativa a

respeito da proximidade do Reino, tal como pregou, sobretudo, no início do seu

ministério. Pelo contrário, “vê o poder agigantado do anti-reino que triunfa sobre

o Reino”113. As próprias tradições evangélicas que narram a sua morte não a

apresentam como advento do Reino de Deus; mas em descontinuidade objetiva

com ele. Na cruz, Jesus faz a experiência de “fracasso”. Sua causa, a saber, a

pregação e realização do Reino não se comprovam na sua morte, pois o Reino não

se realiza. O que se comprova aparentemente é a vitória do anti-reino.

A cruz expressa também uma descontinuidade radical com a experiência e

pregação de Jesus a respeito do Deus abbá. Ao longo da vida, fez a experiência de

111 Id. Jesus, o libertador, p. 341. 112 Cf. Ibid., p. 343-344. 113 Ibid., p. 346.

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Deus como mistério não manipulável e, ao mesmo tempo, como “proximidade

absoluta” como Pai. Na cruz, no entanto, “não há experiência de Deus como Pai

bondoso”114. Segundo a narração de Marcos, o final da vida de Jesus termina no

silêncio de Deus; na não constatação da presença ativa do Deus-abbá. O

Crucificado termina sua vida fazendo a experiência da desolação teologal; a

experiência de se sentir abandonado por Deus.

Para Sobrino, esta experiência não significa, aos olhos da fé, que Deus

tivesse se ausentado daquele acontecimento e abandonado, de fato, Jesus para

morrer sozinho. Pelo contrário, esse abandono diz respeito a uma desconcertante

forma de Deus se revelar e atuar. Como a fé cristã postula que Jesus é a

encarnação do Filho, o sofrimento experimentado por ele consiste num sofrimento

que atinge a Deus, porque é o Filho que o experimenta. Deste modo, Deus está na

cruz. Mas, este sofrimento não atinge apenas o Filho, atinge também o Pai, pois

este não abandona o Filho na cruz. O Pai está também na cruz de Jesus, mas não

de forma indiferente ou apática ao seu sofrimento, e, sim, solidário com ele no

sofrimento. O Pai sofre a morte do Filho e, assim, assume toda a dor da história.

Partindo desta visão, nosso autor insiste que na cruz, Deus se encontra

crucificado. O Filho faz a experiência da morte, e o Pai participa silenciosamente

do sofrimento do Filho encarnado, porque este sofrimento também o afeta115.

Entretanto, Sobrino não afirma que Deus é totalmente impotente ao

sofrimento e à morte. Para ele, a cruz é “conseqüência da opção primigênia de

Deus: a encarnação, a aproximação radical por amor e com amor, leve onde levar,

sem se afastar da história, sem manipulá-la de fora” 116. Isto quer dizer que Deus

sofre silenciosamente na cruz, sem agir de modo intervencionista, porque aceitou

“deixar-se afetar pela história e deixar-se afetar pela lei do pecado que mata”117.

Deus revela-se “impotente” na cruz, porque ele se limita, em seu amor, acolhendo

a dinâmica história com sua realidade de pecado. E isso não significa que Deus

legitima o sofrimento de Jesus provocado pela injustiça da cruz. O fato de Deus –

o Filho e o Pai – sofrer na cruz mostra definitivamente que Deus é solidário com

os seres humanos que sofrem. Deus é tão solidário que assume o mais profundo

da negatividade da história; assume a morte provocada pelo pecado social. E por

114 Ibid., p. 347. 115 Cf. Id. Cristologia a partir da América Latina, p. 234-239. 116 Id. Jesus, o libertador, p. 354. 117 Ibid.

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ser solidário com os sofredores, Deus não é indiferente ou impotente ao

sofrimento; é ativo contra o sofrimento, pois a solidariedade não significa

passividade, mas uma expressão de amor, de empatia e aproximação. Por isso, por

mais paradoxal que seja, a revelação de Deus na cruz é a maior expressão de

enfrentamento do mal e do pecado. Na cruz, o Pai se solidariza maximamente com

Jesus, e Deus se solidariza com os injustiçados deste mundo fazendo também a

experiência de ser vítima de morte da injustiça estrutural.

Desse modo, para nosso autor, a cruz revela algo sobre Deus. Todavia,

para ter acesso ao conhecimento de Deus nesse acontecimento se faz necessário

reformular a idéia de transcendência e superar a lógica da teologia natural118.

Com relação à idéia de transcendência, Sobrino afirma que o homem

religioso sempre usou a palavra “mais” para expressar a transcendência de Deus

ou para exprimir a radical descontinuidade e distância entre Deus e a criatura. Por

isso, a idéia de transcendência corresponde à visão de um Deus “maior”. Para essa

visão, a revelação divina acontece sempre como plenitude e no mais positivo da

realidade. Entretanto, a revelação de Deus, segundo Sobrino, não se dá apenas na

positividade, mas também na negatividade, pois se assim não fosse, a cruz não

poderia revelar coisa alguma de Deus. Por isso, a transcendência divina deve ser

entendida também como revelação de Deus na negatividade. Portanto, ao “Deus

‘maior’ é preciso acrescentar o Deus ‘menor’”119. Isto significa dizer que Deus

não se manifesta apenas como grandeza e poder, mas também como pequenez e

impotência. Pois, “pertence ao ser maior de Deus o fato de se tornar o Deus

menor”120. Na cruz, neste caso, a revelação divina deve ser pensada a partir do

negativo, visto que nesta Deus se faz pequeno, se silencia e se solidariza com os

seres humanos fazendo a experiência do sofrimento e da morte. “E,

paradoxalmente, nesse desígnio seu de assumir o que é menor se faz mistério

maior, transcendência nova e maior do que a balbuciada pelos seres humanos”121.

No que tange à teologia natural, Sobrino considera que esta, que pressupõe

que o conhecimento de Deus se dá pelo acesso a Ele a partir do positivo da

realidade (natureza, história e subjetividade humana), é insuficiente para dar uma

resposta à revelação divina no evento da cruz. E isto porque nesse evento não

118 Cf. Ibid., p. 358-363. 119 Ibid., p. 359. 120 Ibid., p. 360. 121 Ibid.

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aparece diretamente o positivo, ou seja, a vida, a beleza, a racionalidade, mas o

sofrimento, o fracasso, o absurdo, a morte e o silêncio. Ora, se Deus se revela na

cruz, o acesso ao conhecimento de Deus só pode acontecer a partir da

negatividade. Sendo assim, a negatividade assumida por Deus revela a

positividade da cruz. Nesta não há apenas impotência, silêncio e morte; há

também à maneira do agir e ser de Deus, potência, palavra e vida.

Ao criticar a noção de transcendência e a teologia natural, Sobrino quer

dizer que qualquer conhecimento a respeito de Deus no evento da cruz só é

possível a partir daquilo que esse evento em si representa, a saber: sofrimento e

morte. Na cruz Deus não se revela de modo intervencionista, mas de modo

desconcertante, pois se revela no silêncio e no “abandono” de Jesus. Neste

sentido, a cruz nos mostra “que Deus não é como o pensamos”122. Por isso, afirma

Sobrino, “precisamos estar dispostos a encontrá-lo não só através do positivo, mas

também do negativo. Precisamos estar dispostos a vê-lo não só como Deus maior,

mais também como Deus menor”123.

Por Deus se revelar na cruz, Sobrino afirma que Este continua se

revelando na vida dos crucificados deste mundo124. Para ele, as vítimas da

injustiça e da opressão são o lugar do conhecimento de Deus, e o são

sacramentalmente, pois nestes Deus se faz presente. Neste caso, Sobrino postula

uma identificação teologal dos crucificados da história com o Crucificado. Como

na cruz Deus está presente com o Crucificado, Este também se faz presente

silenciosamente, de forma solidária, naqueles que padecem como vítimas do anti-

reino e dos ídolos de morte125.

122 Ibid., p. 364. 123 Ibid. 124 Cf. Ibid., p. 363-365. 125 Sobrino apresenta como parte de sua teologia da cruz uma reflexão sobre a identificação do povo crucificado com Cristo Crucificado a partir da figura do Servo Sofredor. Para ele, assim como a vida e a morte de Jesus foram interpretadas, pelos primeiros cristãos, como realização da profecia de Isaías a respeito do Servo sofredor de Javé, o povo crucificado também pode ser interpretado à luz desta figura. Neste caso, ele destaca que o povo crucificado se assemelha a Jesus crucificado e ao servo sofredor por dois motivos: 1) por morrer como vítima de uma “violência institucionalizada”; 2) e por ser escolhido por Deus para trazer a salvação concreta e verdadeira – pois, mesmo sofrendo como vítima do pecado social, o povo crucificado com sua situação interpela à conversão e oferece valores que não são oferecidos em outras partes, tais como a esperança ativa, o amor humanizador, o perdão sem ressentimento, a solidariedade e a fé viva. Cf. Id. Jesus, o libertador, p. 366-390; Id. El crucificado, p. 346-354.

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Relacionado a isso, nosso autor, afirma que a cruz de Jesus constitui uma

mensagem positiva para as vítimas126. Pois se Deus, de fato, esteve na cruz,

embora silenciosamente, Ele fez a experiência de compartilhar até o fim o destino

de uma vítima. Sendo assim, a presença de Deus junto ao Crucificado é

possibilidade para as vítimas acreditarem que Ele também está absolutamente

próximo a elas, compartilhando até o fim o seu destino. A cruz é mensagem

positiva, porque as vítimas não se sentem sozinhas diante do sofrimento e da

morte. Confiando na presença de Deus, “podem superar a solidão e a orfandade

radicais e a indignidade total”, pois, para elas, na cruz Deus manifesta sua

alteridade como afinidade com todas as vítimas da história. Neste caso, “o Deus

crucificado pode ser salvação [para as vítimas] porque expressa comunhão [com

elas]”127.

Entretanto, para Sobrino, a cruz de Jesus, embora possa apresentar uma

mensagem positiva, não deve deixar de ser considerada em relação à sua

ressurreição, pois é esta que confere àquela uma dimensão libertadora128. Sem a

ressurreição, a cruz pode ser interpretada teologicamente como a expressão

absoluta da aproximação de Deus com os homens, sobretudo com as vítimas, mas

não se consegue enxergar nela uma dimensão libertadora. A cruz, sem contar com

a ressurreição, é manifestação da “impotência” de Deus. Contudo, relacionada

com a ressurreição, pode ser interpretada como o assumir radical de Deus do

sofrimento, da dor e da morte, provocados pelo anti-reino e por seus mediadores,

para vencê-los. A cruz, vista em relação à ressurreição, revela o poder de Deus e

seu triunfo sobre a injustiça.

Por outro lado, Sobrino insiste que a ressurreição, sem levar em conta a

cruz, pode ser interpretada como manifestação do poder de Deus, mas de um

poder pouco crível para os crucificados deste mundo129. O poder de Deus na

ressurreição somente se revela salvador e libertador quando se leva em conta que

Este fez a experiência da cruz. Sem relação com a cruz, a ressurreição diz respeito

apenas a alteridade de Deus e a manifestação de um poder arbitrário. No entanto,

relacionada com a cruz, a ressurreição é vista como expressão de um poder crível,

porque é manifestação do amor de um Deus que se faz totalmente solidário com

126 Cf. Id. El crucificado, p. 344-345; Id. A fé em Jesus Cristo, p. 139-141. 127 Id. El crucificado, p. 344-345. 128 Cf. Id. El crucificado, p. 344-345; Id. Jesus na América Latina, p. 222-224. 129 Cf. Id. El crucificado, p. 344-345; Id. Jesus na América Latina, p. 222-224.

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os seres humanos, sobretudo, com aqueles que são vítimas do anti-reino

configurado socialmente. Portanto, vista em relação com a cruz, a ressurreição

não expressa apenas a alteridade de Deus, mas também a sua afinidade com os

sofredores e injustiçados e a manifestação de seu poder contra os mecanismos

sociais provocadores da morte. Sendo assim, “sem a ressurreição o amor [de

Deus] não seria autêntico poder; [e] sem a cruz o [seu] poder não seria amor”130.

Com esta reflexão, Sobrino considera que a ressurreição de Jesus, assim

como a sua cruz constituem uma mensagem positiva para o ser humano,

sobretudo no que diz respeito à esperança de vida e de vitória sobre a injustiça.

Pois quem ressuscita não é outro, a não ser aquele Jesus que foi crucificado;

aquele que foi vítima da “violência institucionalizada”. Assim, a ressurreição do

Crucificado representa o triunfo do amor e da justiça de Deus sobre a injustiça.

Por isso, a ressurreição do Crucificado não se trata de uma mensagem alienante,

mas, pelo contrário, uma mensagem que desinstala o ser humano para a luta

contra a opressão e a injustiça e, que, portanto, estimula à tarefa de ajudar a

“descer da cruz os povos crucificados”.

Ora, como a ressurreição de Jesus consiste, para Sobrino, numa mensagem

libertadora, convém que apresentemos a seguir a abordagem que este autor faz

sobre esta temática.

5.5. A ressurreição do Crucificado 131 Sobrino aborda o tema da ressurreição de Jesus a partir da perspectiva

hermenêutica, histórica e teológica132. Na perspectiva hermenêutica, defende a

tese de que a esperança das vítimas, a práxis em favor dos crucificados deste

mundo e a compreensão de história como promessa constituem as exigências

hermenêuticas fundamentais para a compreensão da referida temática. Na

abordagem histórica, num primeiro momento, levando em conta o debate

exegético, expõe alguns dados transmitidos pelo NT sobre a historicidade da

ressurreição de Jesus e, num segundo momento, analisa a possibilidade de se fazer

hoje uma experiência real de ultimidade análoga à experiência pascal dos

130 Id. Cristologia a partir da América Latina, p. 272. 131 Cf. Id. Cristologia a partir da América Latina, 245-281; Id. Jesus na América Latina, 216-229; Id. A fé em Jesus Cristo, p. 23-175. 132 Cf. Id. A fé em Jesus Cristo, p. 23-175.

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discípulos quando testemunharam as aparições do Ressuscitado. Na abordagem

teológica, considera a ressurreição como revelação de Deus e como revelação de

Jesus. Apresentaremos, sucintamente, a seguir estas três abordagens que nosso

autor faz desse tema.

5.5.1. Abordagem hermenêutica Com relação à hermenêutica133, Sobrino fala da necessidade de se tentar

compreender os textos do NT sobre a ressurreição de Jesus para que este

acontecimento escatológico por ser compreendido e experimentado hoje.

Entretanto, considera que não se trata de tarefa tão simples, pois esses textos

foram escritos numa outra época e a partir de pressupostos culturais diferentes e

até alheios aos do nosso mundo e, além disso, não interpretam a ressurreição de

forma uniforme. De fato, o NT usa uma pluralidade de linguagens para exprimir a

realidade da ressurreição de Jesus como, por exemplo, o modelo lingüístico

baseado na vida (Jesus está vivo, foi visto, apareceu...), o modelo da exaltação

(Jesus foi exaltado, está sentado à direita do Pai...) e o modelo da ressurreição

(Jesus foi ressuscitado por Deus), entre outros. Ora, a explicação para esses

diferentes modelos lingüísticos está no fato de que a ressurreição de Jesus consiste

num acontecimento escatológico sem precedentes na história. E, como tal,

consiste num acontecimento que nenhuma linguagem pode exprimir

adequadamente. Todavia, segundo nosso autor, esses textos, apesar de toda

dificuldade que envolve sua compreensão, são essenciais para se poder

compreender um pouco melhor o que deve ter acontecido com Jesus depois de sua

morte e o que significa a experiência pascal.

Para Sobrino, os textos do NT que tentam exprimir o dado da ressurreição

para serem compreendidos hoje necessitam ser interpretados, ou seja, devem ser

submetidos à hermenêutica. Devem ser lidos, respeitando o que querem

transmitir, a partir da realidade atual. Nesse sentido, nosso autor, embora tenha

ciência da existência de diversos enfoques hermenêuticos, considera que o

enfoque mais adequado para a leitura destes textos, sobretudo para a realidade da

América Latina, consiste naquele que parte das vítimas deste mundo. Deste modo,

133 Cf. Ibid., p. 31-87; Id. Cristologia a partir da América Latina, p. 245-267.

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as vítimas constituem, para o nosso autor, o ponto de partida hermenêutico para a

compreensão da ressurreição do Crucificado.

É a partir das vítimas, portanto, que Sobrino faz a leitura da ressurreição

de Jesus. A sua análise hermenêutica desse evento escatológico, partindo das

vítimas, é realizada em três pontos: a esperança, a práxis e o saber. Esses três

pontos dizem respeito às três famosas perguntas kantianas: o que posso saber, o

que devo fazer, e o que posso esperar134. Aplicadas à ressurreição, temos: o que

posso esperar a partir do fato da ressurreição? O que devo fazer, uma vez que

Jesus ressuscitou? E o que posso saber da ressurreição como evento real e

histórico?

No que tange à pergunta “o que posso esperar”, Sobrino afirma que a

esperança consiste num pressuposto hermenêutico básico exigido para a

compreensão da ressurreição de Jesus135. E isto porque os próprios textos do NT

que falam desse acontecimento têm como pressuposto fundamental a esperança de

Israel de que a vida supera a morte136. Ora, quando os discípulos formulam que

depois de morto Jesus lhes aparecera redivivo, eles estão utilizando uma

linguagem proveniente da esperança de Israel, que acreditava na comunhão com

Deus além da morte. Ao dizer que Jesus está ressuscitado, o NT expressa a esta

esperança de triunfo definitivo da vida sobre a morte, e nessa esperança os

primeiros cristãos se fundamentam para interpretar o que aconteceu com o

Nazareno.

No entanto, para Sobrino, a esperança que permitiu aos discípulos

interpretarem o que aconteceu com Jesus como ressurreição não diz respeito

simplesmente à crença numa vida após a morte, mas, sim, à crença de “um triunfo

definitivo de Deus sobre este mundo de injustiça, que inflige morte e produz

134 Sobrino observa que o NT, quando fala da ressurreição de Jesus, responde a essas perguntas de Kant. Assim, a resposta à pergunta sobre o que se pode saber é a que “o Senhor ressuscitou verdadeiramente” (Lc 24,34). Com relação à pergunta sobre o que se deve fazer diante do fato de Jesus ter ressuscitado, a resposta é a seguinte: “eles saíram a pregar o Ressuscitado por toda a parte” (Mc 16,20). E a resposta à pergunta sobre o que se deve esperar por causa da ressurreição do Senhor é que “Cristo ressuscitou dos mortos como primícia daqueles que adormeceram” (1Cor 15,20). Nosso autor acredita que disso se pode inferir que a ressurreição de Jesus dá resposta às dimensões fundamentais do ser humano: o saber, o fazer e o esperar. Cf. Id. A fé em Jesus Cristo, p. 60. 135 Cf. Ibid., p. 61-75; Id. Cristologia a partir da América Latina, p. 250-255. 136 Sobre o processo do surgimento da esperança de uma vida pós-morte na história de Israel, cf. Id. A fé em Jesus Cristo, p. 62-68.

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vítimas”137. Para ele, a interpretação da ressurreição de Jesus, feita pelo NT, teve

como horizonte interpretativo, sobretudo, a apocalíptica judaica que relacionava a

ressurreição dos mortos com o exercício da justiça de Deus. Para a apocalíptica, a

fé na ressurreição dos mortos expressava a esperança no poder de Deus para

refazer o mundo dominado pela injustiça e para fazer justiça às vítimas. Por isso é

que a ressurreição de Jesus, além de ter sido interpretada no NT como o começo

da ressurreição universal (cf. 1Ts 4,15.17; 1Cor 15,51; Rm 8,29; Cl 1,18; Ap 1,5),

foi apresentada como a realização da justiça de Deus àquele que fora injustiçado

(At 2,24; 3,13-15; 4,10; 5,30; 10,39; 13,28ss). E foi, por isso, também, que os

“primeiros cristãos pregaram a ressurreição de Jesus como re-ação de Deus à ação

dos seres humanos, como a justiça de Deus em favor daqueles que foram

assassinados injustamente”138. Ora, ao pregar a ressurreição de Jesus, a partir da

esperança apocalíptica, “os primeiros cristãos estavam afirmando que se realizara

já a ação escatológica de Deus que salva o justo Jesus e faz justiça à vítima Jesus

e com ele se inaugura o fim e a plenitude dos tempos”139.

Sobrino defende, assim, que um dos pressupostos hermenêuticos mais

adequados para se compreender a ressurreição de Jesus consiste não somente na

esperança da vitória da vida sobre a morte, mas também na esperança do triunfo

da justiça de Deus sobre a injustiça dos homens, expressa na esperança

apocalíptica da ressurreição dos mortos. Em outros termos, a esperança exigida

para se compreender os textos do NT que falam da ressurreição de Jesus consiste

na esperança do poder de Deus contra a injustiça que produz vítimas. Trata-se da

esperança que tem relação direta com a justiça realizada de forma definitiva por

Deus e não simplesmente com a sobrevivência após esta vida.

A ressurreição de Jesus, vista a partir desta perspectiva, consiste em ser

mensagem de esperança, sobretudo para os crucificados da história. Para Sobrino,

o lugar correto de universalização desta esperança é o mundo dos crucificados.

Pois, se a ressurreição de Jesus é apresentada como a resposta de Deus à ação

injusta e criminosa dos homens ou como o triunfo da justiça de Deus sobre a

injustiça humana, ela se converte em boa-notícia, em primeiro lugar, para aqueles

que, analogamente, fazem a experiência da cruz, assim como Jesus a fez.

137 Ibid., p. 68. 138 Ibid., p. 69. 139 Ibid., p. 70.

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“Deus ressuscitou um crucificado e a partir de então há esperança para os crucificados. Estes podem ver em Jesus ressuscitado o primogênito dentre os mortos, porque em verdade – e não só intencionalmente – o reconhecem como o irmão maior. Por isso poderão ter a coragem da esperança em sua própria ressurreição, e poderão ter ânimo de viver na história, coisa que supõe um ‘milagre’ análogo ao que aconteceu na ressurreição de Jesus”140.

Contudo, esta esperança não representa alienação ou conformismo com a

injustiça estrutural. Pelo contrário, a esperança que surge da ressurreição é ativa,

pois desinstala o ser humano para o combate contra aquilo que produz as cruzes

na história. Os crucificados, a partir da ressurreição de Jesus, podem confiar na

parcialidade de Deus para com as vítimas e se podem se colocar em luta contra as

estruturas que provocam a morte. E, por sua vez, os cristãos que não são

diretamente vítimas, a partir desse evento, são convocados a ter e a participar da

esperança das vítimas, combatendo aquilo que ameaça as suas vidas, pois se

tornam sabedores que a vontade de Deus é contrária à injustiça.

A esperança da ressurreição de Jesus, vista nessa ótica, “não se trata só de

uma esperança além da morte, mas de uma esperança contra a morte das

vítimas”141. Trata-se da esperança de vida para as vítimas; daquela de que as

vítimas ou os crucificados deste mundo, apesar da pressão da injustiça causadora

de morte, poderão gozar da vida e da humanização. Portanto, para Sobrino, não é

qualquer tipo de esperança que permite a compreensão da ressurreição de Jesus,

mas unicamente a esperança dos injustiçados e oprimidos.

Além da esperança, Sobrino afirma que a práxis, no que tange à pergunta

“o que devo fazer”, é uma outra exigência hermenêutica para se poder

compreender a ressurreição de Jesus142. E isto, porque esta se relaciona não

apenas com uma esperança específica, mas também com uma ação específica.

Sobrino recorda que os relatos do NT de aparições do Ressuscitado aparecem

sempre relacionados à práxis do apostolado. Com efeito, os discípulos não são

apresentados apenas como meros videntes ou expectadores daquilo que

experimentaram, mas, sim, como testemunhas (At 2,32). Nesses relatos, aparecem

tanto uma disponibilidade subjetiva genérica para um fazer (testemunhar) por

parte dos discípulos, como também um encargo objetivo da parte do Ressuscitado,

que confia às testemunhas das aparições a missão de testemunhá-lo (At 1,8; Lc

140 Ibid., p. 71. 141 Ibid., p. 73. 142 Cf. Ibid., p. 75-81; Id. Cristologia a partir da América Latina, p. 263-266.

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24,48) e de continuar a sua práxis de realização do Reino de Deus (Mt 28,19-20;

Jo 20, 23; 21,15.17; Mc 16,15-18). Portanto, nesses relatos, a ressurreição de

Jesus e o apostolado (pregação e práxis) aparecem inseparavelmente unidos. O

apostolado é desencadeado pela experiência de encontro com o Ressuscitado, e a

ressurreição de Jesus, por sua vez, é um evento apenas conhecido e compreendido

por causa do apostolado. Sendo assim, para Sobrino, “o apostolado – uma práxis –

é princípio hermenêutico para se compreender a ressurreição e fora dele ela não se

compreende como acontecimento escatológico que por essência desencadeia

práxis”143. Isto significa dizer que sem o testemunho (práxis e pregação), a

ressurreição de Jesus seria um acontecimento do passado e desconhecido.

No mundo atual, de acordo com nosso autor, o dado da ressurreição de

Jesus exige, necessariamente, o apostolado (pregação e práxis), assim como foi

exigido dos próprios discípulos que fizeram a experiência de encontro com o

Ressuscitado. E o apostolado que o dado da ressurreição exige atualmente diz

respeito à práxis em favor das vítimas ou dos crucificados da história. Trata-se,

por um lado, da pregação do fato da ressurreição como realização da justiça e da

parcialidade radical do amor de Deus (pois Deus faz justiça a uma vítima) e, por

outro, do serviço para realizar no mundo o que aparece expresso na esperança da

ressurreição, a saber, a vitória sobre a injustiça. Para Sobrino, assim como Deus,

com a ressurreição, desce da cruz a vítima Jesus, os cristãos devem, por analogia,

ajudar a descer da cruz o povo crucificado.

Vista deste prisma, a ressurreição de Jesus exige uma práxis a favor das

vítimas e contra seus verdugos; exige uma ação conflitiva, social e política que

procure transformar as estruturas da sociedade para que os injustiçados tenham

vida. Essa práxis consiste, em outros termos, na realização de “ressurreições

parciais”144 que geram esperança de possibilidade de realização da ressurreição

final como triunfo definitivo da justiça e da vida sobre a injustiça e a morte.

Ora, afirmando isso, Sobrino mostra que sem assumir essa práxis

específica, a saber, o apostolado em prol dos crucificados, a mensagem da

ressurreição fica impossibilitada de ser compreendida ou captada adequadamente

em coerência com o testemunho bíblico. Daí a possibilidade de se interpretar a

143 Id. A fé em Jesus Cristo, p. 77. 144 Por “ressurreições parciais” na história, Sobrino entende o serviço pela realização dos ideais escatológicos tais como a justiça, a paz, a solidariedade, a vida dos mais fracos, a comunidade, a dignidade e a celebração. Cf. Ibid., p. 80.

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ressurreição de Jesus de forma alienante e egocêntrica como simplesmente a

recompensa dada por Deus a quem viveu virtuosamente esta vida. Por causa disso,

o apostolado garante a correta compreensão do fato da ressurreição, tal como os

discípulos assim a interpretaram.

Além da esperança e da práxis específicas como princípios hermenêuticos

para compreender a ressurreição de Jesus, Sobrino destaca que a visão da história

como promessa é fundamental para responder à pergunta “o que posso saber” da

ressurreição de Jesus145. O NT não apresenta a ressurreição de Jesus como uma

ficção, mas como algo real, de fato acontecido na história. Contudo não existe

nele nenhuma tradição histórica sobre o acontecimento da ressurreição em si. Há

apenas a tradição que apresenta o dado das aparições do Ressuscitado. E é dessa

tradição que se pode inferir a historicidade da ressurreição de Jesus. Além do

mais, o NT apresenta a ressurreição de Jesus como um acontecimento

escatológico que escapa a qualquer comprovação histórica. Sendo assim, “o que

significa saber que a ressurreição é um fato histórico?”146.

Para Sobrino, somente se pode entender a ressurreição de Jesus como fato

histórico a partir de uma específica visão de história. Para ele, a concepção

positivista e a existencialista de história não permitem compreender a ressurreição

do Crucificado como fato histórico. A primeira concepção, que se fundamenta no

princípio de objetividade, no pressuposto antropológico de que o homem é o

último sujeito da história e, também, no pressuposto analógico de que o novo na

história só pode ser conhecido a partir do antigo, não permite considerar a

ressurreição como fato histórico, porque esta se trata de algo que não pode ser

comprovado objetivamente, porque diz respeito a um acontecimento que tem

descontinuidade radical com os outros fenômenos históricos e porque se trata não

de uma ação humana, mas de uma ação de Deus. A segunda concepção, por sua

vez, devida a Bultmann, além de considerar como histórico não o acontecimento

em si, mas o significado que é dado a ele pelo ser humano, também “não aceita

que o futuro traga um significado qualitativamente novo [ao presente]147”. Essa

concepção, por sua vez, impossibilita considerar a ressurreição de Jesus como fato

histórico, porque a fé cristã afirma que esta é ação de Deus e acontecimento real,

145 Cf. Ibid., p. 81-87; Id. Cristologia a partir da América Latina, p. 255-263. 146 Id. Cristologia a partir da América Latina, p. 256. 147 Id. A fé em Jesus Cristo, p. 82.

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independente do significado que lhe é dado, e afirma também que a ressurreição é

um acontecimento escatológico “que objetiva o futuro temporal” e confere ao

presente um significado qualitativamente novo.

De acordo com nosso autor, a “ressurreição de Jesus aponta para o futuro,

e isto exige que a realidade em si mesma apareça como promessa e aponte

antecipadamente para ele”. Ora, diante da noção de que a ressurreição do

Nazareno consiste em ser ação real e escatológica de Deus, somente uma visão de

história que considere o futuro “não apenas como o inacabado do presente ou

como o possível ‘mais’ do presente, mas como promessa” 148, pode ser adequada,

segundo Sobrino, para compreender a ressurreição como fato histórico. Deste

modo, a ressurreição é acontecimento histórico, porque consiste na promessa

definitiva e escatológica de Deus que se realiza historicamente, permitindo o

acesso ao futuro definitivo. Assim, a ressurreição é um acontecimento que aponta

simultaneamente para o futurum e para o adventus. Isto quer dizer que ela não é

um acontecimento definitivamente consumado e pertencente ao passado, mas um

acontecimento pertencente ao futuro escatológico e que o antecipa historicamente.

Em outros termos, ela, mesmo escapando a qualquer comprovação histórica

objetiva, é histórica, não primeiramente porque aconteceu na história, mas

“porque funda história em que se pode e deve viver”149.

Do exposto até aqui, fica claro que a ressurreição de Jesus, no que tange à

hermenêutica, consiste em um acontecimento real que foi interpretado a partir de

uma esperança específica e que suscita a esperança da vitória definitiva da justiça

divina contra a injustiça promovida pelo ser humano; um acontecimento que

desperta uma práxis específica: o apostolado a serviço das vítimas deste mundo; e

um acontecimento do qual se pode saber, porque é histórico, no sentido de realizar

e apontar para o futuro definitivo.

148 Id. Cristologia a partir da América Latina, p. 261. Sobrino assume a noção de “promessa” de J. Moltmann. Para este teólogo, “uma promessa é uma oferta [que se faz presente na história] que anuncia uma realidade que ainda não existe”. Cf. Ibid., p. 261-262; Id. A fé em Jesus Cristo, p. 84-85. 149 Id. Cristologia a partir da América Latina, p. 263.

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5.5.2. Abordagem histórica

Além da abordagem hermenêutica, Sobrino faz uma abordagem histórica

da ressurreição de Jesus150. E essa abordagem segue duas direções. Uma trata da

análise dos relatos do NT que apresentam a “experiência pascal”; e outra analisa a

possibilidade de se fazer hoje uma experiência real de ultimidade, análoga à das

testemunhas das aparições do Ressuscitado.

Com relação à análise dos textos do NT sobre a ressurreição de Jesus,

Sobrino acentua o valor daqueles relatos que apresentam o dado das aparições do

Ressuscitado aos discípulos. Pois, para ele, esses relatos, embora bastante

teologizados, remetem, provavelmente, a um dado histórico, a saber: os discípulos

de Jesus depois de sua morte tiveram uma experiência privilegiada que

desencadeou neles a fé na sua vitória sobre a morte e que realizou a mudança de

rumo de suas vidas. Com isso, Sobrino não considera que os relatos das aparições

comprovem objetivamente a historicidade da ressurreição, visto que desse

acontecimento em si nada dizem. Para ele, eles podem apenas remeter a

historicidade da fé dos discípulos. Mas se os discípulos, diante do escândalo da

cruz, manifestaram acreditar que o Crucificado estava vivo, é porque algo, de fato,

aconteceu para que eles chegassem a proclamar isso. Por isso, é bem provável que

os relatos das aparições tenham uma base histórica que remeta ao dado da

ressurreição de Jesus.

Neste sentido, Sobrino recorda que, no NT, o que garante a fé na

ressurreição de Jesus não é o fato de estar o sepulcro vazio, mas o encontro dos

discípulos com o Ressuscitado. Verdadeiramente, os discípulos somente passaram

a acreditar que Jesus estava vivo, porque se encontraram com ele depois do evento

da cruz (cf. 1Cor 15,3b-5).

Para Sobrino, portanto, a partir dos relatos das aparições é possível chegar

a uma única conclusão objetiva sobre a historicidade da ressurreição do

Crucificado, a saber: “é histórica e real a fé dos discípulos na ressurreição de Jesus

e é histórico e real que para eles não resta dúvida que essa fé subjetiva

corresponde uma realidade objetiva acontecida ao mesmo Jesus”151. Entretanto, o

fato de não poder ser comprovada objetivamente pela história, não significa dizer

150 Cf. Ibid., p. 380-383; Id. A fé em Jesus Cristo, p. 88-126. 151 Id. A fé em Jesus Cristo, p. 105.

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que não se trate de um acontecimento real e histórico. E embora não possa ser

captada objetivamente, a ressurreição de Jesus pode ser aceita subjetivamente com

uma fé razoável152.

Com relação à analogia de “experiências pascais”, Sobrino afirma que é

possível, ao longo da história, se fazerem experiências de ultimidade análogas (e

não idênticas) à experiência que os discípulos tiveram de encontro com o

Ressuscitado153. Para ele, a presença do escatológico não se fez notar apenas na

experiência que os discípulos tiveram com o Ressuscitado. Se fosse assim, haveria

“uma espécie de deísmo da ressurreição, segundo o qual na origem se faz notar

na história a presença do escatológico, mas depois não”154. Mas com isso ele não

quer dizer que a experiência original da fé cristã se equipare às outras experiências

de ultimidade. Pelo contrário, a experiência original é fundamental para que as

outras experiências possam ser compreendidas como experiências pascais

análogas. Desse modo, o que Sobrino defende é que assim como os discípulos

fizeram a experiência do escatológico, o cristão de hoje também pode participar

dessa experiência, não fazendo, é claro, a mesma experiência, mas participando

dela por meio de experiências análogas.

Para ressaltar a diferença e a importância fundamental da experiência

pascal fundante frente às demais experiências análogas, Sobrino confere a cada

uma das duas experiências uma denominação diferente155. A experiência fundante

é denominada de “experiência escatológica”, porque no encontro com o

Ressuscitado, os discípulos experimentaram a plenificação antecipada do fim da

história; experimentaram a irrupção do escatológico. E as experiências análogas

são denominadas de “experiências de ultimidade”, porque dizem respeito à

irrupção de algo quase-escatológico em nossa realidade.

Nosso autor argumenta que as experiências de ultimidade ou análogas à

experiência pascal fundante acontecem apenas em relação ao prosseguimento de

152 Para Sobrino, por ser a ressurreição de Jesus ação escatológica de Deus, temos de nos relacionar com ela com fé. Mas essa fé não é infundada historicamente. Trata-se de uma fé razoável, porque há uma série de indícios que nos permitem afirmar a realidade da ressurreição. Estes indícios são os seguintes: o primeiro é a existência de textos que expressam que algumas pessoas honradas fizeram a experiência da presença do escatológico na história; o segundo é a possibilidade de se fazer em nossa história atual algum tipo de experiência escatológica; e o terceiro é que “a aceitação na fé da ressurreição de Jesus pode gerar maior humanização pessoal, mais e melhor história, e funda história”. Cf. Ibid., p. 106. 153 Cf. Ibid., p. 107-126. 154 Ibid., p. 113. 155 Cf. Ibid., p. 118.

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Jesus. Assim, não é qualquer experiência religiosa – às vezes alienante e

conformista – que pode ser considerada como experiência de ultimidade. Este tipo

de experiência acontece quando se historiciza a práxis de Jesus. Fazemos a

experiência da ressurreição de Jesus quando se luta contra o anti-reino e seus

ídolos e nas atitudes em prol dos crucificados deste mundo. Como na ressurreição

de Jesus se celebra o triunfo da justiça de Deus contra a injustiça que produz a

morte, quando se combate a injustiça e se vive da esperança de triunfar sobre ela,

aí se dá uma experiência de ultimidade. Ora, a experiência de ultimidade consiste

na experiência, embora bastante parcial, de “plenitude”, de “vida” e de “vitória”.

Por isso é que quando fazemos a experiência do triunfo da liberdade sobre o

egocentrismo, do amor real sobre a indiferença, da alegria sobre a tristeza, da

esperança sobre o desespero, da práxis sobre a resignação estamos fazendo a

experiência da ressurreição de Jesus. E esta, por sua vez, é apreendida melhor

como acontecimento real e histórico, quando o cristão se empenha em viver e

realizar na história aquilo que há de triunfo nela.

Desse modo, ao abordar a historicidade da ressurreição, Sobrino, além de

afirmar a impossibilidade de sua comprovação objetiva e sua aceitação como

acontecimento real e histórico apenas por uma fé razoável, considera que a fé na

ressurreição de Jesus não se limita apenas em acreditar no testemunho dos

primeiros discípulos, mas também em poder participar, embora analogamente, da

experiência que esses fizeram de encontro com o Ressuscitado.

5.5.3. Abordagem teológica

Sobrino também aborda a ressurreição de Jesus como problema

teológico156. Para ele, esse acontecimento escatológico revela algo sobre Deus,

sobre o próprio Jesus e sobre o ser humano157.

Com relação a Deus, nosso autor argumenta que, como o NT interpreta a

ressurreição de Jesus como ação de Deus158, esse acontecimento pode revelar o

156 Cf. Ibid., p. 127-175; Id. Cristologia a partir da América Latina, p. 269-281. 157 Sobrino afirma que a ressurreição revela algo de Deus, de Jesus e do ser humano. Entretanto, em sua abordagem, reflete apenas sobre aquilo que a ressurreição revela sobre Deus e sobre Jesus. Aquilo que esse acontecimento revela sobre o ser humano, não é tematizado sistematicamente por ele. Sendo assim, em nossa apresentação sobre a abordagem teológica da ressurreição, feita por Sobrino, iremos apenas considerar a revelação de Deus e de Jesus no fato da ressurreição do Crucificado.

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seguinte concernente à identidade de Deus159. 1) Revela que Este é o Deus que

ressuscita os mortos. 2) Mostra que Deus é justo, parcial e libertador das vítimas,

pois quem Ele ressuscita, fazendo justiça, trata-se de uma vítima inocente,

injustiçada e assassinada pelo poder opressor. 3) Revela um Deus em luta contra

os ídolos de morte, pois a ressurreição consiste na re-ação divina contra aquilo

que foi realizado contra Jesus pelos representantes dos poderes religioso e político

e pela sua ideologia legitimadora. 4) Revela que em Deus existe uma dialética do

ser maior e do ser menor, visto que, ao contrário da cruz na qual Ele se manifesta

impotente ou inoperante, na ressurreição, Ele aparece manifestando sua força e

triunfando sobre a morte, a injustiça e os ídolos. 5) Revela a futuridade de Deus,

porque a ressurreição, embora seja um acontecimento escatológico, não esgota a

revelação divina, mas aponta para a uma revelação definitiva no fim da história

“quando Deus será tudo em todos” (1Cor 15,28). 6) Mostra a permanência de

Deus como mistério, pois a ressurreição do mesmo modo que não esgota a

revelação divina também não esgota o mistério de Deus (entendido como

realidade incompreensível e santa); pelo contrário, este evento “até aumenta o

mistério de Deus”160, pois nele Deus manifesta ainda mais sua realidade-conteúdo,

ou seja, seu amor e sua santidade.

A ressurreição de Jesus, segundo Sobrino, revela também algo sobre

aquele que foi crucificado161, pois consiste num acontecimento escatológico que

“faz justiça à pessoa de Jesus, confirma a verdade de sua vida e leva a afirmar sua

atual plenitude”162. Nosso teólogo recorda que a ressurreição de Jesus

desencadeou um processo de fé e de reflexão teológica sobre Jesus que

desembocou na formulação dogmática que afirma que ele é o “Filho de Deus”.

Isto quer dizer que para os primeiros cristãos, a ressurreição lhes permitiu

vislumbrar, sem obscuridade, a verdadeira identidade de Jesus.

De modo mais específico, Sobrino afirma que a partir da ressurreição, os

cristãos neotestamentários chegaram a três conclusões gerais sobre Jesus de

Nazaré. A primeira diz respeito à autenticidade, diante de Deus, de sua existência.

Para esses cristãos, o fato de Deus tê-lo ressuscitado revelava sua relação peculiar

158 Cf. 1Ts 1,10; Gl 1,1; 1Cor 6,14; 15,15; 2 Cor 4,14; Rm 4,24; 8,11; 10,7.9; Cl 2,12s; Ef 2,5; Hb 11,19; At 2,24.32; 3,15; 4,10; 5,30; 10,40; 13,30.33; 17,31. 159 Cf. Id. A fé em Jesus Cristo, p. 127-152; Id. Cristologia a partir da América Latina, p. 270-272. 160 Id. A fé em Jesus Cristo, p. 149. 161 Cf. Ibid., p. 153-175; Id. Cristologia a partir da América Latina, p. 274-281. 162 Id. A fé em Jesus Cristo, p. 153.

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com o mistério divino, bem como sua existência como algo agradável a Deus163.

Em outras palavras, interpretaram a ressurreição como confirmação da existência

de Jesus de Nazaré por parte de Deus.

A segunda conclusão se refere à exaltação do Crucificado. Os primeiros

cristãos interpretaram a ressurreição como exaltação realizada por Deus daquele

que havia sido difamado e injustiçado (At 2,32s.36; 5,31; 13,33; Rm 1,4). Para

eles, o fato da ressurreição do Crucificado possibilitou afirmar que o fracassado

ou o difamado da cruz se revelou como o vitorioso ou o verdadeiro, como também

possibilitou dizer que Deus se manifestou definitivamente em Jesus e este seria

participante da dignidade e do poder divinos. Portanto, para eles, o fato da

ressurreição não teria acontecido como prêmio arbitrário que Deus havia

concedido ao Nazareno, mas como manifestação da verdade de sua vida e da sua

relação profunda com Ele.

A terceira conclusão diz respeito à esperança salvífica. Os primeiros

cristãos não só compreenderam a Jesus como o Exaltado, mas também como

“Aquele que há de vir” (At 3,20; 1Cor 16,22). Isto quer dizer que o fato da

ressurreição permitiu-lhes compreender a Jesus como “símbolo de possibilidade

de salvação, já no presente, e no futuro quando voltar no fim dos tempos”164.

Com estas três conclusões a ressurreição aparece, portanto, como

revelação da identidade de Jesus como ser humano verdadeiro (homo verus), pois

nesse acontecimento toda sua história teria sido confirmada e aprovada por Deus.

Aparece também como revelação de sua identidade como aquele que está em

relação profunda com Deus, visto que a ressurreição se trata de ação escatológica

de Deus. E, por fim, aparece ainda como revelação de Jesus como aquele que

oferece e realiza a salvação de Deus a todos os homens e mulheres.

Daquilo que expusemos até aqui neste item, fica claro que a ressurreição

de Jesus não se trata de uma mensagem alienante nem da condição humana nem

da tarefa histórico-social. Pelo contrário, Sobrino deixa claro que a ressurreição de

Jesus não é um acontecimento que anula a humanidade e a vida histórica de Jesus,

mas um acontecimento que as confirma e as aprova. Além do mais, deixa claro

163 Sobrino afirma que o NT apresenta a reflexão sobre a unidade de Jesus com Deus a partir de dois níveis: através dos títulos cristológicos e através da teologização dos acontecimentos importantes da vida de Jesus. Cf. Id. Cristologia a partir da América Latina, p. 276-281 e 384-386. 164 Ibid., p. 175.

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também que a ressurreição consiste num evento histórico-escatológico que, por ter

sido interpretado como triunfo definitivo de Deus sobre a injustiça, produz uma

esperança relacionada profundamente com a história e suscita uma práxis

determinada de transformação da sociedade para que os crucificados deste mundo

tenham vida e sejam justiçados.

