Tese de Mestrado Do Mestre Tomas Bernardino

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Implementação da actual legislação moçambicana de terras nos primeiros 10 anos INDICE INTRODUÇÃO.........................................................1 Razão da escolha do tema e sua pertinência.......................3 Metodologia usada................................................ 4 Objecto de estudo................................................ 6 Razão de escolha do objecto de estudo............................6 Caracterização da Província de Maputo............................7 Plano de dissertação............................................. 9 CAPÍTULO I........................................................12 PROPRIEDADE DA TERRA NO ZIMBABWE, ÁFRICA DO SUL, ANGOLA E GUINÉ- BISSAU............................................................12 1. Direito á terra no Zimbabwe.................................13 2. direito á Terra na República da África do Sul................16 3. Direito á terra na República de Angola.......................21 4. Direito á terra na Guiné Bissau..............................27 CAPÍTULO II.......................................................33 O DIREITO Á TERRA EM MOÇAMBIQUE ANTES DA INDEPENDÊNCIA............33 1. Prazos da coroa portuguesa...................................34 2. As companhias majestáticas...................................38 3. O direito á terra em Moçambique em 1975, data da proclamação da independência................................................... 45 CAPÍTULO III......................................................51 INFLUÊNCIAS HISTÓRICAS FUNDAMENTAIS NO DIREITO Á TERRA EM MOÇAMBIQUE ..................................................................51 1. O direito á terra na África Subsahariana.....................51 Tomás Bernardino Page i

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Implementação da actual legislação moçambicana de terras nos primeiros 10 anos

INDICE

INTRODUÇÃO........................................................................................................................................1

Razão da escolha do tema e sua pertinência...................................................................................3

Metodologia usada...........................................................................................................................4

Objecto de estudo.............................................................................................................................6

Razão de escolha do objecto de estudo...........................................................................................6

Caracterização da Província de Maputo...........................................................................................7

Plano de dissertação.........................................................................................................................9

CAPÍTULO I...........................................................................................................................................12

PROPRIEDADE DA TERRA NO ZIMBABWE, ÁFRICA DO SUL, ANGOLA E GUINÉ-BISSAU.......................12

1. Direito á terra no Zimbabwe.................................................................................................13

2. direito á Terra na República da África do Sul.............................................................................16

3. Direito á terra na República de Angola.......................................................................................21

4. Direito á terra na Guiné Bissau...................................................................................................27

CAPÍTULO II..........................................................................................................................................33

O DIREITO Á TERRA EM MOÇAMBIQUE ANTES DA INDEPENDÊNCIA..................................................33

1. Prazos da coroa portuguesa.......................................................................................................34

2. As companhias majestáticas.......................................................................................................38

3. O direito á terra em Moçambique em 1975, data da proclamação da independência.............45

CAPÍTULO III.........................................................................................................................................51

INFLUÊNCIAS HISTÓRICAS FUNDAMENTAIS NO DIREITO Á TERRA EM MOÇAMBIQUE.......................51

1. O direito á terra na África Subsahariana........................................................................................51

2. Influência do direito português..................................................................................................56

3. Influência do direito soviético....................................................................................................57

CAPÍTULO IV.......................................................................................................................................61

O ESTUDO DO DIREITO Á TERRA EM MOÇAMBIQUE...........................................................................61

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1. O direito agrário..........................................................................................................................62

2. Traços característicos do direito agrário....................................................................................64

CAPÍTULO V.........................................................................................................................................88

A PRIMEIRA LEGISLAÇÃO MOÇAMBICANA SOBRE TERRAS.................................................................88

1. Propriedade da terra...................................................................................................................89

2. O direito de uso e aproveitamento da terra...............................................................................90

3. Outros aspectos introduzidos pela primeira legislação moçambicana sobre terras.................94

4. Constituição de direitos sobre a terra........................................................................................96

5. Modificação de direitos..............................................................................................................97

6. Transmissão................................................................................................................................98

7. Extinção do direito de uso e aproveitamento da terra..............................................................99

CAPÍTULO VI......................................................................................................................................100

A ACTUAL LEGISLAÇÃO MOÇAMBICANA SOBRE TERRAS E A SUA IMPLEMENTAÇÃO PRÁTICA DURANTE OS PRIMEIROS 10 ANOS....................................................................................................100

1. Antecedentes da Lei n° 19/97, de 1 de Outubro e acções depois da sua aprovação..............104

2. A implementação da Lei n° 19/97, de 1 de Outubro, lei de terras e legislação complementar........................................................................................................................................................110

3. Considerações acerca do direito do Estado sobre a propriedade da terra..............................114

4. Fundo estatal de terras.............................................................................................................125

5. Cadastro nacional de terras......................................................................................................125

6. Domínio Público........................................................................................................................132

7. Sujeitos de direito.....................................................................................................................140

7.1. Sujeitos nacionais.................................................................................................................140

7.2. Sujeitos Estrangeiros....................................................................................................142

8. Modos de aquisição..................................................................................................................146

9. Transmissão de direitos............................................................................................................162

10. Extinção do direito de uso e aproveitamento da terra..........................................................171

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11. Pagamento de taxas pelos requerentes e titulares do direito de uso e aproveitamento da terra...............................................................................................................................................180

12. Resolução de conflitos de terras.............................................................................................190

13. Questões institucionais...........................................................................................................195

CAPÍTULO VII.................................................................................................................................206

O PAPEL DA TERRA NO DESENVOLVIMENTO SÓCIO ECONÓMICO DE MOÇAMBIQUE(O CASO DE PRODUÇÃO DA CANA SACARINA PELA AÇUCAREIRA DA MARRAGRA).......................................206

1. A Marragra................................................................................................................................207

2. A Marragra actual e o desenvolvimento económico e social...................................................210

CONCLUSÃO......................................................................................................................................219

BIBLIOGRAFIA....................................................................................................................................223

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INTRODUÇÃO

Em 25 de Junho de 1975 Moçambique tornou-se independente de Portugal, que, como potência colonizadora, introduziu no território ao longo do período de colonização um conjunto de normas legais, tendentes a regular o direito de acesso `a terra.

A concepção dessas normas tinha em vista proteger os interesses do colonizador no acesso e manutenção do direito á terra em Moçambique, considerando que a colonização não só tinha fundamento e incidência sobre os moçambicanos dentro da largamente defendida e difundida doutrina de cristianização e civilização dos povos, mas principalmente sobre a terra, depositária de enormes recursos naturais e potencialidades susceptíveis de gerar riqueza.

Durante a dominação colonial, o regime jurídico sobre a terra era predominantemente de propriedade privada, sem prejuízo de existência de terrenos sob o regime de domínio público. A existência deste regime de propriedade sobre a terra, trouxe inevitavelmente o fenómeno de latifúndios1. Os latifúndios constituem um grande mal social e sempre têm sido combatidos por serem prejudiciais ao desenvolvimento do povo.

Ao lutar pela independência, os moçambicanos traçaram como objectivo principal, a libertação da terra e dos homens2. Esse espírito fez com que a primeira constituição da República Popular de Moçambique que entrou em vigor em 25 de Junho de 1975, considerasse no seu artigo 8 que a terra e outros recursos naturais eram propriedade do Estado. Este era o prenúncio do fim do direito dos latifundiários sobre a terra. No mesmo artigo, a constituição dispunha que competia ao Estado determinar as condições de uso e aproveitamento dos recursos naturais, incluindo a terra.

Dando corpo ao comando constitucional de o Estado determinar as condições de uso da terra, a então Assembleia Popular aprovou a primeira lei de terras apôs a independência de Moçambique, a Lei n° 6/79, de 3 de Julho.

1 ? Segundo Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico página 50, latifúndio é o fenómeno de acumulação de extensa propriedade de terra nas mãos de um pequeno número de pessoas ricas em detrimento da colectividade. Esses latifúndios são geralmente improdutivos, não desempenham o seu fim social, detendo terras para impiedosa especulação.

2 No preâmbulo da Lei n° 6/79, de 3 de Julho, primeira lei de terras de Moçambique apôs a independência nacional, consta que” a Frente de Libertação de Moçambique definiu a luta armada de libertação nacional, desde o seu desencadeamento como combate que tinha por objectivo libertar a terra e os homens. Durante o processo de edificação da nova sociedade nas Zonas Libertadas, tornou-se claro que a independência politica não teria um sentido real para o povo, não seria uma verdadeira independência se a terra continuasse nas mãos de um punhado de latifundiários de estrangeiros ou nacionais. Depois da usurpação e espoliação das melhores terras, feita ao longo dos quinhentos anos pelo colonialismo português, arrancar a terra `a sujeição e exploração estrangeiras devolvendo-a ao povo moçambicano, era uma exigência do processo histórico, condição de uma independência real e efectiva.”

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A primeira lei de terras retomou o comando constitucional de 1975 segundo o qual o Estado determinava as condições de uso dos recursos naturais incluindo a terra. Nessa perspectiva, ela reiterou o princípio de que a terra é propriedade do Estado e introduziu pela primeira vez no ordenamento jurídico moçambicano, o conceito de Direito de Uso e Aproveitamento da Terra3, como uma figura sui generis4 do direito moçambicano.

Esta primeira lei de terras foi aprovada num contexto de economia centralmente planificada, no qual a economia devia estar predominantemente centrada na empresa estatal e no sector cooperativo, numa perspectiva de que os sectores privado e familiar agrários seriam gradualmente absorvidos por aqueles dois sectores.

Entretanto, em 1987 Moçambique introduziu o Programa de Reabilitação Económica visando a implantação de uma economia de mercado no lugar do sistema de inspiração socialista introduzido apôs a independência do país.

Como corolário de introdução da nova política económica, uma nova constituição foi aprovada em 1990 que introduziu a economia do mercado como motor do desenvolvimento do País. Estes instrumentos tornaram a Lei n° 6/79, de 3 de Julho, desajustada aos novos desafios impostos pela nova política económica.

Face a esta nova realidade, tornou-se prioritário e urgente proceder-se `a revisão da primeira legislação moçambicana sobre terras de modo a adequá-la `as novas exigências impostas pela nova política económica do país.

É assim que em 1995 o governo de Moçambique aprovou a Politica Nacional de Terras5 que viria servir de alicerce para a elaboração e aprovação da nova lei de terras, a Lei n° 19/97, de 1 de Outubro. Esta nova lei que entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 1998, manteve os mesmos princípios em relação `a propriedade da terra6. Apesar de manter o direito do Estado sobre a propriedade da terra, a nova lei trouxe profundas mudanças no que respeita ao reconhecimento do direito `a terra adquirida pelas comunidades locais por ocupação. Uma outra inovação é a introdução da necessidade de as comunidades locais

3 O artigo 1 da Lei n° 6/79, de 3 de Julho, dispõe que nos termos da Constituição a terra na República Popular de Moçambique é propriedade do Estado que determina as condições do seu uso e aproveitamento. No seu n° 2 acrescenta que a terra em Moçambique não pode ser vendida, nem por qualquer outra forma alienada, arrendada, hipotecada ou penhorada.

4 Mesmo na URSS, de onde se transportou o conceito de propriedade do Estado sobre a terra, a figura usada era chamada direito de usufruto. Na Lei nº 21-C/92, de 28 de Agosto, lei de terras de Angola, enquanto a terra implicitamente propriedade do Estado, aparece o termo uso e aproveitamento da terra, mas não direito de uso e aproveitamento da terra. Na Lei nº 9/2004, de 9 de Novembro, a nova lei de terras de Angola, mesmo o termo uso e aproveitamento da terra desapareceu com a privatização da propriedade da terra.

5 A Política Nacional de Terras foi aprovada pelo Conselho de Ministros através da Resolução n° 10/95, de 17 de Outubro.

6 É de realçar que a constituição da República de 1990 dispõe no seu artigo 46 que a terra é propriedade do Estado, a terra não pode ser vendida ou por qualquer outra forma alienada, nem hipotecada ou penhorada. A A Constituição de 1990 deu a dignidade constitucional `a previsão do artigo 1 da Lei n° 6/79, de 3 de Julho, a primeira lei de terras de Moçambique independente.

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serem consultadas quando os requerentes pretenderem adquirir o direito de uso e aproveitamento da terra no seu território através de autorização de um pedido.

Tendo em vista proteger em especial o direito das populações rurais, a nova lei introduziu a figura simplificada de aquisição do direito `a terra por usucapião, beneficiando apenas cidadãos nacionais que estejam a ocupar a terra de boa fé há pelo menos 10 anos.

Pela primeira vez o Estado moçambicano atribuiu competências `as comunidades locais dentro da nova lei de terras7. Trata-se de uma lei que tem o mérito de reconhecer o direito `a terra da maioria da população moçambicana8e assegura mecanismos de segurança da posse da terra pelas comunidades locais.

A actual lei de terras foi considerada inovadora tanto na região como no mundo pelas inovações que ela trouxe, mormente no que concerne ao reconhecimento do direito das comunidades locais.

A entrada em vigor desta lei foi antecedida de uma larga campanha de divulgação e preparação dos técnicos dos serviços de cadastro estaduais e municipais, de forma a capacitá-los para implementação da nova lei.

Razão da escolha do tema e sua pertinência

Gursen de Miranda,9 afirma que a terra é a base física do homem que sobre ela vive e dela vive e tira o seu sustento. Ao aprovar-se a nova legislação moçambicana sobre terras, pretendeu-se criar uma base legal que permitisse aos sujeitos de direito ter acesso a este recurso com a segurança de posse e de direito seguros que lhes assegurem realizar os seus anseios. No planeta em que vivemos, toda a vida do ser humano desenvolve-se á volta deste precioso recurso, isto é, da terra. O desenvolvimento económico, social, cultural, desportivo, religioso e outro, estão dependentes do acesso `a terra.

A actual lei de terras de Moçambique é uma lei que foi aceite e recebida com entusiasmo pelos moçambicanos, por a considerar inovadora que pode vir a contribuir como alicerce para o

7 O artigo 24 da actual lei de terras prevê as competências das comunidades locais.

8 Segundo o plano quinquenal do governo de Moçambique para o período 2005-2009 pág 45, a população vivendo nas zonas rurais do país é de 68%, da população total. Essa percentagem era, segundo consta da política nacional de terras pág. 26, de 75% vivendo nas zonas rurais em 1995. Embora verificando-se uma ligeira diminuição da população rural devido ao êxodo rural especialmente da camada jovem, a percentagem da população vivendo nas zonas rurais é maioritária.

9 Direito agrário e ambiental, pág 2.

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desenvolvimento acelerado de um país que acabava de sair de uma guerra prolongada e destrutiva10

e de uma economia centralmente planificada.

Na preparação e na implementação desta lei fomos directamente envolvidos, porque no tempo em que se preparou e se lançou o projecto deste importante instrumento, éramos funcionários da Direcção Nacional de Geografia e Cadastro (DINAGECA), organismo responsável pela administração e gestão de terras no país. Apesar de o processo de revisão da legislação sobre terras estar a cargo de uma comissão interministerial de revisão (Comissão Nacional de Terras) a DINEGECA foi um dos organismos governamentais mais envolvidos.

Por outro lado, o facto de estar pessoalmente envolvido na equipe de docentes que ministram a cadeira do direito agrário na Faculdade de Direito da Universidade Eduardo Mondlane de Moçambique (UEM), é também um elemento motivador, pois esperamos aproveitar a ocasião para expor algumas ideias que nos foram surgindo ao longo do nosso trabalho.

Dai o nosso interesse em analisar o processo de implementação desta lei, decorrido que foi um período de 10 anos da sua vigência de modo a tirarmos ilações sobre como é que ela foi implementada, tirar as lições pertinentes e formular nossas modestas sugestões se necessário. Verificar o cumprimento das inovações introduzidas principalmente no que diz respeito ao direito das comunidades locais e `a aquisição do direito por ocupação de boa fé pelos cidadãos nacionais que ocupam a terra há pelo menos 10 anos, será importante.

A pertinência deste estudo é que consideramos o mesmo actual, pois ele vai consistir na análise de implementação de um instrumento jurídico que regula a constituição, exercício, modificação, transmissão e extinção de direitos sobre um recurso estratégico como é a terra11.

Metodologia usada

A metodologia usada na investigação que levamos acabo foi essencialmente o método qualitativo. Com recurso a esse método, a tendência foi de analisar as informações de forma indutiva, de modo a obter dados que permitam a compreensão do processo de implementação da actual legislação moçambicana sobre terras nos primeiros 10 anos.

Foi necessário recorrer `a técnica de amostragem probabilística.12 Nesta vertente, o método que escolhemos foi o aleatório simples. Usando esse método, foram escolhidos aleatoriamente e analisados 20 amostras de processos legais de pedidos de terras relativos ao ano de 1998, ano de entrada em vigor da nova lei, 20 processos correspondentes ao ano de 2002, considerado um ano intermédio e 20 processos relativos ao ano de 2008, último ano a que se refere o nosso estudo.

10 Logo apôs a independência nacional, Moçambique conheceu uma guerra prolongada, que pela sua principal génese, o governo e uma larga maioria de cidadãos moçambicanos a apelidou de guerra de desestabilização. Esta guerra prolongada, durou 16 anos, vindo a terminar em 1992 por via de assinatura de um acordo de cessar fogo em Roma entre o governo de Moçambique e o movimento rebelde RENAMO em 4 de Outubro do mesmo ano. Tratou-se de um acordo de certo modo estável que permitiu o estabelecimento de uma paz social duradoira, o que requereu a adopção de um conjunto de instrumentos legais que pudessem imprimir uma recuperação económica e social rápidas do país e criação de condições para o combate `a pobreza e garantir o desenvolvimento acelerado do país.

11 Esse é o âmbito da Lei n° 19/97, de 1 de Outubro, previsto no seu artigo 2.

12 Hermano Carmo e Manuel Malheiro Ferreira, metodologia de investigação, pagina 192, a amostragem pode ser aleatória simples, ou amostragem estratificada.

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Para além de amostras aleatoriamente escolhidas, fizemos leituras diversas de modo a tomar conhecimento de diversos conceitos legais e doutrinais. Pela natureza do trabalho, maior esforço foi direccionado aos inquéritos por entrevistas a pessoas de diversas sensibilidades desde aquelas que lidam com o trabalho do campo, técnicos, administrativos, magistrados, académicos e outros.

Nalguns casos foi necessário recorrer a questionários. Acompanhamos de perto o processo de articulação entre as autoridades comunitárias de Réngwé Sondwine, Posto Administrativo de Sábié13, Distrito da Moamba, Provincia de Maputo, de modo a entender melhor o processo de consulta á comunidade local. Esta zona de Réngwé situa-se no extremo Noroeste da Província de Maputo. Para diversificar a informação, escolhemos outros casos nas comunidades de Madladlane e de Zitundo, no Distrito de Matutuíne, no extremo Sueste da Província de Maputo.

Há a realçar que houve muita dificuldade para a recolha de informação porque nem sempre foi possível encontrar as pessoas visadas disponíveis. Sempre foi necessário um trabalho de insistência com várias deslocações para se conseguir uma informação.

Agravou a situação a nossa escassez de tempo para essas deslocações repetidas, dadas as nossas altas responsabilidades na Administração Pública moçambicana. Aliás, essas responsabilidades foram o principal obstáculo que impediu a conclusão deste trabalho dentro do prazo desejado, não obstante ser nossa ambição ardente alcançar mais um grau na nossa formação académica.

Apesar desse esforço, nem tudo aquilo que havíamos apresentado inicialmente como projecto conseguimos encontrar informação que pudesse satisfazer a nossa ambição. Por esse motivo¸ a abordagem que se vai apresentar irá reflectir algumas alterações, as quais vão incidir sobre a abordagem do direito `a terra nos países vizinhos.

No que concerne ao direito `a terra nos PALOP optamos por fazer uma abordagem comparativa do direito `a terra em dois países concretamente Guiné Bissau e Angola, considerando as afinidades políticas que caracterizaram a conquista das independências daqueles países.

Nesta parte introdutória não deixamos de referir que ao longo da abordagem deste trabalho, poderá se notar alguma influência da nossa experiência empírica. Isso resulta da nossa origem camponesa, na medida em que o autor nasceu e cresceu no campo até aos 17 anos.

Ao passar a viver na cidade, trabalhou numa instituição que dirige o sector agrário do país, dentro da qual foi confiado a função de dirigir Direcções Provinciais de Agricultura de Nampula e Maputo durante mais de uma década, conferindo-lhe uma oportunidade de lidar com as comunidades rurais, agricultores e outros actores.

13 A comunidade de Réngwé Sondwine é uma zona de terras férteis com pastos ricos para a actividade pastorícia encravada entre Ressano-Garcia, Sábié, Corumana e Kruger Park, este último da África do Sul. Até ao ano de 2005, altura em que aquela zona passou para a jurisdição do Posto Administrativo de Sábié, antes pertenceu ao Posto Administrativo de Ressano Garcia. A passagem para jurisdição de Sábié resultou da necessidade de facilitar a vida das populações no acesso aos serviços e comércio porque esta zona dista acerca de 19 km da sede do Posto Administrativo do Sábié, com acessos fáceis do que para Ressano Garcia que para lá chegar têm que atravessar uma zona montanhosa e o Rio Incomati.

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Objecto de estudo

O nosso objecto de estudo é a Província de Maputo, concretamente o Serviço Provincial de Geografia e Cadastro. Este serviço é um dos órgãos que compõem a Direcção Provincial de Agricultura de Maputo,14um órgão com dependência hierárquica em relação ao governo da província de Maputo. O Serviço Provincial de Geografia e Cadastro é chefiado por um Chefe de Serviço, subordinado hierarquicamente ao Director Provincial de Agricultura. O Director Provincial de Agricultura subordina-se directamente ao Governador provincial e é membro do Governo Provincial.

A gestão do cadastro de terras na Província é da competência dos Serviços Provinciais de Geografia e Cadastro. Compete a estes Serviços a tramitação processual e todo o processo administrativo atinente `a gestão do fundo estatal de terras na Província. Os Serviços Provinciais de Cadastro não tomam decisões sobre a atribuição do direito de uso e aproveitamento de terras, sendo portanto, um serviço com um papel meramente técnico.

Ao Director Provincial de Agricultura, cabe a função de formulação de pareceres administrativos para que o Governador tome decisões atribuindo ou reconhecendo direitos sobre terras, ou fazendo subir os processos para o Ministro da Agricultura caso a competência de decidir ascenda aquela a que lhe é atribuída por lei, conforme teremos ocasião de ver quando abordarmos a matéria de competências.

Razão de escolha do objecto de estudo

A escolha da Província de Maputo para o nosso estudo baseado no tema sobre a avaliação da implementação da actual legislação moçambicana sobre terras nos primeiros 10 anos, resulta do facto de que a Província de Maputo é a que tem maior procura de terras a nível do País.

A aproximação com a Cidade de Maputo, capital do País, onde se concentram pessoas de todas as províncias e de diversas nacionalidades, torna a Província de Maputo a mais pressionada em termos de ocupação de terras, porque ela é obrigada a satisfazer os desejos dos seus habitantes e dos residentes da cidade de Maputo que precisam de investir em projectos agro-pecuários e outros que não encontram espaço dentro do território da Cidade. Por causa destas características e porque o processo de gestão e administração de terras no país tem em princípio um carácter uniforme, consideramos a Província de Maputo como uma amostra que pode ser representativa do País.

14Além dos Serviços Provinciais de Geografia e Cadastro, fazem parte da Direcção Provincial de Agricultura, os Serviços Provinciais de Extensão Rural, os Serviços Provinciais de Florestas e Fauna Bravia, os Serviços Provinciais de Pecuária, o Departamento de Economia e o Departamento de Administração e Finanças. No âmbito de tramitação processual de pedidos de terras, os serviços atrás enumerados, aqueles que têm natureza técnica, participam no processo de titulação, formulando pareceres técnicos. A Direcção Provincial de Agricultura está representada em todos os Distritos integrada actualmente nos Serviços Distritais das Actividades Económicas, uma estrutura que resulta da nova reforma de Administração Pública ao nível dos Distritos do País. Na óptica da reforma introduzida pela actual Lei n° 8/2003, de 19 de Maio, lei dos órgãos locais do Estado(LOLE) e seu regulamento aprovado pelo Decreto n° 11/2005, de 10 de Junho, a nova estrutura dos Serviços Distritais definida pelo estatuto orgânico do governo distrital aprovado pelo Decreto n° 6/2006, de 12 de Abril, contrasta com a antiga estrutura composta por Direcções Distritais, num figurino de réplica das Direcções Provinciais correspondentes a nível provincial. Actualmente os actuais Serviços Distritais agrupam um conjunto de actividades que a nível provincial se encontram adstritas a um conjunto diverso de Direcções provinciais. Dentro dos Serviços Distritais de Actividades Económicas encontra-se adstrita dentre outras, a Secção Distrital de Cadastro, ainda em embrião, responsável pelo cadastro distrital de terras.

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Na realidade e com base na experiência colhida durante o estudo, a Província de Maputo neste momento apresenta-se superlotada, não dispondo de grandes alternativas para alocação de mais espaços a favor dos requerentes do direito de uso e aproveitamento da terra sem criar conflitos com as comunidades locais cuja subsistência depende do trabalho dessas terras.

É prova de que a Província de Maputo é a que mais procura de terras apresenta a nível nacional, a quantidade de processos legais de pedidos do direito de uso e aproveitamento de terras abertos no período em análise como se apresenta na tabela demonstrativa que se segue.

Tabela 1, processos de terras abertos nas Províncias do País nos últimos anos

Província Processos abertos

Maputo 18.176

Inhambane 5.758

Zambézia 4.719

Gaza 3.504

Sofala 2.278

Nampula 1.235

Manica 1.034

Cabo Delgado 936

Tete 917

Niassa 644

Observando atentamente o quadro atrás apresentado, verifica-se que a afirmação de que a província de Maputo goza de hegemonia no que concerne `a demanda de terras é verídica e justifica a escolha desta província como amostra representativa para o nosso estudo.

Caracterização da Província de Maputo

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A Província de Maputo com 22.973 km215 de superfície, e 1.205.553 habitantes16 situa-se a Sul da República de Moçambique. Faz limite a Nordeste com a Cidade de Maputo, a Noroeste com a Província de Gaza e República da África do Sul, a Sul pelo Reino de Suazilândia e a República da África do Sul e a Sueste pelo Oceano Índico. A Província de Maputo possui boas terras para agricultura, pecuária, reserva para fauna bravia e fazendas do bravio17.

A Província é rica em cursos de água que tornam as suas terras úteis para a prática de agricultura e pastorícia. Com efeito, podemos arrolar os seguintes rios pela sua importância: rio Incomati, rio Umbeluzi, rio Movene, rio Sábié e rio Maputo, além de diversas lagoas e pequenos cursos de água de reduzida dimensão, muitos deles de carácter temporário.

A Província de Maputo é dividida em 7 Distritos e uma cidade com categoria de Distrito18. Os Distritos que compõem a divisão territorial da Província de Maputo são Magude, Manhiça, Marracuene, Moamba, Boane, Namaacha, Matutuine e Cidade da Matola, capital da Província. Por outro lado, abaixo dos Distritos encontramos 26 postos Administrativos e 76 localidades19. Para uma ideia da informação geográfica da Provincia em estudo, apresentamos de seguida o seu mapa.

15 Divisão territorial e toponímia, editado pela Assembleia da República, página 7, ano de 1996. Todavia, este dado é contrariado pelo dado que foi divulgado resultado do último censo geral da população de 2007, que aponta para 26.058 km2 a área da Província de Maputo. É possível este último dado ser verdadeiro na medida em que a Assembleia da República reconheceu a dado passo que os dados constantes da brochura por ela publicada eram provisórios.

16 In www.ine.gov.mz, dados do recenseamento geral da população de 2007.

17 No que respeita `a fauna bravia, podemos destacar a Reserva Especial de Maputo, situada no Distrito de Matutuine, Posto Administrativo do Zitundo.

18 Opcit, Divisão Territorial e Toponimia, página 9.

19Ibidem, pagina 14.

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Mapa da Província de Maputo

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Plano de dissertação

Quando terminamos a fase curricular do curso de mestrado em ciências jurídico-económicas fizemos a escolha do tema de dissertação e de seguida apresentamos o nosso plano de abordagem que foi aprovado pela Coordenação do curso de mestrado. Uma vez aprovado o plano, ele serviu como é norma, de guião para a investigação que se seguiu.

Como resultado dessa investigação, iremos apresentar de seguida o nosso plano de dissertação que irá apresentar uma estrutura com ordenamento um pouco diferente do plano inicialmente apresentado.

Há todavia a sublinhar que a alteração que efectuamos é essencialmente de forma no sentido de melhor arrumação dos assuntos para uma melhor abordagem, mas sem afectar a essência dos conteúdos e do objectivo a alcançar. Assim, passamos a apresentar o plano de dissertação a que nos propomos.

Escolhemos o Zimbabwe e África do Sul fundamentalmente para fazer uma pequena reflexão sobre as consequências que um regime de propriedade privada de terras pode trazer para as populações no acesso a este importante e vital recurso natural.

No que respeita `a Angola e Guiné Bissau, estes dois Estados africanos de língua oficial portuguesa, tiveram as suas independências depois de uma luta armada contra a dominação colonial portuguesa como aconteceu com Moçambique. Pretendemos ver os regimes de propriedade sobre a terra adoptados e nesse caso analisar como é que os sujeitos de direito têm acesso ao direito de uso da terra. Quer dizer, se Moçambique adoptou a figura do direito de uso e aproveitamento da terra, qual será a figura operativa adoptada por aqueles países para permitir que os sujeitos do direito tenham acesso á terra (CAPÍTULO I).

Relativamente ao direito á terra em Moçambique antes da Independência, abordaremos as principais figuras jurídicas de ocupação de terras depois da penetração portuguesa, nomeadamente o sistema de prazos da coroa portuguesa e sua caracterização, as Companhias Majestáticas, sua caracterização, função e extinção. Finalmente o regime legal de ocupação de terras encontrado na altura da descolonização(CAPÍTULO II).

No domínio das influências históricas fundamentais que se podem registar no direito á terra em Moçambique, pretendemos fazer uma referência aos sistemas jurídicos que influenciam o direito á terra no nosso país, concretamente o sistema de apropriação da terra na África Sub sahariana, o direito português que Moçambique adoptou por razões históricas e o direito soviético(CAPÍTULO III).

No concernente á matéria do estudo do direito á terra em Moçambique, o objectivo é situar a disciplina jurídica em que o direito á terra configurado pela lei de terras se enquadra. Referimo-nos concretamente ao direito agrário. Será necessário caracterizar este direito do ponto de vista universal e no contexto moçambicano e o seu entrelaçamento com outras disciplinas jurídicas do ordenamento jurídico moçambicano (CAPÍTULO IV).

O estudo dos principais traços da primeira legislação moçambicana de terras depois da independência nacional visa dar uma visão resumida das mudanças que esta primeira legislação trouxe para Moçambique e seu povo. Nesse sentido, procuraremos ver fundamentalmente a constituição, modificação, transmissão, extinção de direitos e outros aspectos inerentes á consolidação dos direitos e deveres dos sujeitos de direito á terra (CAPÍTULO V).

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Implementação da actual legislação moçambicana de terras nos primeiros 10 anos

A abordagem da implementação da actual legislação moçambicana de terras nos primeiros 10 anos da sua vigência constitui o cerne da nossa dissertação. Por esse motivo procuraremos fazer o estudo teórico de cada um dos seus institutos e de seguida faremos os comentários relativos ás constatações obtidas no terreno durante o processo de interacção com diferentes sujeitos.

Nessa perspectiva, faremos o estudo sobre 1) Acções preparatórias e pôs aprovação da lei de terras; 2) o direito da propriedade da terra; 3) o fundo estatal de terras; 4) cadastro nacional de terras; 5) o domínio público; 6) sujeitos de direito; 7) modos de aquisição do direito de uso e aproveitamento da terra, a titulação de direitos (processo, consulta ás comunidades, pareceres administrativos e técnicos, competências, autorização provisória e definitiva); 8) Demarcação de terrenos; 9) Fiscalização das ocupações; 10) Extinção do direito de uso e aproveitamento da terra; 11) Taxas do direito de uso e aproveitamento da terra; 12)Resolução de conflitos; 13) Questões institucionais(CAPITULO VI).

Finalmente estudaremos o papel da terra no desenvolvimento sócio económico de Moçambique, com enfoque na produção da cana sacarina pela Açucarreira da Marragra com o objectivo de demonstrar que o acesso e a manutenção da posse da terra pelos sujeitos de direito, é garantia para que os investidores, e não só,20 participem no desenvolvimento do País, gerando emprego e trabalho21 principalmente para os cidadãos nacionais.

Além do emprego e trabalho, através de exploração da terra, geram-se outras oportunidades de melhoria das condições de vida das populações, por via de acesso á aquisição e consumo dos produtos que o investidor produz, o acesso á assistência médica e medicamentosa oferecida pela empresa, o combate de pandemias como a malária, HIV/SIDA e outros benefícios sociais(CAPÍTULO VII).

Depois de apresentarmos a introdução do nosso trabalho, a razão da escolha do tema, a caracterização do nosso objecto do trabalho e finalmente o nosso plano de dissertação, passamos de seguida a apresentar a nossa abordagem, começando por analisar o regime jurídico da propriedade da terra no Zimbabwe, África do Sul, Angola e Guiné Bissau.

20 Escolhemos por acaso a produção da cana sacarina com envolvimento de grandes investimentos para demonstrar os benefícios colaterais que os investimentos na terra podem trazer para os trabalhadores e comunidade circunvizinha, mas também o acesso á terra permite ás comunidades rurais a produção de produtos para a sua subsistência e para o mercado. Em Moçambique actualmente o sector camponês tem sido o maior produtor de produtos estratégicos para o abastecimento do povo e para a exportação tais como o milho, arroz, mandioca, amendoim, mapira, algodão, castanha de caju, tabaco e outros. A intervenção do sector empresarial se resume na comercialização e escoamento e agro processamento daquilo que os camponeses produziram.

21 Gerando emprego e trabalho estar-se-á a assegurar o comando constitucional previsto na actual Constituição da República de Moçambique. Nos termos do número 1 do artigo 82 da Constituição, o trabalho constitui o direito e dever de cada cidadão. De harmonia com o disposto no número 1 do artigo 112 da Constituição da República, o trabalho constitui a força motriz para o desenvolvimento do País.

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CAPÍTULO I

PROPRIEDADE DA TERRA NO ZIMBABWE, ÁFRICA DO SUL, ANGOLA E

GUINÉ-BISSAU

Pretende-se com esta breve abordagem obter uma visão da importância dos dois regimes de propriedade, a privada prevalecente no Zimbabwe, África do Sul e Angola e a estatal prevalecente em Moçambique e Guiné Bissau no que concerne ao direito e posse da terra pelas camadas desfavorecidas das respectivas populações.

Zimbabwe e África do Sul fazem parte do conjunto dos 5 Países limítrofes de Moçambique, concretamente Tanzânia a Norte, Zâmbia e Malawi a Noroeste, Zimbabwe a Oeste, África do Sul e Suazilândia a Sul. Em todos os Países vizinhos de Moçambique, a propriedade da terra é privada, mas a escolha do Zimbabwe e África do Sul prende-se com o facto de serem países que estiveram sob o domínio de regimes racistas e que só muito recentemente os seus povos deles se libertaram, deixando patentes sequelas de discriminação racial no que respeita ao direito á terra, cuja situação continua a influenciar o ambiente politico naqueles dois Países.

É de notar que a libertação destes dois Países contou com o apoio de Moçambique, que serviu de retaguarda para a luta daqueles dois povos. Passamos assim a apresentar a abordagem como se segue:

1. Direito á terra na República do Zimbabwe;

2. Direito á terra na República da África do Sul;

3. Direito á terra na República de Angola:

3.1. Propriedade dominial pública;

3.2. Propriedade dominial privada;

3.3. Sujeitos com direito á terra;

3.4. Domínio consuetudinário;

3.5. Acesso ás concessões;

3.6. Transmissibilidade;

3.7. Extinção de direitos;

4. Direito á terra na República da Guiné-Bissau:

4.1. Propriedade da terra;

4.2. Uso da terra;

4.3. Prazos da vigência do direito ás concessões;

4.4. Transmissibilidade do direito á terra;

4.5. Extinção do direito de uso privativo;

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4.6. Publicidade dos actos;

4.7. Regime tributário.

Feita a apresentação do esquema de estudo do capítulo I, consideramos estarem reunidas as condições para o seu desenvolvimento.

1. Direito á terra no Zimbabwe.

Em 1884/85, as potências coloniais europeias realizaram a Conferência de Berlim, com intuito de procederem a partilha de África. As potências colonizadoras decidiram nesta Conferência pela ocupação efectiva dos territórios africanos sob domínio de cada um dos participantes. Esse compromisso obrigou as potências envolvidas a adoptar a estratégia de assinatura de acordos com os reis locais sobre a ocupação.

John Cecil Rhodes, da Companhia britânica British South African Company iniciou na prática a colonização do território que os britânicos viriam chamá-lo de Rodésia do Sul22 no início da década de 90 do século XIX, isto é, em 1890. Porém, 2 anos antes concretamente em 1888, havia sido assinado em nome da companhia britânica atrás mencionada através de Charles Rudd um acordo sobre a ocupação de terras com o rei Lobengula, da Nação Matabele.

O referido acordo consistia na exploração dos recursos naturais e não previa a apropriação definitiva do território pelos britânicos. A primeira penetração colonial no território, foi impulsionada pela procura de terras para exploração do ouro e de diamantes nas terras altas do actual Zimbabwe.

Apesar de a motivação da ocupação colonial das terras do actual Zimbabwe ter sido motivada pela procura do ouro e de diamantes, não se conseguiu encontrar estes metais de forma rentável que pudesse compensar os investimentos feitos á semelhança do que estava a acontecer na África do Sul23. Como alternativa e face á reconhecida fertilidade dos solos os colonos recorreram á exploração agrícola intensiva.

A opção pela agricultura comercial especialmente de culturas como tabaco, algodão e milho incentivaram a corrida pela ocupação das melhores terras pelos colonos brancos, empurrando os nativos para as terras pobres.24

22 A Rodésia do Sul, actual Zimbabwe é um País que se situa no interland de Moçambique, com uma superfície terrestre de 393.000 km2 uma população de cerca de 10.700.000 habitantes. A sua capital é a Cidade de Harare. O Zimbabwe tem como limites Moçambique a Este, a Sul pela África do Sul, a Norte pela Zâmbia e a Sueste pelo Botswana.

23

24As terras destinadas ás populações autóctones eram chamadas reservas africanas semelhantes ás reservas indígenas que o regulamento de ocupação de terrenos no ultramar Português (artigo 224 e ss do regulamento), previa para as populações moçambicanas denominadas vizinhos das regedorias.

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Esta questão não agradou os Matabeles que entendiam que o acordo estabelecido se destinava a uma exploração temporária e não tinha intenção de subverter a sua soberania. Perante a resistência dos Matabeles, os colonos moveram guerra contra Lobengula derrotando-o.

A derrota militar dos Matabeles acentuou a expulsão das populações das melhores terras, de tal sorte que em 1897 cerca de 15 milhões de hectares de um total de 96 milhões tinham sido usurpadas ás populações africanas sem nenhuma retribuição.

No limiar do século XX a população branca no actual Zimbabwe representava mais ou menos 3% da população negra, mas ocupava 80% das melhores terras e aptas para uma actividade agrária rentável.

O fenómeno de apropriação de terras no actual Zimbambwe pelos colonos em detrimento das populações negras tornou-se mais agudo com o início da política de segregação racial na vizinha África do Sul, que de alguma maneira influenciou toda a sub-região.

Essa influência no que respeita ao actual Zimbabwe veio a impulsionar a aprovação pelos colonos da Land Apportioment Act em 1930, que preconizava o afastamento dos negros das terras férteis. Tratava-se assim de um instrumento legal que contribuía para consolidar todo um processo de apropriação das terras dos negros iniciada no século anterior.

Esta situação veio a agravar-se com a declaração unilateral da independência da Rodésia por uma minoria racista branca liderada por Ian Smith em 1965. Este facto, incentivou a organização de movimentos políticos negros dentro do País dispostos a lutar pela alteração do estado de injustiças reinantes, em especial a questão da usurpação das terras da população negra.

Com a proclamação da independência de Moçambique em 1975 e a consequente instalação de um regime progressista dirigido pela Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), as organizações políticas do Zimbabwe comprometidas com a luta do povo do Zimbabwe principalmente a União Nacional do Zimbabwe (ZANU) e a União do Povo do Zimbabwe (ZAPU), encontraram uma base de apoio para desencadearem uma luta de libertação contra a tirania e dominação racista no seu País25.

A luta do povo do Zimbabwe teve termo com a assinatura do acordo de Lancaster House nos princípios de 1980, que culminaria com a proclamação da verdadeira independência do Zimbabwe, em 18 de Abril do mesmo ano.

Durante as conversações de Lancaster House a questão da posse da terra foi das nucleares que foi discutida, com os dois dirigentes nacionalistas, concretamente Robert Mugabe da ZANU e Joshua Nkomo da ZAPU a baterem-se para que ela fosse resolvida, mas a Grã-Bretanha, potência colonizadora, convenceu-os a adiá-la para 10 anos mais tarde, com compromisso de uma ajuda financeira destinada a compensar os colonos brancos que iriam perder as suas terras.

25 O apoio de Moçambique á luta do povo do Zimbabwe foi multiforme, compreendendo o apoio politico, militar, humanitário dentre outros aspectos. Uma das grandes contribuições para o sucesso da luta do povo do Zimbabwe, foi a aplicação das sanções internacionais impostas ao regime racista de Ian Smith por diversos países e organizações com o apoio da ONU. Associando-se a esse movimento internacional, Moçambique reforçou as sanções ordenando o encerramento das suas fronteiras com aquela colónia britânica da Rodésia do Sul. Assim, a guerra de guerrilha levada a cabo pelos movimentos de libertação e as sanções mandatórias e obrigatórias, contribuíram em grande medida para o enfraquecimento de um regime que além de racista era considerado arrogante e radical, encorajado pelo regime racista instalado na África do Sul, um dos seus vizinhos e aliado político, ideológico e económico. Foi esse quadro de enfraquecimento que contribuiu e facilitou a assinatura do acordo de Lancaster House.

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As promessas do governo britânico de apoio através de um fundo para compensação aos colonos que iriam perder as suas terras a favor dos negros, praticamente não foram cumpridas, o que levou o governo do Zimbabwe a aprovar a Land Acquisition Act de 1986 que estabelecia o quadro legal para o governo adquirir terras dos farmeiros brancos quando considerasse conveniente para a sua redistribuição á população negra.

Todavia, a medida tomada pelo governo do Zimbabwe não agradou o governo britânico e muitos outros países ocidentais para não falar dos próprios farmeiros afectados pela medida, o que precipitou a aplicação de sanções ao regime, que culminaram com o eclosão da crise económica naquele pais.26

O Zimbabwe implementou uma reforma agrária de modo a corrigir as distorções e injustiças prevalecentes no que respeita á posse de terras pelos cidadãos negros do Zimbabwe. A reforma obedeceu quatro fases:

I) aquisição no mercado que ocorreu no período de 1980 a 1986. As aquisições neste período foram facilitadas porque durante a guerra de libertação muitas propriedades foram abandonadas. Por outro lado, muitos farmeiros brancos que não concordaram com a nova ordem política implantada no país decidiram abandonar o país e consequentemente as suas farmas;

II) de 1987 a 1996 há uma redução dos níveis de aquisição de terras para redistribuição principalmente por falta de fundos uma vez que o apoio prometido pela potência colonizadora não se estava a concretizar. Há nesta fase uma revisão de políticas pelo governo em relação á matéria de aquisição e redistribuição de terras;

III) seguiu-se a fase de aquisição de terras por negociação que compreendeu o período de 1997 a 2000. Este processo não deu muitos resultados positivos pela natural relutância dos fazendeiros em ceder as suas terras;

IV) finalmente o período que compreende o ano 2000 a 2007, é denominado período de aquisição rápida. É neste período que se assistiu a um processo de assaltos e ocupação de propriedades de farmeiros brancos por agentes insurrectos aparentemente dirigidos por antigos combatentes da luta de libertação do Zimbabwe, mas que na opinião da Grã-Bretanha e seus apoiantes, aqueles não passavam de instrumentos do governo do Zimbabwe para atingir o seu objectivo de aquisição fraudulenta de terras para redistribuição á população negra.

É neste período que se verificou a ocupação intensa e publicitada de terras, a ocupação obrigatória de terras27, revisão constitucional para facilitar a aquisição de terras, reassentamento massivo das famílias na ordem de 150.000. É também neste período que se verificou o declínio de uma das agriculturas mais rentáveis e prósperas da nossa região.

Em resumo, neste período o regime de Robert Mugabe tomou medidas radicais28 que lhe custaram o corte de relações com a potência colonizadora e outros países do ocidente. A economia do País que tinha um grande suporte na agricultura conheceu uma acentuada recessão económica 26 Segundo o professor Tendai Muriza, conferência de terras 10 anos, Relatório Final da Conferência comemorativa dos 10 anos da Lei 19/97, página 42, a crise do Zimbabwe, na sua dimensão económica caracteriza-se por uma inflação galopante que chegou a atingir 6.000%, uma taxa de desemprego de 70% e redução da economia em 30% desde o ano de 2000.

27 Op. Cit Omarildo Luís da Silva, mais de 4.000 fazendeiros brancos foram alvo de ocupação das suas terras, o que lhes obrigou a abandonar o País.

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como consequência de um massivo abandono do País por parte de muitos fazendeiros brancos descontentes com o movimento de expropriação e ocupação das suas terras.

Por outro lado, a distribuição de terras a novos proprietários negros sem conhecimentos técnicos e domínio de tecnologias agrárias para uma exploração rentável das terras ocupadas, contribuíram para o declínio da agricultura do Zimbabwe, votando o seu povo numa situação de um povo que era próspero nas duas primeiras décadas da sua independência, para um povo que enfrenta carências acentuadas de alimentos. O país deixou de ser exportador de produtos alimentares agrícolas porque nem para abastecer as suas populações consegue produzir em quantidades suficientes.

Mas há que reconhecer que houve outros factores combinados para a crise da produção agrária no Zimbabwe. Podemos arrolar como factores adicionais, o abandono do País pelos farmeiros descontentes, o corte de apoio financeiro pela comunidade internacional, o que trouxe como consequência a falta de capacidade para importação de factores de produção destinados ao desenvolvimento agrário.

Do estudo que acabamos de fazer sobre o Zimbabwe ficamos com o conhecimento de que a terra é essencialmente propriedade privada, que se encontra no comércio jurídico. As medidas de confiscação de terras tomadas pelo governo do Zimbabwe, não alteraram a natureza privada da propriedade da terra.

Depois desta abordagem sobre a situação do direito á terra na República do Zimbambwe a seguir vamos abordar a situação na República da África do Sul.

2. direito á Terra na República da África do Sul

Neste subcapítulo faremos uma abordagem da situação de ocupação de terras na África do Sul desde o período da penetração colonial até á instauração do regime democrático da maioria negra naquele território e avaliar a situação após o triunfo deste último regime.

Como em qualquer parte de África, no território que hoje é República da África do Sul, o fenómeno de expropriação de terras dos naturais iniciou com a chegada de Jana Van Riebeeck no Cabo de Boa Esperança em 1652, mas o processo de expropriações e usurpações ganhou muita força com a adopção pela minoria branca do sistema do apartheid.29

No mesmo ano de adopção do apartheid, foi aprovada a lei das terras nativas. Com aprovação desta lei começou-se a restringir as áreas ocupadas pelos negros, passando-se a reservar as melhores terras para os colonos. Em muitos casos os negros passaram de proprietários para

28 Idem, neste período foram nacionalizadas 1.772 propriedades, totalizando 5 milhões de hectares sem indemnização aos proprietários, pois o governo do Zimbabwe dizia que quem tinha o dever de o fazer era o governo britânico, mas este alegava que já tinha desembolsado 30 milhões de libras esterlinas neste processo, que foram gastas de forma pouco transparente, o que impossibilitava a libertação de mais recursos financeiros.

29 O apartheid é um sistema de desenvolvimento separado entre pessoas de diferentes raças instaurado oficialmente a partir de 1913 pela minoria branca e racista da África do Sul maioritariamente descendente de colonos boers.

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assalariados dos colonos, situação que se foi agravando com a descoberta de valiosas reservas de recursos minerais no subsolo do território30.

Em 1910 foi fundada a União sul-africana que traduziu o fortalecimento da hegemonia branca contra os reinados locais representativos das populações negras do território. Reforçou-se o sistema de segregação racial que 3 anos mais tarde concretamente em 1913 seria consolidado com a instituição do apartheid.

Como aconteceu em toda a África colonizada, as populações negras sul-africanas foram colocadas em reservas indígenas, onde os homens constituíam uma reserva de mão- de- obra barata e as mulheres é que se dedicavam á exploração dessas terras para subsistência e muitas vezes para produzir culturas que interessavam aos colonos para exportação ou para abastecimento de matérias primas ás suas indústrias.31

Com a institucionalização do apartheid na África do Sul a questão da usurpação de terras aos negros pela minoria racista branca agravou-se porque o regime esforçou-se por reservar para sí a maior parte do território em detrimento da população negra. Para lograr os seus intentos e manter medidas severas de subjugação da população negra, o regime racista recorreu progressivamente a medidas legislativas como a seguir se indica:

1936- É aprovada a lei de terras para o desenvolvimento que representou um expansionismo branco por ter estendido o direito destes ocuparem as terras até então reservadas aos negros. A partir da aprovação desta lei, qualquer pretensão dos negros para ocupar essas terras, passou a ser considerada ilegal;

1937- Oficializa-se a proibição de os negros comprarem lotes de terras nos centros urbanos do país. Para isso foi necessário introduzir-se uma emenda na lei de terras nativas aprovada em 1913;

1951- É aprovada a lei de autoridades bantu que estabelece as autoridades tribais. Esta lei reflecte a opção da minoria branca em estimular e reforçar a organização da população em moldes tribais para a sua conveniência de dominação.

Neste mesmo ano foi aprovada a lei de prevenção á usucapião em relação ás terras que os negros ocupavam. Essa lei criou uma base legal para o governo sul-africano de minoria branca organizar campos de reassentamento da população negra expulsa das fazendas resultado de ocupação pelos brancos.

30 Como tivemos ocasião de nos referirmos quando estivemos a tratar do direito á terra no Zimbabwe, a procura das terras naquele país foi impulsionada pelo facto de na África do Sul ter se descoberto importantes reservas de minerais mormente diamantes e pensavam que seria possível encontrar aqueles minerais. A agressividade com que os colonos trataram a questão da terra no Zimbabwe, teve como ponto de referência a experiência de ocupação na África do Sul, daí que os regimes de apropriação de terras pelos colonos nos dois territórios sejam semelhantes.

31 José Negrão, a indispensável terra Africana para o aumento da riqueza dos pobres, pagina 3 , segundo ele, as famílias africanas foram atiradas para as reservas indígenas onde as mulheres produziam a subsistência e os homens para servir de mão de obra para os colonos que tinham ficado com as terras mais produtivas. Na sua óptica, o ensaio da globalização em África tinha sido um sucesso no mercado internacional para os ricos e um desastre social e ambiental para os pobres, pois as terras das reservas foram diminuindo a sua capacidade produtiva, a pobreza acentuou-se o que motivou o surgimento de movimentos sociais de contestação.

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1954- É aprovada a lei de reassentamento da população negra, que permitiu ao governo a movimentação dos negros para reassentá-los noutros sítios em consonância com a implementação da política do apartheid em especial.

1959- Esta lei criou as bases para o estabelecimento de auto-governos negros dos territórios tribais, chamados bantustões a serem habitados e governados pelas populações respectivas. A governação desses territórios estaria a cargo dos respectivos chefes tribais.32

O esforço desenvolvido pela minoria branca na África do Sul visou excluir a população negra por sinal a maioria do País, do direito á terra e outros benefícios económicos e sociais. Como reacção á injustiça imposta pela minoria branca contra a maioria negra, um grupo de sul-africanos criou o Congresso Nacional Africano (ANC) em 1912, um ano antes da declaração oficial do regime do apartheid, que passou a estar na vanguarda da luta do povo sul-africano contra as injustiças infligidas contra sí.

Em 1955, o ANC aprovou a Carta da Liberdade, cujo compromisso era lutar contra a tirania da minoria branca que ocupava na altura 87% das terras do território, deixando apenas 13% das terras para o usufruto da maioria negra.

O ANC dirigiu uma prolongada luta política e diplomática. Nesse processo de luta muitos dos seus dirigentes foram presos políticos durante muitos anos.33 A independência de Moçambique proclamada em 1975 foi uma oportunidade importante para o povo sul-africano avançar na sua luta pela destruição do sistema de segregação racial,34 até á vitória final representada pelo triunfo do ANC por esmagadora maioria nas eleições presidenciais e legislativas de 1994, culminando com a constituição de um governo multirracial e democrático.

Para acomodar a nova ordem política multirracial, foi negociada e aprovada uma nova constituição de uma nova República, em que todos os sul-africanos passavam a ser cidadãos com os mesmos direitos e deveres sem distinção de raças. Em relação á terra a nova constituição da República da África do Sul abriu politicamente um espaço para todos os cidadãos terem o acesso á terra.35 Nesse sentido, ao novo governo pesaram as seguintes tarefas:

32 A criação de bantustões constituiu uma estratégia que a minoria branca encontrou para dividir as populações negras para melhor as dominar. Esta politica tornava as populações negras estrangeiras dentro do seu pais, pois por exemplo, um residente de um bantustão como o de Transkei, não podia considerar-se cidadão do bantustão de Bophutatswana. Esses cidadãos na prática não eram genuínos cidadãos sul-africanos, somente os da minoria branca o eram.

33 Dentre muitos dirigentes do ANC presos durante muitos anos pelo regime do apartheid destaca-se o carismático Nelson Mandela, considerado o prisioneiro político mais famoso do século XX, que ficou no cativeiro durante 27 anos.

34 Depois da independência de Moçambique muitos refugiados sul-africanos entre civís e guerrilheiros foram acolhidos em Moçambique de onde puderam desenvolver as suas ofensivas políticas, militares e diplomáticas. Apesar de agressividade do regime do apartheid que infligiu diversos ataques de retaliação contra o País, Moçambique manteve-se firme no apoio á causa da luta do povo sul-africano até á resignação do regime do apartheid em 1994.

35 Com efeito, a constituição da República da África do Sul na sua secção 25-5, reza que “o Estado deve tomar medidas legislativas razoáveis e de outra natureza dentro dos recursos disponíveis com vista a estimular condições que possam permitir que os cidadãos tenham acesso á terra. No número 6, da mesma secção, a constituição dispõe que uma pessoa ou comunidade cuja posse de terra esteja ameaçada por leis racistas e de discriminação racial do passado terão a

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Atender as reclamações das populações e de comunidades que as suas terras foram espoliadas pelo regime do apartheid;

Assegurar a redistribuição das terras aráveis disponíveis pelos sem terra;

Realizar uma reforma agrária como meio de restituir os direitos á terra retirados á maioria negra pelo regime de minoria branca ao longo da vigência do regime racista.

O desafio mais importante no capítulo de acesso á terra pela maioria desfavorecida, foi o desencadeamento da reforma agrária no país com o apoio do Banco mundial que pressupunha o restabelecimento da propriedade da terra daqueles que a perderam durante a dominação racista. A reforma tinha também a intenção de assegurar a indemnização dos lesados ou seus herdeiros pelos prejuízos causados pela perda desses terrenos.

Todavia, apesar de boas intenções do novo governo saído das eleições de 1994 formado pelo ANC, movimento libertador, bem como dos governos que sucessivamente ele formou em 1999 e 2004, a marcha da reforma agrária e o processo da restituição das terras não correspondeu ás reais expectativas dos espoliados sul-africanos.36

Teraza Yates37 da Associação sul-africana Nkuzi, convidada de honra para a conferência comemorativa dos 10 anos da nova lei moçambicana de terras, levou `aquele evento relevantes informações no que respeita á reforma agrária na África do Sul.

Segundo Tereza Yates, em 1996, cerca de 1% da população branca detinha ainda 80% da terra arável disponível no País, mas inversamente mais de 70% da população negra tinha acesso a menos de 15% da terra arável. Foram aprovadas leis visando operacionalizar o acesso das populações á terra,38 mas que segundo Tereza Yates as mesmas não produziram o impacto desejado.39 Na nossa óptica os acontecimentos no vizinho Zimbabwe ditaram a prudência do governo sul-africano no tratamento desta matéria sensível de correcção das injustiças cometidas ao longo de séculos pela minoria branca na África do Sul.

protecção com base numa lei feita pelo parlamento. Finalmente, no número 7 da mesma secção dispõe que uma pessoa ou comunidade expropriada das suas terras após 19 de Junho de 1913, resultado de leis racistas e anti democráticas, têm direito á restituição ou reparação justa do prejuízo que lhe foi causado.”

36 De notar que o ANC foi sempre o partido que ganhou eleições e formou governos desde que ascendeu ao poder em 1994.

37 Op.cit relatório de comemoração dos 10 anos da Lei 19/97 página 63 e seguintes, foi uma das convidadas para relatar a sua experiência no que respeita ao processo da reforma agrária na África do Sul.

38 Ibidem, foi aprovada a land reform act e extension of security of tenure act.

39 Lygia Sigaud, as condições das ocupações de terras, página 275, os acontecimentos de ocupações de terras dos fazendeiros brancos no Zimbabwe patrocinadas pelo governo de Mugabe, provocou um grande medo na elite branca sul-africana, dos investidores internacionais e do próprio governo, não apenas pela proximidade geográfica e histórica dos dois países, mas sobretudo porque os acontecimentos no Zimbabwe foram acolhidos favoravelmente dentro das camadas pobres sul-africanas. Face a isso, para tranquilizar as elites brancas e o mercado, o governo tem reiterado que não tolerará o fenómeno de invasão e ocupação de terras e que a reforma se fará estritamente dentro dos ditames da lei.

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A questão sul-africana mostra que não basta aprovar leis para se resolver os problemas das populações. É preciso acção sem hesitação. A indecisão em agir trouxe como consequência que enquanto entre 1984 e 199340, aproximadamente 1.832.341 pessoas foram deslocadas das suas terras e 737.114 sofreram despejo e entre 1994 e 2004 foram deslocadas 2.351.086 pessoas e despejadas 942.303.

Fazendo-se uma análise desta situação mostra-se claramente que a situação teve tendência para se agravar depois de formação de um governo de maioria negra em 1994, na medida em que no que concerne `as deslocações da população rural, o agravamento no período 1994/2004 foi de aproximadamente 78% em relação ao período 1984/1993. Em relação aos despejos no mesmo período, o agravamento igualmente foi de 78%.

A composição dos afectados é na sua maioria negros, dos quais 23% são homens, 28% mulheres e 49% são crianças. Há a notar que os problemas da terra afectam maioritariamente a mulher e a criança, pois, fazendo a avaliação percentual se constata que estes dois grupos representam 77% dos afectados. Há ainda a realçar que 51% das crianças desalojadas e 15% dos adultos vítimas deste processo nasceram nas propriedades rurais em que foram retirados o que constitui um facto doloroso tendo em conta que as pessoas africanas têm muito apego com o seu torrão natal.

Desta abordagem sobre o direito á terra no Zimbambwe e na África do Sul, encontramos em ambos Países um denominador comum que começa no período de colonização e implantação de regimes coloniais e mais tarde de minorias racistas.

Ambos regimes tiveram ainda um denominador comum de expulsar as populações autóctones das suas terras, relegando-as ás terras marginais. Também se assemelham no facto de os seus povos terem conquistado a sua liberdade através de lutas de libertação, combinadas com as lutas políticas e diplomáticas.

Todavia, há diferenças na maneira como os novos governos conduziram os processos de correcção das distorções causadas pela usurpação das terras das populações pelas minorias brancas. Constata-se que enquanto no Zimbabwe o governo foi mais duro retirando a terra a milhares de farmeiros brancos, na África do Sul o governo foi mais brando e cauteloso, talvez por ter aprendido a lição daquilo que aconteceu ao seu vizinho Zimbabwe no que concerne á recessão económica e isolamento internacional.

As lições que se pode tirar é que mexer com a propriedade privada é uma questão delicada. Moçambique ao nacionalizar a terra depois da sua independência enfrentou uma guerra destruidora, cujas causas dentre outras, estava implícita a questão da propriedade da terra.

Para o caso de Moçambique, graças á nacionalização da propriedade da terra passando a ser detida pelo Estado, facilitou-se sobremaneira o acesso `a terra pelas populações desfavorecidas o que permitiu uma rápida reposição dos direitos `a terra negados durante a dominação colonial, uma opção bem sucedida e hoje comparando com a situação sul-africana Teresa Yates diz: “ O uso e usufruto da terra em Moçambique é um 40 1993 foi o ultimo ano do fim do apartheid, porque no ano seguinte se formou o governo democrático e multirracial. Portanto, este dado se refere ao que sucedeu na última década da vigência do regime do apartheid.

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direito de todo o povo moçambicano41. O seu foco é prevenir desprovimento de terras dos pobres rurais; reconhece a força dos direitos de ocupação e oferece oportunidades em vez de limitações”.

De facto, estas são as conquistas que a actual legislação moçambicana sobre terras proporcionou aos moçambicanos que as legislações zimbabweana e sul-africana não podem oferecer ás suas populações desfavorecidas por razões que se prendem com o regime privado da propriedade da terra e questões de natureza histórica e políticas.

Feita esta abordagem sobre o Zimbabwe e África do Sul, passamos, conforme o nosso plano de dissertação, a apresentar o regime de acesso á terra em Angola e Guiné Bissau. Estes dois Países têm algo de comum, pelo facto de além de ambos terem sido colónias portuguesas como aconteceu com Moçambique, outrora foram inclusos no mesmo pacote legislativo em relação á legislação de concessão e ocupação de terrenos no ultramar português.42

3. Direito á terra na República de Angola

Ao iniciarmos o tratamento da questão do direito á terra em Angola, consideramos importante fazermos referência ao tratamento que é dado ao direito á terra na constituição da República daquele País.

Fazendo uma análise da actual constituição da República de Angola, constata-se que a terra é um recurso com dignidade constitucional. Com efeito, dispõe a constituição em referência que a terra é propriedade originária do Estado,43 que pode ser transmitida para pessoas singulares ou colectivas, tendo em vista o seu racional e integral aproveitamento.

O Estado respeita a propriedade das pessoas singulares e colectivas. Um outro aspecto não menos importante é a consagração na constituição do principio de que o

41 Na realidade, a constituição da República de Moçambique de 1990, que estava em vigor quando foi aprovada a Lei nº 19/97, de 1 de Outubro, dispunha no número 3 do seu artigo 46, que como meio universal de criação da riqueza e do bem -estar social, o uso e aproveitamento da terra é direito de todo o povo moçambicano. Esta redacção foi retomada pelo número 3 do artigo 109 da nova constituição da República que reviu a de 1990.

42 Trata-se do Decreto nº 43.894, de 14 de Setembro de 1961, publicado para vigorar nos territórios de Moçambique, Angola e Guiné Bissau, embora posteriormente estendido para as ilhas, por exemplo, para Cabo Verde, conforme consta do preâmbulo do Decreto- Legislativo nº 2/2007, de 18 de Julho que estabelece os princípios e as normas de utilização dos solos em Cabo Verde, o regulamento de concessão e ocupação de terrenos no ultramar português, só foi extensivo a Cabo Verde através da Portaria nº 24.229, de 9 de Agosto de 1969.

43 Cfr o nº 3 do artigo 12° da constituição da República de Angola. É interessante que precisamente no artigo 12 do ante-projecto da constituição da República de Moçambique de 1990, o legislador constituinte moçambicano, propunha que a terra em Moçambique passasse a ser propriedade originária do Estado. Esta ideia não avançou aparentemente porque o poder político estabelecido no País não endossou a ideia por razões políticas ponderosas que se prendem com a necessidade de se assegurar o acesso á terra pela maioria da população moçambicana.

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Estado protege a propriedade e a posse das terras pelos camponeses, sem prejuízo da possibilidade de expropriação por utilidade pública.

Com vista á materialização do direito á terra reconhecido e protegido pela constituição da República, foi aprovada pela Assembleia Nacional de Angola, a Lei n° 9/2004, de 9 de Novembro. Esta lei revogou a Lei n° 21-C/92 de 28 de Agosto. Nesta nova lei, foi retomado o comando constitucional segundo o qual, a terra é propriedade originária do Estado,44 integrada no seu domínio público ou privado. Analisando a lei de terras de Angola podemos tirar a ilação de que a terra é constituída pela propriedade dominial pública e propriedade dominial privada. Portanto, a propriedade dominante sobre a terra é a privada.

3.1. Propriedade dominial pública

A actual lei de terras da República de Angola, Lei n° 9/2004, de 9 de Novembro, prevê que o Estado pode sujeitar os terrenos abrangidos pela sua aplicação, ao regime jurídico de bens de domínio público.45 Os bens de domino público do Estado abrangem:46

As águas interiores, o mar territorial, a plataforma continental, a zona económica exclusiva, os fundos marinhos contíguos, incluindo os recursos vivos e não vivos neles existentes;

O espaço aéreo nacional;

Os recursos minerais;

As estradas e os caminhos públicos, as pontes e as linhas férreas públicas;

As praias e orla costeira, numa faixa fixada por foral ou por diploma do governo, conforme estejam ou não integradas em perímetros urbanos;

As zonas territoriais reservadas á defesa do ambiente;

As zonas territoriais reservadas aos portos e aeroportos;

As zonas territoriais reservadas para fins de defesa militar;

Os monumentos e imóveis de interesse nacional, com tanto que hajam assim classificados e estejam integrados no domínio público;

Outras coisas afectadas, por lei ou por acto administrativo ao domínio público.

Estes bens de domínio público, para além de serem propriedade do Estado, são inalienáveis, imprescritíveis e impenhoráveis. No geral a descrição dos bens de domínio público acabados de enumerar, apesar de terem uma arrumação diferente, no essencial não

44É o que dispõe o artigo 5° da lei de terras de Angola.

45 Idem artigo 13°.

46 Idem artigo 29°.

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há uma diferença substancial com aquilo que é o elenco de bens de domínio público previsto na lei de terras moçambicana.

3.2. Propriedade dominial privada

O Estado tem o domínio privado da terra na sua qualidade de proprietário originário47, mas na verdade a propriedade da terra na República de Angola é privada. Nesse sentido, o Estado pode, nos termos da lei transmitir aos sujeitos de direito dentre outros direitos, o direito de propriedade.48

A lei de terras de Angola, remete o tratamento do direito de propriedade privada sobre a terra ao regime jurídico do código civil, o que atesta o carácter privatístico da propriedade da terra. Nota-se no texto legal a revitalização do instituto da enfiteuse.49

Trata-se de uma figura jurídica que na legislação moçambicana sobre terras entrou em desuso desde a primeira lei de terras aprovada em 1979, a lei 6/79, de 3 de Julho. Ao optar pela figura de enfiteuse como mecanismo jurídico para os sujeitos de direito acederem á terra, está-se perante a situação em que o Estado angolano se encontra na posição de detentora de domínio directo e nesse caso senhorio e os concessionários na posição de detentores do domínio útil, como enfiteutas ou foreiros.50

47 Op. Cit artigo n° 5°.

48 Cfr artigo 34°

49 O artigo 38° da lei de terras angolana, fala de domínio útil civil, como aquele que é integrado pelos poderes que o artigo 1.501° do código civil reconhece ao enfiteuta. Ainda no mesmo artigo, pode se ler que ao domínio útil civil aplicam-se também as disposições contidas nos artigos 1.491° a 1.523° do código civil. De notar que o artigo 1491° do código civil define a noção de enfiteuse, cuja figura jurídica é tratada no articulado seguinte.

50 É o entendimento que se pode retirar do número 3 do artigo 1.491° do código civil.

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3.3. Sujeitos com Direito á terra

Aos sujeitos do direito de propriedade a lei designa-os por titulares e eles compreendem dentre outros:51

As pessoas singulares de nacionalidade angolana;

As pessoas colectivas de direito público com sede principal efectiva no País, contanto que tenham capacidade jurídica de aquisição sobre coisas imóveis;

As pessoas colectivas de direito privado com sede principal efectiva no País nomeadamente as instituições religiosas de caridade e outras sem fins lucrativos;

As empresas públicas angolanas e as sociedades comerciais com sede principal efectiva no País.

As pessoas singulares e colectivas estrangeiras ;

As pessoas colectivas estrangeiras de direito público com capacidade para adquirir imóveis, desde que haja reciprocidade de tratamento em relação ás instituições públicas angolanas.52

3.4. Domínio Consuetudinário

A lei reconhece o direito de acesso á terra pelas famílias angolanas53. Assim, a lei dispõe que todas as famílias que integram as comunidades rurais, a ocupação, posse e os direitos de uso e fruição dos terrenos rurais comunitários por si ocupados e aproveitados de forma útil têm direito assegurado.

O direito das comunidades deve ser titulado pela autoridade competente e a lei proíbe a concessão de terrenos de domínio útil comunitário salvo quando há acordo prévio com as autoridades tradicionais permitindo a desanexação de parte do terreno do domínio comunitário.54

51 ? Cfr artigo42° da LT de Angola

52 Esta é uma exigência que na lei de terras moçambicana não vem prevista, o que faz com que entidades públicas estrangeiras tenham acesso á terra sem restrições.

53 Idem artigo 37°

54 O número 4 do artigo 37° da lei de terras de Angola refere que ouvidas as instituições do poder tradicional, poderão ser desafectados determinados terrenos comunitários e sua concessão aos interessados, sem prejuízo de aos comunitários abrangidos, serem atribuídos outros terrenos, ou na falta dessa possibilidade deverá-se -lhes atribuir a compensação que lhes for devida. Esta prática de compensação pela perda das suas terras difere do regime adoptado em Moçambique, onde desde que se faça consulta ás comunidades e estas aceitarem, a terra é entregue sem que haja compensação. Apesar de o número 3 do artigo 27 do regulamento da actual lei de terras de Moçambique prever a hipótese de existência de parceria entre o investidor e as comunidades, na prática poucas parcerias têm sido feitas.

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Um outro aspecto é que a gestão das terras comunitárias é feita de acordo com as normas e práticas costumeiras. O direito das comunidades é por tempo indeterminado e é gratuito. Todavia, o direito pode ser perdido pelo não uso.55

3.5. Acesso ás concessões

Sendo a terra propriedade privada, isso implica que o acesso ao direito de exploração particular de uma parcela de terra concessionada seja feito a título oneroso. A lei estabelece que a transmissão ou constituição dos direitos fundiários só pode ter lugar a título oneroso, salvo algumas excepções que beneficiam as comunidades e pessoas que provam carecer de meios económicos para suportar os encargos financeiros que lhes for exigidos pela ocupação da terra.56 A terra na República de Angola é susceptível de comércio jurídico, no âmbito das prerrogativas conferidas pelo direito de propriedade.57

Em Moçambique a terra não se vende, mas está sujeita ao pagamento de uma taxa. Todavia, o sector familiar e as comunidades e pessoas singulares que as integram, estão isentos de pagamento de taxa.58

3.6. Transmissibilidade

No concernente á transmissibilidade do direito á terra, a lei de terras de Angola prevê a transmissão ou oneração de terrenos que se encontram no domínio privado do Etado.59 Sendo a terra propriedade originária do Estado angolano, o Estado tem a possibilidade de transmitir a terra em regime de propriedade originária60 por enfiteuse e a título oneroso.

55 A perda de direito pelo não uso pelas famílias rurais ou pelas comunidades é uma figura que não consta na lei moçambicana, o que tem dificultado muitas das vezes ás autoridades comunitárias, porque vezes sem conta surgem conflitos por se ter entregue terrenos abandonados a longos anos por pessoas que entendendo voltar depois de décadas, reivindicam o retorno do espaço e na falta de uma norma desta que impõe a perda de direito pelo não uso as pessoas acabam tendo legitimidade de reivindicar os seus terrenos de volta.

56 É o que dispõe o artigo número 47º da actual lei de terras de Angola.

57 Cfr os artigos 46º e 48º da lei de terras de Angola. Todavia, apesar de a terra poder ser objecto de comércio jurídico, os sujeitos de direito não gozam de liberdade absoluta na realização de transacções sobre terrenos, na medida em que a lei de terras impõe condições. Encontramos essas condições no nº 6 do artigo 61º da lei de terras de Angola, que dispõe que a transmissão de direitos fundiários entre vivos, quer de forma onerosa ou gratuita está sujeita á autorização prévia da entidade competente. No mesmo número se impõe como condições que a concessão só é transmissível se tiverem decorrido 5 anos e que o aproveitamento do terreno tenha sido útil e efectivo, o que equivale dizer que não se pode alienar um terreno que não se tenha investido nele, sob pena de nulidade do negócio jurídico.

58 O artigo 29 da actual lei moçambicana de terras, Lei nº 19/97, de 1 Outubro, na sua alínea c), estabelece a isenção ao sector familiar, ás comunidades locais e pessoas singulares que as integram.

59Ibidem nº 1 do artº 6º. Da lei de terras de Angola.

60 Idem, nº 1 do artº 20º da LT de Angola

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3.7. Extinção de direitos

A lei angolana de terras prevê causas de extinção do direito a uma concessão61 nos seguintes termos:

Pelo decurso do prazo estabelecido em contrato se este for por tempo determinado;

Pelo não exercício do direito ou não aproveitamento útil durante 3 anos seguidos ou 6 anos interpolados, independentemente dos motivos que deram azo;

O desvio de aplicação do terreno em relação aos fins previstos, implica o cancelamento do direito;

Não perseguir o fim económico e social que determinou a outorga do direito fundiário;

Por expropriação por utilidade pública.

A lei não diz o que será feito das benfeitorias e outros investimentos que porventura o fundiário tiver realizado no terreno. Mas uma coisa certa indica que apesar de haver propriedade privada de terra na República de Angola, o nosso entendimento é de que a propriedade privada só é efectiva quando cumpridas as exigências da lei, a maior delas a de utilização efectiva da terra de modo a pô-la a desempenhar o papel económico e social que lhe é inerente.

Da análise resumida e centrada no essencial sobre o direito á terra na República de Angola, retiramos o entendimento de que a terra é propriedade privada, encontrando-se no comércio jurídico. Todavia, apesar de ser propriedade privada, nota-se que está implícito o intervencionismo do Estado porventura para evitar situações de desmandos e de especulação, mas também pode ser a influência do sistema da propriedade do Estado sobre a terra de que o país acaba de sair. De qualquer modo se mostra que a privatização da propriedade da terra se mantém como uma matéria delicada e sensível que merece cautelas.

O direito das comunidades rurais é assegurado por tempo indeterminado e de forma gratuita. Encontramos um aspecto relevante e inovador em relação á lei de terras de Moçambique. É que apesar de o direito das comunidades á terra ser por tempo indeterminado, elas podem perdê-lo pelo abandono que contribui para o não uso. Esta medida tem uma vantagem porque o Estado pode assim dispor dos terrenos abandonados caso se verifique tal situação para afectá-los a outros interesses.

Depois desta abordagem sumária sobre a Lei 9/2004, de 9 de Novembro, lei de terras da República de Angola, passaremos de seguida a apresentar o direito á terra na República da Guiné Bissau.

61 Idem, artigo 64º.

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4. Direito á terra na Guiné Bissau

Começaremos a abordagem da questão do direito á terra na República da Guiné-Bissau, por analisar o tratamento que é dispensado a este recurso natural pela constituição política daquele País.

Da análise que efectuamos á constituição vigente na Guiné-Bissau, constatamos que a questão da terra mereceu uma atenção na constituição da República em vigor naquele País. Para a lei fundamental da Guiné-Bissau, a terra, que na sua terminologia chama de solo, a par de outros recursos naturais, é propriedade do Estado.62

A constituição da República da Guiné-Bissau, dispõe que o Estado pode dar por concessão ás cooperativas e outras pessoas jurídicas singulares ou colectivas, a exploração da propriedade estatal desde que tal exploração tenha por fim servir o interesse geral da colectividade com vista ao aumento da riqueza nacional.63

Movido pela ânsia de criação de um quadro legal apropriado com vista ao estabelecimento de mecanismos práticos para o acesso ao direito á terra pelos sujeitos de direito, foi aprovada pela Assembleia Nacional Popular, órgão máximo do poder legislativo da República da Guiné, a lei número 5/98, de 23 de Abril, lei da terra, que revogou a lei número 4/75, a primeira lei de terras do País, através da qual o Estado guineense nacionalizou a terra passando-a para propriedade de todo o povo. A seguir apresentamos uma breve abordagem dos principais vectores desta lei.

4.1 . Propriedade da terra

A lei de terras retomou o comando constitucional segundo o qual a terra é propriedade do Estado. Assim, a lei de terras preconiza que a propriedade da terra é propriedade do Estado e constitui património comum de todo o povo.64 Nesta lei podemos encontrar vertidas as seguintes ideias:

A terra é suporte físico da comunidade;

A terra é um bem eminentemente nacional, qualquer que seja a forma do seu uso ou exploração.

