Tese experimentos de botânica

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Universidade Federal Fluminense Centro de Estudos Sociais Aplicados Faculdade de Educação Programa de Pós-Graduação Lições da Botânica: Um ensaio para as aulas de Ciências Simone Rocha Salomão Niterói – RJ 2005

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Universidade Federal Fluminense Centro de Estudos Sociais Aplicados

Faculdade de Educação Programa de Pós-Graduação

Lições da Botânica:

Um ensaio para as aulas de Ciências

Simone Rocha Salomão

Niterói – RJ 2005

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Universidade Federal Fluminense Centro de Estudos Sociais Aplicados

Faculdade de Educação Programa de Pós-Graduação

Lições da Botânica:

Um ensaio para as aulas de Ciências

Simone Rocha Salomão

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para a obtenção do título de DOUTORA EM EDUCAÇÃO. Campo de Confluência: Lin-guagem, Subjetividade e Cultura.

Orientadora: Profa. Dra. Dominique Colinvaux Co-Orientadora: Profa. Dra. Cecilia Maria Goulart

Niterói – RJ 2005

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Universidade Federal Fluminense Centro de Estudos Sociais Aplicados

Faculdade de Educação Programa de Pós-Graduação

Lições da Botânica: Um ensaio para as aulas de Ciências

Simone Rocha Salomão

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para a obtenção do título de DOUTORA EM EDUCAÇÃO. Campo de Confluência: Lin-guagem, Subjetividade e Cultura.

Banca Examinadora:

___________________________________________ Profa. Dra. Dominique Colinvaux – Orientadora – UFF

______________________________________________________ Profa. Dra. Cecilia Maria Goulart – Co-Orientadora – UFF _______________________________________________________ Prof. Dr. José Luiz Fiorin – USP

____________________________________________

Prof. Dr. Pedro da Cunha Pinto Neto – Unicamp

____________________________________________ Profa. Dra. Isabel Martins – NUTES/UFRJ

____________________________________________

Profa. Dra. Sandra Escovedo Selles – UFF

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iii

AGRADECIMENTOS

Não podemos negar nem esquecer as dimensões dialógica e coletiva que constituem

todos os trabalhos acadêmicos. São muitos os companheiros da caminhada, os que trouxe-

ram e discutiram idéias e os que interviram nas condições de produção. A muitos deles

quero agradecer:

À minha Professora Orientadora Dra. Dominique Colinvaux e à minha Professora

Co-orientadora Dra. Cecilia Maria Goulart, pelo carinho, paciência e apoio em todos os

momentos desse trabalho e por sua imensa generosidade em compartilhar conhecimentos.

À Professora Dra. Sandra Escovedo Selles e ao Professor Dr. José Luiz Fiorin, pelo

incentivo, pela leitura atenciosa que fizeram do texto de qualificação do Projeto de Tese e

pelas contribuições que trouxeram ao desenvolvimento do trabalho.

À Professora Maria Helena de Siqueira Salles, pelo estímulo e apoio à minha per-

manência no Programa de Doutorado, enquanto esteve à frente da Secretaria Municipal de

Educação de Macaé.

À Professora Milmar Madureira Pinheiro, Secretária Municipal de Educação de

Macaé, por compreender as dificuldades e pelo apoio efetivo à conclusão desse Programa.

Ao Professor Marcos Aurélio Pereira Maciel, professor de Ciências da Escola Esta-

dual Municipalizada Polivalente Anísio Teixeira, que, tão gentilmente, aceitou participar

desse trabalho, implementando em suas turmas as atividades empíricas da Pesquisa.

Aos alunos das turmas 601 e 603, do ano letivo de 2004 da Escola Estadual Muni-

cipalizada Polivalente Anísio Teixeira, pelo seu empenho e comprometimento em partici-

par das atividades propostas, com atenção, entusiasmo e alegria.

À Direção e aos Funcionários da Escola Estadual Municipalizada Polivalente Aní-

sio Teixeira pela acolhida em seu meio e pelo apoio durante o desenvolvimento das ativi-

dades.