Ora, se a ressurreição de Jesus, assim também como sua vida e morte, não

têm nada a ver com a alienação do humano em sua contribuição com a edificação

de relações sociais humanizadas, não se pode dizer que o ser cristão equivalha a

uma vida alienada. Ao contrário, ser cristão é viver profundamente a dimensão

histórico-social procurando realizar o Reino de Deus em meio à situação de anti-

reino, assim como Jesus também o fez. Desta forma, a identidade do ser cristão

está em assumir em nossa história a Jesus de Nazaré, juntamente com tudo aquilo

que foi sua vida, morte e ressurreição. Nos termos de Sobrino, essa identidade é o

seguimento de Jesus. No item a seguir, objetivamos apresentar, de modo bastante

sucinto e limitado, a visão que Sobrino tem do seguimento de Jesus como o

pressuposto fundamental para a configuração da identidade do ser cristão.

5.6. O seguimento de Jesus como identidade do ser cristã o165 Para Sobrino o que constitui a identidade do ser cristão é o seguimento de

Jesus166. E este diz respeito não a uma imitação mecânica de Jesus - o que é algo

impossível porque ele viveu num determinado contexto histórico diferente do

atual - mas significa o pro-seguimento de sua práxis de anunciar e realizar a boa-

notícia do Reino de Deus e de se defrontar com o anti-reino e seus mediadores.

Nesses termos, ser cristão equivale a configurar a nossa vida - opções, atitudes e

modo de ser - de acordo com Jesus de Nazaré. Por isso, o seguimento se apresenta

como uma realidade totalizante que abarca e estrutura todas as dimensões da

existência do cristão. Ser cristão não consiste apenas numa questão de integrar-se

165 Cf. Id. Cristologia a partir da América Latina, p. 134-157; 366-369; Id. Jesus na América Latina, p. 193-204; Id. Espiritualidade da libertação, p. 158-167; Id. A oração de Jesus e do cristão, p. 47-64; Id. A fé em Jesus Cristo, p. 476-482; Id. Fora dos pobres não há salvação, p. 136-144;178-185; Id. Espiritualidad y seguimiento de Jesus. In: ELLACURÍA, I. – SOBRINO, J. (Orgs.). Mysterium liberationis. Tomo II. Madrid: Trotta, 1990, p. 449-476; Id. Cristologia sistemática. Jesucirsto, el mediador absoluto del Reino de Dios. In: ELLACURÍA, I. – SOBRINO, J. (Orgs.). Mysterium liberationis. Tomo I. Madrid: Trotta, 1990, p. 584-589. 166 Sobrino afirma que “é o seguimento de Jesus [e não outra coisa] que nos faz ser cristãos”. Cf. Id. Fora dos pobres não há salvação, p. 137.

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à religião cristã e observar os preceitos eclesiásticos, mas, sim, em se deixar

nortear constantemente pelo exemplo de humanidade verdadeira realizada em

Jesus.

Pensando desta forma, Sobrino ancora a identidade do ser cristão no Jesus

histórico. Mas não deixa de considerar que essa identidade também esteja

relacionada ao Cristo da fé, pois, para ele, o seguimento de Jesus não significa

apenas ser reprodução de uma práxis, como um ativismo vazio, num novo

momento histórico, mas a realização dessa práxis motivada pela fé em Jesus como

o revelador de Deus e do homo verus, e propiciada pela atuação do Espírito. Por

isso, para ele, o seguimento consiste em ser, ao mesmo tempo, tarefa (práxis) e

graça167.

“O seguimento é a estrutura de vida, o canal marcado por Jesus para se caminhar, e o Espírito é a força que capacita para caminhar real e atualizadamente por esse canal ao longo da história. Por isso, mais do que seguimento, deve-se falar de pro-seguimento, e a partir daí a totalidade da vida cristã pode ser descrita como ‘ pro-seguimento de Jesus com espírito’”168.

Ora, o fato de afirmar o seguimento como “pro-seguimento de Jesus com

espírito” mostra que Sobrino defende a tese de que a identidade do ser cristão em

sua essência nada tem a ver com alienação e infantilismo. Pelo contrário, a

autenticidade do ser cristão está exatamente no compromisso com a realização da

vontade do Deus Abbá de Jesus na história, sobretudo na defesa dos pobres e no

empenho para que esses possam fazer a experiência de “descer da cruz”.

Para Sobrino, a identidade do ser cristão como seguimento não é algo que

se origina propriamente nos cristãos, mas no próprio Jesus. O seguimento não é

uma determinação criada por aqueles que têm fé em Cristo, mas uma

determinação exigida pelo próprio Jesus. Nesse sentido, Sobrino recorda que o

Jesus histórico exigiu de seus ouvintes o seguimento tanto daquilo que ele pregava

e realizava, como de sua própria pessoa169. Na primeira etapa de sua missão, Jesus

teria exigido duas coisas: que acreditassem não no Deus do status quo religioso,

mas no Deus Abbá parcial aos pobres que ele pregava e, também, que assumissem

o serviço ativo ao Reino de Deus como ele mesmo assumiu incondicionalmente. E

167 Para Sobrino, a práxis realizada sem fé e sem considerar a atuação do Espírito é pelagianismo ou “ativismo excessivo”. E a fé sem a práxis pode descambar no infantilismo e na alienação. Cf. Ibid., p. 137-139. 168 Id. A fé em Jesus Cristo, p. 482-483. 169 Cf. Id. Cristologia a partir da América Latina, p. 366-369.

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na segunda etapa, inaugurada pela crise galilaica, teria exigido o seu seguimento

de forma radical mesmo diante das situações de perseguições e de ameaças contra

a vida.

Por causa desta determinação de Jesus, Sobrino insiste que o seguimento

implica fundamentalmente a fé em Jesus e no Deus que ele revelou, como também

o assumir o serviço pela realização do Reino de Deus, tal como ele realizou. O

seguimento, portanto, de acordo com Sobrino, pressupõe coragem e perseverança,

porque “quem se encarrega do Reino tem de estar disposto a carregar o peso do

anti-reino”170. Deste modo, o seguimento se relaciona com o sofrimento, o

martírio e a cruz, pois aquele que enfrenta o anti-reino pode ser vítima de morte

de seus mediadores171. Assim, se o sofrimento faz parte do seguimento de Jesus

não é porque ele tenha em si valor religioso como algo agradável a Deus, mas

porque implica a conseqüência da fidelidade ao serviço de realização do Reino.

Por ser o seguimento de Jesus aquilo que confere identidade ao ser cristão,

Sobrino o apresenta, especificamente, como fundamento da espiritualidade cristã,

como exigência fundamental do discernimento cristão e, ainda, como fundamento

da identidade e missão da Igreja.

A espiritualidade cristã, segundo nosso teólogo, não equivale a uma

dimensão do ser cristão, mas, sim, à sua totalidade. Com efeito, Sobrino interpreta

a espiritualidade em equivalência com o seguimento. Para ele, não são coisas

diferentes, mas se trata da mesma realidade. Espiritualidade cristã é o seguimento

e vice-versa172. E como o seguimento é o pro-seguimento de Jesus, a

espiritualidade significa configurar a própria existência à luz da existência de

Jesus segundo o seu espírito no Espírito.

Pensando assim, Sobrino afirma que a estrutura da vida de Jesus constitui

o fundamento da espiritualidade, pois essa nada mais é do que reproduzir

historicamente tal estrutura173. Para ele, a estrutura da vida de Jesus é composta

por quatro elementos: a encarnação, a missão, a morte de cruz e a ressurreição. A

espiritualidade cristã encontra fundamento em cada um desses elementos.

Vejamos.

170 Id. Fora dos pobres não há salvação, p. 140. 171 Sobre a relação entre seguimento e martírio, cf. Ibid., p. 139-142. 172 Cf. Id. Espiritualidad y seguimiento de Jesus, p. 449-476 173 Cf. Ibid., p. 461-471; Id. A fé em Jesus Cristo, p. 476.

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Com relação ao primeiro elemento, a encarnação, Sobrino enfatiza que

Jesus nasceu ser humano, mas assumiu a sua humanidade de maneira específica

como pobre, próximo dos pobres e servidor dos pobres. Ora, essa encarnação de

Jesus fundamenta a opção pelos pobres como uma implicação fundamental para a

espiritualidade de orientação cristã. Esta deve estar voltada para os pobres. Deve

assumi-los como lugar de conversão, de atuação libertadora, de evangelização e

de encontro com Deus. Com efeito, a partir do dado da encarnação, sem essa

opção não há seguimento; não há autêntica espiritualidade cristã, pois essa opção

foi algo determinante na vida de Jesus. Por isso, o critério de verificabilidade para

o discernimento do que configura a autêntica espiritualidade cristã diz respeito à

experiência profunda de Deus na experiência profunda de luta pela promoção da

dignidade e vida dos pobres. Em outros termos, esta espiritualidade afirma-se

libertadora dos empobrecidos.

O segundo elemento da estrutura da vida de Jesus que fundamenta a

espiritualidade consiste em sua missão. Sobrino recorda que a vida de Jesus foi

norteada por uma práxis transformadora da realidade. Sua missão foi constituída

pelo anúncio e realização do Reino de Deus como libertação e salvação,

principalmente para os pobres. Ora, pautando-se em Jesus, a espiritualidade

pressupõe a mesma missão que ele assumiu e desenvolveu: o anúncio e a

realização do Reino. Isto significa, propriamente, assumir em nome de Deus, no

contexto hodierno marcado pela configuração social do anti-reino, o combate

contra a injustiça estrutural, como também contra toda ideologia que a legitime.

Desta forma, a espiritualidade se mostra como autenticamente cristã quando

denuncia e condena tudo aquilo que se opõe à vontade de Deus no âmbito pessoal

e social, como também quando realiza essa vontade, sobretudo, no empenho pela

transformação das relações humanas.

O terceiro elemento da estrutura da vida de Jesus que se apresenta como

fundamento da espiritualidade diz respeito a sua morte. Sobrino lembra que Jesus,

por ter sido fiel a sua missão junto aos pobres, foi perseguido e assassinado pelas

autoridades religiosas e políticas. Ora, para a espiritualidade cristã o que conta

como fundamento não é nem a perseguição realizada contra Jesus ou sofrida por

ele, nem a cruz, mas, sim, a sua total e incondicional fidelidade ao Deus abbá e ao

Reino. Por conta disso é que “espiritualidade cristã não é uma espiritualidade da

cruz nem do sofrimento; é uma espiritualidade do amor honrado, conseqüente e

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fiel; é uma espiritualidade de um amor crucificado”174. Nestes termos, a

espiritualidade pressupõe coragem para enfrentar o anti-reino e fidelidade para

manter o propósito missionário de anunciar e realizar o Reino, apesar da reação

poderosa do anti-reino e de seus mediadores. Neste sentido, o martírio constitui,

segundo nosso teólogo, a forma mais acabada da espiritualidade cristã como

encarnação na realidade histórica e como santidade; “é o exercício mais notável

da fé, da esperança e da caridade”175. O mártir ou aquele que é perseguido, por

causa de sua fé no Reino e no Deus de Jesus, consiste naquele que faz a

experiência da cruz de Jesus como expressão radical de sua coragem e de sua

fidelidade à vontade de Deus. Desta maneira, a espiritualidade cristã exige

perseverança e constância no exercício de realização do Reino mesmo que isto

possa representar um risco para a própria vida.

O quarto elemento da estrutura da vida de Jesus que serve como

fundamento para a espiritualidade cristã consiste no evento da ressurreição. Em

verdade, a cruz não foi a última palavra da história de Jesus. Este não consiste

num personagem do passado; alguém que morreu injustamente e nada mais. Ao

contrário, ele é aquele que permanece vivo, plenificado e glorificado, porque

venceu a morte, ou seja, ressuscitou. Ora, a ressurreição de Jesus constitui o

triunfo definitivo da vida sobre a morte e, também, o triunfo de uma vítima sobre

os seus verdugos, pois o Pai, ao ressuscitar o Crucificado, faz-lhe justiça. Para

Sobrino, a espiritualidade cristã possui uma dimensão de ressurreição. Ela

significa “viver como ressuscitados na história”; ou em outros termos, diz respeito

ao fazer à experiência da plenitude que acontece em nossa vida quando nos

empenhamos pela promoção da vida; quando a nossa esperança, mesmo contra

toda esperança, se mantém inabalável como princípio ativo pela realização da

vontade de Deus na história; quando a nossa liberdade se liberta do egocentrismo

e dos condicionamentos sociais escravizantes e das manipulações ideológicas para

potenciar a práxis gratuita do amor e da justiça; e quando a nossa alegria “celebra

a vida” superando a tristeza ou o desespero. Com efeito, a espiritualidade cristã se

mostra como exercício constante de busca de superação daquilo que nos torna

obtusos para assumirmos a opção pelo Reino. Trata-se da experiência de Deus que

174 Id. Espiritualidad y seguimiento de Jesus, p. 468. 175 Ibid., p. 469.

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nos possibilita fazer com que a vida vença em nós e por meio de nós os sinais de

morte.

Por se fundamentar na estrutura da vida de Jesus, “a espiritualidade cristã

[para Sobrino] não é outra coisa senão viver a maneira concreta de Jesus e

segundo o seu espírito”176. Espiritualidade consiste em viver norteado pela “práxis

de Jesus realizada com espírito”. Sendo assim, esta espiritualidade não tem nada a

ver nem com alienação do ser humano, de si mesmo, do mundo e da história, nem

tampouco com experiência intimista do sagrado. Ao contrário, por ser seguimento

de Jesus, a espiritualidade pressupõe, essencialmente, o compromisso práxico-

histórico com a transformação da realidade social de acordo com a vontade do

Deus abbá de Jesus ou em conformidade com o Reino, tal como Jesus realizou

norteado pela ação do Espírito.

Além de descrever o seguimento como espiritualidade, Sobrino também o

apresenta como discernimento cristão, ou seja, como aquilo que devemos realizar

para corresponder à vontade de Deus177. Neste caso, nosso autor, aponta quatro

critérios de discernimento para o agir cristão que corresponda ao prosseguimento

da práxis do próprio Jesus. O primeiro é a encarnação na história, isto é, a

solidariedade e o compromisso libertador com os pobres e oprimidos. O segundo

é a práxis eficaz do amor, ou seja, um amor que se comprove em atitudes e não

apenas o amor teórico ou de discursos. O terceiro é a práxis do amor sociopolítico,

que significa o exercício daquele amor eficaz que se torna justiça e que contribui

para uma nova configuração das relações humanas em nível micro e macro social.

E o quarto critério é a disponibilidade a um amor conflitivo, isto é, que seja capaz,

por causa de sua parcialidade em favor dos pobres e de sua eficácia sociopolítica,

de combater os opressores e a injustiça estrutural.

Levando em consideração esses quatro critérios, Sobrino aponta a práxis

de Jesus como fundamento do discernimento do agir cristão. Ora, para ele, o

cristão somente se mostra como cristão autêntico quando se empenha

decididamente em anunciar e realizar o Reino, sobretudo no que diz respeito à

solidariedade e à prática libertadora com os pobres e marginalizados. Ser cristão

equivale a assumir a práxis que norteou a vida de Jesus de Nazaré. Sem isso,

176 Ibid., p. 459. 177 Cf. Id. Jesus na América Latina, p. 193-204.

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perde-se a identidade e diferencial que caracteriza o agir cristão diante das outras

propostas religiosas e éticas.

Para Sobrino, o que vale para a espiritualidade e para determinar a

identidade do agir do cristão vale também para a Igreja e a sua missão178. A Igreja

é, essencialmente, Igreja de Jesus. Sem relação com ele, a Igreja perde sua

identidade. Neste sentido, Sobrino afirma que uma “Igreja verdadeira é, antes de

tudo, uma Igreja que ‘se parece com Jesus’, e todos intuímos que sem alguma

semelhança com ele não seremos sua Igreja nem esta se fará notar como Igreja de

Jesus”179. Sendo assim, o que faz da Igreja, Igreja de Jesus é a reprodução que

essa deve fazer da estrutura da vida dele180. Com efeito, como Jesus viveu para o

Reino e para o Deus Abbá, quanto mais a Igreja se colocar a serviço do Reino, em

correspondência a Deus, mais ela se torna seu sacramento. A missão da Igreja não

é, portanto, diferente da de Jesus. Ao contrário, a Igreja só é missionária por ser

continuadora de sua práxis. A missão desta é estar a serviço do Reino. De modo

mais específico, Sobrino destaca que ela deve assentar sua missionariedade no

prosseguimento de Jesus, sobretudo, na opção pelos pobres, na promoção da

justiça social e no configurar-se a partir do “princípio misericórdia”181.

De tudo que foi exposto neste item, pode-se afirmar que a identidade do

ser cristão não corresponde à crítica que Marx e uma linha marxista fizeram aos

cristãos de serem alienados da tarefa de contribuir eficazmente para que as

relações sociais não sejam opressoras e injustas. Ao contrário, a identidade do ser

cristão, por se fundamentar na “práxis de Jesus com espírito”, como seu

seguimento, exige profundamente uma determinada práxis histórico-social com o

178 Cf. Id. Ressurreição da verdadeira Igreja. Os pobres, lugar teológico da eclesiologia. São Paulo: Loyola, 1982, p. 49-73, 93-133, 167-198, 255-300; Id. O princípio misericórdia. Descer da cruz os povos crucificados. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 31-45. 179 Id. O princípio misericórdia, p. 31. 180 Cf. Ibid., p. 31. 181 Por misericórdia, Sobrino não entende simplesmente o exercício categorial das “obras de misericórdia”, mas algo mais radical. “É uma atitude fundamental perante o sofrimento alheio, em virtude da qual se reage para erradicá-lo, pela única razão de tal sofrimento existir e com a convicção de que, nessa reação diante do não-deve-ser do sofrimento alheio, se decide, sem escapatória possível, o próprio ser”. Ibid, p. 36. Para Sobrino, a misericórdia deve ser vista como um princípio para a fé cristã, o “princípio misericórdia”. Para ele, o próprio Jesus assumiu este princípio, pois “a misericórdia não é a única coisa que Jesus exercita, mas é o que está em sua origem e o que configura toda a sua vida, sua missão e seu destino”. Ibid., p. 37. Segundo nosso autor, o “princípio misericórdia” deve ser determinante na Igreja, para que ela seja reconhecida como Igreja de Jesus. O assumir este princípio, pela Igreja, significa a sua descentralização (o lugar da Igreja deve ser o pobre, aquele que sofre e não unicamente a instituição); o compromisso real e efetivo de luta contra a pobreza, a inumanidade e a indignidade; e o conflito com aquelas realidades da sociedade que provocam esses efeitos suplantadores da vida. Cf. Ibid., p.38-45.

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objetivo de realizar, a serviço do Deus da vida, a sua vontade salvífica e

libertadora na história como Reino de Deus.

Conclusão Neste extenso capítulo procuramos mostrar, recorrendo à cristologia de

Jon Sobrino, que a fé cristã se constitui como práxis histórico-social. Ao contrário

da acusação do ateísmo humanista de vertente marxista que suspeita dessa fé

como alienação do cristão do compromisso real e efetivo com a construção de

uma configuração social que favoreça a justiça e a vida de forma igual para todos,

intentamos mostrar que ela, em sua essência, não se relaciona em hipótese alguma

com a alienação social. Ao apresentar a reflexão de Sobrino sobre a missão, a

morte e a ressurreição de Jesus de Nazaré, constatamos que o fundamento da fé

cristã pressupõe intensamente o compromisso social como compromisso com

Deus, pois no Jesus histórico não encontramos um homem alienado nem do

humano, nem da historicidade, nem da práxis social.

O capítulo foi dividido em seis itens. Em cada um pudemos constatar a

dimensão práxica da fé cristã suscitada pela atuação de Jesus e pela interpretação

de fé que os primeiros cristãos fizeram de sua vida, morte e ressurreição. Assim,

pudemos ver que a missão de Jesus de anunciar e realizar o Reino de Deus estava

relacionada à práxis histórico-social. O modo como Jesus interpretou a

expectativa, comum em sua época, sobre o Reino de Deus como manifestação

gratuita de Deus na história para salvar e libertar, sobretudo os pobres, fez com

que ele norteasse a sua vida pela solidariedade ativa com os excluídos da

sociedade e entrasse em conflito com os grupos sociais detentores do poder e

responsáveis pela opressão e pela injustiça.

Observamos também que a compreensão que Jesus tinha de Deus, bem

como sua experiência teologal não foram alienantes para ele. Ao contrário, ao

assumir a tradição nocional do AT sobre Deus e ao intuir e experimentar a Deus

como Abbá em que se pode e deve confiar e esperar e que manifesta a salvação de

modo parcial em favor dos pobres, Jesus fez de sua existência uma atividade

constante de serviço e de promoção da vida daqueles que viviam na inumanidade

por causa da injustiça e da opressão estruturais. Por causa de Deus, Jesus, além de

ter assumido uma atividade libertadora em prol dos oprimidos, também assumiu

uma práxis profética de confronto com os opressores sociais. O Reino de Deus e a

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experiência de Deus como Pai levaram-no a configurar a sua vida de forma

profundamente compromissada com a transformação social. Jesus não concordava

com a configuração da sociedade de sua época. Para ele, essa configuração não

correspondia à vontade de Deus, ou seja, ao seu Reino. Por isso, empenhou-se

para mudar as estruturas sociais, configuradas como anti-reino, a partir de sua

pregação e atuação junto aos excluídos e em oposição aos opressores.

Constatamos também, ao apresentar a temática da morte de Jesus, que esta

não diz respeito à alienação nem do humano, nem do compromisso social. Ora,

Jesus morreu não por causa de um desígnio arbitrário de Deus, mas, sim, por

causa de seu engajamento social. O fato de ter-se defrontado com os detentores do

poder social (os mediadores do anti-reino) teve como conseqüência um processo

de perseguição que culminou num julgamento injusto que o condenou à morte na

cruz. Por isso, a cruz de Jesus, historicamente, foi conseqüência da fidelidade dele

a sua missão e da rejeição de sua pregação e de sua atividade por parte dos

responsáveis pela configuração desumanizante da sociedade. Jesus não assumiu a

cruz porque sua vida teria que terminar deste modo; assumiu-a porque foi

vitimado e injustiçado pelo poder do anti-reino.

Teologicamente, a morte de Jesus não corresponde a uma mensagem

alienante. Pelo contrário, trata-se de uma mensagem que compromete aquele que

vive da fé cristã com a transformação da sociedade. Pois a morte de Jesus é

interpretada como salvação. Relacionada a toda sua vida, sua morte aparece como

a expressão máxima de uma vida de serviço, de doação, de amor a Deus e aos

homens. O fato de Jesus morrer na cruz mostra a coerência de sua vida e revela o

que é de fato ser homo verus. Com efeito, ser homem verdadeiramente consiste

em viver para Deus, num processo de constante fidelidade a Ele, realizando a

descentralização de si mesmo, em meio à precariedade da existência, para

defender e promover a vida dos outros, especialmente dos injustiçados, apesar da

reação violenta do anti-reino. Sendo assim, o cristão deve interpretar a cruz de

Jesus como revelação do humano verdadeiro que é capaz de assumir com coragem

a própria morte como conseqüência de sua fidelidade ao Deus e ao Reino. A sua

morte, portanto, só pode ser entendida como salvífica se relacionada ao conjunto

de sua vida em prol do Reino de Deus.

Além do mais, a cruz não fundamenta uma visão teologal alienante. O

Deus revelado na cruz não é o Deus que produz o sofrimento nem aquele que lhe

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é indiferente ou o Deus que é impassível. A cruz revela o Deus que é solidário.

Nela, Deus faz também a experiência do sofrimento e da morte provocada pela

injustiça e violência institucionalizadas. Desta forma, a cruz corresponde à

expressão máxima do amor de Deus e da sua proximidade solidária como os seres

humanos, especialmente com as vítimas do pecado social. Desta maneira, a visão

teologal da cruz não é alienante, porque, ao contrário de legitimar a conformidade

com o sofrimento provocado pela injustiça, permite ao cristão enfrentar a situação

de injustiça com coragem e esperança, visto que o próprio Deus passou por essa

experiência para vencê-la. A morte de Jesus consiste em ser uma mensagem que

estimula a luta e a esperança de triunfo sobre as injustiças produzidas por uma

sociedade desumanizada e desumanizadora.

Não deixamos de ver, ainda, que a ressurreição de Jesus também consiste

numa mensagem que não produz nem a alienação do humano, nem a alienação

social. A ressurreição aconteceu com aquele que foi crucificado. Por isso, não é

vista como anulação do Jesus histórico, mas como sua glorificação e confirmação

de sua existência. Em verdade, os primeiros cristãos a interpretaram, a partir de

uma esperança específica, como sendo a inauguração definitiva da justiça de Deus

contra as injustiças humanas. E a interpretaram também como um acontecimento

histórico-escatológico a exigir uma práxis específica, a saber: o apostolado em

função da libertação dos crucificados deste mundo.

Portanto, com Sobrino, pudemos constatar que a vida, morte e ressurreição

de Jesus não foram acontecimentos alienantes, nem foram interpretados pelos

primeiros cristãos como tal. Sendo assim, o fundamento da fé cristã não é

alienação da práxis histórico-social, mas, sim, a exigência mais radical e profunda

dessa práxis. Como a identidade do ser cristão se assenta em Jesus Cristo (história

e fé), não é possível conceber o ser cristão como alienação. Ser cristão

corresponde ao seguimento de Jesus, isto é, o re-fazer com espírito e no Espírito o

Jesus histórico. Ora, se Jesus não assumiu a alienação, mas se comprometeu

profundamente com a transformação histórico-social, porque estava

comprometido com Deus e seu Reino, o cristão não deve ser diferente. A fé cristã

e o ser cristão implicam a práxis necessariamente. Sua autenticidade é

comprovada quando se dá o prosseguimento de Jesus. A fé cristã, portanto, é

contrária à alienação social. Ela exige um compromisso real e efetivo com a

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transformação da sociedade, na defesa das vítimas e no combate duelístico com o

anti-reino, seus ídolos e mediadores.

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6. A fé cristã como maturidade psicológica

Nos dois últimos capítulos procuramos expor a visão de que a fé cristã,

assentada em Jesus de Nazaré, não provoca a alienação do humano na afirmação

de Deus, nem fundamenta e suscita a alienação do cristão da atuação

transformadora na história e na sociedade. Constatamos, ao contrário, uma vez

fundamentados na reflexão teológica de Andrés Torres Queiruga e de Jon

Sobrino, que esta fé implica profundamente a valorização do humano, como

também exige daqueles que se propõem a assumi-la e a vivê-la uma práxis

histórico-social que transforme as relações sociais em conformidade com a

realização do Reino de Deus.

Entretanto, tanto as considerações teológicas de Torres Queiruga como as

de Sobrino ainda não nos permitem fundamentar, de modo mais completo, a fé

cristã como afirmação e possibilidade de desenvolvimento das potencialidades

humanas. Com elas podemos responder às acusações de grande parte do

pensamento ateu-humanista contra a fé cristã. Mas não possibilitam responder de

modo satisfatório às suspeitas provindas do ateísmo de vertente freudiana.

Conforme já consideramos1, Freud critica a religião porque esta, no seu

entender, não contribui com o processo de maturidade psíquica da pessoa. Ao

contrário, contribui para a perpetuação de situações psico-afetivas infantis.

Segundo ele, a religião, além de manter o indivíduo nos atoleiros da ambivalência

afetiva do complexo edipiano, também o impede de enfrentar de forma adulta a

realidade, pois o mantém prisioneiro das ilusões do período infantil. Ora, para ele,

a religião se encontra profundamente relacionada à neurose e à ilusão.

De fato, partindo da visão de Freud, a própria fé cristã se configura como

obstáculo para o amadurecimento do crente, pois este ao transferir para Deus,

projeção do pai onipotente, toda a carga afetiva ambivalente de amor e ódio, não

resolve adequadamente o complexo de Édipo, visto que se mantém ainda

envolvido no conflito paternal. E, além disso, ao procurar a realização dos seus

desejos infantis em Deus, se encontra novamente atrelado à experiência da

infância, porque, ao refugiar-se no mundo ilusório, se torna incapaz de assumir a

realidade como ela se apresenta, bem como a sua própria história com

1 Cf. a apresentação que fizemos da crítica de Freud ao fator religioso no capítulo 2 desta tese.

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responsabilidade. Com efeito, para Freud, a maturidade psíquica do ser humano se

configura como resolução do complexo edipiano (fim da idealização da figura do

pai e da ambivalência afetiva que o envolve) e como superação das ilusões pelo

confronto e enfrentamento da realidade. E isso, segundo ele, a religião, e no caso a

fé cristã, não o possibilita, pois mantém a pessoa enredada no mundo da criança.

Mas a fé cristã, de fato, consiste na infantilização daquele que a assume,

tal como Freud preconizou? Parece-nos que não. Porém para poder responder de

modo bem fundamentado a essa indagação é necessário que recorramos a um

aporte mais adequado do que aquele que já nos foi fornecido por Torres Queiruga

e por Sobrino. Faz-se necessário um aporte que dialogue com a psicanálise

freudiana. Sendo assim, pensamos ser conveniente levar em consideração, neste

capítulo, a reflexão de um teólogo que busque acolher com propriedade as

interpelações que a psicanálise apresenta à fé cristã. Por isso, escolhemos a

reflexão teológica de Carlos Domínguez Morano2.

Morano, como teólogo e psicoterapeuta, intenta estabelecer um diálogo,

que considera interminável, entre a teologia e a psicanálise3. Neste diálogo, tem

consciência da limitação de cada uma delas, bem como da diferença metodológica

e epistemológica entre ambas. Para ele, a teologia não tem competência para fazer

afirmações no campo da psicanálise, e nem esta, competência para afirmar algo no

campo da teologia. A psicanálise, neste caso, segundo ele, não se pronuncia sobre

nenhum enunciado de fé. Ela, por exemplo, não afirma ou nega a existência de

Deus, nem tampouco a possibilidade ou não da vida eterna. Mas isso não quer

dizer que ela não possa interpelar a teologia, como também a própria experiência

de fé. Embora não se pronuncie sobre os enunciados teológicos, a psicanálise

pode se aventurar a interpretar a intervenção que as estratégias do desejo

2Carlos Domínguez Morano, natural de Huelva (Espanha), é teólogo, filósofo e psicoterateupa. Sua tese de doutorado em teologia versou sobre a crítica freudiana da religião (El psicoanálisis freudiano de la religión. Análisis textual y comentário crítico. Madrid: Ediciones Paulinas, 1991). Foi presidente (2001-2003) da Associación Internacional de Estúdios Médicos-Psicológicos y Religiosos (AIEMPR). Atualmente atua como terapeuta e professor de psicologia da religião na Faculdade de Teologia de Granada (Espanha). E é membro da Sociedad Española de Ciencias de las Religiones. 3 Morano insiste sobre o diálogo interminável entre religião e psicanálise, especialmente na obra em que aborda o diálogo entre Freud e o pastor protestante, Oskar Pfister. Cf. DOMÍNGUEZ MORANO, C. Psicanálise e religião: um diálogo interminável. Sigmund Freud e Oskar Pfister. São Paulo: Loyola, 2008. Convém dizer que Morano não dialoga com a psicanálise unicamente para defender a fé cristã das críticas de Freud. Para ele, isso é de menos. Ele, como teólogo, dialoga com a psicanálise, porque esta interpela a fé cristã com uma nova visão de ser humano – “determinado” pelo inconsciente – que questiona a visão antropológica cristã. Cf. Id. Crer depois de Freud, p. 92.

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inconsciente podem manifestar na experiência religiosa do crente e na sua

explicitação teológica4. Ora, como nada no ser humano escapa à questão do

inconsciente, com a experiência de fé não é diferente. Esta está relacionada com

as estruturas afetivas mais profundas do ser humano. Por isso, não existe uma

experiência de fé que não esteja vinculada ao mundo dos desejos do inconsciente

humano. Sendo assim, a psicanálise pode determinar o que pode haver de

infantilizante ou patológico nessa experiência, como também pode colaborar para

que o teólogo possa discernir o que pode haver também de infantilizante ou

patológico, por causa das projeções inconscientes, nos fundamentos teóricos dos

enunciados teológicos.

O próprio Morano, como conhecedor de teorias psicanalíticas e como

teólogo, procura investigar, à luz dos postulados psicanalíticos, algumas questões

teológicas e pastorais com o objetivo de averiguar como a experiência da fé cristã

pode ser vivenciada e explicitada de modo a impedir a maturidade psicológica do

cristão por causa da influência determinante de desejos inconscientes relacionados

à fase infantil5. Mas, embora Morano constate que a fé cristã possa ser vivida de

modo infantilizante, para ele, essa fé, que tem como fundamento Jesus de Nazaré

e sua relação com Deus-Abbá, não se constitui como perpetuação de situações

infantis. De acordo com ele, a fé cristã, em sua essência, longe de manter o cristão

prisioneiro dos desejos inconscientes da fase infantil e da ambivalência afetiva

edipiana, se constitui como humanizadora, pois possibilita ao cristão manter

superados esses sentimentos numa abertura consciente e corajosa à realidade e à

alteridade. Neste sentido, Morano concorda, portanto, com a crítica freudiana da

religião, já que esta pode ser vivida sob as malhas da infantilidade. Mas, por outro

lado, discorda dela, porque a fé cristã não se assenta nos desejos da infância, mas

em Jesus de Nazaré e em sua experiência bastante madura de Deus. Neste sentido,

para Morano, esta fé tanto pode ser vivida sob o registro do imaginário como do

simbólico6. No primeiro, a experiência religiosa configura-se infantilizante, e no

segundo, humanizadora.

4 Cf. Id. Experiencia cristiana y psicoanálisis. Santander: Sal Terrae, 2006, p. 15-17; Id. Crer depois de Freud, p. 97-98. 5 Os temas mais abordados por Morano são os seguintes: a configuração da imagem de Deus; a experiência de Deus; a culpabilidade na experiência de fé; a sexualidade; e as relações entre os cristãos na comunidade eclesial. 6 Imaginário e simbólico são dois registros da estrutura afetiva mais profunda. Foi a psicanálise de J. Lacan, de acordo com Morano, que empreendeu a distinção entre os dois. “O imaginário

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Neste capítulo queremos, pautados nas investigações teóricas de Morano,

abordar a problemática da experiência de fé vivenciada pelo cristão tanto como

imaturidade quanto como maturidade. Ou seja, pretendemos mostrar como a fé

pode ser assumida, vivida e, também, expressada de modo desumanizador e

humanizador. Para tanto, vamos focalizar nossa atenção em apenas duas questões

teológicas abordadas por Morano à luz dos postulados psicanalíticos. As questões

são as seguintes: a configuração da imagem de Deus a partir dos pólos parentais

(materno e paterno), confrontados com a revelação do Deus de Jesus de Nazaré; e

a relação entre culpabilidade e experiência cristã. Escolhemos essas questões entre

tantas outras, porque as consideramos essenciais para o que pretendemos neste

capítulo e porque são suficientes para apresentar a problemática da maturidade ou

da imaturidade da pessoa que vivencia a fé cristã. Além do mais, são questões que

se relacionam diretamente com as acusações de Freud à religião como ilusão e

neurose.

Por causa da escolha destas duas questões, este capítulo será dividido em

duas seções. Na primeira, vamos abordar o tema da imagem de Deus configurada

a partir dos vetores maternos e paternos. Apontaremos as possibilidades e os

riscos que isso implica para a psicologia do crente e para a experiência religiosa.

Além do mais, iremos confrontar a imagem de Deus, configurada pelos pólos

parentais, com o Deus de Jesus. Já na segunda seção, nossa atenção se concentrará

sobre o tema da culpabilidade, que aparece, certamente, de modo bastante

acentuado em certas experiências religiosas e em alguns enunciados teológicos.

Mostraremos que os sentimentos inconscientes de culpabilidade podem

contaminar a experiência cristã em suas múltiplas expressões, bem como daremos

destaque a possibilidade desta experiência, por sua vez, mobilizar a culpabilidade

de cunho patológico. Contudo, defenderemos que a fé cristã, em seu fundamento,

não se relaciona com a culpabilidade mórbida nem a mobiliza. Com a

apresentação desses enfoques acreditamos poder responder à acusação de Freud à

religião, como também acolher esta acusação como interpelação à teologia e à

vivência autêntica da fé cristã.

compreenderia tudo o que se constitui sob a força da afetividade, ignorando qualquer tipo de limitação proveniente do intersubjetivo. O simbólico, ao contrário, também alimentado pelo mundo afetivo, se constitui sob a marca e estruturação do intersubjetivo e, portanto, no reconhecimento dos limites às aspirações do desejo”. Id. Crer depois de Freud, p. 97 (nota 36).

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6.1. A configuração do Deus imaginário e o Deus de Jesus 7 Comecemos esta seção com a seguinte pergunta: com qual Deus o cristão

se relaciona na vivência de sua fé: com o Deus de Jesus de Nazaré ou com o Deus

criado pelos desejos inconscientes da infância conjugados com a ambivalência

afetiva do complexo edipiano? Essa pergunta não é descabida, pois, segundo a

psicanálise freudiana, a representação de Deus, especialmente sob a imagem de

Pai, se oferece como a mais propicia para projetar os sonhos e as ilusões infantis e

como forma de perpetuar a ambivalência afetiva de Édipo. Isso significa dizer que

o cristão pode pensar estar vivendo sua fé no Deus de Jesus, mas, na verdade,

pode estar cultuando o Deus projetado pelos seus desejos inconscientes da

infância. Neste sentido, na oração, por exemplo, a pessoa religiosa pode estar

dialogando não com o “Deus vivo e verdadeiro”, mas com o Deus que

corresponde à projeção parental de suas fantasias inconscientes mais abscônditas8.

Sendo assim, a fé cristã pode ser vivida de modo infantilizante, porque o cristão

pode se relacionar com o Deus que não permite superar nem a ambivalência

afetiva do complexo de Édipo nem as ilusões produzidas pelo desejo infantil de

proteção e amparo. E isto porque esse Deus não é o Deus de Jesus, o Deus que

fundamenta a fé cristã, mas o Deus construído a partir dos desejos infantis e das

necessidades mais profundas e primitivas de nosso mundo afetivo. Trata-se do

“Deus imaginário” que deve ser confrontado com o “Deus da realidade e da

história” de Jesus de Nazaré9.

Por ter consciência desta problemática, Morano dedica especial atenção à

questão de como se processam as representações parentais de Deus a partir dos

desejos inconscientes do ser humano relacionados às figuras paterna e materna.

Nesta seção, nossa intenção consiste em fazer a exposição da reflexão deste autor

7 Cf. Id. El psicoanálisis freudiano de la religión, p. 380-417; 495-499; Id. Crer depois de Freud, p. 117-139; Id. Experiencia cristiana y psicoanálisis, p. 19-23; 45-75; 98-99; 227-238; Id. “La paternidad de Dios bajo sospecha: punto de vista psicoanalítico”. In: Dios Padre ante el reto de la injusticia y del inconsciente. Bilbao: Universidad de Deusto, 1999, p. 51-79. 8 O próprio Morano não deixa de considerar a oração como uma grande estufa para o florescimento das maiores representações fantasmáticas de Deus. Cf. Id. Orar depois de Freud. São Paulo: Loyola, 1998; Id. Crer depois de Freud, p. 101-115. 9 “Deus imaginário” e “Deus da criança” são expressões de Morano para designar o Deus que não passa de uma projeção psíquica produzida pelo desejo de onipotência relacionado à mãe ou ao pai. E “Deus da realidade e da história” designa o Deus de Jesus de Nazaré; o Deus verdadeiro, que não é produto da imaginação ou da capacidade psíquica projetiva do ser humano. Cf. Id. Crer depois de Freud, p. 101-139.

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a respeito desse assunto. Para tanto, iremos dividir essa exposição em três itens.

No primeiro, retomaremos com Morano a teoria de Freud que postula Deus como

projeção da figura paterna por causa do desejo de onipotência presente na

dinâmica psíquica do ser humano. No segundo, veremos, para além das

considerações psicanalíticas de Freud, a importância das figuras parentais

(materna e paterna) para a experiência religiosa, bem como mostraremos os riscos

que elas podem representar para esta experiência. No terceiro item, iremos

mostrar que o Deus de Jesus de Nazaré se diferencia radicalmente do “Deus da

criança”. Mostraremos que a experiência religiosa do Deus de Jesus, por nada ter

a ver com o Deus projetado pelo desejo infantil de onipotência, colabora com a

maioridade psicológica do homem e da mulher.

6.1.1. A relação entre o pai e Deus na teoria de Freud, co nforme Morano 6.1.1.1. Deus como projeção da figura paterna Morano recorda que Freud estabeleceu uma estrita vinculação de Deus

com a figura do pai10. Ele observa que nos escritos do fundador da psicanálise,

tanto sobre os casos neuróticos como também sobre a dinâmica da ilusão, Deus

aparece como uma projeção psíquica da figura paternal. Isto quer dizer que, para

Freud, Deus não é outra coisa senão o próprio pai, elevado à categoria de

divindade, que é imaginado como onipotente.

Por um lado, segundo nosso autor, no caso dos textos de Freud que versam

sobre a análise da dinâmica das ilusões, Deus é considerado como uma poderosa

ilusão produzida pelo desejo do ser humano de se encontrar constantemente

protegido, amparado e consolado frente à miséria, à indigência humana e à dureza

da realidade. Neste caso, Deus é fruto da procura, por parte do indivíduo, de

experimentar aquela antiga proteção que os pais lhes asseguravam na mais tenra

infância; é conseqüência dos desejos infantis inconscientes. Por causa disso, a

crença em Deus, na visão de Freud, impede o ser humano de se relacionar com a

realidade e de aceitar a limitação e a precariedade humana. Por isso, este é

imaturo ou infantil; vive no mundo ilusório da criança.

10 Cf. Id. Experiencia cristiana y psicoanálisis, p. 45-52.

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Por outro lado, de acordo com Morano, nos escritos de Freud que versam

sobre a neurose, Deus é apresentado como a projeção ilusória do pai, no qual se

revive e se perpetua o conflito paterno-filial, isto é, a ambivalência afetiva com

relação à figura paterna. Em verdade, assim como para a criancinha o pai é amado

porque lhe confere proteção e amparo e, ao mesmo tempo, odiado porque é ele

quem possui o poder, para o crente, Deus, como projeção da figura do pai,

também é amado e odiado. É amado ou adorado, porque é capaz de realizar os

desejos infantis do indivíduo religioso, e é odiado ou rejeitado, porque este tem

que se submeter a ele que detém todo o poder. Por causa dessa ambivalência

afetiva relacionada a Deus, os sentimentos de culpabilidade e o próprio complexo

de Édipo não são resolvidos satisfatoriamente. Pelo contrário, na relação com

Deus, magnificência da figura paternal, o ser humano perpetua a ambivalência

afetiva do complexo edipiano e a culpabilidade que o envolve. Sendo assim, não

consegue alçar sua maturidade psíquica, pois vive submetido a uma situação

neurotizante.

Esta vinculação que Freud estabelece entre o pai e Deus constitui, de

acordo com Morano, uma interpelação profunda à fé cristã, pois esta, além de

afirmar a existência de Deus como independente da atividade projetiva do ser

humano, apresenta como seu núcleo mais radical a paternidade de Deus: Deus é o

Pai de Jesus e também o nosso. Ora, Freud, além de exibir Deus como projeção do

pai, também apresenta a idéia da paternidade como algo fundamental para a

constituição do homem e da mulher. A figura do pai, segundo Freud, é algo que se

inscreve no inconsciente do ser humano influenciando toda sua vida, como

também a constituição de sua personalidade. Levando isso em consideração,

Morano afirma que a representação paterna se oferece, então, como elemento

essencial “para compreender a dinâmica de cada indivíduo em suas relações

consigo mesmo, com os outros e com Deus também”11. Sendo assim,

perguntamos: não seria Deus, de fato, apenas uma projeção da figura paternal?

Não poderia ser a crença cristã na paternidade de Deus apenas uma criação dos

desejos inconscientes relacionados à figura do pai? Para Morano, a resposta é

negativa. Mas, para ele, o “Deus da realidade e da história” pode ser representado

e confessado pelos cristãos através de imagens (símbolos) pertencentes às esferas

11 Ibid., p. 45-46.

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mais íntimas do mundo afetivo, incluindo a imagem de Pai. Isto quer dizer que a

descoberta do papel da figura do pai no inconsciente não constitui prova alguma

contra a existência de Deus como ser autônomo ao ser humano. Porém revela que

Deus pode ser representado como Pai, porque a figura do pai constitui uma das

imagens fundamentais da afetividade profunda dos homens e mulheres. Contudo,

Morano tem consciência de que a representação de Deus como Pai pode envolver

ambigüidade, visto que “essa paternidade revelada na fé se encontra de imediato

sob suspeita por causa dessa outra paternidade inscrita como figura chave de

nosso inconsciente, de seus conflitos e de suas mais ignoradas aspirações”12.

Neste sentido, a imagem de Deus como Pai pode ser confundida com a figura

paterna, o que provoca, tal como Freud denunciou, a perpetuação da ambivalência

afetiva edipiana e a ilusão de que Deus, como portador da onipotência, pode ser

disponibilizado para a realização dos desejos infantis do crente.