Fazendo uma análise comparada, constata-se que o regime jurídico da propriedade da terra adoptado na Guiné Bissau, é semelhante ao regime previsto quer na constituição da República de Moçambique, quer na respectiva legislação sobre terras65. A constituição da República de Moçambique e a lei de terras de Moçambique declaram a terra propriedade do Estado, portanto, património de todo o povo. É de referir que tanto a constituição, como a própria lei de terras da República de Moçambique, sublinham a proibição da venda de 62 Cfr o nº 2 do artigo 12° da constituição da República guineense. Para além da terra e do seu subsolo, são também propriedade do Estado, as águas, as riquezas minerais, as principais fontes de energia, a riqueza florestal e as infra-estruturas sociais.

63 Cfr o nº 1 do artigo 13° da constituição da República da Guiné.

64 Cfr o nº 1 do artigo 2° da lei de terras da Guiné Bissau.

65 Cfr o artigo 109 da constituição da República de Moçambique e o artigo 3 da lei de terras do mesmo país.

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terras, sua oneração, ou qualquer outra forma de alienação, facto que em nenhuma passagem se refere a lei de terras da Guiné.

4.2. Uso da terra

Uma análise atenta do conteúdo da disposição legal relativa ao uso da terra, chega-se ao entendimento de que esta figura se refere aos sujeitos de direito. No que concerne aos sujeitos de direito, a lei de terras guineense dispõe que todos os cidadãos têm direito á terra sem discriminação de sexo, de origem social ou da proveniência dentro do território.66

Concretamente são sujeitos de direito, pessoas singulares e colectivas nacionais, podendo também as mesmas categorias de sujeitos estangeiros terem acesso á terra. 67

A lei de terras da Guiné reconhece o direito á terra das comunidades, gerido de acordo com as normas e práticas costumeiras. O uso da terra pelas comunidades é gratuito e não é forçoso que ele seja sujeito a registo68.

4.3.Prazos da vigência do direito às concessões

O direito de uso privativo da terra na República da Guiné tem prazos. Assim, segundo a lei de terras que temos vindo a estudar, o uso privativo de uma parcela de terra conferido em regime de concessão, é atribuído pelo prazo máximo de 90 anos automaticamente renovável se não houver uma denúncia com antecedência mínima de 3 anos.69 Sentido contrário é tomado pela lei no que se refere `as concessões respeitantes ao direito de superfície e ao direito de uso da terra pelas comunidades locais em sede do direito consuetudinário, que o prazo é perpétuo.70

66 É o que prevê o artigo 4° da lei de terras da Guiné.

67 Na lei de terras moçambicana, Lei nº 19/97, de 1 de Outubro, encontramos o tratamento de sujeitos de direito em dois artigos distintos. Os sujeitos nacionais são tratados no artigo 10 e têm acesso ao direito sem condicionalismos, enquanto que os estrangeiros são tratados no artigo 11 e a eles são colocadas exigências de possuírem como pré-requisito de elegibilidade, o projecto de investimento devidamente aprovado pela entidade competente. Além disso existe o requisito cumulativo que exige que no caso de pessoas singulares devem residir há pelo menos 5 anos em Moçambique e no caso de pessoas colectivas devem ter sido criadas ou registadas em Moçambique.

68 No artigo 17° da lei de terras da Guiné, o Estado reconhece o direito das comunidades á terra, bem como a garantia da segurança de posse mesmo sem titulo ou registo. É situação similar com a lei de terras de Moçambique, a Lei nº 19/97, de 1 de Outubro, que reconhece no seu artigo 10, o direito das comunidades locais e reconhece no nº 2 do artigo 13 que a ausência do título não prejudica o direito á terra adquirido pelas comunidades locais. No nº 2 do artigo 14, a lei dispõe que a ausência de registo não prejudica o direito adquirido por ocupação nos termos da lei.

69 É o que dispõe o nº 2 do artigo 22° da lei de terras da Guiné-Bissau.

70 As concessões do direito de superfície e respectivo prazo estão previstos no nº 3 do artigo 22° da lei de terras da Guiné. De acordo com o que dispõe este preceito legal, o direito de superfície apesar de perpétuo, está sujeito no entanto ás normas de extinção do direito. No que se refere ao direito perpétuo conferido ás comunidades locais, encontramos suporte jurídico no nº 2 do artigo 16° da lei de terras da Guiné.

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A ideia de concessão da terra por tempo determinado é semelhante com o que estabelece a legislação moçambicana sobre terras. Na verdade, a lei de terras de Moçambique define um prazo de 50 anos para o direito adquirido por autorização de um pedido e um prazo perpétuo para o uso e aproveitamento da terra pelas comunidades locais.71 Verifica-se que a lei de terras da Guiné-Bissau em matéria de prazo de validade do título ou contrato administrativo como eles chamam, é mais favorável em relação ao prazo estabelecido na legislação moçambicana. Isso pode traduzir-se em enormes vantagens porque quanto mais for longo o prazo de validade do direito, na nossa opinião isso pode inspirar maior segurança de posse por parte dos investidores, o que pode contribuir para maior desenvolvimento do país.

4.4.Transmissibilidade do direito á terra

Nos termos da lei de terras da Guiné-Bissau72, o direito de uso privativo adquirido por concessão através de um contrato administrativo, é passível de transmissão entre vivos e mortis causa, desde que haja prévia autorização pela entidade competente que autorizara o pedido da respectiva concessão. A exigência de autorização prévia pela entidade competente não é imposta á transmissão do direito por herança. Este regime de transmissibilidade do direito segue também a legislação moçambicana sobre terras, quer para a transmissão entre vivos, bem como a transmissão mortis causa.73

4.5. Extinção do direito de uso privativo

71 É o que estabelece o artigo 17 da lei de terras da República de Moçambique, lei 19/97, de 1 de Outubro. Neste preceito e no que diz respeito ao prazo perpétuo, podemos apurar que o legislador além de considerar o prazo de uso da terra pelas comunidades locais, quis particularizar e realçar que as explorações familiares também têm direito de uso e aproveitamento da terra por tempo indeterminado. Um outro aspecto que a lei moçambicana apresenta, é que o direito de ocupação da terra para fins de habitação própria, está isento de prazo, isto é, a ocupação é por tempo indeterminado. Difere da lei guineense que aparentemente o prazo de ocupação da terra pelos superficiários é por tempo ilimitado para todo o tipo do direito de superfície, o que dá a entender que mesmo as concessões respeitantes ao direito de superfície para fins lucrativos, beneficiam do prazo perpétuo, facto que não acontece em Moçambique.

72 Cfr o artigo 23° da lei de terras da Guiné.

73 O artigo 16 da lei de terras em vigor em Moçambique Lei nº 19/97, de 1 de Outubro, estabelece a transmissibilidade do direito de uso e aproveitamento da terra. Todavia, além de se assemelhar no essencial com a lei guineense, a lei moçambicana tem particularidades porque diz expressamente que a condição para a transmissão do direito de uso e aproveitamento da terra entre vivos tem como base a alienação de infra-estruturas, construções e benfeitorias que o titular do direito tenha edificado legalmente no terreno. Olhando para a lei da Guiné, essa exigência de condicionar a transmissibilidade do direito entre vivos á existência de benfeitorias parece não existir. Podemos presumir neste caso e no silêncio da lei, que há uma espécie de livre transmissibilidade de títulos de terras em terrenos sem benfeitorias. Um outro aspecto que a lei moçambicana de terras, Lei nº 19/97,de 1 de Outubro, prevê no nº 4 do artigo 16, é a livre transmissão de direitos sobre terrenos em que foram implantados prédios urbanos, permitindo que essas transacções não dependam de autorização prévia da autoridade que autorizara o direito. Há neste caso livre transmissão de títulos de terras sobre terrenos em que se edificaram prédios urbanos. A lei da Guiné não se refere particularmente a esta questão dos prédios urbanos, levando-nos a presumir que as transacções que incidem sobre este tipo de prédios, carecem de autorização prévia da autoridade competente que inicialmente autorizara o pedido.

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Como direito comum de todo o povo, o direito de uso privativo da terra tem atrás de sí obrigações que se não forem cumpridas podem implicar a perda do direito. Por outro lado, sendo um direito que os sujeitos concessionários o adquirem por sua livre e espontânea vontade, podem, querendo, renunciar das suas concessões.

Nessa perspectiva a lei de terras da Guiné74, dispõe que uma das modalidades de extinção do direito é o da caducidade, considerando como eventos jurídicos para que ela ocorra o decurso do prazo da concessão, morte de pessoa singular sem deixar herdeiros, extinção da pessoa colectiva, desaparecimento ou inutilização do objecto da concessão e expropriação por utilidade pública.

Outros factos jurídicos que podem concorrer para extinção do direito de uso privativo da terra são o não cumprimento do plano de exploração, o abandono total ou parcial da concessão, cedência da titularidade do direito sem prévia autorização da autoridade competente, uso da terra concessionada para fins diferentes dos previamente autorizados.

Além das figuras de caducidade e do cancelamento do direito, a lei prevê também a figura da renúncia dos titulares do direito que pode ser apresentada a qualquer momento junto das entidades competentes com antecedência de um ano.

Uma vez extinto o direito de concessão em qualquer uma das figuras jurídicas atrás mencionadas, os efeitos jurídicos imediatos essenciais são a reversão da terra e de todas as infra- estruturas, construções e benfeitorias nela implantadas, salvo nos casos em que há direito á justa indemnização por conta do Estado nos termos da própria lei de terras.

Olhando para o regime de extinção do direito de uso privativo previsto na lei guineense, conclui-se que na essência nada difere com o que prevê a lei moçambicana de terras. A única diferença é que o legislador guineense aglutinou as causas de extinção do direito de uso privativo num só artigo.75

74 A extinção do direito por caducidade vem previsto no artigo 24° da lei de terras da Guiné. No artigo 25° prevê-se a figura de extinção do direito por rescisão, enquanto a extinção por renúncia do titular está previsto no artigo 26° e os efeitos da extinção das concessões estão previstos no artigo 27° da mesma lei.

75 Estamos a falar do artigo 18 da lei de terras de Moçambique, Lei nº 19/97, de 1 de Outubro, sob a epígrafe extinção do direito de uso e aproveitamento da terra.

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4.6. Publicidade dos actos

A lei de terras da Guiné prevê que para efeitos da consulta pública,76 o requerimento deverá ser publicado no boletim e no jornal oficial e sujeito á publicação do edital na zona de situação do terreno pretendido e nas comunidades vizinhas. Também se prevê o anúncio na rádio nacional e local durante 1 semana, feito nas duas línguas maternas dominantes na comunidade local onde se requer o direito. O objectivo dos anúncios é de permitir que os interessados poderão apresentar as suas reclamações, querendo.

A legislação moçambicana de terras prevê a publicitação dos requerimentos ao direito de uso e aproveitamento da terra, através da consulta ás comunidades locais e de fixação de editais na sede do Distrito e nas sedes dos Postos administrativos da situação do terreno pretendido.77

Ao fazermos esta abordagem da matéria relativa á consulta pública, uma questão se nos ressalta. É que durante a preparação da lei de terras de Moçambique, uma das grandes discussões foi a necessidade de se simplificar os procedimentos processuais de modo a torná-los céleres e menos onerosos para os sujeitos de direito. Olhando para as exigências que a lei guineense impõe nomeadamente, a publicação do requerimento no boletim oficial e no jornal oficial, a publicação do requerimento durante uma semana na rádio nacional e local. São actos que pela sua natureza têm custos elevados, quer sejam suportados pelo Estado, quer sejam suportados pelo requerente. No nosso entender as exigências processuais impostas pela lei de terras da Guiné Bissau são bastante onerosas e de difícil execução.

4.7.Regime tributário

Sendo a terra na Guiné Bissau propriedade do Estado, como contrapartida pelos serviços prestados pela Administração Pública no âmbito dos processos de titulação do direito á terra por concessão, é devida uma taxa única denominada taxa de concessão. O mesmo tipo de taxa é devido nos casos de transmissão gratuita ou onerosa de direitos. Pelo uso privativo da terra na Guiné, o concessionário deve suportar um imposto fundiário anual.78 A lei moçambicana prevê um regime tributário que não distingue imposto e taxa,79

tratando tudo como taxa do direito de uso e aproveitamento da terra, com a classificação em taxa de autorização provisória, taxa de autorização definitiva e taxa anual. Não está prevista na legislação moçambicana como acontece na legislação guineense, a taxa para os casos de transmissão onerosa ou gratuita da terra.

76 O artigo 33° da lei de terras da Guiné estabelece as regras de publicitação dos requerimentos da terra.

77 O nº 3 do artigo 13 da lei de terras de Moçambique, Lei nº 19/97, de 1 de Outubro, prevê a necessidade de consulta á comunidade local quando se pretende titular direitos a favor de um requerente. O artigo 27 do regulamento da lei de terras moçambicana fixa regras de consulta ás comunidades locais e cria uma base legal para afixação do edital. De referir que nos termos da alínea f) do nº 1, do artigo 24 do regulamento da mesma lei, o edital deve ser afixado durante 30 dias. É um prazo que coincide com o que vem previsto na legislação da Guiné Bissau.

78 O regime de tributação vem previsto no artigo 38° da lei de terras da Guiné.

79 Cfr o artigo 28 da actual lei de terras de Moçambique, Lei 19/97, de 1 de Outubro.

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No fim do estudo da lei de terras da Guiné-Bissau, obtivemos o conhecimento de que a terra naquele país é propriedade do Estado. Esse regime de propriedade é semelhante ao que é perfilhado pela República de Moçambique. Sendo a terra propriedade do Estado, encontramos em ambos os países um alto índice de intervenção do Estado na gestão da terra na qualidade de proprietário, na constituição, modificação e extinção de direitos de uso da terra. Os dois países se diferem de Angola, onde o Estado intervém na fase inicial de atribuição do direito á terra aos concessionários por enfiteuse ou por compra e venda, mas depois os sujeitos de direito são de certa forma autónomos, guiando-se pelos princípios que regem o direito de propriedade, concretamente, o poder de usar, fruir e dispor da coisa, neste caso, da terra.

Depois de concluirmos o estudo sobre o direito á terra na África do Sul, no Zimbabwe, Angola e na Guiné-Bissau, passaremos a uma breve abordagem do direito á terra em Moçambique no período antes da independência nacional.

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CAPÍTULO II

O DIREITO Á TERRA EM MOÇAMBIQUE ANTES DA INDEPENDÊNCIA

Uma abordagem da questão do direito actual á terra em Moçambique, sem se referir á realidade histórica vivida por este País ao longo dos anos que antecederam á sua independência nacional, estaríamos a cometer uma omissão relevante. Estamos a falar da realidade que a ocupação da terra enfrentou desde a penetração colonial portuguesa, considerando que esta teve como motivação principal o acesso á terra com vista á exploração dos seus vastos recursos naturais.

Desde os primórdios da penetração colonial portuguesa, vários regimes de ocupação da terra foram ensaiados. Com efeito, desde o principio da dominação colonial portuguesa vários regimes se sucederam, concretamente o regime de prazos, o das companhias majestáticas e o que foi encontrado a vigorar em Moçambique na altura da proclamação da independência nacional em 1975.

É pois, essa retrospectiva que se pretende fazer neste capítulo, como uma contribuição para se entender as reais causas que de certa forma podem ter influenciado para o posicionamento do legislador constituinte e ordinário do Moçambique independente em matéria da propriedade da terra, que até hoje consideramos assunto que os moçambicanos ainda não têm uma opinião comum.80

O objectivo deste capítulo não é fazer uma abordagem exaustiva de cada regime, pois não sendo o cerne do nosso estudo, consideramos que esta referência resumida visa, como dissemos supra, fazer uma ponte entre o contexto actual e o passado. Neste contexto, abordaremos:

1. Prazos da Coroa Portuguesa:

1.1. Origem dos prazos;

1.2. O regime de prazos;

2. As companhias majestáticas:

2.1. A génese das companhias majestáticas;

2.2. Conceito, natureza jurídica e criação;

2.3. Funções essenciais das companhias majestáticas;

80 Tem havido correntes predominantemente citadinas que defendem a privatização da terra e essa ideia é corroborada pelos investidores. A mesma ideia já não encontra apoio no seio dos camponeses que defendem a manutenção da propriedade do Estado sobre a terra por considerarem que isso assegura melhor a posse de terras pelas comunidades locais, temendo que a privatização irá contribuir para a perda dos seus direitos. Este tipo de posicionamento dos camponeses, tivemos oportunidade de ouví-lo nas intervenções dos representantes das associações de camponeses de todo o País presentes na conferência nacional da comemoração da passagem dos primeiros dez anos da vigência da actual lei de terras de Moçambique, Lei 19/97, de 1 de Outubro, realizada em Maputo, de 17 a 19 de Outubro de 2007, na qual tivemos o privilégio de participar como um dos painelistas.

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2.3. Direitos das companhias majestáticas;

2.4. Companhias de Moçambique e do Niassa;

2.4.1. Criação e limites territoriais;

2.4.2. atribuições, eficácia e extinção das companhias majestáticas;

2.4.2.1. Eficácia;

2.4.2.2. Extinção das companhias majestáticas;

3. O direito á terra em Moçambique em 1975, data da proclamação da independência:

3.1. O direito de propriedade sobre terras em Moçambique na última fase da Administração portuguesa;

3.2. Disposição de terrenos a favor dos particulares;

3.3. Direito das comunidades rurais moçambicanas á terra;

3.4. Abordagem de alguns aspectos do processo de concessão.

Feita a justificação dos moldes em que se desenrolará a abordagem do capítulo II do nosso trabalho, segue-se o respectivo desenvolvimento.

1. Prazos da coroa portuguesa.

O regime de prazos constitui uma das figuras jurídicas que o colonizador usou no processo de implantação do colonialismo em Moçambique e da consequente colonização. Antes de falarmos dos prazos, importa referir em traços muito breves como é que se iniciou a ocupação do território que hoje constitui a República de Moçambique.

Reza a história81 que na África Oriental, inicialmente a ocupação colonial no início se resumia a algumas áreas da costa marítima, que jogavam o papel de bases de apoio logístico á navegação marítima com destino ao oriente.

Assim, o primeiro local de que se tem memória é a ocupação de Sofala assinalada pela construção de uma fortaleza em 1505. Nos anos que se seguiram, regista-se sucessivamente a construção das fortalezas de Moçambique e Quelimane dentre outras.

As primeiras conquistas dos territórios do interior, começam com a ambição de ocupação pela força das terras onde se situavam as minas do Monomotapa. A Conquista destas terras foi encarregue a Francisco Barreto em 1569. Apesar desta conquista, a soberania portuguesa só viria se implantar 58 anos mais tarde, isto é, em 1627 no reinado de D. Nuno Álvares Pereira.

81 A questão das terras em Macau, página 17.

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Neste período a base de economia não tinha a exploração da terra como actividade principal. Verifica-se que a base de economia era essencialmente o comércio de ouro, marfim e a partir de 1645, o comércio de escravos. Todavia, é neste período que uma ténue ocupação agrícola surgiu com os prazos da Zambézia.

1.1. Origem dos prazos

A referência á figura de prazos surge pela primeira vez referida numa obra do Jesuita Manuel Barreto em 1667.82 Para alguns os prazos é uma instituição que se atribui aos árabes que ocuparam o território da Zambézia nos séculos VIII e X e outros os atribuem aos Macarangas de origem bantu. Mas uma coisa clara é de que o instituto de prazos não tem origem na Administração colonial portuguesa. Ela se aproveitou dela para realizar as suas intenções de ocupação e colonização do território. Trata-se de um regime tribal transformado num regime feudal alargado pela Coroa portuguesa aos novos territórios conquistados.83

1.2. O regime de prazos

O regime de prazos já assumido e adaptado pelos colonizadores de Moçambique consistia na concessão de terrenos por 3 vidas84 de terrenos a pessoas de sexo feminino, europeias casadas com colonos europeus. Os direitos constituídos se transmitiam pela linha feminina e decorridas três vidas a propriedade do terreno voltava para as mãos da Coroa portuguesa para as aforar de novo. Não está claro na bibliografia que lemos se depois da reversão os antigos detentores do prazo podem voltar a candidatar-se ao novo aforamento.

O objectivo do regime de prazos era de promover o desenvolvimento, por isso se impunha aos enfiteutas:

Desenvolver a agricultura;

Obrigatoriedade de residir no prazo.

82 Ibidem. Na obra intitulada informação do Estado e conquista dos rios de Cuama também vulgarmente chamado naquela altura por rio de Ouro, descrevia em pormenor a extensão que os portugueses ocupavam naquela altura. Mas um pormenor importante dessa descrição é que ele referia que toda esta extensão de território que ele aludia, estava todo ele dividido em prazos, o que mostra que este sistema foi encontrado pelo colonizador português a vigorar no território que hoje é Moçambique. Todavia, Alexandre Lobato, citado por Amélia Neves de Souto, na sua obra guia bibliográfica para o estudante de história de Moçambique, página 205, 1ª edição, nega que os prazos sejam uma instituição árabe, porque estes nunca dominaram o território. Mas dois autores citados por esta autora na mesma obra concretamente Oliveira Martins e Pedro Álvaro defendem que os prazos são uma instituição com origem árabe. Julgamos que a teoria da falta de dominação do território defendida por Lobato não é suficiente para sustentar a negação da ideia de que os prazos são uma instituição árabe porque estes tinham relações comerciais que lhes permitiam transmitir práticas e tradições aos povos com quem contactavam. Veja-se o exemplo da religião islâmica.

83 Ibidem página 18

84 Maria Leonor Correia Matos, notas sobre o direito de propriedade da terra dos povos angoni, acheua e ajaua da Província de Moçambique, página 12.

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Como contrapartida, além de cedência do terreno dentro dos contornos do prazo, a Coroa portuguesa atribuía grandes privilégios aos enfiteutas, como mais adiante iremos ver.

O prazo era um sistema de aforamento de terras em que o senhorio cobrava mussoco, um imposto que constituía um antigo tributo que era devido aos conquistadores. O senhorio tinha direito a todo o marfim achado ou resultante de caça dos elefantes no território do prazo. Um outro direito era o trabalho da população indígena que era obrigada a prestar serviço a favor do enfiteuta nomeadamente na agricultura, transporte e participar na guerra a favor do seu senhorio. Os poderes dos senhores dos prazos eram muito mais amplos, pois podiam aplicar a pena de morte aos indígenas residentes nos seus territórios, obrigá-los a participar em guerras e impor-lhes tributos.

É um sistema que não teve o sucesso almejado que era fundamentalmente o desenvolvimento da agricultura, porque os enfiteutas ocuparam-se mais noutras questões ligadas á administração do território como a cobrança de impostos.

Devido ás dificuldades apresentadas pelo regime de prazos no desenvolvimento do território, várias medidas foram ensaiadas pela Administração Central portuguesa como uma forma de melhorar o sistema das quais podemos mencionar85:

Em 1760 o Conselho Ultramarino, pela sua provisão de 3 de Abril, limitou a dimensão de cada prazo que dali em diante fosse concedido, para 3 léguas86 de comprimento e uma légua de largura. A limitação foi mais severa para as terras que se presumia haver ocorrência de minerais. Essa medida também se estendeu a terras da orla marítima e dos rios navegáveis, onde a largura máxima concedível devia ser de meia légua.

Pela provisão de 25 de Fevereiro de 1779, se obrigava os enfiteutas a fixarem residências nos prazos a eles concedidos. O objectivo era assegurar a realização de actividades agrárias que era o objectivo fundamental dos prazos, mas estava também subjacente o desejo da Coroa de se assegurar o início de uma ocupação efectiva do território moçambicano.

Consta que pela sua natureza instável este regime foi objecto de constantes medidas legislativas, até que pelo decreto de 13 de Agosto de 1832, dispositivo legal que não chegou a ser cumprido, se aboliu o regime de prazos.

Pela portaria de 1 de Junho de 1838, ordenou-se que os prazos que ficassem vagos não podiam ser aforados de novo, isto é, nessas terras vagas não podiam ser concedidos novos prazos. A portaria de 28 de Novembro do mesmo ano, determinou o aforamento de terras em lotes de menos de uma légua com obrigação de serem trabalhadas no espaço de um ano.

Em 22 de Dezembro de 1854 mais uma vez o governo português decide abolir o regime de prazos em Moçambique revertendo as terras antes sujeitas a prazos a

85 Opcit a questão das terras em Macau, paginas 18 e 19.

86 Cfr J. Almeida Costa e A. Sampaio e Melo, dicionário da língua portuguesa, 6ª edição corrigida e aumentada, página 1003, define légua como a antiga unidade de medida itinerária que valia 5 quilómetros-

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favor da Coroa portuguesa e os colonos passaram a receber lotes de terrenos de menos de 50 hectares e sujeitos ao pagamento do imposto de palhota. Os antigos senhores dos prazos passaram a figurar como donatários e foram indemnizados com terras dentro do mesmo prazo ou de outros.

Mais uma vez o decreto de 1854 não foi cumprido, tal era a resistência das pessoas que se beneficiavam do regime de prazos, o que fez com que o governo aprovasse um novo decreto em 1880 datado de 27 de Outubro, declarando a extinção dos prazos. Substituiu-o o regime de arrendamento, mas os arrendatários continuaram também com abusos, um dos quais o de cobrança de mussoco o que propiciou o surgimento de revoltas contra estas práticas.

O regime jurídico de arrendamento acabou sendo regulado em 1886, eliminando o trabalho gratuito dos colonos excepto para fins de interesse público.

Todavia, António Enes repristinou o regime de prazos em 1890 através do seu decreto de 18 de Novembro. Nesse decreto foi reformado o trabalho obrigatório dos colonos e o mussoco. Segundo este decreto, no fim de 3 anos o foreiro devia ter cultivado a terça parte dos terrenos aforados e o resto no fim de 25 anos

A matéria do regime de prazos é vasta porque ela penetrou até aos primeiros anos do Século XX.87 O que se pode dizer em resumo é que apesar de todos os defeitos que este regime teve, ele contribuiu para uma afirmação da penetração e ocupação colonial em Moçambique, embora não se tenha conseguido realizar em pleno o objectivo principal da exploração agrícola, porque muitos colonos a isso se furtaram, ocupando-se mais em actividades como de cobrança de mussoco que lhes proporcionava lucro fácil, dentre outras.

Todavia, se bem que o regime contribuiu e trouxe benefícios porque facilitou a penetração e implantação do colonialismo em Moçambique, o mesmo não podemos dizer dos nativos uma vez que o sucesso do colonizador no que respeita á ocupação do território, tal feito representou a exclusão dos direitos dos naturais, negando o seu direito á terra que lhes pertence, que antes da penetração colonial dela se dispunham sem restrições. Os naturais eram donos soberanos das suas terras.

Depois desta breve abordagem sobre o regime de prazos da coroa portuguesa, a seguir faremos uma breve análise do regime das companhias majestáticas de colonização.

2. As companhias majestáticasAs companhias majestáticas fazem parte de instituições importantes que contribuíram

para a consolidação do fenómeno colonial em Moçambique. Elas representaram uma etapa no projecto de colonização do país, tendo a ocupação da terra como questão nuclear.

2.1. A génese das companhias majestáticas

87 Ibidem página 20 a legislação sobre prazos é enorme e pode se citar a lei de 9 de maio de 1901 que estende o regime de prazos á Guiné e Timor, os Decretos de 21 de Abril e de 9 de Julho de 1910 e o Decreto nº 5 713 de 10 de Maio de 1919 que manteve provisoriamente o regime dos prazos da Zambézia com as necessárias adaptações até à sua passagem para o domínio do Estado, formando por consequência circunscrições civis.

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Para entendermos a génese das companhias majestáticas é importante abordar alguns acontecimentos históricos que influenciaram o mundo, particularmente o continente africano. Iremos neste caso falar da conferência das potências coloniais realizada em Berlim em 1885.

Como resultado da realização da conferência de Berlim, as potências coloniais adoptaram o acto geral da conferência de Berlim de 26 de Fevereiro de 1885, no qual elas defendiam o principio de ocupação efectiva dos territórios que cada uma ocupava em África. Esse princípio pressupunha a necessidade da solidificação das estruturas administrativas de ocupação dos territórios coloniais africanos.88

Especificamente o acto da conferência de Berlim impunha que os países colonizadores de África, assegurassem a existência de uma autoridade suficiente capaz de fazer respeitar os direitos adquiridos e garantir as condições de comércio e de trânsito.89

As motivações para esta viragem de atenções da Europa para África, são essencialmente de natureza económica, nomeadamente a busca de novos mercados para colocação dos seus produtos acabados. No que respeita às motivações de natureza política, encontramos uma determinação inequívoca de expansão dos impérios coloniais europeus com vista à dominação do continente africano e dos seus povos.

Entretanto, Portugal como potência colonizadora, não conseguiu cumprir o compromisso assumido no acto da conferência de Berlim90 no sentido de assegurar uma ocupação efectiva dos territórios ocupados. Como potência colonizadora, Portugal já tinha mostrado incapacidade de assegurar a ocupação efectiva através das estruturas administrativas locais. Portugal enfrentava uma situação económica não favorável, por isso o recurso ao sistema de concessões a vários capitalistas, afigurava-se uma alternativa para atrair investimentos necessários com vista ao desenvolvimento do território com prioridade nas infra-estruturas de transporte, agricultura de plantações e administração do território.91

A opção encontrada foi a de repartição do território de Moçambique em zonas de concessão, atribuindo-as a diversas companhias coloniais com poderes especiais de autoridade. Feitas as considerações gerais em relação à génese das companhias majestáticas, importa debruçarmo-nos de seguida sobre o que são elas.

88 Cfr Rui Guerra Fonseca, Administração Colonial, página 15.

89 Idem, Página 16.

90 Idem, páginas 16 e 17. Aliás, outras potências coloniais como Alemanha, França, Bélgica e Inglaterra, tiveram que recorrer a uma estratégia similar sob diversos moldes. Reza a história que a primeira companhia majestática foi a companhia inglesa Britsh South África Company dirigida por Cecil Rhodes, com amplos poderes atribuídos pela coroa britânica dentre outros, os de firmar tratados com as autoridades autóctones e fazer guerra.

91 Opcit Amélia Neves de Souto, página 160. Segundo esta autora, perante a crise económica que Portugal atravessava, várias medidas foram tomadas em 1890 com vista a atrair investimentos, tais como a aprovação de tarifas proteccionistas, o estabelecimento de companhias majestáticas, definição da política de concessão de terras, definição da política de monopólios para certas indústrias que se estabelecessem nas colónias e política de trabalho colonial.

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2.2. Conceito, natureza jurídica e criação

As companhias majestáticas eram pessoas colectivas privadas, constituídas sob a forma de sociedades comerciais regidas pelo regime jurídico do código comercial em vigor naquela época. Chamam-se companhias majestáticas porque o Estado transferiu para elas poderes e direitos de soberania.92

Através dos decretos de 11 de Fevereiro e de 26 de Setembro de 1891, Portugal iniciou a era do desenvolvimento dos territórios coloniais usando as companhias majestáticas. Nesse sentido, foram envolvidas neste novo desafio as companhias de Moçambique e do Niassa, a quem o Estado português transferiu parte93 dos seus poderes de soberania nas zonas onde essas companhias iriam actuar.

2.3. Funções essenciais das companhias majestáticas

Ás companhias majestáticas foram acometidas a missão de prossecução da ocupação efectiva do território através de:

Expedições militares contra os reinos africanos e contra os donos de alguns prazos resistentes;

Assegurar o desenvolvimento económico nas áreas de agricultura de plantações, comércio, mineração e indústria;

Estabelecer e consolidar a Administração portuguesa nas áreas da sua jurisdição.

2.4. Direitos das companhias majestáticas

Dentro do conjunto de direitos e prerrogativas que as companhias majestáticas detinham podemos resumí-los da seguinte maneira:

Direitos de soberania, que pressupunham dentre outros, os poderes de fazer guerra, conquistar territórios, submeter os reinos africanos, defender o território contra as incursões de forasteiros expansionistas como a Britsh South Africa Company de Cecil Rhodes;

92 Opcit Rui Guerra, página 20.

93 Idem,Páginas 696 e 699. Analisando o conteúdo inserto nestas páginas, retiramos o entendimento de que ás companhias majestáticas não foram conferidos por exemplo, poderes regulamentares e na área da administração da justiça, que foram conservados nas mãos do concedente. No caso do poder regulamentar, as companhias majestáticas podiam tomar iniciativa de elaborar determinado projecto de regulamento, mas para ter validade jurídica carecia de homologação do governo, sem a qual o regulamento não podia ter eficácia jurídica. No que diz respeito á área de administração de justiça, ás companhias majestáticas impendia a obrigação de financiar o sistema.

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Possuir forças militares;

Instalar a Administração colonial;

Lançar, colectar e gastar impostos portuários;

Criar propriedades;

Criar serviços( administrativos, alfandegários, de saúde, postais e etc);

Construir infra-estruturas dos caminhos de ferro;

Passar licenças comerciais;

Fazer sub-concessões.

O catálogo dos direitos das companhias majestáticas era vasto conforme a enumeração exemplificativa que acabamos de fazer. Com este rol de direitos, as companhias tornaram-se Estados dentro de um Estado. Do desenvolvimento económico que delas tanto se esperava, não foi realizado de acordo com as expectativas, acabando as mesmas por incidir a sua acção sobre o controlo da população africana e sua força de trabalho.94

Desse modo podemos sublinhar os seguintes resultados negativos:

Não se verificou o rápido crescimento económico esperado;

A expectativa de preservação a favor de Portugal do território por elas ocupado que era intensamente cobiçado por outras potências europeias fracassou. Antes pelo contrário, as companhias majestáticas facilitaram a desnacionalização de territórios sob domínio português;

Fracassou o investimento de capitais inicialmente previsto para o desenvolvimento do território;

Por causa deste insucesso verificado no desempenho das companhias majestáticas de colonização de Moçambique, a consequência directa é que os territórios sob jurisdição destes sujeitos de direito eram mais pobres na hora do fim da sua missão do que as áreas que permaneceram sobre a administração directa do Estado português.95

94 Opcit Amélia Neves de Souto, página 160. Também Rui Guerra da Fonseca, que temos vindo a citar, página 870 e seguintes, ressalva que o fracasso registado pelas companhias majestáticas pode se analisar de forma diferente entre as duas companhias, a de Moçambique e do Niassa. Segundo este autor, a Companhia de Moçambique realizou actividades dignas de registo para o desenvolvimento do território nos domínios de infra-estruturas para utilidade pública e no domínio económico desenvolveu a mineração e actividade agrícola. A companhia não permitiu a exportação da mão de obra da sua população, o que permitiu o crescimento desta mercê de alguma melhoria das condições sociais no território por sí administrado. Todavia e segundo este autor, o mesmo não aconteceu com a Companhia do Niassa, cuja actividade foi um fracasso por não se terem registado grandes progressos na implementação do acordo plasmado no contrato de concessão.

95 Opcit, Amélia Neves de Souto, página 160.

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Depois de abordarmos os aspectos gerais sobre as companhias majestáticas passamos de seguida a fazer referência específica a estas duas pessoas jurídicas.

2.5. Companhias de Moçambique e do Niassa

As Companhias de Moçambique e do Niassa foram as únicas que o governo colonial envolveu no processo de concessão de poderes majestáticos, apesar de ter havido mais sociedades comerciais no País.96 Estas duas companhias tiveram características e missão semelhantes, consoante as descrições supra enunciadas mormente no que respeita ás motivações da sua criação, missão, objectivos e natureza jurídica. Por esse motivo, centraremos o nosso resumo sobre os aspectos importantes da Companhia de Moçambique, começando por abordar a criação tanto desta como da Companhia do Nissa e os respectivos limites das suas concessões.

2.5.1. Criação e limites territoriais

Quanto á criação, consta que a Companhia de Moçambique foi criada por escritura de 8 de Março de 1888, assumindo o formato de uma sociedade comercial, cujo objecto inicial foi uma concessão mineira outorgada através do decreto de 20 de Dezembro do mesmo ano para exploração mineira nas terras das bacias do Búzi e Arruângua97.

Como companhia majestática a Companhia de Moçambique foi criada por decreto de 11 de Fevereiro de 1891 o qual impunha como condição para eficácia jurídica do seu novo estatuto, o aumento do capital social e modificação dos seus estatutos.

Estas alterações que não significaram o nascimento de uma nova pessoa jurídica, serviram como uma metamorfose jurídica que vieram dar uma nova força para a companhia criada em 1888 passar a ter um duplo carácter, o relativo ao seu escopo inicial, ou seja, escopo meramente comercial, para se investir de poderes de administração pública nos precisos limites definidos pelo governo português dentro do acordo de concessão.

No mesmo ano que foi criada a Companhia de Moçambique, foi criada a Companhia do Niassa, por decreto de 26 de Fevereiro para explorar a concessão antes atribuída á firma

96 Idem, página 162. Segundo esta autora, em 1890 nasce a Companhia do Açúcar de Moçambique que em 1910 viria a transformar-se em Sena Sugar Factory, para em 1920 se transformar em Sena Sugar Estates. Em 1892 é criada a Companhia da Zambézia, para em 1898 ser criada a Companhia do Boror. Além destas Companhias temos a registar a criação da Societé du Madal em 1904; Empresa Agrícola de Lugela em 1906 e a companhia do Buzi. Outras Sociedades foram criadas mas baseadas em direito precário sobre a terra uma vez que o regime de ocupação da terra era de arrendamento. São elas: Incomati Sugar Estates criada em 1914 na Provincia de Maputo e a Companhia do Açúcar de Mutamba em Inhambane. Todas estas Sociedades comerciais não tiveram poderes majestáticos á semelhança do que aconteceu com as Companhias de Moçambique e do Niassa.

97 Opcit Rui Guerra da Fonseca página 685, segundo este autor, para concessão desta licença de exploração mineria, as autoridades portuguesas foram encorajadas pelo sucesso de semelhante tipo de actividade nos territòrios de Transvaal e da Rodésia. Esta exploração mineira teve dificuldades de diversa ordem que não lhe permitiram atingir o sucesso almejado.

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denominada Sociedade Bernardo Daupias e Cª. Todavia, a carta orgânica definitiva viria a ser outorgada pelo decreto de 13 de Novembro do mesmo ano.98

As duas Companhias beneficiaram de concessão de vastas áreas do território moçambicano. É assim que para a companhia de Moçambique foi concedido o território que é limitado ao norte e a noroeste pelo rio Zambeze desde a sua parte meridional e pela fronteira de Tete; a este pela fronteira interior da mesma Província; ao sul pelo rio Save; ao oriente pelo Oceano Índico. Estes limites viriam a ser ampliados pelo decreto de Dezembro de 1893,99 passando a ocupar também nas mesmas condições da concessão atribuída em 1891, o território que tem como limite a norte o rio Save desde a sua foz até á sua confluência com o Lundi; a oeste a linha de fronteira até ao rio Limpopo, seguindo por este rio até ao ponto em que ele é cortado pelo meridiano 32, perto de Chalata, ao sul pela recta que vai desde este último ponto até ao ponto que o meridiano 33 toca o paralelo 22, seguindo por este paralelo até ao mar e a leste pelo Oceano Índico.

Em relação à Companhia do Niassa, criada no mesmo ano com a Companhia de Moçambique como o dissemos acima, viria a tomar posse do território que lhe foi concedido só a partir de 1894100. Não estão claras as razões deste atraso no início do exercício pleno dos direitos concedidos. O espaço geográfico cedido a esta Companhia compreendia um território de 250.000 kms2 que abrangia Niassa e Cabo Delgado.

2.5.2. Atribuições, eficácia e extinção das companhias majestáticas

Pelo facto de termos abordado com detalhe as atribuições das Companhias Majestáticas na parte geral deste sub-capítulo, optamos por não repetirmos a mesma abordagem sob pena de sermos repetitivos.

2.5.2.1. Eficácia

Do estudo que fizemos sobre as companhias majestáticas de colonização, podemos tirar a ilação de que nem todas as duas Companhias que estudamos tiveram o mesmo mérito na realização da sua missão.

Deste estudo obtivemos a ideia de que embora tenha enfrentado algumas dificuldades, a Companhia de Moçambique comparativamente á Companhia do Niassa, conseguiu deixar no território por ela ocupado alguns sinais de desenvolvimento101. Esses sinais resumem-se nas realizações efectuadas no território abrangido pela concessão que em resumo são:

Construção ou melhoria de edificios;

98 Idem página 684, a similitude das características das duas Companhias é referida por Ruy Ennes Ulrich que afirma que pouca diferença se pode encontrar entre estas duas Companhias. Baseia a sua afirmação ao facto de que a maior parte das disposições que integram os seus diplomas constitutivos têm a mesma génese e semelhança.

99 Idem.

100 Op cit Amélia Neves de Souto, página 161.

101 Op cit Rui Guerra da Fonseca, página 870.

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Construção de portos;

Construção de igrejas;

Construção de caminhos de ferro;

Organização dos serviços públicos dentro das suas competências;

Organização dos serviços de polícia no seu território;

Montou o serviço de fornecimento de energia;

Organizou o serviço de limpeza e de fornecimento de água;

Implementou um sistema de estruturação urbana.

De uma maneira geral, pode se afirmar que a Companhia de Moçambique trabalhou para que o compromisso assumido com o governo português fosse materializado. Verfica-se pois pela enumeração que acabamos de fazer, que esta Companhia assumiu um papel equivalente a uma pessoa colectiva pública de população e território em materialização dos poderes majestáticos atribuidos com vista á administração do território concedido.

Todavia, o mesmo não sucedeu com a Companhia do Niassa, cujo desempenho se apresenta frágil. Esta Sociedade entre 1899 a 1914 dedicou-se mais nas campanhas de conquista e ocupação do território e cobrança de receitas aduaneiras na costa.102 Na nossa opinião, a priorização das campanhas de conquista e ocupação do território pode ter sido incentivada pela necessidade de integrar mais população nativa, fonte de pagamento do imposto de palhota, sua actividade privilegiada desenvolvida em detrimento de acções visando o desenvolvimento do território concedido.

No prosseguimento da sua senda desviante, a Companhia do Niassa começou a partir de 1909 o processo de exportação de mão-de-obra para África do Sul. Durante a sua vigência, esta Companhia notabilizou-se por diversos desmandos contra as populações autóctones. Por causa dessa situação, consta que até ao fim do seu mandato em 1929, mais de 100.000 pessoas residentes no território ocupado pela Companhia do Niassa tinham emigrado para os Países vizinhos.

2.5.2.2. Extinção das Companhias Majestáticas

A primeira companhia a ser extinta foi a do Niassa como corrolário do decurso do prazo da concessão que previa 35 anos improrrogáveis. Mesmo se não fosse essa imposição contratual, parece-nos que não seria possível prorrogar-se o prazo considerando os desentendimentos que acompanharam a sua existência devido ao fraco desempenho.

Tal situação levou o governo português a cancelar a concessão através do decreto nº 16.757 de 20 de Abril de 1929103. Este decreto reintegrou com efeito imediato todo o território que estava sob autoridade da Companhia do Niassa na Administração Estadual

102 Op cit Amélia Neves de Souto, página 161. A mesma opinião podemos retirá-la de Rui Guerra da Fonseca, página 872, que temos vindo a citar.

103 Op cit, Rui Guerra da Fonseca, página 881

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directa da colónia de Moçambique, com direito á indemnização sobre as infra-estruturas porventura implantadas para o bem público.

Volvidos 13 anos, concretamente em 1942, a Companhia de Moçambique teve a mesma sorte que a Companhia do Niassa tivera em 1929. Através do decreto nº 31.869 de 27 de Fevereiro de 1942, o governo português determinou a cessassão do direito á concessão a partir de 18 de Julho daquele ano.104

A extinção da concessão da Companhia de Moçambique foi feita em ambiente diferente daquele que caracterizou o fim da Companhia do Niassa. Como nos referimos acima, o fim da Companhia do Niassa teve lugar numa altura em que o clima de relacionamento com o governo colonial não era salutar devido á fraca realização dos seus compromissos relativos ao desenvolvimento dos territórios por ela ocupados. Também dissemos que sorte diferente teve a Companhia de Moçambique porque nos territórios a ela concedidos foi notável algum desenvolvimento digno de realce que podia ser apreciado na hora do fim do seu mandato.

A modalidade de revogação do mandato da Companhia de Moçambique no que se refere ao destino dos bens de utilidade pública não foi diferente do regime usado em relação ao património similar pertencente á Companhia do Niassa. Seguindo o mesmo regime, o governo português decidiu pela via de indemnização do património pertencente á Companhia de Moçambique adstrito á utilidade pública.

Diferente da Companhia do Niassa, a Companhia de Moçambique tinha direito de produzir moeda e fazê-la circular no território sob sua jurisdição. Esse facto implicou que houvesse um período de transição para a substituição da moeda da Companhia pela do governo português.

Um aspecto não menos importante foi o relacionado com o tratamento que foi dispensado ao pessoal quer da Companhia do Niassa, quer da Companhia de Moçambique. Ao pessoal das duas Companhias foi dada a prerrogativa de poder optar pela integração voluntária nos Serviços de Administração do governo português da colónia. No nosso entender, essa decisão tinha a sua razão de ser porque o pessoal em causa acumulara ao longo dos anos de administração das Companhias nas respectivas concessões uma significativa experiência que convinha aproveitá-la do que recorrer a funcionários novos que implicavam a sua formação e adaptação.

Com a abordagem do fim das companhias majestáticas terminamos a referência sucinta de um regime de administração que contribuiu sobremaneira para a consolidação da penetração portuguesa e colonização de Moçambique. A actividade das companhias majestáticas, serviu para a efectiva ocupação da terra moçambicana, pois uma das suas tarefas era assegurar o povoamento do território moçambicano por colonos-105 No artigo 21 do decreto que cria a Companhia de Moçambique podemos encontrar como algumas das

104 Idem, página 883.

105 Idem, página 688. Da leitura feita, retira-se a ilação de que a Companhia de Moçambique por exemplo, de acordo com o disposto no artigo 10 do decreto que lhe atribuiu a concessão , ela era obrigada a estabelecer nos seus territórios em locais escolhidos de harmonia com uma concertação prévia com o governo, de até mil famílias de colonos portugueses ou seus descendentes com transporte assegurado pelo governo .

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suas tarefas a faculdade de colonizar toda a área sob a sua jurisdição, arrotear, cultivar, irrigar, beneficiar, explorar e em suma dominar todos os terrenos dentro da concessão.

Fica claro, pois, que o objectivo do estabelecimento das companhias majestáticas era a conquista da terra com vista á expansão do império colonial português, tendo como mira a ampliação das fontes de captação de recursos naturais úteis ao seu desenvolvimento.

3. O direito á terra em Moçambique em 1975, data da proclamação da independência.

3.1.O Direito de propriedade sobre terras em Moçambique na última fase da administração portuguesa.

Quando foi proclamada a independência nacional em 1975 estava em vigor o regulamento da ocupação e concessão de terrenos nas Províncias Ultramarinas aprovado pelo Decreto nº 43.894, de 14 de Setembro de 1961(ROCT)106.

De harmonia com aquele diploma legal, havia terra considerada património da Província, constituída por terrenos vagos, que são aqueles que não tinham entrado definitivamente no regime de propriedade privada ou de domínio público.107 Podemos daqui concluir que os terrenos até à proclamação da independência nacional, eram constituídos por terrenos vagos que pertenciam ao património da Província, terrenos que tinham ingressado definitivamente no regime de propriedade privada dos particulares e aqueles pertencentes ao domínio público108.

Não obstante existir a figura de património da Província constituída por terrenos vagos, não podemos considerar esta categorização como um fenómeno indicador de existência de uma espécie de propriedade mista da terra. Entendemos que a categoria de património da Província tinha natureza transitória enquanto a terra não tivesse entrado definitivamente no regime de propriedade privada.

106 Este regulamento aparentemente vigorou até à aprovação da primeira lei de terras em 1979, apesar de em larga medida o essencial das suas disposições terem sido revogadas com a aprovação e entrada em vigor da primeira Constituição da República que assumiu no seu artigo 8 uma postura nacionalizadora da terra e de outros recursos naturais.

107 É o que dispõe o artº 2º do ROCT. Os terrenos que não tinham entrado definitivamente no regime de propriedade privada são provavelmente aqueles sujeitos ao regime de enfiteuse previsto no artº 1491º e seguintes do Código civil, enquanto o beneficiário do domínio útil não tivesse remido o foro.

108 De harmonia com o disposto no artigo 1º do ROCT, são de domínio público os leitos das águas marítimas ou interiores, a plataforma submarina, ilhas, ilhotas e mouchões formados junto á costa marítima, na foz de rios ou nos leitos das correntes navegáveis ou flutuáveis, os terrenos das valas abertas pelo Estado, terrenos destinados á defesa militar, terrenos ocupados por linhas fêrreas, aeródromos de interesse público, estradas e caminhos públicos, terrenos circundantes das baías até 80 metros das máximas preia-mares e de terrenos circundantes de lagos navegáveis ou rios abertos á navegação internacional.

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Enquanto património da província, a terra nessa qualidade constituía património privativo da Província quando ainda não tivesse feito a sua disposição a favor dos particulares. Neste sentido, podemos concluir que em 1975 dominava a propriedade privada sobre a terra em Moçambique.

3.2.Disposição de terrenos a favor de particulares.

No que concerne à disposição de terrenos vagos, havia três modalidades essenciais, nomeadamente a venda, o aforamento e o arrendamento109. A venda era uma modalidade de transmissão do direito de propriedade e incidia sobre terrenos de primeira classe, que são aqueles abrangidos pelas povoações classificadas incluindo nelas os subúrbios.

Uma segunda modalidade de disposição de terrenos é o aforamento dos terrenos de 1ª e terceira classes, sendo estes últimos destinados a fins agro-pecuários, industriais e silvícolas. Os terrenos de 1ª classe eram essencialmente destinados à construção de prédios urbanos. Esta é uma modalidade em que a transmissão do direito de propriedade se efectivava depois de pagos 20 foros pelo enfiteuta ou foreiro ao senhorio.110

Uma terceira modalidade de disposição de terrenos era o arrendamento, que incidia sobre terrenos de terceira classe destinados à criação de gado e montagem de indústrias ligadas ao processamento de produtos pecuários e exploração florestal.

Destas três modalidades entendemos que somente a venda e o aforamento permitiam a transmissão do direito de propriedade. A venda era o mecanismo de transmissão imediata mediante o pagamento do respectivo preço111, enquanto que o aforamento constituía um processo longo de transmissão do direito de propriedade, por estar dependente da remissão do foro pelo enfiteuta.

O arrendamento, é uma figura que não dava acesso ao direito de propriedade ao arrendatário sobre a terra, uma vez que esta figura jurídica só permite um direito temporário com a prerrogativa de as partes rescindirem o contrato por conveniência ou por incumprimento das suas cláusulas.112

Desta breve abordagem podemos concluir que a propriedade dominante sobre a terra até à entrada em vigor da Constituição da República Popular de Moçambique em 1975 era privada.

Vigorando o regime de propriedade privada sobre a terra, esta estava disponível para o comércio jurídico e nesta perspectiva, podia haver livre transacção do direito de propriedade e a

109 Opcitº ROCT, a figura juridica da venda vem prevista no artº 49º, o aforamento no artº 50º e o arrendamento no artº 51º.

110 De harmonia com o disposto no nº 1 do artº 1512º do Código Civil.

111 De conformidade com o disposto no artº 879 do Código Civil, os efeitos da compra e venda são a transmissão da propriedade da coisa ou titularidade do direito; a obrigação de entregar a coisa e a obrigação de pagar o preço.

112 Aliás, é arrendamento porque pretende-se que o proprietário dê por acordo de vontade à outra parte, o direito de aproveitar de forma precária o seu bem imóvel. O artigo 1022º do código civil diz que locação é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a dar á outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição. Fica claro pois que o arrendamento não dá acesso ao direito de propriedade.

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possibilidade de onerar a terra usando-a como garantia na obtenção de créditos113. Estamos perante um direito real maior que dá plenos poderes de gozo aos seus titulares com prerrogativas de usar, fruir e dispor do seu bem.114

3.3.Direito das comunidades rurais moçambicanas á terra.

Em Moçambique as comunidades rurais constituíram sempre a maioria da população do país e tiveram a terra como seu principal meio de trabalho e de produção, além de nela construírem as suas habitações e dela extraírem os recursos naturais de que necessitam para a sua sobrevivência. Dada essa importância, torna-se importante fazer uma breve abordagem sobre o direito das comunidades rurais á terra em sede da última legislação que estava em vigor em 1975.

Analisando o ROCT, verifica-se que as comunidades rurais foram nele consideradas como vizinhas das regedorias .115 A particularidade do direito dos vizinhos das regedorias à terra é que ele tinha um carácter colectivo, devendo as suas terras serem ocupadas, usadas e fruídas de forma conjunta na forma consuetudinária, sem direito de propriedade individual.116

Todavia, enquanto nos terrenos de 2ªclasse os vizinhos das regedorias não podiam adquirir o direito de propriedade individual, estes podiam ser foreiros ou arrendatários de terrenos de 1ª e 3ª classes. Como fizemos referência supra, terrenos de 1ª classe são aqueles abrangidos pelas povoações classificadas e seus subúrbios e de 3ª os terrenos vagos excluídos do regime de terrenos

113 Havendo hipótese de se onerar o direito de propriedade, estamos perante uma possibilidade de se usar a terra como garantia, podendo nesse caso ser hipotecada. A hipoteca do património do devedor é uma garantia para o credor, porque ele pode ser pago pelo valor das coisas hipotecadas, de harmonia com o disposto no nº 1 do artº686º do Código Civil.

114 Ascensão, José de Oliveira, Direito Civil, Reais, 5ª edição revista e ampliada, pag 445 e 446. Estamos perante a trilogia romana de ius utendi, fruendi et abutendi.

115 Cfr o artigo 224º do ROCT. Segundo este preceito os vizinhos das regedorias deviam ocupar os terrenos com a classificação de 2ª classe. De harmonia com o disposto no parágrafo 2º do artigo 41º do ROCT, os terrenos de 2ª classe compreendiam os demarcados com vista á sua atribuição para uso colectivo das populações de acordo com os usos e práticas costumeiras. O direito á terra pelas populações rurais moçambicanas a que o colonizador chamou de indígenas, vem sendo reconhecido por este desde os primórdios da colonização, no tempo em que vigorou o regime de prazos. O direito á terra dos naturais foi uma realidade que o colonizador não pude contornar, não obstante as injustiças que foram sendo impostas na realidade prática extra legal. No século XX, concretamente na década 30, numa tentativa de reorganização das suas colónias, o governo colonial português aprovou uma constituição da República e outra legislação ordinária. Na constituição política portuguesa de 1933, não aparecem vertidas normas que tratam especificadamente do direito á terra dos indígena. Mas já o acto colonial aprovado na mesma altura, debruça-se sobre esta matéria ao referir-se no seu artigo 17º nos seguintes termos “ a lei garante aos indígenas nos termos por ela declarados, a propriedade e posse dos seus terrenos e culturas, devendo ser respeitado este princípio em todas as concessões feitas pelo Estado.” O artigo 239º da carta orgânica do Império Colonial Português, aproveitou integralmente a redacção atrás referida, mas acrescentando a expressão” e fiscalizada rigorosamente a sua aplicação”.

116 Cfr o parágrafo único do artigo 224º.

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de 1ª e 2ª classes.117 Os terrenos de 1ª classe eram destinados para o desenvolvimento urbano, e os de 3ª classe destinavam-se fundamentalmente ao exercício de actividades agro-pecuárias.

Um outro aspecto importante prende-se com a possibilidade dada ás pessoas singulares vizinhas das regedorias de poderem constituir aforamento através de posse de boa fé, contínua, pacífica e pública que tenha durado pelo menos 10 anos, de terrenos antes vagos ou que tenham sido abandonados e com prova de se estar a aproveitar o terreno com árvores ou culturas permanentes.118

Apesar desta abertura da lei no sentido de os vizinhos das regedorias poderem adquirir o direito á terra por aforamento e arrendamento, entendemos nós que poucos efeitos práticos teve esta previsão legal, considerando as limitações de natureza financeira que caracterizaram e ainda continuam a caracterizar a vida das comunidades rurais moçambicanas até aos nossos dias.

3.4.Abordagem de alguns aspectos do processo de concessão

No processo de concessões de terrenos, importa abordar a figura de demarcação provisória, que se nos apresenta como um elemento importante porque á luz da lei ele era um pré requisito para os concessionários poderem requerer o seu direito.

Impunha o regulamento de ocupação de terrenos que os pretendentes de terrenos tinham que pedir licença para demarcação provisória junto dos serviços de agrimensura válida por um período de um ano.119 Concluída a demarcação provisória, o interessado era obrigado a submeter o pedido do direito pretendido no prazo de 60 dias.120 Verifica-se pois que a demarcação provisória era uma exigência obrigatória e condicionava a submissão de qualquer pedido do direito á terra.

A demarcação provisória consistia na abertura de picadas ao longo do perímetro do terreno seguida de implantação de tabuletas de madeira ou de ferro. Depois deste processo preliminar o concorrente a um terreno juntava prova de demarcação provisória, requerimento do pedido dirigido á entidade competente e outros elementos processuais.121

Autorizado o pedido de terra quando se tratasse de aforamento, este era concedido a título provisório por um prazo máximo de 5 anos improrrogável, findo o qual se tiver havido um aproveitamento satisfatório, o concessionário devia requerer a demarcação definitiva e depois a concessão definitiva.122

117 Cfr os parágrafos 1º e 3º do artº 41 do ROCT.

118 Cfr a alinea c) do artigo 230º do ROCT. O preceito não especifica o que são culturas permanentes. De acordo com os nossos conhecimentos gerais de agricultura, são Culturas permanentes as árvores de fruto como cajueiros, citrineiras e coqueiros, cana sacarina e plantações silvícolas, só para citar alguns exemplos.

119 Cfr o corpo do artigo 158º do ROCT.

120 Cfr o artigo 166º do ROCT.

121 Cfr o artigo 156º do Roct.

122 Cfr os artigos 98º e seguintes do ROCT.

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Feito o estudo em relação á última legislação sobre ocupação de terras em vigor na altura da independência, conclui-se que ela diverge com a legislação sobre terras aprovada depois da independência fundamentalmente no que respeita á propriedade da terra, pois enquanto durante a Administração portuguesa a terra era predominantemente propriedade privada, depois da independência a propriedade passou para o Estado como veremos infra no capítulo próprio.

Todavia, há aspectos que aproximam as duas legislações, como por exemplo o fundamental dos elementos constitutivos de domínio público, a questão dos vizinhos das regedorias que a actual legislação moçambicana apelida de comunidades locais. Apesar de diferença nas designações, pretende-se no fundo referir-se ao mesmo grupo alvo.

O tratamento jurídico que lhe é dispensado é igual, ou seja, o reconhecimento do direito colectivo á terra, que quanto a nós resulta da necessidade de os legisladores conformarem-se com o carácter colectivista do direito á terra nas comunidades africanas, em particular da África sub sahariana como teremos ocasião de abordar adiante em sede própria.

A figura de demarcação provisória tida como requisito de preenchimento prévio na legislação em vigor antes da independência pelos concorrentes ás concessões por aforamento, ela permitia imprimir maior seriedade nos requerentes, além de servir de instrumento de prevenção de conflitos de terras.

A demarcação apesar de ser provisória implicava um custo, por isso só podia incorrer em custos de demarcação provisória, quem efectivamente tinha capacidade para avançar num determinado empreendimento requerendo ocupação da terra. Era uma exigência que prevenia o açambarcamento de terras por quem não tinha objectivos sérios ou por quem não tinha mínima capacidade para investir, além de contribuir para uma real e sistemática actualização do cadastro nacional de terras.

O cenário actual em Moçambique, como veremos adiante, é que a autorização do direito de uso e aproveitamento da terra não está condicionado á demarcação provisória. A consequência directa disso é que pessoas sem a mínima capacidade e usando diversos argumentos tiveram e continuam a ter acesso a extensas áreas de terras que as não trabalham e nem deixam outras pessoas fazer uso delas, com todo o prejuízo que isso acarreta á economia do país.

Um outro aspecto é que os reconhecimentos técnicos que actualmente os serviços de cadastro fazem não correspondem a uma delimitação perimetral consistente como acontecia com a demarcação provisória. A consequência disso é que a actualização do cadastro nacional de terras é deficiente e trás como um dos resultados, a multiplicação de conflitos de terras.

Feito este estudo relativo á terra em Moçambique, constata-se que desde os primórdios da ocupação colonial portuguesa em Moçambique, a questão do acesso á terra mereceu nas diferentes etapas de colonização, uma atenção especial dos governantes.

Essa atenção tem a sua razão de ser na medida em que, como dissemos acima, o motivo principal da expansão colonial em África e em Moçambique em particular, foi a conquista de mais territórios com objectivo de ter acesso a uma vasta gama de recursos naturais necessários para o desenvolvimento das metrópoles coloniais.

A atenção especial é demonstrada pelo esforço que vem sendo desenvolvido pela Administração colonial portuguesa principalmente desde o século XVIII, na criação de normas que concorressem para a regulamentação do acesso e uso de terras em Moçambique. Essa legislação como vimos, foi ganhando aperfeiçoamento ao longo da história, vindo finalmente a aprovar-se o ROCT em 1961, uma legislação que no nosso entender teve influência da evolução política que se

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registava nas colónias portuguesas, caracterizada pelo surgimento de movimentos nacionalistas a favor da independência.

Depois desta abordagem em relação á evolução histórica do direito á terra em Moçambique, passaremos de seguida a dissertar sobre as principais influências históricas sobre o direito à terra em Moçambique.

CAPÍTULO III

INFLUÊNCIAS HISTÓRICAS FUNDAMENTAIS NO DIREITO Á TERRA EM MOÇAMBIQUE

Moçambique adoptou depois da independência nacional uma nova legislação de terras que regula o acesso dos sujeitos de direito a este importante recurso natural. A legislação aprovada teve naturalmente influência histórica sendo de destacar pela sua relevância, o direito á terra na África Subsahariana, o direito romano germânico transportado pelo colonizador para Moçambique e o direito soviético. No espaço que se segue vamo-nos debruçar sobre esses aspectos da forma seguinte:

1. O direito á terra na Áfrca subsahariana:

1.1. A terra nas sociedades tradicionais da África subsahariana;

1.2. Propriedade da terra;

1.3. Direito aplicável;

2. Influência do direito português.

3. Influência do direito soviètico:

3.1. Propriedade da terra na ex-URSS;

3.2. Sujeitos do direito á terra;

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Apresentada a sequência de abordagem do capítulo III, a seguir apresentamos o seu desenvolvimento.

1. O direito á terra na África Subsahariana

Moçambique é um dos países que integram a África Subsahariana, por isso vamos proceder a uma breve abordagem ás formas de apropriação da terra nesta região do continente africano, as quais influenciam em grande medida o regime de ocupação e gestão de terras pelas comunidades rurais moçambicanas.

A ocupação constitui o principal modo de acesso á terra nesta região do continente africano. Ela se concretiza quando certa comunidade ou família se instala numa determinada parcela da terra, delimitando-a e a usando em seu próprio proveito123.

O direito á terra na África subsahariana é regido por normas e práticas costumeiras. É um direito que se caracteriza pela oralidade124, como acontece na maioria dos sistemas jurídicos tradicionais africanos responsáveis pela normação da vida nas sociedades africanas.

As regras nestas sociedades são transmitidas oralmente de geração para geração e cabe aos anciãos a responsabilidade de conservação de memórias125. Não sendo os direitos á terra conferidos por documentos escritos, a comunidade vivendo numa determinada circunscrição territorial, tem nos mais velhos dentro do grupo pessoas dotadas do mais profundo conhecimento e saber.

Nesse sentido, estando a prova de direitos confiada ás testemunhas orais, os anciãos são os elementos mais importantes para testemunhar e jogam papel de relevo na gestão de terras comunitárias, na aplicação de justiça e resolução de conflitos.

1.1.A terra nas sociedades tradicionais da África Subsahariana

Nesta região do continente africano, a terra é considerada um recurso natural com natureza divina, porque os povos africanos incluindo os originários desta subregião, consideram que a terra pertence a Deus, aos antepassados e aos espíritos de cada comunidade que se beneficia de determinada extensão de terras.

123 Além de ocupação que constitui o primeiro modo de aquisição do direito á terra, temos outras figuras como a doação, naqueles casos em que a terra é distribuída a pessoas estranhas á comunidade, mas que se apresentam ás autoridades tradicionais com interesse de serem seus habitantes. Como isso acontece sempre onde as pessoas estranhas se apercebem que existem terras desocupadas em abundância, elas manifestam o seu interesse de integrar a comunidade e a reacção das autoridades comunitárias regra geral é positiva, porque o seu desejo è ter mais vizinhos que lhes ajudem a desbravar a mata, muitas vezes com intenção de havendo muita terra trabalhada reduzir a presença de animais ferozes e outros prejudiciais ás culturas.

124 Maria da Conceição de Quadros, textos de apoio, direito agrário, Faculdade de Direito da UEM, 2005, página 4. “ Os direitos africanos caracterizam-se pela extrema diversidade, sendo a única característica formal essencial, a oralidade.” Dário Moura Vicente, Unidade e diversidade nos actuais sistemas jurídicos africanos, Almedina, 2007, página 317, “a África conheceu, muito antes de ocupação árabe, e da colonização europeia, sistemas jurídicos autóctones de fonte essencialmente consuetudinária e tradição oral.”

125 Idem, Dário Moura Vicente, página 321.

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Os africanos consideram que estes entes sobrenaturais são eles que disponibilizaram este recurso aos homens para que cada um dentro de uma determinada comunidade tenha o direito de acesso seguro á terra como garantia da sua sobrevivência.126

Na verdade e de acordo com a nossa vivência empírica com o campesinato, o carácter sagrado atribuído á terra, resulta do facto de além de ser um bem económico fundamental no qual se pode tirar diverso proveito como a agricultura, pastorícia, caça e recolecção de frutos naturais, na terra se encontram enterrados os seus antepassados.

O facto de numa determinada terra terem sido enterrados os antepassados, torna-a sagrada dado o alto grau de adoração dos espíritos dos defuntos e dos antepassados nas comunidades africanas. O normal é que cada comunidade e cada família tenha o seu altar onde em momentos cruciais da vida se reúne para evocar os espíritos dos defuntos e dos antepassados, pedindo paz, sorte, boas colheitas e até chuva no caso das comunidades.

É por causa desse carácter sagrado da terra que em muitas comunidades rurais é difícil a movimentação ou a transferência de pessoas mesmo em casos de secas que provocam fomes cíclicas, empobrecimento de terras, inundações periódicas com perdas de pessoas e bens.

Apesar de persistir este carácter sagrado, a influência de convivência com o mundo moderno introduzido pela colonização e pelas políticas introduzidas pelos diferentes governos africanos depois das independências das antigas colónias africanas, tende a introduzir algumas alterações ideológicas no tratamento dos assuntos da terra, o que se traduz na violação em alguns casos do princípio de que a terra é um bem sagrado que pertence a Deus, aos antepassados e aos presentes que devem usá-la e preservá-la para as gerações vindouras.

Na nossa opinião, um dos elementos mais importantes de mudança está relacionado com a sucessão de gerações. Nota-se actualmente que a geração jovem é menos apegada ou pelo menos não segue com rigidez as regras tradicionais em relação á terra.

São factores que influenciam a mudança, o êxodo rural que permite que a nova geração tenha contacto com os centros urbanos onde assimila novos valores. Por outro lado, a influência da força do mercado começa a introduzir mudanças ideológicas no que respeita á terra, principalmente nos territórios limítrofes dos centros urbanos e noutras zonas com elevada procura de terras.127 126 Op cit Maria da Conceição de Quadros, página 4.

127 Já em 1965, Maria Leonor Correia de Matos na sua obra intitulada notas sobre o direito de propriedade da terra dos povos angoni, acheua e ajaua da Província de Moçambique, página 5, escrevia “em muitos casos foi a mudança para uma economia de mercado que proporcionou ás populações locais com novas oportunidades de trabalho e de melhoria de condições materiais- e também por este motivo os valores tradicionais se alteraram e a estrutura familiar sentiu os efeitos da ausência dos elementos masculinos atraídos pelas «luzes das cidades» e no seu regresso menos dispostos a conformarem-se com as estritas regras de conduta de uma sociedade fechada”. De facto, as ideias da economia de mercado, além de já terem enfraquecido o princípio de não alienabilidade da terra, valores por exemplo como de proibição da venda de alguns produtos no caso do sul de Moçambique como o ananás e respectivo sumo, a mafurra e respectivo óleo(munhanzi em changana e w’ntona em chichope) e o cajú e respectivo sumo, actualmente esses produtos já estão a ser comercializados. Os sumos fermentados de ananás e de cajú eram consumidos gratuitamente pelos membros da comunidade, o óleo de mafura era para consumo caseiro e o excedente podia ser oferecido a familiares e amigos que dele carecessem. O sumo fermentado de ananás no caso dos chopes era usado para os chefes tradicionais subalternos prestarem homenagem anual (ndwo) ao chefe imediatamente superior, como acontece com as tribos ronga e changana em relação ao sumo fermentado do canhú. Perante as mudanças climáticas na actualidade o cajú principalmente, tem enfrentado problemas de fraca ou quase nula produção na região sul, a

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A Província de Maputo é exemplo disso devido á pressão exercida pelos residentes das cidades de Maputo e Matola que acabou rompendo com a rigidez do carácter sagrado da terra passando a funcionar um mercado informal e subterrâneo de terras. Actualmente nesta parcela do País nada é gratuito, pois os líderes comunitários ganharam a consciência da procura e do valor que a terra representa.

1.2. Propriedade da terra

Em termos clássicos, nesta região de África, os direitos á terra são colectivos, pertencem á comunidade e são inalienáveis.128 A terra pertence á grande família patriarcal que foi a primeira a ocupá-la com base na destronca e consequente delimitação.

Além deste modo de aquisição do direito á terra, nos tempos primitivos pode-se admitir a conquista guerreira como uma das formas mais importantes de aquisição. O exemplo de Moçambique é elucidativo, pois olhando para a história dos povos desta parcela do País, constata-se que as suas populações vieram de outras paragens e através da conquista de territórios, impuseram o seu direito sobre a terra conquistada. O povoamento do território nacional foi sendo feito através de movimentos migratórios de populações de origem bantu que hoje se encontram espalhadas pelas três regiões do País(Sul, Centro e Norte).

No que se refere á propriedade sobre a terra, actualmente a regra é que a terra pertence á comunidade e esta tem vários níveis territoriais, nomeadamente o regulado129 que é uma

mafura não tem sido de produções abundantes como antigamente e o ananás praticamente desapareceu nas regiões de Inhambane. Para os mais velhos na região sul do País onde esta tradição é observada, os problemas existentes na produção destas e de outras culturas prendem-se com a fúria dos espíritos dos antepassados por se comercializar produtos que por regra não eram comercializados, o que revela a violação do princípio do sagrado em diversas dimensões o que afecta a fertilidade da terra.

128 Op cit Maria da Conceição de Quadros, página 3.

129 A designação régulo, chefe de terras, chefe do grupo de povoação(família alargada) são uma adaptação do colonizador, pois cada grupo étnico tem a sua maneira de designar e chamar os seus chefes de cada escalão territorial e variam de região para região. Régulo não é uma figura constitucional no ordenamento jurídico colonial português, pois a própria constituição política portuguesa de 1933, não se debruça sobre esta matéria, bem como outros instrumentos como o acto colonial e a carta orgânica do império colonial português. Na carta orgânica, concretamente no seu artigo 235, ao dispor que “em todas as colónias se fará a organização das populações indígenas para fins de assistência, de administração pública e de defesa militar, aproveitando-se tanto quanto possível os serviços das suas autoridades tradicionais, na forma e termos da lei.” Como vimos, fala-se de autoridades tradicionais e não de régulos. Actualmente, o governo moçambicano optou por criar a figura de autoridades comunitárias. Nos termos do artigo 105 do regulamento da lei dos órgãos locais do Estado, aprovado pelo Decreto nº 11/2005, de 10 de Junho, as autoridades comunitárias são as pessoas que exercem autoridade em determinada unidade territorial ou grupo social tais como os chefes tradicionais, secretários de bairro ou de aldeia e outros líderes legitimados pelos membros das respectivas comunidades ou grupo social. A Lei nº 8/2003, lei dos órgãos locais do Estado(LOLE), regulada pelo regulamento a que acabamos de nos referir acima, não chegou a prever ou a definir a figura de autoridade comunitária. Parece nos ter sido inadequada a sua inclusão na regulamentação da LOLE. Trata-se de uma figura que está prevista no nº 1 do artigo 1 do Decreto nº 15/2000, de 20 de Junho que estabelece as formas de articulação dos órgãos locais do Estado com as autoridades comunitárias, que dispõe o seguinte” para efeitos do presente decreto, são autoridades comunitárias, os chefes tradicionais, os secretários de bairro ou aldeia e outros lideres legitimados como tais pelas respectivas comunidades locais.” É esta redacção que foi transportada na íntegra para o regulamento da LOLE. A actual Constituição da República de Moçambique aprovada em 2004 depois de

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comunidade no sentido mais alargado e detém poderes soberanos sobre um largo território, mas mais abaixo encontram-se as chefaturas das terras, que no seu conjunto formam o território do regulado.

Abaixo destas chefaturas, seguem as famílias alargadas formadas pelo conjunto das famílias nucleares. A gestão da terra ocorre nas famílias alargadas e em particular e de forma activa e concreta nas famílias nucleares. Cabe á família nuclear assegurar que a terra seja inalienável de modo a garantir que as gerações futuras não venham ter dificuldades de sobrevivência por falta deste importante meio de produção.

Podemos afirmar que a unidade primária de gestão das terras comunitárias, é a família nuclear. Ao escalão da chefatura das terras compete a gestão daquilo que podemos considerar o domínio público comunitário, como florestas sagradas, pastos comunitários dentre outros. A resolução de conflitos de terras é normalmente feita ao nível do chefe das terras e só chegam ao régulo quando os meios tiverem sido esgotados àquele nível.

1.3. Direito aplicável

Em África a regulação da vida social está baseada nas normas e práticas costumeiras. Vigora o princípio do pluralismo jurídico130, na medida em que reconhecendo-se a validade jurídica das normas costumeiras locais a par do direito positivo, se está a admitir que as fontes de direito sejam diversas.

No caso de Moçambique onde a maioria da população vive no campo e onde 95% das pessoas vivem da agricultura131 usando a terra como principal meio de produção, o acesso á terra é regido pelas normas e práticas costumeiras. Apesar de a primeira Constituição da República de

aprovado o Decreto 15/2000, de 20 de Junho, reconhece no nº 1 do artigo 118 as autoridades tradicionais, ao dispor que” o Estado reconhece e valoriza a autoridade tradicional legitimada pelas populações e segundo o direito consuetudinário”. Estas são as autoridades genuínas, alicerces do direito costumeiro moçambicano, que o colonizador encontrou e delas fez adaptação, que o actual legislador constituinte moçambicano quis, finalmente, dar dignidade constitucional. No nosso entender, a legislação que se debruça sobre esta matéria das autoridades de base devia se conformar com a Constituição da República, que aparentemente somente reconhece as autoridades tradicionais e não estas mais os secretários de Bairros ou de aldeias e outros líderes. Também é nossa convicção que o régulo não constitui a única autoridade tradicional que existe em Moçambique, pois esta varia de região para região. Esta é uma matéria vasta e complexa que não cabe no nosso trabalho por não ser matéria principal.

130 Armando Marques Guedes, o estudo dos sistemas jurídicos africanos, página 22. Este autor afirma: “ a situação hoje vivida na maior parte do continente, é com efeito uma situação que pode senão ser marcada por um pluralismo jurídico. E é-o num sentido pleno. O resultado das enormes confluências de ordenamentos que caracterizam a África contemporânea tende a ser a cristalização de configurações intrincadas que incluem tanto uma pluralidade de fontes como uma multiplicidade de planos normativos que se interpenetram e interagem profusamente entre sí.” Por seu turno, Dário Moura Vicente que temos vindo a citar, página 331, defende a ideia de que o pluralismo jurídico em África resulta da fragmentação do continente em etnias e do ponto de vista político do continente. Na realidade, a questão da diversidade cultural e social em África continua ainda um facto no mundo contemporâneo. A diversidade é de tal ordem que mesmo dentro de um mesmo País ela existe. A colonização também introduziu no continente africano as normas jurídicas do colonizador com tendência de impor a sua hegemonia, mas que devido á importância das normas costumeiras, as normas do direito positivo, acabam coabitando com elas.

131 PROAGRI(II), programa de desenvolvimento da agricultura em Moçambique, strategy document, página 7.

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Moçambique independente ter ignorado a relevância jurídica do costume, este resistiu e continuou a reger a vida das populações no que respeita á terra e não só.132 Apesar de não reconhecimento do direito das comunidades, a verdade é que elas continuaram a gerir as suas terras de acordo com as suas regras costumeiras e continuaram a efectuar os seus casamentos tradicionais e outras práticas costumeiras numa clara prática de um costume contra legen. A resistência das práticas costumeiras em Moçambique levou o poder político do país a render-se perante os factos e é assim que ao rever-se a Constituição em 2004, o legislador constituinte reconheceu a existência do pluralismo jurídico.133

Ao terminar a abordagem deste tema relativo ao direito á terra nesta região de África onde Moçambique se insere, podemos constatar que a gestão de terras é regida por um lado pelas normas do direito positivo e por outro(a maioria), por normas e práticas costumeiras.