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iv

À minha ex-aluna Aline de Paula Barreto Cortez, hoje licencianda de Ciências Bio-

lógicas, com quem pude contar como Auxiliar de Pesquisa e que, tão cuidadosamente,

conduziu e apoiou as atividades de montagem do herbário junto às turmas.

Aos alunos Bira, Daniele Thaís, Lalita, Nynna e Thiago, do Colégio Módulo, pela

disposição em compor o elenco da peça Lição de Botânica, pelo brilhante desempenho e

pela dedicação enquanto durou a história.

Aos colegas do Colégio Módulo, de Macaé, representados pelos Professores Ledir

da Silva Rocha e Seila Maria Tavares Quinteiro Moreira, pelo carinho e incentivo.

A todos os colegas de trabalho da Casa da Educação de Macaé, representados pelas

Professoras Derli Santuchi Pinheiro e Tânia Márcia Carvalho Aguiar, amigas e companhei-

ras solidárias, que me incentivaram e apoiaram, em todos os momentos.

Ao Marcelo, pela ternura e pelo apoio constantes, sem os quais não se teria come-

çado e nem terminado esse trabalho.

Às minhas filhas, Helena e Luiza, pelo carinho e pela torcida para que a tese fosse

concluída.

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v

DEDICATÓRIA

Dedico esse trabalho a:

Regina e Iambá, meus pais,

fonte constante de carinho e atenção,

no ano de suas Bodas de Ouro.

Marcelo, Helena e Luiza, amores,

junto aos quais a vida tem sentido.

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vi

RESUMO

O presente trabalho procura investigar e compreender as aproximações entre ciência e lite-

ratura e entre linguagem científica e linguagem literária, suas relações com o ensino e a

aprendizagem em ciências e o possível papel potencializador do texto literário na aprendi-

zagem de conteúdos científicos no Ensino Fundamental. Para tanto, utiliza como fio

condutor da pesquisa a peça Lição de Botânica, de Machado de Assis, a partir da qual são

geradas questões para a discussão teórica e caminhos para a pesquisa empírica. Tal

pesquisa, implementada com turmas de 6a série de uma escola pública de Macaé – RJ,

constitui-se da apresentação de uma montagem da peça aos alunos, discussão junto a eles

sobre a peça, atividades escritas e montagem de um herbário. As atividades escritas, reali-

zadas antes e após a apresentação da peça, incluíram questionários de perguntas abertas e

exercícios que solicitaram dos alunos reflexão e análise sobre a peça e, em particular, sobre

aspectos relacionados com a botânica e sua linguagem e, ainda, sobre a própria atividade

científica. Entre as referências teóricas mobilizadas, destacam-se as considerações do

Círculo de Bakhtin sobre linguagem, sobretudo as noções de exotopia e plurilingüismo. As

reflexões desenvolvidas são traçadas através de dois eixos – Ciência e Literatura e

Linguagem e Aprendizagem – envolvendo aspectos relativos às diferentes linguagens, à

história da biologia e da botânica e à produção de linguagem e de significados pelos

alunos, inserida em sua dinâmica de aprendizagem.

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vii

ABSTRACT

The present work aims to investigate and understand the approaches between science and

literature, and between scientific language and literary language, their relations with teach-

ing and learning in science, and the possible activator role of the literary text in the learn-

ing of scientific subjects in the basic education. For such a way, it uses the play Lição de

Botânica, from Machado de Assis, as a conductor line of the research, from which it gener-

ates questions to the theoretical discussion, and pathways to the empirical research. Such

research, implemented with classes of 6a series of fundamental teaching in a public school

in Macaé – RJ, consists of the presentation of the play to the pupils, discussion with them

about the play, written activities, and construction of a herbary. The written activities, car-

ried through before and after the presentation of the play, include questionnaires of open

questions and tasks that request from the pupils reflection and analysis about the play and,

in particular, about aspects related with the botany and its language and, still, about the

own scientific activity. Among the mobilized theoretical references, the considerations of

the Circle of Bakhtin on language are distinguished, over all the notions of exotopy and

heteroglossia. The developed reflections are traced through two axes - Science and Litera-

ture, and Language and Learning - involving aspects related to different languages, to his-

tory of biology and botany, and to the production of language and meanings by the pupils,

inserted in their dynamic of learning.