Com efeito, para Morano, essa confusão ou identificação de Deus com a

figura paternal inconsciente não diz respeito ao Deus da realidade, mas a um Deus

meramente “imaginário” ou a um “fantasma” criado pela capacidade projetiva do

ser humano. Pois, diferentemente desse Deus projetado psiquicamente, o Deus

verdadeiro não é criação do psiquismo, mas “Alguém” com quem se pode

relacionar e “ser vivenciado simbolicamente como pai ou como mãe”13. Assim, a

diferença é clara. Pode haver o “Deus imaginário” e existe o “Deus da realidade e

da história” que pode ser experimentado no registro “simbólico” do paterno ou

materno, mas que não pode ser confundido com sua representação parental.

Mas qual é a origem para Freud do Deus do registro meramente

imaginário? Ou em outros termos: o que dá origem à projeção da figura do pai

como Deus? Para Morano, a resposta encontra-se relacionada aos sentimentos

infantis de onipotência (mobilização do nosso mundo inconsciente em função da

realização do desejo de total proteção e de domínio sobre a realidade). E é isso o

que nos interessará a seguir.

12 Ibid., p. 46. 13 Id. Crer depois de Freud, p. 112.

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6.1.1.2. Os sentimentos infantis de onipotência como origem da projeção psíquica do pai como Deus

Ao analisar de modo rigoroso a crítica que Freud apresenta à religião como

neurose e ilusão, Morano descobre que a questão da onipotência ocupa um lugar

central em toda a problemática da psicanálise freudiana da religião14. Segundo sua

análise, Freud apresenta, embora de modo não matizado e explicitado, a relação

intrínseca entre os sentimentos infantis de onipotência e os temas da ilusão

protetora e da ambivalência afetiva edipiana.

Freud, no entender de Morano, considera que os sentimentos infantis de

onipotência conduzem tanto à gênese do ilusório15 como ao conflito edipiano16, e,

por causa disso, são os responsáveis pela origem da projeção do pai como Deus e

pela ambivalência afetiva com relação a ele. Tentemos entender isso melhor.

Para Freud, na visão de Morano, a crença na onipotência é algo que se

impõe ao sujeito nas primeiras fases do seu processo psico-afetivo e algo que, por

não deixar de existir no inconsciente, acompanha-o pela vida a fora, podendo ser

projetado, pela via ilusória, em algumas pessoas (professores, marido ou esposa,

religiosos, amigos e etc) e, inclusive, pode ser projetado em Deus. De acordo com

essa visão, o que se processa na psicologia do ser humano desde os seus primeiros

anos de vida é o seguinte. Num primeiro momento, a criancinha se vê como

onipotente, pois ainda não se deu conta da realidade que a envolve; tudo gira ao

seu redor e tudo existe para servi-la. Num segundo momento, a criança, ao tomar

consciência de seu estado de desamparo e dependência, transfere a onipotência

que antes pensava possuir para seu pai. E, num terceiro momento, com a

consciência da realidade que a cerca, se dá conta que o pai não é onipotente. Ao

tomar consciência disso, duas possibilidades emergem para a criança. A

possibilidade da maturidade ou da imaturidade. A maturidade psicológica se

efetiva quando ela supera o desejo de onipotência e se deixa nortear pelo

“princípio da realidade”. E, por outro lado, a imaturidade ou a infantilidade

psicológica se perpetua quando o desejo de onipotência, sem ser superado, é

projetado em substitutos do pai onipotente.

14 Cf. Id. El psicoanálisis freudiano de la religión, p. 380-417; Id. Crer depois de Freud, p. 93-94; Id. Experiencia cristiana y psicoanálisis, p. 18. 15 Cf. Id. El psicoanálisis freudiano de la religión, p. 399-407. 16 Cf. Ibid., p. 407-417.

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Em verdade, essa crença na onipotência, tão normal na psicologia da

criança e tão prejudicial ao adulto, se relaciona com o desejo infantil de proteção e

amparo. Ao perceber que não é onipotente, a criança, para satisfazer esse desejo,

projeta na figura paterna e, depois, nos seus substitutos a onipotência para que

possa defendê-la da ameaçadora realidade. E como esse desejo também se

encontra radicado no inconsciente do ser humano, este se vê constantemente

tentado, mesmo quando adulto, a idealizar a figura paterna como onipotente para

lhe conceder proteção constante ao longo da vida. Por isso, “uma imensa nostalgia

do pai se inscreve no coração humano”17. Daí a possibilidade para a projeção do

pai onipotente como Deus. Ou seja, uma vez que toda projeção do pai onipotente

em outras pessoas humanas está sujeita a algum fracasso, visto que esta ao se

deparar com a limitação da realidade não consegue se manter, Deus, neste caso, se

apresenta como a projeção ideal deste pai. E isto porque nele a onipotência fica

resguardada de toda ameaça, pois, “por essência, Deus carece de limitação em seu

poder, saber e bondade”18. Portanto, Deus se apresenta como o pai onipotente que

não corre o risco de perder a onipotência.

A projeção psíquica da figura do pai como Deus, portanto, tem origem no

desejo infantil de proteção e amparo e na crença na onipotência. Deus, neste caso,

aparece como instância ilusória de proteção; uma “realidade”, na qual os

sentimentos infantis de onipotência se encontram confirmados e garantidos.

Neste sentido, Freud, de acordo com Morano, por estabelecer a relação

entre a crença na onipotência e o desejo de proteção, aponta o narcisismo infantil

como algo profundamente relacionado à idealização da figura paterna e como a

condição fundamental para o aparecimento do “Deus imaginário”. A projeção do

pai onipotente como Deus é uma artimanha do desejo inconsciente para manipular

a onipotência em função de sua satisfação. Essa onipotência transferida nada mais

é do que o próprio sonho do homem de ser onipotente e poder dominar a

realidade; é expressão do seu narcisismo ou de sua dificuldade em aceitar sua

impotência e limitação. Trata-se de uma ilusão.

Com a onipotência transferida para Deus, a pessoa pode, a partir do

ilusório, manipular a realidade para não aceitá-la como tal. Daí a alienação da

realidade e o fechamento do ser humano sobre si mesmo. Por causa disso, é que

17 Id. El psicoanálisis freudiano de la religión, p. 400. 18 Ibid.

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Freud, segundo Morano, propõe a abertura lúcida à realidade como única

condição para o amadurecimento psíquico. Pois é somente superando a crença na

onipotência que o indivíduo consegue renunciar ao narcisismo infantil e sair dos

atoleiros dos desejos inconscientes da infância. “A maturidade do ser humano

passa, então, pela renúncia da primazia do mundo interno dos desejos sobre a

realidade”19.

A crença na onipotência, relacionada diretamente ao desejo de proteção e

ao narcisismo infantil, além de ser responsável pela idealização da figura paterna,

inclusive de sua projeção ilusória como Deus, consiste em ser também, de acordo

com Morano, a motriz da ambivalência afetiva edipiana. Isto quer dizer que o

complexo de Édipo está relacionado com a recusa a perder a onipotência. Édipo

“é algo mais que uma rivalidade em relação a um objeto: a mãe”20; é “uma

questão de ser ou não ser, de ser ou não ser onipotente”21. Ora, uma vez que a

criancinha se vê limitada e carente de proteção, ela encontra no pai a onipotência,

visto que este é quem “possui” a sua mãe. Na verdade, ela projeta sobre a figura

do pai o seu próprio desejo de onipotência. O pai, para ela, possui um poder sem

limites; é capaz de tudo realizar e de tudo saber. Ela vê na figura paterna aquele

que pode satisfazer os seus desejos. Por causa disso, o pai é amado. Contudo, ela

também o odeia. E isto porque quem é onipotente é o pai e não ela. Deste modo,

por causa da questão da onipotência se estabelece uma ambivalência afetiva de

amor e ódio com relação à figura paterna: “admiro-te porque és grande e

poderoso; mas te odeio, porque poderoso és tu, e não eu, tal como desejo”22. O

amor manifestado à figura paterna é amor à onipotência projetada nesta figura e o

ódio ao pai é o ódio por não possuir esta onipotência.

Para Freud, de acordo com Morano, na religião a ambivalência afetiva

com relação à figura do pai não deixa de existir. Uma vez que Deus se apresenta

como substituto do pai ou como sua idealização, essa ambivalência se orienta para

ele. Deus é amado e odiado. É amado, porque é onipotente e, por isso, pode estar

a serviço da realização dos desejos da pessoa religiosa; e é, inconscientemente,

odiado porque é ele quem possui a onipotência e não o indivíduo. E porque Deus

possui a onipotência, a pessoa religiosa se submete a ele. Trata-se, porém, de uma

19 Id. Experiencia cristiana y psicoanálisis, p. 18. 20 Id. El psicoanálisis freudiano de la religión, p. 409. 21 Ibid. 22 Ibid.

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submissão com a finalidade de gozar os benefícios da sua onipotência. Na

verdade, essa submissão diz respeito ao desejo do homem por conquistar a

onipotência que sempre desejou. Por isso, “a religião, a partir desta perspectiva, é

a história de uma luta camuflada e perene contra o pai para conquistar a

onipotência”23.

Desta forma, Morano consegue mostrar que a crítica de Freud à religião

centraliza-se na questão da onipotência. Freud, no seu entender, critica a religião

por esta se configurar como algo que permite ao homem alimentar as suas ilusões

relacionadas aos sentimentos infantis de onipotência e, ao mesmo tempo, como

algo que perpetua a ambivalência afetiva do complexo edipiano por causa destes

mesmos sentimentos. Porém, a fé cristã consiste em ser uma instância que

favorece a projeção ilusória dos desejos infantis de onipotência? E o Deus cristão,

tem este alguma coisa a ver com a idealização do pai onipotente que faz perpetuar

a ambivalência afetiva do complexo de Édipo? Para Morano, certamente que não.

Mas sobre isso dedicaremos a devida atenção no último item desta seção. Nosso

interesse no próximo item consiste em apresentar, pautados em Morano, as

interpelações que a psicanálise freudiana, para além do pensamento de Freud, faz

à fé cristã no que concerne à representação de Deus. No entanto, antes como

introdução, falaremos, brevemente a respeito da importância das figuras parentais

(mãe e pai) para a compreensão psicanalítica do fator religioso.

6.1.2. Figuras parentais, experiência religiosa e represen tação de Deus De acordo com Morano, Freud em sua análise do fator religioso, apresenta

uma notável lacuna: o papel do elemento feminino e materno24. Toda sua teoria

sobre a religião privilegia o masculino e paterno. Somente a figura do pai está

relacionada à ilusão protetora e à ambivalência afetiva. A figura materna é

ignorada. Freud não fala de ilusão protetora, nem de sentimentos de onipotência,

nem de ambivalência afetiva relacionados à mãe, mas exclusivamente ao pai.

Entretanto, neste caso, nem todos psicanalistas freudianos concordam com Freud.

A psicanálise freudiana, depois de Freud, tem procurado valorizar o elemento

feminino e materno na compreensão do fator religioso. É por isso que Morano não

23 Ibid., p. 416. 24 Cf. Ibid., p. 455-457; Id. Crer depois de Freud, p. 66-70.

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se contenta apenas em considerar as interpelações à fé cristã da crítica à religião

feita por Freud. Ele se interessa também em acolher as interpelações que são feitas

a partir da psicanálise freudiana mais desenvolvida e que melhor considerem o

elemento materno e feminino na constituição da estrutura psíquica do ser humano

e na explicação de sua dimensão religiosa.

A dimensão religiosa antropológica, segundo Morano, está profundamente

marcada pela influência inconsciente tanto do pólo paterno quanto do materno. De

fato, a religião, a fé e a visão de Deus não surgem no homem e na mulher como

algo direto e espontâneo. Tudo isso é vivido e se desenvolve em relação com a

nossa estrutura afetiva profunda. Com efeito, como esta é marcada, desde os

primeiros anos de nossa vida, pelas figuras do pai e da mãe, se pode dizer que a

experiência religiosa não se dá sem manter relações com os marcos materno e

paterno presentes no nosso mundo psíquico. Ademais, nosso autor recorda que a

experiência religiosa “sempre tendeu também a articular-se simbolicamente em

torno de dois grandes referenciais humanos”25. Ora, isto quer dizer que o materno

e o paterno, além de marcarem toda experiência religiosa particular, apresentam-

se como os dois grandes marcos privilegiados pelos quais as grandes correntes

religiosas, incluindo o judaísmo e cristianismo, expressaram e expressam os

conteúdos fundamentais de suas crenças.

O fato de a experiência religiosa (experiência de Deus) não ser alheia à

estrutura afetiva profunda do ser humano e, também, de ser expressa a partir do

materno e do paterno pressupõe, segundo Morano, uma grande possibilidade,

entendida como algo positivo, e um grande risco26. Possibilidade, porque essa

experiência pode ser assumida não como algo extrínseco à nossa afetividade, mas

como algo que faz parte de nossa estrutura psíquica. Em outras palavras, o Deus

verdadeiro só pode ser experimentado pela profundidade do ser humano.

Já o risco diz respeito à redução da experiência religiosa a certas

necessidades puramente psíquicas que impedem a abertura e o diálogo com o

“Deus da realidade e da história”. Podemos criar imagens de Deus, a partir das

complexas relações com o materno e o paterno, que nada têm a ver com o Deus

verdadeiro. E isto porque a representação parental de Deus se apresenta bastante

propicia para projetar os sonhos infantis de onipotência.

25 Id. Crer depois de Freud, p. 118. 26 Cf. Ibid., p. 118-119.

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Nos sub-itens a seguir, queremos apresentar essa problemática tal como

Morano a aborda. Vamos ver a importância dos pólos paterno e materno na

configuração da imagem de Deus e as possibilidades e riscos que isso comporta

para a experiência de fé.

6.1.2.1. O pólo materno e a experiência de Deus Pautado na descoberta psicanalítica da figura da mãe na primeira fase da

infância, Morano defende a tese de que o pólo materno é fundamental para a

possibilidade do surgimento e do desenvolvimento da dimensão religiosa do ser

humano, mas, também, ressalta que este pólo parental pode favorecer uma

representação de Deus que nada tem a ver com o Deus de Jesus de Nazaré. Sendo

assim, segundo ele, a experiência psíquica pela qual cada pessoa passa na sua

primeira infância com relação à figura materna pode favorecer tanto uma

experiência amadurecida do divino como uma experiência religiosa infantilizante.

Vejamos como isso pode acontecer.

6.1.2.1.1. O papel da figura materna no processo psico-afetivo

A psicanálise, de acordo com nosso autor, afirma a existência de uma

experiência de simbiose do bebê com a mãe nos seus primeiros meses de vida. O

bebê, embora ao nascer se separe fisicamente da mãe, continua fusionado a ela

pelo seu psiquismo. Este se recusa a aceitar a separação que ocorreu no momento

do nascimento. Por isso, a mãe, para ele, constitui um objeto polarizador de seu

desejo. Ele “aspira reproduzir a situação de simbiose total na qual se encontrou

nos meses de sua existência intra-ulterina”27. E por causa desse desejo, pela via

alucinatória, experimenta-se como fusionado à mãe; percebe-se como uma parte

da totalidade do mundo em que vive; e sente-se tão fundido e confundido com

essa totalidade que nem sequer na amamentação “se dá conta se ele é essa boca

que suga ou o peito que o alimenta”28. Nesta fase, portanto, o recém-nascido não

possui ainda um eu que lhe confira autonomia e independência. Ele e a mãe

formam um todo indiferenciado.

27 Ibid., p. 120. 28 Ibid.

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Essa experiência da criança com a mãe, de acordo com Morano, consiste

em algo essencial para que a pessoa possa estabelecer, ao longo de sua história,

relações pessoais estáveis com outros e também com Deus29. E isto porque nessa

experiência se processam os primeiros laços de confiança estabelecidos pelo ser

humano. Ora, ao se relacionar numa simbiose com a mãe, a criancinha vê

garantida a sua segurança e o seu bem-estar. A mãe representa, para ela, a única

possibilidade de existir. Por isso, ela desenvolve uma confiança radical na mãe;

sente-se envolvida pela totalidade materna. A figura maternal configura a primeira

destinação da confiança do ser humano. Por isso, essa confiança fundamental se

apresenta como o pressuposto psíquico básico de todas as demais confianças a

serem estabelecidas pelo indivíduo ao longo de sua vida. Sem essa experiência, a

desconfiança radical tomaria conta da pessoa em todas as relações estabelecidas

por ela. Neste sentido, Morano afirma que “quem não pôde experimentar essa

confiança básica de ser sustentado nos braços da figura materna, não poderá nunca

fiar-se nos outros e, portanto, tampouco, nesse outro psíquico, que é Deus para

nós”30. Por isso, a experiência maternal da primeira infância revela-se

fundamental para a possibilidade da experiência de Deus tanto positiva quanto

negativa. Vejamos.

6.1.2.1.2. Figura materna: possibilidades e riscos para a expe riência religiosa e para a configuração da imagem de Deus

Para a psicanálise, tal como vimos, toda relação pessoal autêntica

estabelecida pelo indivíduo com a alteridade encontra na experiência de simbiose

com a mãe o seu fundamento. Sendo assim, a própria relação com a alteridade

divina não foge a isso. O ser humano só pode confiar em Deus por causa dessa

experiência com o pólo materno na primeira infância. Se não houvesse essa

experiência, provavelmente, a dimensão religiosa seria algo quase impossível de

ser encontrada na constituição humana.

Entretanto, no que concerne à relação com Deus, não é apenas a confiança

básica o que fundamenta e possibilita a dimensão religiosa do ser humano, mas

também o desejo de onipotência que impulsiona para a fusão com a totalidade.

Ora, o desejo de fusão simbiótica da criancinha com a mãe consiste numa etapa 29 Cf. Id. Experiencia cristiana y psicoanálisis, p. 54. 30 Ibid.

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necessária no seu desenvolvimento afetivo, mas deve ser superado para que ela

possa desenvolver sua autonomia e independência. Contudo, ao ser superado pela

relação do bebê com a figura paterna - o que veremos mais à frente -, o desejo de

totalidade não deixa de existir no psiquismo. O bebê que antes estava fusionado

com a mãe, com o aparecimento da figura do pai, projeta sobre este o seu desejo

de onipotência e de totalidade. O pai, para ele, é fantasiado como onipotente.

Entretanto, devido ao processo de maturação psicológica, esse desejo de

onipotência direcionado para a figura paternal também é superado. Porém, este

desejo não é eliminado uma vez por todas, mas acompanhará o homem e a mulher

ao longo de toda a vida “como uma estrutura básica” do seu psiquismo31. Sendo

assim, a maturidade ou imaturidade psíquica da pessoa dependerá de como ela

lidará com este desejo. Por um lado, norteado pelo “princípio da realidade”, o

desejo de onipotência poderá ser o impulsionador do dinamismo do

relacionamento pessoal com a alteridade e, assim, colaborar com a maturidade

psíquica da pessoa, por causa da superação do egoísmo e narcisismo infantis. Por

outro lado, se este desejo não for transformado a partir do “princípio da realidade”

e da aceitação do indivíduo dos seus limites, manterá a pessoa estacionada na

imaturidade psíquica, pois ela projetará seu desejo de onipotência sobre as pessoas

ou sobre Deus e com eles procurará se relacionar de modo fusional para satisfazer

seus desejos infantis.

Verdadeiramente, o desejo de onipotência que impulsiona para o anseio de

fusão com a totalidade, por nunca se extinguir no psiquismo, constitui-se como o

fundamento psicológico do relacionamento do ser humano com Deus. É por causa

desse desejo que a pessoa pode estabelecer relação com o “Deus da realidade e da

história” ou com o “Deus imaginário”. Ao nortear este desejo pelo “princípio da

realidade”, o indivíduo religioso aceita Deus como ele é; como o Outro. Sem ser

transformado e limitado, este desejo leva a pessoa a projetar um “Deus

imaginário” para o qual transfere a onipotência que tanto anseia. Vejamos como

isso se processa.

A experiência religiosa, para Morano, encontra no desejo de totalidade “a

base para o que constitui a vertente mística dessa experiência”32. Isto quer dizer

que o desejo místico de fusão com a totalidade divina – o que Freud considera

31 Cf. Id. Crer depois de Freud, p. 121. 32 Ibid.

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como “sentimento oceânico” -, ou seja, o desejo de viver uma experiência

profunda de união com Deus e de abandonar-se nele tem sua base na experiência

humana de fusão com a mãe, impulsionada pelo desejo inconsciente de

onipotência. Segundo ele,

“é um fato comprovado pelas pesquisas psicológicas que uma experiência religiosa, particularmente nessa vertente mística, dificilmente poderia amadurecer sem que tivesse ocorrido essa primeira experiência de felicidade vivenciada na fusão primitiva com a mãe”33. Contudo, essa relação estabelecida entre o desejo de Deus e as primeiras

vinculações afetivas, desenvolvidas pelo desejo de onipotência, com a imaginária

totalidade do materno, de acordo com nosso autor, suscita sérias interrogações

sobre o valor das experiências místicas34. O desejo e a experiência de fusão com a

divindade não poderiam ser simplesmente mera derivação do desejo infantil de

totalidade? Não seria Deus, com o qual se anseia estabelecer uma união profunda,

uma projeção psíquica da figura da mãe com a qual estivemos fusionados na

primeira infância? Para Morano, as respostas podem ser ambíguas. Ele tem

consciência de que o desejo de onipotência e de totalidade – que estava

relacionado à figura da mãe na primeira infância - pode tanto favorecer a

experiência mística autêntica, como também fundamentar a pseudo-mística. E

com relação a Deus, afirma que esse desejo tanto possibilita o encontro com o

Deus verdadeiro sob o símbolo maternal, bem como pode fundamentar a projeção

de um Deus ilusório como totalidade materna.

A experiência mística autêntica, para o nosso autor, não se identifica com a

mera busca fusional inconsciente com a totalidade materna35. Não se trata de uma

experiência de relação com a projeção inconsciente da figura da mãe como Deus

para realizar a fusão com a totalidade maternal, suscitada pelo desejo de

onipotência. Pelo contrário, trata-se de uma experiência do Deus da realidade

possibilitada por aquela experiência de fusão com a mãe na primeira infância,

superada pela figura paterna que impõe a limitação do desejo de onipotência. Isto

quer dizer que a verdadeira experiência mística de Deus não consiste numa

relação indiferenciada entre o crente e Deus, mas, sim, na vinculação com a

divindade como o Outro que é diferente do eu. Pois somente com a aceitação de

33 Ibid. 34 Cf. Id. Experiencia cristiana y psicoanálisis, p. 177. 35 Cf. Ibid., p. 173-179.

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Deus como distinto do próprio eu é que se pode estabelecer uma autêntica

experiência religiosa, pois este Deus não se identifica com o Deus criado pela

projeção psíquica em função da realização dos desejos infantis inconscientes. Ao

contrário, a relação e a experiência mística com a alteridade divina desautorizam o

narcisismo, pois Deus está para além da possibilidade de manipulação em prol da

satisfação dos interesses egoísticos ou dos desejos do mundo inconsciente.

A pseudo-mística, por outro lado, segundo Morano, consiste na

experiência de fusão com o “Deus imaginário”36. O pseudo-místico ou o

“iluminado” se nega, inconscientemente, a reconhecer seu afastamento de Deus;

ignora a separação. Vê-se absorvido pelo sagrado, o que impossibilita o autêntico

encontro com a alteridade divina. Imagina, a partir do desejo de onipotência, uma

divindade confundida como uma mãe, à qual pode estar fusionado

simbioticamente para poder manipulá-la em função da satisfação de suas

necessidades e carências afetivas mais profundas. Para Morano, o pseudo-místico

consiste naquela pessoa que não conseguiu superar satisfatoriamente, a partir da

figura paterna, o desejo de fusão na totalidade materna. Por isso é que, para ele, a

experiência pseudo-mística constitui uma patologia centrada em torno das funções

da afetividade37. Trata-se de uma religiosidade situada ad intra, marcada

profundamente por uma concentração narcisista, por uma exaltação dos

componentes afetivos e emocionais, bem como pela rejeição da dimensão

necessariamente conflitiva da realidade na qual se vive.

Assim, enquanto o místico se relaciona, por causa do desejo de

onipotência transformado adequadamente, com o Deus que se apresenta a ele

como o Outro, o pseudo-místico, por sua vez, por não realizar a superação do

desejo de onipotência infantil com relação à totalidade materna, relaciona-se com

um Deus criado pelo seu psiquismo; expressão de seu narcisismo e egoísmo; um

“Deus-Mamãe” ou “quebra-galho” que se coloca à sua disposição para realizar os

seus interesses egoísticos. Sendo assim, a experiência religiosa do místico é a de

comunhão com um Outro diferenciado, e a experiência do pseudo-místico não é

de encontro com a alteridade divina, mas, sim, apenas de projeção imaginária

criada pelo desejo de onipotência infantil relacionada à figura maternal. Neste

sentido, a oração do místico e do pseudo-místico se apresentam bastante

36 Cf. Ibid., p. 161-164. 37 Cf. Ibid., p. 161-162.

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diferentes. Enquanto a oração do místico consiste em diálogo com o Deus

diferenciado do eu, a do pseudo-místico constitui um diálogo narcísico38.

A experiência que o ser humano faz na primeira infância do pólo materno

apresenta-se como possibilidade positiva e risco para a experiência de Deus. A

possibilidade positiva diz respeito, tal como vimos anteriormente, à capacidade do

ser humano de desejar a Deus, pois sem a experiência da mãe não haveria o anseio

de proximidade e comunhão com a divindade; não haveria experiência mística. E

o risco diz respeito à possibilidade da experiência religiosa ser apenas alienação

da realidade num monólogo do eu com a projeção psíquica de um Deus

indiferenciado que realize os desejos infantis.

Com relação à configuração da imagem de Deus, o pólo materno também

se apresenta como possibilidade e risco. Possibilidade porque o Deus diferenciado

do eu pode ser compreendido e experienciado a partir do símbolo materno. E risco

porque Deus pode ser imaginado como uma grande mãe a serviço da realização

dos desejos egoísticos e da superação mágica das dificuldades e durezas da

existência humana.

Contudo, Morano não considera apenas o pólo materno como fundamental

para a experiência religiosa ou para a configuração da imagem de Deus. Para ele,

o pólo paterno é igualmente fundamental. Isto quer dizer que a contribuição da

figura paterna, descoberta por Freud, no processo de amadurecimento afetivo do

ser humano nos primeiros anos de vida também constitui possibilidade e riscos

para a experiência de fé e para a configuração da imagem de Deus. Vejamos no

sub-item a seguir o que o nosso autor, pautado na teoria de Freud a respeito do

papel do pai na infância, considera a respeito disso.

6.1.2.2. A figura paterna e a configuração da imagem de Deus Conforme expusemos anteriormente, a experiência de fusão na totalidade

materna, impulsionada pelo desejo de onipotência, constitui a origem psicológica

do desejo de Deus. Entretanto, essa experiência, sem se articular com a

experiência da figura do pai, não é capaz de proporcionar uma imagem e

configuração para Deus. Pois, para Morano, “somente mediante o aparecimento

do pai, que rompe a fusão com o materno, é que Deus pode adquirir um nome,

38 Cf. Id. Crer depois de Freud, p. 109-115.

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uma figura e uma imagem”39. Isto porque a instância paterna ao se inscrever no

mais profundo do psiquismo permite que Deus seja visto como diferenciado do

“eu”. Sem contar com a figura do pai, Deus seria visto somente como uma

totalidade indiferenciada e impessoal. A própria representação de Deus a partir do

símbolo materno só é possível se a pessoa religiosa tiver superado

satisfatoriamente o estágio da fusão na totalidade materna. Caso contrário, Deus,

para ela, será confundido com a aconchegante e envolvente totalidade da mãe;

será fruto de sua imaginação e de seu desejo de onipotência. Mas, para se

compreender melhor essa teoria, se faz necessário pontuar o processo de

amadurecimento afetivo da pessoa nos primeiros anos de vida.

6.1.2.2.1. O papel da figura paterna no processo psico-afetivo Para a psicanálise, de acordo com Morano, a pessoa nos seus primeiros

anos de vida passa por um processo de amadurecimento psico-afetivo que conta

com a interferência da mãe e do pai. Como já descrevemos acima, o bebê na fase

pré-edipiana, por causa do desejo inconsciente de onipotência, anseia fusionar-se

simbioticamente com a mãe; vivencia no seu psiquismo um fascínio por ela. Mas

sua relação com a figura materna é de indiferenciação, pois ainda não se percebe

autônomo e independente; vê-se confundido com a totalidade maternal. Por isso,

inconscientemente, considera-se onipotente. Contudo, para que o bebê possa

amadurecer como pessoa, deverá superar o desejo da totalidade materna. Neste

caso, aparece a figura do pai40. É o pólo paternal que liberta o bebê do fascínio

fusional com a mãe. A experiência do pai, além de revelar para ele que a mãe não

é só dele, revela-lhe também que nem ele nem a mãe são onipotentes. Dessa

forma, o pai representa para o bebê aquilo que a psicanálise denomina de “lei”,

isto é, “a limitação de seu desejo ilimitado e onipotente”41. Além do mais, a figura

paterna possibilita, ao superar a fusão do bebê com a totalidade materna, que este

configure a sua autonomia e independência. Pois é somente através da renúncia

39 Ibid., p. 122-123; Cf. Id. Experiencia cristiana y psicoanálisis, p. 58. 40 Sobre o papel do pai no processo psico-afetivo da criança, cf. Id. Crer depois de Freud, p. 122-125; Id. Experiencia cristiana y psicoanálisis, p. 56-57. 41 Id. Crer depois de Freud, p. 124.

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aos desejos onipotentes e fusionais que o bebê “poderá chegar a uma consciência

do outro e do próprio eu como algo diferente e autônomo”42.

Morano, entretanto, recorda que o aparecimento psíquico do pai para o

bebê não consiste num fato tranqüilo, nem tampouco garante a efetivação de seu

processo de maturidade psico-afetivo. A situação triangular (mãe-pai-criança),

que constitui a fase edipiana, representa para o bebê um profundo golpe contra o

seu narcisismo e o seu egoísmo, visto que ele tem que renunciar a sua onipotência

e superar a fusão com a mãe. Ademais, esta fase gera a ambivalência afetiva de

amor e ódio com relação ao pólo paternal, que pode se perpetuar

inconscientemente ao longo da existência da pessoa. Ora, ao aceitar a “lei

paterna”, o bebê passa a amar e, ao mesmo tempo, a odiar ao pai. Ama-o, porque

nele vê a sua onipotência projetada. Por isso, para ele, como já visto acima, o pai é

onipotente, onisciente e onibenevolente; é, verdadeiramente, o objeto de sua

adoração. Mas, por outro lado, odeia-o, porque este, além de limitar seu desejo de

onipotência ilimitado, é quem, para ele, porta a onipotência que antes lhe

pertencia43; em outros termos, o bebê o odeia porque, na sua visão, o pai é tudo e

ele nada. A conseqüência desse ódio consiste no sentimento de culpa. O bebê se

depara, por causa da formação do superego, com a culpa por odiar ao pai.

Esta fase do desenvolvimento psico-afetivo (fase edipiana) não representa

ainda a maturidade psíquica. Nesta fase, a criança fica enredada tanto na projeção

psíquica do seu desejo de onipotência na figura paternal, como na ambivalência

afetiva com relação a ela. Sendo assim, esta fase deve ser superada para que a

criança possa aceder à sua maturidade humana.

O complexo de Édipo, segundo Morano, somente pode ser resolvido

satisfatoriamente quando a criança renunciar ao sentimento de onipotência. E isto

acontece quando ela deixa de considerar o pai como onipotente. O pai, a quem ela

atribuiu a sua onipotência “deve morrer para dar lugar a um pai que está sujeito às

leis do nascimento e da morte, um pai que não pode nem sabe tudo e que também

42 Id. Experiencia cristiana y psicoanálisis, p. 56. 43 Como já vimos anteriormente, Morano defende a tese de que o conflito edipiano não se dá por causa de uma rivalidade com o pai em relação ao objeto materno, mas, sim, por causa da renúncia à onipotência. Neste sentido, nosso autor, sintetizando a sua tese, afirma o seguinte: “Se o pai é um rival, não o é enquanto possuidor da mãe, mas como possuidor da onipotência e, a partir daí, também da mãe”. Id. Crer depois de Freud, p. 124. Cf. Id. El psicoanálisis freudiano de la religión, p. 407-417.

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está submetido às imperdoáveis deficiências na área do amor”44. Em verdade, a

criança só poderá amadurecer psicologicamente se superar, confrontando-se com

a limitação da realidade, as ilusões produzidas pelo desejo de onipotência. E é este

confronto com o real que lhe possibilitará aceitar os próprios limites e desenvolver

sua autonomia como pessoa. Portanto, somente quando a criança se deixar nortear

pelo “princípio da realidade” é que o caminho para a humanização psicológica se

abrirá para ela. Sem isso, ficará enredada em seu narcisismo e em seu egoísmo,

pensando poder manipular magicamente toda a realidade em função da realização

dos seus desejos e interesses.

Mas o que a figura paterna, certamente importante para o processo de

maturidade psico-afetivo da criança, tem a ver com a experiência religiosa e com

a configuração da imagem de Deus? Para Morano, a figura do pai, na segunda

fase do processo de amadurecimento da pessoa (fase de Édipo), representa, assim

como a figura da mãe, possibilidades e riscos para a experiência religiosa, bem

como para a configuração da imagem de Deus. Vejamos primeiro as

possibilidades e, em seguida, os riscos.

6.1.2.2.2. Figura paterna: possibilidades para a experiência r eligiosa e para a configuração da imagem de Deus

A projeção que a criancinha faz do seu desejo de onipotência na figura do

pai constitui, conforme Morano, a possibilidade psicológica fundamental para que

a pessoa possa conferir a Deus uma representação e uma imagem. Ora, na

primeira infância (fase pré-edipiana), a criança fusionada psiquicamente com a

figura da mãe sente-se como um todo indiferenciado com ela. Nessa fase, a mãe

constitui uma espécie de Deus para a criança, mas trata-se de um Deus sem rosto e

sem nome; uma espécie de Deus indeterminado e indiferenciado do eu. Com o

surgimento do conflito edipiano, a criança se depara com a figura paterna que

rompe o seu fascínio fusional com a mãe e limita seu desejo de onipotência. Ao

não se perceber onipotente, a criança projeta essa onipotência sobre seu pai. A

figura paternal torna-se, assim, uma nova espécie de Deus para a criança. Só que

agora, esse Deus, por ser diferente dela, possui uma imagem e um nome: é o pai.

44 Id. Crer depois de Freud, p. 124.

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Portanto, por meio do pai, o Deus da criança toma nome forma e figura45. O

“Deus da realidade” somente pode ser representado, no plano psicológico, em

imagens e símbolos, por causa dessa experiência da figura paternal na fase

edipiana. Sem esta, Deus seria percebido somente como totalidade indiferenciada

e indeterminada. Portanto, a figura paternal fundamenta a possibilidade de

representação e configuração da imagem de Deus; permite representar a Deus

como ser pessoal diferenciado do eu.

Com relação a isso, o pólo paternal possibilita, especialmente, a

representação de Deus sob o símbolo de Pai. Embora possa Deus ser representado

pelo registro simbólico do materno, sua imagem mais evocada é a de Pai. De fato,

Deus é visto nas grandes religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo e

islamismo) como Pai. Entretanto isso não quer dizer que a imagem de Deus como

Pai possa ser construída unicamente por atributos presentes na imagem do pai, tais

como autoridade, poder, força, severidade e etc. Ainda que seja considerado como

Pai, Deus também pode ser percebido com os atributos maternos de ternura,

compaixão, proteção, serviço e etc. Neste sentido, Morano mostra que uma

pesquisa empírica realizada por Antoine Vergote e Álvaro Tamayo comprova que

a imagem de Deus se forma comumente como uma síntese de atributos

antagônicos presentes na imagem do pai e na imagem da mãe, ao ponto de se

poder afirmar que Deus é imaginado como um Pai maternal46. Contudo, a

pesquisa comprova também que o símbolo paterno aparece como o mais idôneo

para evocar a imagem de Deus. Ora, se Deus é evocado sob a imagem de Pai, é

porque o pólo paternal de alguma forma serve para representá-lo. E isto por causa,

tal como mostramos acima, da função dessa figura parental como o outro que se

instaura na relação do bebê com a mãe, limitando seu desejo de onipotência e

rompendo o seu fascínio pela mãe. A figura do pai se apresenta como a negação

de nossa onipotência e como o primeiro deus, diferente do eu, a ser adorado pelo

ser humano.

Pautando-se em Vergote, Morano mostra que existe uma relação entre a

paternidade humana e a de Deus. Essas duas paternidades se relacionam a partir

das suas funções básicas47. A paternidade divina, segundo ele, configura, na

45 Cf. Ibid. 46 Cf. Id. Experiencia cristiana y psicoanálisis, p. 58-59. 47 Cf. Ibid., p. 61-63.

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ordem da crença, as mesmas funções psicológicas básicas que a paternidade

humana constitui para a criança, a saber: a lei, o modelo e a promessa.

Com efeito, assim como o pai representa para a criança a lei, entendida

psicanaliticamente como a limitação do desejo de onipotência e como a superação

da fusão na totalidade materna, o Deus cristão, representado como Pai, da mesma

forma, “nos salva, efetivamente, da tentação de concebê-lo como uma totalidade

indiferenciada na qual nos perderíamos regressivamente, numa pura aspiração de

prazer e felicidade primitiva, à margem da realidade, dos outros e da história”48.

Deus como Pai, na perspectiva cristã, exerce a função de “lei” separadora que

liberta da tentação pseudo-mística. O Deus Abbá, revelado por Jesus, não consiste

numa totalidade divina indiferenciada e impessoal, mas num Deus diferenciado e

pessoal que exige o compromisso histórico com a edificação do seu Reino. Por

isso, o lugar privilegiado para se fazer a experiência do Deus cristão não é a

meditação individualizante que preconiza a união harmônica com o todo ou a

imersão numa consciência cósmica, mas “no compromisso pela construção de

uma sociedade mais justa e solidária”49. O Deus da fé cristã, considerado como

Pai, possibilita ao cristão, tal como a figura paterna possibilita ao filho, relacionar-

se com a realidade, assumindo-a, confrontando-se com ela e transformando-a.

E do mesmo modo como o pai pode se apresentar ao filho como modelo de

identificação porque o reconhece “como seu igual em potência”, o Deus da

revelação cristã “se apresenta também como Pai que deseja ser modelo de

identificação para seus filhos, reconhecendo a possibilidade destes assemelharem-

se a Ele”50. Apresenta-se como modelo, especialmente, no que se refere à

misericórdia gratuita (cf. Lc 6,36), ao amor e à bondade (cf. Mt 5,43-45). Convida

seus filhos a ser e a agir do mesmo modo como se revela. Por isso, a perfeição do

Pai consiste em ser alvo do desejo dos filhos e, ao mesmo tempo, a tarefa a ser

assumida por eles. Daí o sentido das seguintes palavras de Jesus: “Sede perfeitos

como vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5, 48).

Já com relação à terceira função que a paternidade, psicologicamente,

representa para o filho, a função da promessa, Morano afirma, ainda pautado em

Vergote, que, assim como o pai terreno constitui para o filho a promessa como

48 Ibid., p. 61. 49 Ibid., p. 62. 50 Ibid.

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esperança de um futuro de felicidade e plenitude, Deus também “se apresenta

transmitindo à pessoa uma ‘boa notícia’ de salvação e uma promessa de felicidade

última”51, ou seja, de vitória definitiva sobre a morte (cf. Ap 21,4). A paternidade

divina, do mesmo modo que a humana, suscita a esperança e a confiança no futuro

como promessa a ser realizada. Assim como a criança vê no pai a promessa de

uma realização futura, o cristão vê em Deus a promessa de vida eterna.

Mas, voltando à questão da importância do pólo paternal, Morano afirma,

no que tange à experiência religiosa, que o papel do pai, como imposição da “lei”

e como superação da fusão na totalidade materna, constitui o fundamento da

vertente profética dessa experiência52. Ao limitar o desejo de onipotência da

criança e ao romper o fascínio fusional com a mãe, a figura paternal abre a

possibilidade para a criança assumir sua limitação, constituir sua identidade como

eu, e se confrontar com a realidade. Ora, a experiência religiosa, pelo menos a

cristã, não se reduz à mística, ou seja, ao desejo de união com o Outro, mas

considera também a profecia, isto é, a experiência de Deus vivida como o Outro

que interpela ao compromisso transformador da história e das relações sociais.

O fundamento da experiência mística se encontra, como já vimos

anteriormente, na experiência que o bebê, na primeira infância, faz de simbiose

com a sua mãe. A vertente profética, por sua vez, fundamenta-se na experiência

do pai. E isto porque a profecia consiste naquela experiência de se sentir chamado

e convocado pelo Outro para anunciar a sua palavra53. A identidade do profeta é

ser porta-voz de Deus. “Seu Eu se constitui e se define pela posição que adota de

responder a uma palavra que lhe vem de fora”54. Esta experiência vai além da

experiência de intimidade e de relação mística com Deus, embora a pressuponha,

porque todo profeta é também místico, assim como todo verdadeiro místico

também é profeta. O profeta aceita ser o comunicador da palavra do Outro,

confrontando-se com a realidade, pois seu lugar de atuação é o grupo social. E

essa “palavra transmitida conserva sempre a exigência de uma ação

transformadora da história”55. Por isso, o profeta é a pessoa da ação; da práxis

histórico-social. Contudo, é também pessoa de oração. Mas sua oração não

51 Ibid. 52 Cf. Id. Crer depois de Freud, p. 125-127. 53 Sobre a descrição da identidade profética, cf. Id. Experiencia cristiana e psicoanálisis, p. 179-184. 54 Ibid., p. 180. 55 Ibid., p. 179.

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consiste em ser monólogo narcisista. Pelo contrário, sua oração consiste num

diálogo com o Outro que o interpela, no confronto com a realidade, para o

compromisso com a realização da justiça, da solidariedade e do amor fraterno56.

Porém a figura paterna da fase edipiana, além de apresentar-se como

fundamento e possibilidade psíquica da configuração da imagem de Deus como

diferente do eu e da vertente profética da experiência religiosa, pode também

apresentar sérios riscos tanto para a visão de Deus como para a experiência de fé.

Vejamos.

6.1.2.2.3. Figura paterna: riscos para a configuração da image m de Deus e para a experiência religiosa No entender de Morano, se o crente não tiver superado os sentimentos

infantis de onipotência, nem tiver solucionado satisfatoriamente a problemática do

complexo de Édipo e de sua correspondente ambivalência afetiva, muito

provavelmente sua imagem de Deus e sua experiência religiosa perpetuarão estas

problemáticas psicológicas impedindo a sua maturidade psíquica.

Levando isso em consideração, a configuração da imagem de Deus a partir

do pólo paternal pode comportar um grande risco57. Por causa dos sentimentos

infantis de onipotência não superados pelo crente, Deus pode ser projetado como

a figura do pai absoluto portador da onipotência e da onisciência. E a relação com

este Deus, projeção do pai onipotente da fase infantil, na experiência religiosa,

pode impedir a superação satisfatória do complexo edipiano, sua ambivalência

afetiva e os sentimentos de culpabilidade vinculados a isto. Vamos analisar como

isto acontece.

Como vimos anteriormente, a criança, com a configuração da situação

edípica, desloca sua atenção da mãe para o pai, pois projeta neste a onipotência

que antes lhe pertencia. Ora, esta projeção na figura do pai deve ser superada para

que a criança possa amadurecer psiquicamente. Contudo, porque o desejo de

onipotência não é superado totalmente no ser humano, este pode imaginar a Deus

como o substituto do pai imaginário da infância. Ao fazer isso, mediante a

dinâmica do ilusório, a pessoa atribui a Deus as mesmas características da figura

paternal da infância. Do mesmo modo como o pai é imaginado pela criancinha 56 Cf. Id. Crer depois de Freud, p. 112-113. 57 Cf. Ibid., p. 127. Id. Experiencia cristiana y psiconanálisis, p. 64-66.

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como onipotente e onisciente, Deus também é visto, pelo indivíduo que não

conseguiu nortear adequadamente o desejo de onipotência pelo “princípio da

realidade”, como aquele que pode tudo e sabe tudo.

A configuração da imagem de Deus, a partir do pólo paterno, por um lado,

“pode oferecer-se, com efeito, como uma magnífica possibilidade para manter

vigentes as aspirações infantis mais ambiciosas”58, visto que Deus pode se

converter na imagem da onisciência, da onipotência e da imortalidade tão

desejadas, inconscientemente, pelo ser humano desde a sua primeira infância. E,

por outro, Deus pode ser imaginado como uma onipotência repressora e em

rivalidade com a pessoa, pois, ao ser configurado a partir do pólo paterno, pode

ser confundido com o pai onipotente, imaginado pela criança na fase do Édipo,

que representa a limitação do seu desejo de onipotência ilimitado.