As primeiras normas são emanadas das diversas Administrações coloniais que dominaram o continente e presentemente das Administrações nacionais estabelecidas em diversos Países do continente depois das independências nacionais, sendo estas diversas de acordo com as potências coloniais que dominaram o continente africano. Notamos que por causa dessa diversidade de fontes de direito, em África com Moçambique incluído, predomina o pluralismo jurídico. Vimos que o direito adquire-se por ocupação, sem menosprezar que em tempos recuados a conquista guerreira constituiu uma das formas privilegiadas de aquisição do direito á terra. Outros aspectos relevantes é que a terra nesta região é um bem sagrado, colectivo e inalienável, embora com certas fragilidades impostas pelo desenvolvimento da sociedade moderna.

2. Influência do direito português.

O continente africano sofreu diversas influências estrangeiras, principalmente dos colonizadores europeus, facto que o confere, como já o dissemos supra, o pluralismo jurídico nos

132 De facto, nos primeiros anos da independência nacional, a ideologia seguida foi de supressão das autoridades tradicionais e por tabela das práticas costumeiras que eram tidas como produto da sociedade tradicional feudal. Por esse motivo, as práticas tradicionais como o lobolo dentre outras práticas, um sistema de casamento reconhecido em muitas zonas do país, foi considerado como obscurantismo e ofensivo á dignidade da mulher moçambicana.

133 O legislador constitucional moçambicano, na revisão constitucional feita em 1990, não se pronunciou directamente em relação ao reconhecimento do pluralismo jurídico, concretamente o reconhecimento da possibilidade de as comunidades regerem a sua vida de acordo com as normas e práticas costumeiras, tendo o feito de forma implícita ao declarar no artigo 48 daquela constituição que “ na titularização do direito de uso e aproveitamento da terra, o Estado reconhece e protege os direitos adquiridos por herança ou ocupação...” Este reconhecimento do direito á terra por ocupação, permitiu que o legislador ordinário, ao fazer a revisão da primeira lei de terras em 1997 e ao aprovar a Lei nº 19/97, de 1 de Outubro, lei de terras, considerasse no nº 1 do seu artigo 10, as comunidades locais como sujeitos nacionais do direito á terra. A mesma lei tornou mais claro o reconhecimento do costume como fonte do direito para gestão de terras comunitárias ao dispor na alínea a) do seu artigo 12 que constitui forma reconhecia e válida de aquisição do direito de uso e aproveitamento da terra , a ocupação pelas pessoas singulares e pelas comunidades locais segundo as normas e práticas costumeiras no que não contrariem a constituição. Já na revisão constitucional de 2004, o legislador constitucional foi mais inequívoco no que respeita ao reconhecimento do costume como fonte de direito ao declarar no seu artigo 4 que “ o Estado reconhece os vários sistemas normativos e de resolução de conflitos que coexistem na sociedade moçambicana, na medida em que não contrariem os valores e os princípios fundamentais da constituição.”

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seus ordenamentos jurídicos, podendo se encontrar o direito de natureza europeia a conviver com as ordens jurídicas africanas, por sinal bastante diferenciadas e localizadas.134

Em Moçambique encontramos como herança histórica o direito português, fruto da longa colonização imposta ao País por aquela potência. Antes da colonização portuguesa , Moçambique teve contactos com outros povos especialmente árabes. Existe a hipótese de o regime de prazos encontrado e aproveitado pelos portugueses ter origem nos ocupantes árabes.135

O direito português sobre a ocupação de terras em Moçambique começou por regular as terras ocupadas em regime de prazos da coroa. Apesar de a colonização do território ter começado no principio do século XVI, a primeira legislação abrangente foi aprovada no século XIX, tendo conhecido a seguinte evolução:

I) Carta de lei de 21 de Agosto de 1856. Esta carta de lei foi o primeiro instrumento jurídico na história da Administração colonial ultramarina portuguesa, que de uma forma precisa e uniforme, regulou de um modo geral o acesso á terra.136 Antes desta carta de lei foram adoptados no Ultramar português com Moçambique incluído, vários dispositivos legais visando o acesso á terra, mas não foram instrumentos uniformes, concisos e gerais como o regime que se pretendeu imprimir com a aprovação desta lei137

II) Carta de lei de 9 de Maio de 1901. Como atrás dissemos, a aprovação da carta de lei de 1856 fora motivada pela existência de instrumentos jurídicos diversos e dispersos regulando o acesso ao direito á terra. Mas devido á dinâmica da matéria ligada ao direito á terra, a seguir á aprovação da nova lei de 1856, a produção de normas tendentes á sua regulamentação e aplicação foi abundante, o que veio a proliferar mais uma vez os instrumentos normativos, 138 tornando-os díspares entre as possessões ultramarinas e mesmo dentro da mesma possessão. Assim, podemos dizer que esta carta veio dar resposta por um lado, á evolução e consolidação do fenómeno colonial e por outro á uniformização da legislação que mais uma vez se tornara dispersa e obsoleta.

III) Lei nº 2001 de 16 de Maio de 1944. Mais uma vez, depois de entrada em vigor da carta de lei de 1901, o fenómeno de proliferação de normas com vista á sua implementação foi bastante intensa de tal forma que já em 1944 se notava uma excessiva existência de diversas normas, muitas delas sobrepostas.139 Se bem que a proliferação e sobreposição da legislação complementar á carta de lei de 1901 era um facto a corrigir, podemos mais uma vez notar que a evolução da implantação da Administração colonial impunha a existência de normas que melhor pudessem regrar o uso de um recurso natural tão importante de forma precisa e uniforme em todos os territórios ultramarinos.

134 Localizadas porque cada grupo étnico tem os seus usos e costumes sobre os quais assentam os seus alicerces jurídicos ordenadores da vida social. Tomando Moçambique como exemplo, vemos que os seus grandes grupos étnicos do norte a sul cada um tem os seus usos e costumes que servem de fontes de direito para a regência da vida e dos comportamentos dentro daqueles grupos.

135 Opcit as qustões das terras em Macau, página 18.

136 Eduardo dos Santos, Regime de Terras no ex-Ultramar português, página 57.

137 Idem, página 23 e seguintes.

138 Idem, página 163 e seguintes.

139 Idem, página 345.

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Depois deste estudo sobre a influência histórica do direito português no direito á terra em Moçambique, podemos concluir que sendo a terra um recurso natural importante, o governo português dispensou particular atenção na criação de normas legais com vista a regular a aquisição, uso, modificação e extinção de direitos sobre a terra ao longo do período que durou a colonização do país. Com essa produção legislativa, podemos dizer que se criou no país uma espécie de um património legal em matéria do direito de uso e aproveitamento da terra, cujos traços característicos são hoje evidentes na legislação moçambicana sobre terras.

3. Influência do direito soviético.

A luta armada levada a cabo pela Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) a partir de 25 de Setembro de 1964 com vista á conquista da independência de Moçambique, foi um elemento histórico que introduziu na história de Moçambique um relacionamento objectivo140 com a então União Soviética.

Durante a luta de libertação de Moçambique, a FRELIMO encontrou nos países socialistas e de orientação socialista dentre os quais a antiga União Soviética(URSS) a sua principal base de apoio moral, material e diplomático. A cooperação no âmbito político e ideológico entre a FRELIMO e a URSS um país guiado por princípios marxistas-leninistas, influenciou sobremaneira a sua linha política e ideológica, cuja organização política e administrativa lhe serviu de inspiração apôs o alcance da independência nacional de Moçambique.141 Essa influência soviética teve um grande peso na determinação do regime jurídico do direito á terra em Moçambique como passaremos a fazer abordagem infra.

3.1. Propriedade da terra na ex-URSS.

Para melhor entendimento da questão de propriedade sobre terras na antiga União Soviética, importa referir em primeiro lugar a génese da legislação que fixou o quadro jurídico legal sobre o direito á terra naquela União.

Em 1917, o então líder da revolução bolchevique, Vladimir I. Lenin, apresentou uma proposta de um decreto sobre a terra ao II congresso dos sovietes de toda a Rússia e foi aprovado no

140 Consideramos relacionamento objectivo porque o alinhamento dos movimentos africanos que lutaram pelas suas independências, com a FRELIMO incluída, com os Países Socialistas tendo a URSS na liderança, não resultou, no nosso entender, de uma prévia conversão convicta da maioria dos seus líderes aos ideais do marxismo- leninismo, mas sim, pela falta de apoio em questões decisivas de fornecimento de material bélico pelas potências ocidentais dentre outras, que pelo contrário apoiaram as potências colonizadoras no seu esforço de retardar a libertação das colónias, impeliu os movimentos de libertação a aproximarem-se cada vez mais do bloco socialista onde encontravam esse apoio. É este factor que fez com que a tendência das bases de organização dos novos Estados nascidos das independências das antigas colónias portuguesas, tivesse uma grande influência da organização dos Estados socialistas e tendo as normas constitucionais e do direito á terra como um dos exemplos.

141 Reza a história da FRELIMO que a influência da experiência dos países socialistas serviu de fonte de inspiração para organização da vida económica e social das zonas que iam sendo libertas da influência colonial, que passaram a ser chamadas Zonas Libertadas. Desde então, a organização dessas zonas foi assumida como modelo de organização para futuro Estado de Moçambique independente.

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dia 26 de Outubro.142 Antes da grande revolução socialista de Outubro, na Rússia predominava a propriedade privada sobre a terra com assinaláveis resíduos do regime de servidão de caris feudal.143

O decreto aprovado pelo II congresso dos sovietes teve como fonte de inspiração a teoria de Karl Marx, segundo a qual a propriedade da terra é a fonte originária de toda a riqueza. K. Marx e F. Engels defenderam a ideia de nacionalização (expropriação) mediante a compra de meios de produção pelo Estado.

F. Engels defendia a não expropriação violenta dos pequenos camponeses com ou sem indemnização, o que não se aplicaria aos grandes proprietários de terras.144 Todavia, ao concretizar-se a nacionalização da terra na ex-URSS, na prática esta teoria defendida por F.Engels de respeito pelo direito de pequenos camponeses, não foi respeitada como a seguir veremos.

Esse posicionamento tomado na revolução russa provavelmente pode ter sido influenciado pelo desejo de colectivização do uso da terra especialmente através de organização de cooperativas agrárias. Porventura receou-se que mantendo os pequenos camponeses donos da propriedade das suas terras, dificilmente aceitariam a sua colectivização na medida em que este modo de organização da produção agrária prioriza esta camada de camponeses.

Foi esta teoria que pela primeira vez no mundo foi posta em prática pela revolução russa no seu decreto de Outubro de 1917 que dispôs que “ fica abolido para sempre o direito de propriedade privada sobre a terra. A terra não pode ser vendida, comprada, doada, transmitida por herança, arrendada, hipotecada ou por qualquer outra forma alienada. Todas as terras do Estado, da coroa, do czar, dos mosteiros, da igreja, de propriedade privada, das comunidades e dos camponeses, são alienadas sem indemnização, convertem-se em património de todo o povo e passam em usufruto a todos os que a trabalham.”

Foi assim estabelecido o principio de que a terra na URSS era propriedade do Estado. Ao estabelecer-se este regime, todas as terras situadas no território da URSS passaram a constituir o fundo agrário único do Estado soviético.145 O acesso á terra por todos os sujeitos de direito devia ser autorizado pelas entidades competentes. Não havia na URSS rés nullius, pois qualquer espaço passou a pertencer ao Estado incluindo terras incultas e abandonadas.

Como proprietário, o Estado soviético passou a dispor de amplos poderes próprios de um proprietário, nomeadamente a posse, uso e disposição dentro dos limites impostos pela lei. São poderes extensos comparados com um proprietário particular porque o Estado passou a dispor de prerrogativas como as de estabelecer regras unilaterais, de autorizar ou não o direito ou de modificar e extinguir o seu regime jurídico. Há a salientar no entanto que apesar de o Estado deter amplos poderes ele se auto limitou no que se refere ao poder de disposição onerosa da terra ao retirá-la completamente do comércio jurídico, ou seja, das transações civis sem excepção.

142 N. Sorodoev, la nueva legislación agrária soviética, página 5.

143 Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico, página 221, servidão significa sujeito, submetido, dependente. Servidão no caso do direito á terra, significa o estado de quem é servo. A terra pertence ao senhor feudal e o servo a usa de forma dependente porque tem encargos a cumprir em produtos, prestação de serviços e etc, a favor do dono da terra.

144 Maria da Conceição de Quadros, manual de Direito da terra, página 33.

145 Op cit Maria da Conceição de Quadros, textos de apoio 2005, página 14. Igualmente- N.Sirodòev, la nueva legislacion agrária soviética, página 32.

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Em relação ao valor da terra e outros recursos naturais, defendia-se a ideia de que eles não podiam ser objecto de avaliação pecuniária porque são produto da criação da natureza e não produto do homem. Neles não há incorporação de novo valor pelo trabalho humano, por isso não podiam entrar no comércio jurídico.

3.2. Sujeitos do direito á terra

O direito á terra na URSS era conferido a todo o povo. Tanto as pessoas singulares como as pessoas colectivas passaram a ser sujeitos do direito na qualidade de usufrutuários. Os proprietários que á data da nacionalização da terra exploravam activamente as suas propriedades, deixaram de ser proprietários, mas puderam continuar a explorá-las como usufrutuários.

Com a nacionalização da terra, esta passou a ser explorada prioritariamente em moldes socialistas. As formas privilegiadas de organização da economia agrária na URSS passaram a priorizar as empresas estatais, os sovjoses e as cooperativas, os koljoses.146

A revolução soviética trouxe uma viragem e introduziu um novo conceito de propriedade no que respeita ao direito á terra. Foi um acontecimento de longo alcance que, fruto de uma cooperação histórica imposta pelo projecto de libertação de Moçambique da dominação colonial portuguesa, o País acabou sendo marcadamente influenciado pelo regime adoptado na URSS em relação ao direito á terra. Essa influência marcante da doutrina soviética, iremos sem dúvida encontrá-la quando formos a abordar o direito á terra em Moçambique depois da independência nacional. Na nova legislação aprovada no País depois da independência, encontramos de forma explícita a influência do direito positivo português e do direito soviético, com os seus traços característicos.

Concluído o estudo sobre as influências históricas fundamentais sobre o direito á terra em Moçambique e expostos no essencial os seus principais traços, passamos de seguida a abordar o capítulo IV, que se debruça sobre o estudo do direito á terra em Moçambique.

146 Op cit, N.Sirodoev, página 31. A propósito das formas socialistas de organização socialista da produção agrária dizia”en la agricultura de la Unión Soviética dominan absolutamente las formas socialistas de organización de la producción agrícola: los koljoses e los sovjoses, lo cual al tiempo que excluye la posibilidad de explotación del hombre por el hombre, coadyuva a impulsar y robustecer el espíritu de el colectivismo y de la cooperación.”

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CAPÍTULO IV

O ESTUDO DO DIREITO Á TERRA EM MOÇAMBIQUE

O direito á terra em Moçambique é estudado fundamentalmente nos cursos superiores de direito ministrados pelas Faculdades de Direito que integram as diversas instituições do ensino superior existentes no País. O direito agrário é a disciplina que se dedica ao estudo do direito á terra em Moçambique nas instituições do ensino superior acima mencionadas, que passamos fazer o seu estudo obedecendo a seguinte sequência:

1. O direito agrário:

1.1. Conceito do direito agrário;

1.2. Conceito do direito agrário moçambicano;

2. Traços característicos do direito agrário:

2.1. Traços de natureza pública e privada na legislação moçambicana sobre terras;

2.2. Traços de natureza pública:

2.2.1. Direito constitucional;

2.2.2. Outras normas do direito público:

2.2.2.1. Normas do direito administrativo.

2.2.2.2. Direito processual civil, direito penal, e o direito processual penal

2.2.2.3. Direito fiscal;

2.3. Traços de natureza privada:

2.3.1. Interpretação e aplicação da lei no tempo;

2.3.2. Capacidade jurídica dos sujeitos;

2.3.2.1. Personalidade jurídica dos sujeitos;

2.3.2.2. Capacidade jurídica das pessoas singulares;

2.3.2.3. Interdições;

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2.3.2.4. Capacidade jurídica de pessoas colectivas;

2.4. Representação:

2.4.1. Representação na aquisição do direito de uso e aproveitamento da terra;

2.4.2. Na aquisição do direito por autorização de um pedido;

2.5. Ausência.

2.6. A prova.

2.7. A gestão de negócios.

2.8. A hipoteca de bens imóveis implantados legalmente no terreno pelo titular do direito de uso e aproveitamento da terra.

2.9. A compra e venda.

2.10. A doação.

2.11. Cessão de exploração.

2.12. O comodato.

2.13. A posse e o direito de uso e aproveitamento da terra.

2.14. A cessão industrial imobiliária e o direito de uso e aproveitamento da terra.

2.15. A compropriedade.

2.16. O direito de superfície:

2.17. As servidões prediais.

2.18. Direito de família.

2.19. Direito sucessório

1. O direito agrário

Não sendo objectivo deste trabalho o estudo em profundidade do que é o direito agrário, faremos apenas uma abordagem que nos permite visualizar de forma sucinta o que é esta disciplina no contexto do seu estudo em Moçambique.

1.1. Conceito do direito agrário.

O direito agrário de ponto de vista universal147 é tido como o ordenamento jurídico que rege as relações sociais e económicas que surgem entre os sujeitos intervenientes na actividade agrária. Como conceito geral,148 direito agrário é o ramo jurídico que regula as relações agrárias observando-se a inter-relação homem, terra, produção e sociedade.

147 Gursen de Miranda, direito agrátrio e ambiental, página 4, citando o jusagrarista argentino Antonino Vivanco na sua obra derecho agrário.

148 Idem, página 5.

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Ligando o conceito ao objecto do direito agrário, retiramos o entendimento de que o seu objecto é o facto jurídico que emerge do campo, como corolário de actividades agrárias emergentes da empresa agrária e da política agrária.149 Em síntese e no entendimento de Gursen de Miranda, o objecto do direito agrário gira á volta de exploração agrária e afins.150

1.2. Conceito do direito agrário moçambicano.

O conceito do direito agrário moçambicano pode, no nosso entender, ser definido como o conjunto de normas jurídicas que estabelecem o quadro jurídico inerente ao direito de propriedade, acesso, uso, gestão, modificação, transmissão e extinção de direitos sobre a terra.

Consideramos esta definição ajustada aos contornos do direito agrário moçambicano, tendo em conta que o escopo da disciplina do direito agrário nas nossas instituições do ensino superior em Moçambique gira essencialmente em torno do direito de uso e aproveitamento da terra, como podemos verificar a seguir pela análise ilustrativa dos currículos seguidos pela maioria dos nossos principais estabelecimentos de ensino superior que leccionam o direito agrário em Moçambique.

Quadro ilustrativo dos currícula dos estabelecimentos que leccionam o direito agrário em Moçambique.

Estabelecimento de ensino

Temas curiculares

Escola superior de economia e gestão(ESEG)

1. Noção de direitos reais.

2. Noção das coisas e sua classificação.

3. Política nacional de terras.

4. O direito de uso e aproveitamento da terra com fundamento na constituição e na lei de terras.

5. Outros sistemas de ocupação de terras(nas sociedades tradicionais africanas, no sistema feudal inglês, no sistema socialista, no direito romano e nos Estados Unidos de América)

Instituto Superior de Ciências e Tecnologia de Moçambique(ISCTEM)

1. Enquadramento do direito agrário.

2. Regime jurídico da terra em Moçambique.

3. Interacção com demais legislação relativa a outros recursos naturais ( lei de minas, lei de petróleos, lei de florestas e fauna bravia e lei de águas dentre outra)

149 Idem

150 Idem

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Universidade Católica de Moçambique(Nampula)

1. O direito agrário como ciência jurídica.

2. Legislação de terras em Moçambique.

Universidade Eduardo Mondlane

1. O direito agrário em Moçambique.

2. Revisão de conceitos necessários ao direito agrário.

3. Legislação sobre terras em Moçambique.

Universidade Politécnica de Moçambique

Universidade Técnica de Moçambique

1. Noção e objecto do direito agrário.

2. Posse e propriedade.

3. Sistemas de apropriação de terras nas sociedades tradicionais africanas, no direito romano, no sistema feudal inglês e no direito soviético.

1.Introdução ao direito agrário e respectivas noções básicas.

2.O quadro jurídico da terra em Moçambique.

3.Estudo da legislção de minas.

4.Legislação florestal de Moçambique.

Analisando o quadro que acabamos de apresentar, confirma-se a nossa afirmação supramencionada de que o direito agrário nos estabelecimentos de ensino em Moçambique assenta fundamentalmente na legislação sobre terras. Por isso, podemos dizer com certa propriedade que o estudo do direito agrário em Moçambique assenta sobre a terra que é uma componente do direito agrário, que por sinal é a essencial.

Todavia, este estudo não envolve o direito agrário definido no conceito universal que acabamos de analisar supra, pois ele não abarca outras componentes como das normas que surgem do relacionamento dos intervenientes na actividade agrária, a exploração agrícola, o estatuto da empresa, da cooperativa e porque não, da legislação de sanidade animal e vegetal, da marcação do gado, da comercialização de produtos agro-pecuários, só para citar alguns exemplos.151 Podemos pois concluir que o direito agrário em Moçambique assenta no estudo do direito á terra.

2. Traços característicos do direito agrário.

Neste sub capítulo abordaremos as características do direito agrário, com incidência no direito agrário moçambicano, assente fundamentalmente no estudo da legislação moçambicana

151 É nossa opinião que a dificuldade que existe em se incluir mais matérias reside na exiguidade do tempo de leccionação, na medida em que em todos os estabelecimentos analisados a cadeira do direito agrário é semestral com uma carga horária que não ultrapassa as 64 horas. Aliás, numa boa fracção deles a carga horária dispensada a esta disciplina não chega a atingir 40 horas. Em nosso entender esta cadeira devia merecer maior atenção e prioridade dos estabelecimentos de ensino considerando a elevada importância que tem o direito agrário num país predominantemente agrário. Persistindo a ideia de que ela seja semestral, seria pertinente que a carga horária fosse mais ampliada para permitir a abordagem das matérias.

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sobre terras. Atentos á legislação moçambicana sobre terras, o direito agrário moçambicano como o direito agrário no seu conceito universal é um direito geral e direito misto. Ele é geral porque atravessa toda a matéria jurídica e é misto na medida em que aborda matérias de natureza pública e privadas.152 Esses traços característicos podemos encontrá-los particularmente na legislação moçambicana sobre terras como adiante veremos.

2.1.Traços de natureza pública e privada na legislação moçambicana sobre terras.

Na legislação moçambicana sobre terras, encontram-se vertidas disposições legais que pela sua natureza têm características do direito público e outras com características do direito privado. A natureza publicista ou privada do direito agrário moçambicano, pode ser encontrada directamente no texto da legislação moçambicana sobre terras, como também na possibilidade de se recorrer a outras disciplinas do ordenamento jurídico moçambicano com vista a complementar a sua aplicação. Vamos por isso de seguida fazer uma abordagem dessa inter-relação do direito agrário com outras disciplinas jurídicas.

2.2.Traços de natureza pública.

2.2.1. Direito constitucional

O direito constitucional moçambicano constitui a fonte fundamental a partir da qual se inspirou o legislador ordinário da legislação moçambicana sobre terras. Olhando para a primeira constituição da República Popular de Moçambique que entrou em vigor no dia 25 de Junho de 1975, encontramos plasmada a ideia de que a terra e outros recursos naturais são propriedade do Estado. Esta ideia veio a ser retomada na constituição de 1990 e de 2004.

Nas constituições de 1990 e de 2004, o legislador constituinte foi mais longe do que o da primeira constituição de 1975 que só se limitou a declarar a terra como propriedade do Estado. 153 As duas últimas constituições trataram mais matérias constitucionais alusivas á terra, que mais tarde serviram de base para elaboração da lei ordinária. Encontramos nas duas constituições a retomada da definição da propriedade do Estado sobre a terra que vinha da constituição de 1975, mas com inovação no que respeita á definição de domínio público.154

Além disso, estas constituições, foram mais longe, ao inserirem normas proibitivas de qualquer forma de alienação da terra e inseriram normas que consagram que o direito á terra pertence a todo o povo moçambicano, a prerrogativa de ser o Estado a determinar as condições de uso e aproveitamento da terra, os sujeitos de direito e o reconhecimento dos direitos adquiridos por ocupação e por herança.155

2.2.2. Outras normas do direito público.

Além das normas constitucionais de que se serviu como principal alicerce para a sua elaboração, a lei de terras socorre-se de outra legislação dispersa que forma o grupo de dispositivos legais de que se podem extrair normas de direito público úteis á sua aplicação. Faremos uma

152 Maria da conceição de Quadros, plano temático e bibliografia, direito agrário, 5º ano, livro I, unidades 1 e 2, Faculdade de Direito da UEM, 1997.

153 Opcit artº 8

154 Cfr os artºs 35 da CRM de 1990 e 98 da CRM de 2004.

155 Idem. Cfr os artºs 46, 47 e 48 da CRM de 1990 e 109, 110 e 111 da CRM de 2004.

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referência apenas das disciplinas jurídicas ou dos institutos jurídicos a que se pode apelar na implementação da lei de terras.

2.2.2.1. Normas do direito administrativo.

Na lei de terras moçambicana podemos encontrar as seguintes normas principais:

relativas ao cadastro nacional de terras;

que estabelecem o domínio público e seus limites;

que definem os sujeitos de direito;

que estabelecem o regime de titulação e seu processo;

que fixam o prazo de duração do direito de uso e aproveitamento da terra e aquelas que estabelecem as regras da sua extinção;

sobre competências dos órgãos para decidir com vista á constituição, modificação ou extinção do direito de uso e aproveitamento da terra.

de natureza diversa insertas na legislação moçambicana sobre terras, que impõem comandos unilaterais da Administração Pública, que implicam acatamento pelos particulares.

2.2.2.2. Direito processual civil, direito penal e o direito processual penal.

O direito processual civil é um direito adjectivo iminentemente público, embora a sua função é suportar a integração do direito civil e do direito comercial, dois ramos de direito privado. O direito processual civil assume características de um direito público na medida em que incorpora normas reguladoras das relações em que o Estado exerce uma função de soberania, com prerrogativa de subordinação dos sujeitos envolvidos.156

Na implementação da lei de terras podemos recorrer ás regras do direito processual civil quando os sujeitos de direito tiverem que intentar uma acção para a defesa dos seus interesses em conflito no uso das garantias que a lei de terras lhes confere.157 A legislação sobre terras que acabamos de citar refere-se implicitamente ao contencioso administrativo.

Todavia, as mesmas regras do direito processual civil podem ser usadas quando há conflitos entre particulares que os conduzem a intentar acções junto dos Tribunais judiciais. São os casos que podem ser admissíveis na defesa do direito de uso e aproveitamento da terra como a defesa da posse.158 Uma outra prerrogativa que o detentor do Direito de uso e aproveitamento de terra possui é a de se comportar como dono do direito de propriedade apesar desta pertencer ao Estado. Nesse

156 Manual de processo civil, composição e impressão Coimbra Editora, Ldª, págs 8 e 9.

157 O artº 40 do regulamento da lei de terras confere direito de recurso contencioso aos sujeitos que se sentirem lesados pelas decisões tomadas pelos órgãos de Administração Pública. Havendo interposição de recurso ao Tribunal Administrativo, as normas processuais que aquele órgão vai seguir com as necessárias adaptações serão as do processo civil.

158 cfr o Título I, Capítulo V, defesa da posse, artº 1276 do código civil e seguintes, com as necessárias adaptações.

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sentido, o detentor legal de uma determinada parcela de terra pode agir na defesa dos seus direitos, intentando acções que envolvem para além da defesa da posse que atrás nos referimos, a possibilidade de recorrer aos meios de defesa de propriedade.159

No que se refere ao direito penal e ao direito processual penal, podem ser chamados nos casos em que ocorrem situações de burla. Considerando a importância de que a terra se reveste, especialmente nas zonas de muita procura, o fenómeno de burla é frequente, o que muitas vezes requer a intervenção do direito penal para pôr cobro á situação e estabelecer a justiça.

2.2.2.3. Direito Fiscal.

O uso da terra á luz da legislação moçambicana sobre terras, está sujeito a dois regimes. O primeiro e que constitui regra é o que impõe aos requerentes e aos titulares do direito de uso e aproveitamento da terra, o pagamento de uma taxa anual.160 O segundo regime é o que permite a utilização gratuita da terra.161 Tanto um como outro regime que acabamos de mencionar, iremos desenvolvê-los quando estivermos a abordar esta matéria na especialidade.

2.3. Traços de natureza privada.

Dissemos acima que o direito agrário é um direito geral e um direito misto. Por essa característica ele goza de particularidade de incorporar normas de direito público como acabamos de ver, mas também as do direito privado.

Se bem que a incorporação de normas do direito público na actual legislação moçambicana sobre terras é significativamente abundante162 em aparente detrimento das normas do direito privado, é nossa opinião que as normas do direito privado a que se pode recorrer têm um grande

159 Cfr o artigo 1.311º e ss do c.c. Segundo este preceito, ao proprietário assiste a prerrogativa de exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do seu bem. Não obstante a terra ser propriedade do Estado moçambicano, o titular do direito de uso e aproveitamento de uma parcela de terra, age com legitimidade na defesa deste, na medida em que é um direito inerente a esse bem imóvel, consoante dispõe a alínea d) do artigo 204º do código civil.

160 Cfr o artigo 28 da lei de terras. Segundo este preceito no seu número 1, o valor da taxa será fixado tendo em conta a localização dos terrenos, sua dimensão e a finalidade do seu uso. O mesmo preceito legal estatui que as taxas a pagar são a de autorização e a anual que poderá ser progressiva ou regressiva de acordo com os investimentos realizados.

161 Cfr o artigo 29 da lei de terras.

162 Isso resulta do facto de a terra ser propriedade do Estado. Como consequência disso, compete ao Estado determinar as condições de uso e aproveitamento da terra, com fundamento no nº 1 do artigo 110 da Constituição da República de Moçambique de 2004. No uso dessa prerrogativa, o Estado impõe unilateralmente um conjunto de normas administrativas que devem ser acatadas pelos particulares. Nesta ordem normativa, a autonomia privada dos particulares encontra limitações considerando que a terra não é objecto de comércio jurídico. Os particulares têm na actual lei de terras poucas possibilidades em que podem intervir como sujeitos com autonomia de vontade. São os casos de alienação de construções, infra-estruturas e benfeitorias e por herança de harmonia com o disposto no artigo 16 da actual lei de terras. Com excepção da transmissão mortis causa e dos prédios urbanos, na transmissão de construções, infra-estruturas e benfeitorias, a autonomia de vontade dos particulares está condicionada á autorização prévia da entidade competente conforme dispõe o nº 2 do artigo 16 da lei de terras por isso podemos dizer que é uma autonomia limitada. Os particulares também podem exercer a sua autonomia privada na constituição do direito de co-titularidade de acordo com o disposto no nº 2 do artigo 10 da lei de terras.

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peso como auxiliares de aplicação da lei de terras. O direito civil como “berço” do direito agrário163

possui normas que embora não sejam explicitamente mencionadas na legislação sobre terras, a elas se pode recorrer nos casos que são aplicáveis supletivamente.

Considerando a vastidão destas normas do direito civil que podem ser auxiliares do direito agrário, corremos o risco de não podermos incluir todas, mas faremos uma tentativa de mencionar o essencial.

2.3.1. Interpretação e aplicação da lei no tempo

O aplicador da legislação moçambicana sobre terras, ao pretender interpretá-la terá que recorrer ás regras gerais de interpretação assentes na lei civil, mormente nas teorias doutrinárias insertas na disciplina de introdução ao estudo de direito164.

De igual modo, serão tomadas em consideração as regras de aplicação da lei no tempo. Em matéria de aplicação da lei no tempo, deve prevalecer o princípio de que a lei dispõe para o futuro. Neste domínio, primeiro importa fazer referência ao comando constitucional segundo o qual na República de Moçambique as leis só podem produzir efeitos retroactivos nos casos em que há benefício para os sujeitos de direito.165

Essa regra também é comungada pelo Código Civil em vigor, ao dispor que a lei dispõe para o futuro e acrescenta que ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, deve se presumir que foram salvaguardados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei pretende acautelar.166

A actual lei de terras de Moçambique, Lei 19/97, de 1 de Outubro, referindo-se a esta matéria de aplicação da lei, dispõe que os direitos de uso e aproveitamento da terra adquiridos por ocupação ou por autorização de um pedido, com a sua entrada em vigor passaram a ser regidos por ela, ressalvando no entanto o respeito pelos direitos adquiridos167. Vigora aqui o princípio universal de que a lei nova é de aplicação imediata.

2.3.2. Capacidade jurídica dos sujeitos

O Exercício de quaisquer direitos sejam eles de natureza política, económica, social ou de outro género, exigem que os sujeitos tenham a necessária capacidade jurídica exigida pela legislação especifica. Na falta de previsão dos parâmetros de definição na legislação específica aplica-se a lei

163 Afirmamos que o direito civil é o “berço” do direito agrário moderno, porque este direito antes da sua autonomia relativa, esteve inserido no direito civil. Basta estarmos atentos ao nosso código civil em vigor em Moçambique aprovado em 1966, para apercebermo-nos que a matéria de terras foi por ele regida, atentos ao instituto de enfiteuse previsto no artº 1.491º e ss do mesmo código.

164 Cfr dentre outros a respeito de interpretação das leis, Oliveira Ascensão, o direito, introdução e teoria geral página 385 e seguintes. Para este autor, interpretar é colocar a lei na ordem social, procurando á luz dessa ordem, o seu sentido. O nº 1 do artigo 9 do Código civil dispõe a respeito de interpretação da lei, que ela não deve cingir-se á letra da lei, sendo necessário reconstituir-se o pensamento legislativo a partir do texto, tomando em linha de conta a unidade do sistema jurídico, o contexto em que a lei foi elaborada e as condições particulares do tempo em que ela é aplicada.

165 Cfr o artigo 57 da Constituição da República de Moçambique de 2004.

166 Cfr o nº 1 do artigo 12º do Código Civil.

167 Cfr o nº 1 do artigo 32 da Lei nº 19/97, de 1 de Outubro, lei de terras de Moçambique.

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geral. Nesse sentido, considerando o silêncio da lei de terras sobre esta matéria de capacidade dos sujeitos, socorremo-nos pelas regras do direito civil.168

2.3.2.1. Personalidade jurídica dos sujeitos

Antes de falarmos de capacidade jurídica dos sujeitos interessa falar da sua personalidade jurídica, condição importante para existência da capacidade jurídica169. De acordo com o que dispõe a lei civil, a personalidade das pessoas se adquire no momento do seu nascimento completo e com vida. Dispõe ainda que os direitos reconhecidos a nascituros só poderão ter eficácia jurídica depois do seu nascimento, presumindo-se no nosso entender que esse nascimento é o nascimento completo e com vida.170

Em relação á capacidade jurídica das pessoas, dispõe a lei171 que a capacidade jurídica é a susceptibilidade de as pessoas jurídicas serem sujeitos de quaisquer relações jurídicas desde que não vedado por lei.

As limitações que a lei impõe para que determinados sujeitos não façam parte de quaisquer relações jurídicas encontramos na própria lei civil. Nesse sentido, encontramos limitações que se impõem ás pessoas singulares e que se podem estender ás pessoas morais com as necessárias adaptações como a seguir passamos a abordar.

2.3.2.2. Capacidade jurídica das pessoas singulares

A prerrogativa que a lei reconhece a todos os sujeitos de serem parte de quaisquer relações jurídicas, encontra restrições no que concerne á capacidade de exercício. Essa capacidade difere consoante se trate de pessoas singulares ou de pessoas colectivas senão vejamos.

No concernente ás pessoas singulares a lei impõe via de regra que os menores de 21 anos de idade enfermam de incapacidade de exercício.172 Para suprimento da incapacidade dos menores, a lei criou mecanismos legais pertinentes. O primeiro que nos ocorre citar é a emancipação de menores fundada nos seguintes factos173:

Casamento do menor;

168 O legislador da primeira lei de terras de Moçambique independente, Lei nº 6/79, de 3 de Julho, no seu artigo 4 dispunha quanto aos sujeitos de direito que podiam ser sujeitos do direito de uso e aproveitamento da terra toda a pessoa colectiva ou singular dotada de capacidade jurídica. Na prática mesmo com esta formulação jurídica ficava implícito que a determinação da tal capacidade jurídica ficava a cargo da lei geral.

169 Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição actualizada, página 192. Segundo este autor, a capacidade a personalidade jurídica é inerente á capacidade jurídica ou capacidade de gozo de direitos.

170 Cfr o artº 66º do código civil. O nascimento completo a que se refere a lei significa que a pessoa não pode ter deficiência física? Entendemos que não. O nascer completo refere-se ao parto concluido dando lugar a um ser vivo independentemente das suas características físicas.

171 Cfr o artº 67º do cc.

172 Cfr os artigos 122º e 123º cc.

173 Cfr o artigo 132º do cc.

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Concessão do pai ou da mãe quando exerçam plenamente o poder paternal;

Concessão do conselho de família na falta dos pais ou estando eles inibidos do exercício do poder paternal.

A emancipação do menor produz como efeitos a atribuição a ele da capacidade de pleno exercício de direitos, podendo reger a sua vida sem ser por interpostas pessoas e dispor do seu património como se de maior se trate174. Todavia, apesar de emancipada a pessoa continua a ser menor, mas deixa em principio de ser incapaz e passa a gozar do estatuto de um menor emancipado.175

No caso do direito de uso e aproveitamento da terra objecto deste trabalho e no que respeita á aquisição do direito por autorização de um pedido, o menor emancipado passa a ter capacidade para requerer pessoalmente o seu direito e dispor dele nos termos previstos na legislação sobre terras. Se for um direito adquirido por ocupação, ele passa a gozar das mesmas prerrogativas que os demais membros da comunidade têm. São prerrogativas que se radicam nas normas e práticas costumeiras de cada comunidade que a legislação moçambicana sobre terras reconhece.176

2.3.2.3. Interdições

A incapacidade de exercício não afecta apenas os menores. A lei prevê restrições no exercício de direitos por determinadas pessoas que apesar de serem maiores de idade, sofrem no entanto de determinadas anomalias que envolvem os que padecem de anomalia psíquica que afectam o intelecto, a afectividade e a vontade, surdez-mudez e a cegueira graves que não possibilitam o doente reger a sua vida.177

Questão importante a sublinhar é a que respeita ao grau de enfermidade e deficiência que podem determinar a interdição. As deficiências a considerar são as habituais e duradouras, desde que declaradas judicialmente com sentença transitada em julgado.178 Outro aspecto a realçar é o que diz respeito á capacidade do interdito e regime de interdição. Reza a lei 179 que o interdito é equiparado a um menor e são lhe aplicáveis com as necessárias adaptações os meios usados para supressão da incapacidade dos menores de idade, concretamente o poder paternal e a tutela.

Além da incapacidade resultante de menor idade e por interdição, temos a inabilitação que abrange pessoas que embora sofrendo de anomalia psíquica, surdez-mudez de forma permanente, a

174 Assim dispõe o artigo 133º do cc, colocando excepção apenas dos condicionalismos impostos pela emancipação restrita prevista no artigo 136º do cc concretamente quando a emancipação restrita diga respeito ao exercício de certos actos jurídicos mantendo-se quanto aos restantes actos necessários para regência da sua vida considerado ainda menor.

175 Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, tomo I, 3ª edição revista e actualizada, página254.

176 A alínea a) do artigo 12 da lei de terras, reconhece como uma das formas de aquisição do direito de uso e aproveitamento da terra a ocupação por pessoas singulares e pelas comunidades locais feita com base nas normas e práticas costumeiras desde que não entrem em contradição com a constituição.

177 Op cit, Carlos Alberto da Mota Pinto, página 228. No mesmo sentido cfr o artigo 138º do c.c.

178 Op cit Carlos Alberto da Mota Pinto, página 229.

179 Cfr o artigo 139º do c.c.

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doença não é tão grave de tal forma que justifique a sua interdição.180 A incapacidade do inabilitado é suprida por meio de um curador, que o assiste, autorizando-o na disposição do seu património entre vivos.181

2.3.2.4. Capacidade jurídica de pessoas colectivas

Vimos na unidade anterior a matéria relativa á capacidade jurídica das pessoas singulares e tivemos o entendimento de que elas adquirem a sua capacidade de gozo com o seu nascimento completo e com vida, mas enquanto ainda forem menores de idade e interditos, enfrentam face á lei, limitações no que respeita á capacidade de exercício. Neste espaço vamos abordar a capacidade jurídica das pessoas colectivas, de modo a obtermos uma ideia de como é que elas podem exercer os seus direitos e cumprirem os seus deveres não sendo pessoas físicas.

Em primeiro lugar, importa definirmos as pessoas colectivas. Segundo alguns cultores da teoria geral do direito civil, “as pessoas colectivas são organizações constituídas por uma colectividade de pessoas ou por uma massa de bens dirigidos á realização de interesses comuns ou colectivos, ás quais a ordem jurídica atribui personalidade jurídica.”182 Uma outra definição considera a pessoa colectiva como ”um organismo social destinado a um fim lícito a que o direito atribui a susceptibilidade de direitos e vinculações”.183

Tanto na primeira como na segunda definição podemos tirar o entendimento de que a pessoa colectiva é produto de uma concertação de um grupo de pessoas com excepção das fundações que podem resultar da vontade de uma pessoa, com objectivo de perseguir actividades permitidas por lei para beneficio colectivo.

De acordo com Mota Pinto,184 a categoria de pessoas colectivas compreende o Estado, os Municípios, as associações recreativas ou culturais, as fundações, as sociedades comerciais, etc. No caso concreto de Moçambique pós independência, podemos encontrar também como organizações que integram as pessoas colectivas as empresas estatais e públicas, cooperativas, associações económicas, sindicais, religiosas dentre outras.

As pessoas colectivas adquirem a sua personalidade e capacidade jurídicas através da sua criação e subsequente reconhecimento.185 As pessoas colectivas têm vantagens em relação ás

180 Cfr o artº 152º do c.c.

181 Cfr o artº 153º do c.c.

182 Op cit, Mota Pinto, página 267.

183 Op cit, Carvalho Fernandes, página 418.

184 Idem.

185 Op cit Mota Pinto, página 269, segundo ele, os elementos constitutivos da pessoa colectiva são dois—o substracto e o reconhecimento. Ele considera substracto como algo constituído por elementos de facto, que são o conjunto de dados e acções que antecedem o reconhecimento pela entidade competente. O reconhecimento feito pela entidade competente é o segundo elemento. Ele tem maior importância porque é revestido de valor jurídico e é através dele que a pessoa colectiva adquire personalidade jurídica. Em Moçambique temos diversa legislação que regula a criação de pessoas colectivas de variadas espécies. O código civil dispõe de normas gerais sobre a criação e reconhecimento de associações e fundações com fins não lucrativos. O artigo 158º do código civil trata a matéria de reconhecimento e atribui competência ao governo. Outras pessoas colectivas previstas no código civil são as sociedades civis cuja personalidade é adquirida desde que a sua constituição obedeça a forma prevista no artº 981º do c.c. Temos ainda em matéria

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pessoas singulares na medida em que a partir do momento em que elas são criadas e reconhecidas, adquirem imediata e simultaneamente a capacidade de gozo e de exercício, o que é diferente com as pessoas singulares como tivemos ocasião de ver na unidade anterior.

Um outro pormenor que as pessoas colectivas dele se beneficiam, é que enquanto as pessoas singulares podem ser afectadas por interdições no exercício dos seus direitos, as pessoas colectivas, não sendo pessoas físicas estão livres de preencher as patologias que podem conduzir para que uma pessoa física fique sujeita á interdição.

Feita esta abordagem em matéria de capacidade dos sujeitos para adquirirem o direito e no caso do nosso trabalho trata-se da capacidade que os sujeitos de direito devem reunir de modo a habilitarem-se á aquisição do direito de uso e aproveitamento da terra.

Vimos que as pessoas singulares adquirem a personalidade jurídica, isto é, a capacidade de gozo com o seu nascimento completo e com vida. Todavia, enquanto forem menores de idade, as pessoas singulares não têm capacidade de exercício salvo se forem emancipados. Quer dizer que no caso do objecto do nosso trabalho, as pessoas singulares enquanto forem menores, elas não podem requerer o seu direito de uso e aproveitamento de terras por sí, devendo o fazer por interpostas pessoas, precisamente dos que exercem o poder paternal ou o poder tutelar. O mesmo principio que se aplica aos menores, também aplica-se aos interditos considerando-se que eles são equiparados a menores nos termos da lei civil.

Em sentido diferente encontramos a condição jurídica das pessoas colectivas que a partir do momento que adquirem a sua personalidade jurídica, adquirem imediatamente a capacidade de exercício, que a exercem através dos seus órgãos sociais, significando, no caso do nosso estudo que com a aquisição da personalidade jurídica podem se habilitar a requerer o direito de uso e aproveitamento da terra.

de pessoas colectivas as sociedades comerciais previstas no actual código comercial aprovado pelo Decreto-Lei nº 2/2005, de 27 de Dezembro, que dispõe no seu artigo 86 que as sociedades comerciais adquirem personalidade jurídica a partir da data da sua constituição. Depois da independência de Moçambique outra legislação foi produzida no sentido de criação de um quadro legal para criação de pessoas colectivas destinadas a diversos fins. Temos a Lei nº 4/82, de 6 de Abril, que regula a criação de associações económicas e confere competência no seu artigo 4, ao Ministro que tutela a área de actividade respectiva para efectuar o reconhecimento da associação. A Lei nº 8/91, de 18 de Julho, regula o direito á livre associação e atribui no seu artigo 5 competência ao governo para conferir o reconhecimento. O Decreto-Lei nº 2/2006 de 3 de Maio, estabelece os termos e procedimentos para a constituição , reconhecimento e registo das associações agro-pecuárias e confere no seu artigo 5, competência para reconhecimento ás autoridades administrativas do local da situação da associação. No artigo 9 do mesmo diploma legal, admite-se a possibilidade de criação de uniões agro-pecuárias e atribui competência á autoridade distrital se abranger associações do mesmo distrito, mas se abranger mais que um distrito, a competência de reconhecimento é do Governador da respectiva Província, podendo ser exercida pelo Ministro que superintende o sector agro-pecuário. O Decreto nº 44/2007, de 30 de Outubro, define os procedimentos para o reconhecimento das associações juvenis á luz da Lei 8/91, de 18 de Julho e atribui no seu artigo 5, competência para o seu reconhecimento ao Ministro da Justiça quando se trate de associações de âmbito nacional, do Governador da Província quando se trate de associação de âmbito provincial, do Administrador do Distrito quando o seu âmbito for de nível distrital e do representante consular para as associações juvenis constituídas na diáspora. Finalmente temos a Lei nº 23/2009, de 8 de Setembro, que aprova a lei geral sobre as cooperativas e nos termos do nº 2 do artigo 14 deste diploma legal, a cooperativa adquire personalidade jurídica com o registo da sua constituição e produzem efeitos para terceiros apôs a publicação dos seus estatutos no Boletim da República.

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Vistas estas normas do direito privado, passamos a abordar mais algumas normas que podem ser usadas na implementação da legislação moçambicana sobre terras. Pela vastidão de normas de direito privado a que se pode apelar, não será possível abordá-las todas neste trabalho, mas faremos referência a algumas pela sua importância como a seguir se apresentam.

2.4. Representação.

A representação é o instituto jurídico de que surgem os poderes que um sujeito de direito investe a um outro sujeito de poderes para em sua representação exercer certas funções, cujos efeitos jurídicos se repercutem na esfera pessoal do representado.186

No nosso ordenamento jurídico o instituto de representação é acolhido pelo código civil em vigor.187 A lei civil moçambicana regula a representação própria, directa ou imediata que provêm de poderes representativos conferidos pelo representado ao representante e que se contrapõe á representação sem poderes quando há actuação do representante sem que esteja investido dos necessários poderes representativos.

O instituto de representação apresenta dois tipos principais, a representação voluntária e representação legal. A voluntária é aquela que uma pessoa decide outorgar poderes a uma outra pessoa dentro das prerrogativas da sua autonomia de vontade, para lhe representar na prossecução dos seus negócios jurídicos através de uma procuração.188

A Representação legal é aquela que emana da lei e abrange determinadas categorias jurídicas, como a supressão da incapacidade jurídica de menores e de interditos conforme o previsto na lei civil.189 Ainda a representação legal é um instrumento legal usado pelas pessoas colectivas públicas e privadas para gestão e administração dos seus interesses, através de outorga de poderes a mandatários seus nos termos das disposições legais e estatutárias previstas nos diplomas ou nos estatutos constitutivos quando se trate de pessoas colectivas de direito público, ou pessoas colectivas de direito privado, respectivamente.

Para o direito agrário, a importância da representação nas suas duas vertentes atrás apresentadas, reside no facto de ser um instrumento que pode permitir que pessoas interessadas em adquirir ou tratar de assuntos relativos ao seu direito de uso e aproveitamento da terra, mas que por qualquer motivo não podem o fazer pessoalmente, poderem outorgar mandato a um representante para os representar.

Mas em que casos o instituto de representação pode ser apelado no âmbito de tratamento de assuntos ligados com o direito de uso e aproveitamento da terra? Essencialmente podemos identificar os seguintes casos, dentre outros:

186 Plácido e Silva, vocabulário jurídico, 4ª edição, Editora Forense, página 103.

187 Cfr o artigo 258 e seguintes do c.c.

188Ibidem, Plácido e Silva, página 461, procuração significa cuidar, tratar de negócio alheio, administrar coisa de outrem ou ser procurador de alguém. Mas na linguagem técnica jurídica e é o que interessa a esta abordagem, procuração quer se referir propriamente ao instrumento em que vem plasmado o mandato, que é o escrito ou documento em que se outorgam os poderes conferidos ao representante pelo representado.

189 O artigo 124º do c.c. dispõe que a incapacidade de menores é suprida pelo poder paternal e na falta deste, pela tutela. Decorrente da previsão no artigo 139º do c.c. que dispõe que os interditos são equiparados a menores, sendo lhes aplicado o regime jurídico de menores de idade incluindo os meios de exercício do poder paternal ou de tutela, o artº 124º do c.c. é também aplicável para o caso das interdições.

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2.4.1. Aquisição do direito de uso e aproveitamento da terra por ocupação.

No caso do direito por ocupação pelas comunidades e por pessoas singulares nacionais que de boa fé ocupam a terra há pelo menos 10 anos,190 o instituto de representação pode ser chamado nos casos de identificação das terras ocupadas através dessas duas figuras jurídicas (comunidades locais e pessoas singulares que as integram e a de boa fé), de modo a que as suas terras sejam lançadas no cadastro nacional de terras.191 Neste caso a comunidade ou a pessoa singular pode outorgar poderes a um representante para junto das autoridades públicas estaduais ou municipais, tratar do processo respectivo.

2.4.2. Aquisição do direito por autorização de um pedido.

A aquisição do direito de uso e aproveitamento da terra por autorização de um pedido,192 é a figura que é mais favorita para o recurso ao instituto de representação, por ela representar a forma de aquisição baseada no direito positivo em vigor, herdado do sistema jurídico colonial. Os interessados em adquirir o direito de uso e aproveitamento da terra ou os titulares do direito, podem recorrer á figura de representação para requerer o direito pela primeira vez e realizar todos os procedimentos processuais exigidos para a autorização provisória, demarcação do terreno, registo do direito, no pagamento de taxas, no pedido de autorização definitiva e na transmissão do direito entre vivos e mortis causa.

Além das normas jurídicas do direito privado que acabamos de apresentar de forma resumida que podem ser usadas na implementação do direito de uso e aproveitamento da terra, existem ainda outras normas inseridas na lei civil moçambicana a que se pode recorrer como a seguir se apresentam:

2.5. Ausência

A ausência do titular do direito de acordo com a lei civil em vigor no pais tem implicações jurídicas em relação ao património do ausente.193 O direito de uso e aproveitamento da terra é património privado do seu titular. Pode dar-se o caso em que o titular do direito sobre uma determinada parcela da terra desapareça sem que se saiba do seu paradeiro e sem ter deixado representante legal ou procurador. Neste caso, o tribunal deve nomear-lhe curador provisório, podendo ser nomeado curador definitivo passados dois anos se o ausente não tiver deixado representante legal ou procurador bastante, ou passados 5 anos no caso contrário.194

Um aspecto importante a realçar neste instituto é a figura de morte presumida cuja declaração pode ser requerida passados dez anos da data do desaparecimento, neste caso, do titular

190 Cfr as alíneas a) e b) do artigo 12 da Lei nº 19/97, de 1 de Outubro, lei de terras.

191 Dispõe o número 3 do artigo 9 do regulamento da actual lei de terras aprovado pelo Decreto nº 66/98, de 8 de Dezembro, que quando necessário e mediante o pedido da respectiva comunidade local, as áreas onde recai o seu direito por ocupação costumeira, poderão ser identificadas e lançadas no cadastro nacional de terras. De igual modo, nos termos do disposto no nº3 do artigo 10 do mesmo regulamento, poderá se proceder em relação ás terras ocupadas por pessoas singulares nacionais que ocupam a terra de boa fé há pelo menos 10 anos.

192 A figura de aquisição do direito de uso e aproveitamento da terra por autorização de um pedido está prevista na alínea c) do artigo 12 da lei de terras, Lei nº 19/97, de 1 de Outubro.

193 O instituto de ausência está previsto no artigo 89º e seguintes do c.c.

194 Cfr o artigo 99º do c.c.

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do direito de uso e aproveitamento da terra, ou passados cinco anos se o titular ausente tiver completado oitenta anos de idade, e, feita a declaração de morte presumida, ela produz os mesmos efeitos que a morte, abrindo caminho para que os seus herdeiros exerçam os seus direitos e assumam as suas obrigações.195

2.6. A Prova

O instituto de prova, cuja função é a determinação da realidade dos factos,196 ele é chamado na implementação do direito de uso e aproveitamento da terra, quando os sujeitos de direito se vêm em determinados momentos a ter que provar o seu direito em caso de disputa com terceira pessoa ou quando as autoridades competentes o exigirem. As provas que a lei de terras prevê são a documental, feita por título, que representa nos termos do código civil, um documento autêntico, a prova testemunhal e a pericial.197

2.7. A gestão de negócios.

A lei civil moçambicana define a gestão de negócios como o acto de alguém assumir a direcção de um negócio alheio no interesse e por conta do respectivo dono, sem a devida autorização.198

Quer dizer, há gestão de negócios quando certa pessoa sem autorização do dono do negócio jurídico, actua no âmbito de autonomia privada daquele, usando a favor desse dono o que a lei permite.199

A actuação da pessoa gestora de negócio pode incidir na realização de negócios jurídicos propriamente ditos como compra e venda, empreitada para reparação de uma coisa, arrendamentos, expurgação de hipotecas e etc, como na prática de actos jurídicos, nomeadamente

195 Cfr os artigos 114º e 115º do c.c.

196 Cfr o artigo 341º do c.c.

197 A alínea a) do artigo 15 da actual lei de terras, estatui que o título é um instrumento comprovativo do direito de uso e aproveitamento da terra. É a prova documental prevista no artigo 362º do c.c. e é documento autêntico porque é passado por uma entidade pública competente de harmonia com o previsto no artigo 369º do c.c. A alínea b) do artigo 15 da lei de terras, prevê a prova testemunhal apresentada por homens e mulheres, membros das comunidades locais. No código civil a figura da prova testemunhal é admitida nos termos do artigo 392º do c.c., dispondo que é admitida nos casos em que ela não seja directa ou indirectamente afastada, como é o caso do que acontece com a lei de terras que a acolhe expressamente. A figura da prova pericial prevista na alínea c) do artigo 15 da lei de terras, encontra sua consagração no código civil ao abrigo do artigo 388º, que prevê o envolvimento de peritos na busca de provas. Mas a alínea c) do artigo 15 da lei de terras não só admite a peritagem como meio de prova, como também considera outros meios permitidos por lei. Por outros meios permitidos por lei, podemos considerar a prova por inspecção feita pelo próprio tribunal, para a percepção directa dos factos, consoante prevê o artigo 390º do código civil.

198 Cfr o artigo 464º do c.c.

199 António Menezes Cordeiro, direito das obrigações, 2º V, reimpressão, 1994, página 11.

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aceitação de pagamentos, cobrança de dívidas, pagamento de rendas, ou de simples factos materiais como reparação de um muro, sementeira de um campo, cuidar de animais, abertura de uma vala de drenagem e etc.200

Os actos jurídicos serão, via de regra, destinados a actos de mera administração mas é possível que a gestão envolva também actos de disposição.201 A gestão de negócios pode ser chamada a actuar como instrumento útil na gestão do direito de uso e aproveitamento da terra.

Esta figura provavelmente não pode ser muito usada na aquisição do direito de uso e aproveitamento da terra, embora tal hipótese não é de se afastar definitivamente, mas noutros actos é possível os sujeitos de direito assumirem o papel de gestores de negócios nomeadamente nos casos de registo do direito de uso e aproveitamento da terra adquirido pelos requerentes e pelos titulares, o averbamento de títulos, expurgação de hipotecas, submissão de pedidos de renovação do prazo de validade do direito de uso e aproveitamento da terra, requerer a autorização definitiva, proceder ao pagamento de taxas, celebrar contratos de cessão de exploração, agir nos casos de extinção do direito de uso e aproveitamento da terra consequência de expropriação por interesse público, demarcação de terrenos e recurso ás decisões tomadas pelas entidades da Administração Pública no âmbito da gestão dos direitos á terra.202

200 Pires de Lima e Antunes Varela, 4ª edição revista e actualizada, código civil anotado Vol I, anotação ao artº 464º, página 444.

201 Idem, página 445.

202 Nos termos do artigo 14 da lei de terras, a constituição, modificação e extinção do direito de uso e aproveitamento da terra, está sujeito a registo. O artigo 20 do regulamento da lei de terras aprovado pelo Decreto nº 66/98 de 8 de Dezembro, com a redacção dada pelo Decreto nº 1/2003, de 18 de Fevereiro, os titulares do direito de uso e aproveitamento da terra devem registar por sua iniciativa o seu título e outros factos jurídicos inerentes. È possível alguém tomar iniciativa de promover o registo do direito, considerando os benefícios daí resultantes no que respeita á oponibilidade do direito contra terceiros a partir do registo. Havendo óbito de um titular do direito de uso e aproveitamento da terra, nos termos do nº 1 do artigo 16 da actual lei de terras, o direito é transmitido aos herdeiros. Pode acontecer que estes não estejam próximos ou por qualquer motivo de força maior não podem tomar conta da sua herança. Nesse caso, é lícito que alguém assuma a gestão da herança em regime de gestão de negócios. Nos casos em que nos termos do nº 2 do artigo 16 da mesma lei de terras o titular do direito de uso e aproveitamento da terra transmitir entre vivos as infra-estruturas, construções e benfeitorias que devidamente autorizado implantou no terreno e se este titular do direito por qualquer motivo não poder promover o averbamento do título conforme reza o nº 3 do artigo acima referido, é lícita a intervenção de um gestor de negócios. Consideramos que a gestão de negócios só pode ter lugar no caso de averbamento de títulos e não para a disposição das infra-estruturas, construções e benfeitorias, por nos parecer que isso configura um acto de iniciativa pessoal. Também a gestão de negócios não nos parece aplicável nos casos em que de harmonia com o disposto no número 5 do artigo 16 da lei de terras, o titular pode constituir hipoteca das infra-estruturas, construções e benfeitorias que devidamente autorizado tenha construído no terreno. A iniciativa de alienar e de hipotecar os bens tem de ser do próprio dono e a intervenção de uma pessoa estranha tem de ser por mandato ou procuração passados pelo titular, portanto com recurso a outros institutos, neste caso, o de mandato e o de representação. Julgamos que nos bens hipotecados o gestor de negócios pode ter espaço para a expurgação da hipoteca. Aliás, na sua anotação ao artigo 464º do c.c., Pires de Lima e Antunes Varela admitem essa possibilidade. O artigo 17 da lei de terras, estatui que o direito de uso e aproveitamento da terra é válido por um período de 50 anos renováveis, mas no fim do prazo um novo pedido deve ser apresentado. Por seu turno, o nº 2 do art° 18 do regulamento da lei de terras, preconiza que o pedido de renovação do título deve ser apresentado pelo titular 12 meses antes do fim do prazo. Havendo porventura impedimento do titular e para não ficar prejudicado pelo atraso no

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2.8. A hipoteca de bens imóveis implantados legalmente no terreno pelo titular do direito de uso e aproveitamento da terra.

A matéria de hipoteca na lei moçambicana sobre terras, é tratada no capítulo de transmissão do direito de uso e aproveitamento da terra decorrente de alienação de infra-estruturas, construções e benfeitorias implantadas no terreno com a devida autorização ou que legalmente tenha adquirido o direito de propriedade.203

O titular do direito de uso e aproveitamento da terra só pode hipotecar os bens por ele implantados no terreno na medida em que sendo a terra propriedade do Estado, a lei constitucional e a lei de terras não permitem que os titulares do direito a possam hipotecar com intuito de se servirem da terra como garantia real.204 O regime jurídico da hipoteca aplicável como corolário do acolhimento deste instituto pela lei de terras, é o previsto no código civil em vigor.205

cumprimento de um procedimento obrigatório que além de ser útil para a renovação e conservação do direito de uso e aproveitamento da terra, o atraso é objecto de sanções previstas no nº 3 do mesmo regulamento, havendo alguém solidário pode tomar iniciativa de legalizar a situação na qualidade de gestor de negócios. Nos termos do artigo 26 da actual lei de terras, se o titular do direito de uso e aproveitamento da terra cumprir o plano de exploração dentro do período provisório, é lhe outorgada a autorização definitiva. Todavia, de harmonia com o disposto no artigo 31 do regulamento da lei de terras, a autorização definitiva é requerida á entidade competente. Não podendo o fazer o titular por qualquer impedimento, é lícita a actuação de um gestor de negócios no requerimento do direito de autorização definitiva. O pagamento de taxas previstas no artigo 28 da lei de terras pode ser feito através de um gestor de negócios de modo a evitar as consequências jurídicas que o atraso ou falta de pagamento das mesmas acarreta. A celebração do contrato de cessão de exploração prevista no nº 4 do artigo 15 do regulamento da lei de terras é outra figura que pode ser objecto de gestão de negócios e tem muita utilidade por permitir que alguém intervenha para garantir que a terra seja usada de modo a não incorrer na figura de falta de cumprimento do plano de exploração que é causa de extinção do direito de uso e aproveitamento da terra nos termos da alínea a) do nº1 do artigo 18 da lei de terras. Em matéria de extinção do direito de uso e aproveitamento da terra, a gestão de negócios pode ser viável nos casos em que nos termos da alínea b), do nº 1 do artigo 18 da lei de terras há extinção do direito por interesse público, precedido de justa indemnização. Encontrando-se impossibilitado ou impedido o titular de poder velar pelo seu interesse, é lícito que um gestor de negócios o possa fazer.A demarcação de terras prevista no artigo 30 do regulamento da lei de terras, é um acto de elevada importância porque ele deve ser observado dentro do prazo de um ano sob pena de cancelamento do direito de uso e aproveitamento da terra. Não estando perto o titular ou não podendo o fazer, é lícito que um gestor de negócios o faça. Finalmente, um gestor de negócios pode intervir para interpor recursos graciosos ou contenciosos nos termos do artigo 40 do regulamento da lei de terras, considerando o prejuízo que um titular do direito de uso e aproveitamento da terra pode incorrer pela aplicação do regime sancionatório previsto no artigo 39 do regulamento da lei de terras, redacção dada pelo Decreto 1/2003, de 18 de fevereiro, o qual nem sempre será aplicado de forma justa. De notar que nos termos do nº 4 do artigo 39 do regulamento da lei de terras na sua nova redacção, o não pagamento de multa dentro do prazo estabelecido implica a remessa do expediente ao juízo das execuções fiscais para cobrança coerciva. Este facto justifica a intervenção de um gestor de negócios de modo a evitar graves prejuízos ao titular do direito.

203 Cfr o número 5 do artigo 16 da lei de terras.

204 Cfr o número 2 do artigo 109 da Constituição da República de Moçambique e o artigo 3 da lei de terras.

205 No número 1 do artigo 686º do código civil, se explica a noção de hipoteca. Assim, aquele preceito dispõe que a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis ou equiparadas,

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2.9. A compra e venda.

Na actual lei de terras permite-se a transmissão do direito de uso e aproveitamento da terra entre vivos através de alienação de infra-estruturas, construções e benfeitorias existentes no terreno mediante a celebração de escritura pública precedida de autorização da entidade estatal competente.206

Com entrada em vigor do processo de criação das autarquias locais em Moçambique, o conceito entidade estatal competente, no nosso entender a interpretação deve ser corrigida, passando-se a considerar entidade da Administração Pública competente de modo a abranger a competência dos presidentes dos municípios.207

O processo de alienação de infra-estruturas, construções e benfeitorias pelo titular do direito de uso e aproveitamento da terra segue o regime do contrato de compra e venda previsto na lei civil no capitulo do direito das obrigações e sendo bens imóveis, a lei de terras impõe que se observe a forma exigida para transações de bens desta natureza.208

pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não se beneficiem de privilégio especial ou de prioridade de registo. De harmonia com o disposto no artigo 687º do código civil, a eficácia jurídica de uma hipoteca só se produz depois do seu registo, acto sem o qual ela não pode produzir efeitos. Segundo António Menezes Cordeiro na sua obra de direito das obrigações Vol2, página 507, a hipoteca constitui um verdadeiro direito real de garantia por ser uma permissão normativa de aproveitamento de coisas corpóreas que asseguram direitos de crédito.

206 Cfr o número 2 do artigo 16 da lei de terras.

207 A alínea k), nº 1 do artigo 56 da Lei nº 2/97, de 18 de Fevereiro, que aprova o quadro jurídico das autarquias locais, atribui a estas pessoas colectivas públicas autónomas, o exercício das competências previstas na legislação sobre terras. O artigo 23 da actual lei de terras prevê competências para os conselhos municipais e de povoação e Administradores distritais para as vilas que ainda não foram objecto de criação de autarquias locais.

208 O contrato de compra e venda vem previsto no artigo 874º do c.c. Segundo este preceito, é o contrato que implica a transmissão de propriedade de uma coisa mediante um preço. Segundo António Menezes Cordeiro, direito das obrigações, 3º volume, 2ª edição revista e ampliada, página 12, trata-se de um contrato com efeitos reais que consiste na transferência da titularidade de um direito revestindo dois efeitos obrigacionais, o que recai ao vendedor de entregar a coisa vendida e o que recai ao comprador de pagar o respectivo preço. Quanto á forma, sendo bens imóveis, a lei de terras exige no nº 2 do seu artigo 16 que o contrato de compra e venda seja celebrado por escritura pública, o que nos remete á regra prevista no artigo 875º do c.c. È uma formalidade jurídica obrigatória que condiciona a validade do negócio, na medida em que sem a escritura pública não é possível a transmissão da propriedade dos bens imóveis envolvidos e o contrato é nulo(cfr Menezes Cordeiro atrás citado, página 14).

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2.10. A doação.

No instituto de transmissão de direitos contemplado pela lei de terras não se refere em algum momento á doação como uma modalidade a considerar na transmissão do direito de uso e aproveitamento da terra.

Todavia, no nosso entender apesar dessa não referência expressa da lei, a doação, a par da permissão de alienação de bens imóveis entre vivos implantados pelos titulares do direito de uso e aproveitamento da terra, é uma figura jurídica que pode ser usada quando o titular pretender transmitir o seu direito de uso e aproveitamento da terra através da doação dos bens imóveis por sí implantados no terreno. Neste caso, a doação irá seguir as regras previstas na lei civil em vigor incluindo a sua forma.209

2.11. Cessão de Exploração.

Na lei de terras, Lei nº 19/97, de 1 de Outubro, não consta uma norma substantiva que introduz a figura de cessão de exploração do direito de uso e aproveitamento da terra. Todavia, apesar dessa não previsão no direito substantivo, encontramos a referência á figura de cessão de exploração na lei adjectiva, isto é, no regulamento da lei de terras aprovado pelo Decreto nº 66/98, de 8 de Dezembro.210

O regulamento da lei de terras dispõe apenas a respeito de cessão de exploração que a celebração de contratos de cessão de exploração está sujeita á aprovação prévia da entidade que autorizara a aquisição ou reconhecimento do direito de uso e aproveitamento da terra, devendo os mesmos serem celebrados por escritura pública.211

Salvo melhor opinião, esta figura é atípica, pois não constando na lei de terras, devia vir prevista no código civil depositário de normas supletivas que podem ser usadas na implementação da lei de terras como temos vindo a abordar, o que não está a acontecer. As normas aproximadas previstas no código civil, são as que se referem á cessão da posição contratual.212

Todavia, a cessão prevista no código civil refere que ela existe quando há um contrato com prestações recíprocas e implica a cedência de um direito definitivamente. Ora, no direito de uso e aproveitamento da terra a existir o contrato de cessão de exploração, é, quanto a nós, um contrato atípico que decorre do próprio regulamento da actual lei moçambicana de terras. Ele não dá direito de transferência definitiva do direito de uso e aproveitamento da terra para o cessionário, mas tão somente para usar a terra e devolvê-la ao dono nos termos acordados.

209 A doação é regulada no artigo 940° e seguintes do c.c.. De acordo com o número 1 deste preceito legal, doação é o contrato pelo qual uma pessoa por espírito de liberalidade e á custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa. É o que pode ocorrer com os bens imóveis de um titular do direito de uso e aproveitamento da terra. Quanto á forma de doação, também servem as regras do direito civil. Nesse sentido deve se recorrer ao artigo 947º c.c. que no seu número 1 dispõe que a doação de coisas imóveis só é válida se for celebrada por escritura pública.

210 Cfr o número 4 do artigo 15 do regulamento da lei de terras.

211 Idem, número 5.

212 Cfr o artigo 424º do c.c.

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2.12. O Comodato.

O instituto de comodato pode ser usado no âmbito do exercício do direito de uso e aproveitamento da terra.213 Em Moçambique esta figura é muito mais usada no exercício do direito de uso e aproveitamento da terra das comunidades locais.

Nas comunidades locais, como tivemos ocasião de nos referirmos quando estivemos a falar do carácter heterogéneo do direito das comunidades e nos referimos ainda que o direito das comunidades locais africanas incluindo das comunidades rurais moçambicanas, caracteriza-se pela oralidade.

Nessa linha, o comodato existe nas comunidades moçambicanas respeitando as regras seguidas por cada comunidade na gestão das suas terras comunitárias. Um aspecto comum a todas as comunidades é que os contratos de comodato celebrados são verbais, em obediência ao princípio de que o direito tradicional africano está assente na oralidade.214

Esta figura jurídica é muito importante para as comunidades rurais moçambicanas por representar um elemento de solidariedade entre as pessoas, na medida em que através dele se permite que todas as pessoas incluindo as que carecem de parcelas próprias de terras , os hóspedes e acolhidos na comunidade, possam ter onde trabalhar para produzir algo com vista ao seu sustento e de seus dependentes.

É graças a este instituto que nas zonas rurais moçambicanas não existem desocupados agrícolas por não terem um pedaço de terra onde trabalhar. É pois, uma prática social de grande alcance por permitir que dentro das comunidades rurais não haja mendigos por falta da terra, um importante meio de produção.

2.13. A posse e o direito de uso e aproveitamento da terra.

O instituto de posse na actual legislação moçambicana sobre terras, é expressamente referenciado no capítulo dedicado ao direito de uso e aproveitamento da terra inserido na Lei 19/97, de 1 de Outubro, lei de terras, precisamente no preceito que se refere á aquisição do direito de uso e aproveitamento da terra por ocupação por pessoas singulares nacionais de boa fé, há pelo menos 10 anos.215

Para aquisição do direito de uso e aproveitamento da terra por esta via, a lei de terras exige que a pessoa esteja de boa fé. Esse requisito de boa fé nos remete ao código civil de modo a obter a noção de como podemos determinar a boa fé, isto é, quando é que podemos dizer que uma pessoa se encontra de boa fé .

213 De harmonia com a definição do artigo 1129º do código civil, comodato é o contrato gratuito através do qual, uma das partes entrega á outra certa coisa móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com obrigação de a restituir.

214 O uso da oralidade nas comunidades locais coincide com o direito positivo no que respeita ao comodato na medida em que a lei civil não impõe forma especial para o comodato( cfr o artº 1129º e seguintes do c.c.). O contrato de comodato é de natureza real quoad constitucionem, pois ele se efectiva com a entrega da coisa cedida ao comodatário, ver o número 3 da anotação ao artigo 1129º do c.c., Pires de Lima e Antunes Varela, 4ª edição revista e actualizada, Volume II, página 741.

215 Cfr a alínea b) do artigo 12 da lei de terras.

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De acordo com a definição legal, existe posse de boa fé quando o possuidor ao adquiri-la ignorava que lesava o direito de outra pessoa.216 A ocupação da terra de boa fé durante o tempo mínimo previsto é a condição para se obter o direito de uso e aproveitamento da terra.

A figura de ocupação a que se refere a lei moçambicana de terras não é a ocupação no sentido próprio da palavra, mas no sentido de posse.217 Na nossa opinião esta figura é criação própria desta lei e tem um grande alcance na medida em que vencido o tempo mínimo de 10 anos de ocupação de boa fé, a posse vale para aquisição do direito de uso e aproveitamento da terra, passando a partir desse momento a deixar de ser apenas um simples facto para ser um verdadeiro direito,218 que reputamos um efectivo direito real.219 Como um direito que emana da posse, a ocupação de boa fé prevista na lei moçambicana de terras, beneficia das prerrogativas previstas na lei civil, no capítulo relativo aos direitos reais, dentre as quais podemos citar só para exemplificar

216 Crf o número 1 do código civil.

217 Rui Pinto, Direitos Reais de Moçambique, página 289. Também não é a ocupação prevista no artigo 1318º do código civil, que estatui que podem ser adquiridos pela via de ocupação os animais e outras coisas móveis que nunca tiveram dono ou abandonadas ou que tenham sido perdidas ou escondidas pelos seus proprietários.

218 Oliveira Ascensão, Direito Civil, Reais, 5ª edição, página 77. A aquisição do direito de uso e aproveitamento da terra por ocupação de boa fé prevista na alínea b) do artigo 12 da Lei nº 19/97, de 1 de Outubro, lei de terras, constitui uma aquisição por usucapião especial, própria da lei de terras. Dizemos própria da lei de terras porque a aquisição em sede do direito civil prevista na alínea a) do artigo 1.294º do c.c. preconiza que a usucapião de imóveis por posse de boa fé que tenha durado pelo menos dez anos, só pode ter lugar se tiver sido titulada e registada. O artigo 1.296º do c.c. dispõe que não havendo registo do título, a boa fé só tem força para aquisição do direito se tiver durado pelo menos 15 anos. Mas analisando o preceito da lei de terras em alusão, verifica-se que ele não exige o preenchimento do requisito de título e registo. Por outro lado, a lei civil não descrimina os sujeitos que têm direito de aquisição do direito por usucapião, mas a lei de terras reconhece apenas a possibilidade de aquisição do direito de uso e aproveitamento da terra por usucapião só para pessoas singulares nacionais que ocupam a terra de boa fé há pelo menos 10 anos. Estes factos jurídicos conduzem-nos a afirmar com propriedade que o direito de usucapião como prescrição aquisitiva a que se refere a lei de terras é sui generis. Porém, importa sublinhar que esta prescrição aquisitiva está dependente da existência de uma posse que preenche os requisitos previstos na alínea b) do artigo 12 da lei de terras. Essa ideia corresponde á tese defendida por António Menezes Cordeiro, na obra posse: perspectivas dogmáticas actuais, 3ª edição actualizada, página 49, segundo ele, um dos efeitos proporcionados pela posse é a usucapião. A.Gursen de Miranda na sua obra instituto Jurídico da Posse Agrária, página 120, é a posse hábil que permite ao titular a aquisição do direito de propriedade. Entenda-se no nosso caso de Moçambique, que a posse hábil é a que pode permitir a aquisição do direito de uso e aproveitamento da terra. Mas entre a legislação moçambicana e a brasileira há uma diferença substancial na medida em que no direito brasileiro para a posse agrária ser hábil, é condição que além de preencher o requisito do lapso de tempo, a terra deve estar em plena exploração com produtividade garantida, dentro do pressuposto do cumprimento do fim social da terra. Em Moçambique a posse da terra que é hábil para aquisição do direito de uso e aproveitamento da terra não está sujeita á condição de exploração da terra e a possibilidade da prescrição aquisitiva não só aproveita terras agrárias, como quaisquer outras terras desde que sejam ocupadas por pessoas singulares nacionais de boa fé há pelo menos 10 anos. A doutrina e a lei brasileiras nos parecem trilhar pelo caminho certo ao exigir que o benefício pela prescrição aquisitiva só aproveita quem efectivamente trabalha a terra, pois isso permite o combate á ociosidade das terras e garante a produção de alimentos e produtos agrários para a indústria do país e para a exportação.