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Questão 1/1: Respostas da Turma 601............................................................. 60

Tabela 2 – Questão 1/1: Respostas da Turma 603............................................................. 60

Tabela 3 – Questão 1/1: Referências a outros profissionais na Turma 601 ...................... 62

Tabela 4 – Questão 1/1: Referências a outros profissionais na Turma 603 ...................... 62

Tabela 5 – Questão 1/2: Respostas da Turma 601............................................................. 63

Tabela 6 – Questão 1/2: Respostas da Turma 603............................................................. 63

Tabela 7 – Questão 1/3: Respostas da Turma 601............................................................. 69

Tabela 8 – Questão 1/3: Respostas da Turma 603............................................................. 70

Tabela 9 – Questão 1/4: Respostas da Turma 601............................................................. 72

Tabela 10 – Questão 1/4: Respostas da Turma 603........................................................... 73

Tabela 11 – Questão 1/5: Respostas da Turma 601........................................................... 85

Tabela 12 – Questão 1/5: Respostas da Turma 603........................................................... 85

Tabela 13 – Questão 1/6: Respostas da Turma 601........................................................... 90

Tabela 14 – Questão 1/6: Respostas da Turma 603........................................................... 90

Tabela 15 – Questão 1/7: Respostas da Turma 601........................................................... 94

Tabela 16 – Questão 1/7: Respostas da Turma 603........................................................... 94

Tabela 17 – Questão 1/8: Respostas da Turma 601........................................................... 99

Tabela 18 – Questão 1/8: Respostas da Turma 603......................................................... 100

Tabela 19 – Questão 2/1: Respostas das Turmas 601 e 603 ........................................... 127

Tabela 20 – Questão 2/3: Respostas das Turmas 601 e 603 ........................................... 131

Tabela 21 – Questão 2/4a: Respostas das Turmas 601 e 603 ......................................... 137

Tabela 22 – Questão 2/5: Respostas das Turmas 601 e 603 ........................................... 143

Tabela 23 – Questão 2/8: Respostas das Turmas 601 e 603 ........................................... 153

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

1 – Apresentação da peça Lição de Botânica ..........................................................109 a 111

2 – Dissecção de flores de Hibiscus rosa-sinensis ............................................................183

3 – Montagem do Herbário: coleta e prensagem dos espécimes .......................................184

4 – Montagem do Herbário: confecção das pranchas e classificação dos espécimes .......185

5 – Cópias das pranchas do Herbário ..................................................................... 186 a 202

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LISTA DE ANEXOS

Anexo 1- Texto da atividade no 1 de pesquisa .................................................................. 239

Anexo 2- Texto da atividade no 2 de pesquisa ..................................................................240

Anexo 3- Texto da atividade no 3 de pesquisa ................................................................. 241

Anexo 4- Textos fornecidos para consulta nas atividades no 2 e 3 de pesquisa .............. 242

Anexo 5- Texto adaptado da peça Lição de Botânica ...................................................... 245

Anexo 6- Texto preparado para o apresentador da peça .................................................. 257

Anexo 7- Resumo do trabalho apresentado no IX EPEB – FE-USP/SP,

julho de 2004 .................................................................................................... 259

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SUMÁRIO

1 – Sobre como se criou o enigma .................................................................................... 1

1.1 – Primeiras idéias ......................................................................................................... 2 1.2 – Ciência e literatura .................................................................................................... 4 1.3 – Linguagem e aprendizagem ....................................................................................... 7 2 – Do risco de ser devorado ........................................................................................... 10

2.1 – Na atmosfera da peça ................................................................................................ 11

2.1.1 – A peça e seu autor ................................................................................................... 13 2.1.2 – O autor da peça, outros autores e a ciência do Brasil ............................................. 17 2.1.3 – A ciência da peça ................................................................................................... 21

2.2 – Em outros ares ........................................................................................................... 30