Sendo assim, como o pai na fase edipiana representa para a criança a

onipotência externa colocada a sua disposição ou, de certa maneira, contra ela,

Deus, ao ser configurado a partir do pólo paternal, corre o risco de ser imaginado

como uma onipotência a serviço do crente ou, pelo contrário, como uma

onipotência intransigente, hiper-moralista e contrário a todo tipo de satisfação ou

prazer experimentado por este. Portanto, na chave da onipotência, relacionada à

figura do pai, Deus pode ser configurado como o ser onipotente e absoluto

colocado a serviço da realização dos desejos e interesses egoísticos da pessoa,

bem como pode ser visto como o ser todo-poderoso que leva o ser humano a

renunciar a algumas dimensões de sua existência. Neste último sentido, “Deus

deixa de ser o fundamento para se converter numa ameaça; quanto mais o outro é,

menos eu sou”59. O resultado dessas duas visões de Deus na vida psicológica do

crente pode ser bastante nocivo para o seu amadurecimento, uma vez que pode

mantê-lo atrelado à fase infantil do desenvolvido psico-afetivo.

A visão de Deus onipotente, configurada a partir da figura paterna, pode

fazer perpetuar na psicologia da pessoa religiosa, conforme acenamos acima, a

ambivalência afetiva do complexo de Édipo60.

Como Deus aparece como projeção do pai imaginário, a problemática

edipiana com relação à figura do pai desloca-se para a figura de Deus. Como o pai

58 Id. Experiencia cristiana y psicoanálisis, p. 64. 59 Id. Crer depois de Freud, p. 139. 60 Cf. Ibid., p. 135-139.

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na fase do complexo de Édipo é amado e odiado, Deus, como projeção do pai

onipotente, também é amado e odiado. É amado, porque nele reside a onipotência

tão desejada pela pessoa; e é odiado, porque a onipotência pertence somente a ele

e não ao crente. Por isso, neste caso, a experiência de Deus não deixa de suscitar

atitudes de submissão ou de rebelião. Diante de um Deus onipotente, a pessoa

pode assumir a atitude de submissão a ele para poder, de algum modo, gozar da

onipotência que ele porta. A submissão se apresenta, então, como a forma de

manipular a onipotência de Deus em benefício próprio, mesmo que isso custe o

controle acirrado ou até mesmo a negação de certas dimensões da existência

humana. A pessoa, por outro lado, pode, também, assumir a atitude de rebeldia

contra Deus. E esta atitude tem explicação no desejo de a pessoa ser a portadora

da plena onipotência que pertence, pela via ilusória, ao divino. Ao se rebelar

contra Deus, o indivíduo religioso procura se afirmar como todo-poderoso.

Reclama para si a onipotência de Deus. Mas esta rebeldia se dá em vão, porque

ele se percebe sob o domínio constante deste Deus do qual não pode fugir. Sendo

assim, esta rebeldia produz o sentimento de culpabilidade. O crente se sente

martirizado pela culpa por ter desejado possuir a onipotência de Deus. Daí o

surgimento da obsessão por penitência e a configuração de patologias.

Por causa da perpetuação da ambivalência afetiva do complexo edipiano

na relação com o Deus onipotente, a experiência religiosa pode se revelar

obsessiva e patológica61. Segundo Morano, o crente vivencia sua fé de forma

obsessiva e patológica, quando, para agradar a Deus ou para reparar sua atitude de

rebeldia contra ele, absolutiza as normas e as leis da religião (legalismo), bem

como quando procura realizar escrupulosamente os rituais litúrgicos (ritualismo).

Efetivamente, para nosso autor, o legalismo religioso consiste numa forma

de submissão à onipotência projetada em Deus e no medo de perdê-la. O desejo

de possuir de alguma maneira a onipotência faz com que o indivíduo, em sua

experiência religiosa, assuma uma dinâmica de negação de si mesmo e de

submissão a esta onipotência presente em Deus por meio da absolutização das

normas e das leis da religião. Neste caso, tem-se uma patologia. Nesta situação se

processa a perversão das funções éticas que configura a patologia religiosa da

61 Cf. Id. Experiencia cristiana y psicoanálisis, p. 164-166.

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espiritualidade farisaica e legalista62. Trata-se, segundo Morano, de patologia

porque, para o legalista, a norma e a lei da religião deixam de cumprir uma função

mediadora no desenvolvimento pessoal e de fé para converterem-se em elementos

utilizados a fim de realizar a sua submissão e a negação de si em nome de um

Deus imaginário portador da onipotência tão desejada, inconscientemente, por ele.

Por sua vez, o ritualismo religioso, assim como o legalismo, também se

revela patológico e obsessivo. Na verdade, para Morano, esse ritualismo

relaciona-se com o legalismo, pois a observância rígida dos ritos litúrgicos nada

mais é do que absolutização das normas e regras cúlticas. Neste caso, a obsessão

ritual está, assim como o legalismo, em conexão com a ambivalência afetiva em

relação ao Deus onipotente63. A observância obsessiva ritual revela-se como

forma extrema de submissão e de renúncia do crente a Deus e como forma de

resolução, embora não definitiva, do sentimento de culpa, inconsciente e

consciente, que o envolve por causa de sua rebeldia manifestada contra o ser

divino.

Entretanto, na realidade, o ritualismo e o legalismo, como formas de

submissão obsessiva a Deus, consistem, como acenamos acima, não apenas em

ser formas de aplacar o sentimento de culpa, mas também em maneiras de poder

manipular a onipotência infantil projetada em Deus. O crente obsessivo ou

patológico mantém uma relação ambígua de rebeldia e de submissão com relação

a Deus por causa da onipotência. Ele, por não ter conseguido renunciar aos

sentimentos infantis de onipotência, imagina a Deus como o portador da

onipotência que, inconscientemente, tanto almeja. Por isso, o odeia e o ama. O

fato de odiá-lo suscita o sentimento de culpa, que está ligado, na verdade, ao

medo de não poder mais contar com esta onipotência. Com efeito, para não perdê-

la, este crente, ainda que tenha que abdicar de muitos elementos de sua vida,

submete-se de modo doentio a Deus para ser beneficiário de seu poder ilimitado.

Assim, a agressividade ou o ódio contra Deus deslocam-se para o próprio crente.

Sua interioridade fica impregnada pela culpa e pelo ódio contra si mesmo. Daí a

configuração de uma experiência religiosa rigorista, sacrificante e mortificante

62 Morano elenca, pelo menos, três patologias que podem ser vivenciadas em experiências religiosas: 1) a patologia das funções cognitivas que consiste no caso do fanático ou do paranóico; 2) a que se centra em torno das funções da afetividade, cuja expressão encontra-se no pseudo-místico ou iluminado; 3) a que se origina da perversão das funções éticas e que se expressa na figura do legalista ou obsessivo. Cf. Ibid., p. 151-168. 63 Cf. Id. Crer depois de Freud, p. 139.

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para poder aplacar esta culpa e para, ao mesmo tempo, poder gozar da onipotência

de Deus. Em suma, o crente obsessivo ou patológico anula-se na relação com

Deus para poder ser beneficiário do seu poder ilimitado.

Morano afirma que esta relação com Deus, ancorada na ambivalência de

amor-ódio frente ao paterno por causa da disputa pela onipotência, “é uma relação

marcada por esse profundo ‘ou tu ou eu’ edípico, que impõe uma espiritualidade

de constante (e custosa) afirmação do divino como necessária negação (e nunca

aceitada) do humano”64. A experiência religiosa, neste caso, se apresenta

desumanizante. O crente, por não renunciar à onipotência infantil e por causa da

culpabilidade suscitada pela ambivalência afetiva, vive à mercê de um Deus

superegóico que lhe exige constantemente a total submissão, por meio da

observância rigorosa e cega de leis e normas religiosas, e a negação de dimensões

essenciais da vida humana, em especial a sexualidade e a agressividade65.

Nestes termos, a oração, que é uma das expressões de uma experiência

religiosa, se revela, segundo nosso autor, não como o diálogo com o Outro, mas

como “uma espécie de diálogo edipiano com o próprio supereu”66. E isto porque o

Deus com o qual se relaciona na oração a pessoa que não conseguiu resolver de

modo satisfatório o complexo de Édipo consiste em ser criação imaginária de seu

psiquismo. Trata-se da projeção do “pai modelo e lei que propõe um ideal e

proíbe a transgressão”67; é o próprio superego, sob a forma imaginária de Deus,

que se impõe à consciência torturando psiquicamente o indivíduo. Por isso, a

oração superegóica, além de encerrar o sujeito sobre si mesmo, uma vez que ele se

confronta com a lei e seus ideais, representa, para ele, uma tortura, visto que neste

diálogo com o “Deus imaginário” não existe a experiência da gratuidade, mas a da

exigência, da cobrança constante, da culpa e da angústia em ter que se submeter

“aos ditames desse pai introjetado que é o supereu”68. Este tipo de oração,

portanto, impede a maturidade psíquica do crente, pois, ao ser produto de sua

imaturidade vinculada à figura paternal, colabora para que essa imaturidade

perpetue-se. O narcisismo infantil, presente na submissão à vontade de Deus para

64 Id. Experiencia cristiana y psicoanálisis, p. 30 e 184. 65 Cf. Ibid., p. 35-38. 66 Id. Crer depois de Freud, p. 111. 67 Ibid. 68 Ibid.

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gozar de sua onipotência, e a ambivalência afetiva edipiana acompanhada do

sentimento de culpa não são superados nesta experiência religiosa.

O diálogo com o Deus superegóico, portanto, por ser fruto do imaginário

determinado pelo sentimento de onipotência, impede o encontro com o Deus

verdadeiro. A oração superegóica nada tem a ver com a oração cristã com sua

orientação mística e profética. Esta última é o diálogo-encontro com o Outro,

diferente do “eu”, que possibilita a superação do narcisismo e compromete com a

transformação da realidade. Já naquele outro tipo de oração, “Deus e a realidade

não podem emergir como possibilidades de encontro e compromisso”69.

Claro está, portanto, que a figura paternal pode representar um grande

risco para a visão de Deus, bem como para a experiência religiosa. Os sentimentos

infantis de onipotência, relacionados ao pai na fase de Édipo, podem ser

deslocados para Deus, fazendo com que este seja visto como o Pai Onipotente que

exige das pessoas religiosas submissão, mediante a observância rígida de suas leis

e ditames – que na verdade nada mais são do que submissão ao próprio superego-,

para que elas possam gozar, de certo modo, de sua onipotência. Ora, conforme

expusemos várias vezes, a relação com esta representação de Deus, produzida pela

imaturidade psíquica, perpetua o infantilismo psíquico impedindo o crente de

desenvolver sua maturidade psicológica. Ao fazer a experiência do Deus Pai

Onipotente, o indivíduo se vê enredado pelos sentimentos infantis de onipotência

e pela não superação do complexo de Édipo que traz consigo a ambivalência

afetiva e os sentimentos de culpabilidade.

Mas o Deus de Jesus Cristo tem algo a ver com o Deus imaginado como

Pai Onipotente? É o Deus da fé cristã o fundamento de uma experiência religiosa

infantilizante? Para nosso autor, evidentemente que não. No item a seguir vamos

expor o que Morano apresenta sobre o Deus de Jesus em confronto com o “Deus

imaginário” produzido pelos sentimentos infantis de onipotência relacionados às

figuras parentais.

69 Ibid., p. 112.

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6.1.3. O Deus de Jesus e sua diferença radical do Deus pro jetado pelo desejo de onipotência Para Morano, embora o ser humano possa criar um Deus a partir da

projeção dos sentimentos infantis de onipotência relacionados às figuras parentais,

o “Deus da realidade” não consiste em ser uma criação do homem. Pelo contrário,

trata-se de um Ser autônomo com o qual a pessoa pode fazer experiência de

encontro e diálogo. Com efeito, como nenhuma experiência humana acontece sem

relação com seu mundo psico-afetivo, a experiência deste Deus não é diferente. O

“Deus da realidade” só pode ser experimentado em relação com a profundidade de

nossa psicologia, com grande risco de se confundir com as projeções psíquicas

oriundas do desejo de onipotência.

A este respeito, nosso autor mostra, tal como apresentamos acima, que a

possibilidade de fazer a experiência de Deus, em sua vertente mística e profética,

se apresenta fundamentada logo nos primeiros anos de vida com a experiência das

figuras da mãe e do pai. Entretanto, nesta mesma experiência das figuras

parentais, relacionadas com o desejo de onipotência, também se encontra o risco

de fazer experiência religiosa não do “Deus da realidade”, mas do “Deus

imaginário”. Por isso, o ser humano pode fazer a experiência de Deus a partir da

representação do nível simbólico, ou seja, acolhendo-o como diferente do “eu” e

representando-o a partir dos vetores materno e paterno70. Mas, do mesmo modo,

pode também relacionar-se narcisisticamente consigo mesmo a partir do diálogo

com um Deus que não passa de sua criação psicológica.

Mas como posso saber se o Deus da minha experiência religiosa é o “Deus

da realidade”, que pode ser acolhido pelo registro simbólico, ou o “Deus

imaginário”, projeção do meu desejo de onipotência? Ou, em outros termos: como

saber que o “Deus da realidade” não é a “grande mãe”, totalidade onipotente, à

qual anseio fusionar-me para me sentir amparado e protegido? Ou que este Deus

não é o “Pai Onipotente” que impõe sua lei para ser observada rigidamente como

condição para que eu possa me beneficiar de seu poder e de seu saber? A resposta

70 Morano lembra que Deus, embora possa ser representado mediante o símbolo paterno ou materno, consiste numa “realidade que essencialmente nos escapa, e que, de modo algum, pode ser englobada ou encerrada em um símbolo, qualquer que este seja”. Para ele, Deus pertence, segundo a terminologia de J. Lacan, ao registro do “real”. Ou seja, Deus diz respeito ao que não pode ser categorizável, o inefável, o que está além de todo discurso, linguagem, imaginação ou fantasia. Cf. Id. Experiencia cristiana y psicoanálisis, p. 74-75.

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a essas indagações, segundo Morano, está no Deus de Jesus. É a revelação de

Deus em e por Jesus de Nazaré que se configura como parâmetro para se poder

discernir entre o “Deus da realidade”, o Deus de Jesus, e o “Deus imaginário”, o

Deus projetado pelo psiquismo humano71.

Neste sentido, Morano afirma que o “Deus da criança”, isto é, o Deus

projetado pelo desejo de onipotência como “totalidade materna” ou como “Pai

Onipotente” deve ser catequizado pelo Deus de Jesus72. Com isso, ele quer dizer

que o cristão deve aprender a acolher com profundidade a revelação do Deus de

Jesus para que este não seja confundido com o produto de nossa imaginação a

serviço do nosso egoísmo e dos nossos desejos. Pois o Deus revelado em e por

Jesus de Nazaré não é produto do psiquismo, nem tampouco um mero aliado da

pessoa religiosa a ponto de realizar seus desejos e interesses. Pelo contrário, trata-

se do Deus não-manipulável que possibilita ao crente defrontar-se com a realidade

com maturidade e que o interpela a construir uma história norteada pela afirmação

de sua vida, da vida dos outros e da vida do ecossistema.

E como a revelação de Deus em e por Jesus de Nazaré somente pode ser

transmitida pela evangelização, cabe à catequese cristã, segundo Morano,

possibilitar o conhecimento e a experiência deste Deus73. A catequese, em sua

opinião, “não deveria esquecer nunca, como fez tantas vezes, que a Deus só

descobrimos em Jesus e que não deveríamos dizer nada dele que não seja

respaldado por esse acontecimento cristológico”74. Deveria, sim, evitar qualquer

visão alienante da história e insistir na essencial dimensão histórica da fé cristã,

pois “apenas na história é possível o encontro com o Deus que se fez história”75.

E, do mesmo modo, deveria evitar a visão de que o cristão se encontra numa

situação privilegiada frente aos demais porque a sua fé se apresenta como solução

para todas as dificuldades e como resposta para todo questionamento humano. Na

verdade, o Deus de Jesus não soluciona, de forma mágica, os problemas da vida,

nem desvenda todos os mistérios que a envolvem. Ele mesmo apresenta-se como

o mistério insondável e como aquele que respeita a dimensão mistérica da

realidade. Por isso, o cristão, devido à sua experiência de Deus, não é um “sabe

71 Cf. Ibid., p. 20-23, 70-75 e 227-238; Id. Crer depois de Freud, p. 131-139; Id. El psicoanálisis freudiano de la religión, p. 495-499. 72 Id. Crer depois de Freud, p. 130. 73 Cf. Ibid., p. 130-131. 74 Ibid., p. 130. 75 Ibid.

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tudo” ou “pode tudo”. É alguém que faz a experiência do mistério do Outro e que

acolhe, sem escamoteios, as dificuldades, a complexidade e o mistério da

existência humana.

O acesso ao “Deus da realidade”, portanto, passa por uma catequese que

ajude o cristão a acolher o Deus de Jesus e a superar o “Deus imaginário”

construído à medida dos desejos e das necessidades mais profundas e primitivas

de seu mundo afetivo. A esta tarefa, Morano chama de “reconversão ao Deus de

Jesus”76. Sem esta, segundo ele, o crente poderia fazer uma experiência religiosa,

mas não seria uma experiência rigorosamente cristã. Somente a acolhida do Deus

que se nos revela em e por Jesus de Nazaré é que permite ao crente fazer uma

experiência autenticamente cristã. Pois ser cristão é fazer a experiência do “Deus

da realidade” e não do “Deus imaginário”.

Mas como Jesus nos apresenta o rosto de Deus? E o que caracteriza e

diferencia o Deus de Jesus em comparação com o “Deus imaginário”?

Respondendo a essas perguntas, nosso autor apresenta cinco traços fundamentais

que diferenciam o Deus da criança do Deus de Jesus77. Vamos a seguir dedicar

nossa atenção à apresentação destas cinco diferenças.

A primeira diferença diz respeito à onipotência divina. O Deus da criança,

de acordo com Morano, é um Deus “providência-Mágica”. Trata-se de um Deus

onipotente a serviço dos interesses egoísticos da pessoa religiosa. É aquele que

torna mais suportável a dureza da vida e que soluciona, como mágica, os

problemas e dificuldades da existência humana. Por isso, é o Deus “quebra-

galho”. Consiste, na verdade, em ser a projeção psicológica dos sentimentos

infantis de onipotência relacionadas às figuras parentais. É a projeção psíquica do

pai onipotente ou da totalidade materna envolvente e aconchegante que

disponibiliza a desejada onipotência para realizar os desejos infantis da pessoa

religiosa. Com efeito, este Deus não colabora com a maturidade psíquica do

crente, visto que o aliena da realidade tal como ela de fato se apresenta. O crente,

com este Deus, no âmbito da experiência religiosa, pensa poder manipular o real

em função de si e da realização de seus desejos. E, deste modo, ele não consegue

superar o narcisismo infantil, nem os sentimentos onipotência – agora projetados

76 Cf. Ibid., p. 131. 77 Cf. Ibid., p. 131-139.

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em Deus - nem o pensamento mágico, próprios das primeiras fases do

desenvolvimento psico-afetivo.

Em contrapartida, o Deus de Jesus de Nazaré revela-se como Aquele que

não soluciona de forma mágica as dificuldades da vida, nem tampouco como

Aquele que provoca a alienação da realidade ou a sua manipulação. Não é o Deus

“quebra galho” ou Aquele que se revela como o Onipotente do estratégico sonho

infantil. Pelo contrário, trata-se do Deus que remete a pessoa religiosa à realidade

e a interpela a acolhê-la e a transformá-la por meio de sua própria atividade. Este

Deus não age no lugar do crente, facilitando a sua vida, mas o capacita para

assumir os desafios impostos pela existência. O próprio Jesus de Nazaré não teve

a sua vida facilitada por ser o Filho, nem teve seus problemas solucionados

magicamente pelo Pai, nem tampouco teve sua responsabilidade anulada. Pelo

contrário, fundamentado na experiência do Pai, assumiu, com sua liberdade

orientada para a realização do Reino de Deus, a dureza da realidade e da

existência humana. Tanto que acabou fazendo a experiência da tentação, da

angústia, da ignorância, do sofrimento, da solidão, da frustração, do “silêncio de

Deus”, do sentimento de abandono e da morte provocada pela injustiça estrutural.

Portanto, embora Jesus tenha considerado e feito a experiência de Deus como Pai,

este, para ele, não tem nada a ver com o pai onipotente da situação infantil. Seu

Abbá não se caracteriza pela onipotência, nem é denominado de todo-poderoso. É,

sim, um “Deus débil, porque é um Deus amor que, ao ser rejeitado, se vê reduzido

à extrema debilidade do crucificado. Não é o Deus que se impõe, mas aquele que,

no amor, se expõe”78.

A segunda diferença está relacionada com a ilusão da onisciência. O Deus

da criança é, segundo nosso autor, um Deus “explica-mundos”. Trata-se da

projeção psíquica do pai onisciente provocada pelo desejo de onisciência e pelo

narcisismo infantis que exige dar solução e respostas para todas as perguntas. Por

isso, é o Deus que “tudo sabe”; é aquele que elimina a ansiedade do crente

provocada pelas obscuridades, incógnitas e enigmas da existência e da realidade.

Com este Deus, o crente sente-se tranqüilo e mergulhado num mundo

aconchegante, pois “mediante sua vinculação com o Onisciente, obtém resposta e

explicação para toda possível obscuridade que se lhe apresenta”79. Deus lhe

78 Id. Experiencia cristiana y psicoanálisis, p. 232. 79 Ibid., p. 228.

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garante segurança, mediante a concessão de verdades e certezas absolutas que

elucidam os mistérios da existência e do real. Ora, este Deus não colabora com a

humanização ou maturidade psicológica da pessoa religiosa, pois, sendo projeção

do desejo de onisciência e do narcisismo infantis, a impede de superar os desejos

próprios do mundo da criança. Além do mais, a impede também de acolher a

realidade com os seus mistérios, enigmas e complexidade, mantendo-a no mundo

ilusório. Mas o mais nocivo é que esta visão de Deus, além de tudo isso, pode

produzir a obsessão pela certeza e pela verdade, pervertendo a fé religiosa em

autêntico fanatismo ou fundamentalismo, e o crente num caso patológico80.

O Deus de Jesus, por outro lado, não se revela como Aquele que “sabe

tudo” ou como Aquele que proporciona todas as respostas e explicações ao crente

para os mistérios da vida e do mundo. Ao contrário, respeita o que há de incógnita

na realidade e respeita também as estruturas e limites do conhecer humano. Prova

disso encontra-se no próprio Jesus de Nazaré. O Deus revelado em Jesus não se

apresenta onisciente, mas assume a ignorância, as incertezas, as dúvidas, os

questionamentos próprios da condição humana com relação ao conhecimento da

complexidade da existência, do mundo e, até mesmo, do próprio Deus. Do mesmo

modo, o Deus revelado por Jesus não é o “sabe tudo”. Jesus nos fala de um Abbá

que age na história, mas que não dá respostas para, por exemplo, o problema

sofrimento e do mal ou sobre o “quando” da realização definitiva do seu Reino.

Jesus mostra que Deus, ao invés de solucionar todos os questionamentos

humanos, interpela a acolher, além do sentido, o que há de mistério, de

enigmático e de absurdo na realidade. Ora, este Deus colabora com a maturidade

ou humanização do crente. Exatamente porque não alimenta o seu sonho infantil

de onisciência, nem o aliena da realidade com sua complexidade, mediante o

artifício da ilusão psíquica. Pelo contrário, a relação do crente com o Deus de

Jesus o ajuda a situar-se de forma madura ante o mundo e a própria existência:

acolhendo-os como algo que não pode ser totalmente elucidado pelo saber

humano. Em outros termos, o Deus de Jesus impede a arrogância do saber

humano produzido pelo seu desejo de onisciência e pelo narcisismo infantis.

A terceira diferença diz respeito ao controle exacerbado e patológico da

sexualidade humana em nome de Deus. O Deus da criança, de acordo com

80 Cf. Ibid., p. 229.

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Morano, é “um Deus especialmente ciumento na área da sexualidade”81. É o Deus

projeção do pai que proíbe os intensos desejos sexuais infantis da fase do

complexo de Édipo (desejo do menino pela mãe e desejo da menina pelo pai). Por

isso, consiste no Deus da lei e da proibição; incompatível com o prazer e,

sobretudo, com o sexo; é o Deus zeloso, particularmente, no âmbito da

experiência sexual, e zeloso, em geral, de toda vida pulsional do indivíduo. Trata-

se, portanto, do Deus que exige a repressão ou mesmo a negação do que concerne,

especialmente, ao âmbito da sexualidade e ao prazer sexual. Por isso, a relação

com este Deus exige necessariamente o sacrifício do prazer, mediante a exaltação

do autodomínio e autocontrole. Para este Deus, qualquer transgressão na ordem

do comportamento sexual deve ser severamente punida. Ora, a experiência deste

Deus perpetua a imaturidade psico-afetiva do crente e, ao mesmo tempo, dinamiza

a culpabilidade mórbida que envolve a sua conduta sexual. Por causa de sua fé

neste Deus proibitivo, a pessoa religiosa procura reprimir sua sexualidade por

considerá-la como algo negativo. Por isso, o seu comportamento sexual e o desejo

de experimentar as variadas formas de prazer são focos, para si mesma, de

preocupação e motivos de angústia, culpa e sentimento de punição. Desta forma, a

relação com este Deus a mantém submissa ao pai, representante da lei do

complexo edipiano, impedindo-a de aceitar a sua sexualidade e de desenvolvê-la

de forma madura82.

O Deus de Jesus, em contraposição, não se apresenta como Aquele que

reprime ou nega a sexualidade humana; nem principalmente se mostra preocupado

apenas com as questões de comportamento sexual dos homens. Mas se revela

como Aquele que respeita esta dimensão fundamental da constituição humana.

Não se deve esquecer que o Deus revelado em Jesus de Nazaré assume a

sexualidade. Não a descarta na encarnação, nem a vivencia de forma não-humana.

Assume-a e a desenvolve de modo humano e maduro. Neste sentido, de acordo

com Morano, embora os evangelhos não falem sobre a situação sexual de Jesus, é

possível afirmar, a partir de sua conduta geral, que ele vivenciou a sua sexualidade

norteada pela “paixão” pelo Reino83. Isto quer dizer que Jesus canalizou toda a

sua energia psíquica para um “objeto” (entendido psicanaliticamente como a

81 Id. Crer depois de Freud, p. 133. 82 Sobre o que constitui a maturidade afetivo-sexual, cf. Ibid., p. 173-175. 83 Cf. Ibid., p. 179-182.

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totalidade para a qual se orienta a atenção psico-afetiva) diferente do eu. Contudo,

isto não representou para ele a anulação de sua sexualidade, mas, sim, seu

direcionamento humanizante. Pois a sua missão, centrada no Reino e orientada

para este, se converteu “na essência de seu gozo e de sua realização pessoal”84.

Com efeito, em seu ministério, Jesus, assumindo voluntariamente a vida

celibatária, viveu profundamente a sua pulsão sexual norteada pelo amor e

orientada para o Reino. A sua afetividade e o amor em sua relação com Deus e

com os outros, sobretudo os pobres, evidenciam isso claramente. Para Morano,

Jesus vivenciou uma sexualidade bastante madura, especialmente, porque, devido

à sua “paixão” pelo Reino, teria superado os laços familiares (“laços de sangue”)

pelas relações comunitárias (“laços do espírito”); a figura paterna, como símbolo

de imposição e domínio, pela experiência libertadora do Abbá; e a arrogância

masculina frente ao feminino pela acolhida e valorização da mulher85. Jesus, desta

maneira, segundo nosso autor, teria vivenciado, profundamente, sua sexualidade

sob a dinâmica do encontro e do amor com a alteridade divina e humana em

função da realização do Reino de Deus.

Ainda com relação a esta problemática, se observa que o próprio Jesus não

pregou um Deus que se preocupa unicamente em censurar o comportamento

sexual do ser humano. Pregou, sim, um Deus que se preocupa com o

amadurecimento da sexualidade humana. Pois o Abbá, por ele anunciado, consiste

Naquele que interpela o ser humano para a prática do amor fraterno e gratuito em

nível pessoal e social. Jesus pregou um Deus que colabora para que o homem e a

mulher possam canalizar sua sexualidade ou toda sua força psico-afetiva em um

“objeto” (Reino de Deus), diferente do eu, que possa ajudá-los a desenvolvê-la de

forma adulta. Por isso, o Deus de Jesus, ao contrário do Deus da criança,

possibilita que o crente integre sua sexualidade de forma que o capacite para o

encontro com a alteridade “como um ‘tu’ livre e diferente, e não como um mero

objeto de dependência ou de possessão e domínio”86.

A quarta diferença diz respeito à experiência religiosa marcada pelo medo

e pela culpa. O Deus da criança, segundo nosso autor, consiste no “Deus de

proibições, ameaças, castigos e perpétua vigilância sobre nossos atos e

84 Ibid., p. 180. 85 Cf. Ibid., p. 182-194. 86 Ibid., p. 174.

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intenções”87. Trata-se do “Deus tabu”, construído psiquicamente à medida do

temor do pai onipotente da situação edípica infantil. Ora, para a criança que ainda

não tem consciência da limitação da figura paterna, o pai, para ela, é onipotente e

limita o seu desejo de onipotência (psicanaliticamente, o pai representa a lei). Por

causa disso, o vê como aquele que, por um lado, pode protegê-la e, por outro,

pode puni-la por causa da manifestação da vontade de assumir o seu lugar. Neste

caso, o Deus da criança é a projeção do pai onipotente que impõe limites aos

desejos humanos e que exige sacrifícios. É aquele que suscita medo, porque pode

com seu poder, de forma mágica, castigar ou punir aquele que não obedece aos

seus ditames. É o Deus que se opõe à vontade do ser humano e que, por isso, é por

ele odiado.

O Deus de Jesus, de modo oposto, não se revela como o Deus do medo, da

ameaça, da punição ou do castigo. Pelo contrário, trata-se do Deus exclusivamente

bom; do Deus de misericórdia e de amor gratuito. Este Deus, longe de impor sua

vontade, propõe, respeitando e potencializando a liberdade humana, o caminho da

vida e da salvação a todos. Convida e interpela o ser humano ao compromisso

transformador para que o mundo e as relações humanas possam ser mais dignos

de Deus e dignos do próprio homem88. Por isso, não é o Deus que infunde medo,

mas Aquele que suscita responsabilidade e esperança; é o Deus do qual se pode

fazer a experiência de ser por ele amado e ao qual se pode amar.

A quinta diferença está relacionada ao fato natural de morrer. O Deus da

criança, segundo Morano, consiste naquele que desconhece ou escamoteia a

realidade da morte, porque esta representa uma ameaça ao sonho infantil de

imortalidade. Com efeito, a criança nas duas primeiras fases do desenvolvimento

psico-afetivo, norteada pelo desejo de onipotência e pelo narcisismo, nega a morte

e, mesmo quando vai amadurecendo sua psicologia na percepção da realidade,

tem grande dificuldade para aceitá-la. O fato é que o desejo infantil de

imortalidade dificulta ou impede que ela tenha consciência da morte. E contribui

ainda mais para isso, o dado de que o próprio inconsciente nega este fato

inevitável à condição humana produzindo a ilusão da imortalidade. Devido a isto,

a criança, num primeiro momento, considera-se imortal, e, mais desenvolvida

psicologicamente, considera seus pais como imortais por serem portadores da

87 Ibid., p. 133. 88 Ibid.

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onipotência que ela pensava portar. Ora, o Deus que desconhece a morte é uma

projeção psíquica dos pais idealizados como imortais. Trata-se do Deus que

converte a fé na ressurreição ou na vida eterna “num modo portentoso de eliminar

a suprema ferida narcísica da morte”89. Por causa disso, a experiência deste Deus

não colabora com o progresso da psicologia à fase adulta, visto que nutre o desejo

de imortalidade da situação infantil. A experiência religiosa vivida em torno desta

imagem de Deus dificulta ao crente aceitar o dado factível da morte. Em outros

termos, o aliena da realidade numa fantasia criada pelo desejo. Faz com que, em

sua psicologia, o “princípio do prazer” se sobreponha ao “princípio da realidade”.

Em contraposição, o Deus de Jesus de Nazaré não desconhece a morte,

nem a escamoteia. Pelo contrário, a assume com a encarnação, porque se trata de

um elemento constitutivo da existência humana. Neste sentido, Morano afirma

que o “Deus de Jesus, que não liberou seu filho de nenhuma das condições da

existência humana, tampouco o liberou da morte como momento essencial dessa

mesma condição”90. De fato, o Filho encarnado assumiu realmente a existência

humana, inclusive a morte, e uma morte violenta. Isto revela que, em Jesus de

Nazaré, Deus faz a experiência da morte e mostra-se “impotente” frente a esta

realidade.

Deve-se dizer ainda, que Jesus não pregou um Deus que apresenta ao ser

humano subterfúgios ao dado da morte. Pregou um Deus que faz com que o

homem se depare, de modo realista, com este dado inevitável à sua vida,

especialmente, quando ela aparecer como conseqüência do anúncio e da

realização do Reino. Prova disso diz respeito ao próprio Jesus que, por causa de

sua missão, fundamentada em sua relação com o Pai, assumiu, corajosamente, a

morte. Com efeito, o Deus de Jesus, da mesma maneira como assume a morte na

dinâmica da encarnação, também ensina ao ser humano a deparar-se com ela e

acolhê-la como um dado próprio desta existência que não se constitui

naturalmente como eterna e imortal. Sendo assim, a experiência deste Deus

colabora com a maturidade psicológica, pois não avigora no ser humano, o desejo

infantil de imortalidade, nem a ilusão de que a existência humana seja imortal por

89 Ibid., p. 134. 90 Ibid.

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natureza91. A experiência do Deus de Jesus contribui para que a morte seja aceita

como um dado da realidade que não pode ser fantasiado. Neste sentido, esta

experiência religiosa contribui para que o ser humano possa nortear o “princípio

do prazer” pelo “princípio da realidade”.

Toda esta caracterização pontuada por Morano a respeito do “Deus

imaginário” ou o Deus da criança e do Deus de Jesus aponta para a diferença

radical entre estes. O “Deus imaginário” nada mais é do que uma projeção dos

desejos infantis inconscientes à margem da realidade; é uma ilusão. Por isso é que

sua característica essencial é a onipotência92. Este Deus, “essencialmente, é um

Deus todo-poderoso”93. E isto, exatamente, porque a onipotência consiste num

desejo incrustado no inconsciente humano. Por desejar ser onipotente, o homem e

a mulher projetam em Deus, como pudemos analisar não poucas vezes, a

realização deste desejo. O “Deus imaginário” consiste naquela projeção psíquica

que põe a onipotência a serviço do ser humano ou que, pelo menos, possibilita a

ele, pela via ilusória, manipulá-la em seu benefício. Trata-se de um Deus à mercê

do indivíduo e de seus desejos infantis. Neste caso, a experiência religiosa,

assentada sobre o “Deus imaginário”, se apresenta como um espaço privilegiado

para salvaguardar os “sentimentos de onipotência infantil dos embates que vai

recebendo em seu necessário e benéfico contato com a realidade”94. E, sendo

assim, esta experiência configura-se infantilizante, uma vez que não colabora para

que o ser humano possa renunciar aos seus desejos infantis e nem tampouco

aceitar a realidade na sua facticidade.

O Deus de Jesus, entretanto, não pode ser identificado com o da criança. É

o seu oposto. Não pode ser uma projeção ilusória provocada pelos desejos

91 Com isto não se afirma que não exista a vida eterna ou a vida de ressuscitado. Para Morano, esta claramente não se trata de uma ilusão. Ilusão, para ele, é a crença na imortalidade como algo devido à própria natureza humana. Neste caso, o Deus de Jesus, diferentemente do Deus da criança, não fundamenta, de acordo com Morano, a crença na imortalidade, entendida como permanência perpétua no que somos. Mas fundamenta a fé na ressurreição. E a ressurreição não equivale à imortalidade. É diferente. Enquanto a imortalidade é entendida como a vida eterna pertencente por essência à natureza humana, a ressurreição, por sua vez, significa a concessão, por parte de Deus, da glorificação da vida mortal realizada historicamente. Na ressurreição, Deus, por graça, possibilita ao ser humano após a sua morte, sem perder sua identidade pessoal, vivenciar uma vida definitivamente norteada por Ele e por seu eterno amor envolvente; uma vida não mais submetida à morte. Contudo, Morano reconhece que a própria fé na ressurreição pode ser deturpada por causa do desejo infantil de imortalidade. Cf. Id. Ibid., p. 134-135; Id. El pscoanálisis freudiano de la religión, p. 500-501. 92 Cf. Id. Crer depois de Freud, p. 135-139. 93 Ibid., 135. 94 Ibid.

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infantis, porque não se apresenta como o Deus que realiza esses desejos. Sua

revelação em e por Jesus de Nazaré mostra ele que não pode ser confundido com

o pai onipotente ou como a mãe envolvente e aconchegante do mundo infantil,

porque não se revela como onipotência arbitrária que o homem pode manipular a

sua disposição. Trata-se do Deus verdadeiro que nada tem a ver com o “Deus

imaginário”. Ele é o Outro diferente do eu que permite ao ser humano acolhê-lo e

Dele fazer experiência. E esta experiência configura-se como humanizante,

porque, além de colocar o ser humano em contato respeitoso com a realidade,

exigindo dele uma postura de compromisso com os outros e com a natureza, o

ajuda a superar o narcisismo e o desejo de onipotência do mundo infantil.

Contudo, Morano enfatiza, conforme aludimos acima, que a experiência

do Deus de Jesus pode ser envenenada por situações inconscientes da fase infantil.

Ora, mesmo procurando vivenciar o diálogo, a abertura e o encontro com o Deus

de Jesus, o cristão pode dificultar e até impedir esta relação por causa da

perpetuação, em sua psicologia, dessas situações infantis. É o caso, por exemplo,

dos sentimentos de culpabilidade que, por causa da ambivalência afetiva da

situação edípica redimensionada para Deus, podem transformar a experiência do

Deus de Jesus em experiência mortificante e absolutamente negativa para a

adultez psíquica do cristão.

Para poder esclarecer melhor o problema que pode causar a influência de

situações infantis inconscientes na experiência cristã, pretendemos mostrar, na

seção a seguir, pautados na reflexão de Morano, como os sentimentos de

culpabilidade podem determinar a relação do cristão com o Deus de Jesus, e como

a própria configuração religiosa da fé cristã pode mobilizar estes sentimentos.

Tudo isso faremos, tendo em vista dois objetivos. Primeiro, tornar claro que a fé

cristã pode se configurar de modo culpabilizante, ou seja, de modo que possa

desenvolver patologias ou dificultar o amadurecimento psicológico do ser

humano. E, segundo, que esta mesma fé, em seu fundamento, não se apresenta

como produto dos sentimentos de culpabilidade e nem os mobiliza.

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6.2. Culpabilidade e experiência cristã 95 Morano constata que o cristão, com freqüência, para situar-se na presença

de Deus, sente, antes de mais nada, a necessidade de confessar a própria culpa96. É

como se Deus aparecesse para nós como Aquele que, para manter diálogo

conosco, exigisse, em primeiro lugar, que nos arrependêssemos das nossas faltas

cometidas contra os seus ditames e reconhecêssemos a nossa pequenez diante de

sua grandiosidade. Ora, o Deus de Jesus não é o Deus que exige a confissão

constante de nossas culpas. É o Deus da misericórdia; Aquele que vem ao nosso

encontro gratuitamente para salvar97. Por isso, nem a confissão de nossas culpas,

nem a petição de perdão consistem na condição fundamental para fazer a

experiência de encontro com Ele98. A condição fundamental é a da abertura nossa

a este amor salvífico; ou seja, deixarmo-nos ser amados pelo Deus que se revela

como amor que nos ama primeiro. Mas se assim é, visto que Jesus assim nos

revelou, por que, então, existe no cristão esta tendência de se diminuir ou de se

depreciar diante de Deus? Por que se sentir sempre culpado? Por que pensar que

Deus exige sempre nossa confissão de culpa? Por que ressaltar com freqüência

nos ritos litúrgicos a petição de perdão ou o reconhecimento do pecado? E no

âmbito da reflexão teológica, por que algumas verdades de fé são explicitadas

tendo como pano-de-fundo privilegiado a realidade antropológica do pecado?

Para Morano, a resposta a estes questionamentos pode ser encontrada nas

estruturas psíquicas inconscientes, ou seja, nos sentimentos de culpabilidade. Para

ele, a culpa que surge em nós por causa da ambivalência afetiva com relação às

figuras parentais pode, de forma patológica, transparecer ou ser expressa em nossa

relação pessoal e comunitária com o Deus de Jesus, bem como nas visões

teológicas e também nos ritos litúrgicos. Para se poder entender melhor como isso

acontece, exporemos, nesta seção, as análises de Morano a respeito da

culpabilidade e de sua determinação sobre a vivência e a expressão da fé cristã.

95 Cf. Ibid., p. 141-168; Id. Experiencia cristiana y psicoanálisis, p. 29-35, 77-102 e 232-234; Id. El psicoanálisis freudiano de la religión, p. 499-503. 96 Cf. Id. Crer depois de Freud, p. 141. 97 Cf. Ibid., p. 142-144. 98 Com isso não se quer dizer que a confissão de culpa ou o pedido de perdão a Deus não seja necessário. Sim, isso tem seu valor. Mas, situar o reconhecimento da culpa como condição indispensável para se estabelecer o encontro com Deus ou insistir no pedido de perdão de forma constante na experiência religiosa constitui “a manifestação de uma autêntica perversão do sentido da relação que assim se estabelece”, como também expressa uma patologia. Cf. Ibid., p. 142.

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Para tanto, dividiremos a seção em três itens. No primeiro, apresentaremos a visão

psicanalítica sobre a culpabilidade. No segundo, abordaremos a relação da culpa

com a experiência cristã. E no terceiro, mostraremos que a fé cristã, em seu

fundamento, não consiste em afirmar a centralidade da culpa na experiência de

Deus, nem a desenvolve em sua forma patológica.

6.2.1. A visão psicanalítica da culpabilidade A psicanálise colocou a descoberto que a culpabilidade faz parte do ser

humano desde os primeiros momentos de vida. Ela é o produto gerado por outra

experiência primitiva que marca a existência da pessoa no seu começo, a saber: a

ambivalência afetiva relacionada às figuras da mãe e do pai. Para explicar a

gênese dos sentimentos inconscientes de culpabilidade, Morano se pauta em duas

teorias da psicanálise freudiana: a do próprio Freud e a de Melanie Klein99.

Segundo a teoria de Freud, tal como expusemos algumas vezes, a culpa

está relacionada, em sua origem, à situação edipiana infantil. A criancinha, unida

numa relação fusional com a mãe, tem essa relação superada com o aparecimento

do pai, que, por causa disso, desperta seu amor e seu ódio. Para ela, o pai

representa a norma, a lei, o limite de seu desejo de onipotência. Frente “ao desejo

de ser tudo para a mãe, o pai aparece [para ela] como instância simbólica da qual

dimana a proibição”100. Por isso, ele é, por ela, odiado. E, por outro lado, por

representar, para ela, a proteção, por portar a onipotência, é também amado. Neste

caso, o sentimento primitivo de culpa surge da ambivalência de amor e ódio à

figura paterna. A criancinha sente-se culpada, de modo inconsciente, por odiar ao

pai, a quem também ama. Na verdade, sente-se culpada, porque o pai é

onipotente. O seu ódio a ele coloca em risco a satisfação do seu desejo de

onipotência. Com medo de não ter mais a onipotência do pai a sua disposição, a

criança, inconscientemente, censura e internaliza a agressividade ou o ódio contra

ele. A rejeição ao pai e o medo de perder a proteção que ele pode conceder fazem

com que ela reconheça esse ódio como um dano, como algo mau. A criança sente

que fez algo danoso. Daí a sua culpa. Portanto, os sentimentos de culpabilidade

99 Cf. Ibid., p. 144-146; Id. Experiencia cristiana y psicoanálisis, p. 77-82. 100 Id. Crer depois de Freud, p. 146.

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antecedem ao conhecimento do bem e do mal convencionados culturalmente; é

anterior à moralidade.

Entretanto, os sentimentos de culpabilidade relacionados à figura paterna

não deixam de existir com o fim do complexo de Édipo. O pai, como imposição

do limite ao desejo de onipotência ou como representante da lei, é interiorizado

em nosso mundo psíquico, dando origem ao superego ou supereu. Com isso,

“tudo está dentro: a vigilância, a voz do bem e do mal, o castigo pela transgressão,

a apresentação dos grandes ideais”101. A culpa, após a resolução do complexo

edipiano, mostra-se relacionada à lei introjetada em nosso interior profundo.

Quando se transgride as leis ditadas pelo superego, este suscita os sentimentos de

culpa. E quando não há adequação com os seus grandes ideais, o superego suscita

os sentimentos de inferioridade102. A culpabilidade, suscitada pela transgressão ao

superego, pode ser sadia ou patológica. É sadia quando leva à reparação da

transgressão daquilo que a pessoa se propôs como ideal ético ou religioso. E é

patológica quando orienta, contra o indivíduo, a pulsão de morte, como remorso

mórbido.