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pela sua importância, o direito de sucessão na posse pelos herdeiros, o direito de acessão na posse e o direito de defesa da posse.220

2.14. A acessão industrial imobiliária e o direito de uso e aproveitamento da terra.

Pela importância que nos parecem ter em relação ao direito de uso e aproveitamento da terra, na subsecção da acessão industrial imobiliária iremos analisar somente as matérias relativas ás obras, sementeiras ou plantações feitas de boa fé em terreno alheio e a relativa ao prolongamento de edifício por terreno alheio. A escolha destas figuras tem por objectivo avaliar se, sendo a terra propriedade do Estado moçambicano que a lei constitucional e a lei de terras vedam qualquer forma de alienação, que direito os particulares podem adquirir havendo o preenchimento dos requisitos previstos nestas figuras de acessão.221

Comecemos por analisar a figura de obras, sementeiras ou plantações feitas de boa fé em terreno alheio. 222 A lei civil estabelece que se alguém, estando de boa fé, erigir uma obra em terreno alheio, ou nele fazer sementeira ou plantação que valorizem o prédio do que o seu estado anterior, o autor do investimento adquire a propriedade, pagando o valor que o prédio tinha antes do investimento.

A questão que se coloca é de saber se sendo a terra na actualidade em Moçambique propriedade do Estado que não deve ser vendida, a prerrogativa de aquisição da propriedade e a obrigação de pagar se aplica? No nosso entender o introdutor de melhoramentos de boa fé não adquire o direito de propriedade, mas tão somente o direito de uso e aproveitamento da terra.

O titular do direito de uso e aproveitamento da terra não beneficia do pagamento do valor que o prédio tinha antes da realização dos investimentos, mas reputamos que ele poderá beneficiar

219 Álvaro Moreira e Carlos Fraga, Direitos Reais, página 89, só os direitos reais podem ser adquiridos por usucapião, esta forma de aquisição é somente restrita aos direitos reais.

220 Nos termos do disposto no artigo 1.255º do c.c., por morte do sucessor, a posse se mantém nos seus sucessores desde o momento de abertura de sucessão mesmo que não haja a apreensão material da coisa. Neste caso, os sucessores para poderem adquirir o direito de uso e aproveitamento da terra terão que permanecer o tempo que faltava ao de cujus para completar 10 anos, requisito mínimo exigido para aquisição do direito de uso e aproveitamento da terra por ocupação de boa fé. No que se refere á acessão da posse, o número 1 do artigo 1.256º do c.c. admite que havendo sucessão da posse por título diverso da sucessão por

morte, é lícito que o sucessor junte á sua a posse da pessoa a quem sucede. Por exemplo A, ocupa um pedaço

de terra de boa fé durante 5 anos e cede o seu direito a B. Este tem direito de juntar á sua posse os cinco

anos da ocupação do A. Assim, para B adquirir o direito de uso e aproveitamento da terra precisa de permanecer mais 5 anos para perfazer os 10 anos exigidos por lei de terras como requisito mínimo para adquirir o direito de uso e aproveitamento da terra. Relativamente á defesa da posse, a lei civil prevê no seu artigo 1.276º que se o possuidor estiver ameaçado por terceira pessoa, ele pode requerer para que o autor da ameaça seja intimado a abster-se de prosseguir com os seus actos sob pena de multa e responsabilidade pelos prejuízos causados.

221 Op cit o artigo 109 da Constituição da República de 2004. Também cfr o artº 3 da Lei nº 19/97, de 1 de outubro, lei moçambicana de terras.

222 Cfr o artigo 1340º do código civil. Luís A. Carvalho Fernandes, lições de direitos reais, 5ª edição, página 343, a boa fé a que se refere a lei é a fé subjectiva porque ela exige que o autor do investimento ignore no momento da acção que o terreno era alheio, ou que lhe tenha sido permitido investir pelo seu dono.

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de uma indemnização se nele tiver feito beneficiações, porque se for um terreno encontrado completamente inculto, não pode reivindicar direitos.

Aliás, em caso de conflito insanável, a autoridade administrativa competente pode recorrer á figura de extinção do direito por falta de cumprimento do plano de exploração e consequente legalização do direito de uso e aproveitamento da terra a favor daquele que efectivamente investiu no terreno.

No que se refere ao prolongamento de uma construção por terreno alheio,223 o requisito principal é que a obra comece no terreno próprio e por qualquer motivo se estenda para terreno adjacente, de boa fé.

Nesse caso, o construtor pode adquirir o direito de propriedade sobre o pedaço do terreno alheio, se passados 3 meses depois da incorporação não tiver havido oposição do dono, pagando o valor do espaço de terreno ocupado.

Mais uma vez entendemos que o construtor adquire o direito de uso e aproveitamento da terra pelas razões que atrás apresentamos. O pagamento que o construtor pode fazer ao proprietário do direito de uso e aproveitamento da terra, deve ser entendido como direito de indemnização.

2.15. A Compropriedade.

A compropriedade é tida como o exercício do direito de propriedade por duas ou mais pessoas sobre a mesma coisa.224 No caso de Moçambique que a terra é propriedade do Estado, a compropriedade tem lugar na aquisição e no exercício do direito de uso e aproveitamento da terra.

A lei de terras em vigor, estatui que as pessoas singulares ou colectivas nacionais podem adquirir o direito de uso e aproveitamento da terra sob forma de co-titularidade.225 A mesma lei estabelece que o direito de uso e aproveitamento da terra das comunidades locais obedece os princípios da co-titularidade.226

Por seu turno, o seu regulamento estatui que à co-titularidade do direito de uso e aproveitamento da terra adquirido pelas pessoas singulares e colectivas nacionais e pelas comunidades locais, aplicam-se as regras de compropriedade previstos no código civil.227

Como corolário da remissão do direito de co-titularidade á aplicação das regras da compropriedade, deve-se observar necessariamente a regra de que os direitos dos consortes, neste caso dos co-titulares sobre a coisa comum são qualitativamente iguais, não obstante poderem ser quantitativamente diferentes como acontece em muitos casos das comunidades locais.228

223 Cfr o artigo 1343º do c.c.

224 Cfr o artigo 1.403º do c.c. Para Luís A. Carvalho Fernandes, que temos vindo a citar página 347, a compropriedade representa situações de titularidade conjunta e simultânea de direitos que podem ser reais ou não. Esses direitos são iguais sobre uma determinada coisa.

225 Cfr o nº 2 do artigo 10 da lei de terras.

226 Idem, nº 3.

227 Cfr o artigo 12 do regulamento da lei de terras aprovado pelo decreto 66/98, de 8 de Dezembro.

228 Cfr o nº 2 do artigo 1403º do c.c.Ver mais prerrogativas que assistem aos co-titulares no artº1.405º e ss do c.c.

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2.16. O Direito de superfície.

Este direito não aparece explicitamente na legislação moçambicana sobre terras. Apesar dessa falta de referência, reputamos não ser de se afastar o recurso a ele no âmbito do exercício dos benefícios que se pode retirar do gozo do direito de uso e aproveitamento da terra. A lei civil229

define direito de superfície como a faculdade de alguém edificar obra ou fazer plantações em regime temporário ou perpétuo num terreno alheio.

Trata-se de um direito real, mas ao mesmo tempo um direito subjectivo, porque tutelado pelo direito.230 È um direito real de ter coisa própria incorporada em terreno alheio.231 Este direito constitui-se por contrato, testamento ou usucapião e pode também resultar da alienação da obra ou plantação já existente separadamente do direito de propriedade.232

No caso da legislação moçambicana sobre terras, é a alienação das benfeitorias implantadas no terreno, sem a transmissão do direito de uso e aproveitamento da terra, que continua na esfera jurídica do dono do terreno sujeito ao direito de superfície.

Somos de opinião que qualquer iniciativa para a constituição do direito de superfície deve ser precedida de autorização da autoridade competente que autorizara ou reconhecera o direito sobre o terreno em causa.

Fundamenta-se este posicionamento por analogia ao que acontece quando se pretende transmitir as infra-estruturas, construções e benfeitorias.233 Embora o direito de superfície não implique nunca a transmissão do direito de uso e aproveitamento da terra, aliás, também a cessão de exploração não implica a transmissão do direito de uso e aproveitamento da terra, julgamos defensável a ideia do pedido de autorização prévia da autoridade competente antes da constituição do direito de superfície através do contrato. No entanto, entendemos que tal não se mostra praticável para o caso de constituição por testamento e usucapião.

Isto porque a constituição do direito de superfície por testamento implica uma disposição do património para depois da morte. A lei de terras em vigor prevê a transmissão do direito de uso e aproveitamento de terra por efeito da morte, sem que a transmissão seja precedida de autorização prévia da entidade que autorizara o direito.234

Do nosso ponto de vista, se a sucessão mortis causa tem implicação na transmissão imediata do direito de uso e aproveitamento da terra que é um direito real relativamente maior em relação

229 Cfr o artigo 1524º do c.c.

230 Ana Prata, Dicionário Jurídico, V1, 5ª edição, página 526.

231 Op cit José de Oliveira Ascensão, Reais, página 525.

232 Cfr o artigo 1528º do c.c. Pires de Lima e Antunes Varela, na sua anotação a este artigo, defendem que a constituição do direito de superfície por contrato só é válido se for celebrado por escritura pública. Por seu turno, a alínea a) do artigo 85 do código do notariado revisto pelo Decreto-Lei nº 4/2006, de 23 de Agosto, dispõe que o direito de superfície é uma das figuras jurídicas que deve ser constituída por escritura pública.

233 Cfr o nº 2 do artigo 16 da lei de terras e o número 4 do artigo 15 do regulamento da actual lei de terras no que respeita á celebração de contratos de cessão de exploração. O regulamento estatui ainda no que se refere á autorização prévia da autoridade competente, a celebração do contrato de cessão de exploração nas comunidades locais compete aos respectivos membros pronunciar-se.

234 Cfr o número 1 do artigo 16 da lei de terras.

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ao direito de superfície sem necessidade de autorização prévia da entidade competente, a constituição do direito de superfície que é relativamente inferior é lógico que dispense a autorização prévia.

Em relação á constituição do direito de superfície por usucapião que consiste na detenção do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo por um certo lapso de tempo, facultando ao possuidor a aquisição do direito,235 pensamos que é de se dispensar a autorização prévia da autoridade competente na medida em que a constituição do direito de superfície por usucapião tem como fundamento na prescrição aquisitiva, com o direito consolidado na esfera jurídica do adquirente por decurso do tempo previsto na lei.

2.17. As Servidões prediais.

A lei de terras não tratou a matéria de servidões, mas o seu regulamento referiu-se ás servidões de interesse público e ás relativas ao acesso público ou comunitário e passagem do gado.236

Questão importante a sublinhar neste instituto é que na nossa opinião, apesar de não vir tratada com profundidade a matéria de servidões na legislação moçambicana sobre terras, ela não poderá ser ignorada no exercício do direito de uso e aproveitamento da terra, devendo ser aplicada com as necessárias adaptações nos precisos termos que a lei civil prevê.237

2.18. Direito de família.

O direito de família tem interesse para o direito de uso e aproveitamento da terra. A terra como um bem patrimonial está sujeito á aplicação de algumas regras do direito de família. Em primeiro lugar temos as normas relativas ao casamento,238 das quais decorrem algumas consequências jurídicas entre os casais que porventura são ou venham adquirir a titularidade do direito de uso e aproveitamento da terra.

São os casos do direito á terra adquirido por qualquer uma das modalidades previstas na lei de terras, ou seja, por ocupação pelas comunidades locais e pelas pessoas singulares que as

235 Cfr o artigo 1287º do c.c.

236 Cfr o artigo 17 do regulamento da actual lei de terras. O número 1 do artigo 17 deste regulamento, considera servidões de interesse público as que se destinam á implantação de infra-estruturas de interesse público, exigindo que se na sua constituição resultarem prejuízos para os afectados, é necessária uma indemnização. A servidão prevista no número 1 é uma servidão administrativa por se destinar á utilidade pública conforme defende Marcello Caetano, no seu manual de direito administrativo, página 1052 V2.Por isso este tipo de servidão está fora da alçada do direito civil. O direito á indemnização corresponde á previsão do artigo 1.554º do c.c. que dispõe que pela constituição de uma servidão de passagem é obrigatória a indemnização na medida dos prejuízos provocados. O número 2 do artigo 17 do regulamento da lei de terras, estabelece uma espécie de servidões legais de passagem(ver o artigo 1.550º do c.c.) para as vias de acesso comunitárias e passagem de gado criadas com base nas práticas costumeiras.

237 Cfr o artigo 1 543º e ss do c.c.

238 O artigo 16 da Lei nº 10/2004, de 25 Agosto, lei de família, dispõe que as modalidades de casamento são o civil, religioso e tradicional. A mesma disposição legal reconhece eficácia do casamento civil aos casamentos religiosos e tradicionais monogâmicos.

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integram, por pessoas singulares nacionais que de boa fé ocupam a terra à pelo menos 10 anos e por autorização de um pedido.239

O casamento segundo o regime de bens adoptado, comunhão geral de bens ou comunhão de adquiridos e separação de bens, decorrerão daí consequências jurídicas de elevado alcance.

Assim, na comunhão geral o direito de uso e aproveitamento da terra que os consortes adquiriram antes e depois do casamento, pertence a ambos. No regime de bens adquiridos pertencerá ao casal o direito de uso e aproveitamento da terra adquirido depois do casamento, regime que se aplica também para a união de facto.

No de separação de bens o direito á terra pertence ao cônjuge que o tiver adquirido.240

Como direito real e patrimonial, o direito de uso e aproveitamento da terra pode ser objecto dos efeitos jurídicos do casamento que acabamos de enumerar, consoante o regime adoptado.

Um dos efeitos jurídicos do casamento que também se pode aplicar no exercício do direito de uso e aproveitamento da terra é a prerrogativa de ambos cônjuges poderem administrar os bens do casal em igualdade de direito.241 O casamento tem também como efeitos a possibilidade de os cônjuges serem mutuamente herdeiros e usufrutuários.242

Em segundo lugar temos a filiação e adopção que são figuras da lei de família que permitem que os filhos naturais e adoptivos tenham o direito á herança no caso de um ou todos os seus progenitores ou adoptantes perecerem de acordo com a lei sucessória.243

2.19. Direito sucessório.

A Constituição da República em vigor no pais reconhece e garante nos termos da lei, o direito á herança no geral e no respeitante á herança do direito de uso e aproveitamento da terra em particular.244

A lei de terras por seu turno, reconhece o direito á herança como um dos modos de transmissão automática do direito de uso e aproveitamento da terra.245 O direito á herança reconhecido pela constituição e pela lei de terras, segue o regime previsto na lei sucessória na sua plenitude e complexidade, na medida em que todas as figuras essenciais que ela prevê podem ser usadas no exercício do direito de uso e aproveitamento da terra conforme os casos.246

239 Op cit artigo 12 da lei de terras.

240 Cfr os seguintes artigos da lei de família, 141 em relação ao regime da comunhão de adquiridos, 151 no que respeita á comunhão geral de bens, 154 relativamente á separação de bens e 203 para a união de factos.

241 Cfr o artigo 102 e ss da lei de família.

242 Cfr os ss artigos ambos do c.c., 2132º no que concerne ás categorias de herdeiros legítimos e 2 146º que se refere ao usufruto do cônjuge sobrevivo.

243 Cfr o artigo 2024º e ss do c.c. Em relação á filiação cfr o artigo 204 e ss da lei de família.

244 Cfr o artigo 82 no tocante ao reconhecimento geral do direito á herança e o artigo 111 em relação há herança do direito de uso e aproveitamento da terra, ambos da actual C.R.M.

245 Cfr o nº 1 do artigo 16 da lei de terras.

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Depois deste estudo efectuado neste capítulo, ficou demonstrado que o direito agrário em Moçambique assenta fundamentalmente no estudo da legislação sobre terras. Verificamos que a lei de terras é um instrumento jurídico híbrido, pois a sua implementação requer muitas vezes o recurso a normas de outras disciplinas do sistema jurídico nacional, precisamente do direito público e privado.

Notamos que existe uma espécie de um sentimento de que esta disciplina não é de grande peso no conjunto de outras matérias leccionadas, por isso todas as instituições que leccionam direito esta é semestral e a carga horária total não ultrapassa as 64 horas. Julgamos que é uma questão que merece reflexão pelas instituições de ensino.

Feita esta abordagem que nos permitiu fazer um entrelaçamento entre a legislação moçambicana de terras e outras disciplinas do sistema jurídico nacional que lhe servem de complemento, passaremos ao estudo da legislação moçambicana sobre terras aprovada depois da independência nacional.

Trataremos esta matéria como uma introdução á abordagem da legislação moçambicana sobre terras, por isso iremos fazer poucas referências teóricas, as quais iremos fazê-las no tratamento da actual legislação moçambicana sobre terras em vigor.

246Op cit o artigo 2024º e ss do c.c.

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CAPÍTULO V

A PRIMEIRA LEGISLAÇÃO MOÇAMBICANA SOBRE TERRAS.

Como atrás fizemos alusão, neste capítulo iremos fazer referência ás alterações jurídicas que esta primeira lei de terras trouxe para o direito agrário moçambicano, considerando que foi ela que substituiu a legislação herdada da Administração portuguesa.

Importa recordar que aquando da proclamação da independência de Moçambique em 1975, vigorava no país o regulamento de ocupação e concessão de terrenos nas Províncias ultramarinas(ROCT), aprovado pelo Decreto nº 43 894, de 14 de Setembro de 1961. Este regulamento foi implicitamente revogado pela Lei nº 6/79, de 3 de Julho, primeira lei moçambicana de terras aprovada depois da independência que passamos a apresentar os seus traços fundamentais,247 obedecendo a seguinte sequência:

1. Propriedade da terra;

2. O direito de uso e aproveitamento da terra:

2.1. O direito de uso e aproveitamento da terra e os direitos reais:

2.1.A. Natureza e absolutidade;

2.1.B. A inerência;

2.1.C. A publicidade;

3. Outros aspectos introduzidos pela primeira legislação moçambicana sobre terras:

3.1. Regime de terras;

3.2. Influência socialista no regime de terras;

4. Constituição de direitos sobre a terra:

4.1. Direito á terra do sector familiar ou dos camponeses.

5. Modificação de direitos.

6. Transmissão.

Feita a sequência de abordagem deste capítulo, segue-se o seu desenvolvimento.

247 Revogação implícita porque a Lei nº 6/79, de 3 de Julho, primeira lei de terras, não chegou a incluir uma norma de revogação expressa do ROCT. Essa omissão não representa na nossa opinião, a manutenção em vigor daquele regulamento, pois na prática fora revogado pela primeira constituição moçambicana de 1975, ao dispor no seu artigo 71º que toda a legislação anterior contrária a ela ficava automaticamente revogada. Ora com a criação de um novo regime do direito á terra, o ROCT, que regulava o acesso á terra sob os auspícios predominantemente de propriedade privada, ficara, na nossa opinião, revogado com a entrada em vigor da nova constituição no dia 25 de Junho de 1975.

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1. Propriedade da terra.

Antes da entrada em vigor da Constituição da República Popular de Moçambique a terra era propriedade privada e como corolário disso ela era susceptível a diversos tipos de transacções monetárias mercantis. Sentido diferente foi introduzido pela Constituição da República Popular de Moçambique que instituiu o regime de propriedade estatal da terra, passando a mesma a pertencer única e exclusivamente ao Estado.248

O princípio de que a terra é propriedade do Estado foi retomado pelo legislador ordinário que elaborou e aprovou a primeira lei de terras depois da independência nacional. Com efeito, este dispositivo legal, além de declarar a terra propriedade do Estado como foi consagrado na constituição de 1975, ele foi mais longe ao considerar também que a terra não pode ser vendida ou por qualquer outra forma alienada, nem arrendada, hipotecada ou penhorada.249

No mesmo preceito legal que declarou a terra como propriedade do Estado,250 pela primeira vez aparece nele de forma implícita a criação da figura jurídica do direito de uso e aproveitamento da terra, como um mecanismo prático para que sendo a terra propriedade do Estado, através dele os sujeitos de direito tenham acesso á terra para diversos fins.

Apesar de inspiração ao direito soviético sobre terras como já tivemos ocasião de abordar neste trabalho e semelhanças com as figuras de domínio directo e útil previstos na enfiteuse, o direito de uso e aproveitamento da terra é uma figura jurídica de arquitectura do legislador moçambicano, portanto, suí generis do direito moçambicano sobre terras.251

248 O artigo 8 da Constituição da República Popular de Moçambique, declarou expressamente que a terra e outros recursos naturais eram propriedade do Estado. Essa disposição constitucional representou uma verdadeira expropriação da terra com consequências jurídicas e políticas profundas, negativas para aqueles que ocupavam as terras que viam o seu direito de propriedade retirado e positivas para as largas camadas populacionais moçambicanas que se encontravam desfavorecidas no acesso á terra. Sobre a expropriação cfr António Carlos Santos e Outros, direito económico página 176 e ss.

249 É o que consta do número 1 e 2 do artigo 1 da Lei nº 6/79, de 3 de Julho, primeira lei de terras depois da independência de Moçambique. Tratou-se como vimos acima quando abordamos as influências legislativas, de alinhamento com a doutrina seguida na ex-URSS pelos motivos que expendemos com maior desenvolvimento naquele capítulo que dispensamos voltar a repeti-los.

250 Idem nº 4. A figura de direito de uso e aproveitamento da terra, além de ter sido inspirada da legislação soviética sobre terras, também se assemelha a uma espécie de enfiteuse cuja noção vem prevista no artigo 1491º do c.c., embora não o seja. Esta figura de enfiteuse prevê a existência do titular do domínio directo e o beneficiário do domínio útil. No direito de uso e aproveitamento da terra, o Estado na qualidade de titular do direito de propriedade, assemelha-se ao titular do domínio directo, ao passo que os adquirentes do direito de uso e aproveitamento da terra, assemelham-se aos beneficiários do domínio útil. Mas há diferenças profundas na medida em que os beneficiários do direito de uso e aproveitamento da terra não pagam foro anual com intuito da sua remissão visando adquirir o direito de propriedade e nem chegam a adquirir o direito de propriedade sobre a terra como acontece na enfiteuse, por ser indisponível.

251 Na Guiné Bissau a terra é declaradamente propriedade do Estado e a figura jurídica de acesso á terra pelos particulares chama-se direito de uso privativo da terra pelos particulares. Há uma certa semelhança de mecanismo e objectivo da figura, mas com designações diferentes(nº 1 do artigo 4 da lei de terras da Guiné Bissau).

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Não obstante ser uma figura sui generis do direito moçambicano sobre terras, não nos parece que tal iniciativa fira o princípio da tipicidade, que é uma das características dos direitos reais, na medida em que este princípio não advoga limitação á iniciativa legislativa da entidade competente, mas exige que a criação de um direito real seja feita por uma lei formal.252 Ao instituir a figura do direito de uso e aproveitamento da terra através de uma lei formal, o legislador ordinário conformou-se com esta doutrina.

2. O direito de uso e aproveitamento da terra

Consoante dissemos acima, a figura jurídica do direito de uso e aproveitamento da terra surgiu pela primeira vez com a Lei nº 6/79, de 3 de Julho, como um mecanismo que visou operacionalizar o acesso dos sujeitos de direito á exploração de determinadas parcelas autorizadas pela Administração Pública ou reconhecidas pelo Estado.253

O direito de uso e aproveitamento da terra enquadra-se com as necessárias adaptações ao grupo das coisas previsto na lei civil, por ser no nosso entender, susceptível de relações jurídicas. 254

Apesar de a propriedade da terra e o direito de uso e aproveitamento da terra encontrarem-se fora do comércio jurídico, não lhes retira a qualidade de coisas.255

252 Op cit José de Oliveira Ascensão, pág 161

253 São as parcelas que á luz da Lei nº 6/79, de 3 de Julho, podiam ser ocupadas por autorização do Conselho de Ministros, quando as áreas requeridas excediam as competências dos Ministros e dos Governos provinciais, nº 1 do arº 4 do regulamento da lei de terras, aprovado pelo Decreto º 16/87, de 15 de Julho. Nos termos da alínea c) do artigo 7 do regulamento da lei de terras competia ao Ministro da Agricultura autorizar áreas superiores a 250 hectares, para fins agrícolas, 500 hectares para fins pecuários e 1000 para fins silvícolas. Em consonância com o disposto na alínea d) do mesmo artigo, era também competência do Ministro da Agricultura autorizar os pedidos de terras para áreas que excedessem as competências dos Governos provinciais até ao limite de 50 hectares destinados a outros ramos de actividades. Em relação aos Governos provinciais, de harmonia com o disposto na alínea a) do artigo 8 do citado regulamento, competia-lhes autorizar até 250, 500, 1000 hectares quando respectivamente se destinassem á agricultura, pecuária e silvicultura. Os Governos provinciais também podiam, nos termos da alínea b) do mesmo artigo, autorizar os pedidos que recaíssem nas zonas de desenvolvimento agrário planificado dentro dos limites fixados pelos diplomas legais que as criassem. Os governos provinciais podiam também autorizar pedidos até 10 hectares nas zonas de protecção parcial nos termos das alíneas c) e d) do artigo 8 do regulamento e ainda autorizar pedidos para habitação ou veraneio de harmonia com o disposto na alínea f) do mesmo artigo. No que concerne aos Conselhos Executivos de Cidade, a alínea c) do artigo 9 do mesmo regulamento conferia-lhes competência para autorizar pedidos dentro das áreas abrangidas pelos planos de urbanização, ao passo que aos Conselhos Executivos de Distritos, Postos Administrativos e Localidades, nas respectivas sedes, o artigo 10 do regulamento atribuía-lhes competência para autorização de pedidos no seu território desde que possuíssem os Serviços Públicos de Cadastro. Mas além da autorização de pedidos, temos o caso do reconhecimento em sede da Lei nº 6/79, de 3 de Julho pelo Estado mas com maior clareza no seu regulamento, que dispõe no seu artigo 47 que a ocupação da terra para produção agrícola com vista á satisfação das necessidades do agregado familiar dispensa a autorização da autoridade competente. Está patente o reconhecimento do direito do sector familiar agrário pelo Estado.

254 Cfr as alíneas a) e d) do nº 1 do artigo 202º do c.c.

255 Idem, por interpretação racional do mesmo artigo.

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A terra é um bem imóvel considerando a sua qualidade de prédio rústico, como estatui a lei civil.256 Esta lei considera ainda no mesmo preceito que estamos a analisar, que os direitos inerentes aos bens imóveis são também considerados bens imóveis.257

Nesse sentido, entendemos que o direito de uso e aproveitamento da terra sendo um direito inerente á terra, ele reveste as características de uma coisa, em conformidade com o que prevê a lei civil. Todavia, é nossa opinião que a terra que concorre para figura de coisa imóvel é a parcela da terra devidamente delimitada, individualizada e retirada do fundo estatal de terras para pertencer a um sujeito. Quer dizer, o fundo estatal de terras como um todo, na nossa opinião não é coisa para efeitos previstos na lei civil.

2.1.O direito de uso e aproveitamento da terra e os direitos reais.

2.1.1. Natureza e absolutidade

Identificado o direito de uso e aproveitamento da terra como um bem imóvel por ser intrínseco a uma determinada parcela de terra, importa visualizar a sua inserção no que concerne aos direitos reais. Já nos referimos acima que a terra é propriedade do Estado. A propriedade é um direito real máximo de conteúdo pleno que atribui ao seu proprietário, neste caso o Estado, múltiplos poderes.258

Também vimos que o direito de uso e aproveitamento da terra como bem que se confunde com uma parcela de terra, é um bem imóvel por consideração legal. Só que segundo nosso ponto de vista, este direito é um direito real menor de gozo em relação ao direito de propriedade detido pelo Estado. Ele é real porque é inerente a uma coisa corpórea, a terra e permite a afectação desta aos fins dos titulares do direito de uso e aproveitamento da terra.259

O direito de uso e aproveitamento da terra, como direito real é um direito absoluto, um direito erga omnes porque os titulares podem fazer prevalecer o seu direito contra qualquer sujeito de direito que faça interferência negativa nele.260 O titular do direito de uso e aproveitamento da terra assume uma posição que se assemelha a um proprietário por delegação de poderes. Nessa posição, ele reveste-se da característica que se assemelha a um delgado do dono da propriedade da terra(o Estado), a partir do momento em que lhe é legalmente autorizada a ocupação da terra.

Desde esse momento, o titular do direito de uso e aproveitamento da terra sobre uma determinada parcela passa a dispor da prerrogativa de usar todos os meios que um proprietário pode usar para a defesa da sua propriedade e de outros direitos resultantes de ocupação de uma parcela de terra. Para o titular do direito de uso e aproveitamento da terra os meios de defesa

256 Cfr a alínea a) do número 1 do artigo 204º do c.c.

257 Idem, alínea d).

258 Hugo Elias Gomes, o conteúdo do direito de uso e aproveitamento da terra, coordenação de Maria da Conceição Faria e Nelson Jeque, pág.96. No nosso entender, o Estado Moçambicano como proprietário da terra goza nos termos do disposto no artigo 1305º do c.c., de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição das coisas que lhe pertencem dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas. No nosso caso o Estado pode usar, tirar frutos desse uso, mas no que respeita á disposição há restrições porque o Estado não pode vender a terra por estar fora do comércio jurídico. Ele é obrigado a dispor da terra dentro dos ditames da lei e das restrições que ela impõe.

259 Opcit José de Oliveira Ascensão, pag 43.

260 Idem página 46.

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destinam-se a proteger esse direito legalmente atribuído ou reconhecido pela entidade competente. Nesse sentido, este titular goza da prerrogativa de usar todos os meios judiciais e extra judiciais para defender o seu direito em caso da sua violação.261 Encontramos dentro dessas prerrogativas a figura de sequela, que é uma das características dos direitos reais, que consiste na possibilidade de o direito real ser exercido sobre o que constitui seu objecto, neste caso o direito de uso e aproveitamento da terra, mesmo estando na posse ou detenção de uma terceira pessoa, onde quer que esteja.262

2.1.2. A inerência.

É um dado assente que o direito de uso e aproveitamento da terra é um elemento intrínseco de uma determinada parcela devidamente delimitada, autorizada ou reconhecida a um sujeito de direito.

No caso em análise, o direito de uso e aproveitamento da terra afecta uma porção de terra que dela não se pode desvincular, pois este direito se confunde com a terra e como consequência do artifício legal, ele faz parte integrante da própria estrutura de uma determinada porção de terra.263

Devido á inerência, mesmo que haja a transmissão do direito por diversas vezes e sucessivamente para muitas pessoas jurídicas aquele pedaço de terra em concreto continua a ser sujeito a direito real, pois nenhum acto jurídico ou material pode separar o direito da coisa, neste caso da terra.264 Quer dizer, a inerência traduz, no caso do nosso estudo, uma ideia de ligação íntima do direito de uso e aproveitamento da terra a uma parcela da terra e porque por força da inerência o direito é inseparável da coisa, ele a acompanha em todas as suas vicissitudes.265

2.1.3. A publicidade

261 Sem intenção de querer esgotá-los, são exemplos de meios de defesa a que o titular do direito de uso e aproveitamento da terra e ocupantes de determinado pedaço de terra podem recorrer, a acção de prevenção prevista no artº 1276º do c.c., acção directa, 336º do c.c., a legítima defesa, artigo 337º do c.c., acção directa e defesa judicial, artigo 1277º do c.c., acção de reivindicação, artigo 1311º do cc, acção directa para defesa da propriedade, artigo 1314º do c.c., defesa de outros direitos reais, 1515º do cc. Este último preceito leva-nos a ter a certeza de que os meios de defesa previstos no código civil podem ser aplicados á defesa do direito de uso e aproveitamento da terra ao dispor que as disposições precedentes a ele, são aplicáveis com as necessárias adaptações á defesa de todo o direito real. Outros meios de defesa são o usucapio libertatis previsto no artigo 1574º do c.c., os procedimentos cautelares, artigo 381º e seguintes do c.p.c. O titular do direito de uso e aproveitamento da terra pode ainda recorrer ás garantias da legalidade previstas no artigo 123 e ss do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado aprovado pela Lei nº 14/2009, de 14 de Março, ao direito de apresentar petições e reclamações perante os órgãos do Estado incluindo a Assembleia da República e de Administração pública ao abrigo do artigo 69 da Constituição da República de Moçambique e da Lei nº 2/96, de 4 de Janeiro e ainda do artigo 15 do regulamento de funcionamento dos serviços públicos aprovado pelo Decreto 30/2001, de 15 de outubro.

262 Op cit, Luís A. Carvalho Fernandes, pág 66.

263 Ibidem, José de Oliveira Ascensão, pág.49.

264 Idem, pág.49.

265 Op cit Luís A Carvalho Fernandes, pág.61.

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A publicidade manifesta-se através do registo do direito de uso e aproveitamento da terra. A Lei nº 6/79, de 3 de Julho, estabeleceu a necessidade de registo da constituição, modificação, transmissão e extinção do direito de uso e aproveitamento da terra.266 Trata-se daquilo que a doutrina chama de publicidade provocada,267 que consiste na inscrição e descrição de determinados factos e situações em livros apropriados.

São no nosso caso, os factos e situações que consubstanciem factos juridicamente relevantes de uma determinada parcela de terra, objecto do direito de uso e aproveitamento da terra, a cargo da Conservatória do Registo Predial afecta ao Ministério da Justiça, no caso de Moçambique.268

Dando seguimento ao comando legal previsto na lei de terras em matéria da necessidade de publicidade registral em questões decorrentes da constituição, modificação, transmissão e extinção de direitos, o regulamento da Lei nº 6/79, de 3, de Julho, estabeleceu a regra de que em caso de autorização do direito de uso e aproveitamento da terra, antes da entrega do título ao beneficiário, os Serviços Públicos de Cadastro, estaduais ou municipais, deverão promover ex offício, o seu necessário registo junto das Conservatórias do Registo Predial da sua área de jurisdição.269

O comando normativo do regulamento da lei de terras que acabamos de nos referir, extravasa na nossa opinião os limites do poder regulamentar do órgão que o aprovou, concretamente o Conselho de Ministros. Justifica a nossa posição o facto de que este órgão estabeleceu a regra de promoção do registo ex offício pelos serviços públicos competentes, contrariando o princípio de instância previsto no código de registo predial, segundo o qual, o registo deve ser promovido pelos titulares de direito, neste caso, do direito de uso e aproveitamento da terra.270

Feita a abordagem sucinta do regime da propriedade da terra e da natureza do direito de uso e aproveitamento da terra em Moçambique introduzidos pela primeira lei de terras depois da independência nacional, passamos a fazer uma referência a algumas figuras jurídicas introduzidas por esta lei, isto é, a Lei nº 6/79, de 3 de Julho.

266 Cfr o artº 39 da Lei nº 6/79, de 3 de Julho.

267 Ibidem Carvalho Fernandes, pág.90.

268 Esses factos são a constituição, modificação, transmissão e extinção do direito de uso e aproveitamento da terra, de harmonia com o disposto no artigo 39 da Lei nº 6/79, de 3 de Julho.

269 Crf o artº 66 do regulamento da Lei nº 6/79, de 3 de Julho, aprovado pelo Decreto nº 16/87, de 15 de Julho.

270 Cfr o artigo 4º do código do registo predial. Este preceito estatui que salvo nos casos previstos na lei, o registo não é efectuado oficiosamente. Entendemos que a lei a que se refere este preceito, é uma lei formal e não em sentido material. Considerando que o código do registo predial é um instrumento jurídico hierarquicamente superior, não pode ser o regulamento a contrariá-lo. Aliás, o próprio artigo 39 da Lei nº 6/79 que nos parece que teria competência hierárquica para contrariar o código do registo predial, apenas estabeleceu a obrigatoriedade de registo, o que se pressupõe que era o registo que se conformasse com as regras estabelecidas no código do registo civil.

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3. Outros aspectos introduzidos pela primeira legislação moçambicana sobre terras.

Já nos referirmos por diversas vezes neste trabalho que a partir da constituição da República Popular de Moçambique que entrou em vigor em 1975, foi introduzido um novo regime em relação á propriedade da terra em Moçambique.

Essas alterações ao regime da propriedade têm implicações no tipo de legislação atinente á normação do uso e aproveitamento da terra. Assim, além dos aspectos relativos á propriedade, outros foram introduzidos pela Lei n° 6/79, de 3 de Julho, que têm a ver com uma legislação que regula a constituição, modificação, transmissão e extinção do direito de uso e aproveitamento da terra num contexto em que a terra já não é propriedade privada, o que requeria a adopção de novos mecanismos para o acesso á terra e sua gestão. São esses aspectos que passamos a identificá-los.

3.1. Regime de terras.

Na legislação sobre terras em vigor na altura da independência do País, precisamente o ROCT, encontramos dois regimes fundamentais de terras nomeadamente terras de domínio público271 do Estado e do património das Províncias272, estas últimas, terras susceptíveis de serem atribuídas aos particulares para o exercício de diversos tipos de actividades em regime de propriedade privada.

A nova lei de terras e primeira depois da independência também previa fundamentalmente dois regimes de terras, nomeadamente terras de domínio público e terras a serem atribuídas aos particulares.273 A utilização da terra pelos particulares para fins de actividades económicas estava sujeita a prazos e para as empresas estatais e mistas era garantido o direito de uso e aproveitamento da terra pelo tempo da duração da empresa.274

Importa referir que tanto as terras de domínio público como as que se destinavam ao uso para diversas actividades pelos particulares, constituem fundo estatal de terras, que é o conjunto de todo o tipo de terras do território da República de Moçambique.275

Esta consideração tem um longo alcance na medida em que constituindo toda a terra propriedade do Estado e por consequência fundo Estatal de terras, a figura de res nullius deixa de ter espaço, pois toda a terra tem dono incluindo aquelas que não são usadas, incultas e abandonadas. Esse dono é, nos termos da lei constitucional e ordinária o Estado, a quem impende a responsabilidade e prerrogativa de determinar o seu uso.

271 Cfr o artigo 1º do ROCT.

272 Cfr o artigo 2º do ROCT. Entravam no regime de património das Províncias ultramarinas, os terrenos vagos. Ilucida o parágrafo 1º deste artigo que eram terrenos vagos aqueles que ainda não tinham entrado definitivamente no regime de propriedade privada ou de domínio público.

273 O domínio público do Estado aparece considerado no artigo 24 da Lei nº 6/79, de 3 de Julho, com a designação de Zonas de protecção total destinadas ás actividades de preservação e conservação da natureza a serem promovidas pelas entidades competentes do Estado e as zonas de protecção parcial (artigo 26 da mesma lei de terras), aquelas que os particulares podem tirar certas utilidades dentro dos limites definidos por lei. O artigo 27 da mesma lei enumera o que são zonas de protecção parcial. Nessa enumeração, nota-se implicitamente que o legislador se inspirou no essencial do que consta da enumeração dos componentes do domínio público previstos no artigo 1º do ROCT.

274 Cfr o artigo 10 da Lei nº 6/79, de 3 de Julho.

275 Idem artigo 2.

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3.2. Influência socialista no regime de terras

Um outro aspecto importante a destacar na primeira legislação moçambicana sobre terras, é a influência dos princípios de orientação socialista. Importa recordar que a Lei nº 6/79 foi aprovada dois anos depois da realização do 3º Congresso da Frelimo, que a transformou de Frente de Libertação para um partido marxista-leninista apostado na construção do socialismo em Moçambique.

Essa opção de construção do socialismo implicou como é óbvio, a adopção de uma economia centralmente planificada, que aliás já vinha prevista na constituição de 1975.276 Nessa óptica, encontramos a par de terras de regime comum, terras situadas nas chamadas zonas de desenvolvimento agrário planificado, que são aquelas que o Estado criaria de acordo com as directivas económicas para o desenvolvimento em bases científicas de agricultura, pecuária e silvicultura.277 Na materialização dessa política, o Estado definiu um conjunto de zonas de desenvolvimento agrário planificado a exemplo do complexo agro industrial do Limpopo(CAIL), complexo agro-pecuário de Lioma(CAPEL), só para citar alguns.

Mas pela dinâmica de economia agrária, o Estado acabou por ser atraído para as unidades que foram sendo abandonadas pelos seus proprietários transformando-as como empresas estatais através de um mecanismo de intervenção para evitar a paralização total da economia.278

Devido á avalanche de abandono de unidades agrárias pelos seus proprietários, surgiram numerosas unidades estatais agrárias dispersas por todo o território nacional,279 o que acabou influenciando a não criação em grande número das zonas de desenvolvimento agrário planificado.

De qualquer modo, tanto o processo de criação das zonas de desenvolvimento agrário planificado, como a tomada de unidades económicas que iam sendo abandonadas que mais tarde vieram dar lugar ás empresas estatais agrárias, representou na essência uma intervenção directa do Estado na produção, passando a assumir o papel de agente produtivo, responsável pela produção, escoamento e comercialização dos produtos agro-pecuários.280

276 Cfr o artigo 9 da Constituição de 1975.

277 Cfr os artigos 12 e 14 da Lei nº 6/79, de 3 de Julho. Na prática as zonas de desenvolvimento agrário planificado eram destinadas á implementação de programas agrícolas, silvícolas e pecuários a serem realizados mormente pelas empresas estatais e mistas. É que já na constituição de 1975, ficou patente a opção pela via de estatização da economia ao declarar-se no seu artigo 10 que o sector económico do Estado seria o elemento impulsionador da economia nacional e que a propriedade estatal receberia protecção especial, sendo o seu desenvolvimento e expansão responsabilidade de todos.

278 Foi o Decreto-Lei nº 16/75, de 13 de Fevereiro( entre outras fontes, ver Sérgio Vasques, legislação económica de Moçambique, página 55), que estabeleceu as regras de intervenção do Estado nas unidades económicas abandonadas pelos seus proprietários. O artigo 10 deste diploma legal, definiu como objecto de abandono, as empresas, prédios rústicos e urbanos que os seus proprietários tenham os abandonado de forma expressa ou tácita.

279 Limitamo-nos a dizer numerosas unidades porque no trabalho de consulta á Comissão de Alienação das unidades agrárias no Ministério da Agricultura, não conseguimos apurar a quantidade exacta das unidades agrárias criadas por falta de estatísticas unificadas, de um processo de alienação desconcentrado para os Governos Provinciais.

280 Em relação á intervenção directa do Estado ver dentre outros, Luís S. Cabral de Moncada, direito económico, 2ª edição revista e actualizada, página 36 e seguintes.

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4. Constituição de direitos sobre a terra.

No capítulo 2 relativo ao direito á terra em Moçambique antes da independência nacional, ao analisarmos o ROCT, vimos que os modos de constituição de direitos face ao estatuído por aquele regulamento eram a venda, o aforamento e o arrendamento.281

Diversamente, a nova lei de terras, a Lei nº 6/79, de 3 de Julho, conformando-se com a Constituição de 1975, declarou a terra propriedade do Estado e vedava como já o dissemos acima, a possibilidade da sua venda, alienação, hipoteca, penhora e seu arrendamento. Face a este quadro legal, era necessário adoptar-se um outro regime de constituição do direito que á luz da lei era reservado para ser atribuído aos particulares, que como já vimos, é o direito de uso e aproveitamento da terra.

Assim, a constituição do direito á terra passou a ser gratuita dependente de autorização prévia dos órgãos competentes da Administração Pública, como já nos referimos supra, essas autoridades são o Conselho de Ministros, o Ministro da Agricultura, os Governos Provinciais e os Conselhos Executivos de Cidades, de Distritos e de Postos Administrativos.

No entanto, não obstante a constituição gratuita do direito de uso e aproveitamento da terra, o seu gozo pelos interessados implicou o pagamento de taxas, excepto terras destinadas á utilização pelo Partido Frelimo, pelo Estado e suas instituições, cooperativas, organizações democráticas de massas, organismos ou associações com fins culturais, desportivos e sociais, explorações familiares para fins agrários e destinadas á habitação própria.282

Para aceder ao direito, foram criadas normas processuais pertinentes. O ponto de partida para os particulares adquirirem o direito de uso e aproveitamento da terra era o requerimento dirigido á entidade competente tendo em conta a extensão da área a requerer, o qual devia, independentemente da entidade competente, dar entrada nos serviços provinciais de cadastro283

que depois de tramitá-los se encarregavam de encaminhá-los a quem de direito, enquanto os casos de terras da competência dos conselhos executivos eram submetidos nos respectivos territórios.

4.1. Direito á terra do sector familiar ou dos camponeses.

A nova lei de terras reconheceu o direito á terra pelos camponeses como já nos referimos supra. Todavia, diferente do ROCT que reconhecia o direito á terra dos chamados vizinhos das regedorias gerido de harmonia com as normas e práticas consuetudinárias respectivas como já tivemos ocasião de abordar neste trabalho, no silêncio da nova lei podemos deduzir que ás comunidades rurais não lhes foi reconhecida legitimidade dos seus direitos consuetudinários.284

Ao reconhecer o direito á terra ao sector familiar, o legislador impôs certas regras limitando as áreas ocupáveis pelo sector familiar285 estabelecendo que nas zonas de regadio cada agregado familiar tinha direito a 0,25hª, nas zonas de prática de agricultura de sequeiro cada pessoa do 281 Op cit artigos 49º, 50º e 51º, ambos do ROCT.

282 Cfr o artigo 9 da lei de terras, Lei nº 6/79.

283 Idem artigo 29 do regulamento da primeira lei de terras.

284 Presumimos que o não reconhecimento explícito dos direitos consuetudinários das comunidades rurais moçambicanas, teve em vista o alinhamento com um dos objectivos fundamentais previsto no artigo 4º da Constituição de 1975, que era a eliminação das estruturas de opressão coloniais e tradicionais e da mentalidade a elas subjacente.

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agregado familiar tinha direito a 1 hectar. Em caso da prática de agricultura itinerante, seria reservada uma área que não excedesse 10 hectares.

Uma outra regra é a que se refere ao abandono do terreno ocupado, 286que previa que o abandono de um terreno pelo agregado familiar durante um período contínuo superior a 2 anos sem motivo devidamente justificado, implicava a perda das benfeitorias a favor do Estado sem direito a indemnização. Isso equivalia na nossa opinião, á perda do direito de uso e aproveitamento da terra da parcela em questão a favor do Estado.

A lição que podemos tirar do que acabamos de expor, revela o carácter intervencionista e dirigista do Estado que foi ao pormenor de querer impor regras de comportamento para um segmento da sociedade que tem as suas regras de conduta e de convivência social. Não é possível na nossa opinião, definir áreas de agricultura de sequeiro para os camponeses porque a medida das suas terras corresponde ás áreas herdadas dos seus ancestrais e as regras funcionam assim mesmo dentro de uma comunidade. Porque as regras de propriedade são rígidas no meio rural, a nossa experiência é que estas normas foram como se não tivessem sido escritas. Aliás, ao estudarmos a nova lei veremos que o Estado teve que se render perante a evidência do factos.

Estamos de acordo que nas áreas de regadio, porque infra-estruturadas, fazia sentido definir-se uma área que podia ser ocupada por cada agregado familiar, mas para tal devia se tomar em linha de conta a dimensão da área disponível e a densidade populacional, o que quer nos parecer que a definição per cápita de área a ocupar podia não funcionar.

Outro aspecto com o qual também concordamos, é o da perda do direito á terra por abandono depois de um determinado período pelo agregado familiar. Para nós, a perda do direito de uso e aproveitamento da terra pelo não uso devia abranger todo o tipo de terras mesmo sem benfeitorias, revertendo-as a favor da comunidade para disponibilizá-las ás famílias que carecem de terras para nelas trabalhar e produzir.

5. Modificação de direitos.

Esta figura não aparece expressamente exposta na lei de terras. Mas consideramos ser possível a modificação dos direitos quando houvesse mudanças de fins, nomeadamente terras destinadas á agricultura, pecuária e silvicultura,287 ou de objectivos previstos na lei,288 que eram os da aplicação da terra para habitação, indústria, comércio, mercados, feiras, parques e jardins e outros. A modificação do direito ocorre normalmente no sentido de mudança dos fins de natureza rural, para os objectivos ligados com a construção de infra-estruturas urbanas e não o inverso.

6. Transmissão

A Lei nº 6/79, de 3 de Julho, prevê a possibilidade de transmissão de direitos como consequência do perecimento do titular do direito de uso e aproveitamento da terra. Esta lei reconhece a transmissão mortis causa a favor do cônjuge e dos herdeiros nos termos da lei civil.289

285 Ibidem artgo 48 do regulamento.

286 Idem, artigo 60.

287 Idem, artigo 11.

288 Cfr o artigo 19 da primeira lei de terras.

289 Idem artigo 32.

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Parece-nos que esta modalidade de transmissão do direito é a única admitida quando o legislador estatui no preceito sobre transmissão que o direito de uso e aproveitamento da terra só pode transmitir-se por morte do titular.

Nos parece também que se trata de uma transmissão automática, mas condicionada á manifestação do interesse pelos sucessores no prazo de 6 meses e demonstrarem que reúnem condições para prosseguirem com a actividade a que o terreno está vocacionado.290

Há de certa maneira no nosso entender, uma limitação ao direito porque presumimos que não conseguindo provar que reúnem a tal capacidade, o normal seria a perda do terreno. Todavia, esta é uma das várias questões que esta lei previu que pela sua natureza foram de difícil cumprimento pelos sujeitos de direito e pela Administração Pública.

A nova lei de terras não prevê a transmissão do direito de uso e aproveitamento da terra inter vivos. Entre vivos ela permite que os titulares do direito possam transmitir infra-estruturas, construções e benfeitorias por eles implantadas no terreno mediante prévia autorização da entidade competente, gozando o Estado do direito de preferência.291

A venda e transmissão dos bens implantados num determinado terreno não tinha força para transmitir o direito de uso e aproveitamento da terra. Para que o novo adquirente de bens adquirisse o direito, era necessário que fizesse um pedido ex novo,292 pois o solo não cedia ás infra-estruturas, construções e benfeitorias, como acontece no caso de alienação entre vivos de prédios urbanos.

Trata-se de uma questão que continua polémica, por representar uma rigidez contestada pelos titulares que consideram que devia ser atenuada de modo a permitir a livre transmissão dos títulos. Também concordamos e prometemos voltar ao assunto quando abordarmos a nova legislação moçambicana sobre terras e sua implementação.

7. Extinção do direito de uso e aproveitamento da terra.

O direito de uso e aproveitamento está sujeito á extinção por um acto unilateral do órgão da Administração Pública ou por ocorrência de eventos que a lei de terras prevê,293nomeadamente:

No fim do prazo ou das suas renovações;

Pela renúncia do titular;

Pela sua revogação.

290 Cfr o nº 1 do artigo 16 do regulamento da Lei nº 6/79, de 3 de Julho. Não está claro quanto ás consequências da falta de manifestação do interesse no fim dos 6 meses, mas parecendo que esta norma se inspira com a necessária adaptação ao disposto no §1º do artigo 208º do ROCT, segundo o qual passado um ano sem que se tenha efectuado o registo de transmissão ou requerida a substituição no processo, os direitos existentes sobre o terreno revertem a favor do Estado. Por analogia da situação podemos presumir que no silêncio da lei, a falta de manifestação do interesse no prazo estipulado podia implicar a perda do direito a favor do Estado.

291 Idem, artigo 33.

292 Opcit Ana Prata, quer dizer requerer de novo.

293 Ibidem, artigo 34.

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A revogação ocorre nos seguintes casos294:

Falta do cumprimento do plano de exploração;

Necessidade de afectar a terra á realização de outros fins.

As consequências da extinção do direito de uso e aproveitamento da terra são a reversão para o Estado de todas as infra-estruturas, construções e benfeitorias edificadas no terreno, presumindo-se face ao silêncio da lei, que a reversão é isenta de ônus para o Estado, salvo nos casos de revogação para afectar a terra a outras actividades que implica justa indemnização.295 Entende-se por outras actividades neste caso, principalmente os fins de interesse público como a construção de estradas, escolas, hospitais e outros.

Ao fazermos esta breve incursão á primeira legislação sobre terras, levantamos as principais novidades legais que ela trouxe ao ordenamento jurídico moçambicano sobre terras, algumas das quais sem dúvida foram transportadas para o novo dispositivo legal sobre terras actualmente em vigor.

Essas inovações foram a consagração do princípio de que a terra é propriedade do Estado e a retira do comércio jurídico, a criação da figura do direito de uso e aproveitamento da terra e criação de mecanismos para a constituição, exercício, modificação, transmissão e extinção do direito de uso e aproveitamento da terra.

Concluído o estudo relativo ás inovações trazidas pela primeira legislação moçambicana sobre terras, vamos de seguida abordar a actual legislação moçambicana sobre terras e sua implementação prática durante os primeiros 10 anos.

294 Idem artigo 36.

295 Idem, artigo 35 e nº 2 do artigo 36.

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CAPÍTULO VI

A ACTUAL LEGISLAÇÃO MOÇAMBICANA SOBRE TERRAS E A SUA

IMPLEMENTAÇÃO PRÁTICA DURANTE OS PRIMEIROS 10 ANOS.

Este capítulo constitui o cúmulo da nossa dissertação que terá como base a teorização, quando se mostrar oportuno, dos seus conteúdos, apresentação e discussão de um conjunto de constatações feitas durante as pesquisas no campo.

No nosso plano de dissertação apresentado junto da coordenação do curso de mestrado na Faculdade de Direito da UEM, propúnhamos abordar a matéria da nova lei em dois capítulos, um dedicado á teorização e outro á implementação prática da nova lei.

Ao longo do nosso trabalho sentimos que seria conveniente tratar estas duas questões num só capítulo por razões práticas. Nessa perspectiva, os capítulos IV e V do plano de dissertação, fundiram-se num só, dando lugar ao actual capítulo.296

Por outro lado, não tínhamos considerado oportuno abordar de forma separada as figuras do fundo estatal de terras e do cadastro nacional de terras, mas ao longo das pesquisas apercebemo-nos de que elas são figuras que interessa abordá-las de forma autónoma.

Esta abordagem vai tentar trazer ao conhecimento algumas questões que caracterizaram e cremos que ainda caracterizam de alguma maneira o processo de implementação desta lei, que a consideramos importante como já o dissemos, por regular o uso e aproveitamento da terra, um recurso valioso para a vida dos sujeitos de direito e do País.

Tratando-se de um capítulo que a sua essência depende do resultado de recolha de informações, nalguns casos poderão aparecer lacunas ou insuficiências resultantes não só da nossa falta de liberdade de movimentação como já o dissemos por razões profissionais complexas, mas sobretudo porque nem sempre nos foi possível encontrar a disponibilidade e cooperação requerida nos objectos de contacto para recolha de informações.

Em Moçambique, a dificuldade da abertura das fontes é ainda um constrangimento embora se registem alguns progressos. Um outro aspecto importante que constituiu um constrangimento para recolha de informações é que mesmo havendo colaboração do pessoal afecto aos objectos de pesquisa, o que sucede em grande medida é que nem sempre se encontram com as informações organizadas de forma a satisfazer o desejo do pesquisador.

Assim, tivemos que nos adaptarmos ás condições impostas por essas limitações como é o caso da pesquisa processual de terras que a queríamos desenvolver de harmonia com os principais temas jurídicos que envolvem a constituição, exercício, modificação, transmissão e extinção do direito de uso e aproveitamento da terra.

Não obstante essas limitações, reputamos ter recolhido informações que nos permitirão expor algumas constatações que podem trazer ao de cima algum conhecimento, sem no entanto esgotar toda a matéria de implementação desta lei, que constitui um processo vasto e complexo. Posto isto, passamos de seguida a abordar a questão de implementação da actual legislação moçambicana

296 Carlos CEIA, normas para apresentação de trabalhos científicos, página 9, defende a possibilidade de revisão gradual do esquema ou plano de elaboração de uma tese ou de uma dissertação, ampliando-o ou restringindo-o de harmonia com o desenvolvimento da investigação.

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sobre terras. Neste capítulo faremos o nosso estudo seguindo o esquema que a seguir apresentamos:

1. Antecedentes da Lei n° 19/97, de 1 de Outubro e acções depois da sua aprovação

1.1. Antecedentes da elaboração e aprovação da Lei n° 19/97, de 1 de Outubro ;

1.2. Estratégia de implementação da PNT;

1.3. Revisão da Lei n° 6/79, de 3 de Julho;

1.4. Anteprojecto de revisão da nova lei de terras;

1.5. A proposta da nova lei;

1.6. Acções de seguimento depois de aprovação da nova lei de terras;

1.7. Campanha terra;

2. A implementação da Lei n° 19/97, de 1 de Outubro, lei de terras e legislação complementar.

2.1. Propriedade da terra:

2.1.1. Constituição de 1990 e de 2004;

2.1.2. Pluralismo jurídico;

2.1.3. Princípio de igualdade;

2.1.4. Direito á propriedade e á herança;

2.1.5. Domínio público;

2.1.6. Detalhes da propriedade da terra na constituição;

3. Considerações acerca do direito do Estado sobre a propriedade da terra.

3.1. Sinais de mercado de terras na aldeia Mahubo 25 de Junho em Boane;

3.2. É pertinente a manutenção do direito de propriedade a favor do Estado?

4. Fundo estatal de terras.

5. Cadastro nacional de terras:

5.1. História do Cadastro;

5.2. Situação actual do cadastro.

5.2.1. Qual é a realidade do cadastro nestes últimos anos?

6. Domínio Público:

6.1. Características dos espaços de domínio público;

6.1.1. Características e possibilidade de acesso pelos particulares;

6.1.2. Acesso privativo pelos particulares;

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6.1.3. Prazos das licenças e das concessões nos espaços dominiais;

6.1.4. Transmissibilidade e extinção de direitos nos espaços dominiais.

6.2. Domínio público na actual legislação moçambicana sobre terras:

6.2.1. O leito das águas interiores, do mar territorial, plataforma continental e da zona económica exclusiva:

6.2.1.1. O leito das águas interiores;

6.2.1.2. Mar territorial;

6.2.1.3. Zona económica exclusiva;

6.2.1.4. Plataforma continental.

6.3. Restantes zonas de protecção parcial.

6.4. Constatações durante as pesquisas.

7. Sujeitos de direito:

7.1. Sujeitos nacionais;

7.2. Sujeitos estrangeiros;

7.3. Considerações diversas em relação aos sujeitos de direito.

8. Modos de aquisição.

8.1. Titulação:

8.1.1. Consulta ás comunidades locais;

8.1.2. Perfil geral das consultas;

8.1.3. As parcerias;

8.1.4. Mozal;

8.1.5. Sasol;

8.2. Obrigação de pagar um valor no acto de consulta.

8.3. Os pareceres técnicos.

8.4. Competências.

8.5. Demarcação.

8.6. Registo.

9. Transmissão de direitos.

9.1. Modalidades de transmissão:

9.1.1. Transmissão mortis causa;

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Implementação da actual legislação moçambicana de terras nos primeiros 10 anos

9.1.2. Resultado de análise de processos de transmissão de direitos por herança:

9.1.2.1. Processo n° 35.655, de 1997, despacho de 22 de Janeiro de 1998;

9.1.2.2. Processo n° 5.093, de 2002, despacho de 5 de Setembro de 2002;

9.1.2.3. Processo n° 4.782, de 2002, despacho de 20 de Junho de 2002;

9.1.2.4. Processo n° 16.515, de 2008, despacho de 20 de Agosto de 2008.

9.2. Transmissão entre vivos.

9.3. A consulta ás comunidades locais como forma atípica ou indirecta de transmissão do direito de uso e aproveitamento da terra.

10. Extinção do direito de uso e aproveitamento da terra:

10.1. Extinção por falta de cumprimento do plano de exploração;

10.2. Revogação do direito de uso e aproveitamento da terra:

10.2.1. A figura de revogação na actual legislação moçambicana sobre terras;

10.2.2. Fundamento legal de expropriação além da lei de terras.

10.2.2.1. O caso da estrada Maputo/Witbank;

10.2.2.2. Projecto Sasol;

10.2.2.3. Projecto Mozal;

11. Pagamento de taxas pelos requerentes e titulares do direito de uso e aproveitamento da terra.

11.1. Alterações ao regulamento da actual lei de terras no instituto de taxas;

11.2. Ilustração das vantagens obtidas pela alteração pontual do regulamento da actual lei de terras;

11.3. Impacto concreto resultante da revisão pontual do regulamento da actual lei de terras;

11.4. Pagamento de taxas;

11.5. Consignação de receitas.

12. Resolução de conflitos:

12.1. Demanda processual nos tribunais:

12.1.1. Fluxo de recursos ao Tribunal Administrativo;

12.1.2. Fluxo de recurso dos titulares para os tribunais comuns.

13. Questões institucionais:

13.1. Representação e actuação das comunidades locais;

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13.2. Delimitação das terras comunitárias;

13.3. Plano de uso da terra;

13.4. Processos em curso;

13.5. Recursos humanos:

13.5.1. Garantia do efectivo de pessoal e formação contínua;

13.5.2. Formação formal nos estabelecimentos de ensino.

13.6. Situação actual dos Serviços de Cadastro.

Depois de apresentarmos a sequência de abordagem deste capítulo que constitui o cerne do nosso trabalho, segue-se o seu desenvolvimento.

1. Antecedentes da Lei n° 19/97, de 1 de Outubro e acções depois da sua aprovação.

As transformações políticas, económicas e sociais que se introduziram em Moçambique a partir de 1986, com a aprovação e entrada em vigor do programa de reabilitação económica(PRE), operaram importantes mudanças que ditaram alterações de uma economia centralmente planificada, para uma economia de mercado.297

O PRE entrou em vigor num momento em que estava em vigor no País a Lei n° 6/79, de 3 de Julho, a primeira lei moçambicana de terras depois da independência nacional. Esta lei como já tivemos ocasião de referir no capítulo antecedente, foi concebida para o acesso á terra num contexto de economia centralmente planificada, o que não se coadunava com a nova ordem económica que era imposta pela dinâmica de uma economia de mercado.

Essa dinâmica exigiu também que a ordem constitucional em vigor no País fosse revista de modo a criar-se uma base para a reestruturação da economia nacional. Nessa perspectiva, foi aprovada a nova lei constitucional em 1990, que dentre outras questões, introduziu formalmente a economia de mercado no País.298

297 Um dos antecedentes do PRE foi a adesão de Moçambique ao Fundo Monetário Internacional, ao Banco Mundial, á Sociedade Financeira Internacional e á Associação Internacional para o Desenvolvimento, nº 1 do artigo 1 do Decreto n° 6/84, de 19 de Setembro.

298 O artigo 41 da Constituição de 1990, dispôs que a ordem económica de Moçambique passou a estar assente na valorização do trabalho, nas forças do mercado, na iniciativa dos agentes económicos e na participação de todos os tipos de propriedade. Passou a caber ao Estado o papel de regulação e promotor do crescimento e desenvolvimento económico e social, visando a satisfação das necessidades básicas da população. A mesma disposição legal dispôs que integravam a economia nacional as propriedades estatal, cooperativa, mista e privada. Este preceito constituiu uma mudança ao conteúdo do artigo 10 da Constituição de 1975 que considerava o sector económico do Estado como elemento dirigente e impulsionador da economia do País. Na nova constituição de 1990, o Estado passou a reconhecer a importância e o papel que todas as forças vivas da sociedade podiam desempenhar no desenvolvimento sócio económico do País, com particular realce o sector privado.

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Foi no quadro desta nova ordem constitucional que se decidiu pela revisão da Lei n° 6/79, de 3 de Julho, de modo a criarem-se as bases legais para que a terra passasse a servir os ideais da nova ordem económica estabelecida, através de criação de mecanismos legais e práticos para o acesso á terra pelos utilizadores e investidores. Foi assim desenvolvido um intenso movimento envolvente para a revisão da lei de terras que passamos a resumir.

1.1. Antecedentes da elaboração e aprovação da Lei n° 19/97, de 1 de Outubro.

A elaboração da nova lei de terras foi antecedida da preparação e aprovação de uma política nacional de terras(PNT) em 1995, pelo governo.299 A PNT partiu do pressuposto de que a terra constitui um dos recursos mais valiosos de que o Pais dispõe, senão o mais de todos, partindo da ideia de que todos os recursos naturais assentam na terra, justificando-se por isso que ela seja valorizada.

Um outro aspecto que influenciou a concepção da PNT, é de ter sido concebida e aprovada numa altura em que o País acabava de sair de uma guerra destrutiva que implicou o abandono das terras pelas populações e impunha-se naquela altura a necessidade de assegurar o direito á terra das comunidades rurais e ao mesmo tempo assegurar que terra para os investidores não faltasse, tudo no intuito de garantir a reconstrução e desenvolvimento do País.300 Visando o alcance destes ideais a PNT definiu os seguintes objectivos principais:

A manutenção da terra como propriedade do Estado em obediência ao comando constitucional;

Assegurar que a população e os investidores tenham acesso seguro á terra. A PNT preconizou o reconhecimento dos direitos costumeiros de acesso e gestão das terras das populações rurais com vista á promoção da justiça social e económica no meio rural;

Garantia do acesso á terra pela mulher, no esforço de eliminação da discriminação secular que a sociedade infligiu a esta camada social no que toca ao gozo do direito á terra;

Promoção do investimento privado nacional e estrangeiro, com salvaguarda dos direitos das comunidades assegurando proveito dos resultados desses investimentos e garantir que os mesmos contribuam para o erário público;

Garantir que os nacionais participem como parceiros em empreendimentos privados com estrangeiros;

Prever a possibilidade de transmissibilidade do direito de uso e aproveitamento da terra entre sujeitos de direito nacionais, nos casos em que no terreno tiverem sido feitos investimentos;

Assegurar que as zonas de protecção continuem e sejam ampliadas, garantindo-se o uso racional dos recursos e a preservação do ambiente, tendo como objectivo permitir que os mesmos sirvam as gerações presentes e venham beneficiar as gerações futuras.

1.2. Estratégia de implementação da PNT.

299 A política nacional de terras foi aprovada pela Resolução nº 10/95, de 17 de Outubro, do Conselho de Ministros.

300 Carlos Serra Júnior, Colectânea de Legislação sobre a Terra, 2004, página 21.

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A PNT, para além de definir os objectivos fundamentais, adoptou também uma estratégia de implementação que assentou em dois vectores contemplando a revisão da Lei n° 6/79, de 3 de Julho e o desenvolvimento institucional.

Na revisão da lei de terras previa-se que a nova lei de terras devia incorporar os objectivos principais da PNT que arrolamos no número precedente, mas também a garantia de que além da revisão da lei, venha a ser revisto o seu regulamento de modo a aprofundar e detalhar as condições de aplicação da nova lei de terras.301

Além da revisão da lei de terras em vigor naquele tempo, a PNT previa o desenvolvimento institucional, assente no pressuposto de que o cadastro nacional de terras deveria ser um sistema único para todo o País, com natureza multifuncional interligado por uma rede de informática, que estaria a cargo de uma nova instituição diferente da Direcção Nacional de Geografia e Cadastro(DINAGECA), responsável pelo cadastro nacional de terras existente naquela altura. Esta medida não chegou a ser implementada e a situação continua a anterior como teremos ocasião de ver quando falarmos do cadastro nacional de terras.

1.3. Revisão da Lei n° 6/79, de 3 de Julho

Para materialização da estratégia de implementação da PNT acima referida no que concerne á revisão da lei de terras que se encontrava em vigor, foi criada uma Comissão Interministerial para a revisão da legislação sobre terras integrando diversos titulares de pastas ministeriais considerados relevantes para o processo.302

A Comissão tinha como principais atribuições303 no âmbito da revisão da legislação sobre terras, a promoção, consulta, auscultação e divulgação do anteprojecto da revisão da legislação sobre terras por meio de reuniões, seminários e conferências nacionais e internacionais, acompanhar estritamente o processo de revisão e submeter ao Conselho de Ministros o anteprojecto de revisão da legislação. Este órgão cumpriu integralmente o seu mandato no que respeita á revisão do pacote legislativo e dos procedimentos preparatórios recomendados pela lei como mais adiante poderemos ver.

Uma outra atribuição da Comissão era a revisão do quadro institucional304 e neste âmbito, devia melhorar a capacidade das instituições que concorriam para o processo de titulação e registo de terras, analisar a situação prevalecente no cadastro nacional de terras e proceder ás necessárias alterações com vista á criação de um cadastro nacional único e multifuncional de harmonia com a previsão da PNT, harmonizar o registo predial com o cadastro nacional de terras, reforçar os

301 Idem, pág. 27. Entretanto, a PNT previa a classificação das terras em tipos A,B,C e D, que na elaboração da nova lei de terras não chegou a ser considerada pela sua complexidade, excepto aquilo que seria a classificação de tipo A, que contempla terras das zonas urbanas que vem prevista no n° 4 do artigo 16 da actual lei de terras, mas na condição de o titular ter realizado investimentos no terreno que o transformem de prédio rústico para urbano.

302 A Comissão Interministerial foi criada pelo Decreto nº 6/96, de 3 de Março. Nos termos do artigo 2 daquele diploma legal, a Comissão era presidida pelo Primeiro-Ministro e integrava os Ministros da Agricultura, da Administração Estatal, da Cultura, Juventude e Desportos, para a Coordenação da Acção Ambiental, da Indústria, Comércio e Turismo, da Justiça, das Obras Públicas e Habitação, do Plano e Finanças e dos Recursos Minerais e Energia, além do Presidente do Instituto de Desenvolvimento Rural.

303 Cfr o artigo 3 do Decreto n° 6/96, de 3 de Março.

304 Idem

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Tribunais Comunitários por forma a capacitá-los para a solução de conflitos de terras no meio rural, propor ao Conselho de Ministros a criação de uma instituição que se ocuparia da coordenação do processo de gestão de terras.

De acordo com o conhecimento que tivemos, o mandato no âmbito institucional não foi cumprido. A nossa percepção é que concentrou-se maior atenção para a revisão legislativa e porque a revisão institucional mexia com várias sensibilidades, acabou-se relegando este processo para um plano secundário.305

Para apoio á Comissão Interministerial de revisão da legislação de terras, foi criado um Secretariado Técnico, cuja composição integrava representantes correspondentes ao elenco que constituía a Comissão Interministerial,306 com as funções de realizar estudos em relação á unificação dos sistemas cadastrais e criação de um cadastro nacional único e funcional, melhorar os procedimentos do sistema de registo predial, prever mecanismos adequados para a solução de conflitos de terras, além da função principal de elaboração de anteprojectos de revisão da legislação sobre terras e elaboração de um plano nacional de terras.307

Todavia, como já nos referimos acima, a questão da reforma institucional ficou por se realizar, tendo-se concentrado maior atenção na reforma legal, que era a tarefa principal.

1.4. Anteprojecto de revisão da nova lei de terras.

Em 17 de Janeiro de 1996, foi concluída a versão preliminar do ante-projecto da revisão da lei de terras, que viria servir de base para que pessoas e instituições representando diversas sensibilidades das esferas política, económica, sócio cultural e da sociedade civil pudessem se envolver nos debates e reflexões para harmonizá-lo com os objectivos preconizados. O ano de 1996 foi de intenso trabalho e de debate de ideias com vista ao enriquecimento da proposta da nova lei.

Uma vez consolidada a proposta, foram enviadas brigadas a todas as 10 províncias do País que organizaram seminários provinciais e distritais destinados á disseminação do anteprojecto e recolha de contribuições visando o seu enriquecimento. A mesma versão foi remetida a 200 entidades dentre elas técnicos, órgãos de informação, organizações não governamentais(ONGs) e personalidades diversas com vista á recolha de mais opiniões.308

305 Na verdade, a reorganização institucional não se operou de acordo com os comandos previstos na PNT. O Ministério da Agricultura viria a adoptar uma reestruturação, resultado da reforma do sector público. Nessa reforma foram transferidas as funções de cartografia, fotogrametria e geodesia para o Centro Nacional de Cartografia e Teledetecção(CENACARTA), alínea e) do artigo 3 do estatuto orgânico do Ministério da Agricultura(MINAG). Esta instituição fora criada há bastante tempo com funções viradas para cartografia via satélite. As novas funções que recebeu da reforma eram acometidas á Direcção Nacional de Geografia e Cadastro. Da DINAGECA foi também retirada a função de cadastro e de gestão administrativa e legal de terras, que juntamente com as funções que eram acometidas á Direcção Nacional de Florestas e Fauna Bravia passaram a constituir a nova Direcção Nacional de Terras e Florestas, artigo 9 do estatuto orgânico do MINAG, extinguindo-se a DINAGECA. Na prática, esta reforma não correspondeu ao espírito e letra do que fora preconizado na PNT.

306 Cfr o artigo 5 do Decreto n° 6/96, de 3 de Março.

307 Idem artigo 6.

308 Informação do Secretariado da Comissão Interministerial da revisão da lei de terras á Conferência Nacional de Terras realizada na capital do País de 5 a 7 de Junho de 1996, pág. 25.

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É um dado irrefutável que o debate em torno da preparação da nova lei de terras foi muito envolvente e levou aproximadamente dois anos de intensos debates, que levou alguns sectores da sociedade moçambicana e não só, a considerarem que o processo de discussão do ante-projecto da revisão da lei de terras foi o maior e mais marcante movimento democrático vivido em Moçambique na década 90 do século XX.309

Concordamos em tanto que um processo que entusiasmou toda a sociedade independentemente da sua inclinação política. O movimento de debate sobre o direito á terra, na nossa opinião revestiu características de um movimento cívico de massas. Ninguém esteve alheio ao debate, desde o intelectual, o político, o cidadão comum até ao camponês, maior utilizador da terra, mas também maior segmento da sociedade sujeito a injustiças no acesso e posse da terra.

Depois deste movimento nacional, como culminar de todo este processo, foi promovida uma conferência nacional que teve lugar de 5 a 7 de Junho de 1996, que teve o mérito de apreciar as contribuições dadas nos debates aos vários níveis e formulou recomendações pertinentes que constariam da proposta definitiva de revisão da lei de terras.

1.5. A proposta da nova lei.

Da conferência nacional de terras apesar de ter havido diversas recomendações, podemos dizer que o encontro marcou uma etapa decisiva para se dar forma á proposta de revisão. Depois de incorporadas as observações e contribuições dos participantes á conferência, o ante-projecto foi presente ao Conselho de Ministros que o discutiu, enriqueceu e aprovou o projecto de lei que foi enviado ao Parlamento, que culminaria com a aprovação da Lei n° 19/97, de 1 de Outubro, revogando a Lei n° 6/79, de 3 de Julho.

1.6.Acções de seguimento depois de aprovação da nova lei de terras.

Com a publicação da nova lei, foi levado acabo um vasto programa de divulgação e esclarecimento dos diversos destinatários da nova lei, com maior ênfase para as populações das zonas rurais maiores utilizadores da terra.310 O processo de divulgação envolveu iniciativas do pessoal da Administração Pública mas sobretudo da sociedade civil e de diversas organizações através de um movimento aglutinador chamado campanha terra.

1.7.Campanha Terra.

Em África a terra constitui o recurso mais importante para se atingir a segurança alimentar e social de homens e mulheres, por isso ao aprovar-se a nova lei de terras, foi preocupação do governo que ela fosse do domínio das largas camadas populacionais que têm na terra o seu principal objecto de trabalho como importante meio de produção.311

Com o objectivo de uma maior e ampla divulgação das novidades que a nova lei trazia para as comunidades locais e outros sujeitos de direito, foi a campanha terra que concebida na sua génese como uma campanha de simples divulgação, mas pelo seu impacto e envolvimento, cedo se transformou no maior movimento cívico da história recente de Moçambique.312

309 Joseph Hanlon, debate sobre a terra em Moçambique, pág. 9.

310 Ponto 10 da fundamentação da PNT, em 1997, a população rural representava 75% da população de Moçambique.

311Carla Braga, as ONGs e a influência na política de terras em Moçambique, que eficácia e impactos, página 7.

312 Ibidem, pág. 13.

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Assim, em sede da Campanha terra, foi constituído um Comité Nacional de que faziam parte diversas ONGs nacionais e estrangeiras, instituições académicas e doadoras. Foi nomeado dentre os membros, um coordenador que tinha sob sua alçada uma equipa multidisciplinar de especialistas contratada para o efeito.

O alcance da Campanha Terra foi enorme porque ela teve uma dimensão nacional cobrindo todas as Províncias com envolvimento de 200 organizações de vária índole de caris político, religioso, cultural e social, atingindo todos os 128 distritos do país e 393 postos administrativos.

Foi desenhada uma metodologia para actuação comum e uniforme, de modo a permitir que em qualquer canto do País se transmitisse o mesmo tipo de mensagem fundada no desiderato de disseminar a nova lei de terras junto das comunidades, promover a justiça, igualdade e garantir a defesa dos direitos dos sujeitos de direito, particularmente dos cidadãos.

Tomando em consideração que a maioria da população com particular realce das zonas rurais era analfabeta rondando os 70%,313 procurou-se fazer maior cobertura recorrendo a vários tipos de comunicação com base no material escrito, banda desenhada, teatro e material áudio. As matérias nucleares dessa disseminação eram dentre outras:

A consulta ás comunidades quando do processo de autorização dos pedidos e o papel que elas deviam desempenhar para assegurar que haja investimentos privados e públicos, mas não em detrimento dos seus direitos á terra necessária para a sua subsistência e desenvolvimento;

A possibilidade de delimitação das suas terras e da faculdade do seu registo no cadastro nacional de terras;

O direito da mulher á terra em particular, como forma de correcção das injustiças sociais a que foi sujeita ao longo dos séculos.

A possibilidade de parcerias entre os camponeses e o sector empresarial.

A resolução de conflitos.