2.2.1 – Textos alternativos em aulas de ciências ............................................................... 30 2.2.2 – Bakhtin: um ponto teórico central ......................................................................... 38 2.2.3 – Pesquisas sobre aprendizagem e linguagem ......................................................... 44 3 – No caminho da esfinge .............................................................................................. 53

3.1 – Trabalho empírico a partir da Lição de Botânica ..................................................... 54

3.2 – Primeiras questões .................................................................................................... 59

3.2.1 – Sobre a ciência ....................................................................................................... 59 3.2.2 – Sobre a linguagem científica ................................................................................. 71 3.2.3 – Sobre as classificações biológicas ........................................................................ 80 3.2.4 – Sobre as flores ....................................................................................................... 92 4 – Imagens da peça ........................................................................................................ 108

4.1 – Imagens ................................................................................................................... 109 4.2 – O que se diz sobre ela .............................................................................................. 112 5 – Frente a frente com a esfinge ................................................................................. 124

Novas questões ................................................................................................................. 125

5.1 – Sobre a peça e a ciência ........................................................................................... 125 5.2 – Sobre o Sr. Barão de Kernoberg............................................................................... 135 5.3 – Sobre a linguagem do Sr. Barão .............................................................................. 142 5.4 – Sobre a nomenclatura científica ............................................................................. 148 5.5 – Sobre o estudo da Botânica .................................................................................... 156 5.6 – Tal qual os botânicos .............................................................................................. 180 6 – Respondendo ao enigma ......................................................................................... 203 7 – Referências Bibliográficas ...................................................................................... 230 8 – Anexos ....................................................................................................................... 238

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1 – SOBRE COMO SE CRIOU O ENIGMA

“Minha vida, nossas vidas formam um só diamante. Aprendi novas palavras

e tornei outras mais belas.”

Carlos Drummond de Andrade

1.1 – Primeiras idéias

Na cena XII da peça de teatro Lição de Botânica, escrita por Machado de Assis em

1906, Dona Leonor, questionando a importância dos conhecimentos da Botânica e surpresa

com o interesse de Helena por esse assunto, pergunta a sua sobrinha para que lhe serve

saber tal ciência. Ao que a moça responde, com naturalidade e exatidão: “Serve para co-

nhecer as flores dos meus bouquets, para não confundir jasmíneas com rubiáceas, nem

bromélias com umbelíferas”. Porém, mais à frente na história, em meio à perplexidade da

tia assustada com tantos nomes estranhos em “uma língua de gentios, avessa à gente cris-

tã”, Helena vai mostrar o uso estratégico que faz de seus conhecimentos e desconhecimen-

tos da fitologia, apoiada pela irmã Cecília que está convicta de que “a ciência é uma gran-

de coisa e não há remédio senão adorar a botânica”.

A intenção, como professora e pesquisadora, de prosseguir na reflexão sobre meto-

dologia do ensino de Ciências e o desejo de aproximar, de forma mais sistemática, textos

literários desse ensino, identificaram nessa peça de Machado de Assis uma interessante

oportunidade. Logo em uma primeira leitura, algumas colocações significativas sobre as

relações entre ciência e senso comum e entre a linguagem comum e a linguagem científica

podem ser destacadas da singela trama narrada, como por exemplo a imagem de um pes-

quisador isolado da realidade social, na figura do Barão sueco Sigismundo de Kernoberg; a

consideração de um completo desconhecimento das outras pessoas sobre assuntos da ciên-

cia; as dificuldades da linguagem científica, no caso, a da Botânica e a possibilidade de

ensinar e de aprender ciências.

E à medida que se vai relendo o texto da peça, com a atenção agora voltada para es-

se campo de idéias, procurando estabelecer relações e atribuir sentidos nessa linha de in-

vestigação, outros trechos da história se destacam, são mobilizados e evidenciam novas

questões para ampliar a discussão. Assim, considerando que a literatura pode fecundar nos-

so pensamento e que os projetos de pesquisa têm sempre, ainda que implicitamente, um

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3

mote através do qual se conduzem as idéias sobre o que se quer tratar, pensamos em utili-

zar o texto da peça como referência para a lapidação do objeto de estudo e do percurso

metodológico desse trabalho.