Melanie Klein, por sua vez, considera que o sentimento inconsciente de

culpabilidade é anterior à situação edipiana. Para ela, a culpabilidade surge

também como conseqüência da ambivalência afetiva, mas não relacionada ao pai

e, sim, ao seio materno.

Segundo sua teoria, o bebê, que vive uma relação fusional e simbiótica

com a mãe, percebe o seio materno de modo ambíguo. Por causa de seu desejo de

onipotência, o bebê deseja ser sempre gratificado pela presença da mãe. Desde

que nasce desenvolve uma aspiração radical pelo seio materno, que, para ele,

concentra a gratificação e a bondade da mãe. Para ele, o seio é percebido como “o

todo bem existente”. Mas este seio não está sob o seu domínio todo o tempo. É

um seio que se “aproxima e se afasta, gratifica e frustra, protege e abandona de

um modo incompreensível e desconcertante para o bebê”103. Quando o seio o

gratifica, o alimenta ou está a sua disposição, o bebê o vê como bom. E quando

este não responde ao seu desejo, não o gratifica, não o alimenta, ele o vê como

mau. Quando está a sua disposição, o bebê, por causa da fusão e simbiose entre

101 Ibid. 102 Cf. Ibid. 103 Id. Experiencia cristiana y psicoanálisis, p. 78.

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sua realidade interna e a externa, considera tudo como bom, e ele mesmo

experimenta-se como um objeto bom; “suas pulsões amorosas impregnam toda a

realidade existente”104. Entretanto, quando o seio está ausente, ele, dominado

pelas pulsões agressivas, desenvolve um ódio a este objeto, porque este se nega a

gratificá-lo. Motivado pelo ódio ao seio materno, o bebê vai procurar devorá-lo,

sujá-lo e despedaçá-lo porque o considera um objeto mau e daninho. Contudo, até

o quarto mês de vida, o bebê ainda não considera que o mesmo seio seja bom e

mau. Para ele, em sua fantasia, existem dois seios, o que o gratifica e o que não o

gratifica. Ele ama aquele que é bom, e odeia aquele que é mau. Nesta fase do

bebê, denominada de “posição esquizoparanóide”, a culpabilidade ainda não

aparece.

A culpabilidade, de acordo com a teoria de Melanie Klein, vai emergir a

partir, aproximadamente, do quarto mês de vida do bebê. É quando, então, ele

percebe que o seio mau, que não o gratifica, não é outro senão o seio bom, aquele

que o amamenta. Ele chega a esta percepção, porque “compreende que o seio bom

e o seio mau constituem dimensões parciais de um único objeto total: a mãe”105.

Ao perceber, então, que não existem dois seios diferentes, mas unicamente a mãe

que o gratifica com a sua presença e que o frustra com sua ausência, o bebê se

sente culpado pelo ódio dirigido à mãe, aquele “objeto bom do qual depende e do

qual recebe a satisfação de suas necessidades mais primárias”106. Por causa dessa

culpa (“posição depressiva”), entram em movimento os mecanismos reparatórios

com os quais o bebê intenta reparar o dano provocado. O bebê, assim, encontra,

inconscientemente, uma nova forma de se relacionar com a mãe para compensar o

ódio manifestado contra ela.

É, portanto, deste modo que a ambivalência afetiva à figura materna,

vivenciada pelo bebê, confere origem à culpabilidade inconsciente que fará parte

do psiquismo do ser humano ao longo de toda sua vida. E essa culpabilidade

poderá ser dinamizada como persecutória ou não-persecutória. Com efeito, a

culpabilidade persecutória consiste naquela que não permite que o dano causado

seja esquecido, nem tampouco reparado. Trata-se do remorso constante. Diz

respeito à “pulsão de morte” orientada contra o indivíduo. Surge, exatamente, da

104 Ibid. 105 Ibid., p. 79. 106 Ibid.

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internalização e introjeção no mais profundo de nós mesmos do ódio, manifestado

quando bebês, ao seio mau e daninho107. Por outro lado, a culpabilidade não-

persecutória é aquela que suscita a necessidade de reparar o dano causado. Trata-

se daquela que “procurará estabelecer novas relações com o objeto pela renúncia

às pulsões destruitivas e destruidoras”108. No caso do bebê, esta aponta para a

necessidade de reparar o ódio manifestado contra a mãe, quando, por considerar o

seio materno como algo mau, o agredia.

Com estas duas teorias sobre a gênese inconsciente da culpabilidade

primitiva, Morano evidencia que esta faz parte do psiquismo humano e que é

fundamental para a constituição da personalidade amadurecida ou, ao contrário,

da patológica. Por isso, a culpa, para ele, não se trata de um “invento” da religião,

nem tampouco diz respeito unicamente a algo negativo ou nocivo à psicologia

humana109. A culpabilidade se constitui como elemento fundamental para que o

ser humano dê conta dos males que provoca e para que possa se manter fiel aos

valores ou ideais que norteiam a sua vida e as relações sociais, bem como

possibilita a manutenção de relações fraternais entre as pessoas. Para Morano,

“sem culpa viveríamos desorientados no mundo dos valores, como viveríamos

desorientados na realidade física sem as coordenadas espaço-temporais”110. O

reconhecimento da culpa é essencial para a moralidade. Sem ela não seríamos

capazes de mudar de rumo quando enveredássemos pelo caminho dos contra-

valores; não haveria a possibilidade de conversão111. Quando não reconhecemos a

culpa ou a projetamos sobre os outros, a auto-suficiência ou a arrogância se

plantam em nosso interior. Seu reconhecimento é fundamental para a própria

maturidade humana ou para a superação do narcisismo ou do egoísmo que nos

impede de relacionarmo-nos de forma respeitosa e acolhedora com os demais.

Entretanto, o reconhecimento da culpa não apenas impele à mudança dos

homens e mulheres ou colabora com a manutenção da moralidade e da ética, mas

também pode fixá-los na própria culpa, num movimento doentio de auto-acusação

e auto-condenação. Mas, por que e quando, precisamente, a culpabilidade se

manifesta como sadia ou como patológica para o ser humano?

107 Cf. Id. Crer depois de Freud, p. 145. 108 Ibid. 109 Cf. Ibid., p. 147. 110 Ibid., p. 148. 111 Cf. Id. Experiencia cristiana y psicoanálisis, p. 32.

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Nosso autor responde à questão enfatizando a diferença entre a

culpabilidade reparadora e a culpabilidade persecutória112. Como já acenamos

antes, uma está a serviço das pulsões de vida e a outra, das pulsões de morte. A

culpa reparadora ou não-persecutória consiste naquela que leva a pessoa, diante da

realização de ações contrárias ao seu mundo de valores, a se sentir desgostosa

com o seu comportamento (culpabilidade depressiva). Trata-se da culpa que

“surge como expressão do dano realizado. Dano cometido contra o outro, ruptura

do encontro, perda do amor e perda dos valores que pretendem presidir a própria

vida e comportamento”113. E mais do que isso, é aquela que impulsiona o ser

humano a procurar caminhos para reparar o dano cometido. Faz com que ele

estabeleça novas relações com aquele que foi, por ele, ofendido. Consiste,

portanto, em fator decisivo de mudança e progresso da pessoa culpada. Com esta

culpabilidade, o indivíduo não fica remoendo o que fez de danoso. Assume o erro,

procura repará-lo, e busca se firmar na vivência dos seus valores e ideais, bem

como busca restabelecer os laços fraternais com aqueles que ele prejudicou com

suas ações. Trata-se da culpabilidade que colabora com a maturidade psicológica,

visto que permite a superação do narcisismo ferido.

Diferentemente, a culpabilidade persecutória revela-se patológica. Pois,

consiste naquela que não leva em conta a necessidade de reparação do dano

causado, nem impulsiona o ser humano à mudança. Faz com que este remoa, de

modo constante, sua culpa pelo dano provocado. Desenvolve a auto-reprovação e

auto-depreciação. Trata-se, portanto, “de uma culpa egocêntrica, que encerra o

sujeito em si mesmo”114. A pessoa culpada não consegue viver para além da sua

culpa. Esta culpabilidade impede o sujeito de superar o seu narcisismo ferido para

se lançar no encontro fecundo com a alteridade. Por isso, não colabora com a sua

maturidade psíquica.

Morano encontra em dois personagens evangélicos, Pedro e Judas, a

ilustração adequada para estes dois tipos de culpabilidades e o que cada um deles

pode desencadear a psicologia humana115. Pedro ilustra a culpabilidade

reparadora, e Judas, a persecutória. Ora, ambos romperam a aliança de amizade

com Jesus. Pedro pela negação, e Judas pela traição. E ambos sentiram-se

112 Cf. Ibid., p. 82-84 e 34; Id. Crer depois de Freud, p. 147-150. 113 Id. Experiencia cristiana y psicoanálisis, p. 84. 114 Id. Crer depois de Freud, p. 149. 115 Cf. Ibid., p. 149-150.

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culpados pelo que fizeram. Pedro chorou amargamente, e Judas devolveu as

moedas que havia recebido dos sacerdotes para entregar Jesus. Mas em um, a

culpa conduziu à vida, ou seja, ao reencontro com o Senhor. E, em outro,

conduziu, literalmente, à morte. Enquanto que em Pedro, a culpa é aceita e

superada, em Judas, ela é aceita, mas não superada. Em Pedro não há remorso

mórbido ou auto-destruitivo, mas em Judas, sim. Por isso, para um, a

reconciliação com Jesus é possibilitada e para outro, não; para um existe

reparação ao dano provocado, e para outro somente a culpa.

A culpabilidade inconsciente, sendo, portanto, um dado constitutivo do

psiquismo humano, que pode colaborar com a sua maturidade ou com a sua

permanência na infantilidade, pode aflorar na experiência religiosa do ser

humano, inclusive na cristã. E isto pode se dar de tal modo, que esta experiência,

“tanto em seu pensar como em seu agir, pode estar intimamente vinculada a

ela”116. O problema, no entanto, não diz respeito à culpabilidade reparadora. Esta

é exigida pelo cristianismo. Ora, sem esta culpabilidade não haveria a consciência

do dano causado, nem haveria atitudes para repará-lo, nem tampouco haveria o

movimento da pessoa culpada para realização de sua constante mudança ou

conversão. Não seria possível, em termos cristãos, a reconciliação, o perdão e a

vivência profunda do mandamento do amor. Portanto, o problema diz respeito à

culpabilidade persecutória ou mórbida. Quando esta invade a experiência da fé

acaba deturpando e deformando-a, bem como contamina suas variadas expressões

com uma visão depreciativa do ser humano diante de Deus. Mas sobre essa

problemática, dedicaremos nossa atenção no próximo item.

6.2.2. Culpabilidade persecutória e experiência cristã

Para Morano, a tendência do cristão de se sentir sempre culpado diante de

Deus e de pedir com insistência o seu perdão em orações pessoais e comunitárias

ou nos ritos litúrgicos encontra explicação nos sentimentos inconscientes de

culpabilidade desenvolvidos como culpa persecutória117.

O caráter inconsciente da culpa, de acordo com Morano, pode fazer com

que o ser humano desenvolva uma imagem negativa de si mesmo e, ao mesmo

116 Ibid., p. 151. 117 Cf. Ibid., p. 150.

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tempo, uma constante auto-insatisfação ou auto-reprovação. Com efeito, quando

isso ocorre, o seu mundo psíquico fica contaminado por uma orientação de

oposição a si mesmo. A pulsão de morte passa a nortear o seu mundo psico-

afetivo. E, por isso, toda a sua agressividade reprimida volta-se contra si mesmo.

A culpa se aloja em seu mundo interior, de tal modo que não consegue superá-la.

Vive-a e sente-se permanentemente culpado. E, assim, ela perpassa todas as suas

experiências, inclusive a religiosa. Ora, o resultado disso é que a relação com

Deus aparecerá marcada por esta culpabilidade. Deus será visto como Aquele que

exige sempre o reconhecimento da culpa ou o arrependimento infecundo como

condição essencial para o estabelecimento de contato com Ele. Será visto,

também, como Aquele que reprova constantemente as opções humanas e que

exige o sacrifício de realidades fundamentais de nossa vida. Neste caso, a

culpabilidade mórbida ou patológica aparece como a motriz de uma visão

equivocada do Deus cristão, como também configura uma experiência religiosa de

cunho patológico, extremamente, negativa para o desenvolvimento da maturidade

psicológica.

Não obstante, Morano reconhece que não é somente a culpabilidade

inconsciente que pode determinar negativamente a experiência cristã. Para ele, o

movimento pode ser inverso. A configuração religiosa desta experiência, uma vez

determinada pelos sentimentos de culpabilidade, pode mobilizá-los

desenvolvendo-os como culpa persecutória. Com efeito, de acordo com Morano, a

experiência cristã, em seus gestos rituais e litúrgicos, em seus ideais espirituais e

ascéticos, em suas crenças e dogmas e em todas a suas demais expressões, pode se

converter em cúmplice dos sentimentos de culpabilidade e “se aliar a seus

elementos mais patogênicos”118. E isto porque toda “experiência religiosa

constitui um dos âmbitos mais propícios para alimentar as estratégias mais

neurotizantes de culpabilidade”119.

O cristianismo, para Morano, dinamiza esses sentimentos desenvolvendo-

os como patológicos, quando este acentua, em suas múltiplas expressões, o valor

da depreciação do ser humano frente à afirmação de Deus; ou quando, em outros

termos, acentua o valor do pedido de perdão e do reconhecimento constante do

118 Ibid., p. 167. 119 Ibid., p. 152-153.

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pecado mais do que a experiência do amor divino e da exigência do compromisso

com o Reino de Deus.

Nesta perspectiva, nosso autor constata que a prática sacramental,

especialmente a do catolicismo, em sua forma ritual ou em seu conteúdo

teológico, tem servido para mobilizar os sentimentos inconscientes de

culpabilidade a ponto de tornarem-se atos religiosos obsessivos120. No seu

entender, a prática sacramental configura-se, quando relacionada com

determinadas concepções de Deus que atualizam a ambivalência afetiva edipiana

e acentuam o pecado e o perdão, como “maneira mais ou menos sofisticada de

apaziguar o sentimento de culpa”121.

Para exemplificar esta deturpação da prática sacramental em função da

culpa, Morano cita dois sacramentos: a Eucaristia e a Reconciliação. Afirma que a

“Eucaristia, gozosa ação de graças, chegou freqüentemente a converter-se num

monumento à culpabilidade”122. Ele recorda que a própria celebração eucarística

começa com um reconhecimento do pecado (mea culpa, mea culpa, mea maxima

culpa) e um pedido de perdão, e se desenvolve acentuando, algumas vezes mais, o

pecado, a purificação e o perdão. É como se o reconhecimento da culpa fosse o

elemento prioritário para a celebração do mistério eucarístico. Por causa disso,

para ele, a celebração da Eucaristia apresenta-se hoje muito mais como um rito

mágico de remissão dos pecados para aqueles que se sentem culpados e

arrependidos, do que celebração alegre e irradiante da presença de Cristo que

alimenta a comunidade para o compromisso evangelizador com a edificação do

Reino de Deus.

Para Morano, o sacramento da Reconciliação também caiu nas armadilhas

dos sentimentos inconscientes de culpabilidade, pois se converteu num

sacramento unicamente de penitência e confissão dos pecados. A prova disso,

para ele, está nas armadilhas da culpa que podem ser facilmente detectáveis neste

sacramento, a saber: a lembrança da culpa, o arrependimento, a confissão dos

pecados, as falsas ilusões de reconciliação, as cumplicidades entre penitente e

confessor, a consolidação de atitudes culposas obsessivas, as penitências

ineficazes e as falsas tentativas de conversão. Por causa disso tudo, ele afirma que

120 Cf. Ibid., p. 160-163; Id. Experiencia cristiana y psicoanálisis, p. 99-102. 121 Id. Crer depois de Freud, p. 161. 122 Ibid., p. 162.

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neste sacramento “é como se a culpa estivesse falando ‘ao vivo’”123. A celebração

da Reconciliação, no seu entender, assim como a Eucaristia, deixou de ser

celebração do perdão reconciliador com Deus e com os demais, para se tornar

celebração da exaltação da culpa que não compromete o cristão com a vivência

dos valores evangélicos.

Também a vida espiritual em seu conjunto, conforme nosso autor, não está

isenta de mobilizar os sentimentos de culpabilidade124. Para ele, a espiritualidade

de cunho dualista e que se pauta numa imagem de Deus confundido com o pai

onipotente da fase edipiana, pode favorecer a culpabilização. E isto porque, nesta

espiritualidade, segundo ele, o crente é orientado a reconhecer constantemente as

suas culpas e a sua miserabilidade diante de Deus para poder fazer experiência de

encontro com Ele. Ora, sendo assim, esta espiritualidade pode impelir este crente

a ficar enredado sobre o remorso ou sobre a sua culpa, de tal modo que todo seu

psiquismo fique contaminado pelo ar sombrio e mórbido de depreciação e auto-

acusação. As atitudes de sacrifícios, renúncias e mortificações, tão freqüentes

neste tipo de espiritualidade, podem ser provas disso; ou seja, podem ser

tentativas de reparação infecunda da culpa alimentada no psicológico da pessoa

que faz este tipo de experiência de Deus.

Para Morano, algumas noções teológicas também podem colaborar para

mobilizar os sentimentos de culpabilidade desenvolvendo a culpa patológica. É o

caso, especialmente, da noção de salvação125. Para ele, a interpretação equivocada

da morte de Jesus (sacrifício expiatório), vista como um evento planejado por

Deus para poder perdoar o ser humano marcado pelo pecado original, deu origem

a uma concepção trágica da salvação. O sentido da salvação, no seu entender,

ficou reduzido a quase exclusivamente a uma salvação do pecado, da morte, das

penalidades e do passado. Por isso, é que, para ele, a visão de salvação que

aparece nas entrelinhas dos Evangelhos, como salvação para o bem, para o

descentramento do eu em favor do Reino ou como impulso para a história e para o

futuro de acordo com a vontade de Deus, acabou perdendo espaço e importância

123 Ibid., p. 163. 124 Cf. Ibid., p. 164-167; Id. Experiencia cristiana y psicoanálisis, p. 29-31; Id. El psicoanálisis freudiano de la religión, p. 501-503. 125 Cf. Ibid., p. 153-160; Id. Experiência cristiana y psicoanálisis, p. 23-29 e 86-102; Id. Psicoanálisis freudiano de la religión, p. 499-503.

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na pregação cristã. A concepção de uma “salvação de” se impôs, levando ao

esquecimento a visão de uma “salvação para”.

Com efeito, segundo Morano, esta concepção de salvação como salvação

do pecado devido ao sacrifício expiatório de Cristo – bastante acentuada na

teologia ocidental (Agostinho, Anselmo, Lutero) – consiste numa concepção

determinada pelos sentimentos de culpabilidade. Morano recorda que Freud viu

nesta concepção de salvação uma projeção, em nível dogmático, da problemática

edípica do início da histórica humana126. Ora, Freud interpretou a noção de

salvação cristã como forma de aplacar o sentimento de culpa que está introjetado

na humanidade por causa da morte do pai primitivo (teoria da horda primitiva). O

cristianismo, segundo Freud, ao conceber a salvação como remissão do pecado

original, possibilitado pelo sacrifício do Filho, estaria reconhecendo a culpa pelo

assassinato do pai primevo, e, ao mesmo tempo, inventando uma forma para

aplacar a culpa por este crime. Neste sentido, a morte de Cristo, aparece, em

termos freudianos, como forma de reparar o dano cometido ao proto-pai e como

forma de aplacar a culpa por este dano; e a salvação, por sua vez, aparece como o

apaziguamento da culpa e como restabelecimento da relação com o pai primitivo

assassinado.

Morano reconhece que a concepção de “salvação do pecado”, realizada

pelo sacrifício expiatório de Cristo, apresenta a mesma dinâmica de culpa e

reparação que está presente na situação edipiana. Nela se encontra a visão de um

Deus que necessita de um sacrifício humano para poder realizar a redenção e a de

um ser humano – representado pela natureza humana do Filho – que necessita se

submeter ao sacrifício, exigido por Deus, para poder reparar o mal cometido

contra a honra divina.

Esta concepção, segundo nosso autor, dá legitimidade e justificação ao

sacrifício de algo em nós, como atitude necessária e fundamental, para podermos

fazer a experiência do amor divino. Ele constata que, infelizmente, que esta

concepção deturpada, ao prevalecer como explicação para a salvação, provocou a

acentuação da culpa em todos os âmbitos do cristianismo, deformando e

pervertendo toda experiência cristã127.

126 Cf. Id. Crer depois de Freud, p. 153-154; Id. Psicoanálisis freudiano de la religión, p. 140-142 e 330-334. 127 Id. Crer depois de Freud, p. 157-160.

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Para terminar estas considerações, concernentes a relação entre

culpabilidade persecutória e a experiência cristã, podemos dizer que Morano,

embora reconheça que os sentimentos inconscientes de culpabilidade podem

determinar de modo patológico esta experiência religiosa e esta, por sua vez, pode

mobilizá-los, considera que nada disso é possível quando esta experiência é vivida

na fidelidade à revelação de Deus em e por Jesus de Nazaré. Para ele, a fé cristã e

a sua experiência autêntica libertam o ser humano para o compromisso com o

Reino e, assim, possibilitam o seu amadurecimento psico-afetivo. Não suscitam a

culpa patológica, porque nada têm a ver com a perpetuação do conflito edipiano

na relação do homem e da mulher com Deus. Vamos ver a seguir, de modo bem

breve, a defesa que nosso autor faz da experiência cristã diante da problemática da

culpabilidade patológica.

6.2.3. Uma fé que não se revela culpabilizante Morano destaca que, segundo os evangelhos, Jesus não coloca no primeiro

plano de sua pedagogia evangelizadora a confissão da culpa como a condição

fundamental para o estabelecimento da relação do ser humano com Deus128. Pelo

contrário, apresenta, em primeiro plano, o amor gratuito de Deus que se concretiza

na história sob a forma de Reino e a abertura do homem para acolher este amor. É

o que se vê, por exemplo, na oração do Pai-nosso, na parábola do pai

misericordioso e no episódio de Zaqueu. Na oração do Pai-nosso, Jesus nos

convida a pedir, em primeiro lugar, não o perdão dos pecados, mas a vinda do

Reino (Mt 6,9-13; Lc 11,1-4). Na parábola do Pai misericordioso (Lc 15,11-32),

Jesus deixa claro que o pai não exige do filho pródigo, como algo prioritário, o

reconhecimento da culpa; mas destaca que o que é mais importante está na alegria

do pai por ter o seu filho de volta. No episódio de Zaqueu (Lc 19,1-10), por seu

turno, Jesus não exige deste homem que reconheça, em primeiro lugar, o seu

proceder injusto, mas, sim, que o acolha em sua casa.

O fato de Jesus não situar a culpa em primeiro plano na relação do homem

com Deus, segundo nosso autor, não significa dizer que tenha tido tolerância com

a situação de pecado129. Os evangelhos são provas disso. Eles, além de

128 Cf. Ibid., p. 142-144. 129 Cf. Ibid., p. 143.

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apresentarem a censura que Jesus faz aos pecadores e a sua lapidar frase “vai e

não peques mais”, mostram que ele apresenta aos seus discípulos e aos seus

ouvintes um novo modo de ser e de proceder em conformidade com a vontade de

Deus e, portanto, em oposição radical ao pecado. Para Jesus, certamente, o pecado

desumaniza a pessoa e as relações que esta estabelece. E é, por isso, que, para ele,

esse deve ser combatido e superado. Mas, para ele, o combate ao pecado não pode

acontecer sem antes o pecador fazer a experiência de ser amado, perdoado e

acolhido por Deus. É a experiência do amor de Deus que possibilita a consciência

do pecado (arrependimento) e o esforço para superá-lo. Neste sentido, para Jesus,

o reconhecimento da culpa é algo secundário; em primeiro lugar, está a

experiência do amor envolvente e misericordioso de Deus. E, mesmo sendo algo

secundário, o reconhecimento da culpa não consiste em ser algo permanente que

atormenta a pessoa; trata-se de um arrependimento que a impulsiona à mudança.

Sendo assim, pode-se dizer, em termos psicanalíticos, que Jesus não é

contrário à culpabilidade que suscita a conversão. Para ele, a culpabilidade deve

despertar a pessoa pecadora para fazer a opção pelo Reino; ou seja, não deve

canalizar as energias do sujeito para a própria culpa ou para o narcisismo ferido, e,

sim, para a realização da vontade de Deus. Isto quer dizer que o que deve

despertar a atenção constante da pessoa é o Reino e não a culpa. A culpa, neste

caso, somente tem valor se colaborar para que a pessoa possa se converter aos

valores do Evangelho. É por causa disso, portanto, que a culpabilidade que centra

a pessoa em si mesma, impedindo a experiência de encontro com Deus e de

conversão, não encontra espaço nem nos discursos nem nas atitudes de Jesus.

Com efeito, a fé cristã, em seu fundamento, não se revela culpabilizante,

visto que a culpa não foi valorizada e exigida por Jesus de seus discípulos e

ouvintes como algo imprescindível para o diálogo com Deus. Jesus exigiu, sim,

abertura e disponibilidade para o Reino. Por isso, a fé cristã, que se fundamenta

em Jesus, se revela des-culpabilizante. Ajuda a pessoa a se mobilizar, muito além

de viver aprisionada nas malhas da culpa, para o compromisso com a edificação

de relações humanizadoras com Deus, com o semelhante e com a natureza.

A fé cristã, de acordo com nosso autor, não se revela relacionada à

culpabilização, porque se funda na experiência do Deus de Jesus130. Em verdade,

130 Cf. Id. Experiencia cristiana y psicoanálisis, p. 98-99 e 232-234.

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se a experiência cristã se pautar no diálogo com o Deus projeção idealizada da

figura paterna, certamente, se configurará como culpabilizante. Pois a

ambivalência afetiva do complexo edipiano, juntamente com a culpabilidade que a

envolve, será perpetuada no âmbito da religião. No entanto, a autêntica

experiência cristã não é experiência do “Deus imaginário”, mas a do Deus de

Jesus. O Deus Pai onipotente, produto do psiquismo infantil, se apresenta como o

Deus do sangue, da submissão, do sacrifício e do castigo; é aquele que acentua a

problemática da culpa. Mas o Deus de Jesus não se revela como oponente do ser

humano. Não se trata do Deus que exige a anulação da pessoa. Não é o Deus da

dialética edipiana do “ou eu ou tu”. É, sim, o Deus que se oferece no amor, e

como amor se expõe. É Aquele que afirma o humano e que, por isso, não mobiliza

os sentimentos de culpabilidade como pulsão de morte. Com efeito, na

experiência cristã, determinada pelo Deus de Jesus, não há lugar para a

culpabilidade mórbida. A relação com o “Deus da realidade e da história”

mobiliza a pulsão de vida; canaliza a energia da pessoa, ajudando-a a renunciar à

fantasia dos sentimentos de onipotência e à morbidez dos sentimentos de

culpabilidade, na constituição de sua maturidade psíquica estabelecida no

confronto respeitoso com a realidade e a alteridade.

Portanto, com tudo isso, Morano defende a idéia de que a experiência

cristã, embora possa se configurar como prejudicial à psicologia do crente por

causa dos sentimentos de culpabilidade, na realidade, colabora com a superação

do infantilismo psíquico. A partir disso, podemos afirmar que toda expressão da

experiência cristã (ritos, dogmas, noções teológicas, moral, espiritualidade,

pastoral, catequese, etc.) que fomentar a culpabilidade patológica consiste numa

pseudo-experiência cristã. E isto porque a autêntica experiência cristã consiste em

ser libertadora da culpa; liberta o ser humano para a opção comprometedora com

o Reino de Deus, pois se trata da experiência do “Deus da realidade” e não a do

“Deus imaginário” construído a partir dos nossos desejos e medos inconscientes.

Conclusão

A reflexão de Morano que expusemos neste capítulo nos ajudou a perceber

que a crítica do ateísmo de vertente freudiana ao cristianismo como ilusão e

neurose não tem cabimento quando se considera que a autêntica experiência cristã

consiste no diálogo e encontro com o Deus de Jesus. A crítica desse ateísmo tem

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sentido, unicamente, quando a experiência do “Deus imaginário” se apresenta

como sendo experiência cristã.

Com Morano tomamos conhecimento de que a fé cristã pode ser vivida de

forma ambígua por causa da influência marcante de nosso mundo psico-afetivo

em toda nossa existência. Ela pode ser vivida de modo a humanizar ou contribuir

para a maturidade do cristão, bem como, por outro lado, pode ser vivida de modo

desumanizador, ou seja, como mantenedora do infantilismo psicológico.

Quando a fé cristã diz respeito à experiência do “Deus imaginário”, esta se

configura como perpetuadora do infantilismo. O “Deus imaginário”, criado a

partir dos desejos infantis de onipotência e dos sentimentos de culpabilidade

relacionados às figuras parentais do início do processo de amadurecimento psico-

afetivo, não possibilita progresso na maturidade. Com efeito, a relação com este

Deus, produto do psiquismo, dinamiza no ser humano os sentimentos infantis de

onipotência e de culpabilidade.

Em verdade, o “Deus imaginário” tanto pode ser projeção da figura

materna ou da paterna. Sendo, por um lado, projeção da figura materna, se

apresenta como onipotência envolvente que propicia proteção e aconchego ao

homem diante da dureza da realidade. Com este Deus, a pessoa religiosa revive a

mesma experiência que teve na primeira infância: o aconchego protetor da mãe.

Dinamiza, por isso, em seu psiquismo aquela situação infantil marcada pelo

narcisismo e pelo sentimento de onipotência. Cria a ilusão de poder, com Deus,

dominar a realidade em seu propósito e de acordo com o seu desejo.

Por outro lado, sendo projeção da figura paterna, Deus também se

apresenta como onipotência, mas não totalmente à disposição do crente; a

onipotência se encontra a sua disposição somente quando este assume a atitude do

sacrifício ou da auto-anulação em detrimento da afirmação do divino. Neste caso,

a pessoa religiosa na relação com este Deus, ao mesmo tempo em que dinamiza os

seus sentimentos de onipotência e revive a situação infantil de relação com o pai

idealizado como onipotente, também perpetua a situação edipiana da

ambivalência afetiva e sua problemática dinâmica de culpa e reparação.

Em ambos os casos da configuração da imagem de Deus, a experiência

religiosa se constitui bastante problemática para o amadurecimento psíquico do

ser humano. Ao fazer a experiência do “Deus imaginário”, projeção das figuras

parentais, o homem tem grandes chances de viver atrelado ao mundo psico-afetivo

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infantil, dinamizado pelos sentimentos de onipotência, pelo narcisismo, pelo

desejo de proteção, amparo e aconchego, pela ilusão de driblar a facticidade e

dureza do mundo real, pela dinâmica de amor-ódio, pela acentuação da

culpabilidade, e pela tendência a menosprezar-se.

Não obstante isso, quando a fé cristã diz respeito à experiência do Deus de

Jesus, nela encontramos uma dinâmica que alavanca o processo de maturidade.

Ela incentiva o ser humano a estabelecer uma relação respeitosa com a realidade

factível e com a alteridade, contribuindo com a repressão dos seus sentimentos

infantis inconscientes e com a das situações relacionadas às primeiras fases do

desenvolvimento psico-afetivo. Em outros termos, a experiência do Deus de Jesus

colabora para que o “princípio de realidade” se imponha sobre o “princípio de

prazer”.

O Deus de Jesus, tal como a reflexão de Morano pontuou, consiste em ser

Aquele com o qual nos relacionamos a partir de nosso mundo psico-afetivo, mas

sem se confundir com os nossos desejos, tendências e sentimentos mais

profundos. Trata-se Daquele do qual não se pode esperar que resolva, de forma

mágica, os nossos problemas, pois não consiste em ser onipotência a serviço dos

nossos desejos egoísticos; nem podemos esperar Dele que nos dê explicações para

todos os mistérios e incógnitas de nossa existência e do mundo, visto não se

revelar como onisciência que tudo explica; nem tampouco devemos temê-lo ou

negarmo-nos para afirmá-lo, pois não Ele está em oposição a nós, à nossa

felicidade ou à nossa realização; entretanto, não devemos aguardar que Ele nos

livre dos sofrimentos e mazelas da existência, bem como da própria morte, pois

Ele mesmo os assumiu na dinâmica da encarnação do Verbo. Ora, por causa disso

tudo, a experiência com o Deus de Jesus possibilita ao ser humano a desenvolver

sua adultez psicológica. Nesta experiência, todas as possibilidades de ilusão e

neurose ficam, definitivamente, descartadas.

Com a apresentação da reflexão de Morano, neste capítulo, percebemos o

quanto é importante para o amadurecimento psicológico dos cristãos que a

configuração religiosa da fé cristã seja norteada, em suas múltiplas expressões,

pela experiência do Deus revelado em e por Jesus de Nazaré. Sem isto, a fé cristã

se distancia de seu fundamento e passa a se constituir de forma deturpada e

deformada, e sua experiência torna-se expressão e, ao mesmo tempo, mobilização

e perpetuação dos nossos desejos e situações infantis.

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7. O diálogo crítico entre cristianismo e ateísmo Desde que o ateísmo sistemático surgiu, no século XVIII, como

conseqüência do processo de secularização do paradigma moderno, a teologia

cristã tem assumido frente a este fenômeno duas atitudes inconvenientes: a

condenação e a indiferença. Os teólogos, tanto católicos como protestantes,

anatematizaram o pensamento ateu ou não se preocuparam em conhecê-lo. A

atitude do respeito e da tentativa de manter diálogo com o ateísmo só se firmou na

segunda metade do século XX. Renomados teólogos de tradição católica (Henry

de Lubac, Karl Rahner, H.U. von Balthasar, H. Küng, Claude Geffré, J.L.

Segundo etc.) e protestante (F. Gogarten, D. Bonhoeffer, J.A.T. Robinson, P.

Tillich, W. Pannenberg, J. Moltmann etc.) procuraram conhecer este pensamento,

- ou pelo menos a problemática da secularização -, e suas críticas à religião na

tentativa de dialogar com ele e de dar plausibilidade à fé cristã. O próprio

Magistério da Igreja Católica no Concílio Vaticano II reconheceu a urgente

necessidade, naquela época, de levar a sério o fenômeno do “ateísmo das massas”

e de procurar conhecer a fundo “no pensamento dos ateus, as causas da negação

de Deus”1. Com tudo isso, então, a preocupação do diálogo com o pensamento

ateu se impôs como tarefa tanto para a teologia como para a pastoral. As atitudes

iniciais de condenação e de indiferença diante deste pensamento, por parte de não

poucos teólogos, passaram a não ser mais aceitáveis.

Recordamos isso, porque pretendemos, neste capítulo, seguir a mesma

postura de diálogo aberto, porém crítico, com o pensamento ateu. Nosso objetivo

consiste em relacionar este pensamento, sobretudo sua crítica à religião, com a fé

cristã numa tentativa de estabelecer um diálogo profícuo entre estes. Pensando

assim, descartamos a atitude de confronto desrespeitoso ou de condenação do

ateísmo sistemático por meio de uma apologética cristã intransigente. Em outros

termos, nosso interesse principal consiste em pontuar as interpelações que as

críticas feitas pelo ateísmo humanista ao cristianismo fazem à reflexão teológica e

à pastoral atualmente, como também em fundamentar a fé cristã como afirmação

do humano e como possibilidade de humanização.

1 Cf. Constituição Pastoral “Gaudium et Spes” (parágrafos 19-21). In: Compêndio Vaticano II. Constituições, decretos e declarações. Petrópolis: Vozes, 1967, p. 160-164.

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Para deixar mais claro nosso objetivo neste capítulo, é bom que retomemos

a nossa hipótese de pesquisa e o que já construímos até aqui. Nossa hipótese a ser

investigada pode ser expressa na seguinte pergunta: tem razão o ateísmo

humanista quando afirma que o cristianismo se configura como desumanizante

por impedir a afirmação do humano e o desenvolvimento de suas potencialidades

ou de sua humanização? Procuramos defender a resposta negativa a partir da

revelação de Deus em e por Jesus de Nazaré. Na verdade, defendemos a tese de

que o cristianismo em seu fundamento, ou seja, ancorado em Jesus, se revela

como afirmação do humano e como impulsionador da humanização.

No intuito de investigar a referida hipótese, apresentamos, na primeira

parte deste trabalho, a compreensão do ateísmo humanista a respeito da fé cristã

como negação do humano e como obstáculo à sua realização enquanto tal. Já na

segunda parte, nos capítulos de quatro a seis, expusemos a reflexão teológica de

três autores com o objetivo de mostrar que a fé cristã, ao contrário daquilo que o

ateísmo a acusa, afirma o humano na afirmação de Deus (Torres Queiruga) e

contribui para que o homem e a mulher se comprometam com o estabelecimento

de relações sociais promotoras de vida (Sobrino), como também colabora para que

possamos superar o infantilismo psico-afetivo na vivência da maturidade

psicológica (Morano). Em outras palavras, tentamos mostrar, pautados na reflexão

desses três teólogos que partem da revelação de Deus em e por Jesus de Nazaré,

que o cristianismo, em sua intencionalidade profunda, afirma e colabora para que

o homem e a mulher possam alcançar sua adultez.

Depois de ter exposto tudo isso ao longo deste trabalho, falta-nos, ainda,

desenvolver as nossas próprias considerações sobre o que foi apresentado. Falta-

nos, em outras palavras, mostrar que o cristianismo se constitui humanizante,

embora as considerações do ateísmo humanista possam ser aplicadas em certas

configurações ou expressões culturais e pessoais da fé cristã. Para cumprir nosso

objetivo, em parte já realizado ao longo deste trabalho, vamos dividir este capítulo

em três seções. Na primeira, vamos nos deter na exposição de algumas críticas da

crítica do ateísmo humanista ao cristianismo. Na segunda, iremos pontuar

algumas interpelações que a crítica do ateísmo à religião faz à configuração atual

do cristianismo, bem como à teologia e à pastoral. E na terceira, a partir das

reflexões de Torres Queiruga, de Sobrino e de Morano, mostraremos que a fé

cristã possibilita, fundamentalmente, a afirmação do ser humano, sem aliená-lo

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em sua relação com Deus, como também possibilita o desenvolvimento das

capacidades humanas e de sua maturidade.

7.1. Apreciação crítica das críticas do ateísmo humanist a ao cristianismo A sensibilidade ao diálogo com o ateísmo não quer dizer que devamos

acolher todas as suas críticas à fé cristã de modo acrítico. Pelo contrário, o diálogo

se faz no confronto crítico respeitoso. Por isso, é legitimo e sadio para o

estabelecimento do diálogo aberto que analisemos de forma crítica o que o

pensamento ateu considera a respeito do cristianismo. Tendo isso em vista,

queremos, nesta seção, expor algumas críticas ao ateísmo anticristão de todos

aqueles autores que investigamos na primeira parte desta tese. Não obstante,

queremos esclarecer que estas considerações críticas, por falta de espaço, não

serão amplamente desenvolvidas.

Queremos, ainda, deixar claro que não teceremos essas críticas a partir do

aporte teológico ou cultural que temos atualmente. Ou seja, não confrontaremos a

nossa visão teológica e pastoral de hoje com a compreensão que os pensadores

ateus, sobretudo do século XIX e início do século XX, tiveram a respeito da

religião. Isso seria uma injustiça contra esses que elaboraram suas visões da fé

cristã a partir de um determinado contexto ou horizonte cultural diferente do

hodierno. Por isso, vamos tentar criticá-los, a partir dos seus próprios argumentos.

7.1.1. Crítica à crítica de Ludwig Feuerbach O ateísmo de Feuerbach se assenta sobre a sua teoria da redução total da

teologia à antropologia2. Para ele, Deus não passa de uma projeção da consciência

humana que é capaz de captar o infinito que é o gênero humano ou, nos seus

termos, a essência do homem (gattung). No seu entender, a existência de Deus só

é possível porque o ser humano existe. Sem este, Deus jamais existiria. Deus é a

projeção personificada de todas as qualidades que fazem parte do próprio gênero

humano, especialmente a razão, a liberdade e a afetividade. Os predicados

atribuídos a Deus são, na verdade, predicados antropológicos. O que existe,

2 A teoria da redução antropológica de Feuerbach, como também a sua crítica ao cristianismo, são apresentadas em sua obra intitulada “A essência do cristianismo”. Cf. FEUERBACH, L. A essência do cristianismo. Papirus: São Paulo, 1997.

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portanto, consiste na essência do homem que não é reconhecida como tal e sim

como Deus.

A crítica fundamental de Feuerbach à religião, especialmente ao

cristianismo, se encontra vinculada a esta teoria3. Em sua visão, a religião

promove a alienação do ser humano. Ao postular a existência de Deus e ao

estabelecer todo um mecanismo de relação com Ele, a religião faz com que o

homem não reconheça tudo aquilo que pertence propriamente ao gênero humano.

Ou seja, por causa dela, a pessoa que a professa acolhe em Deus o que, em

verdade, nada mais é do que a sua própria essência alienada. E, sendo assim, ela

deixa de reconhecer diretamente o seu valor e o valor de todo o conjunto da

humanidade (essência), porque o reconhece de forma alienada em Deus.

O problema maior da alienação que a religião - dando destaque ao

cristianismo - provoca no crente, segundo Feuerbach, consiste na oposição

acirrada entre o ser humano e Deus. Na religião, para ele, o homem encontra, em

Deus, a possibilidade de realização individual de seus desejos de perfeição, de

imortalidade e de infinitude. Por isso, se lhe submete. Esta sua submissão a Deus,

com o interesse de realizar estes desejos, o faz contradizer, paradoxalmente, a

essência, como também o que é próprio de sua constituição, a saber: a razão

(submetida à irracionalidade da fé), a materialidade (negada em prol da

imortalidade da alma), a historicidade (em função da vida celestial) e a liberdade

como vontade (cerceada pela observância dos ditames religiosos). A submissão a

Deus, ou seja, à projeção personificada da essência não reconhecida como tal, faz

com que o homem deixe de procurar a satisfação destes desejos em sua relação

consciente com as potencialidades do gênero humano. Feuerbach acredita que

toda a capacidade do ser humano de desenvolvimento racional, de criar cultura, de

estabelecer relações sociais mais fraternas, de dominar a natureza com o

conhecimento e a técnica para possibilitar a realização humana, fica

impossibilitada pela religião e, em especial, pelo cristianismo. Por isso, ele

colabora para que sua superação por uma época antropoteísta aconteça o mais

rápido possível.

Depois de ter recordado, de forma breve e bastante limitada, a

apresentação do ateísmo de Feuerbach e de sua crítica à religião, nos perguntamos

3 Conferir o tratamento que demos a este tema no primeiro capítulo desta pesquisa.

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a respeito de quais críticas podemos fazer a seu pensamento. Vamos tentar

pontuar algumas.

A primeira é com relação à afirmação da inexistência de um Deus

autônomo ao ser humano. Parece-nos que o argumento de Feuerbach, embora seja

bastante lógico, na realidade, é incapaz de provar a inexistência de Deus.

Simplesmente afirmar que Deus seja uma projeção personificada daquilo que é a

essência humana, ou seja, as qualidades, os atributos, as potencialidades do

conjunto de todos os homens e mulheres, não prova nada. Sem dúvida alguma,

nossas representações de Deus trazem um elemento de projeção – e sobre isso

dedicaremos devida atenção na segunda seção -, mas a afirmação de que Deus

seja apenas uma projeção antropológica se revela bastante improvável. H. Küng

nos ajuda a fundamentar esta crítica quando afirma que “o fato da projeção não

decide de forma alguma se o objeto a que a projeção se refere existe ou não”4.

Deste modo, o ateísmo de Feuerbach se apresenta como postulatório. Ele,

simplesmente, postula, sem nada provar, que Deus não passa de projeção da

psicologia humana.

A segunda crítica que fazemos se dirige contra a explicação que Feuerbach

faz a respeito do desejo de infinito que reside no coração do ser humano. Ele

afirma que cada homem deseja o infinito porque sua essência, ou seja, o conjunto

da espécie humana, é infinita e porque a sua consciência também o é. Feuerbach

reconhece, portanto, a finitude do indivíduo, e afirma a infinitude de sua

consciência. Em outras palavras isto quer dizer que, para ele, o homem particular

é finito com desejo de infinito porque sua consciência infinita o possibilita a se

relacionar com a infinitude da essência. A definição que este filósofo dá para a

religião reside aí. No seu entender, a religião é a “consciência do infinito”5; é a

consciência que o indivíduo tem da essência (do homem em geral), que é infinita,

de forma indireta, como Deus.

Esta concepção se revela problemática. Explicar a origem do desejo de

infinito no homem individual a partir da infinitude da essência e da consciência,

na verdade, não responde à questão. Aqui podemos levantar as seguintes

perguntas: existe, de fato, uma essência? E se ela existe, o que fundamenta sua

4 KÜNG, H. O princípio de todas as coisas. Ciências naturais e religião. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 77. 5 Cf. FEUERBACH, L., op. cit., p. 44.