O que acabamos de expor acima ilustra com clareza que a divulgação da nova lei de terras, foi coroada de êxito por ter sido possível em pouco espaço de tempo levá-la a todos os cantos do País e a todas as camadas da população. O segredo deste sucesso no nosso entender, foi possível porque o governo optou no amplo envolvimento das ONGs e da sociedade civil além da sua própria capacidade institucional que seria limitada para a envergadura do trabalho a ser realizado em tão curto espaço de tempo.314

As considerações que acabamos de expender mostraram que tanto a preparação do ante-projecto da lei, como a divulgação dos seus conteúdos depois da sua aprovação, constituíram processos que beneficiaram do envolvimento de um número significativo das forças da sociedade, tornando esta lei porventura a que mais envolvimento popular teve de todas as leis ordinárias de que há memória no País.

Desse modo, foi uma lei que ao entrar em vigor já havia um conhecimento mínimo do que ela era e os benefícios que ela trazia. Ao entrar em vigor, novo desafio se impunha para os agentes

313 Idem, pág. 14.

314 Pretendia-se que durante o período de vacatio legis que decorreu de 1 de Outubro de 1997 a 1 de Janeiro de 1998 a campanha devia ter abarcado o máximo da população, o que foi possível.

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de Administração Pública com vista á garantia da sua correcta implementação e aplicação. A questão que se coloca é, será que esse desafio foi cumprido? São as ilações que de seguida vamos procurar obter através da análise de implementação da nova lei, a Lei n° 19/97, de 1 de Outubro.

2. A implementação da Lei n° 19/97, de 1 de Outubro, lei de terras e legislação

complementar.

A nova lei de terras é composta por 8 capítulos, sendo o primeiro dedicado ás disposições gerais, o segundo á propriedade da terra e domínio público, o terceiro, direito de uso e aproveitamento da terra, o quarto exercício de actividades económicas, o quinto, competências, o sexto, processo de autorização de pedidos de uso e aproveitamento da terra, o sétimo pagamentos e o oitavo, disposições finais e transitórias.

Logo depois de aprovação da lei de terras pelo parlamento, a Comissão Interministerial da revisão da lei através do seu Secretariado Técnico, iniciou a preparação do respectivo regulamento que foi submetido no espaço de um ano ao Conselho de Ministros para a sua aprovação.315

Assim, foi aprovado o regulamento da lei de terras pelo Decreto n° 66/98, de 8 de Dezembro, composto por 7 capítulos, sendo o primeiro dedicado ás disposições gerais, o segundo ao domínio público, o terceiro ao direito de uso e aproveitamento da terra, o quarto ao processo de titulação e á fiscalização, o sexto ás taxas e o sétimo ás disposições finais.

Como corolário de alguns comandos legais contidos no regulamento da lei de terras,316 foi aprovado o anexo técnico pelo Diploma Ministerial nº 29-A/2000 de 17 de Março destinado a regulamentar a delimitação das terras comunitárias e o processo de demarcações, composto por 4 capítulos, sendo o primeiro dedicado ás disposições gerais, o segundo á delimitação de áreas ocupadas pelas comunidades locais, o terceiro á delimitação de terras ocupadas por pessoas singulares nacionais de boa fé e o quarto, á demarcação de terras, mormente as resultantes dos pedidos do direito de uso e aproveitamento da terra.

Como já nos referimos na parte introdutória, para recolha de dados a serem inseridos neste trabalho recorremos ao estudo de diversa bibliografia, á avaliação de processos legais de autorização do direito de uso e aproveitamento da terra e á auscultação de diversas entidades.

Para a análise processual era nosso desejo agrupar os processos de terras de acordo com os principais institutos tais como extinção de direitos, transmissão, conflitos de terras e etc. Tal desejo não foi satisfeito devido ao facto de os Serviços Provinciais de Geografia e Cadastro não estarem

315 Nos termos do artigo 33 da Lei n° 19/97 de 1 de Outubro, compete ao Conselho de Ministros a sua regulamentação.

316 O primeiro comando legal vem previsto no nº3 do artigo 9 do regulamento da lei de terras, que dispõe que quando necessário ou a pedido das comunidades locais, as terras onde recai o direito de uso e aproveitamento da terra adquirido por ocupação feita de acordo com as práticas costumeiras, poderão ser identificadas e lançadas no cadastro nacional de terras segundo os requisitos a serem definidos num anexo técnico. No mesmo sentido dispõe o nº 3 do artigo10 do mesmo regulamento no que concerne ás terras ocupadas por pessoas singulares nacionais de boa fé há pelo menos 10 anos. Por seu turno, o nº 5 do artigo 30 do mesmo regulamento, preconiza que os requisitos para a demarcação de terras serão definidos por um anexo técnico.

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organizados para identificar e localizar processos por categoria uma vez que o seu arquivo não obedece a uma catalogação por assuntos.

Face a essa limitação, tivemos que optar por analisar aleatoriamente 20 processos de terras do primeiro ano de implementação da nova lei,317 20 do ano de 2002 considerado intermédio do período em análise e 20 de 2008 último ano do período a que nos propomos estudar, com o objectivo de verificar se a administração pública observa ou não as normas legais, como meio de garantia da legalidade e respeito dos direitos que a lei reconhece aos sujeitos de direito.

Tanto a lei de terras como os seus diplomas legais complementares que acabamos de os identificar supra, serão analisados em simultâneo, tendo como base a própria lei. Nessa perspectiva passamos a apresentar a análise da lei de terras.

2.1. Propriedade da terra

No que concerne á propriedade da terra, a nova lei de terras alinhou com a política defendida pela Lei n° 6/79, de 3 de Julho, que, cumprindo a linha de orientação da Constituição da República de 1975, declarara a terra propriedade do Estado.

A nova lei manteve o regime, não obstante vigorar a economia do mercado.318 Importa referir que a nova lei foi aprovada vigorando uma nova Constituição que revogou a de 1975, a qual entrara em vigor em 1990 e viria a ser revogada em 2004 que importa estudá-la a seguir.

2.1.1. Constituição de 1990 e de 2004.

Movido pelas transformações económicas e sociais introduzidas desde a entrada em vigor do PRE, o Estado moçambicano levou acabo um processo de revisão da Constituição de 1975, de modo a adequar a ordem constitucional á nova realidade. Em Janeiro de 1990 foi lançado um ante-projecto de revisão da Constituição, que em relação á terra defendia que a terra devia ser considerada propriedade originária do Estado que podia ser transmitida a pessoas singulares ou colectivas. Previa ainda que a lei estabeleceria os termos em que se operaria a transferência de propriedade e criação de direitos sobre a terra.319

Ao longo dos debates esta proposta acabou sendo afastada mantendo-se finalmente a filosofia de que a terra mantém-se propriedade do Estado, insusceptível de qualquer forma de alienação. Vamos abordar de seguida a constituição de 1990 simultaneamente com a de 2004, instrumentos legais que constituem alicerces da actual lei de terras.

2.1.2. Pluralismo jurídico

317 De referir que a Lei n° 19/97, de 1 de Outubro, nos termos do seu artigo 35 entrou em vigor 90 dias depois da sua publicação. Nesse sentido, tendo sido publicada em 1 de Outubro, só viria a entrar em vigor no dia 1 de Janeiro de 1998. Foi por isso que para efeitos de avaliação dos primeiros 10 anos da sua implementação, elegemos o período 1998/2008.

318 O seu artigo 3 continuou a declarar a terra propriedade do Estado e mantendo-a fora do comércio jurídico. No entanto, a nova lei trás uma inovação ao retirar a proibição de arrendamento da terra como vinha previsto no nº 2 do artigo 1 da Lei n° 6/79, de 3 de Julho. Isso resultou do facto de que muito antes da revisão desta lei, o preceito que proibia o arrendamento de imóveis, fora implicitamente revogado pelo nº 1 do artº 1 da Lei nº 5/91, de 8 de Janeiro, que autorizou as pessoas colectivas e singulares a construírem imóveis para a venda ou arrendamento.

319 É o que propunha o artigo 12 do ante-projecto de revisão da Constituição de 1990.

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Contrariamente ás Constituições de 75 e de 90, a Constituição de 2004, dispõe que o Estado reconhece os vários sistemas normativos e de resolução de conflitos desde que não contrariem os princípios constitucionais.320 Todavia, apesar da não previsão de uma norma específica sobre o pluralismo jurídico na Constituição de 90, no que respeita á terra ela o contemplou ao reconhecer os direitos adquiridos por ocupação na titulação do direito de uso e aproveitamento da terra.

Esta disposição legal constitui o reconhecimento de uma realidade secular existente na sociedade moçambicana, em especial os vários ordenamentos jurídicos consuetudinários que sempre resistiram ás tentativas de imposição da supremacia do direito positivo. No caso do direito de uso e aproveitamento da terra, o reconhecimento do pluralismo jurídico consolida o espaço para que as comunidades locais possam gerir as sua terras com recurso ás suas práticas costumeiras.

2.1.3. Princípio de igualdade.

A constituição de 1990 quanto ao género estabeleceu o princípio de igualdade de todos os cidadãos perante a lei, declarando que eles gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos ás mesmas obrigações sem distinção de raça, sexo, origem étnica, lugar de nascimento, religião, grau de instrução, posição social, estado civil dos pais ou profissão.321

A mesma Constituição deu maior ênfase á defesa dos direitos da mulher ao dispor que o homem e a mulher são iguais perante a lei em todos os domínios da vida política, económica, social e cultural.322 O mesmo sentido foi retomado pela Constituição de 2004, tanto no que respeita á igualdade de direitos entre todos os cidadãos, como no que concerne á igualdade entre o homem e a mulher.323 Este espírito do legislador constituinte como teremos ocasião de ver quando abordarmos a lei de terras, influenciou o legislador ordinário no estabelecimento de bases legais para o acesso ao direito de uso e aproveitamento da terra pelos sujeitos de direito.

2.1.4. Direito á propriedade e á herança.

A CRM de 1990 não previu preceitos que tratam do direito de propriedade das pessoas e do direito á herança, salvo o caso do direito de uso e aproveitamento da terra que ela reconhece os direitos adquiridos por herança.324 Sentido diferente foi seguido pela Constituição de 2004, que dispõe que o Estado moçambicano reconhece o direito de propriedade e impõe que a expropriação da propriedade privada só pode ocorrer por motivo de interesse público, mediante justa indemnização.325

Esta Constituição dispôs ainda que o Estado reconhece e garante o direito á herança.326 A Constituição de 2004 representou maior avanço no reconhecimento destes direitos fundamentais dos cidadãos dando-lhes uma dignidade constitucional, gesto que vinca mais o seu valor jurídico e consideração.

320 Cfr o artº 4 da CRM de 2004.

321 Cfr o artigo 66 da Constituição da República(CRM) de 1990.

322 Idem, artigo 67.

323 Cfr os artigos 35 e 36 da CRM de 2004.

324 Cfr o artº 48 da CRM de 90.

325 Idem, artigo 82.

326 Idem artigo 83.

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2.1.5. Domínio público

A Constituição de 1990 retomou e ampliou a declaração da Constituição de 1975 de que os recursos naturais são propriedade do Estado. A Constituição de 90 previu os recursos que constituem propriedade do Estado e domínio público, dispondo que os recursos naturais situados no solo e no subsolo, nas águas interiores, no mar territorial, na plataforma continental e na zona económica exclusiva, pertencem ao Estado.327

No mesmo sentido seguiu a Constituição da República de Moçambique de 2004, mas foi mais longe ao dispor que a lei regula o regime jurídico dos bens de domínio público incluindo as regras da sua gestão e da sua conservação, diferenciando os bens que integram o domínio público estadual, o domínio público das autarquias locais e o domínio comunitário.328 Este preceito trás uma inovação ao criar implicitamente as figuras de domínio autárquico e do domínio comunitário, especialmente este último.

2.1.6. Detalhes da propriedade da terra na Constituição

A Constituição de 90 retomou a declaração da Constituição de 75 de que a terra é propriedade do Estado, não podendo ser vendida, alienada, hipotecada ou penhorada.329 A Constituição de 90 tratou a matéria do direito á terra com maior destaque em relação á de 75. Ela declarou a terra propriedade do Estado junto com outros recursos naturais porque a terra é um recurso natural, mas depois dedicou-se-lhe um preceito independente que a declara mais uma vez propriedade do Estado. Há no nosso entender uma dupla declaração.

Além da questão de propriedade, a Constituição de 90 introduziu outros princípios constitucionais em relação á terra. No conjunto de princípios encontramos aquele que declara que a terra como meio universal da criação da riqueza, e do bem-estar, é direito de todos os moçambicanos.330

Encontramos também como princípios constitucionais relativos ao direito á terra aquele que confere ao Estado a responsabilidade de fixação das condições de uso e aproveitamento da terra e reconhece que os sujeitos de direito são as pessoas singulares e colectivas.331

O legislador constitucional dispôs ainda que o Estado reconhece e protege os direitos adquiridos por herança e por ocupação, abrindo neste último caso a possibilidade de as comunidades locais serem reconhecidas como sujeitos do direito de uso e aproveitamento da terra.332 È uma previsão legal de grande alcance por reconhecer o direito de um segmento que constitui a maioria do povo moçambicano.

327 Cfr o artigo 8 da CRM de 1975 e o artº 35 da CRM de 1990.

328 Cfr o artigo 98 da CRM de 2004.

329 Cfr artº 46 da CRM90 e 109 da CRM de 2004.

330 Idem.

331 Cfr o artº 47 da CRM de 90 e 110 da CRM de 2004.

332 Cfr o artº 48 da CRM e artº 111 da CRM de 2004.

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3. Considerações acerca do direito do Estado sobre a propriedade da terra

Desde a primeira abordagem neste trabalho sobre a matéria de propriedade da terra em sede da Constituição de 75, passando pela primeira lei de terras, pelas Constituições de 90 e 2004, até á Lei n° 19/97, de 1 de Outubro, a lei de terras ainda em vigor em Moçambique, vimos que a política de propriedade da terra manteve-se inalterável, a favor de manutenção do direito de propriedade na esfera jurídica do Estado moçambicano.

A terra, porque propriedade do Estado, constitui património nacional susceptível de ser atribuído ás pessoas para prossecução dos seus fins particulares. Dentro desta terra encontramos espaços considerados domínio público do Estado as que circundam a orla marítima, rios e lagoas navegáveis dentre outras, mas esses espaços são em menor quantidade. Todavia, a maior porção de terras é aquela que não integra o domínio público do Estado, por serem disponíveis.333

A manutenção do direito de propriedade a favor do Estado em Moçambique, é uma questão política com raízes profundas fundada no sentimento de que a Frelimo, movimento que lutou pela independência de Moçambique e que se mantém no poder desde a independência nacional em 1975, a razão da sua luta foi para a libertação da terra e dos homens e que durante o processo da luta contra a ocupação estrangeira se aprofundou o sentimento de que a independência política não teria um sentido real e autêntico para o povo se a terra continuasse nas mãos de um punhado de latifundiários, sejam eles estrangeiros ou nacionais.334

É uma política que resulta da experiência da revolução russa como tivemos ocasião de nos referirmos quando tratamos do capítulo de influências históricas ao nosso ordenamento jurídico sobre terras, mas que encontra na liderança libertadora de Moçambique, convicções próprias, baseadas na necessidade de manutenção do direito de propriedade da terra a favor do Estado, convencidos de que esta é a única forma de assegurar que o povo tenha acesso ao direito á terra e segurança de posse e prevenir-se a perda das suas terras a favor de latifundiários.

Pretende-se evitar as consequências que isso pode trazer, mormente a perda de terras pelos camponeses gerando conflitos como os que ocorrem noutros países, sendo de assinalar na nossa região austral de África os casos do Zimbabwe e da África do Sul, como tivemos ocasião de ver no capítulo próprio inserido neste trabalho. Esse posicionamento encontrou total apoio de organizações de camponeses preocupadas com a ideia de privatização da terra por temerem as repercussões negativas desse processo no futuro.335

Entretanto, em relação a esta política de não privatização da terra, o legislador constituinte demonstrou ser irredutível nas suas posições,336 pois as mesmas se radicalizaram mais na 333 Marcello Caetano, Princípios Fundamentais do Direito Administrativo, pág. 330.

334 Introdução á Lei n° 6/79, de 3 de Julho, ver Carlos Serra Júnior, Colectânea de Legislação sobre a terra, pág.55.

335 Op cit Joseph Hanlon, pág. 11.

336 Irredutível porque se formos a analisar as disposições legais que declararam a terra propriedade do Estado, concretamente a partir da primeira lei de terras, apercebemo-nos por interpretação do nº 2 do artigo 1 da Lei n° 6/79, de 3 de Julho, que a terra como propriedade do Estado não pode ser vendida, nem sujeita a qualquer forma de alienação. Esta doutrina foi retomada pela constituição de 90, dando-lhe dignidade constitucional, nos termos do seu artigo 46. Por seu turno, a Lei n° 19/97, de 1 de Outubro, no seu artigo 3 retomou a mesma redacção contida na Constituição de 90. Todavia, já na Constituição de 2004 nota-se um radicalismo ao endurecer a sua linguagem no que respeita á proibição de alienação da terra como podemo-nos aperceber da interpretação do número 2 do artigo 109 da CRM 2004. Quer dizer, enquanto a Lei n° 6/79, de 3 de Julho e a

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Constituição de 2004 ao mudar do tom de linguagem de proibição da venda da terra e outras formas de alienação, do vocábulo não pode ser vendida... para não deve ser vendida...

Este radicalismo surge da necessidade de se pretender fazer frente ás correntes que advogam a ideia de se privatizar a terra usando vários argumentos, desde a possibilidade de os titulares poderem usar a terra como garantia creditícia, dar-lhe mais consistência para servir de colateral nas parcerias em investimentos, até á criação de um ambiente de confiança que os investidores podem ter para investir quando a terra é sua propriedade.337

É com base na influência desta corrente de opinião alimentada também em grande medida pelos parceiros de cooperação internacional, que se produziu a tentativa frustrada no ante-projecto da revisão da Constituição de 90338 de criação de mecanismos para o estabelecimento de uma espécie de domínio directo da terra a favor do Estado e um domínio útil a favor dos particulares.

Não obstante a ideia de privatização da terra não ter passado, o debate frequente á volta desta matéria nunca parou, até que um alto dirigente do governo moçambicano na pessoa do Dr Hélder Muteia, então Ministro da Agricultura e Desenvolvimento Rural no mandato de 2000 para 2005, pronunciou-se a favor do debate sobre a privatização da terra.339

Não tardaram reacções contra a ideia de privatização e como o debate ocorreu em plena preparação da revisão da Constituição de 90, os defensores da não privatização da terra radicalizaram posições na Constituição de 2004, impondo que a terra não deve ser vendida.

No direito comparado, o que se tentou introduzir no anteprojecto da revisão da Constituição de 75 de Janeiro de 1990, coincidência ou não, algo semelhante parece-nos ter sido considerado na Constituição da República de Angola de 1992 que declarou a terra propriedade originária do Estado podendo ser transmitida a pessoas singulares e colectivas tendo em vista o seu efectivo aproveitamento em obediência ás imposições legais.340

Por seu turno a lei de terras da República de Angola, Lei nº 9/04, de 9 de Novembro, retoma a ideia de que a terra integrada nos domínios público ou privado é propriedade originária do

CRM90 expressaram que a terra não PODIA ser vendida, a CRM2004, expressou-se mais categórica e inequivocamente no sentido de que a terra não DEVE ser vendida...

337Ib idem Joseph Hanlon, pág.11. Contra a corrente que defende a privatização da terra, Samuel Chissico, Presidente da Associação dos Agricultores de Moçambique( AGRARIUS), intervindo na conferência nacional comemorativa dos 10 anos da Lei n° 19/97, de 1 de Outubro, realizada em Maputo em Novembro de 2007, em representação da Confederação das Associações Económicas de Moçambique, CTA, pronunciou-se no sentido de que a sua opinião e da CTA, não defendia a privatização da terra, porquanto o actual figurino de transmissão do direito de uso e aproveitamento da terra como resultado de o titular ter valorizado a terra através de realização de investimentos em construções e benfeitorias, é o mais correcto e evita a abertura de um campo de especuladores oficiais de terras(a propósito ver o relatório final da conferência, página 32).

338 Op cit, artº 12.

339 Entrevista do Ministro da Agricultura e Desenvolvimento Rural no Jornal Domingo a 8 de Julho de 2001. Nessa entrevista ele defendia que era chagada a altura de criação do mercado de terras dentro da realidade moçambicana. A este respeito, ver também Joseph Hanlon, debate sobre a terra em Moçambique, pág 11.

340 Op cit, nº 3 do artº 12º da Constituição da República de Angola. Há semelhanças nítidas com o que propunha o artigo 12 do anteprojecto de revisão da Constituição de 75.

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Estado.341 Ainda o mesmo dispositivo legal permite que o Estado possa transmitir ou onerar a propriedade dos terrenos que fazem parte do seu domínio privado.342

A lei Angolana permite que o Estado transmita a pessoas singulares de nacionalidade angolana o direito de propriedade sobre terrenos urbanos concedíveis pertencentes ao seu domínio privado. Todavia, não se pode, tanto para pessoas singulares, como para as pessoas colectivas do direito privado, transmitir-se o direito de propriedade sobre terrenos rurais integrados nos domínios público e privado do Estado.343

Este exemplo vindo de Angola nos parece que acautelaria melhor os interesses dos camponeses que são o elemento chave da recusa da privatização da terra em Moçambique pois, na prática em Angola as terras rurais não são susceptíveis de serem objecto do direito de propriedade privada, o que assegura a prevenção da eclosão de conflitos de terra no futuro. Aliás, nos debates á volta de privatização da terra em Moçambique, temos acompanhado as correntes que advogam que privatizar terra rural não, mas terra urbana abrangida pelos planos de urbanização sim.

Aparentemente as ideias da corrente que advoga a possibilidade do mercado de terras nas zonas urbanas em Moçambique foram implicitamente acolhidas pelo actual regulamento do solo urbano aprovado pelo Decreto 60/2006 de 26 de Dezembro, ao considerar um regime misto de acesso ao direito de uso e aproveitamento da terra, o qual prevê dentre outras modalidades, a possibilidade de realização de hasta pública cuja base de licitação não pode ser inferior á taxa de urbanização.344

Na prática e com base na experiência que temos vindo a acompanhar mesmo antes de aprovação deste regulamento, sob capa de cobrança da taxa de urbanização que em muitos casos é somente um simples atalhoamento que se faz, são cobrados valores elevados aos interessados de adquirirem um terreno para construção de uma habitação.

Em suma, podemos dizer que a questão do mercado de terras e propriedade do Estado sobre a terra é um assunto que continua problemático em Moçambique, continuando a ter aqueles que defendem que a terra não deve ser objecto de comércio jurídico e outros que defendem que ela deve entrar neste regime. Estes últimos argumentam que mesmo que não se declare oficialmente a possibilidade das transações sobre terras em Moçambique, na prática existe um mercado subterrâneo de terras que funciona á margem do controlo das autoridades governamentais e os beneficiários dessas transacções nem sequer pagam nada ao fisco.345 341 Op cit artigo 5º.

342 Idem, artº 6º.

343 Idem, artº 35º.

344 Cfr os artigos 24 e 27 do regulamento do solo urbano.

345 Quando dizemos á margem do controlo das autoridades governamentais, não queremos dizer que os funcionários públicos locais não entrem nos esquemas. Há muitos casos de envolvimento clandestino dos funcionários públicos que intervêm sob capa de autoridade, mas eles estão na prática a agir clandestinamente por conta própria e á margem da lei. Na verdade, o mercado negro de terras prospera porque os actores têm ao seu lado facilitadores do processo que se encontram dentro da Administração pública. No ano 2000 que pode ser considerado o ano do início de maior pico de procura de terras pelos citadinos de Maputo e Matola principalmente nas regiões do distrito de Marracuene e Beluluane distrito de Boane, neste último atraídos pelo efeito MOZAL, os líderes comunitários despertaram e tomaram dianteira na tomada de decisões sobre as

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Trata-se de um processo que envolve esquemas muito sofisticados que é difícil obter estatísticas certas, mas uma coisa certa e que é de domínio comum é que a terra em muitas zonas de Moçambique e em particular na Província de Maputo que tem um elevado valor em todas as áreas de actividade devido á pressão infligida pelas cidades de Maputo e Matola 346 e por isso está a ser objecto de esquemas de transacções clandestinas.

Este fenómeno contaminou também as comunidades locais pressionadas pelos residentes das duas cidades que demandam terra na periferia de Maputo e Matola que, movidos pelo desejo de ter terra oferecem valores cada vez mais aliciantes aos camponeses.

Apesar de ser difícil obter dados que nos confirmem o nosso argumento devido á complexidade do assunto, desde 1998 temos vindo a acompanhar a evolução do mercado de terras na Aldeia Mahubo 25 de Junho em Boane que vamos passar a abordar alguns casos que conseguimos acompanhar.

3.1.Sinais de mercado de terras na aldeia Mahubo 25 de Junho em Boane.

Considerando que os sinais de existência de transações sobre a terra existem espalhadas por toda a província de Maputo o que torna difícil a sua abordagem sem cairmos na especulação, optamos por concentrar a nossa atenção num estudo de caso com incidência na aldeia 25 de Junho. A aldeia 25 de Junho é um sítio que temos visitado com assiduidade desde 1998 porque nela vivem pessoas com quem temos ligação de afinidade e podemos acompanhar e registar a evolução de sinais de transações sobre terras gozando da confiança que as pessoas nos vão depositando.

Esta aldeia situa-se no Posto Administrativo Eduardo Mondlane, Distrito de Boane, Província de Maputo, com cerca de 4.000 habitantes. A aldeia foi organizada nos finais da década de 80 do século passado, albergando maioritariamente antigos trabalhadores de extintas empresas estatais falidas ou privatizadas347 nas Cidades de Maputo e Matola na sequência da entrada em vigor da economia de mercado em Moçambique.

Eles encontraram ali uma alternativa imediata para realizarem alguma actividade de rendimento usando a terra para a sua sobrevivência, numa altura em que o retorno ás suas terras de origem348 era arriscado devido á situação de guerra que se vivia no País. A aldeia no tempo da sua fundação era dirigida por N. Matsolo, que devido á idade e por ser doentio viria a ser substituído pelo seu filho M. Matsolo em 2004, mesmo antes do seu falecimento. A composição dos habitantes da aldeia é a seguinte:

suas terras e os representantes de cadastro no distrito passaram a uma espécie de “testas de ferro”, com papel de angariar interessados que eram canalizados aos líderes comunitários para negociarem, cabendo ao técnico de cadastro a organização do processo técnico e administrativo, obtendo dai dividendos.

346 Aliás, é de domínio geral que em todo o País nos locais onde há maior procura de terra especialmente nas zonas urbanas, a terra tem elevado valor e é clandestinamente transaccionada.

347 O processo de privatização provocou em muitos casos a racionalização da força de trabalho excedentária com recurso á indemnização. Esta força de trabalho caiu no desemprego ou no subemprego passando a realizar actividades informais. A procura de espaço no campo perto das cidades de Maputo e Matola visava permitir que enquanto o homem desempregado se dedicava a actividades informais na cidade, a esposa radicava-se no campo onde fazia machamba para complementar o rendimento familiar.

348 Este grupo de cidadãos que serviu de base para a criação da aldeia Mahubo 25 de Junho é oriundo maioritariamente das províncias de Gaza e Inhambane.

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Naturais da zona que tendem a ser uma minoria a favor de novos ingressos de hóspedes;

Hóspedes que participaram na fundação da aldeia;

Novos hóspedes que chegaram depois da guerra, particularmente no fim da década 90 do século passado.

Nova vaga de hóspedes.

A gestão da terra é feita principalmente pela família Matsolo que toma as decisões em última instância, considerando que a aldeia está estruturada em chefes de 10 casas e de quarteirão, que podem não ser da família Matsolo, mas tomam decisões a seu nível que devem ser reportadas á autoridade tradicional.

Os hóspedes que participaram na fundação da aldeia quase que beneficiaram de distribuição gratuita da terra para habitação e para o cultivo, chegando a dispor de muitas parcelas na periferia da aldeia, passando praticamente a confundirem-se com os naturais da zona.

Depois dos acordos de paz com o fim da guerra e a restauração de um ambiente de estabilidade nas zonas de origem ou por surgimento de novas oportunidades de emprego, muitos aldeões começaram a abandonar os seus terrenos na aldeia, uns vendendo-os outros abandonando-os simplesmente.

Este movimento gerou a categoria de novos hóspedes. Mas além deste grupo temos o grupo de nova vaga de hóspedes que é gerada por aqueles terrenos que vão sendo vendidos pelos fundadores da aldeia e pelos novos hóspedes, porque a partir de uma determinada altura que as pessoas despertaram o conhecimento de que a terra tem valor, normalmente já não se abandona o terreno sem o seu trespasse a título oneroso.

Um aspecto de realce é que os terrenos vendidos devem ser ocupados e usados de imediato, pois passado um lapso de tempo variável sem que a terra seja utilizada, as autoridades voltam a vendê-la a um outro interessado. Há uma espécie de uma postura aldeã informal por ser uma regra não escrita. Os terrenos não usados e os aparentemente abandonados são transaccionados pelos dirigentes a partir da base, com dividendos bem estabelecidos que só são do domínio do elenco.

Para entrar e residir na aldeia há uma regra a cumprir, que é a de o hóspede ter que se apresentar ás autoridades comunitárias com vista a informá-las e elas poderem reconhecer e integrá-lo como novo membro da aldeia.349

Esse ritual é feito através de pagamento de um valor monetário que foi variando com o tempo350, que é repartido entre as hierarquias e é de uso colectivo para adquirir algumas bebidas e comidas com o objectivo de dizer aos espíritos que um novo membro chegou na comunidade.

Isso deve ser feito mesmo nos casos de transmissão particular feita entre indivíduos. Admite-se que as pessoas façam o seu negócio, mas depois de fechá-lo e receber dinheiro, o dono do negócio deve se dirigir ás autoridades com o valor da praxe para anunciar a entrada de um novo ocupante, apresentando-o simultaneamente. O valor que vai ás autoridades normalmente está

349 Aliás, esta é a prática comum em todas as zonas da Província de Maputo. A consulta ás comunidades locais acaba ultrapassando o simples acto de auscultação para fins processuais, passando a ser um acto de apresentação e reconhecimento do novo membro que vai entrar na comunidade.

350 Em 1998 o valor para apresentação aos anciãos da aldeia era de 150.000 meticais da antiga família, nos dias de hoje esse valor saltou para 1.000 meticais da nova família.

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incluso no preço da venda que depois o vendedor irá deduzir. É uma espécie de IVA informal. Mas há casos em que o comprador deve arcar á parte a despesa da sua apresentação ás autoridades comunitárias.

Afinal o que é que se vende? O objecto que camufla o negócio da venda de terras são aparentemente benfeitorias que incluem o desbravamento do terreno e as árvores de diversas espécies, embora sem nenhuma expressão numérica e económica. Mas muitos casos são da venda de uma floresta e aqui se argumenta que ali ele retira combustível lenhoso que por sinal é escasso na zona, do qual ficará privado com a transmissão do seu direito. Importa realçar que os membros da comunidade estão plenamente cientes que a terra é propriedade do Estado, cuja venda é proibida.

Feito este intróito passamos a apresentar alguns casos de transacções de terra em Mahubo 25 de Junho.

Caso 1

Srª. A. Mauele

A Senhora A. Mauele decidiu em 1998 procurar um terreno na aldeia de Mahubo para construir uma habitação e plantar árvores de fruto. Depois de contactos foram-lhe indicados dois pequenos talhões351 limpos cada um com algumas árvores de fruto que não passavam de 5 por talhão. Um talhão custou 600.000 meticais da antiga família e outro 500.000 meticais da antiga família. Por cada talhão tirou mais 150.000 meticais da antiga família para as autoridades. Em 1999, a Srª A. Mauele quis ampliar o seu espaço para construir um curral de animais e plantar mais árvores. Havendo um terreno adjacente aparentemente abandonado, aproximou-se de R. Madindane, chefe de 10 casas para manifestar o seu interesse em ocupar aquele espaço. Depois de negociações que foram levadas á decisão superior ao nível de quarteirão, o pedido foi aceite mediante cobrança de 800.000 meticais da antiga família.

Entretanto, em 2005 o seu vizinho R. Matsinhe com terreno situado noutro extremo que por sinal aquele que se comunica com a via principal, apresentou-lhe a proposta da venda do seu terreno com aquelas dimensões normais a que nos referimos acima. Fechado o negócio, foi paga a quantia de 5.000.000 de meticais da antiga família. Neste caso o onus de pagamento ás autoridades pesou sobre o vendedor, pois ele tinha obrigação de ir comunicar a elas que já não se encontrava mais naquele local.

Caso2

Srª C. B.Munguambe

Em 1999, a Srª C. Munguambe pretendeu adquirir um terreno para construção de uma casa e fazer alguma agricultura . Ela é uma anciã desempregada, com mais de 60 anos de idade que optou por viver no campo onde pode produzir alguma coisa para o seu sustento.

Contactado o Sr. N. Matsolo, líder comunitário, ele apontou o terreno que fora usado como local de reuniões da aldeia, mas que foi trocado por um outro localizado no recinto da escola primária local, quando esta foi construída em alvenaria.

O terreno foi lhe disponibilizado gratuitamente, mas havia três pessoas que faziam machambinhas complementares352 dentro do mesmo e estes exigiram pagamento de 150.000,

351 Os talhões daquela aldeia são maioritariamente pequenos variando no mínimo de 20x25m.

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300.000 e de 500.000 meticais da antiga família para os respectivos terrenos de modo a compensar o custo de desbravamento.

Questão interessante é que no espaço que custou 150.000 meticais o montante foi entregue á mulher que era ela a trabalhar aquele local, mas mais tarde apareceu o Sr. BB. Sitoi, marido da Senhora em causa a reclamar que ele não reconhecia o pagamento feito á esposa porque deveria ter sido feito a ele.

Porque não se alcançava entendimento e apesar de o Sr BB. Sitoi encontrar-se de má fé, foi preciso proceder-se a um duplo pagamento, porque segundo a Srª C.Munguambe, privilegiava a busca da paz social.

Entretanto, em 2002 apareceu o Sr. M. Vilanculo a vender a sua parcela adjacente numa das extremidades do terreno da Srª C.Munguambe de dimensões inferiores ao terreno adquirido em 1999, cobrando por essa transacção a quantia de 900.000 meticais da antiga família, o que foi aceite. Coube ao vendedor comunicar as autoridades sobre a consumação do negócio.

Caso 3

Srª B.C.Uamusse

Esta Srª precisou de adquirir um terreno para construir uma casa e um curral para o gado bovino em 2004, porque esperava receber animais que adquirira no distrito de Mavalane em Gaza.353 Contactada a autoridade comunitária, esta vendeu a ela um terreno abandonado pelo seu dono por ter emigrado para África do Sul por 3.000.000 de meticais da antiga família.

Infelizmente o gado da Srª B.C. Uamusse morreu vítima de uma epidemia não especificada e deixou de ter interesse pelo terreno. Como alternativa vendeu-o á Srª G.Nhamagune, pessoa do seu conhecimento pelo valor com que comprara o terreno. A nova compradora não investiu logo no terreno de tal forma que em 2008 foi revendido pela autoridade a uma outra pessoa, cujo montante não conseguimos apurar.

Caso 4

Srº A.Ngovene

O Srº A. Ngovene tinha um terreno onde implantara uma casa construída por material precário, com cobertura de chapas de zinco. Nos princípios de 2006 decidiu abandonar a aldeia de regresso á sua terra natal. Nessa perspectiva vendeu a sua casinha e árvores de fruta por 10.000.000 de meticais da antiga família ao Srº J. Lavieque. Aqui pelo menos havia algum investimento feito.

Caso 5

Srº A. Chiziane

352 Complementares porque eles tinham as suas machambas principais noutro sítio e ali estiveram a trabalhar por acordo com o líder enquanto não quisesse dar destino ao terreno.

353 Muitas famílias em Mahubo possuem gado bovino e caprino que é apascentado no terreno reservado á pastagem comunitária.

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Este caso passou-se fora da aldeia de Mahubo, precisamente na zona chamada Salina a 4 kms da aldeia. Trata-se da zona onde a população faz agricultura, mas também vivem populações dispersas. Aqui a autoridade comunitária aparentemente dona das terras é o Srº M. Tembe.

Na Salina o Srº A. Chiziane foi convidado para ficar com o terreno e benfeitorias da Srª O. Jaime, sua familiar. Ele começou a trabalhar a terra em 1998, mas ao ocupar o terreno cedido achou que o mesmo era pequeno para as suas ambições.

Aconteceu que no espaço adjacente ao seu terreno havia um matagal pertencente a L. Cossa, que podia prolongar o seu sem descontinuidade. Avaliada a viabilidade de anexação, ele abordou a vizinha que acabou fechando o negócio por 600.000 meticais da antiga família.

Concluído o negócio iniciou o desbravamento do terreno na campanha 1998/99. Só que o espaço comprado era parte de uma área maior por desbravar. Isso levou o Srº A. Chiziane a encetar novas negociações com a Srª L.Cossa em 2000, para que lhe vendesse a parte restante. Houve concordância em vender, mas desta vez por 2.000.000 de meticais da antiga família, um pedaço de terra inferior em relação ao primeiro vendido em 1998.

Em 2003, o Srº J. Munguambe, um outro vizinho que fazia limite num dos extremos laterais do terreno do Srº A. Chiziane, propôs-lhe a venda de um pedaço de floresta com vista á ampliação do seu terreno por 1.500.000 metiais da antiga família, tendo sido aceite.

Caso 6

J.Nimuire

Ainda na zona de Salina, o Srº J. Nimuire residente na cidade de Maputo, adquiriu nos finais da década de 90 do século passado, um terreno não se sabe a que preço. Ele fez algumas actividades mas cedo começou a ter dificuldades de dar seguimento ás mesmas, mas deixou um guarda. Não estando a ser explorado o terreno, o Srº M. Tembe o subdividiu em 2008 e pôs as parcelas á venda por 20.000meticais da nova família cada.

Este conjunto de casos reais serviu para demonstrar que na realidade existe um mercado de terras que está a florescer e crescer á medida que as pessoas vão ganhando consciência do valor da sua terra, a avaliar pela tendência de crescimento dos valores que são cobrados. Em Mahubo não é possível hoje adquirir-se terra a título gratuito.

Analisamos o caso Mahubo porque tivemos a possibilidade de recolhermos informalmente as informações ao longo do tempo, pois doutra forma não se consegue abrir as caixas negras deste negócio.

Hoje está a ficar costume naquela aldeia e não só, que para alguém ter acesso á terra seja para que fim for deve pagar alguma coisa. O nosso sentimento e de acordo com as percepções reais que vamos obtendo no decurso deste tempo que lidamos com as questões de terras é de que o negócio de terras que se faz em Mahubo, também se pratica noutros cantos do distrito de Boane e da Província de Maputo.

A pergunta que se coloca é, afinal o que é que se compra? Na nossa opinião vende-se e compra-se o direito de ocupação da terra, porque estes negócios sobre terrenos eles ocorrem, mas o direito de propriedade do Estado sobre a terra não é afectado.

Um aspecto importante é que independentemente das negociatas ocorridas, as pessoas adquirentes quando pretenderem oficializar o seu direito de uso e aproveitamento da terra têm que

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o requerer ás entidades competentes como se nunca tivesse acontecido nada. Pelo menos é o que aconteceu com dois dos casos que apresentamos acima quando quiseram oficializar o seu direito.354

A vantagem destas práticas é a nosso ver a prevenção de conflitos com as comunidades do que se fosse o Estado a ter que proceder a distribuição daquelas terras. Na prática as coisas ocorrem e se harmonizam dentro da comunidade e o cumprimento das exigências impostas legitima o ocupante do terreno mesmo que não seja natural da zona. Aliás, a partir do momento que adquire o espaço obedecendo as exigências do seu dono, ele passa a adquirir automaticamente o estatuto de membro da comunidade.

Importa sublinhar porém, que estes negócios são celebrados contra as disposições legais imperativas, por isso no nosso entender são nulos.355 Entendemos ainda que além de serem negócios nulos, porque á luz da lei a terra não deve ser vendida e muitas vezes a venda da mesma parcela é feita a mais que uma pessoa, isso configura-se a um crime de burla, previsto e punido pela legislação penal em vigor no País.356

No conjunto das questões que analisamos nestes casos práticos, focamos as regras de apresentação do hóspede ás autoridades comunitárias, que exigem a entrega de algum valor monetário e bebidas aparentemente para pedir permissão de residência e para informar os espíritos de que um novo membro entra na comunidade. Esta prática é milenar nas comunidades africanas e Moçambique não é excepção á regra, por isso na actual legislação moçambicana sobre terras a gestão de terras comunitárias é feita de harmonia com as regras e práticas costumeiras. 357

Por causa dessa previsão legal e tendo em conta as tradições africanas enraizadas, somos de parecer que estas práticas de apresentação são lícitas porque têm cobertura legal.

3.2. É pertinente a manutenção do direito de propriedade a favor do Estado?

A questão da propriedade da terra como vimos acima é objecto de duas posições, a que defende a manutenção da propriedade a favor do Estado e a que defende a privatização da terra de modo a colocá-la no mercado livre ou pelo menos admitir-se a livre transacção de títulos.

A posição dos defensores da privatização resulta da ideia de que com a propriedade privada da terra se pode flexibilizar os negócios jurídicos com vantagens para o desenvolvimento do País, apontando como um dos vectores a possibilidade da hipoteca da terra na aquisição de créditos.

354 Trata-se dos terrenos de A. Mauele e C.Munguambe que submeteram pedidos de autorização ao abrigo da alínea c) do artigo 12 da Lei de terras. Depois do despacho do governador da Província de Maputo elas solicitaram a demarcação das suas parcelas unificadas e lhes foram passadas as licenças de ocupação.

355 Cfr o artigo 294º do c.c.

356 O número 1º do artigo 450º do código penal moçambicano, considera que há crime de burla quando alguém fingindo ser senhor de uma coisa, a alhear, arrendar, gravar ou empenhar. Neste caso em análise, apesar de a constituição reconhecer o direito á terra daquela comunidade por ocupação, a mesma constituição incluindo a lei de terras exclui a possibilidade de venda de terras seja por quem for. Nos termos do número 2º do mesmo artigo, também considera burla a venda de uma coisa a duas pessoas diferentes, seja mobiliária ou imobiliária, como o caso presente. Vimos que frequentes vezes houve casos de venda do mesmo terreno a mais de duas pessoas e a situação tende a ser mais grave á medida que a avidez pela acumulação financeira aumenta na liderança comunitária.

357 A lei 19/97, de 1 de Outubro, lei de terras, confere competência ás comunidades locais nos termos do número 2 do artigo 24 para gerirem os seus recursos naturais usando entre outras, as normas e práticas costumeiras.

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Por seu turno, os que defendem o actual regime de propriedade, argumentam que a privatização contraria o espírito da luta de libertação nacional e pode trazer como consequências a acumulação de terras nas mãos de um punhado de latifundiários nacionais ou estrangeiros, em detrimento da maioria da população que vive da exploração da terra. Teme-se ainda que se pode abrir porta para especulação da terra.

O nosso ponto de vista está a favor da manutenção do regime, primeiro porque é uma questão de soberania que com muita coragem a Constituição da República de 1975 logrou conquistar com todas as consequências que isso trouxe ao País como tivemos ocasião de nos referirmos acima. Segundo a necessidade de se prevenir que as populações sejam desprovidas de um recurso que constitui o seu principal meio de produção e de sobrevivência.

Julgamos que o que está por detrás da polémica e insistência sobre a privatização da terra não é porque o regime actual não dê segurança do direito. Quanto a nós existe garantia aos investidores e requerentes para exercício de actividades económicas uma vez que a autorização é dada por 50 anos renováveis, o que equivale na prática a uma espécie de um direito perpétuo e por tempo ilimitado desde que a terra esteja a ser usada.358

Todavia, parece-nos que a vontade das pessoas é terem propriedade privada da terra para independentemente de nela ter investimentos, poderem livremente transaccioná-la, ou não sendo possível, mantê-la ociosa sem interferência do Estado.

Por outro lado, para nós é vantajoso que a terra continue propriedade do Estado porque torna flexível o processo de acesso ao direito de uso e aproveitamento da terra pelos investidores que precisariam de comprá-las aos seus donos, especialmente quando se trata de jovens no início da sua emancipação desprovidos de recursos financeiros necessários para compra da terra se ela for privada.359

Há ainda que aprender e tirar lições de outros países vizinhos nomeadamente o Zimbabwe e a África do Sul que abordamos a sua problemática sobre o direito á terra que por vigorar a propriedade privada as suas populações rurais encontram dificuldades para disporem de terra pois a mesma se encontra nas mãos de latifundiários.

No que respeita á possibilidade de se usar a terra como garantia, é opinião assente que as instituições financeiras em Moçambique nem sempre deram muita importância á hipoteca da terra mesmo no tempo colonial.

O crédito foi e é dado de acordo com a viabilidade comprovada da actividade que se vai realizar, a garantia de controlo técnico dessa actividade e outros elementos que inspirem confiança á instituição de crédito.360

358 Julgamos que os defensores da privatização temem esta exigência de que a terra deve ser usada, pois se não for, o direito é extinto consoante prevê a alínea a) do nº 1 do artigo 18 da actual lei de terras.

359 De facto nas condições actuais de propriedade da terra a favor do Estado o acesso á terra encontra-se facilitado, porque independentemente da dimensão do terreno solicitado, o beneficiário paga apenas 600Mt da taxa de autorização provisória de acordo com o que dispõe a tabela 1 anexa ao regulamento da lei de terras, Lei n° 19/97, de 1 de Outubro. De acordo com a mesma tabela, a taxa para autorização definitiva é computada em metade da taxa de autorização provisória, o que significa que a aquisição e consolidação do direito faz- se por apenas 900Mt, valor que é acessível há maioria das pessoas.

360 A este propósito entrevistamos o Dr. Inocêncio Matavel, agricultor no distrito de Boane, criador de gado bovino no distrito de Matutuine, industrial na cidade de Maputo e presidente do pelouro de agro-negócios na

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No caso da agricultura que é o sector que se pensa que iria ser largamente beneficiado pela hipoteca da terra, é uma actividade de risco em Moçambique, por isso não atrai as instituições de crédito por temerem insucessos. Nos tempos que correm, as instituições de crédito preferem a instituição do sistema de seguro agrícola, que garantiria o retorno seguro dos créditos nos casos de fracasso.

No nosso entender, para investidores sérios não encontram constrangimentos no sistema actual de transmissão de direitos sobre a terra, uma vez que a lei previu mecanismos de transferência de direitos mas sob certos condicionalismos, entre eles da existência de construções, infra-estruturas e benfeitorias implantadas no terreno.361

Para quem pede terra com o objectivo de nela trabalhar e investir, facilmente poderá transaccionar o seu título. Todavia, o sistema burocrático dessas transacções poderia ser melhorado no sentido de flexibilizar a transferência dos direitos quando houver investimentos reconhecidos. Voltaremos ao assunto quando abordarmos o tema transmissão de direitos.

Terminamos a abordagem do sub tema propriedade da terra e tentamos trazer ao de cima as diversas questões que se levantam á sua volta. Estamos certos que pela sua complexidade não esgotamos tudo. Posto isto, passamos de seguida a fazer uma breve referência ao fundo estatal da terra.

4. Fundo estatal de terras.

Em primeiro lugar importa obtermos o entendimento do conceito fundo. Fundo deriva do latim fundus,362 querendo significar fundo, base, bens de raiz. Interessa para o nosso caso o último significado. Nesta perspectiva fundo quer dizer conjunto de bens imóveis, os terrenos os campos e as herdades. São os bens de fundo ou bens fundiários.

Para a lei moçambicana de terras, fundo quer significar toda a terra da República de Moçambique incluindo aquilo que no regime de propriedade privada da terra chamariam de res nullius. É um conceito que foi captado do direito soviético sobre a terra como já tivemos ocasião de nos referirmos neste trabalho. Como corolário de em Moçambique a terra ser propriedade do Estado, toda a terra situada em todos os cantos da República de Moçambique constitui fundo estatal de terras.363

Decorre desse facto que só o Estado pode determinar as condições de uso e aproveitamento da terra.364 Em obediência a este comando, só o Estado através dos seus órgãos e das autarquias locais podem autorizar o direito de uso e aproveitamento de terra ás pessoas interessadas. É uma

confederação das associações económicas(CTA), pessoa que defendeu o seu trabalho de fim do curso sob o tema”O direito de uso e aproveitamento da terra como garantia para o acesso ao crédito agrário”. Ele retirou desse trabalho a ilação de que o argumento de que se deve privatizar a terra tendo como fim a sua hipoteca como garantia do crédito é uma ideia ilusória porque os bancos fiam-se pela viabilidade económica. É por isso hoje que os bancos preferem financiar actividades com garantia de retorno rápido do capital investido como indústria, turismo e comércio.

361 Cfr o número 2 do artº 16 da actual lei de terras.

362 Op cit Plácido e Silva, página 333.

363 Cfr o artigo 4 da Lei n° 19/97, de 1 de Outubro.

364 É o que prevê o número1 do artigo 110 da actual CRM.

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responsabilidade da Administração estadual directa e não pode ser conferida á Administração indirecta tais como institutos públicos e empresas públicas.

5. Cadastro nacional de terras.

Antes de desenvolvermos este tema, importa visualizarmos o que se entende por cadastro de modo a obtermos melhor entendimento desta matéria. Consta que cadastro provém do latim medieval capitastrum, palavra da qual derivou a palavra italiana catasto, mas com sentido de censo que permite o lançamento de impostos devidos pelos proprietários de imóveis, o que lhe valeu a denominação de registo predial.365

Trata-se do registo de imóveis efectuado de acordo com as normas previstas na lei. A melhor definição é a que considera cadastro o registo dos prédios rústicos de uma localidade ou região com discriminação da sua extensão, qualidade e valor.366 Esta última definição é que corresponde ao cadastro nacional de terras que constitui objecto do nosso estudo.

5.1. história do cadastro

As referências do cadastro que conseguimos apurar fazem parte da notícia sobre o cadastro geométrico e jurídico da propriedade imobiliária na Província de Moçambique, publicada pela The South Africa Association for the Advancement of Sience, 1914, em Cape Town, tradução de Pedro Luís de Bellegarde da silva.367

Assim apuramos que os Serviços Administrativos de Moçambique foram reorganizados em 1907 o que permitiu:

A descentralização de poderes;

Iniciativas administrativas conferidas ao Governador Geral.

Com base nessas prerrogativas, o Governador Alfredo Augusto Freire de Andrade propos a remodelação do regime de concessão de terrenos, incluindo nesse processo a reforma do cadastro geométrico e jurídico, passando o cadastro a melhorar a prossecução dos seguintes objectivos:

Reconhecer no imóvel as condições da sua existência civil:

Exteriorizar as condições de existência civil de um determinado terreno;

Exteriorizar os direitos do possuidor da terra;

Exteriorizar os encargos que pesam sobre uma determinada parcela da terra;

Registar a sua existência real, ou seja, o que é que ele é, concretamente a sua identificação física e localização.

365 Op cit Plácido e Silva pág. 346.

366 J. Almeida Costa e A.Sampaio e Melo, dicionário da língua portuguesa, 6ª edição corrigida e aumentada, pág. 270.

367 Publicado no from The “ South African Journal of Since” September, 1914.

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Em termos simples podemos dizer que o cadastro é um inventário geral com vista ao registo da riqueza imobiliária, no caso do nosso estudo, dos prédios rústicos e seu conteúdo natural e artificial.368

A questão do cadastro, segundo o artigo que citamos acima, constitui matéria que sempre preocupou Administrações de vários Países e especialistas.

No meio dessas preocupações, surgiram doutrinas modernas sobre o cadastro sendo de registar aquela que defende um cadastro que prevê a ligação entre o cadastro administrativo(jurídico) ou registo público nas conservatórias em ligação com o cadastro geométrico dos direitos e encargos ligados á propriedade imobiliária. Esta doutrina defende que o cadastro deve possuir características de um documento único de leitura fácil contendo a planta do imóvel(esboço de localização no caso de Moçambique) e breves menções do seu estado jurídico(memória descritiva e informação técnica no caso moçambicano).

O cadastro de terras de Moçambique não respeita ao requisito de ligação entre o cadastro geométrico e jurídico porque na prática o registo geométrico é feito pelos Serviços Públicos de Cadastro, enquanto que o jurídico é feito pela Conservatória do Registo Predial e não há ligação intrínseca entre os dois registos e os titulares registam os sus direitos na Conservatória não a título obrigatório, porque para o registo jurídico segue-se o princípio de instância, pois ele é facultativo.369

Lembremos que a política nacional de terras preconizava que uma das tarefas da Comissão Interministerial de revisão da lei de terras era a criação de um cadastro de terras único entre as várias instituições, interligadas por uma rede de informática. Este objectivo não foi realizado e pensamos que seria a via para que houvesse a ligação entre os dois cadastros.

5.2. Situação actual do cadastro.

A Lei 19/97, de 1 de Outubro, dispõe que o cadastro nacional de terras deve registar os dados que permitem:370

Conhecer a situação jurídica e económica das terras;

Visualizar os tipos de ocupação da terra, o seu uso e aproveitamento;

Registar a fertilidade dos solos, manchas florestais, reservas hídricas, de fauna, zonas de ocorrências mineiras e de aproveitamento turístico;

Organizar uma adequada utilização, sua protecção e conservação;

368 Entendemos conteúdo artificial as construções e outros melhoramentos nele incorporados e naturais os recursos naturais existentes susceptíveis de registo.

369Op cit, artigo 4 do CRP.

370 Cfr o artº 5 da Lei n° 19/97, de 1 de Outubro.

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Identificar as zonas ecológicas adequadas para determinadas culturas especiais.

Em última análise, incumbe ao cadastro nacional de terras, a qualificação económica de todas as informações por ele recolhidas e registadas de modo a servir de instrumento de planificação e distribuição dos recursos naturais do País.

5.2.1. Qual é a realidade do cadastro nestes últimos anos?

Em primeiro lugar é preciso sublinhar que como requisito prévio é preciso investir recursos humanos, financeiros e materiais significativos, dirigidos á organização e funcionamento do cadastro. Em segundo lugar é necessário que haja acção e empenho dos sectores responsáveis com vista a dar substância á organização e alimentação do cadastro.

Embalados pela euforia criada apôs a aprovação e entrada em vigor da nova lei de terras e graças á cooperação que se vinha desenvolvendo com a Swed Survey do Reino da Suécia com o financiamento da Agência Sueca de Desenvolvimento Internacional(ASDI), havia sido esboçado pela DINAGECA, um programa de digitalização do cadastro nacional de terras, começando pela criação de uma base informática de terras de modo a facilitar a gestão deste recurso em todas as dimensões.371

Foi feito algum trabalho significativo entre 2000 e 2004 no sentido de digitalização do cadastro e nesse período a melhoria dos serviços de cadastro esteve na linha das prioridades. Não é o que encontramos durante o trabalho de avaliação, cujo panorama é o seguinte nos Serviços de Cadastro da Província de Maputo372:

A base de dados criada no âmbito de informatização do cadastro de terras não funciona porque o sistema não teve recursos para a sua manutenção, nem para adquirir os imprescindíveis ante virus;

Com vista á realização do trabalho de cadastro no campo(reconhecimentos técnicos para elaboração de esboços de ocupação, delimitações de terras e demarcações) não dispõe de dinheiro para pagamento do aluguer do sinal do GPS.373

Falta de material de campanha para recolha de dados necessários ao cadastro(Tendas, geradores, candeeiros, máquinas fotográficas e etc).

Falta de meios de transporte para um trabalho essencialmente de campo(só dispunha em 29 de maio de 2009, de uma viatura adquirida em 2002).

Instalações dos serviços de Cadastro muito pequenas.374

371 De referir que a ASDI passou a canalizar os seus recursos via PROAGRI desde 2001, o que quanto a nós passou a fragilizar o financiamento ás actividades do cadastro.

372 Entrevista com Eleutério Francisco Marta Felisberto, Chefe dos Serviços Provinciais de Geografia e Cadastro de Maputo.

373 Segundo a Drª Diamantina Banze dos Serviços Provinciais de Geografia e Cadastro de Maputo, o custo anual de aluguer do sinal na África do Sul era estimado em 14.000 Rands no início de 2008, um valor que cremos que o Estado pode suportar sem grandes problemas.

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Além das questões acima arroladas, ouvimos o engº Manuel Ferrão, Director Nacional do Centro Nacional de Cartografia e Teledetecção para fazer o ponto de situação do cadastro de terras.

Na sua óptica, que aliás é opinião comum dos técnicos da área das engenharias geográficas,375 um bom cadastro está intimamente ligado á existência de uma boa rede geodésica e consequentemente de uma cartografia adequada aos fins que se pretende. O que se passa nesta momento é que não há sensibilidade no seio da cúpula da Administração Pública para com as questões de gestão correcta da terra, um recurso fundamental para qualquer investimento.

O país necessita de investir numa cartografia adequada para o registo de todo o tipo de ocupação de terras. Segundo o engº Manuel Ferrão, o país precisa de cartografia adequada para registar as parcelas do sector familiar que é o maior utilizador da terra neste País com dimensões pequenas.

Presentemente as cartas geográficas existentes e em uso no país para o cadastro de terras rurais são de escalas de 1/50.000, 1/100.000 e de 1/250.000, o que não é adequado para o registo de parcelas pequenas dando aso a sobreposições de lançamentos resultando daí frequentes conflitos de terras.

Na entrevista que nos foi proporcionada por Filipe Paque, geómetra e técnico dos Serviços Provinciais de Geografia e Cadastro de Maputo, obtivemos a informação de que com vista a um correcto registo de parcelas dos camponeses os serviços precisam de cartas de escala 1/5.000.

O engº Manuel Ferrão concorda com essa ideia adiantando que para a digitalização do cadastro de terras eles precisam de elaborar a carta 1/5.000 e para o registo cadastral em geral precisam de uma carta á escala de 1/10.000. Ele adiantou que foi com esse objectivo que elaboraram uma proposta de projecto que foi submetida ás instâncias superiores para financiamento, mas ainda sem sucesso.376

374 São 4 compartimentos de 3x3 em média para albergar mais ou menos 34 funcionários, o que corresponde a uma média de 8 técnicos por gabinete o que não contribui para a produtividade laboral.

375 Na verdade, todos os técnicos que abordamos são dessa opinião. Além do engº Manuel Ferrão do Cenacarta, entrevistamos o engº Salvador Jossias e o Dr. Eusébio Tumuituquile, ambos técnicos dos Serviços Centrais de Cadastro de Terras na Direcção Nacional de Terras e Florestas, com funções de chefes de Departamento de Agrimensura e de Cadastro respectivamente e ainda a engª Paula Santos Do Instituto de Investigação Científica Tropical de Portugal(IICTP), esta última entrevistada no seu gabinete em Lisboa. De notar que o IICTP esteve ligado á DINAGECA na década de 90 num protocolo de cooperação na área de densamento da rede geodésica de Moçambique que por falta de fundos essa cooperação ficou interrompida nos primeiros anos desta década. É dessa forma que ela é uma pessoa que conhece Moçambique, particularmente na área de geodesia e cadastro. Todos estes técnicos consideram que um bom cadastro depende essencialmente de uma boa rede geodésica e consequentemente de uma cartografia apropriada, o que requer elevados e persistentes investimentos.

376 Ele é de opinião que há uma base material constituída por fotografias aéreas e outros, mas que precisam de actualização. Ele referiu no entanto que falta concluir a fotografia aérea do bloco Niassa Cabo Delgado.

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O panorama actual aponta que o Cadastro nacional de terras ainda não responde aos requisitos previstos na lei de terras. Segundo o Dr. Eusébio Tumuituquile, o cadastro nacional de terras contempla apenas os dados relativos á ocupação de terras agrárias fundamentalmente e não abarca ainda as questões como de ocupação mineira e outros que continuam a ser feitas pelos sectores especializados.

O cadastro nacional único e multi-funcional previsto na PNT como já vimos acima, ainda não foi concretizado. É nossa opinião que mesmo que não se crie uma instituição única, é possível um cadastro nacional único e multi-funcional através da sua alimentação pelos sectores especializados, mas isso exige no nosso entender, uma regulamentação de modo a permitir que esses enviem os dados a serem lançados no cadastro nacional de terras de forma disciplinada e obrigatória.

O Dr. Hassane Abichande técnico de cadastro de terras na Província de Maputo, pronunciou-se no sentido de que um dos elementos fortes do cadastro era o sistema de informatização que com muito esforço e dificuldades se tinha conseguido montar. Uma das questões importantes que o sistema permitia era a facilidade de identificação das parcelas, seus titulares incluindo o valor das taxas devidas. No que respeita ás taxas do direito de uso e aproveitamento da terra, com a perda do sistema informático houve momentos em que não se sabia quanto é que o interessado tinha por pagar.377

Ele referiu-se do grande constrangimento enfrentado pela falta de demarcação de terrenos pelos requerentes autorizados o direito de uso e aproveitamento da terra, o que fragiliza a actualização do cadastro e se presta a favorecer os conflitos de terras.

O facto de um requerente pedir uma determinada área e mediante a elaboração de um esboço e posteriormente autorizado essa área, esse dado não é exacto enquanto não for feita a demarcação.

Mantendo-se os registos cadastrais com base nas áreas resultantes de reconhecimentos técnicos, esse acto fica falseado porque muitas vezes as áreas reconhecidas, quando for efectuada a demarcação apresentam-se maiores ou menores. Por isso, o instrumento de certeza e fiável é a demarcação.

De facto, é nosso ponto de vista que a questão da falta de demarcação é preocupante e notória. Por exemplo, dos 60 processos de terras que tivemos oportunidade de analisar no contexto de recolha de dados para este trabalho, deparamos apenas com apenas 2 processos legais de terra que possuem indicação de que houve uma demarcação. Ficamos com esta sensação de que as demarcações não estão a ser encaradas com prioridade talvez porque também representam um custo financeiro bastante elevado para os requerentes como nos referiremos quando falarmos das demarcações.

Na nossa opinião, a legislação moçambicana de terras deveria ter seguido o regime do ROCT, que impunha como condição para se requerer o direito de enfiteuse, a realização de uma demarcação provisória por conta e risco do interessado mediante licença atribuída pela entidade competente.378

377 A solução adoptada para se saber quanto é que um titular tem a pagar, é de exigir que ele traga o último recibo do pagamento do ano anterior.

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A demarcação provisória podia também ser feita ex officio pelas entidades oficiais mediante decisão do governador de modo a permitir uma posterior alocação dos investidores nas parcelas demarcadas. Essa demarcação provisória era feita nas zonas que havia muita concorrência de investidores e pretendia-se evitar sobreposições e conflitos.

Mas também ao exigir-se que nas zonas não consideradas de maior pressão os particulares deviam obrigatoriamente proceder á demarcação provisória, tinha-se em vista ter a certeza de que ao demarcar-se determinada terra sem ter surgido um conflito ou contestação é porque a mesma aparentemente se encontrava livre. Era pois uma forma de prevenir conflitos que o sistema actual em vigor em Moçambique não permite. Por outro lado, ao se fazer a demarcação provisória arcando custos, dava um sinal mínimo de que o requerente tinha alguma capacidade para investir.

A falta desta exigência elementar379 no sistema actual faz com que pessoas sem a mínima capacidade açambarquem terras porque o processo da sua aquisição é quase gratuito como tivemos ocasião de nos referirmos neste trabalho.

A imposição e obrigação de demarcar o terreno pelos requerentes durante o período de vigência de autorização provisória á luz da actual legislação sobre terras, apesar de ser obrigatória e sancionada com o cancelamento do direito se no prazo de um ano não se demarcar, na prática a norma não é observada porque o sistema de fiscalização e de actuação da Administração Pública é frágil.

Esta norma é imperativa, mas peca-se por não ser imposta aos requerentes antes de serem autorizados a licença de utilização provisória. Cientes de que o sistema de fiscalização e actuação são fracos, as pessoas se acomodam nos terrenos não demarcados porque essa omissão não afecta a sua actividade, antes pelo contrário beneficiam da possibilidade de não arcar com um custo.

Entretanto, enquanto não se normalizar este requisito, através de potenciação dos Serviços Públicos de Cadastro com recursos humanos, financeiros e materiais para fiscalização e adopção de medidas coerentes pelos órgãos de Administração Pública com vista ao cancelamento dos processos dos prevaricadores, a anarquia vai continuar com prejuízos para a melhoria da qualidade do cadastro nacional de terras. Mais adiante voltaremos a falar desta questão quando abordarmos a demarcação e fiscalização.

Desta abordagem podemos concluir que o cadastro nacional de terras ainda não responde aos anseios da Administração Pública, de servir de instrumento que constitui um depositário de conhecimento das potencialidades de recursos naturais de que o País dispõe e de fonte de informações para a planificação do desenvolvimento do País. O sonho de

378 Cfr os artigos 72º e 74º do ROCT.

379 O regulamento da actual lei de terras, estatui no seu artigo 30 que efectuada a autorização provisória no caso do direito adquirido ao abrigo de autorização de um pedido, os Serviços Públicos de Cadastro devem notificar o requerente instando-o da necessidade de demarcação do seu terreno no prazo de um ano, com recurso aos técnicos dos Serviços Públicos ou recorrendo aos agrimensores ajuramentados, findo o qual sem que o faça, será advertido da eminência do cancelamento do processo, gozando o requerente da prerrogativa de pedir a prorrogação do prazo que, havendo motivos justificados lhe deve ser concedido por 3 meses improrrogáveis.

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organização de um cadastro nacional único e multi-funcional continua um projecto e não uma realidade.

A melhoria e aperfeiçoamento do cadastro nacional de terras requerem um enorme investimento em recursos humanos, financeiros e materiais. È uma obrigação que impende sobre a Administração Pública moçambicana. Todavia, sentimos pelos contactos que fizemos com os fazedores do cadastro que pouco se tem feito em termos de investimentos bem estruturados nesta área.380

Há, via de regra, garantia de orçamento de funcionamento dirigido a despesas fixas, que não pode ser usado para fins de investimento. Somos de opinião que uma mudança de procedimento deve operar-se, se se pretende assegurar que este instrumento seja aperfeiçoado a fim de servir de uma fonte de dados com vista á gestão dos recursos naturais importantes para o presente e futuro de Moçambique.

A produção de alimentos que constitui a prioridade do actual governo com objectivo de assegurar o direito á alimentação a todos os cidadãos, só pode ser possível através da segurança de posse da terra e sem conflitos pelas pessoas, o que pode ser assegurado por um cadastro de terras coerente, eficaz e transparente, para que sirva de farol ao lançamento de projectos e programas.

Terminada a abordagem do sub tema cadastro nacional de terras, obedecendo á estrutura revista do trabalho adaptada depois do trabalho de campo, passaremos a analisar o domínio público do Estado á luz da legislação moçambicana sobre terras.

6. Domínio Público.

No prosseguimento de abordagem deste ponto, julgamos ser de interesse obter a noção de “domínio.” Esta palavra deriva do vocábulo latino dominium para significar

380 Referimo-nos aos investimentos bem estruturados aqueles que são feitos a partir do orçamento geral do Estado. Só assim se pode de uma forma sistemática e paulatina ao longo de um determinado período implementar programas de base para tornar o sistema eficiente. Não é na nossa opinião, uma responsabilidade que se deve legar para intervenções esporádicas de organizações internacionais. Sabemos que muitas organizações governamentais internacionais e não governamentais nacionais e estrangeiras têm feito intervenções ad hoc na área de terras, mas raramente com uma abordagem nacional. Por exemplo, decorre a cooperação no âmbito do projecto Milénio Challanger Account financiado pelos Estados Unidos. Esse projecto elegeu as Províncias da Zambézia, Nampula, Cabo Delgado e Niassa e apoio institucional para elaboração da estratégia de cadastro nacional de terras que vai incluir uma nova informatização do cadastro nacional de terras. A questão que se coloca é que em matéria de gestão da terra todas as províncias do país têm os mesmos problemas e a Província de Maputo por causa da pressão das cidades de Maputo e Matola os problemas de gestão de terras clamam por uma prioridade de investimento. Nesse sentido, a nossa ideia é que a abordagem da gestão de terras neste projecto devia ser mais alargada. Um outro aspecto é que os Serviços de Cadastro e de Cartografia já elaboraram um projecto de elaboração das cartas á escala 1/5.000 e 1/10.000 para melhoria do cadastro de terras em especial das comunidades com o custo de 820.000 euros que não está a ter financiamento. È um pequeno projecto mas bastante estratégico para o sector. Daqui podemos retirar o entendimento de que nas nossas instituições há fragilidade de envolvimento de todos na preparação e discussão de assuntos de interesse comum. Muitas vezes as coisas correm da maneira como negociamos com o doador. Precisamos de dar a nossa visão positiva nacional e sectorial a ele.

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propriedade, direito de propriedade.381 Quando se fala de propriedade ou do direito de propriedade, pretende-se referir concretamente ao direito de propriedade que se detém sobre bens imóveis.

No sentido mais lato, domínio quer fazer alusão á soma dos poderes ou direitos que se tem sobre uma determinada coisa e nessa perspectiva pretende-se indicar indiscriminadamente todo o tipo de propriedade, quer seja móvel ou imóvel, significando a referência da propriedade por compreensão.

Entende-se que o conceito domínio só é admissível quando se trata de direitos reais, isto é, o direito de propriedade que se refere ás coisas corpóreas e materiais.382 O domínio é um direito absoluto erga omnes, na medida em que todas as restantes pessoas á excepção do seu titular encontram-se numa posição de sujeitos passivos com obrigação de se absterem de perturbar o uso e o gozo da propriedade a que ele se refere.

O conceito dominial tem várias acepções, mas para o nosso trabalho reputamos ser de interesse os conceitos de domínio iminente e de domínio público. Como domínio iminente entende-se ao direito que pertence ao Estado na sua condição de entidade soberana com poderes de desapropriar bens para satisfação de fins de utilidade pública com recurso á indemnização.383 Em relação ao domínio público quer se referir ao conjunto dos bens pertencentes ás pessoas jurídicas do direito público mormente o Estado e os Municípios, que se destinam ao uso comum pelas pessoas normalmente de forma gratuita, daí chamarem-se de bens improdutivos.384 Os bens de domínio público caracterizam-se também por não serem objecto de comércio jurídico e é um direito imprescritível.

6.1. Características dos espaços de domínio público

Pretende-se analisar o que são estes espaços, fazer referência á possibilidade de acesso aos bens de domínio público pelos particulares, o tipo de direito que se pode adquirir, possibilidade de transmissão entre vivos e mortis causa, prazo de utilização e extinção do direito para essa utilização.

6.1.1. Características e possibilidade de acesso pelos particulares.

Como regra, os espaços dominiais são de uso comum pela colectividade vivendo num território estadual ou municipal. Nesses casos de uso comum, o direito dos utilizadores é conferido pela lei através de uma norma geral e abstracta, de natureza imperativa.385 O

381 Op cit Plácido e Silva V1e2. pág.123. Ana Prata, dicionário jurídico V1 pág. 559, “domínio é um termo que a lei e a doutrina muitas vezes utilizam como sinónimo de propriedade.”

382 Idem, pág 124.

383 Idem, pág125.

384 Idem, pág. 126. Por seu turno, Ana Prata na sua obra já citada, pág.560, domínio público é “o poder que o Estado e outras pessoas colectivas de direito público têm sobre certas categorias de bens, submetidas ao direito público.” Na prática está subjacente nesta passagem a ideia de que domínio é um direito que incide sobre certos bens materiais.

385 Marcello Caetano, manual de direito administrativo V2, pág. 937.

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direito de uso privativo dos espaços dominiais não é um direito real. Ele é pela sua natureza, um direito de carácter obrigacional porque se baseia num vínculo que resulta de um acto unilateral do dono do espaço, ou de um contrato sinalagmático.

6.1.2. Acesso privativo pelos particulares.

A lei pode admitir excepções de acesso privativo ou uso privativo pelos particulares dos espaços cobertos pelos regimes dominiais através de um acto administrativo emanado de uma entidade competente, resultando num contrato administrativo, por meio de uma licença ou concessão.386

O direito de uso privativo dos espaços dominiais pelos particulares é, via de regra, a título oneroso, porque os beneficiários devem pagar taxas calculadas com base na área ocupada e nos benefícios a retirar.387

Na actualidade os critérios de fixação dos valores de pagamento evoluíram e se diversificaram no caso de Moçambique, porque ao nível dos vários municípios os mesmos são definidos nas respectivas posturas municipais que podem ser diferentes dos órgãos do Estado.

O exemplo de ocupação de espaços dominiais pode se reflectir no que tem acontecido em relação ás zonas de protecção como nos terrenos confinantes com as zonas marítimas, barragens, estradas, jardins públicos e outros, que encontramos pessoas a desenvolverem algumas actividades particulares construindo esplanadas, hotéis e outras utilidades. Essas actividades são desenvolvidas sob licença, concessão ou contrato que podem ser de curta ou de longa duração.

6.1.3. Prazos das licenças e das concessões nos espaços dominiais

Os prazos fixados ás licenças de exploração privativa dos espaços dominiais pelos particulares, concessões ou contractos de exploração, são variáveis. Todavia, a regra é que o prazo de exploração deve ser fixado tomando em consideração o tempo necessário para o retorno do que tiver sido investido no empreendimento. Se no investimento não se tiver despendido muitos recursos financeiros a sua duração pode ser curta, um mês a um ano. Mas de contrário o prazo deve ser dilatado para médio (15 anos) ou longo(30 anos).388

6.1.4. Transmissibilidade e extinção de direitos nos espaços dominiais

Os instrumentos que conferem direito de utilização dos espaços dominiais são transmissíveis entre vivos e mortis causa. No entanto, para que a transmissão entre vivos tenha eficácia jurídica, é necessário que se obtenha uma autorização prévia da autoridade competente sob pena de não o fazendo, incorrer-se á sanção de nulidade do negócio, salvo o caso de transmissão mortis causa que não requer esse tipo de autorização.389

386 Idem, pág. 938.

387 Idem, pág. 944.

388 Ibidem, pág.943

389 Idem, pág.944.

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É importante sublinhar que tanto a transmissão entre vivos, como a mortis causa, os prazos autorizados continuarão os mesmos inicialmente previstos, o que quer dizer que os novos beneficiários do direito somente aproveitarão o tempo que faltava usufruir pelo adquirente originário do direito respectivo. Trata-se de um direito que não beneficia o seu titular do direito de hipoteca sobre o terreno, mas permite-se que os beneficiários hipotequem os edifícios e obras construídas por eles no espaço dominial.390

O direito de uso privativo extingue-se no fim do prazo de autorização. É a extinção que preferimos apelidá-la de extinção natural. Também pode se extinguir por renúncia do titular do direito, por rescisão unilateral como resultado de aplicação de uma sanção devido a uma anomalia de comportamento ou por conveniência de interesse público superveniente.391

Quando o direito de uso privativo se extingue com o fim do prazo definido, duas soluções alternativas se podem adoptar, a primeira é obrigar o titular do direito a demolir as obras realizadas e desmontar os equipamentos ou instalações desmontáveis. Mas outra solução é a reversão para a entidade pública de todos os bens ou somente de bens imóveis com prerrogativa de o particular desmontar o material passível de ser desmontado.392

As consequências de uma extinção por sanção são de exclusão de qualquer indemnização com reversão a título gratuito dos bens. Também quando por interesse público se extingue o direito autorizado para ocupações precárias, não há direito á indemnização.

Sentido diferente se segue quando há extinção do direito por interesse público dos empreendimentos de longa duração, porque aí é necessário proceder-se á indemnização aos investimentos ainda por amortizar e aos danos inerentes, calculados com base no tempo em falta para o termo do prazo de autorização.393 É este regime que acabamos de estudar que se aplica aos espaços dominiais previstos na actual legislação moçambicana de terras que passamos a estudar.

6.2. Domínio público na actual legislação moçambicana sobre terras.

A actual legislação moçambicana de terras contempla a matéria do domínio público quer na Lei 19/97, de 1 de Outubro, quer no seu regulamento aprovado pelo decreto 66/98, de 8 de Dezembro e é, como tivemos ocasião de estudar retro, uma matéria prevista na Constituição da República de 1990, que serviu de base fundamental para elaboração desta lei de terras.394

390 Idem.

391 Idem, pág 945.

392 Ibidem.

393 Idem.

394 Cfr os artigos 35 da CRM de 1990, 7 e 8 da Lei n° 19/97, de 1 de Outubro e 4,5,6,7,8 do regulamento da lei de terras aprovado pelo Decreto n° 66/98, de 8 de Dezembro.

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Assim, a actual lei de terras trata a matéria de domínio público subdividida em duas categorias ou seja, zonas de protecção total(zpt) e zonas de protecção parcial(zpp), definindo as primeiras como aquelas que se destinam á conservação ou preservação da natureza e defesa e segurança do Estado e por exclusão encontramos as zonas de protecção parcial.395

Como zpt, encontramos em Moçambique as zonas destinadas á conservação da natureza como o Parque Nacional de Gorongoza e do Banhine, as Reservas do Niassa, de Maputo, de Chimanimani, marinhas de Bazaruto, Inhaca e de Ponta D’Ouro, só para citar alguns exemplos. Em relação ás instalações destinadas á defesa e segurança são várias espalhadas por todo o País.