Em estudo anterior (Salomão, 1998), desenvolvemos aproximações teóricas acerca

do espaço cultural da escola pública, visto em sua constituição pelos saberes da ciência e

da arte, produções humanas, históricas e sociais, e sobre o papel dos professores como me-

diadores nesse espaço. Como se fosse o fio de Ariadne conduzindo Teseu à saída do labi-

rinto, o texto da dissertação seguiu o fio da linguagem – linguagem das máscaras, do tea-

tro, linguagem literária e linguagem científica – como eixo para se pensar algumas ques-

tões sobre esse espaço de cultura em suas relações com o ensino de Ciências.

As reflexões então desenvolvidas inspiraram-se, por sua vez, na noção de espaço,

delineada por Michel de Certeau (1994) como lugar vivido e praticado através de movi-

mentos táticos, e na noção de condução da vida, apontada por Agnes Heller (1992) como

possibilidade de os indivíduos, através de iniciativas refletidas, emergirem de uma

cotidianidade alienante.

É na perspectiva de retomar a linguagem como fio condutor da pesquisa, agora co-

mo se fosse o fio do bordado de Penélope, que vai sendo retramado à procura de novos

sentidos, que a Lição de Machado de Assis se coloca como ponto de partida para esse tra-

balho, que tem como objetivos gerais investigar as aproximações entre linguagem científi-

ca e linguagem literária, suas relações com o ensino e a aprendizagem de ciência e o possí-

vel papel potencializador do texto literário na aprendizagem de conteúdos científicos no

Ensino Fundamental.

Se num primeiro momento, há o entusiasmo com a graça e a riqueza da peça ma-

chadiana, que se encaixa como a mão e a luva na proposta de utilizar textos literários em

aulas de ciências, e com as possibilidades de dissecá-la segundo nossos propósitos, existe

também o desafio de traçar e selecionar, em meio à gama de relações que se enunciam na

história, aquelas mais relevantes para o contexto de pesquisa. Há que se configurar um

campo teórico-metodológico para a investigação e traçar suas questões centrais, inserindo-

as no movimento das pesquisas em Educação em Ciências e dos Estudos da Linguagem.

Em seu ensaio sobre algumas funções da literatura, Umberto Eco (2003), de certa

maneira superando sua conhecida afirmação de que a literatura não deve servir para nada,

arrola uma série de importantes funções que ela assume para a vida individual e para a vida

social. Segundo o escritor, não sendo de forma alguma apenas um bem que se consuma

Page 17: Tese experimentos de botânica

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gratia sui, esse poder imaterial chamado literatura pode fazer muitas coisas, inclusive nos

educar para a liberdade e, também, para aceitar os desígnios da vida e a certeza da morte.

Como uma tentativa de acompanhar Umberto Eco nesse inventário, gostaríamos de

poder acrescentar às funções das produções literárias a possibilidade de enriquecer os pro-

cessos escolares de ensino e aprendizagem de conteúdos científicos. É essa a nossa hipóte-

se inicial de trabalho. Porém, reconhecemos que os textos literários, que propõem um dis-

curso com muitos planos de leitura e expõem a ambigüidade da linguagem e da vida, não

têm responsabilidades e nenhum compromisso com estratégias de ensino e com as exigên-

cias que um trabalho científico nos impõe. Assim, sem querer exigir que Machado de Assis

dê conta de tudo sozinho, procuraremos compreender as contradições e completar as lacu-

nas que surgirem durante a reflexão.

Conduzidos pela Lição de Botânica, podemos estabelecer dois eixos para a discus-

são que se quer empreender. Por um lado, a questão teórica de aproximação entre lingua-

gens científica e literária, como estratégia de ensino-aprendizagem de ciências, particular-

mente de Biologia/Botânica na 6a série do Ensino Fundamental; e por outro lado, em um

sentido mais amplo e em termos mais gerais, as relações existentes entre linguagem e a-

prendizagem. Cada um desses eixos será melhor explorado no Capítulo 2 onde trataremos

do referencial teórico-metodológico da pesquisa, mas é brevemente esboçado a seguir, com

o intuito de configurar a problemática considerada e permitir explicitar as questões que

norteiam este trabalho.