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infinitude? Marx e Stirner criticaram Feuerbach por este ter postulado uma

realidade metafísica inexistente (essência) e prestado culto ao ser humano

abstrato, o ser humano infinito6. Ora, concordamos com estes pensadores. Não

existe uma essência ou o homem em geral abstrato que condensa em si todas as

qualidades e atributos dos homens individuais. Existe, sim, o homem individual

real, finito e limitado e o conjunto de todos os homens e mulheres, isto é, a

humanidade, mas esta também não é infinita, nem tampouco é portadora, como

uma realidade autônoma dos indivíduos, da razão, da liberdade e da afetividade

perfeitas. Sendo assim, não seria, então, a essência algo simplesmente postulado

por Feuerbach? Ou nos termos de H. Küng: “Não é, pois, esse homem em geral,

essa essência humana universal, uma pura projeção, objetivada e hispostasiada por

Feuerbach”7. Parece-nos que sim. Trata-se de um postulado metafísico para a

elaboração de sua antropologia. Desta maneira, sua explicação para a existência

do desejo de infinito no homem particular, por causa de sua ligação com a

essência que é infinita, fica descabida.

E o que dizer de sua explicação para a capacidade de infinito da

consciência humana? Feuerbach simplesmente afirma que a consciência do

homem particular é infinita porque esta pode captar a infinitude do homem em

geral (essência). Ora, para ele, é isso que possibilita a religião, ou seja, a fé no

Deus projetado a partir da consciência indireta da essência. Tem, no entanto, razão

Feuerbach? Mais uma vez, parece-nos que não. Com efeito, se a essência não

passa de um conceito a-histórico e abstrato do homem, se esta não existe

realmente, então, sua explicação para a infinitude da consciência fica desprovida

de sentido. Esta aparece como mais um postulado de Feuerbach para fundamentar

seu ateísmo. De fato, não podemos afirmar que a consciência humana seja

infinita, pois esta está relacionada ao indivíduo finito, bem como porque esta

também pode ser condicionada pelos nossos limites e pelas relações sociais que

vivenciamos. Podemos, sim, afirmar que a consciência é finita, mas capaz de

captar ou acolher o infinito. E isso se constitui como mistério da razão que a

própria razão não pode elucidar. Até mesmo a afirmação, feita por alguns

teólogos, de que essa capacidade de infinitude de nossa consciência – o que a

6 Cf. ARVON, H. O ateísmo, p. 104-106; ZILLES, U. Filosofia da religião, p. 117; ESTRADA, J.A. Deus nas tradições filosóficas, vol. II, p. 159. A respeito da crítica de Marx a Feuerbach, cf. MARX, K. – ENGELS, F., A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 7 KÜNG, H. Existe Dios? Respuesta al problema de Dios en nuestro tiempo, p. 291.

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teologia escolástica chamou de potentia obedientialis - se apresenta como indício

a favor da existência de Deus se mostra improvável, pois “a orientação da

consciência humana a um infinito não diz nada determinante sobre a existência ou

não existência de uma realidade infinita independente da consciência”8.

A terceira crítica que podemos fazer a Feuerbach diz respeito a sua

proposta de humanização. Este filósofo defende que a realização do ser humano

somente pode acontecer quando este superar a alienação do homem em geral

(essência). Pois ao superá-la o homem particular poderá reconhecer diretamente as

propriedades e potencialidades do gênero humano e canalizar todas as suas

energias para a essência e para a vivência de uma existência assumida

maximamente na imanência. Por isso, para ele, a condição fundamental para que o

ser humano possa se realizar consiste na configuração de uma época ateísta ou

antropoteísta; de superação da fé em Deus e de superação, portanto, do

cristianismo.

Consideramos que este projeto humanista não se apresenta humanizador. E

isso por dois motivos. O primeiro se relaciona com a submissão do homem

individual ao homem em geral. Qualquer desvalorização do indivíduo em nome

de outra realidade, mesmo que esta seja a humanidade, não pode ser humanizante.

Ao valorizar a essência, o homem particular ficaria desintegrado na coletividade;

sua existência particular, sua história de vida, suas opções teriam importância

secundária. Ora, isto não seria também alienação? Alienação da individualidade

em função da coletividade humana? Acreditamos que sim. Portanto, avaliado,

nesta ótica, o projeto humanista de Feuerbach não se apresenta tão humanista

assim.

O segundo motivo, por sua vez, concerne ao fechamento do ser humano à

imanência. Ao negar a existência real de Deus e ao proclamar o fim da religião

como condição indispensável para a realização humana, Feuerbach enreda o

homem em si mesmo e sobre a materialidade. Porém, o ser humano possui desejo

do infinito, do transcendente ou do absoluto, de fazer experiência do mistério –

embora isso não prove nem a existência nem a inexistência de Deus. Possui

dimensão religiosa. Impedi-lo de ter fé ou de acreditar em Deus, bem como

8 Ibid., p. 290.

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esperar que ele anule esta dimensão, constitui um projeto humanista

desumanizador.

A quarta crítica a Feuerbach diz respeito a sua visão reducionista da

alienação do ser humano. Para ele, a religião, especialmente o cristianismo como

expressão máxima desta, constitui a única causa da alienação do homem de si

mesmo e do conjunto da humanidade. Marx criticou Feuerbach por causa desta

visão, visto que, para Marx, a alienação antropológica pode ser provocada por

outros fatores sociais e não apenas pela religião. Neste caso, concordamos com

Marx. A alienação antropológica não possui apenas uma única causa, mas várias.

Em verdade, o cristianismo, dependendo do modo como expressa a fé cristã, pode

contribuir para a alienação (social, psicológica, corporal, vital) dos homens e das

mulheres. Mas não é a única causa. Afirmar o contrário é ingenuidade e pressupõe

desconhecimento de todo o mecanismo de relações sócio-culturais. Além do mais,

o que decorre da concepção de Feuerbach é a visão de que ao se superar a religião,

no caso o cristianismo, o ser humano poderá se realizar perfeitamente em sua

imanência ou plenamente em sua constituição como ser sensual, afetivo e

racional, imerso em sua natureza e como elemento integrado à natureza maior.

Ora, esta visão de Feuerbach não deixa de ser ingênua. A própria história

contemporânea nos mostra que nos lugares onde o cristianismo fora reprimido ou

rechaçado a humanização não aconteceu. Pelo contrário, a situação de alienação

antropológica se tornou mais acentuada. Portanto, a concepção de Feuerbach a

respeito da religião como única causa da alienação do ser humano consiste em ser

mais um postulado seu para fundamentar seu ateísmo.

Claro está, portanto, que as poucas críticas que apresentamos ao ateísmo

anticristão de Feuerbach nos revelam que esse não se fundamenta em dados

possíveis de serem comprovados, mas em postulados criados pelo próprio filósofo

(Deus como projeção antropológica, essência, consciência infinita, religião como

única causa de alienação), como também nos revelam que sua proposta

antropoteísta se apresenta insuficiente como caminho de afirmação e de

desenvolvimento do ser humano, uma vez que esta proposta submete o homem

individual ao abstrato e metafísico homem em geral (essência), e busca suprimir

uma das dimensões constitutivas do ser humano que é a religiosa9.

9 Cf. outras críticas mais elaboradas ao ateísmo de Feuerbach em KUNG, H., Existe Dios?, p. 288-296; ZILLES, U., op. cit., p. 112-119.

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7.1.2. Crítica à crítica de Karl Marx Podemos afirmar que Marx é, aparentemente, mais científico que

Feuerbach em sua crítica à religião. Marx não parte de pressupostos essencialistas

ou metafísicos para compreender o ser humano, mas de suas relações sociais,

especialmente a econômica. Por isso, este filósofo critica a religião, incluindo

certamente o cristianismo, a partir das análises dessas relações. Sabemos que a

conclusão de Marx a respeito da religião consiste em vê-la como alienação e

ideologia10. A religião é, para ele, alienação, porque não passa de consciência

ilusória ou de projeção antropológica de um mundo ilusório (Deus, céu, vida

eterna), provocada por determinadas relações sociais, que distancia o homem real

de sua realidade histórica-social impedindo-o de assumir sua vocação como ser

criador de cultura e, ao mesmo tempo, de transformar a configuração social

estabelecida desumanamente. Ademais, a religião é, no seu entender, ideologia,

porque não passa de uma produção condicionada e a serviço da base material da

sociedade, ou seja, de suas relações econômicas. Por causa desta visão, Marx

acreditava que a religião deixaria de existir automaticamente com a superação da

sociedade capitalista, provocadora da alienação, pela sociedade comunista.

Sobre esta visão de Marx a respeito da religião podemos tecer algumas

críticas. A primeira diz respeito ao tema da projeção. Assim como Feuerbach,

Marx simplesmente postula, sem provar coisa alguma, a inexistência de Deus,

como também postula a religião como fenômeno provocado por relações sociais

desumanas. Ora, é impossível chegar à conclusão sobre a existência ou a

inexistência de Deus apenas a partir de análises das condições sociais. E o mesmo

pode ser dito sobre a origem da religião. É verdade que as condições sociais

podem influenciar bastante a fé das pessoas, bem como podem determinar a

configuração das expressões religiosas e as nossas representações de Deus. Mas a

afirmação de que essas condições produzem a fé e originam a religião, mediante a

projeção ilusória de Deus, não passa de uma hipótese não comprovada que

desautoriza qualquer conclusão sobre a existência ou inexistência real de Deus.

Podemos dizer que a religião é muito mais que uma simples função de

circunstâncias econômicas e sociais negativas.

10 Apresentamos a crítica de Marx à religião na primeira seção do segundo capítulo deste trabalho.

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A segunda crítica que fazemos a Marx consiste em sua análise bastante

limitada e reducionista do cristianismo. O fato é que o conhecimento teológico e

religioso de Marx era bastante escasso. Não se preocupou em conhecer o

cristianismo com profundidade, nem tampouco buscou analisar o fenômeno da

religião com mais propriedade. Interessou-se apenas pela função social da

religião. E, assim, simplesmente, reduziu, sem mais, a religião, inclusive a cristã,

às funções econômicas e políticas considerando-a como alienação social e

ideologia a serviço da base estrutural da sociedade (economia). Ora, a religião

pode encontrar explicação somente nos dinamismos sociais determinados pela

economia? Pode ela ser explicada apenas pela sua função social? Ela reduz-se a

esta função? Acreditamos que não, porque esta constitui uma realidade bastante

complexa. De fato, a religião, por se constituir nas relações sociais e até por poder

ser influenciada em sua configuração pelo sistema econômico, pode ser analisada

sobre o prisma sociológico, mas esta análise não pode explicar totalmente esse

fenômeno, porque este implica, além do social, muitos outros fatores (psicológico,

cultural, antropológico, teológico). Com efeito, Marx, ao reduzir a religião ao

fator social, considerando-a como produção sócio-econômica, desconsidera

totalmente os outros fatores, além do social, que a constituem. O seu problema,

portanto, é o de reduzir a complexidade da religião a, unicamente, uma dimensão,

a social, a partir de uma leitura sociológica que absolutiza o aspecto econômico

como explicação total da realidade.

Uma outra crítica que apresentamos a Marx é que ele, a partir de sua

percepção do cristianismo de sua época, assume uma concepção generalizada

desta religião. Com efeito, Marx afirma, por causa de sua interpretação superficial

da função social do cristianismo burguês europeu de sua época, que o

cristianismo, num todo, consiste em ser alienação social e ideologia. Ou seja,

constatando, superficialmente, uma fé dualista de valorização do céu em

detrimento da realidade histórica e uma Igreja (tanto Católica com Protestante)

pouco preocupada com as questões sociais, especialmente com a situação do

proletariado, Marx supõe que o cristianismo esteja a serviço da burguesia e do

sistema capitalista. A partir disso, este filósofo interpreta a totalidade do

cristianismo como mecanismo ideológico, em função da base material econômica,

para alienar o indivíduo religioso de seu compromisso transformador das relações

sociais. Marx interpreta o cristianismo como promoção de “virtudes” alienantes:

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servilismo, submissão, amor ineficaz e esperança de realização pessoal no além-

mundo. Efetivamente, a configuração social da fé cristã no século XIX não se

apresentou como força de protesto social tal como nos três primeiros séculos de

nosso tempo ou como na América Latina da década de sessenta ao final da de

oitenta do século passado. Mas isso não nos permite tirar conclusões definitivas,

como faz Marx, a respeito da essência do cristianismo nem de toda a sua

configuração histórica. O seu modo de proceder não é metodologicamente correto.

Ele interpreta todo cristianismo a partir de uma determinada configuração

histórico-social deste. Mas o cristianismo pode ser reduzido àquela configuração

burguesa da Europa do século XIX que Marx criticou e a qual utilizou como

parâmetro para depreciar toda a história desta religião? Certamente que não. O

cristianismo é muito mais que uma determinada configuração histórico-social. Por

se tratar de uma realidade plural e complexa, este jamais poderá ser enquadrado

totalmente ou reduzido absolutamente a uma forma de sua configuração na

sociedade. Além do mais, o cristianismo, mesmo que possa ser utilizado

inescrupulosamente a serviço da alienação social, se apresenta em sua origem, em

Jesus de Nazaré, como compromisso práxico-social, a serviço do Reino de Deus e

não como serviço ao sistema econômico.

A quarta crítica que pontuamos ao pensamento de Marx é sobre o seu

prognóstico a respeito do fim da religião ou do cristianismo na sociedade

comunista. Por considerar a religião como produto da estrutura econômica

alienante e desumana, Marx acreditava que ela deixaria de existir,

automaticamente, com a mudança do modo de produção capitalista pelo modo de

produção socialista. A própria história do século XX mostrou-nos como Marx

estava enganado. Mesmo nas sociedades comunistas – onde o comunismo foi

implantado à força -, a religião, inclusive o próprio cristianismo, não só não

deixou de existir, como também se configurou como um novo tipo de

religiosidade. Portanto, embora tenha sido reprimida e proibida veemente pelo

Estado, não deixou de ser um desejo do ser humano. Com efeito, esse testemunho

histórico comprova que tanto a concepção de Marx da religião como alienação e

ideologia, quanto o seu prognóstico sobre a extinção dela com o fim da

propriedade privada, não passaram de hipóteses arbitrárias de suas análises das

relações econômicas da sociedade.

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A quinta crítica diz respeito à visão de Marx sobre a realização do ser

humano. Devido à sua interpretação de toda a realidade a partir do econômico

(economicismo), Marx concebe a humanização como conseqüência da superação

do modo de produção capitalista. Para ele, o comunismo seria o auge da história

humana; seria “a auto-realização humana e, pois, a verdadeira apropriação da

natureza humana através do e para o homem”11; seria uma nova configuração

social capaz de colocar fim à desigualdade e à opressão entre os homens. E isto

aconteceria, exatamente, porque o homem, com o fim da propriedade privada,

superaria todas as alienações (religiosa, política, cultural e espiritual) produzidas

pela alienação econômica. Efetivamente, essa visão de Marx se apresenta

reducionista, ingênua e como uma ilusão, no sentido freudiano (desejo à margem

da realidade). Reducionista, porque restringe a possibilidade de humanização

apenas à superação do capitalismo pela sociedade comunista. Ingênua, porque crê

que uma mudança nas condições sociais mudará, automaticamente, o ser humano.

E ilusão, porque acredita que a realização da história, o “reino da liberdade” e da

auto-realização humana, será algo iminente com a superação da propriedade

privada e com a instauração do comunismo. Com efeito, a humanização não é

apenas fruto de mudanças de sistemas econômico-sociais; não é algo próprio do

comunismo. É algo mais complexo, que implica as várias dimensões humanas,

incluindo, evidentemente, a social. Por isso, trata-se de algo possível de ser

assumido, como processo, pelos homens e mulheres, sem ser determinado,

exclusivamente, pelas condições sócio-econômicas.

Essas parcas críticas intencionam mostrar que a crítica de Marx à religião

apresenta algumas falhas. Seu ateísmo e sua concepção de religião se assentam no

postulado feuerbachiano da projeção antropológica. A inexistência de Deus não é

comprovada. Sua análise da religião, incluindo o cristianismo, se reduz ao fator

sócio-econômico. Ademais, faz uma interpretação generalizada do cristianismo, a

partir da configuração social do cristianismo europeu oitocentista. Seu

prognóstico sobre o fim da religião se apresenta como um postulado ou uma

hipótese até hoje não comprovada. E sua proposta de humanização se constitui,

assim como a de Feuerbach, insuficiente como possibilidade de afirmação e de

desenvolvimento do ser humano, pois se centra apenas nas transformações das

11 MARX, K. Manuscritos econômicos e filosóficos. In: FROMM, E., Conceito marxista do homem, p. 116.

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condições sociais como condição fundamental para a realização dos homens e

mulheres. Trata-se, portanto, de uma proposta humanista que se revela

reducionista, ingênua e ilusória12.

7.1.3. Crítica à crítica de Friedrich Nietzsche O ponto principal da crítica de Nietzsche ao cristianismo consiste em sua

consideração de que este, ao mesmo tempo em que está assentado em valores

éticos contrários à afirmação e ao desenvolvimento da vida, também os propaga13.

Para este filósofo, o cristianismo incita o ser humano a desenvolver a vontade de

potência negativa ou a vontade de nada, ou seja, faz com que este canalize sua

atenção para realidades fictícias (Deus, céu, vida eterna), menosprezando aquilo

que lhe é mais importante e que deveria ser assumido como a única realidade

absoluta do existir humano, a saber: a vida em todo seu dinamismo instintivo. No

seu entender, o cristianismo realiza o sacrifício da vida em função do nada

(daquilo que não existe) por causa de sua crença na existência real de Deus, bem

como por causa de sua interpretação teológica da existência humana (pecado,

culpa, castigo divino, redenção, salvação, vida após a morte) e por causa de sua

moral, caracterizada como antinatural ou ascética, de ressentimento e de

culpabilização.

Para Nietzsche, a depreciação da vida, realizada pelo cristianismo,

configurou, no ocidente, valores éticos depreciativos da existência real dos seres

humanos, e impediu a humanização do homem (super-homem), isto é, aquele ser

humano capaz de valorizar e aceitar corajosamente, em cada momento de sua

existência, a vida assim como ela é: contingente e sem sentido (amor fati). Por

isso, para ele, a humanização – terminologia jamais utilizada por Nietzsche -

aparece como algo impossível de se realizar se os valores não forem mudados. Em

outros termos, Nietzsche considera a humanização como tarefa que sucederá à

“morte de Deus”; é algo que diz respeito à configuração de uma nova escala de

valores (tresvaloração dos valores) que afirme e possibilite o desenvolvimento das

potencialidades da vida; seria a superação da alienação do homem frente à sua 12 Outras críticas mais elaboradas à concepção de Marx a respeito da religião podem ser encontradas em KUNG, H., op. cit., p. 337-351; ZILLES, U., op. cit., p. 130-135; NEUSCH, M., Aux sources de l’athéisme contemporain, p.110-113. 13 Expusemos a crítica que Nietzsche faz ao cristianismo na segunda seção do capítulo dois deste trabalho.

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vida. Alienação provocada pelo platonismo, pelo ascetismo sacerdotal judaico e,

sobretudo, pelo cristianismo. Em outros termos, para este filósofo, a humanização

seria a vivência da vontade de potência afirmativa; assumir a vida dionisiacamente

num “eterno retorno”.

A esta crítica de Nietzsche ao cristianismo podemos apresentar algumas

objeções. A primeira diz respeito ao seu ateísmo. Assim como o ateísmo de

Feuerbach e de Marx, o de Nietzsche não deixa de ser um postulado. Nietzsche

afirma que Deus não passa de uma invenção humana14. Para ele, Deus é

conseqüência da vontade de potência negativa; fruto da tendência autodestruidora

que existe no ser humano; vontade de nada. De fato, podemos imaginar Deus a

partir de pulsões inconscientes nocivas que tendem à nossa destruição. Mas isso

não prova que Deus não exista. Afirmar que Deus seja uma invenção do homem

não comprova sua existência ou inexistência. Deus não pode existir

independentemente daquilo que pensamos a seu respeito ou das representações

que Dele fazemos? É bem provável que sim, embora não possamos também

afirmar com certeza a sua existência. Com efeito, o ateísmo de Nietzsche é

postulatório. Ele simplesmente postula, sem apresentar qualquer comprovação de

sua hipótese, que Deus não existe realmente porque este consiste numa invenção

da psicologia humana.

Uma segunda crítica que podemos endereçar a Nietzsche se encontra

relacionada à sua concepção de cristianismo. Este filósofo condena esta religião

por considerá-la inimiga da vida, visto que, na sua opinião, esta ao criar e

legitimar realidades antinaturais (Deus, céu, alma, vida eterna), faz com que o ser

humano renuncie à vida com sua dinâmica instintiva (vontade de vida).

Efetivamente, Nietzsche condena, em primeiro lugar, a metafísica socrática e

platônica, porque, esta, no seu entender, ao postular a existência de uma realidade

essencial (Mundo das Idéias), deprecia este mundo e esta existência terrena

(Mundo das Aparências) em nome daquela. Condena-a também porque essa

metafísica impõe o apolíneo (racionalidade) sobre o dionisíaco (exuberância,

desmedida e irracionalidade). Ora, Nietzsche critica o cristianismo, porque o

concebe como perpetuação dessa metafísica dualista. Sua convicção é a de que

este é a popularização do platonismo. Trata-se de “platonismo para o povo”15.

14 Cf. Id. O anticristo, p. 21-22 (Parágrafo 16). 15 Cf. NIETZSCHE, F., Além do bem e do mal, p. 8 (Prólogo).

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Podemos afirmar que esta concepção de Nietzsche a respeito do cristianismo se

apresenta equivocada e não passa de um postulado não comprovado de sua crítica.

Certamente, o cristianismo, desde o período patrístico, teve suas verdades

de fé explicitadas a partir do instrumental filosófico-platônico (platonismo e

neoplatonismo). Mas este jamais se diluiu ou se identificou com esta filosofia. É

bem verdade que as visões antropológica e cosmológica dualistas do platonismo e

do neoplatonismo se infiltraram, fortemente, na vida e na reflexão teológica

cristãs, contrariando a perspectiva antropológica integradora da revelação

neotestamentária16. Esse dualismo contribuiu, evidentemente, com a formulação

de uma visão depreciativa dos elementos materiais, terrenos e corporais em

detrimento das realidades tidas como celestiais (Deus, alma, além-mundo, céu

etc), e possibilitou ao estilo de vida monástico, como fuga mundi, se impor como

modo de vida paradigmático para o homem medieval desde o século IV ao século

XVI 17. Neste sentido, Nietzsche tem um pouco de razão quando acusa o

cristianismo de se expressar como metafísica dualista, negadora da vida e da

existência terrena em função de uma vida além-mundo. Mas não a tem quando

afirma que o cristianismo teria assumido integralmente o dualismo metafísico

socrático-platônico.

O cerne da crítica de Nietzsche, portanto, está assentado num postulado

não comprovado. Ele identifica o cristianismo ao platonismo, e absolutiza uma

determinada configuração histórica desta religião considerando-a como a

totalidade do cristianismo. Para ele, o único cristianismo que subsiste é o de

inspiração platônica. Não leva em conta a complexidade e a pluriformidade

inerentes à tradição cristã18. Ora, se Nietzsche tivesse considerado corretamente o

cristianismo das primeiras comunidades ou o cristianismo pensado pela tradição

aristotélico-tomista, provavelmente, não o veria como depreciação da vida ou

como perpetuação do platonismo. Por isso é que podemos caracterizar a visão

16 De fato, o cristianismo (espiritualidade, teologia, liturgia, moral etc.) foi bastante influenciado pela filosofia platônica e neoplatônica, mas este não assumiu integralmente o dualismo metafísico destas. Este dualismo, no conjunto da vida cristã, se apresentou de forma moderada. A matéria, o corpo, a vida terrena, o mundo não foram rejeitados como intrinsecamente maus; foram, sim, desvalorizados em função da valorização de Deus, da alma, do céu, da vida eterna etc. A respeito do dualismo moderado na vida e na teologia cristãs, Cf. RUBIO, A.G., Unidade na pluralidade, p. 97-103. 17 Cf. DELUMEAU, J. O pecado e o medo. A culpabilização no Ocidente (séculos 13-18). Vol. I. São Paulo: EDUSC, 2003, p. 19-67. 18 Cf. VALADIER, P., Nietzsche et la critique du christianisme, p. 592.

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deste filósofo a respeito do cristianismo como míope, reducionista, simplificadora

e incorreta.

A terceira crítica que fazemos a Nietzsche diz respeito a sua consideração

sobre o Deus cristão. O fato é que este filósofo rejeita, veementemente, o Deus do

cristianismo. Para ele, o “conceito cristão de Deus é um dos mais corruptos

conceitos de Deus que já foi alcançado na Terra”19. E isto, exatamente, porque

este é apresentado “em contradição da vida, em vez de ser transfiguração e eterna

afirmação desta!”20. Novamente podemos objetar a crítica que Nietzsche tece ao

cristianismo. A sua visão de Deus não corresponde ao Deus da revelação

neotestamentária. O Deus que Nietzsche afirma ser o Deus cristão, certamente,

não é o Deus de Jesus de Nazaré. Trata-se, sim, de uma representação totalmente

deturpada e deformada do Deus da fé cristã.

O erro de Nietzsche consiste em identificar uma concepção de Deus como

sendo o próprio Deus cristão. De fato, este pensador se opõe à visão de Deus

como suprema entidade metafísica (“coisa em si”, “puro espírito” e absolutum21),

sobre a qual se fundamentam os vários tipos de dualismos metafísicos

(antropológico, cósmico, ontológico, epistemológico e moral)22 e sobre a qual se

ancora toda escala de valores ascéticos depreciativos da vida. O conceito de Deus

que ele condena é aquele que se origina do platonismo: Deus como suma Essência

ou o sumo Bem. Com efeito, Nietzsche postula que o conceito cristão de Deus

nada mais é do que o conceito platônico de Deus utilizado pelo ascetismo judaico-

cristão, bem como pelo seu instinto de ressentimento e pela sua má-consciência

(culpabilização), contra a afirmação e desenvolvimento da vida em suas

possibilidades e potencialidades instintivas e contra a “moralidade de senhores”,

aquela moral dionisíaca que se pauta na afirmação da vida como valor absoluto23.

É bem verdade que Deus, ao longo da história do cristianismo, foi pregado

e experimentado, com muita freqüência, como Aquele ser metafísico que exige o

menosprezo desta existência em função da obtenção da existência celeste24. Neste

caso, Nietzsche tem razão quando esconjura o Deus cristão. Entretanto, esta visão

de Deus não está de acordo com aquela que encontramos na revelação em e por

19 Id. O anticristo, p. 23 (parágrafo 18). 20 Ibid. 21 Ibid., p. 23 (parágrafo 17). 22 Cf. ESTRADA, J.A. Imagens de Deus, p. 224-225. 23 Cf. NIETZSCHE, O anticristo, p. 20-24 (parágrafos 15-19) e 30-35 (parágrafos 25-27). 24 Cf. DELUMEAU, J., op. cit., p. 19-67.

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Jesus de Nazaré. Trata-se de uma representação falseada do Deus do Novo

Testamento. Por isso, Nietzsche não tem razão quando identifica esta

representação com o Deus da fé cristã. Este nada tem a ver com o conceito de

Deus rechaçado por este filósofo.

A quarta crítica que apresentamos ao pensamento de Nietzsche diz respeito

a sua proposta de humanização. Devemos recordar que, para este pensador, a

humanização é algo impossível de se realizar sob os valores que regem a história

do Ocidente. No seu entender, a humanização somente poderá se tornar possível

mediante a configuração de novos valores que apresentem a vida, em sua

transitoriedade, descabimento e contradições, como a única realidade absoluta

para o homem. Humanização, para Nietzsche, é sinônimo de “super-homem”.

Consiste na substituição de Deus e de todos os valores nele ancorados pelo

próprio ser humano capaz de valorizar a sua existência e amar a sua vida em todos

os seus momentos (amor fati) como se ela fosse eterna (eterno retorno). Ora, esta

proposta de Nietzsche, embora seja bastante lúcida, não deixa de se apresentar

como problemática. Trata-se de uma proposta que não colabora com a superação

da perplexidade e da ansiedade do ser humano frente à vida e nem com a

superação da afirmação solipsista do eu.

Com efeito, uma humanização centrada apenas na afirmação e

desenvolvimento da vida e da “superação de si”, mesmo pautada numa nova

escala de valores, não deixará de manter o ser humano desnorteado, pois este

necessita, intrinsecamente, de dar sentido, significado e orientação ao seu existir.

O ser humano é um ser que se pergunta; que confere sentido às realidades. Por

isso, para ele, a vida não pode ser descabida, nem tampouco este se satisfaz com

um sentido simplificado ou reduzido à própria vida. Com efeito, uma vida sem

sentido, sem significado, certamente, causa perplexidade, angústia, ansiedade e

sentimento de vazio. Ora, uma proposta de humanização que não ajuda o ser

humano a conferir um sentido, uma orientação e uma meta à sua existência, é

falha, visto que não ajudará o ser humano a responder à pergunta angustiante de

seu coração, a saber: o sentido de viver.

O outro problema da proposta de Nietzsche é que esta consiste em ser

individualizante. Trata-se da afirmação absoluta do sujeito individual reafirmado

intramundanamente. O super-homem é aquele que assume com prazer a sua vida

em seu descabimento e procura vivê-la intensamente. Trata-se de um vivenciar as

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potencialidades e possibilidades da própria existência numa superação constante

de si mesmo. Mas como aparece nesta proposta de humanização a afirmação da

vida da alteridade? Efetivamente, esta não encontra lugar, visto que a

solidariedade, a compaixão, o amor ao próximo não passam, para Nietzsche, de

valores decadentes a serem superados pelo super-homem. Desta maneira, esta

proposta de humanização não dá o devido valor ao relacionamento respeitoso do

indivíduo com a sua alteridade. Por isso, apresenta-se como proposta duvidosa de

humanização.

Estas críticas apresentadas, embora de modo bastante resumido, nos

revelam que as objeções que Nietzsche faz ao cristianismo não são totalmente

coerentes e verdadeiras. Seu ateísmo é postulatório. Sua visão do cristianismo e

do Deus cristão é equivocada. E sua proposta de humanização, como substituição

do homem decadente da civilização ocidental pelo super-homem, se revela

insuficiente por não ajudar ao ser humano a conferir sentido à sua vida e por não

valorizar as relações respeitosas do indivíduo com a alteridade25.

7.1.4. Crítica à crítica de Sigmund Freud

A crítica que Freud faz ao cristianismo encontra-se relacionada à crítica

que ele tece à religião em geral26. Partindo de análises psicanalistas, reduz a

religião aos processos psicológicos e concebe Deus como projeção psíquica da

figura paterna. Sua crítica à religião, inclusive ao cristianismo, consiste na

afirmação de que esta está relacionada aos processos psíquicos produtores das

ilusões e das neuroses. Na verdade, diz que a religião se reduz à ilusão e à neurose

obsessiva. É ilusão, porque se trata de desejo à margem da realidade. É neurose

obsessiva porque surge na história como forma de aplacar o sentimento de culpa

pela morte do pai primitivo, e porque perpetua a ambivalência afetiva com relação

a este pai. E é neurose obsessiva, também, porque surge no indivíduo como

projeção da figura paterna que perpetua a ambivalência afetiva do complexo

edipiano e o sentimento de culpa a ele relacionado. Por causa disso, Freud acusa a

religião de ser infantilizante ou de não possibilitar ao homem individual alcançar

25 Cf. outras críticas ao pensamento de Nietzsche a respeito da religião em VALADIER, P., op. cit., p. 591-607; KÜNG, H., op. cit., p. 545-554; ZILLES, U., op. cit., p. 179-185; ESTRADA, J.A., Deus nas tradições filosóficas, vol. II, p. 188-194. 26 Apresentamos a crítica de Freud à religião na terceira seção do capítulo dois deste trabalho.

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sua maturidade psicológica realizada pela superação satisfatória da ambivalência

afetiva de Édipo, pela superação do desejo de onipotência e pela imposição

norteadora do “princípio de realidade” sobre o “princípio de prazer”. Acusa

também a religião, como configuração cultural, de impedir o progresso da

humanidade, uma vez que ela contraria a ciência, único meio pelo qual a

humanidade pode chegar a sua realização.

A visão de Freud a respeito da religião e a sua crítica contra ela não estão

isentas de serem alvo de objeções. De fato, alguns elementos da teoria deste autor

concernentes à religião se mostram falhos e questionáveis. Por isso, podemos

pontuar algumas críticas ao seu pensamento no que se refere à sua interpretação

da religião.

A primeira crítica que apresentamos diz respeito à sua tese de que Deus

não passa de uma projeção psicológica da figura paterna. Esta tese consiste num

postulado não comprovado. Evidentemente, muitas representações que fazemos

de Deus podem ter surgido como projeção do nosso mundo psico-afetivo

inconsciente. Mas, isso não prova que Deus não exista. Perguntamos: não pode

Deus existir, de fato, e ser assumido e representado por nós a partir dos símbolos

parentais que marcam a dinâmica do nosso inconsciente? Provavelmente que sim.

Morano, entre outros psicanalistas, defende essa possibilidade27. Com efeito, a

tese de Freud que afirma ser Deus apenas uma projeção imaginária do pai

idealizado não prova a inexistência de um Deus real. Por isso, não pode ser

apresentada como um dado inquestionável.

Uma outra crítica que fazemos ao pensamento de Freud está relacionada à

sua visão depreciativa da religião. Para ele, a religião como ilusão, aliena o

indivíduo religioso do mundo da realidade; e como neurose obsessiva, perpetua o

conflito edipiano do período infantil. Efetivamente, Freud herda a visão

depreciativa da religião de seu tempo. Como fiel representante de uma

mentalidade cientificista, mecanicista e positivista, adota uma postura de

militância contra a religião sem conhecê-la em profundidade. Por causa disso,

desconhece a capacidade da religião de estabelecer o relacionamento maduro do

ser humano com a realidade, bem como desconhece sua capacidade de colaborar

com a superação dos sentimentos de culpa.

27 Cf. MORANO, C.D., Crer depois de Freud, p. 101-168; Id. El psicoanálisis freudiano de la religión, p. 495-499; Id. Experiencia cristiana y psicoanálisis, p. 19-23 e 45-75.

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É bem verdade que a religião pode, de fato, alienar; criar uma ruptura com

o real. Mas, por outro lado, pode colaborar com a superação da ilusão e dos

desejos infantis de onipotência. Também ela não é apenas neurose; retorno à

situação infantil de ambivalência afetiva ou tentativa de reparar constantemente a

culpa relacionada a esta situação. Certamente, na religião os sentimentos de

culpabilidade podem ser mobilizados, mas ela pode colaborar com a sua

superação. A religião revela-se ambígua. Entretanto, para Freud, ela é apenas

negativa ou nociva à maturidade psicológica humana, tanto em nível individual

como geral. Com efeito, a sua análise da religião é condicionada pela visão

cientificista depreciativa desta e por seu projeto secularista. Consiste numa análise

preconceituosa (anti-religiosa). Por isso, trata-se de uma abordagem míope e

simplificadora.

Também podemos criticar Freud pelas teses que defende, concernentes à

origem histórica da religião. Em Totem e Tabu28 apresenta a tese de que a religião

surge como forma de aplacar o sentimento de culpa produzido pelo assassinato do

pai primitivo. Esta tese se apóia em teorias etnológicas e sociológicas – já na sua

época - improváveis. As hipóteses da “horda primitiva”, do “assassinato do

protopai”, do “banquete totêmico”, do “totemismo como estágio primeiro e

necessário da evolução humana” e da “herança dos caracteres adquiridos”, são

consideradas atualmente – como o foram na época em que foram defendidas -

como insustentáveis e, por isso, desprezadas pelas pesquisas da etnologia, da

antropologia e da história da religião. Deste modo, a tese de Freud a respeito da

origem da religião na história não passa de uma construção especulativa apoiada

em bases questionáveis. O mesmo se pode dizer de sua tese defendida em Moisés

e o monoteísmo29. Nesta obra, apresenta, com relação ao judaísmo, a teoria de

uma origem egípcia para o monoteísmo judaico; defende a existência de dois

Moisés: um egípcio e um madianita; fala de uma revolta dos judeus contra o

primeiro Moisés e do assassinato deste por aqueles; e, com relação ao

cristianismo, atribui a Paulo de Tarso a paternidade do conceito de pecado

original; e interpreta o Apocalipse como uma obra dirigida contra o próprio Paulo.

Com efeito, do ponto de vista histórico-exegético, estas considerações são vistas

28 Cf. FREUD, S., Totem e Tabu. Rio de Janeiro: Imago, 2005. 29 FREUD, S., Moisés e o monoteísmo. Três ensaios. In: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XXIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996,

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como praticamente insustentáveis. Alguns autores afirmam que Freud, na referida

obra, embora tenha se pautado na teoria defendida pelo egiptólogo Ernst Sellin,

em 1922, sobre o assassinato de Moisés, teria utilizado bastante de sua

imaginação para compor sua teoria histórica30. Ana-María Rizzuto chega a afirmar

que Moisés e o monoteísmo consiste numa “autobiografia psicológica de Freud”31.

Levando isso em conta, podemos afirmar que a análise histórica de Freud a

respeito do judaísmo e do cristianismo não passa de especulação postulatória sem

apoio seguro em pesquisas histórico-exegéticas. Pode ser vista como uma espécie

de romance psicanalítico, mas não pode ser assumida como teoria segura e

provável sobre a origem do monoteísmo judaico e cristão.

A quarta crítica se dirige à metodologia de Freud na abordagem do

fenômeno religioso. Este pensador extrapola sua área de pesquisa quando faz

afirmações gerais, históricas e teológicas sobre a religião. O problema, portanto, é

que ele, a partir de análises psicoterapêuticas e de dados psicanalíticos, procura

explicar a totalidade da religião. Com efeito, este procedimento metodológico não

é correto. Freud faz afirmações que não são de sua competência. Com efeito, a

psicanálise não pode explicar a complexidade e a totalidade da religião. Pode,

sim, investigar, num indivíduo, a relação que tem determinada maneira deste

experimentar ou expressar a sua fé com o seu mundo afetivo profundo. Desta

maneira, a psicanálise pode dar algumas respostas ao fator religioso individual,

mas não pode pretender responder ou elucidar o conjunto da religião. Isso é algo

que transcende à psicanálise. Por isso, as considerações de Freud a respeito da

religião são extrapolações de sua competência; são produtos de sua pretensão de

dar respostas aos elementos culturais a partir da psicanálise.

Outra crítica que podemos tecer a Freud se refere ao seu projeto secularista

de realização da humanidade. Em O Futuro de uma ilusão32 e no opúsculo

intitulado A questão de uma Weltanschauung33 Freud afirma ser a ciência o meio

fundamental para que a humanidade possa atingir o seu grau máximo de

desenvolvimento. Com efeito, para ele, somente com a superação definitiva da

30 Cf. Id. Crer depois de Freud, p. 86; PALMER, M., Freud e Jung. Sobre a religião, p. 61-62; RIZZUTO, A-M., Por que Freud rejeitou Deus?, p. 170-181. 31 RIZZUTO, A-M., op. cit., p. 181. 32 Cf. FREUD, S. O futuro de uma ilusão. In: FREUD, S. Obras escolhidas. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978. 33 Id. A questão de uma Wetanschauung. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XXII. Rio de Janeiro: Imago, 1995.

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religião pela ciência ou do Deus religioso pelo deus Lógos é que a humanidade

conseguirá sair de sua fase infantil e alçar a fase de adultez. Em certa

concordância com a teoria das três fases de evolução da história, elaborada por A.

Comte, Freud concebe também três fases da história em analogia com as três fases

do desenvolvimento libidinal do indivíduo: (1) a primitiva ou animista (fase

narcisista); (2) a religiosa (fase edipiana de fixação libidinal nos pais); (3) a

científica (fase da maturidade: renúncia ao “princípio de prazer” e submissão à

realidade)34. Para ele, a segunda fase da história se encontra em declínio e a

terceira se aproxima. Pensando assim, com intuito de acelerar sua realização,

milita contra a religião e propõe a “educação para a realidade”. No seu entender, a

“salvação” da humanidade está na ciência, pois esta colabora para que o homem

possa se relacionar de modo maduro com a realidade conhecendo-a e

transformando-a em função de uma melhor organização da existência e de sua

felicidade. Com a ciência, segundo ele, o ser humano poderá nortear o “princípio

de prazer” pelo “princípio de realidade”; com ela o intelecto poderá, embora num

futuro muito distante, ter primazia sobre a vida instintual.

Esta visão de Freud sobre a realização da história humana a partir da

ciência não se apresenta como uma ilusão de sua parte? Não se trata de um desejo

dele à margem da realidade? O próprio Freud responde que não: “Não, nossa

ciência não é uma ilusão. Ilusão seria imaginar que aquilo que a ciência não nos

pode dar, podemos conseguir em outro lugar”35. Não concordamos com Freud.

Parece-nos, sim, que sua visão consiste numa ilusão. Hoje podemos afirmar isso

porque seu prognóstico não se realizou. A ciência e a técnica trouxeram,

certamente, significativas melhorias de vida para os homens e mulheres. Mas

também provocaram nefastas conseqüências ao meio-ambiente (crise ecológica) e

ao relacionamento entre os povos (ciência e tecnologia a serviço da indústria

bélica). Efetivamente, o desenvolvimento da ciência não produziu uma nova

história a-religiosa, nem tampouco colaborou para que o ser humano pudesse

superar suas ilusões. Pelo contrário, a própria ciência despertou e tem despertado

outras ilusões. Por isso, o prognóstico de Freud a respeito de uma sociedade

cientifica humanizante não passa de uma ilusão produzida pelo seu desejo. Freud

cai na ilusão da razão totalizadora e na ilusão de uma sociedade sem ilusões.

34 Cf. FREUD, S. Totem e tabu, p. 96-97. 35 Cf. Id. O futuro de uma ilusão, p. 128.

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Ademais, nos perguntamos: um mundo dominado pela ciência e pela

técnica ou pela razão totalizadora, tal como Freud sonhara, seria, de fato, a

realização da maioridade da humanidade? Seria mais humanizador? Acreditamos

que não. O ser humano é um ser não apenas racional – o que Freud sabe muito

bem -, mas também lúdico, simbólico, religioso e sentimental. Ora, uma

sociedade, predominante científica e técnica, norteada pela razão instrumental,

não provocaria a repressão destas outras dimensões constitutivas do humano? Não

seria o ser humano um ser mutilado e, por isso, desumanizado numa sociedade

deste tipo? Provavelmente, sim. Levando essas questões em consideração,

podemos afirmar que o prognóstico de Freud de uma sociedade científica como

realização da história humana se configura, além de ilusório, desumanizante.

Com esta avaliação crítica a respeito da concepção de Freud acerca da

religião pudemos observar que essa, embora tenha algo de verdade, não encontra

totalmente plausibilidade. Trata-se de uma visão que postula simplesmente a

inexistência de Deus, considerando-o como projeção psicológica da figura

paterna; consiste numa concepção determinada pela mentalidade secularizante e

cientificista de rejeição da religião; trata-se de uma visão reducionista (pretende

explicar a totalidade da religião a partir do fator psicológico); diz respeito a uma

visão alicerçada em pesquisas históricas questionáveis e, até, inaceitáveis. E

também pudemos perceber que o seu sonho de uma sociedade científica – de

superação da religião – constitui-se ilusório e desumanizador36.

7.1.5. Crítica à crítica de José Saramago A crítica de José Saramago à religião, especialmente ao cristianismo, é

feita em estilo literário37. Aparece em alguns de seus romances. Trata-se de uma

crítica não sistematizada. Para ele, Deus e o homem são incompatíveis. No seu

entender, Deus consiste numa idéia criada pelo ser humano. Idéia que se impõe

como realidade absoluta ao seu criador, fazendo-o menosprezar a sua existência e

36 Outras críticas ao pensamento de Freud concernente à religião podem ser encontradas nas seguintes referências bibliográficas: KÜNG, H., op. cit., 399-423; Id. Freud e a questão da religião, p. 48-76 e 111-113; ESTRADA, J.A. Deus nas tradições filosóficas, vol. II, p. 206-211; NEUSCH, M., op. cit., p. 135-137; PALMER, M., op. cit., p. 83-110; ZILLES, U., op. cit., p. 151-162; MORANO, C.D. El psicoanálisis freudiano de la religión, p. 421-475; Id. Crer depois de Freud, p. 85-91; DROGUETT, J.G. Desejo de Deus, p. 85-106. 37 Apresentamos a crítica de José Saramago à religião na primeira seção do terceiro capítulo desta pesquisa.