O que temos em maior número são as zpp, que se encontram espalhadas pelo país tanto de domínio do Estado como das entidades municipais. A lei de terras considera zpp matérias que a CRM arrola como domínio público e as amplia com base no comando constitucional que preconiza que a lei pode criar outros bens de domínio público para além dos previstos na constituição.396

A actual lei de terras enumera os espaços dominiais previstos na Constituição e cria novos espaços, estabelecendo os limites e distâncias que neles se deve medir a área susceptível de ser domínio público. Dessa enumeração julgamos ser de interesse comentar algumas figuras trazidas pela lei de terras.

6.2.1. O leito das águas interiores, do mar territorial, da plataforma continental e da zona económica exclusiva.

Interessa-nos neste caso entender o que são águas interiores. A definição de águas interiores não a encontramos na própria lei de terras, mas podemo-nos socorrer do que a Convenção das Nações Unidas Sobre o Direito do Mar(CNUDM) e a lei do mar nos dizem sobre esta matéria.

6.2.1.1. O leito das águas interiores

Interpretando a CNUDM,397 constituem águas interiores de um Estado e neste caso de Moçambique as situadas no interior da linha de base do mar territorial. Por seu turno, a lei do mar em vigor na República de Moçambique define águas interiores nos mesmos termos que a CNUDM faz .398 Parece-nos que o legislador moçambicano ao elaborar a lei do mar, não fez mais nada do que conformar o ordenamento jurídico interno com a ordem jurídica internacional em matéria do direito do mar.

395 De novo cfr os artºs 6 e 7 da LT.

396 Cfr alínea g) do artº 35 da CRM de 90.

397 Cfr o nº 1 do artº 8 da CNUDM.

398 Alínea a) do artº 1 da Lei n° 4/96, de 4 de Janeiro, lei do mar.

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6.2.1.2. Mar territorial

Sobre o mar territorial também não vem explícito na lei de terras qual é o seu significado de modo a permitir o seu entendimento. Compulsando a mesma CNUDM, ela dispõe que mar territorial é a zona contígua que se situa entre o mar a dentro e o território de um determinado Estado, dentro dos limites do qual ele estende a sua soberania no leito, no subsolo e no espaço aéreo.399

Esta redacção corresponde á redacção inserida na lei moçambicana do mar em vigor.400 A lei internacional estabelece a medida da largura do mar territorial para 12 milhas, como medida máxima.401 Este comando legal foi acolhido pela actual lei do mar.402 Mais uma vez se destacada o acolhimento da ordem jurídica internacional na legislação moçambicana sobre a matéria.

6.2.1.3. Zona Económica Exclusiva

O conceito de zona económica exclusiva(ZEC) é outra figura que se torna importante trazer a este nosso trabalho o nosso entendimento. Entende a CNUDM que a zona económica exclusiva é a que se situa para além do mar territorial e a ele adjacente.

Estabelece ainda este dispositivo legal que na ZEC o Estado costeiro tem direitos de soberania para fins de exploração e de aproveitamento, conservação e gestão dos recursos naturais vivos ou não e o direito de exploração económica de determinadas possibilidades como a produção de energia a partir de água das correntes e dos ventos. Estabelece ainda o mesmo dispositivo legal que a largura da ZEC é de 200 milhas.403 Por seu turno, a lei do mar moçambicana estabelece a este respeito a mesma largura.404

6.2.1.4. Plataforma continental.

Em sede da CNUDM não encontramos tratada a matéria da plataforma continental. Entretanto, Plácido e silva considera no seu dicionário jurídico esta figura como plataforma submarina e a define como o leito do mar e subsolo das regiões submersas contíguas ás costas situadas além do mar territorial até uma profundidade de 200 metros ou 600 pés. Adianta ainda que é uma zona que a ONU estabeleceu para que os Estados cujos mares territoriais confinam com a zona da plataforma submarina, tenham a possibilidade de

399 Ibidem, artº 2 da CNUDM.

400 Ibidem, os números 1 e 2 do artº 4, da lei do mar.

401 Idem, artº 3 da CNUDM.

402 Idem, nº 2 do artigo 4 da lei do mar.

403 Idem, artºs 55, 56 e 57 da CNUDM.

404 Ibidem art° 9 da lei do mar.

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exercer o direito de exploração das riquezas naturais do subsolo do fundo do mar da plataforma, submetidos necessariamente ao seu controlo e jurisdição.405

O mesmo autor usa a designação plataforma submarina em contraposição á designação plataforma continental por a considerar imprópria por parecer que se aplica aos próprios continentes. Do nosso lado, a designação plataforma submersa, parece-nos ser aquela que se oferece a melhor entendimento. Várias são as vezes que pessoas questionam o que é a plataforma continental e outros de facto confundem a expressão com a crosta terrestre, o que afinal não é.

Nestes espaços que estivemos a estudar nesta secção, entendemos que apesar de o legislador da lei de terras ter sido meramente influenciado pelo legislador constituinte e arrolá-los, a matéria em causa não é de utilidade activa na medida em que na nossa opinião, as entidades competentes pela autorização do direito de uso e aproveitamento da terra têm pouca acção neles porque raramente podem atribuir licenças para o exercício de certas e determinadas actividades como prevê a lei.406

Julgamos que estas zonas têm maior intervenção nelas os sectores mineiro, petrolífero, de hidrocarbonetos, de pescas e de administração marítima, mas que entretanto, têm regimes jurídicos próprios e especiais em relação á legislação sobre terras, para licenciamento de direitos.

6.3. Restantes zonas de protecção parcial(ZPP)

Para além das categorias de espaços dominiais que acabamos de estudar, a lei de terras arrola outras, que no nosso entender são as que têm maior susceptibilidade de nelas se atribuírem licenças para o exercício de certas actividades407 sendo elas, as faixas confinantes com determinados cursos de águas interiores,408 com as nascentes de águas e com o mar territorial, terrenos destinados á montagem de equipamentos de interesse público nomeadamente, barragens e albufeiras, linhas fêrreas e suas estações, estradas, aeroportos e aeródromos, instalações militares e de defesa e segurança, terrenos onde se encontram instalados condutores para diversos fins e a faixa de 2 km ao longo da fronteira terrestre.

Nestas zonas não é permitida a aquisição do direito de uso e aproveitamento da terra, mas a lei permite que os particulares adquiram licenças para o exercício de certas e determinadas actividades, respeitando as regras doutrinais que tivemos ocasião de expender acima, como introdução a esta secção.

A criação destes espaços com as respectivas distâncias constitutivas das faixas de reserva, têm como objectivo por um lado prevenir danos ambientais como a erosão pela

405 Op cit, pág.377.

406 Cfr o artigo 9 da actual lei de terras.

407 Para mais detalhes cfr o artº 8 da actual lei de terras.

408 Dissemos determinados cursos de águas interiores porque de harmonia com o disposto na alínea a) do artigo 5 do regulamento da actual lei de terras, são incluídos na categoria das zonas de protecção as águas dos lagos e rios navegáveis e não quaisquer outros.

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acção do homem, mas também assegurar que ele não incorra riscos nos casos de zonas de instalação de condutores diversos, zonas militares e aeroportos.

Nos casos das estradas, além de prevenir os riscos de eventuais acidentes por despistes de veículos, também pretende-se que se mantenha uma faixa de reserva que venha a construir espaço para futura ampliação das rodovias sem ter que se recorrer á movimentação das pessoas ai instaladas e destruição das suas infra-estruturas eventualmente edificadas, muitas vezes com encargos para a entidade pública interessada por causa das indemnizações.

6.4. Constatações durante as pesquisas.

Era nossa intenção fazer uma análise processual nos Serviços Provinciais de Geografia e Cadastro de Maputo de modo a verificarmos se a regra de que nestas zonas não se adquire o direito de uso e aproveitamento da terra está a ser cumprida e ver quantas licenças especiais foram passadas ao longo dos dez anos.

Era também intenção ver se a partir dos respectivos processos conseguiríamos identificar terrenos sujeitos ás licenças especiais de modo a verificarmos in loco o respeito pela reserva das distâncias distintivas das zonas de protecção parcial. Como dissemos acima, a organização dos processos no cadastro local, não está classificada de acordo com a natureza dos assuntos o que dificultou a sua selecção.

Uma das questões que queríamos verificar era saber se os técnicos de cadastro ao realizarem as demarcações de terrenos que confinam com as zonas de protecção, respeitam as distâncias preconizadas pela lei.

Na impossibilidade de identificar terrenos nesta categoria a partir dos processos no arquivo, tivemos que fazer um trabalho de campo numa propriedade com 1.200 ha demarcada em 2008 no terreno de G.Nhantumbo, em Réngwe Sondwine, Posto Administrativo do Sábié, Distrito da Moamba, Província de Maputo terreno para fins pecuários.

Para nós, a verificação neste terreno foi muito importante primeiro porque a demarcação é recente e dava para testar se os técnicos evoluíram no conhecimento de modo a respeitar as normas sobre as ZP e segundo, porque a demarcação foi feita pelos técnicos dos serviços públicos de cadastro afectos ao Distrito da Moamba, na nossa opinião com especial dever acrescido de não cometerem falhas.

Este terreno é confinante com a conduta de gás natural de Temane na Província de Inhambane para Secunda na África do Sul. Sendo um espaço dominial destinado á instalação de um condutor subterrâneo de gás, a lei impõe a reserva de uma distância de cada lado de 50 metros de raio.409 Neste terreno esta regra não foi observada, pois os marcos foram fixados dentro da faixa de ZPP.

Para se evitar este tipo de situação somos de opinião que é necessária uma reciclagem constante dos técnicos e assegurar a fiscalização do trabalho dos mais novos como é o caso vertente, pelos técnicos antigos nos serviços munidos de experiência.

409 Cfr a alínea d) do número 1 do artº 6 do regulamento da actual lei de terras.

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Vista a figura de domínio público na sua configuração fundamental julgada útil para este trabalho, a seguir passamos a abordar a figura dos sujeitos de direito.

7. Sujeitos de direito

Em relação aos sujeitos de direito expendemos na parte geral deste trabalho e explicitamos que eles são susceptíveis de serem beneficiários do direito de uso e aproveitamento da terra desde que sejam pessoas jurídicas dotadas de personalidade jurídica e da necessária capacidade de exercício. Nesta parte especial não iremos repetir os aspectos teóricos e doutrinais que lá expendemos, passando de imediato a abordar a figura dos sujeitos de direito face á actual lei de terras.

7.1. Sujeitos nacionais

A matéria relativa ao acesso ao Direito de Uso e Aproveitamento da Terra(DUAT), vem prevista na lei 19/97, de 1 de Outubro, lei de terras.410 A primeira questão jurídica relevante que se nos coloca é de natureza constitucional.

De acordo com a Constituição da República de Moçambique de 1990 que vigorava aquando da aprovação da actual lei de terras, o direito de uso e aproveitamento da terra é conferido ás pessoas singulares ou colectivas com respeito ao seu fim social, ideia acomodada pela constituição de 2004.411 A actual lei de terras conformou-se com o comando constitucional de 1990, no que respeita á consideração dos sujeitos com direito á terra em Moçambique.

A Constituição diz que os sujeitos de direito terão acesso de acordo com o fim social, querendo com isso dizer que a terra pode ser destinada às questões sociais como educação, saúde e etc, mas também no nosso entender, para questões económicas por exemplo comércio, indústria, agricultura, silvicultura, minas, construção e outros.

Quer nos parecer que pelo fim social não quer se referir apenas ás áreas funcionalmente sociais como educação e saúde, mas sim no sentido mais amplo de todas as áreas que produzem bens e serviços para o benefício da sociedade.412

A lei de terras reconhece que podem ser sujeitos do direito de uso e aproveitamento da terra as pessoas nacionais, colectivas e singulares, homens e mulheres, bem como as comunidades locais. O conceito de comunidades locais, é novo, porque não o encontramos no ROCT(regulamento de ocupação de terrenos no Ultramar português, onde elas eram tratadas indirectamente como

410 Cfr o nº 1 do artº 10 da actual lei de terras.

411 Cfr o nº 2 do artigo 47 da CRM90 e nº2 do artº 110 da CRM de 2004.

412 Lucas Abreu Barroso e Outros, o direito agrário na constituição, pág. 25 e ss, é ideia assente que a propriedade da terra, que no nosso caso podemo-nos referir ao direito de uso e aproveitamento da terra, existe para perseguir um fim social. O fim social esbate o direito de propriedade sobre a terra, pois no caso de não se perseguir os fins em vista mesmo onde predomina a propriedade privada da terra, o Estado goza da prerrogativa de retirar esse direito aos particulares, só que mediante uma justa indemnização. No caso de Moçambique recorre-se á extinção do direito de uso e aproveitamento da terra por falta do cumprimento do plano de exploração sem direito a indemnização e com perda das benfeitorias não removíveis realizadas no terreno a favor do Estado de harmonia com o disposto na alínea a) do nº 1 e no nº 2 do artigº 18 da Lei n° 19/97, de 1 de Outubro, lei de terras.

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vizinhas das regedorias e na primeira legislação moçambicana sobre terras que eram consideradas sector familiar).

A expressão homens e mulheres expressa a vontade do legislador em defender os direitos da mulher moçambicana contra as formas de discriminação da mulher moçambicana no que respeita ao acesso á terra. É uma medida que corresponde aos princípios de igualdade entre os sujeitos de direito e de igualdade do género previstos na Constituição da República de Moçambique de 1990, no sentido de estabelecer a igualdade entre o homem e a mulher.413

A CRM de 2004 retomou estes princípios, tornando deste modo actual o tratamento que a lei de terras em vigor dispensa aos sujeitos de direito. Este princípio da defesa dos interesses da mulher em matéria de acesso ao direito de uso e aproveitamento da terra se sobrepõe ás práticas costumeiras. Quer dizer que mesmo nas comunidades onde o costume não respeita os direitos da mulher a este respeito, tais normas não podem ter validade como corolário do comando constitucional que dispõe que as normas constitucionais prevalecem sobre as restantes normas do ordenamento jurídico e o costume não é excepção .414

As pessoas singulares ou colectivas nacionais podem adquirir o direito de uso e aproveitamento da terra individualmente ou associando-se a outros sujeitos de direito, singulares ou colectivos sob a forma de co-titularidade.415 A lei de terras estabelece ainda que o direito de uso e aproveitamento da terra reconhecido ás comunidade locais, rege-se pelos princípios da co-titularidade, remetendo através do seu regulamento a aplicação do regime da compropriedade.416

A prerrogativa legal da co-titularidade constitui um privilégio reconhecido aos nacionais porque está implícito na lei por exclusão das partes que é um direito que não contempla pessoas jurídicas estrangeiras e só as pessoas jurídicas nacionais dela se podem beneficiar nomeadamente, as de ocupação da terra de boa fé que é constituída pelos cidadãos nacionais que ocupam a terra por um período igual ou superior a 10 anos e estão nesta categoria também como vimos, as comunidades locais e os sujeitos que adquirem o seu direito de uso e aproveitamento da terra através de um pedido.417

Importa sublinhar que a co-titularidade das pessoas ocupando a terra de boa fé e das pessoas que adquirem a terra por autorização de um pedido é voluntária, na medida em que deve haver um ou mais sujeitos que decidem coligar-se para em conjunto partilharem o mesmo direito de uso e aproveitamento da terra.

No entanto, a co-titularidade reconhecida ás comunidades locais não é voluntária, porque ela é resultante da imposição legal. Quer dizer que, pela natureza colectivista do direito das comunidades conforme tivemos ocasião de expender na parte geral deste trabalho, este deve revestir sempre a natureza de co-titularidade.

É obedecendo esse princípio que a actual lei moçambicana de terras estabeleceu o comando de que os títulos emitidos para as comunidades locais devem ser nominativos conforme a

413 Cfr os artº 66 e 67 da CRM de 90.

414 Cfr o nº 4 do artº 2 da CRM de 2004.

415 É o que prevêm os números 2 e 3 do artº 10 da lei de terras

416 Cfr o nº 3 do artigo 10 da lei de terras e o artº 12 do seu regulamento que remete a regência do direito de compropriedade ao regime estabelecido no artº 1403º e ss do cc.

417 Cfr o artº 12 da lei de terras.

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denominação por elas adoptada,418 como por exemplo, Comunidade de Madladlane, comunidade do Limpopo, o que evidencia que o direito das comunidades é de natureza colectiva. É preciso ter em conta que o direito á terra ao sul do sahara é sempre colectivo e inalienável. A terra nesta região na qual Moçambique faz parte, ela sempre pertenceu á colectividade(tribo, clã, família).

A lei de terras ao reconhecer o direito das comunidades locais sobre as terras que as ocupam, atribuiu-lhes personalidade jurídica419 que lhes permite exercer o seu direito colectivamente, mas também em grupos infra comunitárias(famílias e grupos de famílias) e ainda por pessoas singulares que as integram. Com essa personalidade dota elas de capacidade jurídica não só para gerir as suas terras, como também de as defender colectiva e individualmente com recurso aos meios previstos na lei civil e demais legislação aplicável.

No nosso entender, tratou-se de uma atitude de rendição do Estado perante uma realidade que existiu e resistiu ás tentativas de ignorá-la desde o tempo dos prazos no período da penetração colonial, passando pelo tempo da intensificação da ocupação colonial depois da conferência de Berlim, até aos primeiros anos após a independia nacional.

A gestão do direito á terra das comunidades locais, funcionou como um poder paralelo, ao sistema de organização moderna do Estado. Para nós foi contraproducente ignorar esta realidade que ao longo dos séculos se tornou objectiva. O Estado sai a ganhar quando reconhece e valoriza o papel das comunidades na gestão das suas terras porque elas é que conhecem a realidade e fazem-na sem custos para ele.

7.2. Sujeitos Estrangeiros

As pessoas jurídicas estrangeiras têm o seu direito á terra consagrado na actual lei terras. Ao abrigo da CRM de 1990, os investimentos estrangeiros são permitidos na República de Moçambique no quadro da política económica vigente em todas as áreas económicas excepto nas reservadas exclusivamente á sua exploração pelo Estado.420 Esta ideia é retomada de forma taxativa pela CRM de 2004421.

Considerando-se que os investimentos só podem se efectivar via de regra se o investidor possuir terra, faz sentido que o legislador da lei de terras tenha consagrado o direito de acesso á terra pelos sujeitos estrangeiros.

O acesso á terra pelos estrangeiros prevê pré condições a saber:422 a primeira é de natureza geral, por envolver tanto as pessoas singulares estrangeiras como as colectivas estrangeiras. Essa pré condição resume-se na exigência de que o sujeito de direito estrangeiro para ter acesso ao direito de uso e aproveitamento da terra, deve ter um projecto de investimento aprovado, entendendo no silêncio da lei que é o projecto aprovado pelo Governo, ao abrigo da lei nº 3/93 de 24 de Junho e do

418 Cfr o nº4 do artº 13 da lei de terras.

419 Ivon dÁlmeida Pires Filho, 1998, na altura consultor jurídico internacional da FAO, texto inserido na pág. 70 do manual de direito da terra da autoria da Drª Maria da Conceição de Quadros, comunga também a opinião de que o número 1 do artigo 10 da lei de terras, ao reconhecer o direito das comunidades adquirido por ocupação, atribuiu-lhes personalidade jurídica implicitamente.

420 Cfr o artigo 45 da CRM90.

421 Cfr o artº 108 da CRM de 2004

422 Cfr o artº 11 da actual lei de terras.

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respectivo regulamento aprovado pelo Decreto nº 43/ 2009, de 21 de Agosto.423 A outra pré condição cumulativa diz respeito ao tempo mínimo de residência em Moçambique para as pessoas singulares que é igual ou superior a 5 anos.

No caso de pessoas colectivas, elas devem ser registadas ou constituídas em Moçambique. Empresa registada em Moçambique, quer dizer que é uma pessoa colectiva constituída fora do país, como é o caso da Coca-Cola, só para exemplificar, que decidiu vir se registar na Conservatória do Registo das Entidades Legais em Moçambique para operar no mercado nacional, e empresa constituída em Moçambique é aquela que foi criada á luz do direito moçambicano, mas com capitais estrangeiros, ou que tendo capitais moçambicanos, tem no entanto a maioria de capital detido por cidadãos estrangeiros.424

7.3. Considerações diversas em relação aos sujeitos de direito.

A questão dos sujeitos de direito aparentemente é um assunto pacífico, mas parece-nos que há algumas questões que se podem levantar. Em relação aos sujeitos nacionais encontramos a figura de ocupação pelas comunidades locais que é uma figura nova no direito positivo moçambicano. Notou-se que depois de aprovação da nova lei de terras e graças á sua ampla divulgação, as comunidades assumiram-se como verdadeiras entidades no contexto de gestão das suas terras, exercendo com consciência do poder as competências atribuídas425 pela lei de terras.

423 Trata-se de um novo regulamento que fez a revisão do regulamento aprovado pelo Decreto nº 14/93, de 21 de Julho. O novo diploma introduziu maior flexibilidade no que se refere á introdução de melhorias nas competências para autorização de projectos de investimentos além de outros aspectos. Assim, nos termos do artigo 12 do referido regulamento da lei de investimentos as competências de autorização de projectos são fixadas pelo valor de cada projecto, sendo do governador provincial para projectos que vão até ao limite de um bilião e quinhentos milhões de meticais, para o Director-Geral do Centro de Promoção de Investimentos(CPI), é fixada em dois biliões e quinhentos milhões de meticais, para o Ministro de Planificação e Desenvolvimento é de treze biliões e quinhentos milhões de meticais e acima desse valor a competência é conferida ao Conselho de Ministros. Compete ainda ao Conselho de Ministros autorizar projectos que envolvam áreas de terras superiores a 10.000ha para fins de agricultura e pecuária e autorizar projectos que ocupem áreas superiores a 100.000ha para projectos florestais. De referir que a figura de Director-Geral do CPI é nova na aprovação de projectos e parece pretender descongestionar a carga de trabalho que pesava sobre o Ministro da Planificação e Desenvolvimento, mas também para privilegiar maior celeridade na tomada de decisões por ser um órgão meramente técnico e não político.

424 Cfr o n° 9 do artº 1 da actual lei de terras.

425 Em relação ás competências das comunidades locais, cfr o artigo 24 da lei de terras. Sentimos durante as consultas a vários actores que intervêm na gestão de terras dentre eles 3 Administradores de Distritos concretamente Zeferino Cavele na altura Administrador de Magude, Ângelo Binanro Sabite na altura Administrador da Moamba e Mário Daniel Feliciano Bombi na altura Administrador de Matutuine, que há uma percepção de que as comunidades locais excedem os limites das suas competências. Por causa disso, elas entendem que têm o poder de decisão sobre autorização ou não do direito. Para aqueles dirigentes do Estado, a consulta ás comunidades não significa que elas tenham o poder de decisão ao ponto de chegarem a inviabilizar projectos, mas tão somente elas são consultadas para informarem se no terreno há ou não direitos de outros sujeitos. A nossa opinião é de que na prática as comunidades têm o poder de decisão. Pode acontecer que existe terra aparentemente livre, mas que o projecto a instalar tem problemas ambientais ou outros que entram em choque com os interesses da comunidade. Nesses casos a comunidade tem o poder

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Todavia, notamos que elas têm uma luta prolongada por fazer, porque o reconhecimento que lhes foi atribuído pela lei nem sempre encontrou acolhimento positivo no seio dos funcionários públicos nos distritos e noutros níveis em especial os ligados á área de gestão de terras ou com possibilidades de tomar decisões sobre elas.

È sinal negativo evidente de actuação deste segmento de funcionários, os múltiplos conflitos de terras que surgiram ao longo destes anos, os quais resultaram em grande medida da falta de articulação correcta com as comunidades locais. As entidades da Administração Pública alegam que o poder detido pelas comunidades muitas vezes é fonte de conflitos por causa de múltiplas atribuições a diversos indivíduos do mesmo espaço. A nossa percepção com base na experiência de Rénguè Sondwine é de que apesar de as comunidades não terem um cadastro escrito, elas têm um domínio seguro das suas áreas e do que querem fazer com cada espaço, como por exemplo área para alocar investidores e área para a comunidade realizar as suas actividades.

A múltipla atribuição acontece nos casos em que é feita a consulta e o requerente desaparece para a cidade onde vai ficar á espera da decisão administrativa muitas vezes morosa, deixando de se comunicar com a comunidade, a qual vendo a demora do início da actividade e sem comunicação, acabam afectando a outros pretendentes por presumirem a desistência do requerente. O argumento das comunidades é de que não querem ficar com terra imobilizada enquanto existem pessoas que querem investir nela.

É preciso notar que a atribuição a um outro requerente via de regra fazem-no em articulação com o técnico de cadastro do distrito a quem as comunidades depositam consideração. Pelo contrário, casos de múltiplas atribuições que muitas vezes degeneram em conflitos são promovidos pelos técnicos dos Serviços Públicos de Cadastro á revelia das comunidades respectivas. Esta é a realidade que se vive nas comunidades onde não existem negociatas de venda de terras como as que relatamos acima, que envolvem esquemas obscuros dos respectivos líderes comunitários, mas que essa não é a regra prevalecente nas comunidades onde se privilegia a honestidade e sinceridade.

Um outro aspecto que notamos durante a análise processual e nas entrevistas com os técnicos de cadastro, é que os Serviços não estão organizados para tratar processualmente os direitos emergentes da aquisição do direito por ocupação de boa fé pelos cidadãos nacionais ocupando a terra há pelo menos 10 anos.

A falta dessa organização e sensibilidade pelos funcionários acaba remetendo o tratamento deste regime especial como se fosse um pedido inicial do direito, facto que prejudica os interessados.426 O direito resultante deste tipo de ocupação é efectivo passados dez anos não carecendo ainda de autorização provisória, figura que como nacionais a ter lugar duraria apenas 5 e não dez anos.427 A medida correcta seria logo que se conclua o processo e decidido pela entidade competente para o reconhecimento passar-se imediatamente o título definitivo.

de se opor á instalação do projecto, acontecendo o mesmo quando as comunidades entenderem que a instalação de um determinado projecto pode afectar a reserva de terras para uso presente e para o futuro dos seus filhos. A este respeito são inúmeros casos de projectos que tiveram que ser redimensionados com vista a acomodar os interesses das respectivas comunidades.

426 De notar que o regime processual do direito adquirido por ocupação de boa fé é, nos temos do disposto no artigo 34 do regulamento da actual lei de terras especial em relação aos procedimentos de organização dos processos de autorização do direito de uso e aproveitamento da terra, na medida em que o regime de ocupação de boa fé dispensa o esboço de localização, a memória descritiva e autorização provisória.

427 Sobre a autorização provisória cfr o artigo 25 da actual lei de terras.

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Outra questão que fazemos reparo e que se ressentiu foi a relacionada á aquisição da terra por estrangeiros exigindo-se projecto de investimento como requisito geral para ter acesso ao direito de uso e aproveitamento da terra.

Notamos durante a análise processual que salvo projectos que requerem a autorização pelo Conselho de Ministros e outras entidades que trazem benefícios fiscais aos interessados, a maioria dos processos envolvendo estrangeiros não tem nenhum projecto autorizado, senão o plano de exploração igual ao que os cidadãos nacionais também juntam. Aliás, o normal seria, os estrangeiros juntarem no processo o projecto aprovado e ainda o plano de exploração. Estamos neste caso perante uma situação de um costume contra legem.

Detectamos também que ao longo destes 10 anos a exigência de que os cidadãos estrangeiros devem residir em Moçambique há pelo menos cinco anos, é uma norma que tem criado embaraços a esta categoria de requerentes, mas que não constitui nenhum obstáculo porque eles recorrem á criação de sociedades por quotas, algumas até em nome pessoal através das quais requerem o direito de uso e aproveitamento da terra, considerando que as pessoas colectivas criadas em Moçambique mesmo estrangeiras têm acesso á terra.428

A nossa opinião é de que o artigo 11 da lei de terras devia merecer uma revisão para aclarar a matéria de apresentação de projectos de investimento como requisito de elegibilidade para se ter acesso á terra pelos estrangeiros, eliminando-se essa exigência por inutilidade e ainda a exigência de residência mínima em Moçambique substituindo as duas pela apresentação de um plano de exploração convincente, acompanhado de prova de capacidade financeira para investir. A elaboração e submissão de projectos via CPI, só se exigiria para os casos em que os interessados pretenderem obter benefícios fiscais.

Esgotada a matéria relativa aos sujeitos do direito de uso e aproveitamento da terra, passamos de seguida a abordar a figura de aquisição do mesmo nas suas duas modalidades, nomeadamente a ocupação e autorização de pedidos.

8. Modos de aquisição.

A actual lei de terras definiu dois modos de aquisição do direito de uso e aproveitamento da terra, o da ocupação pelas comunidades locais e pelas pessoas singulares nacionais que de boa fé ocupam a terra há pelo menos 10 anos e de autorização de um pedido.429

Em relação ás figuras de ocupação já nos referimos acima que é uma figura nova que nasceu da Constituição de 1990 e foi retomada na actual Constituição que entrou em vigor em 2004. É um direito que beneficia as comunidades locais consideradas pessoas jurídicas pela lei 19/97, de 1 de Outubro, como tivemos ocasião de desenvolver supra. Além do direito das comunidades, surge também como inovação a figura de ocupação de boa fé por pessoas singulares nacionais. Em relação á matéria de boa fé abordámo-la com algum desenvolvimento na parte geral que não vamos repetir por economia de espaço.

A figura de autorização dos pedidos é a que constitui a essência de organização dos Serviços Públicos de Cadastro estaduais e municipais e o aparato de funcionários públicos e de bens materiais

428 O recurso á via de criação de sociedades para aquisição do direito de uso e aproveitamento está facilitado considerando a actual flexibilização da criação das sociedades em especial as sociedades por quotas e unipessoais com isenção de imposição legal do capital mínimo, como consta do artigo 289 do código comercial com as alterações introduzidas pelo Decreto-lei nº 2/2009, de 24 de Abril , e artigo 328 do mesmo código no que respeita ás sociedades unipessoais.

429 Cfr o artigo 12 da actual lei de terras.

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afectos nesta área visa essencialmente servir o regime de tramitação processual imposto pela demanda neste modo de aquisição do direito de uso e aproveitamento da terra, embora outros modos não sejam excluídos de se beneficiarem do processo de titulação que passamos a desenvolvê-lo.

8.1. Titulação

A lei de terras em vigor no País estabelece que os títulos são emitidos pelos Serviços Públicos de Cadastro, gerais e urbanos e a ausência do título não prejudica o direito de uso e aproveitamento da terra adquirido por ocupação pelas comunidades locais e por pessoas singulares nacionais de boa fé ocupando a terra há pelo menos 10 anos.430 O mesmo preceito legal estabelece as regras a seguir pelo processo de titulação ou seja:

A necessidade de se incluir no processo legal do pedido de terra o parecer do Administrador do Distrito precedido de consulta ás comunidades locais para confirmação de que a área pretendida encontra-se livre e não tem ocupantes.

Os títulos emitidos a favor das comunidades locais são nominativos e devem ser passados em nome da respectiva comunidade.

As pessoas de ambos sexos vivendo numa comunidade podem desmembrar as suas parcelas da área comunitária para efeitos de obtenção de títulos individualizados.

8.1.1. Consulta ás comunidades locais

O reconhecimento das comunidades locais como sujeitos de direito, é um aspecto que tornou a Lei n° 19/97, de um de Outubro um instrumento legal de carris progressista amplamente elogiado dentro e fora do País, por ter reconhecido a existência legal de um segmento populacional maioritário ocupando e vivendo quotidianamente dos frutos da terra em Moçambique.

Ao reconhecer o direito á terra das comunidades locais, o Estado atribuiu a elas competência de participar no processo de titulação431. Uma das formas dessa participação é a prerrogativa de no âmbito de tramitação dos pedidos de autorização do direito de uso e aproveitamento da terra, serem consultadas como um dos requisitos prévios para que o pedido do requerente seja autorizado.

Foi dessa forma institucionalizada a consulta ás comunidades, uma exigência que vem da lei como já fizemos notar acima. Operacionalizando o comando da Lei n° 19/97, de 1 de Outubro, o seu regulamento impôs que seja respeitado este procedimento em dois momentos.

O primeiro diz respeito á necessidade de consulta quando um investidor pretende realizar empreendimentos que requerem terra, sendo necessário que antes de submeter o seu projecto ao CPI, ele deve contactar com as autoridades locais de modo a identificar-se a terra adequada para acomodação do seu projecto.432 A identificação da área é feita com concurso das respectivas comunidades e o resultado constará do parecer do Administrador do distrito, acompanhado da acta de consulta ás comunidades locais. Esse procedimento foi imposto porque antes os investidores primeiro submetiam as propostas de projectos ao governo e depois de autorizados é que iam ao

430 Cfr o artigo 13 da actual lei de terras.

431 Idem, alínea c) do nº 1 do artº 24.

432 Idem, artº 25.

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distrito com vista á localização da terra que muitas das vezes nem sequer existia, tornando os empreendimentos inviáveis.

Esta regra está a ser cumprida, mas é um desafio para os Serviços Públicos de Cadastro no sentido de serem mais flexíveis no atendimento a este tipo de procedimentos que consideramos chave para entrada de investidores no País o que requer adopção de medidas para aceleração dos processos de modo a concluí-los em tempo útil.

Para apercebermo-nos do nível de resposta que está a ser dada pelos Serviços de Cadastro aos pedidos com vista á implementação de projectos, contactamos com o CPI, onde por indicação do respectivo Director entrevistamos o Dr. Samuel Forquilha jurista em serviço naquela instituição, que informou não possuir dados recentes sobre projectos na Província de Maputo.

Ele explicou no entanto, que a exigência de identificação prévia da terra pelo regulamento da lei de terras foi uma medida correcta. O CPI só abre o processo de um projecto de investimento mediante a exibição pelo investidor de um parecer do Administrador do distrito acompanhado da acta de consulta ás comunidades.

Informou que apesar deste procedimento legal que visa flexibilizar o processo, verificam-se situações de demora na tomada de decisão sobre o pedido de terra pela entidade competente depois de aprovado o projecto uma vez que o parecer do Administrador e a consulta á comunidade anexados no processo de autorização do projecto não constituem decisão para atribuição do direito de uso e aproveitamento da terra.

Esses instrumentos permitem apenas que o projecto seja aprovado, mas depois é preciso que a entidade competente autorize o pedido e se passe o respectivo comprovativo de obtenção do direito de uso e aproveitamento da terra, que é o documento que interessa mais ao investidor para conseguir quando necessário os créditos requeridos.

Citou como exemplo dentre outros, um projecto autorizado em Fevereiro de 2008 para produção agrícola e industrialização de oleaginosas numa área de 10.000ha em Murraça, Sofala, que ficou mais de um ano sem atribuição do direito á terra para o investidor começar trabalhar.

Outro aspecto que o CPI considera negativo é que a área inicial identificada de 10.000ha foi amputada pelo governo da Província para 5.000ha contrariando a resolução que aprova o projecto emanada de um órgão hierarquicamente superior. Concordamos com o CPI, porque o procedimento cria insegurança aos investidores quando se começa a ter a percepção de que as decisões tomadas pelos órgãos superiores podem ser alteradas a qualquer momento pelos órgãos inferiores.

Para o CPI a tramitação dos processos de terras continua lenta e pode afugentar os investidores que na sua maioria precisam de terra. Para este organismo do governo, no período de 2000 a 2004, o governo havia adoptado positivamente o princípio de que os pedidos de terra deviam ser tramitados e decididos no prazo de 90 dias após a abertura do respectivo processo legal do pedido, princípio que a uma dada altura parece ter sido abandonado, voltando ao mesmo ciclo de lentidão, com todos os prejuízos que isso pode trazer na implementação dos projectos de investimentos.

Uma outra questão de fundo levantada pelo CPI, liga-se com os documentos que são passados ás pessoas depois de autorização provisória. Compulsando o regulamento da actual lei de terras constata-se que a autorização provisória que é a fase inicial de acesso á terra pelas pessoas é documentada por um documento que não é o título comprovativo do direito enquanto ela durar,

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que via de regra o período probatório é de 5 anos para nacionais e de 2 anos para estrangeiros.433 No fim do período de autorização provisória é que se pode emitir o título definitivo do direito de uso e aproveitamento da terra que vai mais longe do documento comprovativo da autorização provisória.434

Com vista á comprovação do direito de uso e aproveitamento da terra no período da vigência de autorização provisória, os Serviços de Cadastro idealizaram um documento a que chamam de licença de autorização provisória. É este instrumento que segundo o CPI, os investidores especialmente os estrangeiros não o aceitam como instrumento comprovativo do seu direito preferindo um título. Presumimos que esta não aceitação deste documento pelos investidores, resulta de estarem habituados a lidar com títulos que é o que se passa geralmente noutros Países.

Consideramos isto uma preocupação de fundo porque se a licença de autorização provisória não inspira confiança aos investidores, a nossa opinião é que se deve mudar a epígrafe do documento para título e não licença porque isso não afecta o carácter provisório do direito face á lei de terras. É que muitas das vezes o título constitui prova de que se tem terra com vista a conseguir-se créditos para investimentos.

Tivemos que proceder dessa maneira com a Mozal435 para viabilizarmos um projecto estratégico para o desenvolvimento do País porque os accionistas não podiam pôr os seus recursos financeiros sem segurança de que o Estado moçambicano garantia terra através de um título.

Além da prerrogativa de as comunidades locais serem consultadas quando se pretende adquirir o direito de uso e aproveitamento da terra para investimentos, elas devem ser consultadas ainda em todos os casos que há pedido de autorização do direito seja qual for a área pretendida, mas também se deve recorrer a esse procedimento quando há necessidade de desmembramento do direito de ocupação pelos sujeitos singulares que integram uma determinada comunidade local.436

Ao procedermos a análise dos processos de pedidos do direito de uso e aproveitamento, constatamos que as consultas são feitas em todos os pedidos, mas há reparos a fazer que passamos a apresentar de seguida.

8.1.2. Perfil geral das consultas.

Regra geral as consultas ás comunidades são feitas, mas encontramos pela análise dos processos e trabalho no terreno as seguintes questões:

433 Op cit artº 25 da actual lei de terras. E em relação á prova de autorização provisória, conferir o artigo 29 do regulamento da actual lei de terras que estabelece o conteúdo desse instrumento. Interpretando o conteúdo do artº 26 da actual lei de terras in fine, retira-se o entendimento de que a passagem do título só tem lugar depois de passagem de autorização definitiva. É por isso que antes dessa fase o que se passa é uma licença de autorização provisória, instrumento idealizado pelos Serviços Públicos de Cadastro.

434 Cfr o artº 36 do regulamento da actual lei, que especifica o conteúdo de um título do direito de uso e aproveitamento da terra.

435 Atente-se que a construção da MOZAL iniciou em 1998 quando estávamos a dirigir a Direcção Nacional de Geografia e Cadastro(DINAGECA) e por isso estivemos directamente envolvidos na problemática do título.

436 Cfr de novo o nº 3 do artigo 13 da actual lei de terras e ainda o nº 1 do artº 15 e os nºs 2 e 3 do artº 27 ambos do seu regulamento.

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No geral o processo nos pareceu não estar a ser levado a sério pelas entidades públicas, Administradores e Serviços de Cadastro;

Há uma aparente simulação das consultas reunindo pessoas de conveniência. Aliás, esta questão foi referida como sendo o resultado de que as consultas são autênticas festas onde o interesse é que o futuro investidor forneça comidas e bebidas. Os requerentes antes do dia de consulta vão oferecendo benesses aos líderes de forma a ganhar as suas simpatias para que no dia da consulta seja apenas um acto formal participado por pessoas de conveniência.437 Por isso, a consulta ás comunidades, em muitos casos é um acto que visa a recolha de assinaturas para formalizar o que a lei de terras exige.438

Nas consultas feitas, devido á fraca explicação feita pelos agentes que dirigem a consulta, as pessoas não chegam a entender a verdadeira dimensão da área pretendida, vindo a perceber-se quando o investidor começar a demarcação e vedação do terreno, começando daí a surgirem reacções negativas;

Dos 60 processos que analisamos, nenhum contou com a participação do Administrador do Distrito, mesmo nos casos de pedido de áreas grandes, limitando-se a delegar;

Não existem instrumentos de delegação de poderes para o funcionário que representa o Administrador na consulta a uma comunidade, parecendo que ela é feita verbalmente. A lei exige que a delegação se faça por escrito e publicada no Boletim da República. Isso implicaria que o Administrador pudesse fazer a delegação aos diversos órgãos a ele subordinados, em especial os Chefes dos Postos Administrativos com vista a legitimá-los a fazer as consultas na sua ausência. 439 É nossa opinião que nessa delegação de poderes devia haver a indicação do limite de área que o delegado teria competência de fazer consulta, na perspectiva de que acima dessa área seria da competência exclusiva do Administrador.

O representante do Administrador regista o seu nome mas não constam as suas funções;

O representante dos SPGC não vem identificado, mas é uma figura obrigatória na lei, que deve intervir na consulta em conjunto com o Administrador, mas muitas vezes o representante do Cadastro no Distrito é delegado do Administrador passando a acumular funções o que não é adequado;

As actas são sempre unânimes. Sempre concordam;

A lei exige que os vizinhos do terreno devem estar presentes na consulta e devem assinar a acta.440 Todavia, em nenhum acto de consulta isso foi respeitado, ou se foi, nada foi evidenciado;

437 A respeito de consultas transformadas em festas recheadas de comidas e bebidas, ver relatório final da conferência comemorativa dos 10 anos da lei de terras, pág. 83.

438 Idem.

439 O nº 1 do artº 22 das normas de funcionamento dos Serviços da Administração Pública aprovadas pelo Decreto nº 30/2001, de 15 de Outubro, permite que os órgãos competentes deleguem poderes. O mesmo diploma estabelece no seu artigo 23 que os poderes delegados carecem de serem publicitados no boletim da República, o que leva a presumir que a delegação de poderes é obrigatoriamente feita por escrito.

440 Op cit nº 2 do artº 27 do regulamento da lei de terras.

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Os funcionários envolvidos nas consultas nem sempre estão preparados e capacitados para tal.

Ao fazer-se a consulta não se tem em conta a necessidade da presença dos verdadeiros donos do espaço pretendido, o que evitaria conflitos no futuro;

Não existe um parâmetro de pessoas mínimas que devem participar nas consultas sendo variável o número, podendo, num pedido de área maior participarem menos pessoas e numa área menor participarem mais pessoas. Não existe um critério definido;

Há casos constatados no terreno, de conflitos provocados intencionalmente pelos técnicos de cadastro quando se trata de terrenos situados nos limites entre duas comunidades. Nesta situação, os técnicos exploram as simpatias dos líderes comunitários e optam por trabalhar com aqueles que lhes podem favorecer ou facilitar o trabalho, mas acabam por invadir território da outra comunidade á sua revelia, degenerando em conflitos de terras.441

Outro problema que as consultas levantam e que seguimos de perto no terreno, é relativo a conflitos de poder entre um líder do primeiro escalão e um chefe do segundo escalão.442

8.1.3. As parcerias

A lei fala da possibilidade de se estabelecerem parcerias entre as comunidades onde se vai instalar um determinado projecto.443 Dos processos que avaliamos apenas conseguimos constatar a existência de parcerias no que respeita ao projecto MOZAL e alargamos também a nossa análise ao projecto SASOL que explora o gás de Pande e Temane Província de Inhambane e a conduta de transporte do gás para Secunda na República da África do Sul, atravessando a Província de Maputo. Vamos passar a abordar os dois projectos no que respeita ás parcerias deixando as questões de reassentamento e compensação das populações para o lugar apropriado. Há a referir que o que

441 O erro propositado consultando uma comunidade vizinha e não a dona do terreno encontrámo-lo no trabalho de campo em Réngué, posto administrativo de Sábié, distrito da Moamba, Província de Maputo. A comunidade de Réngwé Sondwine faz limite com a de Magawane, ambas localizadas numa zona com terrenos propícios para criação de gado bovino e sujeitos a muita pressão nos últimos tempos. Sucede que os técnicos de cadastro do distrito da Moamba decidiram fazer uma consulta de conveniência aos líderes de Magawane, mas afectando ao requerente terra da parte de Réngwé. O resultado disso foi a sobreposição do terreno do requerente de Magawane o qual já tinha sido legalmente atribuído a uma outra pessoa na comunidade de Réngwé. Como resultado disso nasceu um conflito de difícil solução, que se evitaria se se consultasse a comunidade que tem aquele espaço como sua área de jurisdição.

442 No terreno requerido pelo M. Nhane sito em Zitundo, posto administrativo do mesmo nome, distrito de Matutuíne no extremo sul da Província de Maputo, na ausência do chefe do segundo escalão emigrado na África do Sul, o líder do primeiro escalão X. Tembe, dirigiu a consulta. Mas no regresso do chefe do segundo escalão que superintende a zona de situação do terreno, insurgiu-se alegando que lhe foi usurpado o poder. Depois de muito conflito, o M. Nhane acabou organizando uma nova apresentação ao líder regressado que envolveu bebidas e mais tarde uma cabeça de bovino. Com este procedimento o requerente eliminou um ciclo de conflito. Está-se neste caso perante uma situação de oportunismo, mas por outro lado este facto demonstra a autonomia existente no seio da autoridade tradicional.

443 Cfr o nº 3 do artº 27 do regulamento da actual lei de terras.

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eventualmente resultou em parcerias, provém essencialmente do comprometimento dos investidores e não de um acordo formal entre estes e as comunidades.

8.1.4. Mozal

O projecto MOZAL que deu lugar á actual empresa de fundição de alumínio MOZAL, foi aprovado em 1997 quase 2 meses depois da publicação da Lei n°19/97, de 1 de Outubro. 444 O projecto MOZAL localiza-se em Beluluane no distrito de Boane, Província de Maputo, a 18 km da cidade capital Maputo. A construção da fábrica arrancou em 1998 e terminou em 2000.

A instalação desta fábrica implicou a ocupação de 138ha para as instalações fabrís, 24ha para construção de habitações. De notar que a MOZAL se integra no Parque Industrial de Beluluane445 o que faz com que o conjunto da área afectada por esta iniciativa seja de 800 hectares, a qual como é óbvio, tinha os seus ocupantes mormente aqueles que exerciam actividades agrícolas.

No tratamento de questões sociais e tendo na mira que um projecto da sua envergadura deve criar benefícios sociais tangíveis para as populações a serem afectadas incluindo outras vivendo na circunscrição de Boane em primeiro lugar, além de outros segmentos sociais vivendo fora daquela zona, foram desenhadas muitas acções que se revelaram e continuam a revelar-se verdadeiras parcerias com as comunidades que vamos apresentá-las de forma descritiva e resumida por economia do espaço implementadas pela Fundação Mozal Para o Desenvolvimento da Comunidade, criada para o efeito:446

Reabilitação e apetrechamento de regadios com vista ao relançamento da actividade agrícola, potenciando as populações com instrumentos para o combate á pobreza;447

Construção de um centro de processamento de produtos agrícolas e fornecimento do respectivo equipamento em Mafuiane, distrito de Boane;

Promoção da cultura de cajueiros que resultou no fornecimento de 12.000 plantas de viveiro beneficiando 1.200 famílias que receberam 100 plantas cada;

Fomento de criação de frangos, em especial de galinhas poedeiras com capacidade para 1000 poedeiras cada, beneficiando as associações de camponeses Nkala e Bematchome, em Boane;

444 O projecto MOZAL foi autorizado pelo Decreto n° 45/97 de 23 de Dezembro, que cria a zona franca industrial da MOZAL.

445 O Parque Industrial de Beluluane viria a ser formalizado pela Resolução Interna nº 15/99 de 12 de Outubro, do Conselho de Ministros.

446 Fonte, relatórios 3 e 4 da Fundação MOZAL. O dr Alcido Maússe, director da AMDC, fez-nos saber que numa fase inicial a associação despendia anualmente o equivalente a 2.5 milhões de dólares, valor que passou a duplicar em 2009.

447 É exemplo a recuperação do regadio de Manguiza em Boane que havia parado de produzir há duas décadas e o de Mafuiane no mesmo distrito, permitindo aos camponeses produzir produtos agrícolas destinados ao seu sutento e ao abastecimento do mercado, principalmente o de Maputo e Matola.

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Lançamento de iniciativa de multiplicação de sementes resistentes á seca de modo a criar bases para auto suficiência em relação a estes factores de produção em benefício da comunidade;

Fomento de criação de caprinos a partir de2004 introduzindo um núcleo desta espécie num grupo de famílias que depois de multiplicá-los, os repassam para outras famílias de modo a disseminar a espécie;448

Fomento de pequenas indústrias para aumento das fontes de geração de rendimentos na comunidade.

Reabilitação e construção de escolas incluindo a construção de um instituto industrial e comercial de raiz.449

Apoio ás iniciativas de saúde junto da comunidade reabilitando o que existia, mas também construindo centros de saúde de raiz.450

Criação de condições para o abastecimento de água potável através de abertura de furos de água;

Apoio na instalação de redes de fornecimento de energia eléctrica.

Criação de sinergias com a Estação agrária do Umbeluze para benefício da comunidade na aprendizagem em novas tecnologias com vista á melhoria dos seus sistemas de produção;

Feito este resumo das actividades desenvolvidas pela MOZAL na prossecução do espírito de estabelecer uma parceira fundada na promoção de iniciativas que tragam as possibilidades de implementação de programas geradoras de rendimento com vista á promoção do bem-estar social das comunidades, passamos de seguida a abordar a actividade similar no projecto Sasol.

8.1.5. SASOL

Sasol é um projecto aprovado em Novembro de 2002, visando a exploração do gás natural descoberto na região de Pande e Temane, na Província de Inhambane. 451

448 Os caprinos beneficiaram 250 criadores que cada recebeu 4 fêmeas e um macho.

449 Além da reabilitação da única escola primária antiga que havia na zona com capacidade para 130 alunos, 7 novas unidades de ensino primário para albergar uma média de 700 alunos cada foram edificadas e construída uma escola secundária com capacidade para 2 400 discentes. Um instituto industrial e comercial foi construído de raiz com capacidade para 300 discentes. A MOZAL apoia em material didáctico, informático e na promoção de actividades culturais, desportivas e outras, sendo de destacar nesse conjunto a montagem de centros cívicos para auditórios culturais, realização de reuniões e instalação de internet café e bibliotecas.

450 Além de apoio á actividade de assistência sanitária normal, a MOZAL, presta apoio nas áreas de HIV/SIDA e de pulverização intra- domiciliária contra a malária.

451 Os termos da realização das actividades de produção, transporte e venda de gás natural dos blocos unificados de Pande e Temane, foram aprovados pelo Decreto n° 27/2002, de 19 de Novembro.

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Ao idealizar-se o projecto, uma das questões afloradas foi a de transporte do gás em bruto para a República da África do Sul, processador e maior consumidor do produto, País com quem se tem parceria no empreendimento. Para transporte do gás foi acordado investir-se na montagem de um gasoduto.

Essa infra-estrutura partiu dos campos de extracção em Pande e Temane e atravessou as Províncias de Gaza e Maputo, com um traçado que estrategicamente seguiu pelas regiões menos povoadas do País, o que preveniu conflitos com as populações e evitou incorrer em altos custos em indemnizações.

Este empreendimento segue a mesma filosofia do projecto MOZAL no que concerne á criação de parcerias com as comunidades locais da situação dos campos de gás e das regiões por onde passa a conduta de transporte daquele produto, concretamente as Províncias de Gaza e Maputo.

Notamos que como é óbvio, o peso da parceira deste projecto está mais centrado na Província de Inhambane, fonte do recurso, do que nas duas províncias por onde passa a conduta do gás. Passamos a apresentar as principais áreas de intervenção em Inhambane:452

Construção de 4 escolas;

Ampliação de 2 escolas;

Construção de um estádio de futebol;

Construção de um posto policial;

Construção de um centro de saúde e reabilitação de outro para beneficio de 30.000 pessoas;

Construção de 3 padarias;

Reabilitação de 2 escolas;

Reabilitação de 9 casas danificadas por um ciclone;

Organização e montagem de duas salas de informática em igual número de escolas de Vilanculos beneficiando no total 2.973 estudantes.

Instalação de caleiras para canalização de águas pluviais aos sisternas das escolas do distrito de Vilanculos, passando a beneficiar de água potável a 3.000 alunos;

Aquisição de um tractor agrícola e respectivas alfaias.

Outras acções foram desenvolvidas em Inhambane como fomento do desporto, fornecimento de livros escolares, apetrechamento das instalações construídas, fomento pecuário, dentre outras.

Para as Províncias por onde passou a conduta iremos apenas apresentar as acções que o projecto Sasol realizou na Província de Maputo objecto do nosso trabalho como se segue:

Reabilitação de um sistema de abastecimento de água para 7 623 pessoas em Ressano Garcia;

Fomento pecuário em número de animais não especificado;

452 Fonte, dados fornecidos pela sede da Sasol em Maputo.

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Construção de represa e reabilitação de outra no Sábié;

Reabilitação do mercado da sede da Moamba;

Aquisição de uma electrobomba para abastecimento de água á população da vila da Moamba;

Fornecimento de diverso material escolar, bibliotecário e informático a algumas escolas da Moamba;

Construção de um centro de saúde de tipo II em Magude para 1.000 habitantes;

Construção de uma escola primária em Duco, Magude para 300 alunos;

Reabilitação da represa de Katsene em Magude beneficiando 400 pessoas;

Reabilitação da represa de Panjane, Magude, para uso de 600 pessoas;

Reabilitação de uma represa em Matongomane, Magude para benefício de 600 pessoas.

Chegados aqui, concluímos o resumo de exemplos de parcerias que se podem estabelecer entre as comunidades locais e investidores que decidem empreender nos seus territórios. Partindo da análise processual que efectuamos, constatamos que a maioria dos requerentes que foram autorizados o direito de uso e aproveitamento da terra no período em análise não constituíram parcerias de raiz453 e duradoiras como as que acabamos de analisar, que reputamos se deverem á envergadura dos projectos, capacidade financeira e aos resultados económicos por eles produzidos.

Dois factores contribuem para esta situação. O primeiro está ligado á fraca preparação e formação dos agentes que orientam as consultas de modo a influenciarem e ajudarem as comunidades para que isso aconteça. O segundo e mais importante, é que a maioria parte das pessoas que adquirem direito está descapitalizada454 e só adquire terra porque ela é praticamente gratuita.

Um outro aspecto que na nossa opinião devia ser aclarado seria a definição de um parâmetro de modo a que em cada área de actividade se definisse a partir de que dimensão de área se deve constituir parcerias tendo em conta as vantagens e o rendimento a produzir.

O elemento capital a investir no projecto e tendo como base as possibilidades financeiras dos proponentes, seria um dos requisitos para parcerias. Queremos com isto dizer que uma pessoa pobre que pretende empreender para combater a pobreza, não estará em condições de estabelecer uma parceria com uma comunidade por mais que não lhe falte a vontade.

No que concerne á consulta ás comunidades, a nossa opinião é de que embora existam alguns sinais de desagrado de alguns funcionários públicos quanto á sua pertinência, consideramos

453 Parcerias de raiz porque o que consta das actas de consulta não é nada vinculativo por isso consideramos que não tem raízes que sustentem parcerias sérias. Regra geral nas actas de consulta constam expressões como aceitamos o investidor porque vai trazer emprego. Vai nos ajudar para trazer água porque dela temos carência. Temos falta de escola, de posto de saúde, de loja, etc, etc. Estas são simples declarações ou arrolamento das necessidades que nada têm a ver com o compromisso do investidor, por isso depois de autorizado o direito, muitas das vezes os empregados não são locais se a actividade assim não impõe pela sua natureza e não há construção de nenhuma obra a favor da comunidade.

454 Presume-se que incapacidade financeira de maior parte dos requerentes esteja em primeiro lugar dentre os factores que fazem com que muita terra autorizada esteja neste momento inexplorada.

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que ela é útil porque reflecte o exercício de cidadania pelos cidadãos dessas comunidades e participação na gestão de um recurso natural valioso que lhes pertence.

A consulta é um instrumento que reduz de forma significativa os conflitos de terras quando respeitadas as regras da auscultação das comunidades. Notamos que existem lacunas no processo de consulta ás comunidades locais que resultam de um conjunto de anomalias que tivemos oportunidade de enumerar acima.

Com vista á supressão dessas anomalias, a nossa opinião é de que se deve desenvolver uma acção persistente de formação das pessoas intervenientes a todos os níveis e adoptar um novo modelo de condução das consultas com participação de todos os intervenientes na área de gestão de terras.

8.2. Obrigação de pagamento de um valor no acto de consulta.

A uma dada altura os Serviços Públicos Centrais de Cadastro, decidiram impor que no acto de consulta a uma determinada comunidade local o requerente devia pagar um valor de 300mt á comunidade respectiva, que normalmente é distribuído entre as chefias da comunidade.

Este pagamento quanto a nós levanta problemas da justeza da sua instituição sem ser com base num diploma legal competente, porque os impostos e outras obrigações que devem obrigar os cidadãos devem ser criados por lei, que conforme os casos, pode ser lei em sentido formal ou lei em sentido material.455

Todavia, um senão também se coloca quanto á legitimidade de ser o Estado a instituir uma obrigação pecuniária a ser paga a uma entidade não integrante da Administração Pública. Para nós essa taxa devia ser exigida por cada comunidade entanto que uma entidade autónoma, como contrapartida da prestação de serviços.

Concluída a abordagem da problemática de consulta ás comunidades locais como um dos pilares fundamentais do processo de titulação vamos de seguida analisar outras figuras que concorrem para o mesmo fim.

8.3.Os pareceres técnicos.

O regulamento da actual lei de terras estabelece a exigência de pareceres técnicos emitidos pelos sectores que superintendem as actividades económicas a que o requerente se propõe dedicar, de modo a emitirem a sua opinião técnica em formatos por eles fixados em relação ao plano de exploração proposto, que deve ser feito no prazo de 45 dias, findo o qual sem que o mesmo tenha sido emitido, o processo segue o seu curso normal até final.456

Esta exigência que é feita na fase inicial do processo, quando a decisão sobre o pedido não é da competência do governador da Província, o processo é remetido aos órgãos centrais

455 No que respeita aos impostos, o artº 50 da CRM de 90 dispunha que os mesmos eram criados e alterados por lei. No que concerne ás taxas como é o caso vertente, a alínea e) do artº 153 da CRM90 atribuía competência ao Conselho de Ministros para regulamentar a actividade económicas e dos sectores sociais. É dentro deste processo de regulamentação que o Conselho de Ministros definia taxas a pagar como resultado de contraprestação em determinadas actividades económicas e sociais. O mesmo sentido foi seguido pelo artº 100 da CRM de 2004 no que concerne aos impostos e pela alínea f) do artº 204 da mesma Constituição no que concerne á fixação de taxas, enquadrada dentro dos poderes regulamentares do Conselho de Ministros.

456 Cfr o artº 26 do regulamento da actual lei de terras.

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competentes, mas a esse nível também se exigem pareceres técnicos das áreas que superintendem a actividade económica requerida.

Para nós esta exigência é relevante porque visa assegurar que não se atribua terras para actividades incompatíveis. Isso pode se dar muito na área agrária, que se pode autorizar o direito em área não propícia para produção de uma determinada cultura ou criação de gado, só para citar alguns exemplos.

Durante as pesquisas processuais, notamos que na prática esta exigência legal não está a ser cumprida de forma persistente e contínua. Desse modo, regra geral os pareceres que constam dos processos são somente os administrativos provenientes dos Serviços Distritais de Actividades Económicas e dos Administradores de Distritos.

É uma norma que quanto a nós não oferece dificuldades para o seu cumprimento porque a lei impõe que se consulte e se a entidade competente não responde no prazo de 45 dias o processo deve prosseguir a sua marcha fazendo constar nele que houve consulta, mas não houve resposta. Entendemos que pela sua importância deve ser cumprida.

8.4. Competências

A Lei 19/97, de 1 de outubro, estabeleceu o regime de competências, conferindo poderes aos diversos órgãos da Administração Pública estaduais e municipais e pela primeira vez, ás comunidades locais.457

Durante o período em análise no cômputo geral os órgãos respeitaram os limites dos seus poderes. Uma única situação foi referenciada durante as entrevistas que efectuamos apontando que verificou-se de uma forma reiterada o uso de competência não atribuída aos Administradores.

Tal situação fez se sentir com maior evidência no distrito de Boane em terrenos fora do perímetro da vila sede abrangido pelos planos de urbanização. Esse fenómeno verificou-se no Belo Horizonte, nos parcelamentos das Massacas, Mafuiane, Mahubo e noutras regiões do distrito, em que a autoridade que autorizou os pedidos foi o Administrador em detrimento da competência atribuída ao governador seu superior hierárquico, o que fez com que na hora de se concluir o processo de titulação os requerentes eram obrigados a iniciarem um novo processo nos SPGC com vista a obter a titulação do seu direito.

Um aspecto a realçar é que as autoridades distritais iniciaram este exercício sem estarem dotados dos Serviços de Cadastro apetrechados com pelo menos um técnico formado em topografia, fazendo com que se embarcasse na alocação de terras sem condições mínimas para existência de um cadastro organizado.458

457 As competências dos órgãos estão plasmadas na lei de terras. Assim, nos termos do artº 22 daquele diploma legal, a competência dos governadores vai até 1000 ha e autorizar licenças especiais nas zpp e dar pareceres nos processos que a área requerida ultrapassa a sua competência. Ao Ministro da Agricultura é atribuída competência de decidir sobre pedidos até 10.000ha, autorizar licenças especiais nas zonas zpt e ainda de dar pareceres aos processos cujos pedidos ultrapassam a sua competência. E ao Conselho de Ministros para áreas que estão para além da competência do Ministro da Agricultura e criar, modificar ou extinguir as zpp e zpt. Aos municípios e de povoação e aos Administradores de Distrito nas vilas sede sem municípios instituídos com Serviços de Cadastro organizados e dentro das áreas cobertas por planos de urbanização. Ás comunidades locais as suas competências encontram-se plasmadas no artigo 24 da mesma lei.

458 Aconteceu no Belo Horizonte onde se ergueu um Bairro de construções convencionais, estabelecido sem observância das condições de urbanização incluindo a previsão de espaços para instalação de equipamentos

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Do ponto de vista doutrinal, o que aconteceu em Boane constitui um vício de incompetência considerando que houve prática por um órgão de Administração Pública de actos administrativos adstritos ás atribuições ou competência de um outro órgão da Administração Pública.459

É uma incompetência relativa ou incompetência por falta de competência, porque praticada por um órgão da mesma pessoa colectiva, mas fora da sua competência e da alçada do governador, órgão da mesma pessoa colectiva(Estado).460 Pode-se considerar também uma incompetência hierárquica por invasão aos poderes atribuídos ao outro órgão, o governador Provincial, por sinal seu superior hierárquico.461 Estamos perante uma infracção que torna os actos do Administrador inválidos. Mas que tipo de invalidade?

Na nossa opinião trata-se de actos anuláveis tendo em conta que a regra doutrinal do nosso direito administrativo é de que os vícios dos actos administrativos são sujeitos, via de regra, á anulação e não á figura de nulidade.462

A mesma doutrina esclarece que a opção pela figura de anulabilidade é justificada pela necessidade de se imprimir a certeza e de segurança na ordem jurídica, na medida em que vigorando a nulidade como regime regra, haveria receio de a qualquer momento por qualquer tribunal ou autoridade prevalecesse por tempo indeterminado a dúvida sobre se os actos administrativos são legais ou não, válidos ou inválidos.463

Vigorando o regime de anulabilidade, se o acto não for atacado que entendemos ser dentro do prazo de um ano seguindo a regra geral do direito, haverá sanação do vício do acto administrativo.464 Admite-se ainda que o vício se sane por rectificação, reforma ou conversão do acto.465 Foi esta última regra que se adoptou para reciclagem de muitos processos. Esta situação foi

sociais. Muitos terrenos não tiveram processos administrativos e técnicos devidamente instruídos e houve sobreposições. Faustino Francisco Firme, funcionário dos Serviços de infra-estruturas de Boane, responsáveis actuais pelo cadastro de terras, disse que a prioridade actual é a organização do cadastro e do seu arquivo, porque na actual situação, há muitos processos que não têm correspondência com os terrenos a que aparentemente dizem respeito e o cenário é de sobreposições de direitos. Segundo ele, a orientação actual é cingir os poderes do Administrador nas áreas onde há planos de urbanização e a zona rural para o governador conforme preconiza a lei. Estão em processo de solicitar o reconhecimento de existência de um serviço de cadastro e dispõe de 4 técnicos da área e tem um GPS e teodolito que permitem realizar as demarcações. Com esta equipe pode-se corrigir os erros cometidos no passado.

459 CFr Diogo Freitas do Amaral, direito Administrativo V3, página 298.

460 Idem, pág. 299.

461 Idem, pág. 300.

462 Idem página 329. Freitas do Amaral Escreve: “No nosso direito, a nulidade tem carácter excepcional, a anulabilidade é que tem carácter geral.”

463 Idem página 330.

464 Idem, pág. 330. Em relação á adopção do prazo de um ano para impugnar o acto anulável, cfr os artºs 285º e 287º do c.c.

465 Idem, pág 327.

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sendo ultrapassada através de sensibilização das autoridades locais e elas também foram se apercebendo que estas práticas são prejudiciais ao processo e ferem a lei.

Finalmente não deixamos de referir que, o exercício de competências no âmbito de autorização do direito de uso e aproveitamento da terra é um poder- dever que pesa sobre os titulares dos órgãos competentes. É assim que durante o período em análise foram adoptadas medidas pelo governo que visavam acelerar a resposta aos pedidos enquadradas no pacote de melhoria do ambiente de negócios em Moçambique.

Nesse âmbito se assumiu o compromisso de se desembaraçar os pedidos num prazo de 90 dias. Da análise que efectuamos constatamos que praticamente a observância rigorosa desta medida terminou em 2004 e actualmente não se respeita este prazo.

É nossa opinião que esta situação se deve ás mudanças de titulares e ausência de um instrumento que torne a medida obrigatória e perene. A reclamação que encontramos no CPI em relação aos atrasos nos despachos de pedidos de terras para implementação de projectos sugere a tomada de medidas nesta área.

Ainda em matéria de competências, deparamos durante o trabalho de campo com uma decisão datada de 9 de Dezembro de 2008 do Ministro da Agricultura que suspende o recebimento de novos pedidos do direito de uso e aproveitamento da terra na Província de Maputo até que se conclua o trabalho de zoneamento das terras na Província, fundamentando a decisão nos poderes conferidos pelo regulamento da lei de ordenamento do território, aprovado pelo Decreto n° 23/2008 de 1 de Julho e nos poderes conferidos pelo Decreto presidencial nº 24/ 2005, de 27 de Abril.

Só que salvo melhor opinião, compulsados esses dispositivos legais, não nos parece líquido que confiram competência ao Ministro da Agricultura para suspender temporariamente a vigência da lei de terras na Província de Maputo ou em qualquer outro ponto do território nacional.466 É uma decisão que afecta interesses de cidadãos, alguns com pretensões de adquirir o direito em zonas que mesmo havendo zoneamento não serão abrangidas.

8.5.Demarcação.

A demarcação é uma acção que é imposta aos requerentes pelo regulamento da lei de terras.467 Aquele diploma legal impõe que autorizado o requerente, os Serviços de Cadastro deverão notificá-lo da decisão, instando-o da necessidade de demarcar a área autorizada no prazo de um ano, findo o qual se não o tiver feito ele deverá ser advertido da eminência de cancelamento da autorização provisória. É dada ao requerente a possibilidade de, querendo, pedir que lhe seja

466 A propósito conferir a alínea b) do artigo 61 do regulamento da Lei nº 19/2007, de 18 de Julho, lei de ordenamento do território e a alínea b) do artº 3 do Decreto Presidencial nº 24/2005, de 27 de Abril. O preceito do regulamento da lei de ordenamento do território que estamos a citar refere-se ao conteúdo de zoneamento e diz expressamente que a integra “a caracterização das formas de ocupação dos terrenos dentro das áreas a considerar para zoneamento incluindo os direitos estabelecidos por DUAT, ou outros”. Não encontramos nesta redacção um sentido que atribui competências ao Ministro da Agricultura. Por outro lado, o preceito evocado do decreto presidencial que define as atribuições e competências do Ministério da Agricultura diz que “ estabelecer normas para o licenciamento, fiscalização e monitoria do uso de recursos agrários”. Neste caso não encontramos poder de suspensão temporária da lei de terras e mesmo se assim fosse, o decreto presidencial é um instrumento legal hierarquicamente inferior e não pode por isso sobrepor-se a uma lei em sentido formal.

467 Cfr o artº 30 daquele diploma legal.

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prorrogado o prazo, pedido que lhe será autorizado mas não por um tempo superior a noventa dias improrrogáveis.

Em relação á demarcação falamos com maior desenvolvimento na secção sobre o cadastro nacional de terras porque ela constitui um instrumento de consolidação do cadastro nacional de terras. Voltamos a referirmo-nos aqui a esta figura na medida em que ela é elemento fundamental para a autorização definitiva e consequentemente da titulação do direito de uso e aproveitamento da terra.

Em relação a esta matéria a ilação tirada é de que o trabalho de demarcação das terras é pouco desenvolvido. Infelizmente não conseguimos informações organizadas a este respeito, porque nos SPGC de Maputo no período em análise não houve registo de dados.

Todavia, das informações obtidas soubemos que poucas pessoas demarcaram as suas terras e as poucas que demarcaram são essencialmente detentoras de áreas pequenas, mais no sector de construção de habitações e não na zona rural.468

Quanto a nós a razão de fundo para além das dificuldades financeiras que os sujeitos podem ter, tem maior peso o facto de que os Serviços não estão a implementar rigorosamente a fiscalização e cancelamento dos processos com prazos de demarcação expirados de acordo com a lei, o que gera um espírito de impunidade. É nossa opinião que medidas devem ser tomadas porque a lei é clara. Havendo rigorosidade na aplicação da lei, as pessoas serão compelidas a demarcar ou a desistirem voluntariamente das terras que ocupam.

Consta que dos 2.321.300 hectares total de terras agrárias disponíveis na Província, 1.322.338 hectares foram requeridos, restando 998.962 hectares que se presume pertencentes ao sector camponês como a seguir fazemos uma apresentação detalhada por Distrito:

TABELA 2

Situação de ocupação de terras na província de Maputo

Distrito Área total(há) Área requerida(há) Área não requerida (há)

Número de famílias camponesas

Boane 81.100 80.800 300 14.504

Marracuene 83.300 68400 14.900 9.296

Namaacha 214.400 210.184 4.216 5.138

468 Informações fornecidas durante as entrevistas com os Senhores Elisa Chidimatembue, técnica do cadastro nos SPGC de Maputo, Francisco João Pateguana, presidente da associação dos agrimensores ajuramentados de Moçambique e Caetano Victorino de Sousa, agrimensor ajuramentado. Em resumo a ideia é que a falta de demarcação pode resultar de vários factores entre eles o custo de demarcação que é relativamente alto por estar cotado a 3.000 meticais o ha, podendo ser regressivo conforme se a área a demarcar for maior, mas consideram que mesmo assim é muito para o actual nível do custo de vida, a falta da cultura de titulação e a relativa falta de disputa sobre terras exigindo a procura de intervenção das instituições judiciais que podia requerer prova documental. Disseram ainda que quando alguém lhes solicita a demarcação de uma área grande é porque pretende adquirir título para efeitos de um crédito, mas sobretudo quando tem alguma parceria em vista.

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Manhiça 237.200 129.893 107.307 26.425

Moamba 452.800 257.110 195.690 8.193

Matutuine 552.800 342.628 210.172 6.389

Magude 699.700 233.323 466.377 7.428

TOTAL 2.321.300 1.322.338 998.962 77.373

Fonte: Serviços Provinciais de Agricultura de Maputo

A Província presentemente luta com enorme falta de terras para atender novas iniciativas de investimento particularmente na área agrária. A área ainda não requerida aparentemente é suficiente considerando que se multiplicarmos as 77.373 famílias pela média teórica de 5 pessoas por família segundo o censo da população de 2007 obtemos um número de 386.865 pessoas que integram as famílias camponesas, o que quer dizer que a cada pessoa cabem 2,5 hectares, que podem ser considerados suficientes, mas isso não é tão linear, porque á média provincial contrastam as situações como de Boane que teoricamente só ficou com 300 hectares para 14.504 famílias camponesas que teoricamente integram 72.520 pessoas.

A área teórica que cabe a cada camponês de Boane é irrisória. Porque na prática estas famílias ocupam-se da agricultura, pode se perguntar onde arranjam a terra para essa actividade? Só há uma explicação, a hipótese de uma vez que a maioria dos requerentes não explora as terras autorizadas, a população continua a exercer nelas a sua actividade produtiva.

Somos de opinião que a solução é recorrer-se á aplicação da lei no que concerne á fiscalização rigorosa do cumprimento do plano de exploração e do prazo de demarcação, de modo a que aos faltosos seja retirado o direito de uso e aproveitamento da terra, abrindo desse modo lugar para novos interessados e com capacidade para exploração útil da terra ou libertá-la para que a população camponesa tenha espaço suficiente em todos os distritos para exercer a sua actividade. Segundo informação prestada pelos nossos entrevistados que lidam com a actividade de agrimensura privada, a maioria da área autorizada na Província, para além de não ser aproveitada, ela não está a ser demarcada em conformidade com as exigências legais. 469

8.6. Título e registo.

Os títulos do direito de uso e aproveitamento da terra representam o culminar do cumprimento da autorização provisória com o decurso do tempo, ou por antecipação do cumprimento do plano de exploração, dando lugar á autorização definitiva.470 No entanto, no actual

469 Entrevista com Francisco João Pateguana, Presidente da associação de agrimensores ajuramentados de Moçambique e Caetano Victorino de Sousa, agrimensor ajuramentado, ambos foram unânimes em afirmar que se estima que mais de 80% das terras destinadas á agricultura e pecuária autorizadas não estão a ser utilizadas nem demarcadas.

470 A autorização provisória prevista no artigo 25 da actual lei de terras, prevê um período probatório de uso da terra de 5 anos para nacionais e de 2 anos para estrangeiros. O artº 26 do mesmo diploma estabelece que se for cumprido o plano de exploração dentro do período probatório, deverá ser dada uma autorização definitiva e passado um título. Essa autorização não é passada oficiosamente, mas requerida no fim do prazo da autorização provisória ou sentindo o requerente que cumpriu cedo o plano de exploração, requerer uma vistoria para o confirmar e legitimar a passagem de autorização definitiva. É o que consta do artigo 31 do

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cenário caracterizado pela fraca aderência dos requerentes ás demarcações das terras a eles autorizadas o direito, isso implica necessariamente um baixo índice de titulação e consequentemente baixo fluxo de processos no registo Predial.471

Na nossa opinião o baixo índice da procura de títulos e consequente seu registo, parte do problema que mencionamos acima em relação ás demarcações, mas tudo se prende com o facto de que quando as pessoas adquirem o direito, demarcando ou não o terreno nada lhes ameaça.

A ameaça de retirada do direito por falta de demarcação podia ser persuasora, mas também se houvesse disputas que requeressem a submissão de acções judiciais aos tribunais, seria uma forma de incentivo á consciência de que a titulação e registo na Conservatória especialmente nesta, é uma formalidade jurídica que ofereceria garantia para segurança e defesa do direito de uso e aproveitamento da terra.

É sabido que o direito de uso e aproveitamento da terra se constitui e habilita o titular do direito a realizar empreendimentos que quiser independentemente do título. Por exemplo alguém requer um espaço para construção de um edifício. Basta o despacho da entidade competente para poder obter licença de construção e erguer o seu empreendimento independentemente do título e registo.

O mesmo acontece noutras actividades como agricultura e pecuária que se desenvolvem com base na simples autorização e sem dependência do título e registo. Portanto, o título e registo do direito não são elementos atributivos do direito, mas sim instrumentos de prova e de publicidade. Á luz da legislação actual em vigor em Moçambique o registo não é obrigatório e obedece o princípio de instância.472

Terminamos a análise da matéria relativa á titulação do direito de uso e aproveitamento da terra. Na nossa análise não esgotamos todas as figuras que integram esta secção, porque cingimo-nos ás questões que á luz das nossas pesquisas sentimos que surgiram algumas vicissitudes no contexto de implementação da lei de terras no período em análise. Concluída esta abordagem, passamos a fazer uma referência á transmissão de direitos.

9. Transmissão de direitos.

A transmissibilidade do direito de uso e aproveitamento da terra na actual legislação moçambicana sobre terras é admitida, tal e qual como acontecia na Lei 6/79, de 3 de Julho, obedecendo as condições impostas pelo legislador tendo em conta o regime de propriedade sobre terras473. Os condicionalismos resultam, como já vimos supra, do facto de a legislação

regulamento da actual lei de terras.

471 Fizemos uma pesquisa junto da Conservatória do Registo Predial de Maputo e obtivemos a informação por escrito de que o fluxo do registo dos prédios rústicos é baixo, rondando uma média de 3 a 4 processos por mês. Aquela instituição não conseguiu fornecer dados do período em análise alegadamente por não ter o sistema de registos organizado, mas a informação dada ajuda para entender que a situação não é boa.