1.2 – Ciência e Literatura

Características e especificidades da linguagem científica, tomadas em confronto

com a linguagem cotidiana, têm sido abordadas, com bases teóricas distintas, por diversos

textos, entre eles Possenti (1997), Mortimer & Chagas & Alvarenga (1997) e Lopes (1999,

2000). Esses trabalhos, voltados em maior ou menor grau para implicações de ordem pe-

dagógica, abordam particularidades das diferentes linguagens, destacando, sobretudo, a

formalização e o caráter estruturado e de autoridade da linguagem científica.

Partindo da idéia de que a linguagem é condição transcendental e também limite

para qualquer tipo de conhecimento, Possenti (1997), baseando-se em Granger1, destaca

1 GRANGER, Giles-Gaston. Filosofia do estilo. São Paulo: Perspectiva – Editora da Universidade de São Paulo, 1974.

Page 18: Tese experimentos de botânica

5

como importante característica da linguagem e do discurso científico uma forte estrutura-

ção, que se configura em uma progressiva eliminação do vivido, do vivido enquanto repre-

sentado na linguagem cotidiana não-científica. Tal estruturação buscaria diminuir o mais

intensamente possível a relação entre o enunciado e o sujeito que o produz e, ainda que a

subjetividade permaneça presente em todo o trabalho, o sistema de produção dos enuncia-

dos científicos não se remeteria a ela e se esforçaria para obter uma linguagem estruturada

livre das experiências, dos interesses pessoais e da ideologia. O autor assinala, assim, que o

critério de cientificidade de um enunciado não é, como se costuma pensar, a verdade da

proposição que ele veicula, mas seu sistema, suas condições e suas regras de produção.

Sobre a objetivação e precisão também atribuídas à linguagem científica, Possenti

observa, apoiando-se em Michel Pêcheux, que a linguagem das ciências exatas produz dis-

cursos logicamente estabilizados, que se propõem não sujeitos a interpretações variadas,

leituras particulares ou controvérsias e teriam ênfase no domínio da linguagem técnica,

condição para as comunicações eficientes entre os profissionais do grupo institucional e a

continuação das pesquisas. Possenti considera, então, que a propalada precisão da lingua-

gem das ciências da natureza, geralmente revestida pela linguagem matemática, é, mais do

que uma propriedade da linguagem e das palavras que comporta, o efeito de um trabalho

histórico de desideologização e, principalmente, de um aprendizado e treinamento peculia-

res dos cientistas.

Reforçando essas idéias, o caráter predominantemente estruturado da linguagem ci-

entífica, em contraposição à linguagem cotidiana, também é focalizado no trabalho de

Mortimer et al (1997), com bases, entre outros, em Halliday & Martin (1993). Em suas

análises e considerações teóricas, esses autores destacam o esforço da linguagem científica

para promover tanto uma espécie de congelamento dos acontecimentos e dos processos,

transformando-os em grupos nominais, ligados por verbos que exprimem relações, quanto

o apagamento dos sujeitos, empenhando-se em retirar de seus enunciados a perspectiva de

um narrador. A linguagem científica demandaria, então, uma atenção permanente em seu

uso, atribuindo uma maior densidade léxica, pela qual os termos usados carregam signifi-

cados interligados em uma estrutura conceitual pré-determinada.

Para lançar pontes entre a linguagem científica e a linguagem literária, Gaston Ba-

chelard (1996a) é, sem dúvida, um interessante referencial teórico e que, ao que parece,

não contradiz essas afirmações. No percurso de sistematizar o processo de desenvolvimen-

Page 19: Tese experimentos de botânica

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to do espírito científico moderno, Bachelard destaca a importância da linguagem como um

obstáculo epistemológico e como verdadeira armadilha para os pesquisadores.