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a existência da alteridade. As religiões, sobretudo o cristianismo, na sua visão,

consistem numa negatividade para o ser humano, porque estas perpetuam sobre

ele o domínio dessa idéia (Deus). Sua crítica direciona-se, particularmente, à

religião cristã. Para ele, o cristianismo, em nome de Deus, legitimou o desprezo

deste mundo em vista de um mundo no além; legitimou a repressão à

corporeidade e à sexualidade; condenou a alegria da vida; valorizou o sofrimento,

a dor e o martírio; acentuou o sentimento de culpa mediante a priorização do

pecado em sua pregação; justificou as injustiças sociais cometidas contra os

pobres, e os alienou da luta pela reivindicação de seus direitos; promoveu, ao

longo da história, conflitos sangrentos com os não-cristãos (cristãos versus

pagãos) e entre os próprios cristãos (católicos versus protestantes); impôs o

domínio ou o controle da Igreja Católica sobre a consciência e a liberdade dos

fiéis; e comercializou a fé para explorar os devotos. Além de tudo isso, Saramago,

em O Evangelho Segundo Jesus Cristo38, critica, implicitamente, o cristianismo

em sua origem, ou seja, na relação entre Jesus e Deus. Acusa-o de estar assentado

sob a história de um homem (Jesus de Nazaré) que teve sua vida e sua liberdade

suplantadas pela idéia “Deus”. Para ele, o cristianismo assenta-se, sobretudo,

sobre a morte de Jesus, realizada em nome de Deus. Com efeito, ele vê Jesus

como o símbolo do fundador do cristianismo e como símbolo de todo cristão que

se sacrifica em função de um Deus que não existe.

Embora a crítica de Saramago não seja sistematizada, esta não deixa de se

apresentar, de certo modo, contundente e pertinente. Podemos afirmar que este

autor tem alguma razão na crítica que tece ao cristianismo. De fato, muitas das

suas acusações têm fundamento histórico. Entretanto, sua crítica apresenta-se,

também, falha e equivocada. Assim, podemos elencar algumas objeções à sua

concepção e à sua crítica do cristianismo.

A primeira diz respeito à sua visão de Deus como “idéia”. Assim como

Feuerbach e os mestres da suspeita, ele simplesmente parte de um postulado, não

comprovado, de que Deus não existe independente do ser humano, porque

consiste, simplesmente, segundo ele, numa idéia da cabeça do homem. Ou seja,

sua concepção de Deus é postulatória; pode não corresponder à verdade.

38 Cf. SARAMAGO, J. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

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Ademais, sua visão de que a idéia “Deus” se impõe ao indivíduo religioso

como uma força dominante que provoca a desvalorização de sua vida e a dos

demais, não é totalmente correta. É verdade que certas representações de Deus

levam à alienação antropológica. Mas há outras representações que colaboram

para que o ser humano assuma, responsavelmente e de modo amadurecido, a sua

existência, e promova a dos outros em nível micro e macro social. O problema é

que Saramago se pauta apenas numa representação negativa de Deus. Aquela que

ele absorve, de modo deturpado, da tradicional pregação cristã européia (católica e

protestante) e dos seus conceitos teológicos cristalizados (pecado original, castigo

divino, inferno, sacrifício expiatório de Cristo etc.). Sua crítica se dirige contra

esta representação de Deus. Ora, o Deus da revelação neotestamentária não se

encaixa na crítica que este autor faz à idéia “Deus”. Porém, Saramago desconhece

o Deus apresentado pelo Novo Testamento, sobretudo, pelos evangelhos. Seu

equívoco consiste em identificar, sem discernimento algum, as representações

deturpadas de Deus como sendo o próprio Deus do cristianismo.

Podemos tecer mais uma crítica a Saramago e esta diz respeito à sua visão

do cristianismo. Este autor não consegue perceber nenhuma positividade na

religião cristã. Tudo, para ele, é pura negatividade: seu fundamento (Jesus Cristo),

seu Deus, sua história, sua teologia, sua moral e a Igreja Católica. Diante disso,

perguntamos: esta visão depreciativa, não teria origem num preconceito ateísta de

Saramago a respeito do cristianismo? Ou, em outros termos: não seria esta visão

condicionada pelo ateísmo deste autor? Sim, é bem provável que Saramago tenha

destacado os pontos negativos e sombrios da configuração histórica do

cristianismo e reduzido a identidade e a totalidade deste a esta negatividade,

porque seu ateísmo o impediu de perceber os valores e as contribuições desta

religião para a história da humanidade. Deste modo, sua visão do cristianismo

constitui-se como preconceituosa e reducionista. Com efeito, embora a

configuração histórica do cristianismo, relacionada a fatores culturais e a

interesses políticos, tenha produzido barbáries e, até mesmo, deturpado a

mensagem evangélica, o cristianismo não pode ser reduzido a esta negatividade.

A história deste guarda uma grande positividade. Uma crítica equilibrada a esta

religião teria de reconhecer isso. Como a crítica de Saramago não reconhece esta

positividade, consiste numa crítica simplificadora com a finalidade de denegrir o

cristianismo.

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A leitura que Saramago faz da origem do cristianismo, em O Evangelho

segundo Jesus Cristo, também não pode ser aceita. Ele deturpada a relação,

transmitida pelos evangelhos, entre Jesus e Deus. Para ele, Jesus e Deus

estabelecem uma relação conflituosa, de interesses opostos. Deus é visto como

força opressora que se impõe a Jesus e o conduz, contra a vontade deste, à morte

de cruz. E Jesus, por sua vez, é visto como um homem normal que tem sua

liberdade e sua vida controladas por Deus. Para este autor, a vida de Jesus só tem

um sentido: ser conduzido à morte na cruz por Deus e em nome Dele. Tudo o que

Jesus faz em seu ministério público, o faz contra sua própria vontade. Esta leitura

não consiste apenas em ser ficção de Saramago. Trata-se de uma crítica à origem

do cristianismo que reside na revelação de Deus em Jesus de Nazaré. Para este

escritor, o cristianismo nasce da negação da vida de um homem que foi conduzido

à morte por causa de sua submissão à vontade de um ser (Deus) que não passa de

uma idéia tirânica. Esta visão de Saramago não condiz com o dado dos

evangelhos. Nestes, Deus e Jesus não aparecem em oposição; nem tampouco

Deus suplanta a liberdade de Jesus e o conduz à morte de cruz. Pelo contrário,

Jesus revela-se bastante livre, por causa de sua relação com Deus39. Sua morte foi

conseqüência de sua missão, de sua coerência de vida e da rejeição, por parte das

autoridades religiosas e políticas, de sua atividade profética40. Saramago não tem

conhecimento destes dados porque se fundamenta apenas na pregação tradicional

da “morte sacrifical-expiatória de Jesus”, entendida como “satisfação

compensatória”41. Ou seja, ele faz uma leitura da relação entre Jesus e Deus, a

partir de certo tipo de pregação cristã – esta que também deturpa a visão

neotestamentária sobre a salvação – que afirma que Jesus teria morrido na cruz,

por vontade de Deus, para poder nos conferir a redenção. Com efeito, esta leitura

de Saramago a respeito da relação entre Jesus e Deus é errônea e reducionista. De

forma alguma uma concepção a respeito da origem do cristianismo pode se

39 Cf. RUBIO, A.G. Encontro com Jesus Cristo vivo. São Paulo: Paulinas, 1994, p. 59-66; SOBRINO, J. Jesus, o libertador, p. 214-217; FORTE, B. Jesus de Nazaré. História de Deus, Deus da história. Ensaio de uma cristologia como história. São Paulo: Paulinas, 1985, p. 242-270. 40 Cf. SOBRINO, J., op. cit., p. 285-309; SCHILLEBEECKX, E. Jesus, a história de um vivente. São Paulo: Paulus, 2008, p. 289-312; MATEOS, J. – CAMACHO, F. Jesus e a sociedade de seu tempo. São Paulo: Paulus, 1992, p. 111-118; FABRIS, R. Jesus de Nazaré. História e interpretação. São Paulo: Loyola, 1988, p. 243-279. 41 Sobre a problemática desta temática, cf. BERGER, K. Para que Jesus morreu na cruz? São Paulo: Loyola, 2005; SESBOÜÉ, B. Jesucristo el único mediador. Ensaio sobre la redención y la salvación. Salamanca: Secretariado Trinitario, 1990, p. 315-382.

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apresentar como coerente se partir de um dado que não corresponda aos dados

históricos e teológicos fornecidos pelo Novo Testamento.

Depois da apresentação destas quatro críticas, feitas às considerações que

Saramago faz do cristianismo em algumas de suas obras, fica claro que essas

considerações, embora tenham algum grau de verdade, não podem ser totalmente

aceitas, pois são preconceituosas, equivocadas e reducionistas.

7.1.6. Crítica à crítica de Michel Onfray Seguindo o legado dos ateus humanistas anticristãos, Onfray condena as

religiões monoteístas, especialmente o cristianismo, por considerá-las como

criação patológica do homem em função da destruição de sua existência42. Para

ele, estas são expressões da “pulsão de morte” intrínseca à psicologia humana.

Para combater as religiões, no intuito de extingui-las e de instaurar o domínio da

razão sobre as ilusões, propõe um novo tratado de filosofia interdisciplinar, a

ateologia. Este tratado, segundo ele, além de ter como objetivo a desconstrução

teórica das religiões monoteístas, também objetiva confeccionar e propor um novo

quadro de valores éticos para a civilização ocidental. Trata-se, portanto, de uma

disciplina que se afigura como projeto ateístico militante e anti-religioso de

transformação da história de religiosa em pós-religiosa. Segundo Onfray, tudo nas

religiões monoteístas tende contra o homem, especialmente o seu Deus, que, para

este filósofo, não passa de uma projeção hipostasiada de todas as negatividades

constitutivas da psicologia humana. Onfray acusa estas religiões de promoverem o

menosprezo da razão e da imanência. Concernente ao cristianismo, afirma que

este teve origem numa fábula – o “personagem conceitual” Jesus Cristo – e na

patologia histérica de Paulo de Tarso; e que se desenvolveu e se configurou

cultural e socialmente como maximização da “pulsão de morte”.

Esta concepção de Onfray a respeito das religiões monoteístas, bem como

sua crítica a estas, consiste na junção ou num misto de vários elementos do

pensamento ateísta de Feuerbach e dos mestres da suspeita. De Feuerbach assume

a teoria da projeção antropológica; de Freud, a teoria da projeção psicológica e a

“pulsão de morte”; de Nietzsche, a crítica e a condenação dos valores éticos da

42 Apresentamos a visão que Onfray tem das religiões monoteístas, bem como a sua crítica a elas, na segunda seção do terceiro capítulo deste trabalho.

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civilização ocidental assentados sobre o cristianismo. Por isso, as críticas que

antes apresentamos ao pensamento destes autores também servem para o de

Onfray. Sua concepção de Deus e da religião como projeção da “pulsão de morte”

não passa de um postulado não comprovado; sua visão totalmente depreciativa

das religiões monoteístas é determinada pelo seu ateísmo anti-religioso e, por isso,

revela-se preconceituosa e reducionista; e sua proposta humanista de superação da

religião por uma época dominada pela razão e pela imanência mostra-se ilusória e

desumanizante. Não obstante isso, podemos fazer outras críticas direcionadas

unicamente à sua visão depreciativa e combatente da religião, especialmente do

cristianismo.

Sua proposta de uma ateologia mostra-se bastante desrespeitosa e

intolerante. A mesma atitude de intolerância e de intransigência que Onfray

condena nas religiões monoteístas, ele as assume em seu projeto ateístico

filosófico. Ademais, este projeto é, por demais, ingênuo. Este filósofo acredita

que, por meio de uma desconstrução teórica do monoteísmo, realizada por uma

disciplina filosófica, auxiliada por várias ciências, é possível conscientizar o

homem ocidental a respeito do engodo que é a religião com a finalidade de

superá-la definitivamente. Ora, certamente, um projeto deste tipo pode fazer com

que algumas pessoas, pouco críticas, assumam uma postura de oposição cerrada

às religiões. No entanto, uma conscientização em massa, por meio de uma

ateologia, a respeito da negatividade do monoteísmo com a intenção de extingui-

lo, não passa de um projeto ingênuo.

Outra crítica que podemos fazer à concepção de Onfray no que se refere ao

cristianismo, diz respeito a sua afirmação de que Jesus de Nazaré não passa de um

“personagem conceitual”43, visto que, segundo ele, não há indício histórico algum

que comprove com segurança a sua existência. Para ele, o Jesus que existe é

somente uma criação dos evangelistas. Na sua visão, foi o evangelista Marcos “o

primeiro autor do relato das aventuras maravilhosas do denominado Jesus”44.

Considera, assim, os evangelhos semelhantes à literatura mitológica. Entretanto,

no seu entender, o gênero evangélico é performativo, ou seja, leva o leitor a

creditar à ficção uma existência real. Desta maneira, Onfray considera que os

43 Cf. ONFRAY, M. Tratado de ateologia. Física da metafísica. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 97-110. 44 Ibid., p. 103.

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evangelhos não têm nenhuma base histórica, nem tampouco nenhuma

manifestação de fé; são apenas fabulações.

Esta concepção de Onfray contradiz as pesquisas exegéticas recentes sobre

o Novo Testamento e sobre o Jesus histórico45. Estas afirmam que os evangelhos

estão fundamentados, embora sejam interpretações de fé dos primeiros cristãos,

num núcleo histórico seguro. Por isso, para estas pesquisas, a existência de Jesus

de Nazaré é um dado histórico que não se questiona. Tais pesquisas até

apresentam alguns dados sobre Jesus, que os evangelhos relatam, como portadores

de grande base histórica, a saber: seu batismo, o anúncio da chegada do Reino de

Deus, a utilização de parábolas para comunicar sua mensagem, as curas, sua

relação crítica com a Lei e a religião, seu relacionamento peculiar com os pobres e

marginalizados em geral, a escolha e o envio de um grupo de discípulos, a

perseguição a ele por parte das autoridades religiosas, sua condenação e sua morte

na cruz. Com efeito, o fato é que Onfray, ao postular que os cristãos acreditam

numa ficção assumida como fato histórico, não prova nada a respeito da não

existência de Jesus. Sua não compreensão do gênero literário dos evangelhos, bem

como a sua ignorância com relação às pesquisas de exegese histórico-críticas o

levam a postular que os evangelhos são fabulações ou relatos mitológicos tais

como os de Homero. Portanto, sua consideração sobre Jesus e os evangelhos não

passa, também, de um postulado carente de comprovação.

Igualmente aparece como postulado de Onfray a sua afirmação de que

Paulo de Tarso, por sofrer de uma patologia histérica, teria contribuído para

contaminar o “Jesus conceitual” com uma visão depreciativa da vida e por tê-lo

difundido para além da Palestina. Os sérios estudos exegéticos sobre Paulo,

45 Cf. SANDERS, E.P. Jesús y el judaísmo. Madrid: Trotta, 2004; Id. La figura histórica de Jesús. Estella: Verbo Divino, 2000; SCHLOSSER, J. Jesús, el profeta de Galilea. Salamanca: Sígueme, 2005; BARBAGLIO, G. Jesús, hebreo de Galilea. Investigación histórica. Salamanca: Secretariado Trinitario, 2004; BROWN, R.E. An Introduction to New Testament Cristology. New York: Mahwah, 1994; GNILKA, J. Jesus de Nazaré. Mensagem e história. Petrópolis: Vozes, 2000; GOPPELT, L. Teologia do Novo Testamento. Vol. I. Petrópolis: Vozes-São Leopoldo, 1976; MEIER, J.P. Um judeu marginal. Vol. I: Repensando o Jesus histórico. Rio de Janeiro: Imago, 1993; Id. Um judeu marginal. Vol. II, livro I. Rio de Janeiro: Imago, 1996; Id. Um judeu marginal. Vol. II, livro II. Rio de Janeiro: Imago, 1997; Id. Um judeu marginal. Vol. II, livro III. Rio de Janeiro: Imago, 1998; Id. Um judeu marginal. Vol. III. Rio de Janeiro: Imago, 2003; THEISSEN, G. – MERZ, A. O Jesus histórico. Um manual. São Paulo: Loyola, p. 37-144; PIKAZA, X. A figura de Jesus: profeta, taumaturgo, rabino e messias. Petrópolis: Vozes, 1995; PIKASA, X. – CALLE, F. Teología de los evangelios de Jesus. Salamanca: Sigueme, 1977; SCHNACKENBURG, R. Jesus Cristo nos quatro evangelhos. São Leopoldo: Unisinos, 2001; FABRIS, R. Jesus de Nazaré. História e interpretação. São Paulo: Loyola, 1988; PALÁCIO, C. Jesus Cristo. História e interpretação. São Paulo: Loyola, 1979.

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entretanto, não confirmam estas considerações de Onfray46. Efetivamente, este

filósofo não se fundamenta em pesquisas especializadas sobre o assunto. Faz suas

afirmações a partir de suas próprias interpretações dos escritos de Paulo. Por isso,

carece, nesses assuntos, de seriedade.

Tendo feitas estas considerações críticas à concepção de Onfray sobre as

religiões monoteístas, podemos dizer que este, embora apresente muitos dados

negativos que podem ser percebidos em algumas expressões do cristianismo, não

fundamenta em bases sólidas as suas acusações; são acusações condicionadas pelo

seu ateísmo e com a finalidade de combater desrespeitosamente estas religiões.

7.1.7. Crítica à crítica de Richard Dawkins Como biólogo, defensor ferrenho da teoria da evolução darwiniana,

Dawkins discorda da existência de Deus e dá uma explicação biológica para a

origem e perpetuação da religião no processo evolutivo, e, além disso, critica a

religião por considerar que esta impede o avanço do conhecimento científico47.

Para este cientista, o Deus pessoal, inteligente e criador do mundo e da

vida, professado pelas religiões monoteístas, na verdade não passa de um delírio

(delusion)48, ou seja, não existe realmente. No seu entender, se Deus existisse de

fato, haveria no universo alguma evidência de sua existência ou poderia, de

alguma forma, ser verificável a sua presença. Mas, segundo ele, como não há nada

que prove a existência de Deus, este não passa de uma falsa crença que teima em

persistir mesmo diante das evidências científicas que a contradigam. Dawkins

afirma que a existência de Deus, como design inteligente, contradiz,

principalmente, a teoria da evolução darwiniana. De acordo com ele, esta teoria

considera como improvável a existência de um ser divino inteligente como sendo

o criador do universo, porque, para ela, qualquer inteligência criativa somente

46 Cf. CROSSAN, J.D. – REED, J.L. Em busca de Paulo. Como o apóstolo de Jesus opôs o Reino de Deus ao Império romano. São Paulo: Paulinas, 2007; HORSLEY, R.A. Paulo e o Império. Religião e poder na sociedade imperial romana. São Paulo: Paulus, 2004; MAZZAROLO, I. Paulo. O grego, o judeu e o cristão. Rio de Janeiro: Mazzarolo Editor, 2008; QUESNEL, M. Paulo e as origens do cristianismo. São Paulo: Paulinas, 2004; ELLIOT, N. Libertando Paulo. A justiça de Deus e a política do Apóstolo. São Paulo: Paulus, 1997; BARBAGLIO, G. São Paulo. O Homem do Evangelho. Petrópolis: Vozes, 1993; SANDERS, E.P. Paulo, a lei e o povo judeu. São Paulo: Paulinas, 1990. 47 Cf. a apresentação que fizemos da crítica de Dawkins à religião na terceira seção do terceiro capítulo deste trabalho. 48 Daí o título de sua obra anti-religiosa: The God delusion. Cf. DAWKINS, R. Deus, um delírio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

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poderia existir como produto do processo de evolução. No início da evolução,

para esta teoria, há apenas organismos vivos bastante simples. Por isso, a

afirmação da existência de um organismo complexo e inteligente, como Deus, não

passa de uma improbabilidade.

Com relação à religião, este biólogo defende a tese de que ela tem origem

numa propensão natural do cérebro humano – produto da seleção natural - para

acolher os ensinamentos úteis para a sobrevivência da espécie, transmitidos pelas

gerações passadas. Entretanto, Dawkins não vê a religião como sendo algo útil

para a perpetuação da espécie humana no processo evolutivo. Ao contrário, a

considera como desgaste de energia na direção contrária à sobrevivência humana.

Concebe-a como ensinamentos inúteis para o dinamismo da seleção natural, que

se perpetuam culturalmente, por causa da transmissão memética, como uma

infecção ou virose a contaminar a mente de cada geração. Em outros termos, a

religião consiste num dado cultural que, ao ser assumido pelo homem, por causa

da propensão de seu cérebro em assumir menes de gerações anteriores, desvia a

sua atenção do esforço para manter a sua sobrevivência no processo seletivo

natural. Para Dawkins, a religião tem, em terminologia biológica, utilidade apenas

para si mesma, ou seja, serve apenas para manter sua sobrevivência ou a sua

evolução na cultura. Trata-se de um “subproduto acidental” ou um “efeito

colateral de uma coisa útil”49.

Especificamente, este cientista acusa a religião de atrapalhar o progresso

humano no processo evolutivo. E isto por dois motivos. Primeiro, porque ela, ao

se opor à ciência e à técnica, por causa da imposição de crenças como verdades

inquestionáveis, impede o progresso cultural humano, ou seja, obstaculiza o

conhecimento da natureza e a sua transformação pelo ser humano. Segundo,

porque a religião, ao propagar uma moralidade interesseira, superficial,

absolutista, exclusivista e fundamentada em livros tidos como sagrados, dificulta

o estabelecimento de relações fraternas e solidárias entre os seres humanos.

Estas considerações de Dawkins a respeito da existência de Deus, da

origem e perpetuação da religião, bem como a sua crítica à religião como entrave

à ciência e à moralidade autônoma, não podem ser aceitas de bom grado, pois não

são completamente corretas. Por isso, podemos tecer algumas críticas ou objeções

49 Cf. Ibid., p. 248.

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ao pensamento deste cientista no que concerne à sua concepção de Deus e da

religião.

A primeira crítica diz respeito à sua idéia de Deus: é, teologicamente,

absurda. Partindo de uma visão abstraída erroneamente das religiões monoteístas,

Dawkins fala de Deus como se este tivesse que ser um ente ou um elemento do

universo ao lado de outros. Com efeito, ele defende a improbabilidade da

existência de Deus, porque não há evidências verificáveis que comprovem a sua

existência. Ora, a teologia não afirma que Deus seja um ente ou um ser vivo

complexo e finito ao lado de outros finitos. Nem afirma que Ele é um ser

supraterreno que pode ser encontrado em algum lugar “acima” do mundo. Não é,

como postulou Aristóteles, a causa prima ou o motor imóvel. Deus, para a

teologia, é transcendente, infinito, eterno e, principalmente, pessoal. É Aquele que

fundamenta, mediante sua presença e ação transcendentes, o existir de todo o

universo. Neste sentido, Ele é o Transcendente no imanente; o Infinito no finito; a

Eternidade na temporalidade. Deus perpassa todo o universo e atua sobre ele

fazendo-o e dinamizando-o. Por isso, de fato, Deus não pode ser constatado

empiricamente; foge, portanto, à comprovação científica50. Desta maneira, a tese

de Dawkins de que Deus não existe realmente, por não poder ser constatado

empiricamente, não passa de uma afirmação que se pauta numa visão equivocada

de Deus confundido com um elemento do universo.

Ademais, este cientista extrapola o âmbito da ciência quando conclui que

Deus não existe porque a sua existência é improvável. Perguntamos: Deus não

poderia existir independentemente de a ciência poder comprovar a sua existência?

Tem a ciência legitimidade para afirmar que algo não existe simplesmente porque

não pode explicá-lo? Evidentemente, se a ciência, no afã de querer tudo explicar,

se puser a procurar indícios da existência de Deus entre os elementos empíricos

jamais os encontrará. Deus está para além da explicação científica. Não obstante,

Dawkins superestima a ciência como o saber capaz de dar explicação a tudo. Não

percebe os limites dela; assume um fundamentalismo científico. Efetivamente,

esta atitude deste biólogo se mostra inadequada e até irracional. Há outras formas

de conhecimento além do científico. Cabe à ciência “à explicação física do nosso

50 Cf. KÜNG, H. O princípio de todas as coisas, p. 68-177.

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universo, ao mesmo tempo deixando espaço para o que em princípio não pode ser

explicado fisicamente”51.

Outra crítica que fazemos a este biólogo está relacionada à sua visão que

apresenta a incompatibilidade entre a teoria da evolução e a de criação realizada

por Deus. Para Dawkins, a teoria da evolução darwiniana desbanca a idéia

religiosa de criação. No seu entender, toda a vida em nosso planeta é fruto de um

processo evolutivo de milhares de anos. E o início desse processo – o surgimento

da vida -, segundo ele, se deu por causa do acaso ou da coincidência harmônica de

vários fatores químicos, físicos e astrofísicos. Por isso, para ele, a idéia de um ser

criador é um disparate. De fato, com o consenso científico da teoria da evolução

fica desautorizada a leitura fundamentalista dos relatos da criação do livro de

Gênesis. Neste sentido, Dawkins tem razão quando critica os criacionistas

fundamentalistas por rejeitarem, intransigentemente, esta teoria. Porém, a

aceitação da teoria da evolução impede, radicalmente, a possibilidade de

afirmação da idéia de criação? Não é possível afirmar a criação a partir do dado

científico da evolução? É claro que sim. Alguns cientistas não descartam, mesmo

aceitando o evolucionismo darwiniano, a idéia de criação52. E a própria teologia

tem aceitado o desafio de pensar a criação a partir do dado científico da

evolução53. Neste sentido, a evolução pode ser vista, como afirma Moltmann,

como criação continuada (creatio continua)54. Deus, presente no dinamismo

evolutivo, de modo transcendente e não-intervencionista, cria e recria; faz tudo

existir e permanecer existindo. Com efeito, alguns cientistas e teólogos mostram

que criação e evolução não se contradizem, mas podem se complementar como

conhecimento mais plural de uma realidade pluridimensional. Neste sentido,

51 Ibid., p. 167. 52 Cf. COLLINS, F.S. A linguagem de Deus. Um cientista apresenta evidências de que Ele existe. São Paulo: Editora Gente, 2007; RUSSELL, R.J. – McNELLY, K.W. A lei natural e a ação divina. In: PETERS, T. – BENNETT, G. (Orgs.). Construindo pontes entre a ciência e a religião. São Paulo: UNESP e Loyola, 2003, p. 81-104; RUSSEL, R.J. – STOEGER, W.R. – AYALA, F.J. (Orgs.). Evolutionary and Molecular Biology. Scientific perspectives on divive action. Vaticano-Califórnia: Vatican Observatory Publications – Center for Theology and the Natural Sciences, 1998; KAPLAN, F. Le paradoxe de la vie. La biologie entre Dieu et Darwin. Paris: Éd. de La Découverte, 1995. 53 Cf. ARNOULD, J. A teologia depois de Darwin. Elementos para uma teologia da criação numa perspectiva evolucionista. São Paulo: Loyola, 2001; MOLTMANN, J. Deus na criação. Doutrina ecológica da criação. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 271-311; GESCHÉ, A. O cosmo. São Paulo: Paulinas, 2004, (Coleção Deus Para Pensar, 4); RUBIO, A.G. Unidade na pluralidade, p. 361-387; SEGUNDO, J.L. Que mundo? Que homem? Que Deus? Aproximações entre ciência, filosofia e teologia. São Paulo: Paulinas, 1995, p. 176-194. 54 Cf. MOLTMANN, J., op. cit., p. 298-308.

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Dawkins não tem razão quando expõe a teoria da evolução em oposição à de

criação. Ele estabelece esta oposição no intuito de utilizar esta teoria contra a

religião e contra seu Deus; dogmatiza uma teoria e não percebe que esta é

insuficiente para responder a todas as questões a respeito da origem e do

dinamismo da vida.

A teoria de Dawkins sobre a origem biológica da religião apresenta-se

criticável. A sua afirmação de que a religião é um “subproduto inútil de algo útil”

não passa de uma especulação que carece de evidências a seu favor55. E o mesmo

se pode dizer de sua teoria da evolução cultural baseada num replicador chamado,

por ele, de “meme”56. Ambas as teorias não são compartilhadas, de modo

consensual, por outros cientistas; são, portanto, simplesmente, hipóteses

levantadas por Dawkins, mas não comprovadas.

Também consideramos que a objeção deste cientista à religião não condiz

com a verdade. Para ele, a religião impede o desenvolvimento das pesquisas

científicas e propaga uma moralidade que dissemina o ódio entre os homens.

Certamente, o fundamentalismo religioso pode despertar o combate às visões

científicas que não condizem com as verdades da religião, bem como pode

suscitar o conflito desrespeitoso e o ódio para com aqueles que professam

religiões diferentes ou que lhes são indiferentes. Contudo, afirmar que a religião

está totalmente em oposição à ciência ou que sua moralidade é dissonante com os

valores de fraternidade, de respeito e de solidariedade entre as pessoas não passa

de um exagero difamante da religião. Ora, as religiões não são, todas,

fundamentalistas. No caso de algumas expressões cristãs, por exemplo, de fato,

podemos constatar um fundamentalismo doutrinário e, também, moral. Entretanto,

não são todas as expressões do cristianismo que se apresentam como

fundamentalistas. A crença intransigente, por exemplo, de grande porcentagem

dos cristãos norte-americanos e ingleses no criacionismo – a qual Dawkins

combate veementemente – não é uma crença compartilhada por todos os cristãos;

nem pregada em todas as igrejas e instituições cristãs. E o mesmo pode ser dito do

fundamentalismo moral. Este diz respeito a uma fração mínima de cristãos. Não

são todos os cristãos fanáticos; nem são todos os que absolutizam as regras morais

55 Cf. McGRATH, A. – McGRATH, J. O delírio de Dawkins, p. 79; McGRATH, A. Dawkin’s God: genes, memes and the meaning of life. Oxford: Blackwell, 2004. 56 Cf. Ibid., p. 98-103.

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de determinada igreja, seita ou movimento. Sendo assim, o procedimento de

Dawkins de acusar a religião em geral de estimular a irracionalidade, de se opor à

ciência e de despertar o fanatismo e o fundamentalismo não passa de

generalizações injustas e difamatórias que não condizem com aquilo que as

religiões monoteístas são no seu conjunto.

Em suma, todas estas críticas que expusemos ao pensamento de Dawkins

sobre a existência de Deus e sobre a religião revelam que este pensamento não

pode ser assumido como uma crítica amplamente coerente à religião, pois nega a

existência de Deus por causa da sua improbabilidade científica; extrapola os

limites da ciência procurando responder à questão da existência ou não existência

de Deus; concebe a idéia de criação e a teoria da evolução como completamente

opostas e contraditórias; pensa, do mesmo modo, a religião em oposição cerrada à

ciência; e acusa a religião, por meio de generalizações, de apregoar uma

moralidade heterônoma que não colabora com a pacificação entre os povos, nem a

vivência dos valores humanitários pelas pessoas religiosas.

7.2. Algumas interpelações do ateísmo humanista ao crist ianismo

A avaliação crítica que fizemos na seção anterior mostrou que as objeções

do ateísmo humanista ao cristianismo são postulatórias, falhas, equivocadas,

limitadas, reducionistas e generalizantes. Entretanto, há alguns elementos nestas

objeções que condizem, parcialmente, com a verdade. Por isso, elas não podem

ser rechaçadas ou ignoradas totalmente. Pelo contrário, devem ser acolhidas pela

teologia como interpelações à fé cristã. A tentativa de estabelecer diálogo aberto

entre esta fé e o pensamento ateu pressupõe que aquela respeite e considere o que

este apresenta de coerente em sua crítica. Caso contrário, não é possível que o

diálogo se efetive. Pensando deste modo, acreditamos que as críticas do ateísmo

ao cristianismo podem interpelar a fé cristã para que esta possa se expressar

guardando fidelidade ao seu núcleo originário, ou seja, à revelação de Deus em e

por Jesus de Nazaré. Deste modo, elas podem ser vistas como oportunidades para

as diversas expressões cristãs purificarem-se à luz do evento crístico.

Nesta seção, nosso interesse é o de, simplesmente, apresentar algumas

interpelações ao cristianismo hodierno que surgem das críticas à religião do

ateísmo humanista anticristão. Por isso, vamos dividir a seção em duas subseções.

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Na primeira, iremos destacar as interpelações do ateísmo de Feuerbach e dos

“mestres da suspeita”. E na segunda, daremos destaque àquelas que surgem do

ateísmo contemporâneo de Saramago, Onfray e Dawkins.

7.2.1. As interpelações de Feuerbach e dos “Mestres da sus peita”

Devemos ter clareza de que as críticas à religião de Feuerbach e dos

“mestres da suspeita” surgiram da percepção ou da experiência que esses

pensadores tiveram do cristianismo europeu daquela época57. Por isso, elas não

podem ser aplicadas, totalmente, ao cristianismo contemporâneo, porque ele se

configura bastante diferente do daquela época. Entretanto, elas não deixam de se

apresentar a ele como interpelações, visto que questionam às suas múltiplas

expressões. Nesta subseção, pretendemos pontuar as principais interpelações que

a crítica desses autores à religião faz ao cristianismo. Devemos dizer que não

objetivamos desenvolvê-las profundamente, mas apenas apresentá-las de forma

bastante breve.

A primeira interpelação que podemos destacar surge da teoria, defendida

por Feuerbach e assumida pelos demais ateus humanistas, que defende que Deus

não passa de uma criação do ser humano. De fato, esta teoria, como dito antes,

não passa de um postulado, pois não consegue provar que Deus não exista. Não

obstante, ela não pode ser desconsiderada totalmente, pois, podemos construir

imagens ou representações de Deus e nos relacionarmos com elas como se fossem

o próprio Deus. Por isso, a teoria da projeção pode apresentar os seguintes

questionamentos às várias expressões da fé cristã: o Deus pregado, celebrado,

experimentado e explicitado pelos cristãos é o Deus de Jesus ou imagens

deturpadas que fazemos Dele? Está a fé cristã imune às projeções antropológicas

de Deus? Não pode o Deus, revelado em Jesus de Nazaré, ser deformado pela

idéia que fazemos Dele? Evidentemente, o Deus de Jesus pode ser deturpado

pelas nossas representações de Deus. Por causa disso, o cristianismo, em sua

totalidade, precisa ficar atento para não substituir o Deus verdadeiro por

representações falsas e deturpadas que podemos fazer Dele.

57 Cf. KÜNG, H. Existe Dios?, p. 268-578; WEGNER, K-H. La crítica religiosa en los tres últimos siglos. Barcelona: Herder, 1986.

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Infelizmente, algumas expressões cristãs têm caído na tentação da

idolatria58. Têm substituído o Deus verdadeiro, revelado em Jesus de Nazaré, por

imagens ou representações de Deus feitas a partir dos nossos interesses egoísticos,

dos nossos medos e de nossas culpas, bem como a partir dos interesses sociais e

culturais. O Deus da prosperidade, das soluções mágicas para os nossos

problemas ou o Deus que castiga e pune são exemplos de representações do

Divino transmitidas pela pregação, pela catequese, pela espiritualidade, pela

liturgia e pela teologia cristãs. Com efeito, a teoria da projeção de Deus como

projeção antropológica ou psicológica interpela o cristianismo a manter-se fiel ao

Deus de Jesus, pois uma outra imagem de Deus pode, com certeza, ser uma

representação ou uma projeção nossa.

Ademais, não se deve esquecer que Feuerbach e os “mestres da suspeita”

negaram Deus não apenas por considerá-lo como projeção do ser humano, mas

por constatar que esta projeção produz diversos tipos de alienação, a saber:

distancia o crente das qualidades da humanidade (Feuerbach); impede-o de

assumir sua responsabilidade histórica concreta e de lutar para modificar as

relações sociais (Marx); o faz renunciar ao dinamismo imanente da vida

(Nietzsche); e obstaculiza sua maturidade psicológica (Freud). Em outras

palavras, o ateísmo constatou que a imagem de Deus, transmitida pelo

cristianismo, revelou-se, de alguma forma, bastante prejudicial aos crentes.

Percebeu nela algo de degradante para o ser humano.

Efetivamente, o Deus que é rechaçado pelo ateísmo não é o Deus de Jesus.

Esses pensadores ateus rejeitaram a imagem deturpada de Deus, transmitida pelo

cristianismo histórico, e identificada, erroneamente, com o Deus de Jesus. No

entanto, este dado interpela às várias expressões hodiernas da fé cristã a

procurarem se manter fiéis à imagem do Deus de Jesus não só para evitar as

representações deturpadas de Deus, mas, também, para colaborar com o

amadurecimento integral dos cristãos, pois qualquer imagem deformada do Deus

de Jesus pode provocar degradação humana; ou seja, pode fazer com que o ser

humano viva de modo infantil e desumano.

58 É mérito de Juan Luis Segundo ter apontado como idolatria a adoração das imagens de Deus que não correspondem à revelação. Cf. SEGUNDO, J.L. A nossa idéia de Deus. Loyola: São Paulo, 1975 (Coleção Teologia aberta para o leigo adulto, 3). MURAD, A. Este cristianismo inquieto. A fé cristã encarnada, em J.L. Segundo. São Paulo: Loyola, 1994 (Coleção Fé e Realidade, 33), p. 23-32.

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A segunda interpelação que o ateísmo humanista faz ao cristianismo atual

diz respeito à acusação de Feuerbach, Marx e Nietzsche de que a fé cristã faz com

que o cristão deprecie a sua vida, sua história, as relações sociais e algumas

dimensões de sua existência em detrimento da valorização de Deus, da vida eterna

e do céu. Segundo esses pensadores, os cristãos são pessoas desumanizadas

porque orientam sua atenção para uma vida fictícia, descuidando-se desta que é a

única existência. Em outros termos, denunciaram o dualismo entre Deus e o ser

humano supostamente presente no cristianismo.

De fato, ainda hoje é bastante forte o influxo desse dualismo em muitas

expressões cristãs. Ele pode ser percebido na valorização da oração em detrimento

da ação, das práticas religiosas em detrimento do compromisso transformador das

relações sociais, das mortificações e sacrifícios de cunho religioso em detrimento

de experiências lúdicas e prazerosas da vida. Além do mais, pode ser notado

quando determinadas experiências, próprias do ser humano, são consideradas

como pecados ou como agressões a Deus. Neste caso, o ser humano acaba se

mutilando, reprimindo ou depreciando dimensões fundamentais de sua vida

pensando que isso agrada a Deus.

Ora, a crítica do ateísmo humanista ao cristianismo de apregoar o dualismo

entre Deus e o ser humano interpela às múltiplas expressões da fé cristã a

superarem ou a não assumirem uma visão de depreciação do humano em função

da afirmação de Deus. Com efeito, a fé cristã, em seu núcleo originário, apresenta-

se como comunhão entre Deus e o ser humano e não como oposição entre eles. O

Deus de Jesus não se revela como Aquele que impõe ao homem a depreciação de

sua existência nem de algumas dimensões dela. Pelo contrário, é Aquele que, em

Jesus de Nazaré, assume integralmente a humanidade, a afirma e a desenvolve.

Por isso, qualquer visão ou atitude depreciativa desta existência em detrimento da

afirmação de Deus contraria a revelação de Deus em e por Jesus de Nazaré.

Uma outra interpelação à fé cristã surge da crítica de Marx. Este filósofo

concebeu o cristianismo como alienação e como ideologia a serviço da base

econômica. Afirmou que o cristianismo de sua época não passava de “ópio do

povo” e de ideologia a serviço do capitalismo. Esta crítica, embora se mostre

incorreta, apresenta-se como questionamento ao cristianismo contemporâneo. De

fato, a mensagem cristã pode ser utilizada para alienar as pessoas do compromisso

de transformação da sociedade, bem como pode ser utilizada, atualmente, a

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serviço da mentalidade mercantilista da lógica neoliberal. E é isso o que, de fato,

podemos constatar no cenário religioso atual. Há uma forte tendência à

privatização da fé promovida pela pregação de várias Igrejas, seitas ou

movimentos cristãos. A fé está se limitando ao âmbito da intimidade ou do

privado. A mensagem cristã é apresentada de forma light, isto é, não interpela o

cristão a uma práxis-social. Ela está sendo utilizada, com grande apelo ao

emocional, para anestesiar as consciências da dureza e das preocupações da vida,

bem como está sendo colocada a serviço da realização dos interesses financeiros e

dos anseios de prosperidade de não poucos cristãos. Isto mostra que a mensagem

cristã pode ser manipulada e utilizada para legitimar e justificar, por exemplo, a

lógica do consumo; do viver em função do ter; do individualismo exacerbado; da

indiferença frente às situações de miséria e injustiça.

Deste modo, a crítica de Marx interpela o cristianismo de hoje a se manter

fiel ao seu núcleo originário. Na verdade, a fé cristã, em seu fundamento, não é

alienante nem tampouco pode ser utilizada para legitimar e justificar os contra-

valores presentes numa cultura ou os interesses econômicos de grupos sociais.

Efetivamente, Jesus de Nazaré, por causa de sua experiência do Abbá, assumiu

uma práxis-social com a intenção de transformar as relações sociais de acordo

com a vontade de Deus. Por isso, não encontramos nele nenhuma atitude de fuga

ou de alienação social. Sendo assim, qualquer tentativa de utilizar a mensagem

cristã para alienar os cristãos de seu compromisso profético e de sua práxis-social

revela-se infiel e em contradição com o seu fundamento. E o mesmo pode-se dizer

da manipulação dessa mensagem para servir a interesses anti-evangélicos.

Tendo exposto tudo isso, fica claro, portanto, que as críticas do ateísmo

humanista de Feuerbach e dos “mestres da suspeitas” podem, sim, interpelar as

múltiplas expressões da fé cristã de hoje a se manterem fiéis ao seu núcleo

originário. Para deixar bem claro, devemos dizer que as três interpelações que

pontuamos foram as seguintes: 1) necessidade de não ceder à tentação da idolatria,

ou seja, não substituir o Deus de Jesus por representações deturpadas Dele; 2)

necessidade de superar o dualismo entre Deus e o ser humano; 3) não utilizar a

mensagem cristã como alienação da práxis-social nem como serviço aos interesses

contrários a ela. Tendo feito essa síntese, na subseção a seguir iremos pontuar as

interpelações ao cristianismo feitas pelo ateísmo humanista contemporâneo.

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7.2.2. As interpelações de Saramago, Onfray e Dawkins

As críticas à religião feitas por Saramago, Onfray e Dawkins não são

muito diferentes daquelas feitas por Feuerbach e os “mestres da suspeita”. Por

isso, suas interpelações ao cristianismo também não se apresentam muito

diferentes. Mesmo assim, tentemos pontuar algumas.

Uma que podemos expor é semelhante a uma daquelas que abstraímos do

ateísmo humanista anticristão de Feuerbach e dos “mestres da suspeita”. Diz

respeito à representação de Deus. Com efeito, Saramago, Onfray e Dawkins

consideram que Deus não passa de uma criação humana que se apresenta como

prejudicial à existência do homem. Para Saramago, Deus é uma idéia que se

impõe ao ser humano fazendo com que este desvalorize sua liberdade e sua vida.

Onfray concebe Deus como “pulsão de morte”, ou seja, como projeção das

negatividades humanas orientadas contra o próprio homem. Dawkins, por sua vez,

defende a idéia de que Deus não passa de um “delírio” ou de uma crença que se

sustenta mesmo diante de evidências científicas que a contradizem; e, além disso,

consiste numa crença que impede o progresso do ser humano, pois obstaculiza o

desenvolvimento das ciências. Evidentemente, estas visões questionam

diretamente o Deus cristão. Suscitam as seguintes perguntas: o Deus da fé cristã é

tudo isso que esses autores pensam? A idéia cristã de Deus desvaloriza a liberdade

e a vida de quem se relaciona com ela? É este Deus apenas negatividade? A fé em

Deus impõe depreciação do conhecimento científico? A resposta a essas

indagações é negativa. No entanto, é possível que determinadas representações de

Deus se enquadrem na acusação desses autores. De fato, existem imagens de Deus

que, por serem projeções da “pulsão de morte”, impedem os cristãos de

assumirem sua existência integralmente. É inegável que muitos deles tenham

abdicado de dimensões fundamentais da vida por causa de Deus. E é também

inegável que muitos outros tenham assumido uma postura de fundamentalismo

religioso ao ponto de não aceitarem qualquer outra explicação do mundo a não ser

aquela apresentada por uma leitura literalista da Bíblia.

Com efeito, esses autores, ao criticarem a imagem de Deus, interpelam a fé

cristã sobre o modo como esta o tem apresentado. Dito de outra forma, eles

interpelam o cristianismo atual, em suas várias expressões, a manter fidelidade ao

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Deus de Jesus, pois Este se revela a favor do ser humano e de sua realização

integral.