472

473 Cfr o artigo 16 da Lei n° 19/97, de 1 de Outubro e do artº 15 do seu regulamento. A lei de terras apoiou-se no comando do artº 48 da Constituição de 1990 que reconhece o direito adquirido por herança. Trata-se de um direito que veio a ser reafirmado pela Constituição de 2004, ao reconhecer o direito da herança no geral ao abrigo do artº 83 e nos termos do seu artº 111 no concernente especificamente ao direito de uso e

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moçambicana de terras ter retomado o principio constitucional de que a terra é propriedade do Estado e a proibição de qualquer forma da sua alienação.474

9.1. Modalidades de transmissão

A actual lei de terras considera explicitamente duas modalidades de transmissão do direito de uso e aproveitamento da terra, a mortis causa e a que resulta de negócios jurídicos entre vivos.475 Uma terceira modalidade é a que nós chamamos de transmissão atípica ou indirecta do direito de uso e aproveitamento da terra pelas comunidades locais, como adiante iremos desenvolver. Vamos estudar de seguida cada modalidade.

9.1.1. transmissão mortis causa.

Esta modalidade de transmissão é a primeira que vem considerada na actual lei de terras que estatui que o direito de uso e aproveitamento da terra pode ser transmitido por herança sem distinção de sexo.

Esta formulação legal surge da necessidade de proteger a mulher, vítima de discriminação no seio de muitas comunidades moçambicanas e conformou-se com o comando inserido na Constituição de 1990 que estava em vigor quando a nova lei de terras foi aprovada, que estabelece o princípio de igualdade do género, o qual veio a ser reafirmado pela Constituição de 2004.476

Ainda nesta modalidade de transmissão, embora não venha explícito na lei, há que ter em consideração o princípio de igualdade entre os filhos do de cujus, em obediência ao comando constitucional que estabelece a igualdade entre as pessoas perante a lei. Deixa deste modo de existir a categoria de filhos, irmãos e colaterais ilegítimos. 477

Um outro aspecto importante a realçar é que o direito de uso e aproveitamento da terra nesta modalidade transmite-se automaticamente com a abertura da sucessão, que segundo a lei sucessória ela acontece no momento da morte do seu autor e no lugar onde ele vivia nos últimos momentos da sua vida.478 Esta estatuição legal corresponde ao princípio de que sendo o direito de uso e aproveitamento da terra património familiar, faz

aproveitamento da terra.

474 Idem, artigo 3.

475 De novo cfr o artigo 16 da lei de terras.

476 Cfr o artº 67 da CRM90 e o artº 36 da CRM04.

477 Cfr o artº 35 da CRM04. No nosso entender, este preceito constitucional revoga implicitamente o que trata de filhos ilegítimos, artº 2.139º e 2.140º ambos do c.c, o que se refere aos irmãos ilegítimos e seus descendentes, artº 2.144º do c.c. e ainda colaterais ilegítimos, artº 2.150º do c.c.

478 Cfr o artº 2031º do c.c. Entendemos que o último domicílio a que se refere a lei sucessória, é o domicílio habitual com a alternativa prevista no artº 82º do c.c.

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sentido que com a morte do de cujus ele deve ser, via de regra, transmitido ás pessoas da sua família.479

9.1.2. Resultado de análise de processos de transmissão de direitos por herança .

A dificuldade de se localizar mais processos relativos á transmissão do direito de uso e aproveitamento da terra por esta via, não nos permitiu estudar muitos processos de modo a tirarmos uma ilação suficiente no que concerne aos procedimentos seguidos tendo como escopo a observância das regras teóricas e práticas que envolvem a sucessão mortis causa.

Apesar dessa dificuldade de localizar mais processos legais, conseguimos no entanto localizar quatro processos que cobrem o período em análise(1998, 2002 e 2008) que podem ilustrar o que aconteceu. Passamos a apresentar de seguida essa análise do que foi possível ter acesso, usando apenas o número do processo por questões de conveniência.

9.1.2.1. Processo número 35.655 de 1997, despacho de 22 de Janeiro de 1998.

Este processo diz respeito a um terreno de 20 ha não antes titulado, aparentemente ocupado de acordo com as normas e práticas costumeiras pelo seu falecido pai desde 1963. O Filho pretendia legalizar o direito, mas foi aconselhado a recorrer á figura de sucessão na posse, a qual não lhe obriga a ter que requerer um título salvo se a sua vontade fosse essa, pois está implícito na lei de terras que não é obrigatório que as comunidades e seus membros tenham títulos, ao afirmar no que respeita ao registo do direito de uso e aproveitamento da terra que a falta do registo não prejudica o direito de uso e aproveitamento da terra adquirido por ocupação.480

Foi também aconselhado que como alternativa, podia requerer o direito de uso e aproveitamento da terra desde que acautelados os direitos de prováveis outros herdeiros, o que implicava o respeito pelas normas do direito sucessório. Ele optou por esta via de requerer a autorização do pedido e nesse sentido, submeteu um requerimento dirigido á entidade competente, junto do qual anexou uma declaração da autoridade administrativa local informando que o requerente era o único filho sobrevivo do de cujus. Em 21 de Janeiro de 1998 foi deferido o pedido.

Para a actual lei de terras esta via seguida pelo requerente constituiu um exercício que visou o desmembramento da sua parcela e enquadra-se nas previsões legais acomodadas por ela e pelo seu regulamento.481

479 A propósito desse pensamento, cfr F. M Pereira Coelho, direito das sucessões, pág. 41.

480 Em relação á sucessão na posse, de novo cfr o artº 1255º do c.c. Em relação á não obrigatoriedade do registo, cfr o número 2 do artº 14 da actual lei de terras.

481 O número 5 do artº 13 da actual lei de terras dispõe que as pessoas singulares de todos os sexos que integram uma determinada comunidade gozam do direito de requererem títulos individualizados após o desmembramento da sua parcela do conjunto da área comunitária. Por seu turno, o número 1 do artº 15 do regulamento da actual lei de terras dispõe que o processo de desmembramento das terras dos membros das comunidades não dispensa a consulta ás comunidades e não deve incluir as áreas de uso comum como pastos

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No entanto, aqui levanta-se um problema similar àquele que se coloca em relação á titulação dos direitos de pessoas singulares nacionais que ocupam a terra de boa fé há pelo menos 10 anos, que no nosso entender dispensam a autorização provisória. No caso de desmembramento, entendemos também que deve-se conferir uma autorização definitiva e título e não uma licença de autorização provisória como aconteceu neste processo.

9.1.2.2. Processo nº 5093, de 2002, despacho de 5 de Setembro de 2002.

È um terreno com 16 ha que pertenceu a um finado que o deixou aparentemente com benfeitorias, sem ter concluído o processo de legalização do direito de uso e aproveitamento da terra. A implantação de benfeitorias antes de legalização do direito é uma situação que tem acontecido quando se trata de prédios rústicos no meio rural.

Depois da morte do de cujus, a mulher com quem vivia antes de perecer, abriu em seu nome um processo de pedido do direito de uso e aproveitamento da terra em 27 de Junho de 2002, não obstante os herdeiros filhos do de cujus com outra mulher terem submetido uma petição aos SPGC, 25 dias antes reclamando o direito sobre o terreno deixado pelo seu pai e denunciando a intenção da sua madrasta de se apoderar do mesmo á sua revelia. Note-se que de acordo com a lei sucessória em vigor em Moçambique, os descendentes ocupam o primeiro lugar na classe de sucessíveis.482

Não obstante essa reclamação, o processo seguiu o seu curso normal com parecer favorável dos SPGC de Maputo emitida a 9/8/2002 á decisão do governador da província que viria a ser proferida favoravelmente em 5/9/02.

Esta situação levanta questões jurídicas relevantes, porque á luz da lei sucessória a mulher do de cujus ocupa o 4º lugar na classe de sucessíveis.483 Neste caso ou ela era casada em regime de comunhão geral de bens e aí o património presente e futuro seria comum e automaticamente ela teria direito como meeira.484

Mas na falta de elementos no processo podemos admitir outras hipóteses podendo ter casado em regime de comunhão de adquiridos.485 Tendo sido este o regime matrimonial, a requerente só tinha direito de exigir a meação do património adquirido na constância do casamento.

Todavia, podia acontecer que não tivesse adoptado nem o regime de comunhão geral de bens, nem o de comunhão de adquiridos a que nos referimos supra pelo facto de o

comunitários, florestas sagradas e de fornecimento de combustível lenhoso e material de construção á comunidade só para citar alguns exemplos.

482 A propósito cfr a alínea a) do artigo 2133º do cc.

483 Cfr a alínea d) do artº 2133º do c.c.

484 Sobre a comunhão geral de bens, cfr o art° 1.732° c.c..

485 A propósito da comunhão de adquiridos, cfr o artº 1.721°c.c.

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casal ter optado pelo regime de separação de bens.486 Se tiver sido este o regime adoptado, a requerente não teria direito de reivindicar direitos sobre aquele terreno.

Caso tivesse casado em regime de união de facto, face á falta de previsão legal no momento de abertura da sucessão, a viúva não teria direito de reivindicar o direito de uso e aproveitamento da terra sobre aquele terreno e direito sobre as benfeitorias nele implantadas.

9.1.2.3. Processo nº 4.782, de 2002, despacho de 20 de Junho de 2002.

Trata-se de um pedido de autorização para regularização do direito sobre um terreno de 5 ha deixado pelo finado pai. Aparentemente o terreno foi adquirido de acordo com as normas e práticas costumeiras. O de cujus deixou 7 filhos que aparecem apenas alistados num papel anexo ao processo sem que isso tenha alguma relevância jurídica, mas o pedido foi feito pelo irmão mais velho e a ele foi autorizado e passada a licença de autorização provisória. Mais uma vez a repetição da falha de não se conferir a autorização definitiva quando há uma sucessão na posse ou averbamento do título se este existir quando se trata de transmissão mortis causa.487

Outra questão jurídica relevante está na exclusão consciente ou inconsciente dos outros irmãos do processo sucessório. A opção correcta seria todos os irmãos requererem o direito, porque no caso de transmissão mortis causa implicitamente há uma co-titularidade legal quando existe mais que um sucessível a não ser que tenha havido partilha do bem cabendo a ele o direito ao terreno que nos parece que não é o caso. O sentido que esta legalização seguiu significa perda do direito pelos restantes irmãos, porque se perecer o requerente serão chamados á sucessão os seus filhos se os tiver e não os irmãos.488

É certo que existe a hipótese de os herdeiros excluídos poderem recorrer á figura de acção de petição de herança para o reconhecimento da sua qualidade sucessória na expectativa de obter os benefícios daí provenientes, mas essa possibilidade embora susceptível de ser usada a todo o tempo dentro do prazo de 10 anos, tem no entanto a ameaça de aplicação das regras de usucapião.489 Portanto, eles só podem corrigir aquela situação dentro destes condicionalismos jurídicos.

Importa referir que o procedimento seguido neste caso, conforma-se com o regime sucessório seguido nas comunidades africanas, onde a terra é propriedade colectiva e em caso da morte do pai da família o filho mais velho substitui ao seu progenitor e passa a ocupar o lugar de chefia.

486 Sobre a separação de bens, cfr o art°. 1.735° do c.c.

487 O nº 3 do artigo 16 da lei de terras dispõe que a transmissão do direito de uso e aproveitamento da terra deve ser averbada no respectivo título.

488 Cfr a alínea a) do artº 2133º do c.c.

489 Cfr o nº 1 do artº 2059º e o artº 2075º, ambos do c.c.

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A respeito disso abordamos uma das irmãs do requerente, por sinal uma técnica superior formada em agronomia que disse que houve consenso entre os irmãos para que a terra fosse titulada em nome do mais velho em representação dos irmãos por passar a ocupar o lugar do falecido pai na hierarquia familiar, mas presume-se que a terra pertence a toda a família lar. Apesar desse entendimento entre os irmãos, é nossa opinião que o risco de perda do direito é maior especialmente para a segunda geração representada pelos seus filhos.

9.1.2.4. Processo nº 16. 515, de 2008, despachado em 20 de Agosto de 2008.

Um cidadão estrangeiro, italiano, submeteu uma petição para regularização de um terreno de 160 ha contendo bens dentre eles uma casa, uma pocilga e capoeiras. Feita a consulta a 14 pessoas supostamente em representação da comunidade local presentes, disseram que não viam inconveniente porque aquele terreno e as infra-estruturas pertenceram ao seu falecido pai.

Para nós a primeira questão que se levanta é que sendo um processo sucessório devia se seguir a regra apropriada. No processo não consta nenhuma prova que ateste que o requerente tem alguma ligação com o dono do terreno e das instalações e não está anexo algum documento que prove que aquelas instalações pertenceram ao de cujus pai do cidadão que reivindica o direito. Havia que provar documentalmente o direito em reivindicação porque o direito sobre aquele bem imóvel não se pode presumir. Assim, não havendo prova convincente aquele imóvel e as benfeitorias nele instaladas, legalmente constituem bens imóveis com dono desconhecido, e por esse motivo pertencem ao Estado.490

Na prática eram instalações abandonadas e devia se averiguar se foram em tempos intervencionadas e integradas nas empresas estatais de modo a submeter o processo á Comissão de Avaliação e Alienação dos bens do Estado de modo a que o interessado pagasse os bens ao abrigo da Lei nº 15/91 de 3 de Agosto e do regulamento de alienação a título oneroso de empresas estabelecimentos, instalações, quotas e outras formas de participação do Estado aprovado pelo Decreto 21/89, de 23 de Maio, desde que reunisse os requisitos legais aplicáveis. Portanto, não apresentando um processo que o habilite como herdeiro, ele devia seguir a via de alienação das instalações.

Se houvesse prova de que o terreno pertenceu ao falecido pai do requerente reunindo-se assim condições que o habilitassem como herdeiro, colocaria-se a questão jurídica de saber qual seria a lei sucessória aplicável.

Tem sido prática no País aplicar-se indistintamente a lei sucessória moçambicana mesmo tratando-se de um caso como este envolvendo espólio de um cidadão estrangeiro, mas provando-se que o de cujus era estrangeiro, era necessário seguirem-se as normas do direito internacional privado.

490 Cfr o artº 1345º do c.c.

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Essas normas estatuem que a sucessão por morte de um sujeito estrangeiro é regulada pela sua lei pessoal ao tempo de falecimento e quanto á lei pessoal as mesmas normas definem que a lei pessoal é a da nacionalidade do indivíduo.491 Neste caso, se o de cujus mantivesse até á sua morte uma nacionalidade estrangeira e não optasse por adquirir a nacionalidade moçambicana, essa sucessão mortis causa teria que se reger á luz da lei da sua nacionalidade.

A análise destes 4 processos dá para nos apercebermos que o tratamento de processos de transmissão mortis causa ainda enferma de muitas irregularidades que afectam os interesses das pessoas e do próprio Estado. Há lacunas de conhecimento no seio dos funcionários encarregues de tramitação processual que quanto a nós só podem ser superadas com uma reciclagem constante dos mesmos.

491 Cfr os artºs 31º e 62º, ambos do c.c.

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9.2. Transmissão entre vivos.

A mesma dificuldade de localização de processos também se sentiu nesta figura, com maior gravidade porque não foi possível detectar algum processo, dado que mesmo solicitados especificamente o nosso pedido não foi satisfeito devido ás dificuldades originadas pela organização do arquivo que não é classificada por assuntos.

Nesta modalidade de transmissão, a lei de terras admite que os sujeitos de direito poderão transmitir as construções, infra-estruturas e benfeitorias por eles implantados no terreno mediante escritura pública antecedida de autorização da entidade que atribuíra o direito de uso e aproveitamento da terra.492

Neste caso, entende-se que a transmissão do direito de uso e aproveitamento da terra entre vivos só se opera mediante a alienação de construções, infra-estruturas e benfeitorias implantados pelo sujeito no terreno. Entendemos pois, que não é permitida a transmissão do direito de um terreno que não houve investimento. Essa limitação tem em vista obrigar as pessoas a investirem e evitar o recurso á especulação sobre a terra.

Uma outra figura que reputamos ser de considerar na transmissão entre vivos é a que se pode operar por doação. A doação é o contrato que ocorre quando uma pessoa imbuída do espírito de generosidade e á custa do seu património disponibiliza de forma gratuita dentre outros, uma coisa ou um direito.493 Na figura de transmissão em análise encontramos a transmissão de coisas, que são as construções, infra-estruturas e benfeitorias, mas como corolário dessa transmissão se transmitirá também o direito de uso e aproveitamento da terra para o adquirente.

A transmissão entre vivos está condicionada á apresentação da prova de que o titular paga regularmente as taxas do direito de uso e aproveitamento da terra e de que o plano de exploração previsto para o terreno em causa está a ser cumprido. 494 Essa regra

492 cfr o nº 2 do artigo 16 da actual lei de terras.

493 Cfr o nº 1 do artº 940º do cc.

494 Cfr o nº 2 do artigo 15 do regulamento da actual lei de terras. O plano de exploração é uma exigência imposta pelo artigo 19 da actual lei de terras. Segundo o nº 12 do artigo 1 da mesma lei de terras, o plano de exploração é um documento apresentado pelo requerente do direito de uso e aproveitamento da terra, no qual descreve o conjunto de actividades, trabalhos e construções que se compromete a realizar obedecendo um determinado calendário discricionariamente por ele estabelecido. È nossa opinião que o plano de exploração deve estar adequado á dimensão da área pretendida. Quer dizer, um plano de exploração para uma área de 1000 hectares, não pode ser semelhante a um plano para 20 hectares. Um outro aspecto importante no nosso entender é que o plano de exploração como a própria definição esclarece, é uma simples descrição coerente de actividades a desenvolver e não um estudo de viabilidade económica. Vimos na análise processual que fizemos que alguns confundem o plano de exploração com estudo de viabilidade económica. De facto na vigência da 1ª lei de terras, a Lei n° 6/79, de 3 de Julho, para as actividades económicas os requerentes eram obrigados a apresentar planos de exploração que eram elaborados pelos próprios funcionários ligados aos Serviços Agrários a título oneroso e via de regra não aprovavam os planos feitos fora da instituição porque isso representava perda de receita pessoal dos técnicos sectoriais tais como pecuária, agricultura, fauna bravia e etc. Foi para corrigir essa situação que se incluiu uma definição clara do que é um

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também é extensiva para a doação. Aliás, sendo uma doação de bens imóveis, a lei impõe que a forma a seguir é a da escritura pública.495

Na transmissão entre vivos encontramos também a transmissão de prédios urbanos, que têm um regime diferente dos prédios rústicos, pois enquanto nestes, como já nos referimos acima, a transmissão do direito de uso e aproveitamento da terra está dependente de autorização prévia da entidade competente, nos prédios urbanos a transmissão do direito de uso e aproveitamento da terra é feita logo que celebrada a respectiva escritura pública de compra e venda do imóvel e não carece de autorização prévia da entidade competente.496

No capítulo de transmissão, a entidade que regulamentou a actual lei de terras, inseriu no regulamento a figura de cessão de exploração, dispondo que a celebração de contratos da cessão de exploração está sujeita á autorização prévia da entidade competente e a sua validade está dependente da celebração da escritura pública.497

No entanto, é preciso entender que a cessão de exploração prevista no regulamento da actual lei de terras não constitui nenhuma transmissão de direitos. É uma figura jurídica que permite a um terceiro, mediante contrato a exploração da terra e respectivas infra-estruturas, construções e benfeitorias por um determinado tempo a título oneroso498 ou gratuito.

Todavia, é nossa opinião que a figura de cessão de exploração devia ter sido criada pela lei de terras, porque ela é uma verdadeira norma substantiva que o direito adjectivo não se mostra adequado para a instituir. Por outro lado, a doutrina499 considera que a cessão é um contrato que implica a transferência de bens ou de direitos e neste caso seria do direito de uso e aproveitamento da terra e de prováveis bens implantados no terreno.

Quer dizer, a cessão é uma verdadeira transmissão onerosa ou gratuita do património ou de direitos e não uma cedência a título precário para depois restituir ao proprietário. A cessão de simples exploração como prevê o regulamento da actual lei de terras é uma figura sui generis e teria maior força legal se a própria lei de terras a criasse.

plano de exploração.

495 O número 1 do artigo 947º do cc. dispõe que a doação de coisas imóveis só é válida se celebrada por escritura pública.

496 Cfr o nº 4 do artº 16 da actual lei de terras.

497 Cfr os nºs 4 e 5 do artº 15 do regulamento da actual lei de terras.

498 Na nossa opinião, a título oneroso a cessão de exploração pode consistir no pagamento de uma renda mensal, no fim de cada campanha ou partilha de resultados provavelmente com maiores benefícios para o cessionário.

499 Op cit Plácido e Silva V1 e 2, págs 418 e 419.

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9.3. A consulta ás comunidades locais como forma atípica ou indirecta de transmissão do direito de uso e aproveitamento da terra.

Dissemos acima que no que concerne á figura de transmissão do direito de uso e aproveitamento da terra, existe outra categoria que nós consideramos na nossa análise, a da transmissão atípica ou indirecta deste direito, por sinal a maior modalidade que ao longo dos últimos 10 anos movimentou milhões de hectares a nível de todo o País em geral e na província de Maputo em particular.

Estamos a falar das Comunidades locais que através da consulta para instalação de projectos ou atribuir a terra por autorização de um pedido, elas gozam de prerrogativa legal de serem consultadas.500

Entendemos que ao serem consultadas as Comunidades e ao anuírem que se autorize o pedido, elas estão a alienar por aquele acto o seu direito de se beneficiarem de um determinado espaço, que em muitos casos é por toda a vida.

No contexto criado pela actual lei de terras, é inegável e isso tem sido realidade, que os poderes das autoridades administrativas em muitos casos têm se visto cerceados quando se fazem autorizações sem o devido respeito pelos direitos dos membros de certas Comunidades que não se deixam cair na passividade.

Na realidade casos inúmeros houve neste período de projectos ou autorizações que foram inviabilizados pela acção das Comunidades que não aceitaram transmitir o seu direito, forçando o recuo do beneficiário, ou obrigando ao redimensionamento de áreas para se acomodar interesses de ambas as partes.

Pelas razões apontadas, nós entendemos que o papel das Comunidades locais ao anuírem que o seu Direito de Uso e Aproveitamento da Terra seja transferido definitivamente para terceiras pessoas elas estão a transmitir o seu direito, embora aparentemente de forma indirecta.

Finalmente, depois de fazermos esta abordagem e tomando em consideração as propostas avançadas por alguns dos nossos entrevistados a seguir apresentamos algumas ideias no que se refere á figura de transmissão de direitos:

Necessidade de se encontrar uma forma de tornar a transmissibilidade do direito de uso e aproveitamento da terra mais flexível cingindo-se essa flexibilidade àqueles casos que tiverem adquirido o direito de utilização definitiva da terra, resultado de ter feito investimentos. A ideia seria eliminar-se a figura de autorização prévia da autoridade competente que autorizara o pedido, considerando que se a pessoa teve a autorização definitiva é porque já fez

500 O acesso ao direito de uso e aproveitamento da terra ao abrigo de um pedido tem enquadramento legal na alínea c) do artigo 12 da actual lei de terras. A prerrogativa que as comunidades locais gozam de serem consultadas quando há um pedido para aquisição do Direito de Uso e Aproveitamento da Terra vem prevista no nº 3 do artigo 13 da lei de terras em vigor e ainda a alinea e) do número 1 do artigo 24 e nº 2 do artigo 27 ambos do respectivo regulamento.

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investimentos no terreno. Neste caso se seguiria o mesmo regime dos prédios urbanos por exibição do título de autorização definitiva.

Necessidade de se respeitar o principio de que o direito de uso e aproveitamento da terra é património do titular, fazendo parte integrante do seu direito de propriedade constitucionalmente consagrado. Nesse sentido, ao titular do direito de uso e aproveitamento da terra devia ser reconhecido o direito de dispôr dele dentro dos limites a estabelecer por lei, sem lesar o direito de propriedade sobre a terra que é reservado ao Estado. Pretende-se neste caso tornar o título livremente transmissível e com valor mercantil desde que o titular tenha adquirido a autorização definitiva por ter realizado investimentos. Quer dizer, enquanto o terreno estiver em regime de autorização provisória, não haveria transacionabilidade do direito;

Necessidade de se reflectir para que no futuro a terra detida por um nacional que queira estabelecer parceria com um estrangeiro a mesma possa ter valor para esse efeito;

Necessidade de se reflectir para que sem perda do direito de propriedade estatal sobre a terra, os estrangeiros tenham que pagar pela terra em Moçambique;

Em relação ás propostas aqui apresentadas elas são pertinentes porque estimulariam os titulares a interessarem-se por nelas investir por se sentirem mais proprietários do direito de uso e aproveitamento da terra, pois nas condições actuais em que não há nenhuma abertura á transacionabilidade dos títulos há uma certa falta de auto confiança.

10. Extinção do direito de uso e aproveitamento da terra.

Em primeiro lugar reputamos relevante buscarmos o entendimento do significado de extinção. Consta que extinção501 é uma palavra que deriva do latim extinctio, extinguere. Quer dizer, dentre outros sentidos, extinguir, caducar, deixar de ser válido. Extinção quer se referir a tudo o que se acabou ou deixou de existir, seja um direito, ou uma obrigação.

A extinção prevista na actual lei de terras visa pôr termo ao direito de uso e aproveitamento da terra como consequência de ocorrência de um conjunto de vicissitudes concretamente, falta de cumprimento do plano de exploração ou projecto de investimento sem motivo justificado mesmo que tenha o pagamento das taxas anuais em dia, por revogação por interesse público, no termo do prazo ou da sua renovação e pela renúncia do titular do direito.502 A seguir vamos abordar cada uma das figuras de extinção que enumeramos acima.

501 Idem, Plácido e Silva, V1 e 2, página 255.

502 Cfr o artigo 18 da actual lei de terras.

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10.1. Extinção por falta de cumprimento do plano de exploração

Já nos referimos acima que o plano de exploração é tido como documento elaborado e apresentado pelo requerente do direito de uso e aproveitamento da terra visando descrever e demonstrar o que, de forma faseada irá realizar, primeiro no período de autorização provisória e segundo na fase posterior e decorre do comando legal previsto na actual lei de terras que obriga a apresentação desta peça processual quando se trata de um pedido de terra para o exercício de actividade económica.503

Os dados disponíveis indicam que os Serviços provinciais de Geografia e Cadastro de Maputo intensificaram mais a sua actividade de fiscalização do cumprimento do plano de exploração a partir de 2005. Se antes houve actividade, a informação não se encontra disponível. A extinção de direitos por incumprimento do plano de exploração via de regra é consequência de um processo de fiscalização que resulta de uma atribuição legal conferida pelo regulamento da actual lei de terras.504

Avaliando os dados disponíveis, verifica-se que apesar de exiguidade de meios, mormente de transporte505, nota-se que houve esforço no sentido de realizar as fiscalizações que resultaram na revogação de muitos pedidos como podemos ver a adiante.

Tabela 3. Fiscalização.

Ano Nº de processos fiscalizados

Área fiscalizada(há)

Processos revogados

Área revogada(há)

% de processos revogados

% de área revogada

2005 180 85.199 75 43.053 41 50

503 Op cit o nº 12 do artº 1 e o artº 19 ambos da actual lei de terras. Cfr ainda a propósito da exigência do plano para o exercício da actividade económica, o nº 2 do artº 24 do regulamento da actual lei de terras.

504 A fiscalização é uma prerrogativa prevista no nº 1 do artigo 37 do regulamento da actual lei de terras que dispõe que compete aos Serviços de Cadastro fiscalizar o cumprimento do disposto no regulamento, constatar as infracções e levantar o competente auto de notícia. O nº 2 do mesmo artigo dispõe que os poderes fiscalizadores atribuídos aos Serviços de Cadastro não prejudicam os dos sectores especializados, como por exemplo o Ministério das Obras Públicas quando o terreno se destine á habitação e outras actividades da alçada do sector, o Ministério da Indústria e Comércio quando o terreno se destine ao exercício de actividade industrial ou comercial.

505 Eleutério Marta Felisberto, chefe dos Serviços Provinciais de Geografia e Cadastro de Maputo que o entrevistamos, informou que os Serviços só dispunham de uma viatura fabricada em 2002, para cobrir todo o serviço(reconhecimentos, fiscalização técnica das demarcações feitas por agrimensores ajuramentados e etc). Em termos de motorizadas, dos 7 distritos, somente Namaacha e Manhiça é que as possuíam.

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2006 623 134.518 133 95.980 21 712007 279 106.598 87 57.345 31 532008 227 99.193 63 65.783 27 66

Total 1.308 426.817 358 262.161 27 61

Fonte: SPGC de Maputo, balanço do PES 2005/2009.

A tabela mostra que os Serviços arrancaram com força de 2005 a 2006, mas a partir daqui a tendência foi de diminuição dos processos e de área fiscalizada e oscilação nas revogações. O motivo se prende com o aumento das dificuldades em meios de transporte para a intensificação da actividade de fiscalização, pois como nos referimos acima, os Serviços dispunham até finais de 2009 de uma viatura com mais de 7 anos de vida. Esta tendência de redução dos processos fiscalizados agravou-se depois de 2008.

Apesar de estar fora do limite do nosso trabalho, somos tentados a referirmo-nos ao dado de fiscalização de 2009 para consubstanciarmos a nossa afirmação quanto á tendência decrescente da actividade, pois de 227 processos fiscalizados em 2008, em 2009 somente fiscalizaram 84 processos correspondentes a 15.169 hectares, contra os 99.193 do ano anterior correspondendo em termos de processos a 37% e em área fiscalizada a 15%.

Considerando que no período em análise a Província de Maputo abriu 18.176 processos506 de terras, os 1.308 processos fiscalizados representam apenas 7%. Tendo em conta que foram abertos processos correspondentes á área de 1.332.338 hectares neste período, os 446.817 hectares fiscalizados correspondem a 32%.

A análise que acabamos de fazer indica que há que se criar maior capacidade nos Serviços Provinciais de Geografia e Cadastro de Maputo e pensamos que também do País em geral, com vista a dar maior resposta á fiscalização dos pedidos. No que concerne ás revogações, o seu índice é baixo e presume-se que os restantes processos fiscalizados e não revogados correspondem ás áreas que estão a ser devidamente aproveitadas.

Todavia, nós duvidamos que assim seja se tivermos em consideração as declarações de dois membros da associação de agrimensores ajuramentados acima citados que apontam que se estima que mais de 80% dos processos autorizados não foram demarcados. Se tivermos em conta que cada requerente tem o prazo de 1 ano507 para demarcar o seu terreno sob pena de cancelamento do direito, esta percentagem de revogações está aquém do real que devia ser feito.

Há neste caso que se aprofundar o trabalho de modo a que o nível das revogações seja muito mais sério e profundo, pois esta é a única via de libertar a terra para novos investimentos, mas sobretudo com vista a garantir que as comunidades locais recuperem as suas terras para produção de produtos necessários com vista á sua subsistência e geração da renda familiar.

506 Cfr a tabela 1, inserida neste trabalho, página 8.

507 Op cit os nºs 3 e 4 do artigo 30 do regulamento da actual lei de terras.

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A Província de Maputo enfrenta uma grande pressão no que concerne á ocupação da terra, mas a verdade é que no auge do início da implementação da actual lei de terras, houve muitas pessoas entusiasmadas em requerer terras sem medir a sua capacidade para investir e em muitos casos guiadas pela expectativa de que tendo terra poderiam usá-la como colateral num eventual empreendimento associado mormente a estrangeiros, sonho que na prática não se concretizou e se se concretizou a percentagem de sucesso foi menor.

Vista a questão de extinção do direito por incumprimento do plano de exploração, vamos de seguida abordar a problemática de extinção do direito de uso e aproveitamento da terra como corolário da sua revogação por motivos de interesse público, precedida de pagamento de justa indemnização e/ou compensação.

10.2. Revogação do direito de uso e aproveitamento da terra.

Além de extinção do direito de uso e aproveitamento da terra por incumprimento do plano de exploração, a revogação é outra vicissitude que conduz á extinção do direito de uso e aproveitamento da terra. Entende-se por revogação ou revocatio de revocare conforme a expressão latina, a anulação, o desfazer ou fazer desvigorar uma norma e no caso do nosso estudo, um acto administrativo que outorgara um direito.508

A revogação licitamente permitida faz cessar a eficácia, isto é, a força jurídica do acto jurídico que fora praticado pela entidade competente para atribuir um direito subjectivo a um sujeito de direito, que no nosso caso é o requerente ou titular do direito de uso e aproveitamento da terra.509

A revogação pode também considerar-se uma forma de extinção de um negócio jurídico por manifestação de vontade exercida muitas vezes de forma discricionária e produz via de regra, efeitos extintivos apenas para o futuro.510 Há uma semelhança com o que ocorre no que concerne á revogação do direito de uso e aproveitamento da terra, pois há um poder discricionário e uma iniciativa unilateral da entidade que reconheceu ou autorizou o direito de uso e aproveitamento da terra.

Explica-se que assim seja porque na outorga do direito de uso e aproveitamento da terra, embora resultante de um pedido, o acto administrativo competente resultou de uma decisão unilateral da entidade com poderes para o efeito. Mesmo no caso do direito das comunidades locais, o reconhecimento do seu direito na lei de terras, constituiu um acto unilateral do legislador.

10.2.1. A figura de revogação na actual legislação moçambicana de terras.

508 Op cit, Plácido e Silva vocabulário jurídico V3 e 4, pág. 144.

509 Ibidem.

510 Op cit Ana prata dicionário jurídico pág 1322.

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Implementação da actual legislação moçambicana de terras nos primeiros 10 anos

A actual lei de terras trata a questão da revogação como uma das modalidades de extinção do direito de uso e aproveitamento da terra por motivos de interesse público devendo obedecer os seguintes requisitos:511

A revogação deve ser precedida por uma justa indemnização, como resultado de aplicação paralela do processo de expropriação;512

Como alternativa á indemnização pode se recorrer á justa compensação.513

10.2.2. Fundamento legal de expropriação além da lei de terras.

A Constituição da República de Moçambique de 1990 que estava em vigor quando foi aprovada a actual lei de terras do país dispunha que a expropriação só podia ser ditada por necessidade e utilidade ou interesse públicos definidos na lei e implicava uma justa indemnização.514 A mesma redacção foi retomada pela CRM de 2004.515

De notar que as duas constituições não incluíram a figura de compensação como prevê a actual lei de terras, mas somos de opinião que nada de anormal existe considerando que elas remetem á lei a definição do que pode revestir a expropriação por interesse público e aquela lei reconhece a figura de compensação.

Além da lei constitucional a lei civil como lei geral, primeiro estabelece o princípio de que ninguém pode ser privado total ou parcialmente por expropriação do seu direito de propriedade senão nos termos fixados por lei.516

A mesma lei estabelece quanto á indemnização que havendo expropriação por interesse público ou particular ou requisição de bens, deve se pagar uma justa indemnização ao proprietário e aos titulares de outros direitos reais afectados, que são os titulares ou requerentes do direito de uso e aproveitamento da terra no caso do nosso estudo.517

511 Cfr a alínea b) do art 18 da actual lei de terras.

512 Sobre o processo paralelo de expropriação cfr o nº 3 do artigo 19 do regulamento da actual lei de terras.

513 As figuras de indemnização e de compensação podem se complementar, na medida em que no mesmo processo as mesmas pessoas podem ser indemnizadas em certos direitos lesados ou compensadas noutros.

514 Cfr o número 2 do artigo 86 da CRM de 1990. Segundo Cabral de Moncada, Direito Económico, 2ª edição pág 277, a particularidade da expropriação é que dá sempre lugar a uma indemnização.

515 Cfr o número 2 do artigo 82 da CRM de 2004.

516 Cfr o artigo 1308º do c.c. No caso da terra que a propriedade pertence ao Estado, a propriedade privada que deve ser respeitada é o direito de uso e aproveitamento da terra que nós reputamos património por excelência do titular ou do requerente beneficiário de autorização provisória.

517 Idem, artº 1310º do c.c.

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Ao considerar-se na lei civil a possibilidade de o titular e no caso vertente do nosso estudo, o titular ou requerente do direito de uso e aproveitamento da terra poder gozar da prerrogativa de beneficiar de uma justa indemnização ou compensação em caso de expropriação por utilidade pública e implicitamente também particular, o legislador da actual lei de terras conformou-se na prática com aquele principio legal previsto na lei civil.518

Além das normas constitucionais e do direito civil que acabamos de abordar, a expropriação em Moçambique é regulada por uma lei especial, a lei nº 2030 de 12 de Setembro de 1953. Esta lei dispõe que os bens imóveis os direitos a eles relativos, como é o caso do direito de uso e aproveitamento da terra, podem ser expropriados por motivo de utilidade pública previsto na lei, mediante o pagamento de justa indemnização.519 Todos os mecanismos a observar inerentes ao processo de expropriação encontram-se plasmados nesta lei.

Vistos os diversos instrumentos legais que tratam da questão de expropriação por interesse público e a necessidade de indemnização dos sujeitos cujo direito foi lesado, passamos de seguida a fazer uma abordagem de alguns casos de empreendimentos que durante o período em análise foram implantados na província de Maputo.

10.2.2.1. O caso da auto-estrada Maputo/Witbank

Através do Decreto nº 1/99, de 23 de Fevereiro, o governo de Moçambique concessionou ao projecto Maputo/Witbank, a estrada nacional nº 4, que passaria a beneficiar de sua adaptação para uma infra-estrutura de auto-estrada com estabelecimento de portagens como experiência pioneira em Moçambique.520

De modo a materializar-se o projecto, o governo de Moçambique viu-se na contingência de ter que expropriar terras e benfeitorias dos particulares e afectar os seus próprios interesses transferindo ou destruindo definitivamente as construções sem reposição como aconteceu por exemplo com a instalação da Repartição dos Serviços de Veterinária no bairro de Lhanguene.521

518 Apesar de a lei de terras não ter se referido explicitamente também á possibilidade de expropriação por interesse particular, na prática tem acontecido. É o que sucedeu com expropriação de propriedades para dar espaço á implantação de projectos como o de gás de Pande e Temane, da Mozal, das areias pesadas de Moma e de Chibuto só para citar alguns exemplos. Este último não chegou a ser implementado, mas houve um trabalho expressivo de expropriação das terras e outros bens patrimoniais das populações.

519 Cfr o número 1 do artigo 1º da Lei n° 2030, de 12 de Setembro de 1953.

520 O contrato de concessão da estrada Maputo/Witbank foi assinado a 7 de Maio de 1997 e as obras de construção da estrada iniciaram a 5 de Junho de 1998 e terminaram em Junho de 2000.

521 Foi através do Decreto n° 2/99, de 23 de Fevereiro, que o governo de Moçambique criou uma base legal para a expropriação de terras por onde passaria a auto-estrada.

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Ao longo do caminho por onde passou o traçado da auto-estrada, foi preciso movimentar as populações e afectar infra-estruturas públicas e particulares incluindo na Cidade de Maputo a partir da zona do Bairro de Lhanguene. 522

Neste projecto não foi possível apurar os valores monetários envolvidos e resultantes da movimentação dos sujeitos afectados embora fosse nosso desejo, mas podemos registar a informação fornecida pela nossa entrevistada na ANE que:

Alguns proprietários lesados optaram por receber indemnização no valor correspondente ao custo do imóvel;

Outros foram compensados através de construção de casas convencionais num outro bairro;523

Valores monetários foram atribuídos aos proprietários de estabelecimentos comerciais afectados cobrindo o período de paralisação da sua actividade enquanto se restabeleciam noutro local, tendo em vista ressarcir os lucros cessantes;

As árvores de fruta e culturas diversas afectadas foram indemnizadas de acordo com os critérios definidos pelo Ministério da Agricultura.

Em todo este processo notabilizou-se o envolvimento das estruturas do governo envolvidas, mas também das próprias comunidades abrangidas que contribuíram no levantamento das pessoas, culturas e outras benfeitorias afectadas.

Feita a abordagem da implementação do projecto Maputo/Witbank passamos a nos referir ao projecto Sasol.

10.2.2.2. Projecto Sasol.

Quando estivemos a abordar a figura de parcerias neste trabalho fizemos a apresentação do projecto Sasol, que não vamos repetir neste espaço, mas somente se torna importante recordar que este projecto se dedica á extracção do gás nos campos de Pande e

522 De acordo com o dado fornecido pela Drª Belmira Teresa Sarmento, jurista por nós entrevistada na Administração Nacional de Estradas(ANE), foram afectadas 698 famílias, 12 infra-estruturas diversas entre lojas, farmácias, posto policial(ex-Brigada Montada)correios, edifício dos Serviços de Veterinária de Maputo, talhos e outros.

523 Esta operação de expropriação beneficiou a muitas famílias pobres que viviam em casas de materiais precários que passaram a beneficiar de casas convencionais. O bairro CMC em Magoanine na Cidade de Maputo por exemplo, com casas de tipo evolutivo, água canalizada e arruamentos espaçosos, foi fundado pelos afectados por este projecto. Foi sem dúvida um salto na melhoria das condições de vida da maioria das pessoas que viviam em condições sem condições de saneamento e outras comodidades.

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Temane na Província de Inhambane e tem uma conduta que transporta o gás á Secunda na RSA, passando pelas províncias de Maputo e Gaza.

Da informação que nos foi dispensada pela Sasol, ficamos a saber que para implementação do projecto, foi desenhado um programa denominado propgrama de planeamento e implementação do reassentamento, que definiu as linhas de orientação para o atendimento das questões inerentes á expropriação, indemnizações e/ou compensações devidas pelos danos causados no património e outros direitos lesados.

Da avaliação que fizemos da informação disponível, constatamos que no processo de expropriação na zona dos campos de perfuração em Pande e Temane e ao longo do trajecto da conduta que leva o gás á África do Sul, foi usada a indemnização nuns casos e a compensação noutros casos.524

Quando abordamos este projecto acima no sub tema parcerias, frisamos o facto de o peso das indemnizações e compensações ter sido atenuado pelo facto de para o traçado da conduta de gás á África do Sul ter escolhido os locais menos densamente povoados e com menos benfeitorias a danificar. Foi assim que o balanço das famílias e áreas atingidas pelo programa seja relativamente modesto se se tomar em consideração a extensão do projecto como a seguir apresentamos:

Tabela 4. Despesas de indemnizações e compensações no projecto Sasol

Designação Quantidade Área(ha) Valor em USDMachambas 2.081 155 449.679Sepulturas 23 0 3.138Outros a) 0 0 31.930Total 0 0 484.747

a) Envolve danos estruturais e animais domésticos.

Fonte: Programa de planeamento e implementação do reassentamento.

Vista a questão de indemnizações e compensações decorrentes de expropriações feitos no âmbito do projecto Sasol, vamos de seguida abordar o que sudedeu no projecto Mozal.

10.2.2.3. Projecto Mozal.

De igual modo e tal como aconteceu com o projecto Sasol, em relação ao projecto Mozal também fizemos a sua identificação quando tratamos do sub tema parcerias. Por isso não iremos repetir neste espaço.

A Mozal também seguiu o mesmo pacote de procedimentos que foi adoptado nos projectos da auto- estrada Maputo/Witbank e da Sasol que tivemos ocasião de visualizar acima.

524 Verifica-se que a indemnização foi usada por exemplo nos casos de perda de árvores de fruta e essências florestais valiosas, culturas perdidas, habitações e sepulturas, enquanto que a compensação foi usada para reabertura dos campos agrícolas destruídos pela actividade do projecto.

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Nesta abordagem da Mozal vamos directamente apresentar os dados resultantes do processo de indemnizações e compensações como se segue:

Tabela 5. Indemnizações e compensações no projecto Mozal

Designação Quantidade Área(ha) Valor em USDMachambas 1280 1.133 420.951Quintas 8 0 85.000Sepulturas 14 0 12.000Preparação da área de acolhimento a)

0 600 277.000

Total 0 0 794.951

Fonte: Beluluane Industrial Park, Resettlement Action Plan. Phase II Mozal operational land requirements.

a) De notar que nem todas as pessoas com machambas afectadas quiseram ir para a área de acolhimento por diversos motivos, dentre os quais o de serem residentes nas cidades de Maputo e Matola e terem a actividade agrícola como um complemento. Por isso foram para a área de acolhimento as pessoas que têm na actividade agrícola a sua base de sustento.

Acabamos a análise de mais uma figura de extinção do direito por interesse público e não só, também por interesses particulares como tivemos ocasião de ver por aquilo que aconteceu com os projectos Mozal e Sasol.525 A ilação que podemos retirar é de que houve preocupação de se acautelar o respeito pelos direitos de terceiros afectados pelos projectos.

Em todos os projectos notou-se a preocupação de se criarem melhores condições de vida e com o nível mais elevado comparativamente ás que possuíam nos seus anteriores locais antes dos projectos. Todas as pessoas abrangidas pelos projectos e cujas habitações foram afectadas, beneficiaram de novas condições de alojamento, o que responde á exigência da lei sobre as expropriações ainda em vigor no País.526

A qualidade, capacidade e envergadura dos projectos permitiu que fossem asseguradas as condições necessárias ao restabelecimento de uma nova vida noutros locais pelas populações afectadas. O rigor assumido na implementação destes projectos devia servir de exemplo na implementação de outros projectos noutras paragens dentro do País.

525 Não incluímos o projecto da auto-estrada Maputo/Witbank na categoria de um empreendimento puramente particular, porque ele está em regime de concessão, sendo por isso um empreendimento público.

526 O artigo 19º da Lei n° 2030, de 12 de Setembro de 1953, lei das expropriações, orienta que nas expropriações de casas de habitação, a entidade responsável pela expropriação, antes de desalojar as pessoas abrangindas deverá assegurar-lhes nova habitação.

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As causas de extinção do direito de uso e aproveitamento da terra não se esgotam somente ás figuras de falta do cumprimento do plano de exploração e de revogação por interesse público.

São também figuras extintivas o termo do prazo ou da renovação do direito de uso e aproveitamento da terra e a renúncia do titular, figuras que não iremos desenvolver porque no caso do fim do prazo, ainda não se chegou ao momento de ser accionada na medida em que o prazo dado aos titulares do direito é de 50 anos, que está longe de ser alcançado527 e quanto á renúncia do titular é uma figura não muito frequente, confundindo-se muitas vezes com a falta de cumprimento do plano de exploração.

Feita a análise das causas em que o direito de uso e aproveitamento da terra pode ser extinto, passamos de seguida a abordar a figura de pagamento de taxas.

11. Pagamento de taxas pelos requerentes e titulares do direito de uso e aproveitamento

da terra.

O acesso e benefício do direito de uso e aproveitamento da terra implica o pagamento de uma taxa. É um onus que o legislador da actual lei de terras impõe aos requerentes e titulares do direito, salvaguardado o direito de isenção para aqueles que a própria lei de terras prevê.528

A lei impõe que o cálculo do valor das taxas deve ter como base a localização do terreno, a sua dimensão e a finalidade do seu uso e aproveitamento, nomeadamente a taxa de autorização e a taxa anual e devem ser fixadas taxas preferenciais para os cidadãos nacionais.529

A questão que se nos coloca é de compreender se tudo o que o legislador designa por taxa é realmente uma taxa. Entre a taxa de autorização provisória e definitiva e a anual serão todas verdadeiras taxas? Essa dúvida leva-nos a ter que estudar o conceito de taxa.

Entende-se por taxa a prestação pecuniária não coactiva, paga como uma contraprestação de um serviço prestado por uma entidade de Administração Pública.530 Em rigor por taxa

527 Cfr o nº 1 do artº 17 da actual lei de terras.

528 Cfr o artigo 28 da actual lei de terras no que respeita á instituição da obrigatoriedade do pagamento de taxas e o artigo 29 da mesma lei no que respeita ás isenções.

529 Para operacionalizar o comando previsto no artigo 28 da lei de terras, o regulamento da actual lei de terras aprovado pelo Decreto nº 66/98, de 8 de Dezembro, nas Tabelas 1, 2 e 3 anexas ao seu artigo 41 concernente ás taxas, fixa a taxa de autorização provisória em 600 meticais e a de autorização definitiva em 300 meticais ambos da nova família do metical e a taxa anual fixada em 30 meticais por hectar/ano. Quanto ás isenções, o artigo 29 da mesma lei isenta de pagamento de taxas o Estado e suas instituições, as associações de utilidade pública reconhecidas pelo Conselho de Ministros, as explorações familiares e as comunidades locais e pessoas singulares que as integram, as cooperativas e associações agro-pecuárias nacionais de pequena escala.

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entende-se o preço ou a quantia que se fixa com vista á compensação de um determinado serviço ou remuneração de um trabalho realizado.531

Analisando as taxas previstas na actual lei de terras e tendo em conta a noção de taxa que acabamos de estudar, pensamos que apenas as taxas de autorização provisória e de autorização definitiva são uma verdadeira taxa porque destinam-se ao pagamento de serviços de tramitação processual pelos serviços públicos de cadastro estaduais ou municipais.532

Quanto á taxa anual não nos parece ser uma obrigação dependente de uma contraprestação, porquanto ela é devida anualmente e deve ser paga nas datas previstas no regulamento da lei de terras e o não pagamento implica penalização e susceptível de cobrança coerciva.533

Parece-nos que esta obrigação pecuniária anual dos titulares do direito de uso e aproveitamento da terra é um verdadeiro imposto resultante da ocupação da terra e a Administração Pública não tem que prestar algum serviço para que o titular do direito de uso e aproveitamento da terra pague a sua obrigação.

Para aproximarmos melhor a nossa ideia, importa fazer alguma referência ás características de um imposto. O imposto constitui a maior fonte das receitas efectivas,534

da Administração Pública por terem quanto a nós um carácter permanente e com elas se pode planificar a despesa, como podia acontecer com as receitas de terras se a

530 José Joaquim Teixeira Ribeiro, Lições de Finanças Públicas 5ª edição, página 258. O autor considera que a taxa é um pagamento que é devido pelo público como contraprestação de um serviço prestado pelo Estado. Nós preferimos dizer serviço prestado por um serviço de Administração Pública, porque no caso por exemplo das taxas do mercado, das taxas de lixo e etc, são cobradas em alguns casos pelos municípios e não pelo Estado.

531 Op cit, Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico V 3 e 4 página 322.

532 Todavia, apesar de a taxa de autorização provisória ser taxa por excelência, encontramos junto dos Serviços de Cadastro de Maputo o sentimento de que o legislador não devia ter usado expressão taxa uma vez que o valor se destina para tramitação processual. O facto de ser taxa levantou conflitos com os Serviços de Finanças que consideravam este valor como receita pública, quando na verdade ele pertence ao requerente. Para os Serviços o regulamento devia ter criado outra figura como a de emolumentos para tramitação processual.

533 De harmonia com o disposto no nº 4 do artº 42 do regulamento da actual lei de terras o pagamento da taxa anual será feito nos primeiros 3 meses do ano ou em duas prestações, sendo a primeira a ser liquidada até ao fim do mês de Março e a segunda até ao fim do mês de Junho. O número 4 do artº 39 do regulamento da actual lei de terras redacção dada pelo Decreto nº 1/2003 de 18 de Fevereiro, dispõe que havendo incumprimento da obrigação de pagamento da taxa anual, o processo deve ser remetido ao juízo das execuções fiscais.

534 Atente-se que pela sua natureza precária as taxas não são e nem podem ser fontes de uma receita efectiva. Mas pelo contrário, as receitas provenientes de cobrança da taxa anual são efectivas e previsíveis.

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Administração estivesse devidamente organizada e dotada de uma agressividade necessária.535

O imposto representa uma prestação ou contribuição que é devida por toda a pessoa física ou jurídica elegível á Administração Pública, com vista á formação da receita de que carece para pôr em funcionamento os seus serviços e assegurar a sua existência.536

O imposto é uma contribuição unilateral sem carácter de contraprestação, obrigatório, e no caso da taxa do direito de uso e aproveitamento da terra, corresponde a um imposto de natureza real, por incidir sobre um prédio e neste caso prédio rústico, gravado por um onus anual pagando os encargos a pessoa como mero titular do direito(imposto sobre um prédio rústico verbi gratia, como é o caso do objecto do nosso estudo).537

A análise que acabamos de efectuar permitiu aclarar que o conceito de taxa previsto na actual lei de terras esconde dentro de si duas realidades distintas, a primeira que corresponde á existência de uma verdadeira taxa, a que corresponde á taxa de autorização provisória e definitiva que é paga para a tramitação processual com expectativa de uma contraprestação e a anual que embora designada taxa, ela corresponde a um verdadeiro imposto, pois o seu pagamento ocorre independentemente de uma contraprestação.

Feita esta abordagem conceptual, importa de seguida fazer referência a algumas questões de natureza prática observadas ao longo do período em estudo.

11.1. Alterações ao regulamento da actual lei de terras no instituto de taxas.

Como vimos acima, a lei fixou a taxa anual em 30.000 meticais da antiga família correspondentes aos actuais 30 meticais. Logo após a entrada em vigor do novo regulamento da lei de terras que fixou a taxa única para todos os sectores, começou-se a sentir na prática que a mesma era demasiadamente pesada e não estimularia a recuperação de uma actividade agro-pecuária que sofrera retrocesso assinalável devido á guerra acabada de terminar.

A necessidade de estimular investimentos e garantia de uma rápida recuperação económica e mediante reivindicações construtivas dos produtores, praticamente um ano depois da vigência do regulamento, foi levada acabo a sua revisão pontual. Assim, foi aprovado o decreto nº 77/99 de 15 de Outubro, que introduziu alterações ás taxas anuais da seguinte forma:

535 Op cit José Joaquim Teixeira Ribeiro, pág. 258.

536 Ibidem Plácido e Silva, V 1 e 2 pág. 423.

537 Idem. Pág. 424.

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A criação de gado bovino, repovoamento de fauna bravia através de estabelecimento de fazendas do bravio e culturas permanentes passavam a pagar 2.000 meticais da antiga família, ou seja 2 metiais actuais por hectar/ano.538

Redução da taxa para 15.000 meticais por hectar/ano da antiga família, actuais 15 meticais nos terrenos destinados á produção agrícola.539

Agravamento da taxa anual para 200.000 meticais da antiga família e actuais 200 meticais nos terrenos até um hectar nas faixas costeiras confrontantes com o domínio marítimo até 3 quilómetros quando se destinem ao turismo e construção de habitações de veraneio e comércio.540

Cancelar a aplicação do índice de agravamento pela dimensão do terreno constante da Tabela 2 anexa ao artigo 41 do regulamento da actual lei de terras.541

Cancelar a aplicação do índice de agravamento pela localização na província de Maputo constante na Tabela 2 anexa ao artº 41 do regulamento da actual lei de terras, quando a terra se destine á criação de gado bovino.542

11.2. Ilustração das vantagens obtidas pela alteração pontual do regulamento da actual lei de terras.

538 Cfr o artº 1 do Decreto nº 77/99, de 15 de Outubro. Pretendeu-se privilegiar e incentivar a recuperação da manada nacional de gado bovino que havia sido gravemente atingida pela guerra. Excluíram-se deste benefício a criação de outras espécies animais como caprinos, ovinos, suínos, cavalar, asinino, aves domésticas porque as bravias criadas em fazendas do bravio sim e etc. No que se refere ás fazendas do bravio, são os locais especializados organizados para pecuarização de espécies como antílopes, elefantes, búfalos, leões, zebras, crocodilos, avestruzes, rinocerontes e todas as outras espécies bravias. Em matéria de culturas permanentes, temos as culturas como cana sacarina, bananeiras, citrineiras e outras fruteiras, sisal, palmares, plantações florestais e outras que não tenham natureza de culturas anuais como por exemplo milho, mapira, mandioca, diversos tipos de batata e outras.

539 Idem, artº 4.

540 Idem artigo 5.

541 Idem, artº 2. A distância dos 3 quilómetros mede-se a partir da linha das máximas preia- mares, por analogia com a alínea c) do artº 8 do regulamento da actual lei de terras.

542 Idem, artº 3. Porquê esta preocupação em relaxar a taxação de criação de gado bovino? Como dissemos acima, o país acabava de sair de uma guerra que tivera efeitos negativos sobre a manada nacional. É preciso sublinhar que a guerra iniciou quando o país dispunha de mais de 1.000.000 de cabeças de gado bovino e quando ela terminou o efectivo situava-se entre 250.000 a 300.000 cabeças de bovinos. Quando se fez a revisão do regulamento da lei de terras o governo estava a implementar um programa de repovoamento pecuário denominado fomento pecuário e era seu interesse assegurar que os criadores multiplicassem a manada nacional sem necessidade de abates constantes dos animais, por causa da pressão causada pela necessidade de pagamento de taxas.

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Em primeiro lugar vamos demonstrar o valor que o titular do direito de uso e aproveitamento da terra seria obrigado a pagar por hectar/ano antes da revisão pontual do regulamento e depois da revisão.

Valor antes da revisão nas actividades de criação de gado bovino, fazendas do bravio e culturas permanentes, com a aplicação dos índices da Tabela 2.

Variante 1, área de 101 a 1000 hectares.

Valor da taxa base(em meticais) 30

Localização na Província de Maputo(índice 2) 2x30= 60

Dimensão (índice 1.5) 1.5x30=45 Total de taxa anual por hectar543 135

Variante 2, área superior a 1000 hectares

Valor da taxa base (em meticais) 30

Localização na Província de Maputo(índice 2) 2x30=60Dimensão superior a 1.000 hectares 2x30=60Total da taxa anual por hectar544 150

Variante 3, depois da revisão do regulamento da lei de terras.Área de 101 a 1000 hctres e superior a 1.000 hectares.

Valor da taxa base 2.000 meticais da antiga família, actauais 2 meticais.

543 A criação de gado bovino exige por natureza muita área de pasto. Suponhamos que o sujeito necessitava no mínimo de 1.000 hª que são as áreas que em média são requeridas para um criador médio. Ao valor da taxa antes da revisão ele precisaria de pagar anualmente 135.000.000 de meticais da antiga família ou 135.000 da nova família. Depois da revisão passou a pagar 2.000 meticais anualmente pela mesma área e com possibilidade de redução pela aplicação do índice 0.8 se for cidadão moçambicano.

544 Seguindo o exemplo da variante anterior, para um criador médio que precisaria de 1000 hectares de pastagem para o seu gado, ele necessitaria anualmente de um valor de 150.000.000 de meticais da antiga família, 150.000 meticais da nova família. Qual foi o motivo de se definir o índice 2 de agravamento pela localização só para a Província de Maputo? Essa decisão resultou do facto de a Província de Maputo como o dissemos na fase introdutória deste trabalho, ser a mais pressionada do País em termos de demanda da ocupação da terra e pensou-se que agravando os custos de taxas anuais proibiria de certo modo a apetência pela ocupação de grandes áreas na província de Maputo, de modo a dar mais oportunidades ás outras pessoas para obterem terras que necessitam com vista á satisfação das suas diversas necessidades.

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É importante notar que a atenuação de aplicação dos índices de dimensão da área requerida e de localização na província de Maputo, não é extensiva á actividade agrícola apesar desta ter merecido atenção e consideração na revisão do regulamento da lei de terras, baixando a taxa anual de 30.000 meticais da antiga família para 15.000 meticais.

11.3. Impacto concreto resultante da revisão pontual do regulamento da actual lei de terras.

Referimo-nos acima que a necessidade de impulsionar o desenvolvimento agrário com base em determinadas actividades ditou a revisão pontual urgente do regulamento da lei de terras. Importa analisar neste espaço se a medida de atenuação do impacto do custo das taxas terá contribuído para que, a par de outras medidas tomadas no País com vista a dinamizar a recuperação e desenvolvimento económico, terão alcançado os seus objectivos.

Com efeito, vamos incidir a nossa análise sobre a evolução do sector pecuário desde 1998, não deixando de referir que outras culturas abrangidas pela medida de redução da taxa conheceram um grande impulso no período em análise. É assim que na cultura de citrinos que havia estagnado com a falência do sector estatal agrário, em 2008 a Província de Maputo possuía uma área de 310 hectares de diversos tipos de citrineiras, que produziram 6.540 toneladas de citrinos.545

Além de citrinos, temos a cultura de banana que não era cultivada em padrões comerciais na Província, que já em 2008, o distrito de Boane que concentra a maioria parte das explorações de bananeiras tinha uma área efectiva de 970 hectares, com uma produção de 39.976 toneladas de banana. No mesmo período o distrito da Moamba também iniciou a produção comercial de banana numa área de 110 hectares que iniciou a produzir em Janeiro de 2010. A província de Maputo também produz cana sacarina que é outra cultura permanente que beneficiou da redução da taxa anual.

Avaliando os dados disponíveis546 obtém-se a informação de que em 1998 a província de Maputo tinha em cultivo uma área de 1.739 hectares de cana com uma produção de 97.774 toneladas de cana sacarina e 9.442 toneladas de açúcar. Em 2008 a Província cultivou uma área de 13.685 hectares que produziram 1.130.677 toneladas de cana sacarina, que resultaram na produção de 139.623 toneladas de açúcar.

Além das culturas permanentes, beneficiou também de uma redução acentuada da taxa anual a criação de gado bovino. Vamos de seguida apresentar o quadro da evolução da manada provincial durante o período em análise.

Tabela 6. Evolução do efectivo de bovinos na Província de Maputo de 1998-2008

545 Dados fornecidos pelos Serviços Distritais de Actividades Económicas de Boane. De referir que Boane é o único distrito da Província de Maputo que possui plantações de citrinos.

546 Relatório balanço de 2008 do Centro de Promoção de Agricultura(ECEPAGRI).

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Ano 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008Efectivo 43.802 52.895 61.470 73.017 87.950 103.417 115.162 128.937 152.842 173.757 190.709

Fonte: Serviços Provinciais de Pecuária de Maputo

A tabela 6 ilustra que o efectivo bovino da província teve um crescimento exponencial. Esse crescimento deveu-se ao fomento pecuário levado a acabo no período em análise, mas também contribuiu em certa medida a atenuação do valor da taxa anual de terras.

Estes resultados que acabamos de apresentar sobre a evolução das culturas permanentes e de efectivos de bovinos na Província de Maputo, demonstram que houve uma dinâmica positiva que reputamos ter sido impulsionada não só pelo ambiente de desenvolvimento que o país vive no qual se pode arrolar a existência de um mercado interno e externo favoráveis á colocação dos produtos, mas pode se afirmar que a redução das taxas de terras contribuiu em parte para esta evolução positiva.

11.4.Pagamento de taxas.

O pagamento de taxas iniciou em 1999 apesar de a nova lei ter entrado em vigor no ano de 1998. Razões de natureza organizativa ditaram para que os pagamentos fossem iniciados em 1999.

Das estatísticas analisadas se pode retirar a ideia de que houve alguma evolução positiva no processo de pagamento de taxas se tomarmos em linha de conta que em 1999 a Província de Maputo cobrou 254.274.834,00 meticais da antiga família, ou seja, cerca de 255 mil meticais da nova família de metical e em 2008 a Província conseguiu arrecadar 2.344.360 meticais da nova família, o que representa um salto considerável.

Todavia, os Serviços provinciais de Geografia e Cadastro de Maputo apontam que o nível de receita cobrada ainda está a quem do desejável na medida em que quanto maior for o grau da terra não explorada, menor é o grau de pagamento de taxas, e é o que está a acontecer. Segundo aqueles Serviços, muitas pessoas beneficiárias do direito de uso e aproveitamento da terra pensam que a taxa só é devida no período de vigência da autorização provisória, findo o qual já não é preciso pagar mais taxas. É por isso segundo eles, que os que afluem a pagar taxas são maioritariamente detentores de novas autorizações.

Ressalva-se a grande propriedade e as camadas populacionais mais velhas, porque no segmento juvenil há pouco interesse em pagar a taxa. Porquê as grandes empresas e as pessoas mais velhas pagam as taxas? As empresas incluem o pagamento de taxas no rol das suas obrigações fiscais e as pessoas mais velhas habituaram-se a pagar imposto pessoal e elas encaram o pagamento da taxa como mais um imposto anual que eles têm que pagar.

Um outro aspecto referido pelos Serviços de Cadastro como concorrente para reduzir o fluxo de pessoas ao pagamento é que a maioria dos titulares do direito de uso e aproveitamento da terra ocupa parcelas pequenas geralmente com menos de 1 hectar. Deram exemplo de uma pessoa que ocupa 1 hectar de terra para fins agrícolas que a taxa por hectar é de 15 meticais. Para meio hectar esta pessoa vai pagar 7,5 meticais e se for

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moçambicana aplica-se-lhe ainda o índice de atenuação de 0.8, passando a pagar 6 meticais.547

Entretanto, o custo dos transportes para se deslocar ao local de pagamento é muito mais elevado, o que faz com que o titular se sinta desencorajado a arcar esse custo para ir pagar tão pouco. È um argumento aceitável e julgamos que a solução passa pela definição de valores mínimos a pagar em áreas pequenas como acontece na orla marítima.548

O nosso ponto de vista é de que a falta de pagamento de taxas requer um conjunto de soluções. A primeira é a sensibilização dos titulares sobre a obrigação de pagamento usando se necessário apelos nos meios de comunicação social sempre que chega o período de cobrança e também a publicação dos nomes dos devedores convidando-os para irem pagar as suas obrigações.

O papel do Juízo das execuções fiscais é também importante, mas constatamos perante a nossa pergunta aos técnicos de Cadastro de Maputo, que não há registo de um caso que tenha sido julgado. A falta de actuação do Juízo das execuções fiscais nesta matéria, leva as pessoas a não considerarem que o pagamento da taxa anual é obrigatório.

11.5. Consignação de receitas.

O regulamento da actual lei de terras prevê que 60% do valor das taxas anuais549

sejam consignados a favor dos Serviços de Cadastro e remete para os Ministros do Plano e Finanças e da Agricultura e Pescas a competência de definir através de um diploma ministerial a forma de distribuição do valor consignado.

Com vista á materialização daquele comando legal, os Ministros do Plano e Finanças e da Agricultura e Pescas aprovaram o Diploma Ministerial nº 76/99, de 16 de Junho, pelo qual distribuem 20% da receita consignada para a Administração do Distrito da situação das parcelas que pagaram a taxa anual e 80% para os Serviços de Cadastro ou para os órgãos locais do Ministério da Agricultura que por delegação daqueles participam no processo de cobrança das taxas anuais.550

547 O número 2 do artigo 28 da lei de terras prevê a possibilidade de se definirem taxas preferenciais para cidadãos nacionais. Foi nessa base que o regulamento da lei de terras considerou na tabela 3 anexa ao seu artº 41 o índice 0.8 aplicável ao valor taxável aos cidadãos singulares nacionais.

548 De novo cfr o artigo 5 do Decreto nº 77/99, de 15 de Outubro.

549 Cfr os nºs 1 e 2 do artº 43 do regulamento da actual lei de terras.

550 Cfr o artº 2 do Diploma Ministerial conjunto nº 76/99, de 16 de Junho. A consignação de receitas ás Administrações de distrito visava criar capacidade para tratamento de questões ligadas com a gestão do cadastro distrital de terras, como consultas ás comunidades, resolução de conflitos, dentre outras. Mas o que se passa na realidade? Consultamos de forma aleatória 3 Administradores de dois extremos e meridional da Província nomeadamente Magude, Moamba e Matutuine. Todos confirmaram que recebem a receita consignada, mas somente um, o de Magude explicou que o fundo é usado para suportar encargos com assuntos de cadastro de terras em especial a consulta ás comunidades. Os outros disseram que aplicam o fundo nas despesas gerais da Administração. Os órgãos locais a que se refere o diploma ministerial são os

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O diploma ministerial em referência delegou ao Ministro da Agricultura e Pescas a

competência para definir a distribuição de 80% das receitas que cabem aos Serviços de Cadastro. 551

Como corolário daquele comando legal, o Ministro da Agricultura e Pescas aprovou, por intermédio do despacho de 7 de Dezembro de 1999, a distribuição da receita consignada ao sector de Cadastro da seguinte forma:552

50% para os Serviços que procederam á cobrança; 50% para a Direcção Nacional de Geografia e Cadastro.553

Em 6 de Junho de 2006, o Ministro da Agricultura exarou um despacho que altera o despacho do Ministro de Agricultura e Pescas de 7 de Dezembro de 1999, de modo a introduzir um novo figurino de distribuição dos 80% da receita consignada aos Serviços de Cadastro. Esse despacho determinou que a receita fosse distribuída como se segue:554

50% para os Serviços que procederam á cobrança; 50% para o Fundo de Desenvolvimento Agrário.

Estas alterações levantam quanto a nós uma questão jurídica relevante. É que como dissemos acima e em alusão ao regulamento da actual lei de terras, o legislador consignou expressamente as receitas aos serviços de Cadastro.555

Todavia, o novo despacho do Ministro da Agricultura que atribui 50% das receitas consignadas ao sector de cadastro para o Fundo de Desenvolvimento Agrário, fê-lo quanto a nós, em violação da competência que é conferida ao Conselho de Ministros. Na nossa opinião, querendo beneficiar o FDA das receitas consignadas, o Ministro da Agricultura devia ter proposto uma emenda pontual ao regulamento da lei de terras.

Qual é o beneficio efectivo que os Serviços Provinciais de Cadastro recebem dos fundos consignados? Nominalmente556 recebem os 50% de receita previstos no diploma

actuais Serviços Distritais de Actividades Económicas a quem foi delegada a responsabilidade de cobrança das taxas, mas soubemos que não estão a beneficiar das receitas consignadas.

551 Idem, artº 3.

552 Cfr o nº 2 do despacho de 7 de Dezembro de 1999 do Ministro da Agricultura e Pescas.

553 De notar que na actualidade a Direcção Nacional de Geografia e Cadastro foi fundida com a Direcção Nacional de Florestas, dando lugar á Direcção Nacional de Terras e Florestas no âmbito da reforma institucional operada no sector agrário.

554 Cfr o nº 3 do despacho de 6 de Junho de 2006 do Ministro da Agricultura.

555 Op cit nº1 do artº 43 do regulamento da lei de terras.

556 Nominalmente porque os Serviços de Cadastro reclamam o facto de não serem envolvidos na gestão do fundo que lhes é consignado porque este é gerido unilateralmente pelo DAF da DPA, não estando seguro se

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ministerial, mas não sabem como é gerido e acreditam que o fundo não é usado só para fortalecimento do cadastro como se pretendeu ao consignar-se as receitas.

Não tivemos acesso a toda informação sobre todos os fundos consignados recebidos no período em análise porque alegadamente nos anos anteriores não houve registo de dados. Conseguimos apenas dados de 2007 para 2009 que totalizam 1.682.847 meticais sendo, 623.875 meticais para 2007, para 2008 foram desembolsados 562.649 meticais e para 2009 desembolsaram-se 496.323 meticais.

Situação radical é a que foi tomada a nível central que remete os fundos consignados ao FDA sem contrapartida para os Serviços Centrais de Cadastro melhorarem a capacidade de organização e gestão do cadastro que foram a causa que fundamentou a sensibilização do governo com vista á consignação da receita.

Para nós faria sentido se os Serviços Centrais de Cadastro anualmente recebessem do FDA uma verba para fazerem face aos desafios que o desenvolvimento do cadastro nacional de terras reclama. O cadastro de terras exige grandes investimentos e a consignação destas receitas pressupunha colmatar essa necessidade. A pesquisa que fizemos neste nosso estudo permitiu-nos concluir que os Serviços de Cadastro estão mergulhados num mar de dificuldades que provocou um retrocesso no sector.557

12. Resolução de conflitos de terras.

A terra como já o afirmamos acima, é um bem precioso no qual assentam todos os empreendimentos económicos e sociais de toda a espécie. Essa preciosidade faz da terra um bem bastante concorrido e no quadro dessa concorrência os conflitos de terras são elevados.

Os conflitos que podem surgir neste domínio são de dois tipos. O primeiro pode ser desencadeado por um acto administrativo que desfavorece o direito de um titular de um direito subjectivo legalmente protegido no que concerne ao direito de uso e aproveitamento da terra. O segundo caso pode ser desencadeado por disputa de um direito relativo a uma determinada parcela de terra devido a uma possível ou aparente colisão de direitos ou invasão do terreno que pertence a alguém por terceiros.

O conflito resultante de um acto administrativo com o qual o sujeito de direito discorda, a lei ofereceu-lhe sempre garantias de reclamar perante a entidade que tomou a decisão, mas ainda de fazer o recurso hierárquico, recurso tutelar no caso dos órgãos

todo o valor que lhes é consignado está a ser totalmente para atender assuntos do desenvolvimento do cadastro de terra. Aliás, implicitamente o sentimento é de que os fundos podem estar a ser chamados a cobrir outras despesas gerais da Direcção Provincial da Agricultura. Aos Serviços de Cadastro é solicitada a relação das necessidades, que é atendida em função do ritmo do funcionamento do DAF e não das exigências e dinâmica dos serviços em materiais como ataches, capas e outros, tornando-se este sistema de gestão centralizada do orçamento um nó de estrangulamento para a realização tempestiva das actividades.

557

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autónomos tutelados, recurso de revisão do acto e o recurso contencioso interposto junto do Tribunal Administrativo.558 É um direito constitucionalmente reconhecido a todos os cidadãos do País, incluíndo o direito de recorrer aos Tribunais.559

No que concerne ao recurso contencioso junto do Tribunal Administrativo, a lei orgânica da jurisdição administrativa, Lei nº 25/2009, de 28 de Setembro, aprovada fora do período do nosso estudo, mas que entrou em vigor antes de encerrarmos a elaboração do nosso trabalho, veio fixar a natureza e objecto do contencioso administrativo e determinar que ele é de mera legalidade, cujo objecto é anulação ou declaração da nulidade ou inexistência jurídica dos actos recorridos.560

A Lei nº 9/2009, de 7 de Julho, lei do processo administrativo contencioso, que também está na mesma situação da lei que fizemos referência no parágrafo anterior, estabelece que tem legitimidade para interpor recurso contencioso aquele que tem interesses subjectivos ou interesses legalmente protegidos que tenham sido lesados pelo acto administrativo objecto de recurso.561

A organização dos meios contenciosos administrativos tem como finalidade garantir os direitos subjectivos dos particulares tendo em vista assegurar que a actuação dos órgãos da Administração Pública, seja feita dentro dos limites legalmente estabelecidos.562

Além de resolução de conflitos de terras por via administrativa e do contencioso junto do Tribunal Administrativo, os cidadãos ou outros entes com existência legal podem, como vimos acima quando abordamos o carácter misto do direito agrário, que os titulares do direito têm á sua disposição diversos instrumentos aos quais podem lançar mão para defender os seus direitos legalmente protegidos.

Os Tribunais Judiciais, do mesmo modo que o Tribunal Administrativo são instrumentos para realização desses objectivos dos particulares, apenas com uma diferença, porque o Tribunal Administrativo conhece casos de violação dos direitos dos sujeitos de

558 O artº 218 do Estatuto Geral dos Funcionários do Estado, aprovado pelo Decreto nº 14/87, de 20 de Maio, já revogado pelo novo Estatuto dos Funcionários e Agentes do Estado aprovado pela Lei nº 14/2009, de 17 de Março que retomou os mesmos princípios jurídicos e que estava em vigor durante o período coberto pelo nosso estudo, estabelecia que os cidadãos e outras entidades com existência legal tinham a possibilidade de impugnar os actos dos funcionários quando ocorresse a violação dos princípios de legalidade que concorressem para a violação dos seus direitos ou interesses legalmente tutelados. O artº 219 do mesmo diploma legal, fixava as normas de impugnação. Por seu turno, o artigo 15 do regulamento de funcionamento dos Serviços da Administração Pública, aprovado pelo Decreto n° 30/2001, de 15 de Outubro reconhece o mesmo direito aos sujeitos de direito que se sentirem lesados.

559 A matéria do direito a recurso gracioso, de impugnação dos actos administrativos e de recurso aos Tribunais, cfr os artigos 80, 81e 82 de CRM90, ideia retomada pela actual CRM04 nos seus artºs 70 e 79.

560 Cfr o artº 8 da lei de jurisdição administrativa, Lei nº 25/2009, de 28 de Setembro.

561 Cfr o artº 38 da Lei n° 9/2001, de 7 de Julho.

562 Op Cit Marcello Caetano, direito administrativo, V2, pág 1.211.

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direito em sede de actos administrativos praticados pelas entidades da Administração Pública, enquanto os Tribunais Judiciais conhecem casos emergentes de conflitos entre os particulares em matéria do direito de uso e aproveitamento da terra.

Como vimos, diversa legislação criou e cria espaço para que os sujeitos de direito possam resolver os conflitos que surgem pela prática de actos administrativos e nos casos de constituição, modificação e extinção do direito de uso e aproveitamento da terra, os respectivos actos são susceptíveis de recurso contencioso e conforme a sua natureza específica podem recorrer aos Tribunais Judiciais sem excluir o recurso a outros meios de impugnação.

A questão que se nos coloca é, será que o recurso a outros meios de resolução de conflitos de terras são excluídos? É que enquanto o regulamento da Lei nº 6/79, de 3 de Julho, primeira lei de terras, aprovado pelo Decreto nº 16/87 de 15 de Julho, estabeleceu a possibilidade de criação de um órgão de conciliação nos Serviços Centrais e locais de Cadastro com vista á resolução extra judicial de conflitos de terras, na actual legislação essa prerrogativa foi omitida.563

No nosso entender foi uma omissão desnecessária porque a resolução extra judicial de conflitos de terras tem sido a via mais usada especialmente nas zonas rurais. Embora não dispondo de estatísticas por não ter os processos com conflitos resolvidos devidamente individualizados, os Serviços de Cadastro de Maputo são de opinião que a conciliação nos conflitos que surgem pela ocupação das terras rurais e mesmo urbanas é o mecanismo mais usado.

Quando há um conflito cria-se uma equipa envolvendo funcionários das áreas competentes no governo do distrito que vão envolver os líderes comunitários e as partes em disputa. Cada caso pode ter intervenientes diferentes, o que no nosso entender fragiliza a componente experiência acumulada e especialização dos intervenientes. O figurino antigo de criação de comissões permanentes de conciliação para nós era o mais adequado.

12.1. Demanda processual nos tribunais.

Para medir até que ponto os sujeitos de direito fazem uso dos meios jurisdicionais para resolver os conflitos resultantes de actos administrativos e de litígios entre particulares relacionados com o direito de uso e aproveitamento da terra, contactamos o Tribunal Administrativo na cidade de Maputo e o Tribunal Judicial de Maputo na cidade da Matola. No primeiro entrevistamos o Dr. Sinai Nhantitima, Juíz Conslheiro daquele órgão e no segundo entrevistamos o Dr Custódio Djedje Juíz Presidente do Tribunal Judicial Provincial de Maputo. Passamos a resumir o resultado desse trabalho junto àquelas entidades.

12.1.1. Fluxo de recursos ao Tribunal Administrativo.

563 Cfr o artº 82 do regulamento da antiga lei de terras.

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È de notar que além da entrevista com o Juíz Conselheiro Sinai Nhantitima, fizéramos um pedido de informação por escrito que nos foi respondido. Da entrevista podemos sintetizar que ultimamente começa a despontar um interesse dos sujeitos de direito pelo recurso ao Tribunal Administrativo. Durante muito tempo as pessoas desconheciam que podiam resolver os seus conflitos no Tribunal, situação que tende a ser ultrapassada á medida que a consciência cresce.

Dos dados recolhidos no Tribunal Administrativo, notamos que continua a ser dominante a componente urbana dos recursos contenciosos submetidos àquela instância e poucos casos constam de processos da área rural que é objecto do nosso estudo.

É assim que durante o período em análise, 1998/2008 foram submetidos ao conhecimento daquela instância jurisdicional 165 recursos,564 a uma média anual de 16,5 recursos, o que na nossa opinião de certo modo é um número sem uma elevada expressão. Destes recursos, 140 pertencem á cidade de Maputo submetidos maioritariamente contra o respectivo Presidente do Conselho Municipal representando 84,8%, enquanto que 25 recursos foram submetidos contra o Presidente do Conselho Municipal da Matola, correspondendo a 15%.

Para testar esta realidade, recorremos á análise por amostra da compilação de jurisprudência administrativa do Prof. Gilles Cistac relativa ao período de 2000 a 20002 e constatamos que dos 141 acórdãos proferidos, somente 9 dizem respeito ás questões de terras 6%, e apenas 2 se referem a terras rurais 1%.565

12.1.2. Fluxo de recurso dos titulares para os tribunais comuns.

Para obtermos alguma ilação em relação ao fluxo de processos aos tribunais comuns, tivemos, como já o dissemos, uma entrevista com o Juíz Presidente do Tribunal Judicial Provincial de Maputo. De acordo com os dados fornecidos por aquela entidade, o Tribunal possui duas secções cíveis e cada uma recebe anualmente uma média de 30 processos. 566 A percepção do Juíz Provincial é de que na Província de Maputo há muitos conflitos de terras que resultam:

Da sobreposição de pedidos no mesmo espaço. Muitas vezes um tem direito e outro não;567

564 Dado extraído da nota nº 857/1ªS/TA/2009, que nos foi endereçada em resposta ao nosso pedido.

565 Cfr Gilles Cistac, jurisprudência administrativa de Moçambique, V2 paginas 63 e 591.

566 Embora no Tribunal Judicial de Maputo não se tenha obtido dados estatísticos porque o sistema de registo de dados não permitia dar resposta ao caso concreto como aconteceu no Tribunal Administrativo, a ideia prevalecente é de que a maior parte das petições submetidas àquela instância judicial diz respeito ás terras urbanas especialmente da cidade da Matola, onde segundo apuramos, os conflitos de terras são em número elevado em relação ás zonas rurais.

567 Na nossa opinião há uma colisão de direitos. Quanto á figura de colisão de direitos, o nº 1 do artº 335º do cc estatui que no caso de colisão de direitos iguais ou da mesma espécie as partes em colisão devem fazer

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De construções sem papeis que lhe autorizem violando as posturas municipais. A solução seria mandar demolir por ser uma construção clandestina, mas acaba se regularizando a construção e o direito ao espaço porque indo pela via de demolição criaria problemas sociais;

De conflito de competência entre a actividade mineira e a agro-pecuária;

De mau envolvimento das comunidades locais no caso de terrenos das zonas rurais. As comunidades conhecem melhor a situação no terreno e se forem bem envolvidas pode-se prevenir as sobreposições.

Outras informações avançadas são:

Demora de tomada de decisões sobre os requerimentos de pedido de terras, situação negativa porque cria frustrações nas pessoas e estimula a existência de construções clandestinas;

Desorganização do cadastro de terras nos municípios e nos Serviços públicos de cadastro estaduais o que propicia erros nas atribuições e por consequência surgimento de conflitos de terras.

A ilação que se pode retirar desta análise é de que o índice de solicitação do Tribunal Administrativo para questões de disputas do direito de uso e aproveitamento da terra é relativamente baixo comparando com a demanda suscitada por assuntos de diversa índole que não os das terras. O índice menor é o das terras rurais cujo fluxo não tem expressão.

Mesmo no Tribunal Judicial, verifica-se que embora o número de pedidos seja relativamente expressivo, o fluxo não é bastante tendo em conta os conflitos que, embora os Serviços de Cadastro não puderam dar o número por falta de registo, afirmaram que eles são elevados.

Porquê esta situação? Na nossa opinião, é que as pessoas não têm tradição de recorrer aos tribunais. Muitas vezes o recurso ao tribunal representa um custo porque é

concessões na medida do necessário para que todos produzam o seu efeito sem prejuízo para uma das partes. Este preceito podia se aplicar nos casos em que duas pessoas sobrepõem pedidos no mesmo terreno e ambos não tiveram ainda a autorização. A solução seria dividir o terreno pela metade de modo a que todos saiam beneficiados. Mas a experiência prática mostra que quando há sobreposição de pedidos, a tendência é de o primeiro a submeter o requerimento reivindicar o direito para sí. Só que a lei de terras não prevê a figura de trato sucessivo. Tanto é que vezes sem conta se tem autorizado não o primeiro, mas o segundo e por vezes um dos que vierem depois destes dois primeiros. Nestes casos o primeiro tende a reivindicar que o direito a ele pertence por ter sido o primeiro a submeter o pedido dependendo da maneira como o requerente acelera a tramitação do seu processo. Julgamos que estamos perante direitos desiguais ou de espécie diferente. O primeiro tem apenas a expectativa mas não tem o direito autorizado, ao passo que o segundo requerente tem o direito autorizado, neste caso prevalece o direito do segundo de harmonia com o disposto no nº 2 do artº 335 do c.c que estatui que nos casos em que os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que se considerar superior.

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preciso envolver advogados e pagar as custas judiciais. Por isso, mesmo pessoas instruídas quando se sentem lesadas preferem insistir pela via de apelação e de recurso hierárquico na tentativa de encontrar uma solução. Há também a acrescentar a inclinação natural á resolução extra judicial de conflitos própria das sociedades tradicionais africanas fugindo do sistema judicial de tipo ocidental, que no nosso caso de Moçambique, além de ser oneroso, ele é lento e complexo para a maioria da população.

A solução passa pela educação dos cidadãos, aperfeiçoamento dos mecanismos de atendimento e julgamento das queixas apresentadas, sobretudo no que concerne á celeridade de julgamentos. A organização do cadastro como falamos em sede própria neste trabalho, apresenta-se aqui como chave que vai permitir melhorar os registos que vão evitar sobreposições de pedidos a não ser em casos intencionais de natureza ilícita.

Concluída a abordagem das questões ligadas com os conflitos de terras e os caminhos usados para busca de soluções pelos sujeitos de direito, vamos de seguida fazer alguma referência ás questões institucionais.

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13. Questões institucionais.

No nosso plano de dissertação apresentado á coordenação do curso de mestrado, este subtema vem inscrito sob o título capacitação institucional. Durante o processo de realização do trabalho, sentimos ser mais adequado mudar da designação para questões institucionais.

Neste domínio avultam questões como a representação e actuação das comunidades no que respeita aos direitos de uso e aproveitamento da terra, delimitação das terras comunitárias, planos de uso da terra, processos em curso, recursos humanos568 e a situação actual dos Serviços de Cadastro. Passamos a analisar cada um dos pontos arrolados.

13.1. Representação e actuação das comunidades locais.

A Lei n°. 19/97, de 1 de Outubro, dispõe que os mecanismos de representação próprios das comunidades locais relativamente aos direitos de uso e aproveitamento da terra seriam fixados por lei.569

Aquele comando normativo impunha aos órgãos competentes do Estado um dever de agir. O que é que aconteceu? O comando não foi cumprido de harmonia com o espírito da sua aprovação que visava a regulamentação adequada da situação das comunidades locais que era uma abordagem nova no País.

Como antes tivemos ocasião de nos referirmos neste trabalho, a lei de terras deu implicitamente pela primeira vez personalidade jurídica ás comunidades locais na esteira de reconhecimento do seu direito á terra por ocupação.

Ao reconhecer os direitos das comunidades, vimos também que o Estado instituiu a prerrogativa de as mesmas serem auscultadas no processo de titulação de um pedido de terra, quando há necessidade de identificar terras pelos investidores e nos casos de desmembramento das parcelas pelos membros de uma determinada comunidade, participação na delimitação das suas terras e conferiu-lhes em sede da lei de terras diversas competências como nos referimos antes neste trabalho no local próprio. Por tudo isso o legislador considerou pertinente o estabelecimento de um quadro legal apropriado que fixaria os mecanismos da sua actuação, o que no nosso entender não aconteceu.570

568 Excluímos aqui a abordagem dos recursos materiais e financeiros porque disso falamos embora não de uma forma exaustiva quando abordamos a questão das taxas do direito de uso e aproveitamento da terra.

569 Cfr o artº 30 da actual lei de terras. Pensamos que a lei aqui referida é a lei em sentido formal e não em sentido material.

570 No ano de 2000, foi aprovado o Decreto nº 15/2000, de 20 de Junho, que define formas de articulação dos órgãos locais do Estado com as autoridades tradicionais, sendo uma das áreas de articulação a de direito de uso e aproveitamento da terra conforme prevê a alínea d) do artº 4 daquele diploma legal. Este instrumento legal no nosso entender não corresponde aos mecanismos próprios de actuação das comunidades locais preconizados na lei de terras.

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Esta lacuna continua a fazer-se sentir no conjunto da actuação das comunidades locais e julgamos que a lei a ser elaborada deveria ser aperfeiçoada para regular a actuação das comunidades na gestão das terras comunitárias, como também de outros recursos naturais como piscicolas, florestais, minerais e outros.

13.2. Delimitação das terras comunitárias.

Fizemos menção acima que o regulamento da actual lei de terras prevê a delimitação das terras comunitárias e das terras ocupadas por pessoas singulares nacionais de boa fé há pelo menos 10 anos quando surge a necessidade do seu lançamento no cadastro nacional de terras, cujos mecanismos seriam fixados por um anexo técnico.571

Com vista á materialização daquele comando legal e tendo como base as competências atribuídas pelo referido regulamento, o então Ministro da Agricultura e Pescas aprovou o anexo técnico ao regulamento da lei de terras através do Diploma Ministerial nº 29-A/2000, de 17 de Março.572

A questão fundamental do anexo técnico foi a opinião generalizada de que a delimitação ou demarcação de terras das comunidades locais não impedia a realização de outros empreendimentos económicos desde que os investidores obtenham o consentimento da comunidade respectiva.573 Por outro lado, foi opinião dominante e assente que a delimitação das terras comunitárias não teria carácter obrigatório, mas seria ditada pelo seguinte:574

Quando há conflitos de terras ou do uso de outros recursos naturais;

Quando o Estado pretende lançar empreendimentos para o desenvolvimento do país;

Quando há um pedido das comunidades locais.

Na base deste quadro legal, a Província de Maputo realizou diversas delimitações ao longo do período 1998/2008 que se saldaram em 44 áreas das comunidades delimitadas com abrangência de uma área total de 412.096 hectares.575

Todavia, apesar de delimitadas estas áreas comunitárias, apenas 11 comunidades tiveram o lançamento das suas parcelas no cadastro nacional de terras e foram atribuídas os necessários certificados. As outras não concluíram o processo de registo porque sendo

571 De novo cfr o nº 3 dos artºs 9 e 10 do regulamento da actual lei de terras.

572 Cfr o artº 47 do regulamento da actual lei de terras.

573 Cfr o artº 3 do anexo técnico aprovado pelo Diploma Ministerial nº 29-A/2000, de 17 de Março.

574 Idem, artº 7.

575 Fonte, Serviços Provinciais de Geografia e Cadastro.

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trabalho realizado com apoio de organizações interessadas em apoiá-las neste exercício, elas acabam muitas vezes não concluindo o trabalho.

Nestas circunstâncias em que a comunidade não teve o lançamento da sua área delimitada no cadastro nacional de terras, será que o seu direito fica fragilizado? A lei de terras estatui que a ausência do registo não prejudica o direito de uso e aproveitamento de terra adquirido por ocupação. 576 Este preceito legal indica que o direito das comunidades não está rigorosamente obrigado á prova por título e é por isso que a sua existência pode ser comprovada por prova testemunhal oferecida por homens e mulheres de uma dada comunidade.577

Outra pergunta é se a delimitação está a trazer vantagens para as comunidades? Pareceu-nos que para além de permitir que a comunidade saiba quais são os seus limites, poucas têm tido vantagens económicas por isso.

A vontade de saber essa realidade levou-nos a entrevistar Luís Dinis, director da Lupa, antigo funcionário da organização Suiça Helvetas, uma das pioneiras no apoio á delimitação de terras comunitárias na Província de Maputo que abandonou aquela organização para criar a Lupa de que è director.

Para ele a delimitação é um processo que sem um projecto concreto de desenvolvimento fica-se quase sem nenhum significado. Gastam-se recursos, mas os benefícios para a comunidade não se sentem e deu exemplo de uma das várias delimitações feitas, a da comunidade de Mamoli no posto administrativo do Zitundo, distrito de Matutuíne na província de Maputo, que com apoio da Helvetas delimitou 10.000 hectares da sua terra comunitária, fez o seu lançamento no cadastro de terras e passada a certidão, mas de repente foi entregue a uma pessoa por autorização de um pedido sem pelo menos haver parceria.

Para ele a delimitação faria melhor sentido se recaísse sobre as terras que os membros de uma comunidade usa por forma a protegê-las. A delimitação de terras das comunidades deveria permitir que elas consigam identificar os limites do que é seu e nesse sentido:

Participar nos possíveis empreendimentos dentro dos princípios de parcerias com os investidores;

Com base nas parcerias com o sector privado, promover o surgimento de património comunitário com vista ao combate á pobreza, como escolas, centros de saúde, salas de aulas e etc.

Com o mesmo objectivo colhemos duas experiências de duas comunidades que fizeram a delimitação das suas terras, mas na área de florestas e fauna bravia. Trata-se das

576 Cfr o nº 2 do artigo 14 da actual lei de terras.

577 Idem, alínea b) do artº 15

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comunidades de Goba no distrito da Namaacha, província de Maputo e de Madladlane, distrito de Matutuine na mesma província.

Na comunidade de Goba falamos com Armando Elias Comé e Rafael Simone Mathe, ambos membros da direcção da associação Goba N’tavha Yedzu. Eles explicaram que a associação foi criada em 2001, como consequência de uma promoção realizada pelo governo da província de Maputo em parceria com a FAO. O objectivo era o maneio, gestão e exploração racional dos recursos naturais que estavam ameaçadas de extinção.578

Fruto da tomada de medidas no sentido de gestão racional dos recursos naturais, passou-se a restringir a exploração directa dos mesmos por pessoas idas de fora da comunidade e os membros da comunidade filiados na associação ou nos seus comités de zona é que podiam proceder á exploração de carvão vegetal em quota devidamente definida.579

Como primeira medida, foi feita a delimitação das terras comunitárias tendo sido apurada uma área de 9.701 hectares que foi lançada no cadastro nacional de terras e passada a certidão de registo. Esta delimitação mostrou-se objectiva porque visou um fim concreto que foi de permitir uma gestão participativa e racional de recursos naturais, de modo a que a sua existência se prolongue por mais tempo e continue a servir a presente e futuras gerações.

No que respeita á comunidade de Madladlane, ela se localiza em Salamanga e faz limite com a Reserva de Caça de Maputo. Falamos com Jeremias Mingane desempenhando o papel de mestre de obras na associação por ausência de outros membros daquela organização. Ele explicou que a associação nasceu em 1999, ano em que se fez a delimitação das terras comunitárias que apurou 7.100 hectares.

A delimitação tinha em vista evitar que as suas terras localizadas na zona tampão da Reserva de Caça fossem anexadas por aquela instância de conservação da natureza e turística. Mas dada a localização estratégica do local devido á possibilidade de se desenvolver actividades turísticas viradas para a reserva, a associação construiu um lodje, desenvolveu artesanato, agricultura e apicultura.

Porque fomos informados pelo nosso entrevistado que as actividades ali desenvolvidas foram promovidas pelo governo da província mas que o angariador de fundos e outras intervenções no campo de organização e implementação do projecto foi a IUCN, contactamos aquela organização na sua sede em Maputo, onde entrevistamos o Engº Rui Meira responsável técnico daquela organização.

578 Goba situa-se a 75 kms da cidade de Maputo e a 60 da cidade da Matola com 2.500 habitantes constituídos por exploradores de lenha e carvão, produtores agrícolas de subsistência e criadores de gado. Por estar situada perto das duas grandes cidades, é um dos locais de maior pressão de exploração dos recursos naturais por pessoas oriundas dessas cidades e era preciso travar a exploração desenfreada.

579 A associação organizou-se em 10 comités de zona com uma média de 30 membros cada. Devido á escassez do recurso, cada membro não podia exceder uma quota de 20 sacos mensais. Em relação á fauna a interdição de caça foi total.

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Ele explicou que a associação recebeu significativos investimentos destinados á implantação de infra-estruturas e construção de apiários para produção do mel.580 Houve constrangimentos porque as comunidades não estavam devidamente preparadas para continuarem a desenvolver o projecto depois de saída dos financiadores e notou-se que a expectativa dominante era de financiamento permanente pelos doadores e não se incutiu a ideia de que o que foi investido devia ser multiplicado para continuar a criar riqueza. Notou-se que não se investiu muito no treinamento sobre os aspectos de gestão.

A abordagem que acabamos de fazer em relação á delimitação das terras comunitárias permite apercebermo-nos que este processo de facto é mais pertinente quando ele é feito visando um objectivo de desenvolvimento com vista ao combate á pobreza que grassa as populações.

Os dois últimos exemplos práticos que acabamos de ver dizem respeito ás terras ligadas com a gestão dos recursos naturais assentes sobre a terra ou actividades dinâmicas geradoras de receitas como é o caso do turismo e artesanato que se desenvolvem em Madladlane. Concordamos com os argumentos de Luís Dinis e Rui Meira de que delimitar terras só por delimitar sem perspectiva de desenvolvimento não tem nenhum impacto dentro das comunidades.

Neste exercício sentimos que o papel dos Serviços públicos, competentes é fraco. No nosso entender caberia ao governo e a outras entidades competentes assumir a liderança no acompanhamento do desenvolvimento subsequente do que foi começado por uma ONG. Devia caber ao governo da província consolidar o que foi iniciado em Goba e em Madladlane. Na promoção da delimitação das comunidades locais e com observância da promoção do que pode torná-la útil, julgamos que as instituições competentes do Estado jogam um papel importante.

Feita a abordagem sobre a delimitação das terras comunitárias a seguir vamos falar dos planos de uso da terra.

13.3. Plano de uso da terra.

Em relação aos planos de uso da terra, dispõe a actual lei de terras que os mesmos devem ser definidos por lei.581

580 Além dos seus fundos a IUCN contou com o patrocínio financeiro da Fundação Ford. Na Fase1 foram financiados 102.000 dólares americanos, 60.000 dos quais foram aplicados na construção do lodje. Na segunda fase 35.000 dólares americanos foram investidos com vista á ampliação da actividade turística. Além do lodje, foram construídas 300 colmeias, 1 casa de mel, 1 máquina para purificação do mel e material para condicionamento do mel. Como infra-estruturas para o turismo possuem duas casas de alojamento e espaços para instalação de tendas de campismo de pessoas que vão visitar a Reserva, considerando que deve haver parceria entre aquela Reserva e a associação, permitindo que esta possa ter guias turísticos treinados para conduzir turistas aos roteiros dos animais.

581 Cfr o artº 31 da actual lei de terras.

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Com vista á materialização deste princípio, a Assembleia da República aprovou a lei n° 19/2007, de 18 de Julho, que estabelece as normas de ordenamento do território. Esta Lei considera como uns dos seus instrumentos de carácter geral:582

A qualificação dos solos;

A classificação dos solos;

O cadastro nacional de terras.

O zoneamento de terras de acordo com a sua aptidão agrícola.583

Esta lei demorou a ser aprovada, pois foram 10 anos depois da aprovação da lei de terras. Ela é uma lei geral que no nosso entender se devia regulamentar as questões específicas como as ligadas com o zoneamento de solos com aptidão agro, silvo e pastoril. Vista a questão dos planos de uso da terra, passemos de seguida a ver a matéria relacionada com os processos em curso.

13.4. Processos em curso.

O regulamento da actual lei de terras estabeleceu que os processos em curso de pedidos de aquisição do direito de uso e aproveitamento da terra ao abrigo de autorização de um pedido, ficariam sujeitos às disposições da nova lei de terras e seu regulamento.584

Com base nesta disposição legal, os requerentes deveriam no prazo de um ano confirmar se estavam interessados em continuar até final com os seus processos sob pena de, não se manifestando, os mesmos serem cancelados.

Tendo sido aprovado o regulamento da lei de terras em 8 de Dezembro de 1998, só em 8 de Dezembro de 1999 é que se completou um ano e foi a partir dessa data que se desencadeou a campanha de cancelamento de pedidos que durou 3 anos, isto é, de Dezembro de 1999 a finais de 2001.585

A instituição cumpriu tempestivamente este comando legal e embora não tenhamos conseguido obter dados estatísticos exactos, foi nos dada pelo sector de cadastro da actual Direcção Nacional de Terras e Florestas que foram cancelados cerca de 10.000 processos em curso cujos requerentes não manifestaram a intenção de prosseguir com os seus pedidos até final. Vista a questão dos processos em curso, passamos a abordar o assunto ligado com os recursos humanos.582 Cfr o artº 10 da Lei n° 19/2007, de 18 de Julho, lei de ordenamento do território.

583 O zoneamento tem a ver com a qualificação e classificação dos solos de modo a determinar a sua aptidão e no caso da agricultura é a aptidão agrária e assim os solos podem dar para culturas que são mais exigentes em termos de fertilidade ou menos exigentes.

584 Cfr o artº 46 do regulamento da actual lei de terras.

585 Segundo os SPGC de Maputo, para o cancelamento de pedidos foram definidas metodologias a nível dos Serviços Centrais, isto é, na DINAGECA, que orientaram todos os SPGC dos mecanismos a usar para o cancelamento dos pedidos de modo a uniformizar-se os critérios.

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13.5. Recursos humanos

O desenvolvimento e o sucesso de qualquer organização pública ou privada depende da qualidade do pessoal que tem no seu quadro. É por isso importante abordar a questão dos recursos humanos como aspecto importante do nosso trabalho.

Em relação a este assunto, quisemos identificar o que é que constituem aspectos cruciais para que a componente recursos humanos para a instituição seja aprimorada e foram adiantados três aspectos como sejam, garantia do efectivo, a formação contínua para o aperfeiçoamento do trabalho e nos estabelecimentos do ensino. Passemos a analisar cada aspecto.

13.5.1. Garantia do efectivo de pessoal e formação contínua.

Os SPGC da província de Maputo evoluíram de forma progressiva no que concerne ao aumento do pessoal qualificado. É prova disso o facto de em 1999 possuir 2 técnicos médios e 1 técnico superior586 e em 2008 passar a ter 32 técnicos médios e 5 superiores.587

A questão que se coloca é se a eficiência do desempenho institucional reside só no aumento do efectivo? Julgamos que por um lado é importante o aumento do efectivo qualificado, mas há outros factores importantes como seja, a reciclagem contínua do pessoal de modo a aperfeiçoá-lo ás exigências cada vez mais crescentes do trabalho de maior qualidade.

Foi nota dominante a reclamação de que a tradição dos Serviços de Cadastro de organizarem constantemente cursos de aperfeiçoamento contínuo do pessoal técnico e administrativo há muito tempo que foi abandonada.

Uma outra questão crítica que se levanta é que apesar de se estar a registar crescimento do efectivo de técnicos superiores, nenhum deles tem a formação em engenharia geográfica que é uma formação especializada para operar com maior eficácia na área de cadastro, cartografia, fotogrametria, fotografia aérea e via satélite e geodesia. Isto mostra que há trabalho ainda por fazer de modo a dotar a instituição com recursos humanos á altura das exigências que o trabalho impõe.

13.5.2. Formação Formal nos estabelecimentos do ensino.

A formação a que aludimos é de dois tipos. A primeira é a formação de técnicos especializados como nos referimos no número anterior porque não basta ter técnicos superiores que não têm a formação sólida das especialidades chave do sector de actividade.

586 DINAGECA, reunião nacional de terras, Pemba, 19 e 20 de Agosto de 2004, balanço do programa quinquenal 2000-2004 na área de administração e gestão de terras página 14.

587 Dados fornecidos por escrito pelos SPGC de Maputo.

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Durante a realização da recolha de dados contactamos a Faculdade de Matemática da UEM, de modo a nos inteirar da implementação do recém reaberto curso das engenharias geográficas cujo processo o sector de terras foi percursor. Com efeito, entrevistamos Emílio Mosse, chefe do departamento de matemática na Faculdade de Matemática na UEM que disse que o curso das engenharias geográficas foi reaberto em 2007 depois do seu encerramento em 1982. O curso arrancou com 27 estudantes em 2007, em 2008 foram matriculados 23 estudantes. Em 2011 prevê-se que 20 estudantes sejam graduados.

As preocupações existentes residem na falta de professores e de equipamentos para as práticas como laboratório, teodolitos, GPS e outros necessários para que a formação dos estudantes seja mais eficiente e completa. A lacuna da falta de professores vai se colmatando com recurso ás instituições que operam na área de terras e outras que têm este tipo de técnicos.

Além da necessidade de se equipar a escola, constitui desafio a necessidade de a Administração Pública do país preparar condições para a absorção dos técnicos que vão entrar no mercado de trabalho em 2012.

Outro tipo de formação relaciona-se com o ensino da legislação de terras e não só.588

O que acontece é que apenas as instituições que leccionam o direito e o Instituto Nacional de Formação em Administração de Terras(INFATEC) incluem no seu currículo a legislação moçambicana de terras.

Julgamos que as instituições que leccionam cursos agrários deviam incluir nos seus currícula matérias relacionadas com a legislação agrária em especial a da gestão da terra. Por causa desse sentimento, estendemos a nossa pesquisa para as Faculdades de Agronomia e de Veterinária e ao Instituto Médio Agrário de Boane.

Na Faculdade de Agronomia entrevistamos a professora Eunice Covane e o professor Valério Macandza que foram sugeridos como as pessoas indicadas. Da entrevista e em face da análise do material disponibilizado mormente o plano temático, concluímos que na prática não se lecciona a legislação agrária.

Do mesmo modo contactamos a faculdade de Veterinária onde dialogamos com as docentes Adelina Machado e Dárcia Correia que disseram que havia uma cadeira de ética e legislação, mas mais centrada na inspecção de carnes. Reconheceram que a matéria de legislação sobre terras propriamente dita não se estava a leccionar.

No Instituto Médio Agrário de Boane, entrevistamos José Tuia, Director da Escola e António Isac Mugabe, Director Pedagógico que disponibilizaram para análise os planos temáticos de todos os níveis. Da análise que fizemos concluímos que também não lecciona a legislação sobre terras.

588 O estudo da legislação agrária devia abranger a legislação sobre terras, florestal, de sanidade animal e vegetal dentre outra.

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Porquê esta preocupação? A preocupação surge porque estas instituições produzem técnicos que grosso modo irão trabalhar com os camponeses como dirigentes ou como extensionistas. Dominando o conhecimento da legislação agrária em especial da legislação sobre terras estarão em melhores condições de assegurar a gestão dos recursos naturais que são objecto de trabalho das comunidades ou deles retiram benefícios para o seu sustento.

É também importante registar que os dirigentes do sector agrário incluindo a maioria dos Serviços Distritais das Actividades Económicas têm origem nestas instituições de ensino. O país sairia a ganhar mais se eles dominassem além de outras disciplinas técnicas toda a legislação agrária, em especial a que diz respeito á terra que é um recurso natural básico e estratégico de que o país dispõe.

13.6. Situação actual dos Serviços de Cadastro.

Os Serviços de Cadastro funcionaram sob a alçada da Direcção Nacional de Geografia e Cadastro e têm a sua representação em cada Direcção Provincial da Agricultura através dos S.P.G.C. Além do cadastro de terras, a DINAGECA era responsável pelas questões de fotografia aérea, geodesia, fotogrametria e cartografia. No âmbito da reforma institucional, as últimas 4 actividades passaram para o CENACARTA ficando apenas o cadastro e gestão de terras com a DINAGECA que passaria a designar-se Direcção Nacional de Terras. Entretanto, através do Diploma Ministerial nº 202/2005 de 29 de Agosto, fundiu a Direcção Nacional de Terras com a Direcção Nacional de Florestas e Fauna Bravia.589

Esta fusão de duas instituições com complexidades específicas deu lugar a um gigante que no nosso entender não conseguiu adaptar-se para pôr cobro ás suas obrigações. Sentimos isso durante a realização do nosso trabalho porque embora a estrutura não foi mexida a nível da província, as dificuldades do comando central fazem-se sentir a nível da base.

Apuramos que o fenómeno fusão instalou um descontentamento no seio dos trabalhadores porque quando ela foi operada, a direcção da nova instituição ficou dominada pelos quadros que vinham dirigindo a Direcção Nacional de Florestas e Fauna Bravia, tanto o director como o seu adjunto.

O director cessou as funções, mas foi nomeado outro quadro oriundo da área das Florestas e Fauna Bravia e manteve-se o adjunto. Por causa disso o sentimento é de que há um tratamento desigual entre os trabalhadores das duas origens e isso se reflecte também na sensibilidade que se dispensa no tratamento dos assuntos ligados com o cadastro nacional de terras.

O descontentamento resultou na fuga de técnicos superiores mais qualificados na área de terras para outras áreas de actividade o que fragiliza mais uma instituição que vinha

589 Cfr a alínea b) do artº 2 dos estatutos do Ministério da Agricultura, aprovados pelo Diploma Ministerial nº 202/2005, de 29 de Agosto.

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se ressentindo da falta de quadros.590 Além das consequências negativas no domínio do pessoal outras áreas como o cadastro de terras que estava digitalizado de forma a passar a uma gestão informatizada, o banco de dados foi perdido por falta de manutenção do sistema o que constitui um elevado prejuízo.591

A nossa opinião é que a questão da fusão devia ser revista repondo a situação antiga á de 2005. Está provado que estruturas leves e flexíveis com objectivos claros funcionam melhor e têm maior probabilidade de alcançarem os seus objectivos. A gestão e administração de terras é uma actividade de elevada importância porque debruça-se sobre a gestão de um recurso estratégico do país, daí que se torna importante a existência de uma instituição eficiente, dotada de meios humanos, financeiros e materiais á altura de realização dos objectivos pretendidos.

Esgotamos a abordagem do capítulo VI, relativo á actual legislação moçambicana de terras. Procuramos analisar todos os aspectos que nos pareceram pertinentes quer do ponto de vista teórico, quer prático.

Pensamos ter tocado o máximo possível dos aspectos principais relacionados com a implementação da actual lei de terras e sua legislação complementar. Mesmo os aspectos teóricos abordados, foram-no com o intuito de se chegar ás questões práticas respectivas. Pela vastidão das questões a tratar neste capítulo, admite-se a hipótese de sem intenção, ter se omitido algum aspecto.

Com a chegada ao fim desta abordagem, passaremos a estudar de forma resumida as matérias ligadas ao VII capítulo que se debruça sobre o papel da terra no desenvolvimento sócio económico de Moçambique, o caso de produção de cana sacarina pela Açucareira da Marragra.

590 Pelo menos 8 técnicos abandonaram os serviços para outras áreas de actividade.

591 Não foi possível apurar o valor gasto pela digitalização de dados, mas calcula-se que foi investido muito dinheiro num trabalho que durou cerca de 6 anos a realizar.

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CAPÍTULO VII

O PAPEL DA TERRA NO DESENVOLVIMENTO SÓCIO ECONÓMICO DE MOÇAMBIQUE(O

CASO DE PRODUÇÃO DA CANA SACARINA PELA AÇUCAREIRA DA MARRAGRA).

O objectivo deste capítulo é demonstrar que o acesso e a manutenção da posse da terra pelos sujeitos de direito, é garantia para que os investidores, e não só,592 participem no desenvolvimento do País, gerando emprego e trabalho593 principalmente para os cidadãos nacionais.

Além do emprego e trabalho, através de exploração da terra, geram-se outras oportunidades de melhoria das condições de vida das populações, por via de acesso á aquisição e consumo dos produtos que o investidor produz, o acesso á assistência médica e medicamentosa oferecida pela empresa, o combate de pandemias como a malária, HIV/SIDA e outros benefícios sociais. O tratamento deste capítulo vai respeitar o seguinte plano de explanação:

1. A Marragra:

1.1. Criação da Marragra;

1.2. Evolução da produção após a criação da Marragra;

1.3. Intervenção do Estado;

1.4. A desintervenção pelo Estado e desenvolvimentos subsequentes;

2. A Marragra actual e o desenvolvimento económico e social:

2.1. Evolução da Marragra;

2.2. Facilidades oferecidas pelo Estado;

2.3. A cooperação empresarial;

2.4. A contribuição da Marragra no desenvolvimento humano:

2.4.1. Benefício do trabalhador;

592 Escolhemos por acaso a produção da cana sacarina com envolvimento de grandes investimentos para demonstrar os benefícios colaterais que os investimentos na terra podem trazer para os trabalhadores e comunidade circunvizinha, mas também o acesso á terra permite ás comunidades rurais a produção de produtos para a sua subsistência e para o mercado. Em Moçambique actualmente o sector camponês tem sido o maior produtor de produtos estratégicos para o abastecimento do povo e para a exportação tais como o milho, arroz, mandioca, amendoim, mapira, algodão, castanha de caju, tabaco e outros. A intervenção do sector empresarial se resume na comercialização e escoamento e agro processamento daquilo que os camponeses produziram.

593 Gerando emprego e trabalho estar-se-á a assegurar o comando constitucional previsto na actual Constituição da República de Moçambique. Nos termos do número 1 do artigo 82 da Constituição, o trabalho constitui o direito e dever de cada cidadão. De harmonia com o disposto no número 1 do artigo 112 da Constituição da República, o trabalho constitui a força motriz para o desenvolvimento do País.

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2.4.2. Relações com a comunidade;

2.4.3. Outros aspectos importantes.

Apresentado o plano de explanação do VII e último capítulo do nosso trabalho, a seguir passamos ao desenvolvimento.

1. A Marragra.

Escolhemos esta empresa para um caso de referência dentre outros casos porque o sector açucareiro foi o primeiro que se notabilizou pelo surgimento de uma agricultura forte no sector agrário do país logo no fim da guerra que afectou o País.

Quando na fase curricular preparamos o nosso relatório na cadeira do direito económico internacional, fizemos pesquisa sobre o papel da Marragra no desenvolvimento sócio económico do País. Porque o resultado daquela pesquisa se mantém ainda actual dado que se refere mais ao período de implementação da actual legislação de terras, muito material recolhido na altura e usado no relatório em referência será utilizado.

Para dar corpo á nossa pretensão, vamos abordar em primeiro lugar a Marracuene Açucareira Agrícola SARL (Marragra), centrando a nossa análise na sua criação, o seu intervencionamento pelo Estado e a sua situação depois da intervenção até ao momento actual.

1.1. Criação da Marragra

A Marragra foi criada em 18 de Maio de 1964, nas margens do rio Incomati no Distrito da Manhiça, ocupando terras que tocam os limites do Distrito de Marracuene, na Província de Maputo. A empresa foi constituída por capitais privados de origem portuguesa e tinha como principal objectivo a produção de cana sacarina numa área de 5.900 hectares então autorizada a sua ocupação pelo Governo tendo como capital inicial para a sua criação 60 mil contos.

Com vista a assegurar a realização integral do projecto, a empresa montou diversas infra-estruturas que compreendem sistemas de rega para a área de produção, fábrica de moenda da cana sacarina para produção de açúcar bruto, escritórios e infra-estruturas sociais.

1.2. Evolução da produção após a criação da Marragra

Apesar de ter sido criada em 1964, a empresa iniciou a sua produção em 1969. Os dados disponíveis de 1970, indicam que a empresa produziu nessa campanha 267.549 toneladas de cana sacarina correspondendo a uma produtividade por hectare de 45ton’s de cana, com produção de 12.600 toneladas de açúcar, tendo como capacidade instalada de moenda diária de 2.500 toneladas.

Em relação à força de trabalho, entre 1972 e 1973, a empresa empregou 3.000 trabalhadores efectivos e 1.900 trabalhadores sazonais vulgo tarefeiros.

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A importância do surgimento desta nova agro-indústria foi o reforço da capacidade instalada da indústria açucareira do País. A Marragra e a Açucareira de Mafambisse foram as últimas indústrias abertas no Pais, e a sua criação permitiu que se atingisse uma produção considerada recorde (325.000 ton’s) em 1972, o que veio reforçar a disponibilidade de produtos para o abastecimento interno e para a exportação.594

O papel da Marragra no desenvolvimento da região onde se situa é visível. A empresa constitui um dos pontos de referência no Distrito da Manhiça pelo seu papel no desenvolvimento económico e social. Característica das grandes empresas agrárias, a Marragra não deixou de seguir essa tradição, tendo transformado a zona onde se encontra implantada numa pequena vila, com posto de saúde, escola e loja, além do melhoramento das vias de acesso.

Como unidade privada, a Marragra funcionou até 1977, tendo sido intervencionada a partir daquele ano no contexto da política intervencionista do Estado moçambicano no auge de introdução da economia centralmente planificada no pais depois da independência nacional.

1.3. Intervenção do Estado na Marraga.

Em 25 de Fevereiro de 1977, o Estado moçambicano decidiu intervencionar a Marragra, que passou a ser gerida por uma direcção nomeada pelo Estado ao abrigo do Decreto-Lei nº 16/75, de 13 de Fevereiro.

Depois de intervenção do Estado, a área em produção passou de 5.900 hectares para 2700 hectares, com uma produção média anual de 102.500 ton’s de cana e uma produtividade média de 37 ton’s de cana por hectar.

Entretanto, no que diz respeito à força de trabalho, a mesma manteve-se nos mesmos padrões de 1970, ou seja, 3.000 trabalhadores efectivos e 1.900 sazonais o que de certa maneira pode ser sinal de alguma fragilidade de gestão económica do sector estatal.595

A Marragra depois de intervencionada produziu cana até 1986, ano em que devido aos problemas estruturais mormente ligados à obsolência dos equipamentos agrícolas, degradação de infra-estruturas de rega e fabris, acabou paralisando a sua actividade principal.

Como alternativa, passou a abraçar a produção de culturas alimentares em quantidades insignificantes, como a banana, arroz e hortícolas. No entanto, a força de trabalho não diminuiu apesar da redução da actividade, constituindo um encargo ao Estado que tinha que subsidiar o respectivo fundo de salários, situação que se manteve até ao fim da intervenção do Estado, que teve que saldar dívidas de salários em atraso e pagar indemnizações para a desvinculação de trabalhadores improdutivos.

594 Fonte, entrevista com Alfredo Muchanga do Instituo Nacional do Açúcar.

595 De facto, se a produção baixou, o normal seria o recurso á redução da força de trabalho de modo a adequá-la aos níveis de produção, tendo a garantia de pagamento de salários e outras despesas com base na sua produção. Este fenómeno de manutenção de elevado número de trabalhadores e menos produção, foi incentivado pela política de subvenções que o Estado fazia via Banco Popular de Desenvolvimento BPD.

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Esta abordagem de um caso concreto embora de uma forma resumida, sustenta o argumento de que fora os problemas provocados pela guerra no País que tiveram o seu peso e ditaram o funcionamento irregular das instituições e da economia, o sector estatal agrícola teve os seus problemas endógenos, que se relacionam com a falta de quadros qualificados, mas sobretudo a falta de capacidade de gestão e de recursos para novos investimentos em infra-estruturas e equipamentos.

Por outro lado, a ausência do sentimento subjectivo em relação à coisa gerida pela cadeia de responsáveis do Estado ligados ao sector desde o Ministério até aos gestores directos vinculados na unidade de produção, são elementos prejudiciais à prosperidade da empresa para que contribua de forma viável para o desenvolvimento económico.

Devido a estes problemas que afectaram não só a Marragra, como também as outras unidades geridas pelo Estado, este decidiu dentro do pacote do programa de reajustamento estrutural iniciado em 1987, desintervencionar a Marragra em 1992.

1.4. A desintervenção pelo Estado e desenvolvimentos subsequentes.

Em 1992, estimulados pela política de privatização que estava em curso no País, os accionistas da Marragra encabeçados pela família Petíz que detinha uma posição maioritária na sociedade da Marragra, apresentou um pedido ao Governo para a recuperação da Marragra.

Esse pedido foi aceite tendo como base o quadro legal estabelecido no Decreto-Lei nº 16/75. Apesar de a Marragra ter sido intervencionada em 1977, até 1992, altura do pedido de retorno pelos accionistas, ainda não tinha sido transformada em empresa estatal, daí a legitimidade de requerer esse retorno tendo como base aquele diploma legal.596

Uma vez aceite o pedido, a família Petiz, detentora de posição maioritária na Marragra, convocou a assembleia geral dos sócios que teve lugar em Junho de 1992, abrindo desse modo um processo atípico597 de privatização da empresa. A estrutura accionista da empresa passou a ser formada por 60% da família Petiz, 17% para o Estado, igual percentagem para o Banco de Moçambique e 6% para outros pequenos accionistas particulares.

A partir desse momento os sócios desencadearam diversas acções de modo a reactivar a actividade produtiva da empresa. O primeiro passo foi a regularização do direito de uso e aproveitamento da terra à luz da legislação de terras aprovada em 1979 que estava

596 Nos termos do nº 4 do art 9 do Decreto-Lei nº 16/75, de 13 de Fevereiro, os proprietários ou a maioria dos sócios detendo maioria absoluta do capital, têm a prerrogativa de requererem o termo da intervenção do Estado na empresa, apresentando razões justificativas desde que tenha decorrido pelo menos um ano depois da intervenção.

597 Foi uma privatização atípica porque não foi mais do que a devolução da empresa aos donos na medida em que, passados 14 anos depois da intervenção do Estado, ela não tinha sido transformada em empresa estatal.

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ainda em vigor.598 No processo de regularização do direito á terra, a empresa conseguiu uma área de 6.800 hectares, dos quais 6.400 aptos para produção agrícola.

O segundo passo foi de contactos com investidores, beneficiando da abertura do BIRD e de outras instituições internacionais de crédito no apoio à reactivação da produção do sector açucareiro do País.

Entretanto, os accionistas da Marragra adoptaram uma estratégia tendo em vista a busca de parcerias fortes e estratégicas na perspectiva de atracção de capitais e do saber fazer e ao mesmo tempo permitir um entrelaçamento com possíveis concorrentes fortes com os quais não se pode competir situados na África do Sul, uma grande potência da produção de açúcar na região austral de África.

Foi nesse contexto que a Marragra foi repartida em duas partes em 1996. Assim nasceu a Marragra Açúcar, proprietária da Fábrica de moenda da cana sacarina e de uma área para produção própria de cana com 3.200 hectares. Estrategicamente 50% da Marragra Açúcar foram vendidas à empresa Illovo Sugar Ltd da África do Sul.

A outra empresa que nasceu da cisão foi a Marragra Comercial, que manteve a estrutura accionista da Marragra SARL ora repartida e extinta. A Marragra Comercial ficou com uma área de 3.200 hectares de terras nas quais produz cana sacarina para fornecimento de matéria-prima à Marragra Açúcar a título oneroso.

Perante a situação de cisão da Marragra SARL, a nossa análise vai se centrar na Marragra Açúcar, entidade que detém o ciclo completo de produção e detentora da maior parte de infra-estruturas e com maior protagonismo no processo de desenvolvimento da região onde se situa.

2. A Marragra actual e o desenvolvimento económico e social

A Marragra Açúcar adiante simplesmente designada por Marragra, composta por 100% de capitais privados, lançou o seu projecto produtivo com aposta de conformar a sua actividade dentro das politicas que orientam o desenvolvimento empresarial no mundo contemporâneo, que se prendem com a prossecução do fim lucrativo que tenha como horizonte a satisfação do interesse dos investidores, mas contribuindo também para o desenvolvimento da comunidade, através da produção de bens económicos, criação de emprego, possíveis pagamentos de impostos e intervenção em acções de índole social.

Para a prossecução desses objectivos, a Marragra teve e tem de enquadrar a sua actividade orientada dentro de politicas que norteiam o desenvolvimento do País. Como Já nos referimos atrás, o sector açucareiro desempenha um papel estratégico para o abastecimento das populações em açúcar e para exportação.

Essa importância estratégica da produção do açúcar no País conduz necessariamente à obrigação de que os investidores que queiram desenvolver esta actividade tenham que 598 Trata-se da Lei nº 6/79, de 3 de Julho, a primeira lei moçambicana de terras que revogou a que vigorou antes da independência. Era preciso obter novos títulos de terra na medida em que como já vimos, a Constituição de 1975 extinguiu a propriedade privada sobre a terra, que passou a ser pertença do Estado. Os particulares passaram a ter o direito de usar a terra por um prazo de 15 anos, período que veio a ser estendido para 50 anos pela Lei nº 1/86, de 16 de Abril.

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actuar alinhados com uma política e estratégias de orientação que visam assegurar o crescimento económico para o desenvolvimento do País.599

Nesta perspectiva, a empresa teve como premissa enquadrar as suas estratégias de desenvolvimento no contexto dos instrumentos de políticas que foram sendo desenhados no País ao longo do período em análise.

O primeiro instrumento pela sua antiguidade é a Lei nº 3/93 de 24 de Junho, lei de investimento. Esta lei materializa o espírito do PRE e da nova Constituição da República aprovada em 1990 e revoga a Lei nº4/84, de 18 de Agosto, dentro do espirito de adequação da legislação sobre o investimento às exigências impostas pela dinâmica de atracção e incremento de empreendimentos económicos e sociais no País. O espirito que animou o legislador ao elaborar e aprovar esta lei, foi o desejo de criar um quadro legal que permitisse aos privados nacionais e estrangeiros investirem para o progresso e bem-estar dos moçambicanos.

A seguir a este instrumento, em 1995 foi elaborada e aprovada pela primeira vez no País, a politica agrária e a sua estratégia de implementação(PAEI). Este instrumento sectorial foi decisivo por definir o papel do sector privado agrário no desenvolvimento da agricultura do País. Considerando que o País desde a independência seguiu uma politica económica assente numa economia centralmente planificada, em que o principal actor económico era o Estado, a aprovação da PAEI veio dar clareza na direcção a seguir pelos produtores e investidores agrários600.

Outros instrumentos de politicas que envolvem as empresas agrárias foi a aprovação sucessiva de programas quinquenais de Governo para os períodos 1995-1999, 2000-2004 e 2005-2009. Além destes instrumentos de politicas, foi elaborada em 2000 a abordagem do desenvolvimento rural. Para o período 2000-2004 foi elaborado o PARPA (I), substituído pelo PARPA (II), a vigorar de 2005-2009. Estes instrumentos associam-se à agenda nacional 2025, aos instrumentos de politica internacional como a NEPAD e Acordo ACP/UE601.

Em todos estes instrumentos de políticas está patente a necessidade do envolvimento do sector privado no desenvolvimento económico do País e o empresariado agrário também se enquadra nesse conjunto de agentes económicos, com responsabilidade

599 O primeiro objectivo estratégico era o de assegurar o abastecimento das populações em açúcar e o segundo visava a exportação com vista á captação da moeda livremente convertivel. O esforço da Marragra e dos outros produtores nacionais do açúcar assegurou o seu alcance.

600 A PAEI, p9 e 10, refere como seus objectivos de maior importância dentre outros, o desenvolvimento de um sector empresarial eficiente e participativo na produção agrária, a garantia da segurança alimentar e a redução da pobreza.

601 O artº 19 do Acordo ACP, dispõe que a estratégia da ACP deve promover a apropriação local das reformas económicas e sociais e a integração dos intervenientes privados no processo de desenvolvimento. Esta linha de orientação com vista ao envolvimento do sector privado foi assumida pelo governo moçambicano ao depositar confiança nas forças do mercado como elemento fundamental em que se assenta o desenvolvimento da sociedade moçambicana.

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acrescida porque a agricultura é a base do desenvolvimento602 e pesa em sí a responsabilidade de ser percursora de muitas áreas de desenvolvimento.

Além de criar uma plataforma de politicas, estes instrumentos estabelecem também uma linha de orientação para que se proporcionem mecanismos de apoio ao desenvolvimento do empresariado e ainda de vinculação do Governo a compromissos que garantem a promoção do sector privado, criando um conjunto de práticas de boa governação.

2.1. Evolução da Marragra

A reabilitação da Marragra implicou em primeiro lugar ter assegurada a posse da terra numa área de 3.200 hectares para produção agricola, com vista á garantia de abastecimento de matéria prima á fábrica. Além disso, desencadeou o processo de reabilitação de infra-estruturas produtivas e sociais e lançou um programa de multiplicação de viveiros com variedades mais produtivas de cana. Recuperou a fábrica de moenda de cana, introduzindo nela novos equipamentos.

Em termos de mão-de-obra especializada, foi necessário recorrer-se à força de trabalho estrangeira, uma vez que a nível do País havia escassez. A força de trabalho estrangeira tinha como função para além de garantir o processo produtivo, a transferência de conhecimentos para o pessoal nacional.

Para realização desta acção de reabilitação e arranque da produção, a Marragra contou com apoio de instituições internacionais de crédito dentro da politica do Governo de incluir o sector açucareiro no conjunto de sectores estratégicos que deviam merecer apoio pela sua importância para a economia do País. O esforço financeiro para a reabilitação da Marragra envolveu o equivalente a mais de 55 milhões de dólares americanos.603

Como corolário de um programa de reabilitação bem sucedido, a empresa conta hoje com condições propicias para a expansão da produção sendo de destacar:

Uma capacidade de moenda de 160 ton’s de cana por hora;

Uma capacidade instalada de moenda de cana de 3.840 ton´s de cana por dia;

Um aumento de produção de cana sacarina de 58.000 ton’s em 1999, para mais de 594.768 ton’s em 2008;

Um aumento de produção de açúcar de 6.000 ton’s em 1999, para mais de 76.446 ton’s de açúcar em 2008.

A criação de 1.223 postos de trabalho permanentes e 2 535 trabalhadores sazonais;604

602 Conforme previsto no nº 1 do artº 103 da Constituição da República.

603 Fonte INA. Estão incluídas as despesas de reabilitação das plantações depois das cheias de 2000 que destruíram por completo todo o canavial e as infra-estruturas de rega.

604 Há mais postos de trabalho envolvidos, se tomarmos em linha de conta que tem sido prática na empresa contratar-se operadores para com o seu pessoal proceder ao corte de cana. Não foi possível obter os números

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A promoção de surgimento de outras iniciativas de produção de cana para o abastecimento à fábrica a titulo oneroso. Até 2008 estavam envolvidos no programa de produção de cana por contrato 8 pequenos agricultores, que forneciam 2.600 ton´s de cana por ano.

2.2. Facilidades oferecidas pelo Estado.

De harmonia com a politica do Governo de Moçambique reflectida na Lei nº 3/93 de 24 de Junho, o projecto de reabilitação da Marragra pela sua natureza beneficiou de incentivos fiscais e outras facilidades previstas na lei de investimentos.

Para beneficiar de incentivos previstos na lei, o investidor teve que apresentar a sua proposta de investimento através do Centro de Promoção de Investimentos e aprovado pelo então Ministro do Plano e Finanças, de acordo com os valores envolvidos.605

De modo a criar mecanismos de incentivo, foi aprovado um pacote de benefícios fiscais como medidas conexas à lei de investimentos. Com vista à criação de base legal para a atribuição de benefícios fiscais, foi aprovado o código de benefícios fiscais pelo Decreto n° 16/2002 de 16 de Junho.

Nos termos do código de benefícios fiscais, são considerados benefícios fiscais as medidas de natureza fiscal que possibilitam a redução do valor a pagar de impostos tendo em vista favorecer actividades importantes para o interesse público e para o desenvolvimento sócio económico do País. Consideram-se incentivos fiscais dentre outros, a isenção de impostos ou redução de taxas de impostos e contribuições, deferimento de pagamento de impostos e outras medidas fiscais de carácter excepcional.606

Foi com base neste quadro legal que o sector açucareiro de Moçambique no qual se enquadra a Marragra, beneficiou e continua a beneficiar de um tratamento mais favorável, tendo em vista a incentivá-lo a investir no melhoramento das condições técnicas, tecnológicas e materiais que garantam o aumento da produtividade e expansão da produção. Pretende-se consolidar a capacidade de abastecimento do mercado nacional, e aumentar o volume de exportações em condições de fazer face à competitividade no mercado internacional.

Nesse sentido, foram tomadas medidas de isenção do IVA para as importações de factores de produção destinados à produção de cana de açúcar e ao próprio açúcar. Para isso, através do Decreto nº 4/2002, de 26 de Março, foram aprovadas alterações ao código de impostos sobre o IVA que fora aprovado pelo Decreto nº 51/98 de 29 de Setembro. Este diploma legal era temporário e tinha por isso a sua duração prevista para terminar no dia 31 de Outubro de 2004. Entretanto, mostrando-se ainda necessário manter as isenções, essa

envolvidos nessas operações.

605 Nos termos da alínea b) do nº 1 do artº 15 do regulamento da lei de investimentos, competia ao Ministro do Plano e Finanças autorizar projectos de investimento cujos valores não ultrapassem 100 milhões de dólares americanos.

606 Cfr o artº 2 do código dos benefícios fiscais.

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medida foi estendida para 31 de Dezembro de 2006, que viria a ser legalizada pelo Decreto nº 55/2004 de 10 de Dezembro.

São em parte estas facilidades que contribuíram para o sucesso do projecto de reabilitação e relançamento da produção de açúcar pela Marragra. Adicionam-se a estas medidas, outros incentivos indirectos, mas com um grande impacto no desenvolvimento do sector.

Estamos a falar das medidas de restrições de entrada do açúcar dos Países vizinhos de modo a proteger a indústria nacional ainda incipiente e frágil, contra a entrada do açúcar dos Países vizinhos com maior experiência de produção.

O que se verificava é que o açúcar dos Países vizinhos era exportado para Moçambique muitas vezes a preços muito baixos em relação aos custos de produção nos Países de origem, numa situação que se assemelha ao dumping,607 facto que caso não fossem tomadas medidas de protecção, a indústria açucareira nacional seria estrangulada.

2.3. A cooperação empresarial

A Marragra está envolvida num esquema de coordenação empresarial como um complemento ao seu esforço individual em prol do desenvolvimento da sua actividade. Nesse processo de coordenação, a empresa foi co-fundadora da APAMO, uma associação de produtores de açúcar de Moçambique, cujos estatutos foram aprovados por despacho de 28 de Julho de 2001, do então Ministro da Agricultura e Desenvolvimento Rural.

Esta associação envolve as fábricas de açúcar e podem se filiar nela as associações de produtores de cana de açúcar agrupadas por regiões. Até aqui apenas as quatro fábricas de açúcar existentes no país encontram-se filiadas.608

A APAMO tem como função, servir de interlocutora válida perante o Governo, para discutir politicas de desenvolvimento e propor medidas que permitem criar um ambiente propicio ao desenvolvimento da actividade açucareira. Por exemplo, o pacote de incentivos fiscais de que falamos acima foi negociado com a APAMO em nome dos seus associados.

Além da APAMO, outro instrumento de cooperação empresarial é a Distribuidora Nacional de Açúcar, uma sociedade por quotas criada pelas 4 açucareiras em funcionamento no País, detendo cada, uma quota de 25% do capital social. Esta empresa

607 Op cit, Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico V1 e 2 página 129, dumpig quer traduzir a organização de um determinado País que tem por objectivo vender mercadorias da sua produção ao estrangeiro por preços relativamente baixos aos praticados nos mesmos produtos no País de destino. No caso do que acontecia em Moçambique, o produto entrava em circuito de contrabando, daí não haver clareza se podemos dizer que houve um verdadeiro dumping por não ter havido intervenção dos Estados de origem nas remessas do açúcar. O que aconteceu e nos foi informado no INA é que a indústria açucareira dos Países vizinhos produzia a custos baixos relativamente á indústria moçambicana ainda inexperiente.

608 As quatro fábricas de açúcar a que nos referimos são a própria Marragra e a Açucareira de Xinavane na província de Maputo, a Companhia de Sena de Marromeu e a Açuareira de Mafambisse ambas na província de Sofala.

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joga um papel importante porque ela é que se encarrega de comercializar o açúcar de todas as açucareiras do Pais.

Cabe à DNA, a responsabilidade de comercializar a nível interno e externo o açúcar produzido pelas açucareiras. Estas entregam o açúcar à DNA ao preço da porta da fábrica como grossista e esta coloca o produto nos seus depósitos espalhados por todo o País que servem de armazéns de distribuição para comerciantes armazenistas. Compete também à DNA estudar os preços com base na evolução do mercado e apresentar propostas de preços para discussão com os produtores através da APAMO onde todos se encontram filiados.

A vantagem desta cooperação é de criar bases para uma actuação concertada das empresas em matérias cruciais como de politicas, por exemplo, da politica salarial e de impostos dentre outras questões. O papel da DNA é importante por se encarregar das questões do mercado incluindo o externo e das questões do estudo constante dos preços a praticar no mercado, actividades que poderiam sobrecarregar as empresas e desviá-las de prestarem atenção aos processos produtivos.

2.4. A contribuição da Marragra no desenvolvimento humano.

Neste espaço pretendemos aflorar o papel da Marragra no desenvolvimento social. Falamos do desenvolvimento social e não apenas do desenvolvimento económico porque não queremo-nos cingir apenas a este conceito.

Na actualidade, a crítica tem sido feita pelo facto de o desenvolvimento económico, assente na concepção do crescimento económico ser visto apenas como o crescimento do PIB, e não se reflectir na vida real das pessoas.609

Na nossa óptica, o crescimento da economia deve ser reflectido na vida das comunidades e das pessoas que as integram. È o desenvolvimento económico que deve assegurar o cumprimento dos Objectivos do Desenvolvimento do Milénio proclamados pelas Nações Unidas. No caso concreto de Moçambique o Desenvolvimento económico deve assegurar a realização das tarefas nucleares definidas no PARPA, que são o reflexo dos ODM.

Assim, na prossecução dos ODM e do PARPA, é necessário que o desenvolvimento económico se reflicta na expansão da educação, serviços da saúde, serviços de abastecimento de água, combate ao HIV/SIDA, segurança alimentar, a criação do emprego e infra-estruturas diversas, só para citar alguns exemplos.

No caso do objecto do nosso estudo, vimos que a Marragra faz parte do grupo de empresas privatizadas e que conseguiram imprimir um rítimo de desenvolvimento que contribui para o crescimento económico do País. Mas a questão que se coloca é, será que o

609 O Doutor Firmino Mucavel no “ Economista” nº 1, 2002, p11, define o desenvolvimento como o crescimento económico que envolve o crescimento da estrutura social, na qual se reflecte a redução das diferenças entre pobres e ricos, na perspectiva de existirem reformas que privilegiem a assistência social, acesso à educação e outros serviços básicos, expansão do comércio para as zonas rurais e segurança alimentar para todos.

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sucesso da implantação da empresa naquela região onde se encontra implantada tem algum reflexo na vida da comunidade local e dos trabalhadores?

Dos dados que recolhemos, podemos visualizar a existência de um esforço na empresa com vista a assegurar que os resultados do desenvolvimento da mesma se vão reflectindo gradualmente na vida da comunidade. São elementos ilustrativos: 610

2.4.1. Beneficio do trabalhador

Salários negociados;

Alojamento(tem 396 trabalhadores que beneficiam de alojamento. Adicionando os seus dependentes são 1 421 alojados);

Subsídios de viagens;

Apoio aos funerais;

Assistência médica;

13º vencimento;

cabaz de Natal;

Entre 2003 a 2008, a empresa atendeu na sua clinica privada mais de 92.332 pessoas e despendeu o equivalente a mais de USD147.150;

Financia despesas de funerais dos trabalhadores e de seus familiares;

Entre 2003 e 2005 um grupo de 13.693 trabalhadores beneficiou de formação diversa e despendeu-se nesse processo USD 311.856.

2.4.2. Relações com a comunidade

Desenvolvimento de práticas de desporto e cultura com envolvimento da comunidade (a empresa contratou um consultor de desporto);

Envolvimento da comunidade nas comemorações do dia da Marragra que se celebra a 22 de Abril de cada ano;

A empresa mantém o posto médico e maternidade do Estado para assistência à população;

Providencia alojamento para o pessoal do posto de saúde e maternidade;

Sendo a malária a principal doença na zona devido à proximidade com terras húmidas, a empresa tem direccionado muitos recursos desde 2002 nas campanhas de pulverização contra o mosquito;

Ajuda com a sua ambulância para evacuação de doentes da comunidade;

610 Fonte: Dados fornecidos pelo CEPAGRI e APAMO.

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Financia a esquadra da policia para garantir a segurança e tranquilidade pública;

A empresa participa e na qualidade de um dos principais patrocinadores nas celebrações do dia da vila da Manhiça;

Fornece água potável e energia eléctrica à comunidade circunvizinha;

Tem dado especial atenção ao desenvolvimento de programas contra sida e tem a particularidade de ser co-fundadora da ECOSIDA, uma organização civil que se dedica ao combate contra o sida;611

Contribui na manutenção das escolas comunitárias vizinhas e cria condições para alojamento do pessoal docente.

2.4.3. Outros aspectos importantes.

Tem um acordo de cooperação com a Universidade Eduardo Mondlane que permite o estágio e práticas dos estudantes;

Tem estratégia de nacionalização da força de trabalho através de substituição gradual da força de trabalho estrangeira por nacionais.

Os dados que acabamos de apresentar, indicam claramente o contributo que esta empresa dá à sociedade moçambicana que se evidencia: I) na contribuição para o crescimento do produto interno bruto; II) no abastecimento da população em açúcar; III) na exportação; no abastecimento da indústria que tem como uma das suas matérias primas o açúcar; IV) na possibilidade de arrecadação indirecta de impostos através de aplicação de taxas aos produtos que levam o açúcar como matéria prima; V) na redução do desemprego, chave principal para o combate à pobreza; VI) no seu envolvimento aos programas de desenvolvimento rural, promoção do bem-estar das populações nas áreas de educação, saúde, abastecimento da água, habitação, cultura e desporto, formação profissional dentre outros.

Tudo isto é fruto de existência da terra apta para assegurar a produção de bens e neste caso, do açúcar com vista ao abastecimento da população do país e também garantir a exportação para captação da moeda livremente convertível. Vimos que não basta ter a terra disponível para que esta seja útil para geração da riqueza. Ela só é geradora da riqueza se for trabalhada e existirem investimentos suficientes que garantam a prossecução dos objectivos multifacetados de desenvolvimento económico e social.

Com a conclusão da análise deste último capítulo esgotamos o nosso trabalho de dissertação e encontram-se criadas condições para que possamos tirar as conclusões da matéria que apuramos na avaliação da evolução da legislação agrária em Moçambique e não só e sobretudo a implementação da actual legislação moçambicana sobre terras.

611 A ECOSIDA é uma organização criada pela Confederação das associações económicas de Moçambique com vista á dinamização de actividades de mitigação dos efeitos de HIV/SIDA no seio dos trabalhadores. Esta organização trabalha com base no quadro de políticas aprovadas pelo governo com vista á redução do impacto negativo desta pandemia no local de trabalho.

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CONCLUSÃO

Terminamos a nossa dissertação com o sentimento de que apesar de muito trabalho feito em prol da implementação da actual legislação moçambicana de terras, há ainda muito por se fazer.

Identificamos os aspectos positivos, fundamentalmente o facto de Moçambique ter uma das melhores leis de terras que protege os direitos das camadas mais desfavorecidas, que interessa assegurar a sua vitalidade com vista a proteger os interesses desses cidadãos, bem como a garantia de que a par de protecção dos direitos das comunidades, se assegure que haja terra destinada á implementação de projectos para o desenvolvimento do País.

A manutenção do direito de propriedade da terra a favor do Estado continua a ser quanto a nós uma opção estrategicamente correcta por prevenir que um pequeno grupo de latifundiários se apodere de grandes extensões de terras em detrimento do acesso á terra pelas camadas desfavorecidas.

Foi possível também identificar que ainda há muitas questões a resolver e nesse caso, o governo através do Ministério da Agricultura tem o desafio de tomar a dianteira para que o sector de terras sem excepção de partes seja melhor gerido para desempenhar cabalmente o seu papel multiforme como alicerce para implementação de programas económicos e sociais de que o País carece.

Acabamos o nosso trabalho estimulados pelo facto de o tema que escolhemos continuar ainda actual e pertinente. Muitos continuam a ser as iniciativas do governo e da sociedade que abordam a problemática da terra, movidos pela busca de soluções visando melhor abordagem na gestão deste recurso.

Como já nos referimos, continuam a persistir desafios na implementação da lei de terras. Com vista a melhorar os aspectos que identificamos como constituindo nôs de estrangulamento, consideramos importante deixar expressas as nossas contribuições com enfoque nas questões mais relevantes, realçando que cada recomendação que inserimos neste espaço reflecte uma constatação que se encontra devidamente expressa no respectivo capitulo.

1. Necessidade de uma nova abordagem da estrutura organizativa do órgão de gestão de terras no País de modo a obter-se conclusões no que se refere á viabilidade da actual fusão entre terras e florestas e tomar-se medidas pertinentes.

2. Assegurar que ao cadastro nacional de terras sejam afectados recursos humanos, financeiros e materiais suficientes com vista ao fortalecimento desta componente vital. Tal exercicio devia incluir também as actividades de financiamento á elaboração de cartografia adequada destinada á organização do cadastro de terras a cargo do CENACARTA.

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3. Reanalisar a utilidade de se manter as exigências que se impõem aos sujeitos estrangeiros nos termos do art 11 da lei de terras no contexto do requerimento do direito de uso e aproveitamento de terras, pois na prática parecem ser de pouca utilidade.

4. Estudar-se a possibilidade de a terra para os moçambicanos ter valor quando se destina a servir de colateral numa sociedade com estrangeiros.

5. A possibilidade de o acesso á terra pelos estrangeiros ser a titulo oneroso, salvo nos casos em que os moçambicanos têm acesso gratuito á terra nos países de origem dos investidores.

6. Emitir melhores directrizes que melhorem o processo de consulta ás comunidades locais, incluindo a hipótese de se aprovar um diploma ministerial de modo a imprimir maior responsabilidade na realização desta actividade. Esse diploma deveria considerar dentre outras questões a que se relaciona com os termos em que se estabelecerão as parcerias entre as comunidades e os investidores.

7. Revitalizar a iniciativa de tramitação de processos de pedido do direito de uso e aproveitamento de terras pelos investidores no prazo de 90 dias, como medida permanente para melhoria do ambiente de negócios.

8. Necessidade de se estudar a possibilidade de a autorização provisória ser também titulada por um titulo e não por uma licença, como uma medida de se evitar incertezas dos investidores no que concerne ao conteúdo e validade do documento.

9. Nos governos distritais, implementar-se o principio legal de delegação formal de poderes para realização de consulta ás comunidades locais por ocasião de solicitação do direito de uso e aproveitamento da terra pelos sujeitos de direito. Essa delegação devia incluir a área que os funcionários delegados podem dirigir as consultas.

10. Necessidade do estudo de flexibilização de transmissão de títulos, como acontece nos prédios urbanos, nos terrenos onde foram implantadas benfeitorias e exista direito de autorização definitiva.

11. Observar-se a regra de que o representante do cadastro na consulta a uma comunidade é parceiro do Adminitrador nos termos da lei, o que implica que o seu representante numa consulta nunca poderia ser aquele.

12. Imprimir maior exigência para que os beneficiários da autorização provisória do direito de uso e aproveitamento da terra procedam a demarcação das suas terras, condição para titulação do direito e garantia de organização do

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cadastro de terras. A propósito, estudar-se a ideia de introdução da figura de demarcação provisória, exemplo do que acontecia no ROCT.

13. Prestar-se atenção para que a transmissão do direito de uso e aproveitamento da terra ou outros direitos conexos mortis causa seja feita com estrita obserância das normas do direito sucessório em vigor no País, de modo a evitar que sujeitos de direito sejam prejudicados.

14. Proceder a extinção ou cancelamento de direitos quando não se cumpre o plano de exploração ou não se realiza a demarcação de terras no prazo estabelecido, como forma de combater o açambarcamento de terras e no caso de demarcações, melhorar o cadastro nacional de terras.

15. Regulamentação do envio de dados pelos diversos sectores que devem alimentar o cadastro nacional de terras de modo a implementar-se o cadastro nacional multifuncional conforme preconiza a Politica Nacional de Terras.

16. Melhorar a organização do sitema de registo e cobrança de taxas de uso e aproveitamento de terras.

17. Reflexção sobre a pertinência de entrega das receitas consignadas resultantes das taxas de terras ao Fundo do Desenvolvimento Agrário sem nenhum beneficio para o sector de terras a nivel central. A nivel provincial, necessidade de se estudar melhores mecanismos para que estes recursos sejam geridos em beneficio do cadastro e não sirvam de “saco azul” das Direcções Provinciais de Agricultura. Incluir mecanismos de envolvimento dos Serviços Provinciais de Geografia e Cadastro na gestão transparente da verba das receitas consignadas a eles atribuída.

18. Garantir que os Serviços Provinciais de Geografia e Cadastro e de Maputo em particular, tenham instalações condignas com vista á realização da sua actividade e melhorar o ambiente para o atendimento do público que demanda os seus serviços e garantir a conservação do acervo documental.

19. Dotar o sector em todos os niveis de pessoal com formação sólida em engenharia geográfica. Há neste caso necessidade de tomada de medidas para que os estudantes que estão sendo formados na Faculdade de Matemática da UEM sejam absorvidos.

20. Assegurar uma reciclagem permanente dos funcionários em matéria de demarcação de terras e cadastro.

21. Empreender diligências para que as instituições de ensino que formam técnicos ligados ao desenvolvimento rural leccionem obrigatoriamente o direito agrário com a lei de terras no epicentro, como forma de melhorar os

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conhecimentos sobre a gestão de terras e outros recursos agrários. Estamos a falar para além das Faculdades de direito, das escolas técnicas agrárias, das Faculdades de Agronomia e de Veterinária.

Finalmente, queremos sublinhar que apesar de termos escolhido os Serviços Provinciais de Geografia e Cadastro de Maputo como nosso estudo de caso, os resultados obtidos reflectem a realidade de todo o País no sector.

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Decreto-lei nº 4/2006, de 23 de Agosto, introduz alterações ao código de notariado, BR nº 34 I série.

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Decreto-lei nº 2/2009, de 24 de Abril, introduz alterações ao código comercial, BR nº 16, I série, 3º suplemento.

Lei nº 23/2009, de 8 de Setembro, lei geral das cooperativas, BR 38, I série suplemento.

Lei nº 25/2009, de 28 de Setembro, lei da jurisdição administrativa, BR nº 38, I série, suplemento.

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Implementação da actual legislação moçambicana de terras nos primeiros 10 anos

Decretos

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Decreto nº 6/84, de 19 de Setembro, aprova a adesão de Moçambique ás instituições de Bretton Woods, BR nº 38, I série, suplemento.

Decreto nº 14/87, de 20 de Maio, aprova o estatuto Geral dos Funcionários do Estado, anotado, 2ª edição actualizada, MAE, Maputo.

Decreto nº 16/87, de 15 de Julho, aprova o regulamento da lei 6/79, de 3 de Julho, a primeira lei de terras, BR nº 28, I série, suplemento.

Decreto nº 21/91 de 3 de Outubro, delega no Ministro da Justiça, competência para proceder ao reconhecimento específico das associações não lucrativas, BR nº 40, I série, suplemento.

Decreto nº 45/98, de 23 de Dezembro, cria a zona franca industrial da Mozal, BR nº 51, I Série, 4º suplemento.

Decreto nº 66/98, de 8 de Dezembro, aprova o regulamento da lei 19/97, de 1 de Outubro, BR nº 48 I série, 3º suplemento.

Decreto nº 77/99, de 15 de Outubro, aprova taxas especiais para determinadas actividades, colectânea de legislação sobre terras de Carlos Serra Jr, Maputo, 2004.

Decreto nº 15/2000, de 20 de Junho, estabelece os termos em que se deve operar a articulação entre os órgãos locais do Estado e as autoridades comunitárias extraído da colectânea de legislação sobre terras de Carlos Serra Jr, Maputo, 2004.

Decreto nº 30/2001, de 15 de Outubro, aprova normas de funcionamento dos Serviços de Administração Pública, BR nº 41, I série, suplemento.

Decreto nº 27/2002, de 19 de Novembro, aprova os termos de realização das actividades de produção, transporte e venda de gás natural nos blocos unificados de Pande e Temane, BR nº 48, I série.

Decreto nº 11/2005, de 10 de Junho, aprova o regulamento da lei de organização dos órgãos locais do Estado, extraído da colectânea sobre terras de Carlos Serra Jr, Maputo, 2004.

Decreto nº 60/2006, de 26 de Dezembro, aprova o regulamento do solo urbano, BR nº 51, I série, 3º suplemento.

Decreto nº 44/2007, de 30 de Setembro, define os procedimentos para o reconhecimento das associações juvenis á luz da Lei nº 8/91, de 18 de Julho, BR nº 43, I série, 5º suplemento.

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Implementação da actual legislação moçambicana de terras nos primeiros 10 anos

Decreto nº 50/2007, de 16 de Outubro, altera o artº 35 do regulamento da lei de terras aprovado pelo decreto 66/98, de 8 de Dezembro, BR nº 41, 8º suplemento.

Decreto nº 23/2008, de 1 de Julho, aprova o regulamento da lei de ordenamento do território, BR nº 26, I série, suplemento.

Resoluções

Resolução nº 10/95 de 17 de Outubro, do Conselho de Ministros, aprova a Política Nacional de Terras, extraído da 2ª edição da colectânea de legislação agrária de Carlos Serra jr, Maputo, 2004.

Resolução nº 11/95, de 31 de Outubro, aprova a política agrária, colectânea de legislação agrária de Carlos Serra Jr, Maputo, 2004.

Resolução nº 17 /2009, de 8 de Julho, da Comissão Inter Ministerial da Função Pública, que aprova o estatuto orgânico do Ministério da Agricultura, BR I série, nº 27.

Diplomas Ministeriais.

Diploma Ministerial nº 76/99, de 16 de Junho, estabelece as formas de distribuição das taxas do direito de uso e aproveitamento da terra consignadas ao sector de cadastro, colectânea de legislação de terras de Carlos Serra Jr, Maputo, 2004.

Diploma Ministerial nº 29- A/2000, de 17 de Março, colectânea de legislação de terras, Carlos Serra Jr, Maputo, 2004.

Despachos Ministeriais

Despacho de 7 de Dezembro de 1999, do Ministro de Agricultura e Pescas, que fixa as percentagens e os critérios de distribuição da taxa consignada do direito de uso e aproveitamento da terra dentro do sector de cadastro.

Despacho de 6 de Junho de 2006, do Ministro da Agricultura, manda excluir os Serviços Centrais de Cadastro do acesso ás receitas consignadas aos Serviços de Cadastro resultantes das taxas do direito de uso e aproveitamento da terra e as remete ao FDA.

Legislação estrangeira.

Constituições

Constituição política da República portuguesa, de 19 de Março de 1933, com as alterações introduzidas pelas Leis nºs 1.885, 1910, 1945,1963 e 1966.

Constituição da República de Angola de 1992, colectânea de Jorge Bacelar Gouveia, 2ª edição, de as Constituições dos Estados de língua portuguesa.

Constituição da República da Guiné Bissau de 1993, colectânea de Jorge Bacelar Gouveia , 2ª edição, de as constituições dos Estados de língua portuguesa.

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Implementação da actual legislação moçambicana de terras nos primeiros 10 anos

Leis

Carta orgânica do império colonial português, Decreto-Lei nº 23.228, de 15 de Novembro de 1933.

Acto Colonial, com a versão introduzida pela lei nº 1900 de 21 de Maio de 1935.

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Lei nº 5/98, de 23 de Abril, lei de terras da Guiné Bissau.

Lei nº 9/ 2004, de 9 de Novembro, lei de terras de Angola.

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