Além dessa interpelação, podemos abstrair outras da crítica ao cristianismo

feita por Saramago. Devemos dizer que este autor apresenta muitas interpelações,

porque a sua crítica se destina aos vários aspectos do cristianismo. Para ele,

conforme já visto, esta religião, em nome de Deus legitimou o desprezo deste

mundo, da sexualidade e do corpo; acentuou o valor do sofrimento e do sacrifício;

justificou as injustiças sociais; provocou a alienação social dos empobrecidos;

comercializou a fé explorando os devotos; promoveu conflitos sangrentos contra

os não-cristãos e dos cristãos entre si; e se pautou na teologia da satisfação

compensatória, que tende a ver a morte de Jesus como um evento planejado por

Deus com a finalidade de remir a humanidade do pecado original. De fato, estas

críticas interpelam o cristianismo, porque elas, embora sejam generalizações

equivocadas, têm algo a ver com a realidade. Ora, é inegável que tudo isso que o

escritor português pontua sobre o cristianismo não aconteça hoje ou que não tenha

acontecido no passado. Deste modo, essas críticas questionam profundamente o

cristianismo e o interpela a se manter fiel a Jesus Cristo. Certamente a fé cristã

precisa constantemente evitar pregações dualistas que acentuam a culpa no lugar

da experiência do perdão e do amor de Deus; necessita se fortalecer na relação

respeitosa entre os cristãos das várias Igrejas (diálogo ecumênico) e no diálogo

com as demais religiões (diálogo inter-religioso); necessita assumir corajosamente

a atitude profética de denúncia das injustiças e se colocar ao lado dos pobres para

defendê-los e libertá-los; necessita elaborar teologias que repensem as suas

verdades purificando-as de todo elemento negativo ou contrário à afirmação do

ser humano; necessita desenvolver uma moral capaz de auxiliar os cristãos a

viverem o valor da liberdade, da responsabilidade e da beleza da vida. Em outras

palavras, a fé cristã deve procurar resguardar o máximo de fidelidade possível ao

seu núcleo originário. Caso contrário, ela pode se expressar da forma negativa

como o autor português a percebeu.

Queremos destacar, aqui, especialmente, a interpelação que a visão crítica

de Saramago a respeito do cristianismo faz à pregação cristã no que diz respeito à

interpretação da morte de Jesus. Em O evangelho segundo Jesus Cristo, ele

apresenta uma história romanceada sobre a relação entre Jesus e Deus. Nesta

história, a vida de Jesus é lida a partir de uma equivocada compreensão da teoria

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da satisfação compensatória, elaborada por Santo Anselmo. De forma bastante

simplificada, esta teoria afirma que o ser humano, por ter cometido o pecado

original, ofendeu a honra de Deus e perturbou a ordem e a harmonia do mundo. E

Deus, para poder estabelecer o seu perdão e a reconciliação com o ser humano

pecador, necessitou que a sua honra fosse restabelecida por meio de uma

satisfação (ato reparador) realizada pelo ofensor. Mas o problema é que o ser

humano não podia realizar uma satisfação que fosse proporcional à grandeza da

ofensa cometida, pois como a honra de Deus é infinita, a satisfação também teria

que ter um valor infinito. Ora, uma satisfação de ordem infinita só poderia ser

realizada pelo próprio Deus. Assim, como o ser humano não poderia realizar essa

satisfação, o próprio Deus se encarnou e em Jesus, ao assumir voluntariamente a

morte de cruz, realizou a satisfação de valor infinito e, deste modo, efetuou a

nossa redenção ou a reconciliação com Deus59. Ora, é verdade que o pano de

fundo dessa teoria é o amor de Deus que gratuitamente se manifesta ao ser

humano para nos salvar. Todavia, ela, por ter sido má interpretada, levou à visão

de que toda a vida de Jesus estava orientada para a morte de cruz por causa da

vontade divina de redimir o ser humano pecador. Deste modo, a encarnação foi

entendida com a finalidade de Jesus morrer na cruz para nos salvar. Com efeito, a

reflexão teológica contemporânea, ao constatar o mal-estar e a visão deturpada de

Deus e de Jesus que essa teoria provoca, tem procurado explicitar o dado da

salvação, realizada por Jesus Cristo, não mais a partir da sua morte de cruz, mas a

partir do conjunto de toda a sua vida. Neste sentido, afirma que a salvação diz

respeito a toda vida de Jesus (vida, morte e ressurreição) e não apenas à sua

morte60.

O problema é que, embora a teologia tenha procurado superar essa

interpretação da realização da salvação pela morte sacrifical de Jesus, ela continua

bastante presente na pregação das Igrejas e na mentalidade de não poucos cristãos.

Ora, essa visão tira o sentido de toda atividade missionária de Jesus de Nazaré,

além, é claro, de apresentar Deus como sádico, a salvação como algo mágico e o

sofrimento como um valor. O fato é José Saramago, ao criar um romance a partir

da popularização da teoria anselmiana, questiona profundamente o modo como o

59 Cf. o excelente estudo sobre a “teoria da satisfação compensatória” de Santo Anselmo em SESBOÜÉ, B. Jesuscristo el único mediador, p. 351-382. 60 Cf. Ibid., p. 393-404; VARONE, F. Esse Deus que dizem amar o sofrimento. Aparecida: Santuário, 2001.

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cristianismo tem apresentado a figura de Jesus e de Deus e como tem interpretado

a salvação realizada por meio de Jesus. Diante do questionamento de Saramago, é,

certamente, necessário que a interpretação da salvação, como algo acontecido

unicamente pela morte de cruz de Jesus, seja superado nos discursos e pregações

das Igrejas e movimentos cristãos, como também na cabeça e do coração dos

cristãos61. Caso contrário, a imagem de um Deus sádico e a de um Jesus sem

liberdade também não poderão ser superadas. E, assim, se perpetuará um certo

mal estar em nossa relação estabelecida com Deus. Ele será visto e

experimentado, de certa maneira, como Alguém que se opõe a nós.

Tendo apresentado essas interpelações de Saramago, podemos apresentar

outras que surgem das críticas que Onfray e Dawkins fazem às religiões

monoteístas. Conforme já expusemos, estes autores criticam as religiões, porque

estas, segundo eles, estão em oposição à ciência. Dawkins critica, especialmente,

os cristãos fundamentalistas por fazerem uma leitura literal da Bíblia e por não

aceitarem os dados de pesquisas cientificas que contradizem o dado bíblico

naquilo que concerne à explicação sobre a origem do mundo, da vida e do ser

humano. Critica, portanto, aqueles que não concordam com a teoria da evolução

darwiniana, mas que defendem, propagam e ensinam o criacionismo bíblico.

Onfray, por sua vez, acusa as pessoas religiosas de não aceitarem outra visão do

mundo a não ser aquela que se encontra nos livros, considerados por elas, como

sagrados. E, assim como Dawkins, condena veementemente a leitura

fundamentalista desses livros. De fato, o fundamentalismo bíblico é algo que se

pode constatar em meios cristãos. Por isso, as considerações desses autores têm

certo sentido.

Ao acusarem as religiões de incitarem o fundamentalismo, Dawkins e

Onfray interpelam os cristãos a fazerem uma leitura correta da Palavra de Deus.

Isto quer dizer que os dados bíblicos não devem ser acolhidos como explicações

incontestáveis da existência humana e do mundo. Não podem ser confundidos

com as explicações científicas. Os dados bíblicos pertencem a um outro tipo de

saber ou conhecimento, o da fé. Por isso, devem ser acolhidos como mensagens

ou verdades de ordem teológica e não histórica ou científica. Por exemplo, os

relatos criacionais do livro de Gênesis (capítulos 1 e 2) não são descrições de

61 C. D. Morano considera os prejuízos que essa interpretação tem provocado na psicologia dos cristãos, cf. MORANO, C.D. Crer depois de Freud, p. 141-168.

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como teria acontecido o surgimento do universo e da vida. Não podem ser vistos

como explicações científicas. São relatos que transmitem uma verdade de fé que

não pode ser verificada pela ciência. E essa verdade de fé é a afirmação de que

Deus é a origem de tudo o que existe. Por isso, uma leitura correta da Bíblia, de

fato, se faz necessária para se evitar posições e posturas fundamentalistas.

E o mesmo vale para uma correta reflexão teológica. De certo modo,

Dawkins e Onfray interpelam a teologia a explicitar o dado da revelação

considerando as visões de mundo formuladas a partir do conhecimento científico.

Constatamos, infelizmente, que muitas explicitações da fé ainda se pautam numa

cosmologia e numa visão antropológica superadas. O que, com certeza, colabora

para um fundamentalismo doutrinário ou para cristalizações de explicitações da fé

que não comunicam mais nada. Com efeito, um grande desafio para a teologia é o

de explicitar as verdades de fé a partir das visões atuais de mundo e de ser

humano. Neste caso, é desafiadora para a teologia, especialmente a visão

evolucionista da vida. Não devemos esquecer que Dawkins critica os cristãos,

porque, para ele, estes não aceitam esta visão e se firmam no criacionismo. E, de

fato, embora a atual teologia da criação tenha buscado repensar-se a partir da

visão evolucionista, ainda é muito forte a fixação no criacionismo e numa visão

antropológica fixista E isso, tanto por parte de alguns teólogos como parte de não

poucos cristãos. Ora, embora alguns teólogos procurem avançar nas explicitações

da fé dialogando com os dados da ciência, muitos outros acabam tendo

dificuldades para superar uma leitura errônea ou fundamentalista da Bíblia e

acabam assumindo também um fundamentalismo teológico.

Neste sentido, o diálogo entre a teologia e a ciência aparece como uma

necessidade que se impõe aos dias de hoje. Caso contrário, a explicitação da fé

pela teologia não deixará de ser considerada, pelos cientistas não crentes, como

mitologia. Além do mais o diálogo faz-se necessário para que a teologia possa

mostrar-se plausível. E faz-se necessário, também, porque hoje, a partir da

percepção holística da vida e do mundo ou do paradigma da complexidade, se

constata que nenhum tipo de conhecimento pode dar conta de explicar toda a

realidade62. Por isso, entre os vários tipos de conhecimento deve haver uma

relação de complementaridade.

62 A respeito da urgente necessidade de diálogo entre a teologia e as ciências, cf. TEPEDINO, A.M. – ROCHA, A. (Orgs.). A teia do conhecimento. Fé, ciência e transdiciplinaridade. São Paulo:

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Deste modo, Dawkins e Onfray, com a crítica de que as religiões

apresentam-se fundamentalistas e em oposição ao conhecimento científico,

interpelam a teologia ao diálogo interdisciplinar e interpelam os cristãos à

superação do fundamentalismo bíblico ou à uma leitura correta da Bíblia levando

em conta os seus diversos gêneros literários e extraindo, a partir de uma correta

hermenêutica, a sua mensagem para os dias atuais.

Do que expusemos até aqui, fica claro, que as críticas ao cristianismo

feitas por Saramago, Onfray e Dawkins não deixam de apresentar algumas

interpelações às múltiplas expressões da fé cristã na atualidade. Nesta subseção,

destacamos, especialmente, quatro, a saber: 1) a necessidade de apresentar, de

diversos modos, o Deus da fé cristã não como oposição ao ser humano, mas como

Aquele que afirma e possibilita a vivência integral das nossas dimensões

constitutivas; 2) a necessidade de superar a interpretação equivocada da cruz de

Jesus como satisfação compensatória; 3) a necessidade da teologia estabelecer

diálogo interdisciplinar com as ciências; 4) e a necessidade dos cristãos superarem

o fundamentalismo bíblico assumindo uma leitura correta da Bíblia.

Todas essas interpelações que o ateísmo humanista, de ontem como o de

hoje, faz ao cristianismo podem ser sintetizadas numa só, a saber: a urgente

necessidade de efetivar uma verdadeira recriação do cristianismo, em todas as

suas expressões, a partir de seu núcleo originário que é o encontro com Jesus

Cristo. Acreditamos que é somente pela fidelidade a esse núcleo que o

cristianismo poderá apresentar-se como defensor do humano, bem como tornar-se

crível na atualidade. Caso contrário, as várias expressões cristãs poderão se

apresentar ambíguas e, assim, não colaborar para a afirmação do humano e a

maturidade integral daqueles que as assumem.

Na seção a seguir, queremos mostrar que a fé cristã, em seu núcleo

originário, não é ambígua, mas apenas afirmação e contribuição para a

humanização.

Paulinas, 2009; PETERS, T. – BENNETT, G. (Orgs.). Construindo pontes entre a ciência e a religião; LAMBERT, D. Ciências e teologia. Figuras de um diálogo. São Paulo: Loyola, 2002.

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7.3. A fé cristã como afirmação do humano e como humaniz ação Na primeira parte desta pesquisa apresentamos a visão do ateísmo

humanista que acusa à fé cristã de negar o humano em detrimento da afirmação de

Deus e de impedir a realização dos homens e mulheres. Já nos capítulos quatro,

cinco e seis expusemos a visão de três teólogos com a intenção de demonstrar que

a fé cristã, fundada na revelação de Deus em e por Jesus de Nazaré, se mostra

como afirmação e como possibilidade para que o ser humano possa humanizar-se.

Entretanto, até agora, não mostramos claramente como a fé cristã afirma o ser

humano e nem demonstramos como ela pode colaborar com a humanização do

cristão. E, além disso, ainda não falamos o que podemos entender por

humanização na perspectiva cristã. Sendo assim, tentaremos, nesta seção,

apresentar esses elementos que estão faltando em nossa reflexão. Devemos

lembrar que esse itinerário a ser percorrido será pautado na reflexão teológica de

Torres Queiruga, Sobrino e Morano. Ou seja, vamos retomar alguns dados da

teologia desses autores para fundamentar, de modo bastante sintético, essas

questões que nos propomos tratar. Vamos começar com a tentativa de apresentar a

fé cristã, em seu núcleo originário, como afirmação do humano.

A exposição da reflexão de Queiruga, Sobrino e Morano nos permitiram

constatar que o cristianismo, em seu fundamento, não apresenta nenhum elemento

de depreciação ou de negação do ser humano em detrimento da afirmação de

Deus. Pelo contrário, na revelação de Deus em e por Jesus de Nazaré,

encontramos o ser humano afirmado e desenvolvido em sua humanidade. E, isso

porque em Jesus nos deparamos com o humano assumido por Deus e o divino

assumido pelo humano. Para deixar isso mais claro, ou seja, para mostrar que o

cristianismo, em seu núcleo, se configura, de verdade, como afirmação e

desenvolvimento do humano, vamos apresentar alguns pontos, extraídos das

exposições anteriores, que podem comprovam essa tese.

O primeiro ponto diz respeito à revelação de Deus na humanidade de

Jesus. Torres Queiruga, conforme já vimos, enfatiza que a humanidade de Jesus

de Nazaré é o lugar da revelação de Deus63. Isto significa dizer que Deus não

negou a nossa humanidade com a encarnação, mas a assumiu totalmente. E

63 Cf. Intra, p. 196-203; TORRES QUEIRUGA, A. O mistério de Jesus o Cristo: divindade “na” humanidade. In: Concilium, 326/3, (2008), p. 33-44; Id. Repensar a cristologia, p. 173-206.

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significa dizer, também, que ele não se fez um ser humano diferente de nós. A

única diferença que podemos apresentar entre a humanidade de Jesus e a nossa,

segundo Queiruga, é que ele norteou a sua vida pela experiência de Deus, do

Abbá, e viveu incondicionalmente a partir Dele. Ora, ao viver assim, Jesus não

teria renunciado em nada a sua humanidade. Pelo contrário, teria vivido-a

plenamente. Por conta disso, podemos dizer que ele não nos revela apenas Deus,

mas também a identidade do ser humano. Jesus é verdadeiramente homem e

verdadeiramente Deus.

O segundo ponto é que Jesus de Nazaré, tal como vimos na teologia de

Torres Queiruga e de Sobrino64, nos revela, ao assumir e purificar as várias

tradições do Antigo Testamento a respeito de Deus e mediante sua experiência de

fé, que Deus é Abbá, um Amor envolvente que se oferece a todos gratuitamente

como salvação, especialmente aos pobres; Alguém em que se pode confiar por ser

Bom; Mistério não manipulável; Aquele que se opõe frontalmente à realidade do

mal. Com efeito, o Deus, para o qual Jesus orientou sua existência e o qual nos

revelou, não aparece como inimigo das realizações humanas, mas, sim, como

Aquele deseja a vida dos homens.

O terceiro ponto é que Jesus, conforme vimos na exposição da teologia de

Sobrino65, não apenas falou de Deus, mas o mostrou com as suas ações. Toda a

sua existência terrena foi a de colocar-se a serviço do anúncio da proximidade do

Reino de Deus na promoção da vida dos pobres e dos pecadores. Em outras

palavras, Jesus pôs-se a realizar o Reino; a manifestar a bondade e o amor

salvífico de Deus. Efetivamente, nas ações de Jesus a ação de Deus em favor dos

homens se concretizou. Ora, se Deus não fosse afirmação do humano, não

teríamos tantos sinais de vida e de salvação sendo realizados por Jesus.

O quarto ponto, relacionado ao terceiro, diz respeito ao compromisso de

Jesus com o Reino de Deus. Este compromisso revela que a experiência de Deus

não aliena da práxis-social. Jesus assumiu, tal como já visto, a luta constante

contra o mal presente na vida das pessoas e presente nas relações sociais, porque

se sentia motivado a realizá-la por causa de sua experiência do Abbá. Ora, levando

isso em conta podemos dizer que a abertura para Deus, assim como Jesus a viveu,

não distancia a pessoa do compromisso pela luta contra o anti-reino presente nas

64 Cf. Intra, p. 203-208 e 277-278. 65 Cf. Intra, p. 267-276.

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estruturas sociais. Pelo contrário, a desperta para o empenho transformador da

sociedade.

O quinto ponto é que a experiência que Jesus teve de Deus como Abbá não

suprimiu a sua liberdade. Pelo contrário, por causa de sua experiência de fé, Jesus

se mostrou extremamente livre para anunciar e realizar o Reino, ou seja, para

fazer o bem. Prova disso, é que ele não se limitou a agir somente em

conformidade com as regras da religião e da Lei, nem agiu de acordo com os

interesses de grupos religiosos e políticos. Devemos ainda dizer que Jesus fez a

opção por viver orientado para Deus por livre escolha. Não devemos imaginar que

o Pai tivesse se imposto a Jesus tirando-lhe a liberdade. Sobrino nos lembra, nesse

sentido, que Jesus assumiu a disponibilidade para o Pai no exercício de sua

liberdade66. Ele se deixou conduzir pelo Pai. Deste modo, Deus, para Jesus, não

foi uma imposição nem supressão de sua liberdade, mas, uma escolha livre que

potencializou ainda mais a sua liberdade ativada para o bem.

O sexto ponto diz respeito à maturidade psicológica de Jesus. Os

evangelhos mostram que Jesus revelou uma personalidade bastante amadurecida.

Ele foi capaz de romper os tabus e vencer todo legalismo. Identificou-se

totalmente com a realidade de sua missão. Foi extremamente coerente com o que

pregou e o que praticou. Não foi egoísta ou narcisista, mas revelou-se como

homem para os outros. Sua personalidade não se apresentou autoritária, no sentido

de impor o poder para dominar os outros. Foi decididamente livre, a ponto de

criticar os poderes político e religioso. E foi desconcertantemente terno, acolhedor

e misericordioso. Ora, isto mostra que a relação de Jesus com Deus apresentou-se,

para ele, como crescimento em maturidade psicológica. E mostra também que o

Deus com que Jesus se relacionou não foi uma representação psicológica das

figuras parentais motivada pelo sentimento infantil de onipotência. Com efeito, se

Jesus tivesse criado sua representação de Deus a partir das figuras parentais esse

Deus se caracterizaria como onipotente, onisciente, repressor da sexualidade,

colérico e vingativo. O fato é que o Deus de Jesus se revela completamente

diferente e oposto ao Deus que pode ser construído psicologicamente a partir das

figuras parentais. O Deus de Jesus, tal como apresentamos no capítulo anterior67,

é Aquele que orientou Jesus para agir no mundo e assumir os desafios da missão;

66 Cf. Intra, p. 282-284; SOBRINO, J. Jesus, o libertador, p. 219-230. 67 Cf. Intra, p. 359-370.

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Aquele que respeita os mistérios da vida e do mundo; e Aquele que se preocupa

com a realização integral do ser humano. Desta maneira, o Deus que Jesus

experimentou nos revela também a sua maturidade. Ele acolheu em sua vida o

Outro que o fez maduro ou adulto psicologicamente.

O sétimo ponto está ligado ao fato da morte de Jesus. Ao contrário do que

afirma a teoria da “satisfação compensatória”, Jesus, conforme vimos na

exposição da teologia de Sobrino e de Queiruga68, morreu por causa de sua

atividade profética relacionada diretamente ao anúncio do Reino e à sua

experiência de Deus. Com efeito, ele foi vítima da injustiça cometida pelos

representantes das autoridades religiosa e política. Ora, a análise histórica da

morte de Jesus desmistifica aquela visão que apresenta Deus como o responsável

pelo acontecimento da cruz, pois Jesus não foi conduzido à morte por Deus. Deus

não pode ser acusado de negar a vida de Jesus ou de oferecê-lo em sacrifício. De

fato, se assim fosse, Deus poderia ser taxado de inimigo da vida humana. Mas a

teologia da cruz nos afirma o contrário. Na cruz, Deus se solidariza,

profundamente, com o ser humano, visto que Ele faz, em Jesus de Nazaré, a

experiência da morte. Desta maneira, a morte de Jesus é a maior expressão de

solidariedade de Deus conosco e não o contrário. Torres Queiruga, conforme já

expusemos, nos fala que na morte de Jesus, Deus faz a experiência da “mordedura

do mal” para vencê-lo definitivamente.

O oitavo ponto é o da ressurreição de Jesus. Sobrino e Queiruga afirmam,

conforme já visto69, que a ressurreição é a vitória do Crucificado, garantida por

Deus, sobre a injustiça cometida contra ele ou sobre o poder do mal. Ora, na

ressurreição de Jesus, Deus se revela como o Deus da Vida; como Aquele que está

com o ser humano não para negar sua existência, mas para promovê-la

intensamente. A ressurreição é prova de que Deus não quer nem permite o mal. É

prova de que Ele quer que o vençamos. Além disso, devemos dizer que a

ressurreição de Jesus nos interpela para o compromisso de fazer com que a vida

seja promovida em meio a tantos sinais de morte. Sendo assim, a mensagem da

ressurreição é força de libertação e convite para que ajudemos, nos termos de

Sobrino, a “descer da cruz os povos crucificados”.

68 Cf. Intra, p. 246-251 e 290-295. 69 Cf. Intra, p. 248-251 e 304-317.

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Estes oito pontos que apresentamos parece-nos suficiente para poder

mostrar que a fé cristã, em seu núcleo originário, se apresenta como afirmação do

ser humano, visto que na revelação de Deus em e por Jesus de Nazaré se realiza a

relação integradora e respeitosa de Deus com o ser humano e do ser humano com

Deus. Na relação de Jesus com Deus, todas as dimensões da sua existência são

valorizadas. Não há nada na vida e na personalidade de Jesus que seja

menosprezado ou depreciado por ele por causa de sua experiência de Deus. Jesus

revela-se um ser humano integrado, realizado, maduro em sua relação com o

Abbá. Desta maneira, podemos de dizer que toda a experiência autenticamente

cristã se releva não como anulação, repressão, depreciação dos elementos

positivos de nossa vida, mas, sim, como integração e desenvolvimento destes.

Nesse sentido, trata-se de uma experiência que colabora para que o ser humano

possa humanizar-se.

Mas como a fé cristã pode colaborar para a humanização? Para responder a

esta questão, é necessário, em primeiro lugar, dizer o que a perspectiva cristã

entende por ser humano, pois a humanização nada mais é do que constituir ou

desenvolver o ser humano. É o processo de tornar-se humano. Ora, a teologia

cristã, ancorada no dado bíblico, desenvolveu a visão do ser humano como

pessoa70. De modo bastante simplificado, podemos dizer que o ser humano é

pessoa porque é um ser único, um ser individual (distinto das outras realidades e

dos outros seres humanos) portador de autonomia, liberdade, responsabilidade,

perseidade (dimensões de imanência) e com capacidade de estabelecer relações

com a alteridade (dimensões de transcendência)71. Com efeito, a humanização diz

respeito ao desenvolvimento integrado das dimensões de imanência e das de

transcendência. Ou seja, significa desenvolver, de modo articulado, a liberdade, a

responsabilidade, a perseidade com a sua abertura relacional com a alteridade

(outras pessoas, mundo, Deus). Em outros termos, humanização é personalização.

É o desenvolvimento do ser pessoal. Efetivamente, a fé cristã se mostra

humanizante quando respeita a dignidade pessoal do ser humano e quando o ajuda

a desenvolver suas dimensões.

70 Cf. RUBIO, A.G. Unidade na pluralidade, p. 304-307. 71 Cf. Ibid., p. 307-313; Elementos de antropologia teológica. Salvação cristã: salvos de quê e para quê? Petrópolis: Vozes, 2004, p. 109-113.

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Devemos dizer que em Jesus de Nazaré encontramos um ser humano que

desenvolveu de forma madura as dimensões do seu ser pessoal: um ser humano

verdadeiramente humanizado. Pois, ele vivenciou, a partir de sua liberdade e em

coerência com a sua vida interior, a abertura constante a Deus, como fundamento

de sua vida, e se relacionou de modo extremamente solidário e solícito com os

homens, especialmente os pobres, além de ter respeitado profundamente o mundo

da natureza, como criação de Deus. Em outras palavras, encontramos em Jesus

uma pessoa bem madura, comprometida e livre. Alguém que fez uma experiência

profunda de encontro com Deus e que expressou em sua vida o amor

incondicional de Deus pelo ser humano.

Ora, a fé cristã deve auxiliar os cristãos a se pautarem na humanização de

Jesus, ou seja, a configurarem a sua vida à luz da vida dele. Lembrando Sobrino, a

humanização do cristão está relacionada ao seguimento de Jesus. Quanto mais um

cristão procurar fazer a experiência do Deus de Jesus, do compromisso solidário

que o próprio Jesus realizou, mais humanizado se torna. Por isso, o cristão é

convidado a ser humano como Jesus de Nazaré. E as instituições que representam

o cristianismo ou as suas várias expressões devem possibilitar essa experiência.

Quando isso não ocorre, o risco da superficialidade ou da incoerência na vivência

da fé compromete o ser cristão, justifica negativamente o próprio cristianismo e

legitima a deturpação do evangelho. Daí o sentido e a pertinência da crítica, feita

pelo ateísmo, ao cristianismo deste se apresentar como desumanizante.

Mas como a fé cristã pode colaborar, concretamente, para que o cristão

possa se humanizar à luz de Jesus de Nazaré? A resposta não é simples, porque o

cristianismo é bastante plural. Por isso, não nos é possível apresentar pistas

concretas para todas as expressões cristãs. Entretanto, podemos apresentar com

muita simplicidade algumas que são bastantes gerais.

1. Pautar a pregação ou a catequese sobre o Deus de Jesus. Constatamos

que em muitos discursos cristãos, o Deus de Jesus, frequentemente, não é

pregado. É pregado, sim, o Deus da prosperidade, dos milagres, das soluções

mágicas para os problemas, do castigo, das emoções fortes etc. O problema é que

outras imagens de Deus podem fazer com que os cristãos não cresçam em

maturidade. Podem legitimar o individualismo, a alienação social, a fuga da

realidade. Podem mobilizar os sentimentos de culpabilidade mórbida. Por isso, é

indispensável a substituição na catequese e nas pregações das Igrejas dessas

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imagens de Deus pela fidelidade ao Deus revelado em e por Jesus. Com efeito, o

Deus de Jesus interpela os cristãos à solidariedade, ao compromisso com o outro

em nível macro e micro social, à comunhão fraternal e a encarar os desafios com

lucidez e coragem.

2. Buscar recuperar, também, na catequese e nas pregações o Jesus

histórico, sem se descuidar do Cristo da fé. Certamente, a pregação de uma

imagem de Jesus sem relação com a sua vida e sua história deixam os cristãos sem

um referencial para suas opções, atitudes e comportamentos. Não podemos

esquecer que a experiência cristã é, acima de tudo, continuar em nossa vida a

práxis de Jesus, norteado pelo seu Espírito. Ora, sem o referencial histórico de

Jesus de Nazaré, a fé cristã pode se colocada a serviço da alienação e da

perpetuação do infantilismo psicológico de não poucos cristãos.

3. Realizar a liturgia, celebrações ou cultos como expressões da

comunitariedade e como interpelações à vivência do evangelho no dia-a-dia.

Devemos dizer que a celebração da fé vista apenas como obrigação religiosa ou

como ritos mágicos não colabora em nada para que o cristão faça a experiência

humanizante de encontro com Jesus. A liturgia deve animar o cristão ao

seguimento, isto é, à configuração de sua vida a de Jesus.

4. Enfatizar nas pregações e nas liturgias a experiência do amor e da

salvação de Deus, ao invés de se acentuar nossa condição de pecadores. Ora, os

discursos que acentuam o pecado despertam à culpabilidade. São prejudiciais à

nossa psicologia e perpetuam a situação edipiana, mas, por outro lado, a

acentuação do amor divino nos liberta da culpa.

5. Repensar as verdades da fé ou os dados da revelação de acordo com as

nossas atuais visões de mundo e de ser humano, resguardando fidelidade à

verdade de que Deus é Amor. Ora, a teologia deve procurar, constantemente,

reler, interpretar e explicitar a fé de modo que apresente Deus não como inimigo

das realizações humanas, mas como o Criador-Salvador que está sempre

fundamentando a nossa vida e nos conduzindo, com interpelação constante à

nossa liberdade, a nossa realização humana.

Poderíamos apresentar muitas outras pistas, mas acreditamos que essas,

embora sendo bastantes gerais, nos ajudam a perceber que o cristianismo possui

um grande potencial humanizador quando se mantém fiel à revelação de Deus em

e por Jesus de Nazaré.

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Para finalizar, queremos ressaltar que a proposta de humanização da fé

cristã é superior à proposta do ateísmo humanista. E isso, pelos seguintes motivos:

1) Dá mais valor ao ser humano, porque não o reduz apenas a um âmbito de seu

existir. Quando a fé cristã fala de humanização diz respeito ao desenvolvimento

integrado de todas as dimensões do ser humano à luz de Jesus de Nazaré. Sua

proposta não é reducionista. Com efeito, a proposta do ateísmo não leva em

consideração o ser humano na sua integralidade, mas busca afirmar apenas uma

dimensão sua. A proposta de Feuerbach valoriza a coletividade em detrimento do

indivíduo; a de Marx, as relações sociais, em detrimento, também, do individual; a

de Nietzsche, o indivíduo em detrimento das relações comunitárias e

comunionais; a de Freud, de Onfray e de Dawkins, a razão (ciência) em

detrimento das outras dimensões.

2) A humanização, proposta pela fé cristã, é algo que pode ser vivenciado pelos

homens e mulheres no tempo presente. Não é necessário esperar mudanças

estruturais ou culturais para que ela aconteça. Basta a pessoa assumir em sua vida

o dinamismo constante de abertura ao Deus de Jesus, trabalhando a integração das

dimensões de sua existência e dialogando respeitosamente com os outros e com o

mundo da natureza. Em outros termos, basta assumir, livremente, o seguimento de

Jesus de Nazaré. Já proposta de humanização do ateísmo é algo impossível de se

realizar no momento. Na verdade, ela supõe mudanças e transformações sócio-

culturais. Deste modo, a proposta cristã se apresenta mais viável e efetiva do que a

do ateísmo.

De tudo o que foi dito, podemos afirmar que o cristianismo não contraria

os anseios humanistas do ateísmo. Pelo contrário, a proposta de humanização que

se fundamenta em Jesus de Nazaré realiza esses anseios e, até, os supera. Desta

maneira, o cristianismo pode contribuir com o ateísmo humanista enriquecendo a

sua proposta. Porém isso só pode acontecer se houver, logicamente, diálogo por

parte dessa vertente do ateísmo com o cristianismo.

Conclusão

Neste capítulo tentamos estabelecer um diálogo respeitoso do cristianismo

com o ateísmo. Por isso, procuramos, em primeiro lugar, criticar as visões

negativas e depreciativas, concernentes ao cristianismo, de vários representes do

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ateísmo humanista. Ao tecer essas críticas pudemos perceber que as acusações ou

as objeções feitas pelo ateísmo, embora possam ser aplicadas ao cristianismo, são

questionáveis. Com efeito, não são concepções válidas ou aceitas completamente.

Vimos que todas elas apresentam falhas, pois se baseiam em postulados não

comprovados, além de se mostrarem reducionistas, preconceituosas,

generalizantes e arbitrárias. Ademais, pudemos constatar que as suas propostas de

maturação do homem ou de humanização são inviáveis historicamente e se

mostram desumanas, pois afirmam uma dimensão do humano às custas de outras.

Num segundo momento, procuramos acolher alguns questionamentos que

o ateísmo faz ao cristianismo. Observamos que, de fato, muitas críticas se aplicam

as expressões da fé cristã. Por isso, tentamos destacar algumas interpelações que

podem colaborar para que o cristianismo possa ser mais fiel a seu fundamento. Do

ateísmo de Feuerbach e dos “mestres da suspeita”, conseguimos abstrair três

interpelações, a saber: superar imagens distorcidas e deturpadas de Deus; procurar

apresentar Deus apenas como positividade para o ser humano; e não manipular a

mensagem cristã em função de ideologias ou para servir de legitimação aos

interesses de grupos sociais ou aos contra-valores presentes na cultura. Já do

ateísmo contemporâneo de Saramago, Onfray e Dawkins pudemos elencar quatro

interpelações ao cristianismo, a saber: ser fiel a imagem do Deus de Jesus;

interpretar corretamente a morte de Jesus não como conseqüência de um desígnio

de Deus, mas como conseqüência de sua vida missionária em função do anúncio

do Reino e de sua atividade profética; refletir teologicamente respeitando as atuais

visões cosmológicas e antropológicas e dialogando com os vários campos de

saber, especialmente o científico; superar o fundamentalismo bíblico mediante

uma leitura correta da Palavra de Deus.

Em seguida, tentamos, de modo bastante limitado, fundamentar, a partir do

aporte concedido pela reflexão teológica de Torres Queiruga, Sobrino e Morano, o

cristianismo como afirmação e possibilidade de desenvolver as potencialidades do

ser humano. Constatamos que o que garante que o cristianismo seja visto como

humanizador é o seu núcleo originário, ou seja, a revelação de Deus em e por

Jesus de Nazaré. Com efeito, vimos que em Jesus de Nazaré, Deus e o ser humano

se encontram numa relação fecunda de afirmação, pois em sua experiência de

Deus, Jesus se revela livre, maduro, extremamente comprometido com a

promoção da vida dos pobres e pecadores e corajoso para denunciar e combater as

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injustiças. E, além disso, Jesus revela a imagem de um Deus amoroso em ação;

um Deus comprometido com a salvação histórica daqueles que sofrem e são

vitimados pelas injustiças sociais. Assim, pudemos constatar que Jesus, pela

forma como viveu a sua relação com Deus e com os outros, se apresenta como o

modelo de ser humano humanizado.

Por fim, conseguimos demonstrar que o cristianismo se configura como

humanizador quando permite que os cristãos, fazendo a experiência do Deus

Abbá, se deixem nortear pela existência de Jesus de Nazaré. Deste modo,

mostramos que os cristãos podem vivenciar o processo de humanização quando, à

luz de Jesus, integram as dimensões do seu ser pessoa, estabelecendo relações

respeitosas e dialógicas com o próprio Deus, com os outros homens e com o

mundo da natureza. Sendo assim, conseguimos mostrar que a proposta de

humanização do cristianismo se mostra coerente. E isto por dois motivos.

Primeiro, porque ela realiza a integralidade das dimensões próprias do ser humano

pluridimensional. Não é, portanto, uma proposta que afirma algumas dimensões

em detrimento de outras. Ela não mutila o ser humano. E o segundo motivo é que

ela pode ser vivenciada, como processo constante, no momento de vida de cada

um. Por isso, a conclusão a que chegamos ao fim deste capítulo é a de que o

cristianismo se revela muito mais humanizador que as propostas humanizadoras

do ateísmo humanista. E, por conta disso, ele pode servir de inspiração para

enriquecer as propostas de humanização do ateísmo, desde que este se abra ao

diálogo fecundo com a fé cristã. Deste modo, enquanto o ateísmo interpela o

cristianismo, este pode interpelar aquele. E enquanto o ateísmo pode colaborar

para purificar o cristianismo, este também pode purificar e enriquecer aquele no

que concerne à sua proposta de valorização e promoção do ser humano.

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Conclusão Geral Tendo chegado ao fim desta pesquisa, se faz necessário, antes de

expormos algumas conclusões, apresentar qual foi o itinerário que percorremos.

Devemos dizer, em primeiro lugar, que o nosso objetivo foi o de investigar uma

hipótese que pode ser formulada do seguinte modo: o cristianismo ou a fé cristã se

constitui como negação do humano em detrimento da afirmação de Deus, tal

como o ateísmo humanista anticristão assevera? Ou, expressa de modo contrário:

o cristianismo contribui, contrariando a acusação do ateísmo humanista, para que

os cristãos possam desenvolver suas potencialidades como ser humano? Tentamos

defender a tese de que o cristianismo se apresenta como um potencial capaz de

colaborar para que o cristão possa desenvolver a humanização.

Para investigar a nossa hipótese e para defender nossa tese, dividimos esta

pesquisa em duas partes. Na primeira, intitulada “A concepção de religião

segundo o ateísmo humanista anticristão e suas críticas ao cristianismo”,

apresentamos, como o próprio título da referida parte indica, a visão crítica que os

grandes expoentes do ateísmo tiveram a respeito da religião, especialmente do

cristianismo. Dividimos essa parte em três capítulos. No primeiro, vimos que o

ateísmo sistematizado contra a religião surge da oposição cerrada entre o

cristianismo e a modernidade, e vimos, também, com a exposição do pensamento

de Feuerbach, que, para este, a religião aliena o ser humano de sua existência e da

sua capacidade de reconhecer os valores do conjunto da humanidade. No segundo

capítulo, analisamos as críticas feitas à religião pelos “mestres da suspeita” (Marx,

Nietzsche e Freud). Constatamos que cada um deles apresenta uma visão muito

negativa do cristianismo. Marx o acusa de ser alienação e ideologia. Nietzsche o

condena por vê-lo como o responsável de perpetuar na civilização ocidental a

metafísica platônica. Freud o considera como neurose e ilusão. No terceiro

capítulo, expusemos a visão crítica do ateísmo contemporâneo às religiões.

Demos destaque a três autores: Saramago, Onfray e Dawkins. Vimos que, para

Saramago, o cristianismo é uma “maldição” presente na história, porque ele

valoriza tudo aquilo que se opõe à vida. Já ao estudar a visão de Onfray a respeito

da religião, notamos que, para ele, esta é “pulsão de morte”, ou seja, forças

destruidoras do ser humano orientadas contra ele mesmo. E vimos, ainda, que,

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para Dawkins, a religião, por causa de seu fundamentalismo e oposição à ciência,

impede o progresso do ser humano. Vimos, portanto, que o ateísmo humanista

acusa o cristianismo de se opor à afirmação do humano e de obstaculizar a sua

realização enquanto tal.

Na segunda parte, intitulada “O cristianismo como afirmação e

desenvolvimento integral do humano”, intentamos mostrar que o cristianismo,

pelo menos em seu fundamento ou núcleo originário, é humanizador. Para isso,

recorremos à reflexão teológica de três autores, a saber: Andrés Torres Queiruga,

Jon Sobrino e Carlos Domínguez Morano. Com o primeiro, no capítulo quatro,

procuramos deixar claro que o Deus, professado pela fé cristã, é visto somente

como positividade para o homem, inclusive quando se procura responder sobre a

realidade do mal e do sofrimento que afetam o ser humano. Com o segundo, no

capítulo cinco, demonstramos que Jesus de Nazaré, por causa de sua missão de

anunciar o Reino de Deus, se apresentou como agente de uma práxis

transformadora das relações sociais. E, com Morano, no capítulo seis, mostramos

que a experiência do Deus de Jesus colabora para que o cristão possa alçar a sua

maioridade psicológica. Portanto, com cada um desses autores, tentamos expor

duas coisas. A primeira é que o Deus da fé cristã não pode ser visto, em hipótese

alguma, como negação do humano, mas somente como sua afirmação. E a

segunda é que Jesus de Nazaré se revela, em sua experiência de fé, como o ser

humano completo ou humanizado, pois ele se mostra maduro em sua estrutura

psicológica e completamente comprometido com a vida, com a história e com a

transformação das relações sociais com a intenção de realizar o Reino.

No último capítulo tentamos estabelecer um diálogo do cristianismo com o

ateísmo. Procuramos desenvolver três coisas, a saber: uma avaliação crítica do

pensamento ateu a respeito da religião; o destaque de algumas interpelações do

ateísmo ao cristianismo; e, por fim, a fundamentação do cristianismo como

afirmação do ser humano e como humanização.

Ao fazer a avaliação crítica do ateísmo, constatamos que suas críticas ao

cristianismo são, parcialmente, descabidas, pois se apresentam postulatórias,

equivocadas, generalizantes, preconceituosas e como extrapolações. Já ao acolher

algumas interpelações do ateísmo à fé cristã, pudemos ver que o cristianismo

pode, de fato, apresentar-se, em suas múltiplas expressões, como desumanizador,

pois ele pode fazer com que os cristãos neguem algumas dimensões de sua

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existência em função de outras, bem como pode levá-los a assumir a alienação do

compromisso transformador da sociedade e a perpetuação do infantilismo. Neste

caso, as críticas dos ateus têm, de certo modo, pertinência. Já ao tentarmos

fundamentar o cristianismo, a partir da reflexão teológica de Torres Queiruga,

Sobrino e Morano, como afirmação do humano e como humanização dos cristãos,

vimos que, de fato, o núcleo da fé cristã é humanizante, porque nele encontramos

Jesus de Nazaré e sua relação profunda e respeitosa com Deus, com as demais

pessoas e com o mundo da natureza.

Deste modo, todo o trajeto que percorremos, ao longo da pesquisa, nos

ajudou a ver que o cristianismo é uma realidade ambígua, visto que pode se

apresentar, em suas múltiplas expressões, como algo negativo para a constituição

psicológica do ser humano e para o seu amadurecimento. Mas, também, pudemos

notar que ele é, em seu núcleo originário, ou seja, na revelação de Deus em e por

Jesus de Nazaré, algo positivo para a afirmação do humano e para o seu

amadurecimento.

Sendo assim, aquela pergunta formulada como nossa hipótese principal

encontra uma resposta ambígua, pois o ateísmo, em sua crítica ao cristianismo,

tem certa razão. Tem razão, porque o cristianismo ao ser infiel ao seu núcleo

originário, isto é, a revelação de Deus em e por Jesus de Nazaré, pode se constituir

prejudicial ao desenvolvimento de uma personalidade madura. Mas, o ateísmo não

tem razão, quanto ao fundamento do cristianismo, pois, este se apresenta como

potencial humanizador dos cristãos.

Ora, a tese que procuramos defender foi a de que o cristianismo, ao

contrário do que afirma o ateísmo humanista, é humanizante para os cristãos. E,

assim, chegamos à conclusão de que a fé cristã é humanizadora por causa da

revelação em e por Jesus de Nazaré. Em Jesus, Deus se revela em união profunda

com o humano e o humano se apresenta orientado, completamente, para Deus.

Nessa relação acontece uma integração do humano e do divino. Não há oposição

entre eles. Desta maneira, o fundamento do cristianismo é afirmação do humano

por Deus e afirmação de Deus pelo humano. Ademais, Jesus revela-se como o ser

humano maduro e humanizado, pois assume uma existência autêntica de

valorização e integração das várias dimensões do ser humano, numa abertura,

livre, para o estabelecimento de relações dialógicas com Deus, com os outros

homens e com o mundo da natureza. Ora, em Jesus, portanto, o cristianismo

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encontra a possibilidade de se configurar como afirmação e desenvolvimento do

humano.

O cristianismo, fiel ao seu fundamento, pode colaborar para que os cristãos

sejam pessoas maduras desde que os ajudem a vivenciar em suas vidas o caminho

percorrido por Jesus, a saber: viver pautado, livre e responsavelmente, pela

confiança e obediência ao Deus Abbá, no compromisso solidário com os outros e

com o mundo da natureza. Daí que o cristianismo se encontra diante de um

desafio constante: manter-se fiel a Jesus para não se tornar desumanizante. Por

isso, ele precisa sempre estar se recriando a partir de sua identidade fundamental.

Quando o cristianismo possibilita aos cristãos a experiência de encontro

com Jesus e com o seu Abbá, ele se apresenta como um caminho de humanização

maior que qualquer outra proposta humanista. Daí que é possível estabelecer um

diálogo fecundo com o ateísmo. Este pode colaborar para purificar o cristianismo

de suas deformações e infidelidades a seu núcleo originário. E o cristianismo, por

sua vez, pode colaborar com o ateísmo, se este se abrir ao diálogo, enriquecendo o

seu humanismo que se apresenta reducionista. Na verdade, ateísmo e cristianismo

não se contradizem, mas se complementam, pois ambos procuram defender o

valor e a dignidade do ser humano e se empenham pelo seu amadurecimento e

realização. Sendo assim, o estabelecimento fecundo de um diálogo respeitoso

entre cristianismo e ateísmo, certamente, seria muito valioso para propor

caminhos de humanização ao homem ocidental. Dessa maneira, o desafio está

lançado e a tarefa apenas começando.

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