Analisando livros científicos do século XVIII, ele observa o diálogo que os autores

estabeleciam com seus leitores e o grande vínculo de seus textos com a vida cotidiana. Já

os livros de ensino científico produzidos em sua época não querem saber de conversa, e

têm, efetivamente, uma outra linguagem, que se pretende mais objetiva e estruturada, atra-

vés da qual a ciência nos é apresentada ligada a uma teoria geral, e onde não há espaço

para as perguntas do leitor.

Mas se Bachelard é vigilante em relação à linguagem que vê como condição neces-

sária ao progresso do conhecimento científico, pois as metáforas seduzem a razão (p.97),

permite-se também, em vários outros estudos, considerar o valor de um outro saber, nasci-

do do imaginário e da força criadora do não-racional. E nesse caminho, que tomamos como

precioso argumento, reconhece a capacidade das imagens poéticas de liberar e movimentar

nossa atividade lingüística e de fertilizar o pensamento humano, despertando-o, rejuvenes-

cendo-o e restituindo-lhe a faculdade de se maravilhar (Bachelard, 1996b). Idéias que ve-

mos ligarem-se às do biólogo e historiador da Biologia Ernst Mayr (1998a), ao discutir os

métodos de pesquisa e afirmar que, em última instância, a imaginação é o pré-requisito

mais importante de todo progresso científico.

Tais questões carregam em si uma grande complexidade. Tradicionais incompatibi-

lidades e discretas afinidades entre a ciência e a literatura têm sido discutidas, também,

fora do âmbito educacional por pesquisadores das ciências humanas e das ciências natu-

rais. No contexto de tais considerações, Vierne (1994) analisa as relações renovadas e fe-

cundas que se esboçam entre alguns desses cientistas das diferentes áreas do conhecimen-

to, pautadas numa recuperação do diálogo entre ciência e imaginário.

Mas, segundo a autora, em confronto com tais iniciativas de aproximação, as rela-

ções entre literatura e ciências nem sempre foram simples; marcadas historicamente, têm

refletido um processo crescente de estranhamento, desde os tempos em que o poeta, sem

fronteiras nítidas entre o filósofo e o físico, se apropriava da ciência sem trair suas teorias,

e essas se deixavam transmitir sem complexos pela poesia. O próprio desenvolvimento da

ciência e de seus modos de falar, envoltos por áureas de verdade, vai promovendo seu afas-

tamento da literatura, estabelecendo novas relações, às vezes tempestuosas, às vezes peri-

gosas, até o divórcio [pois um desconfia demasiadamente do outro], mas onde os parceiros

não cessam de lançar-se olhares de desejo (Vierne, 1994, p.79).

Page 20: Tese experimentos de botânica

7

Outro conjunto de argumentos preciosos que puxamos para essa problemática, por

oferecer aportes teóricos para a reflexão sobre as diferentes linguagens e seus embates na

vida social concreta, são as idéias desenvolvidas pelo círculo de pensadores liderados por

Mikhail Bakhtin. As noções por eles discutidas acerca das palavras como signos e como

arena, da polifonia, das distintas linguagens sociais e gêneros de fala, dos híbridos discur-

sivos, dos discursos de autoridade e internamente persuasivos, das palavras alheias e pró-

prias e as interessantes categorias de exotopia e de excedente de visão são idéias fortes que

podem movimentar as análises de dados de linguagem. E se já têm sido empregadas em

diversas pesquisas sobre as aventuras das interações discursivas em aulas de ciências, po-

dem também vir a iluminar a discussão sobre a inserção de textos literários nessas aulas.

Essas referências serão discutidas mais à frente.

Consideramos, por fim, estudos como os de Ricon & Almeida (1991), Zanetic

(1997 e 1998), Silva (1998), Silva & Almeida (1998), Souza (2000), Lajolo (2001), Morei-

ra (2002), Salomão (2000, 2005), Salomão & Souza (2001, 2003) e Salomão et al. (2003)

que, com enfoques teóricos diferenciados, vêm discutindo as relações entre linguagem,

discurso, literatura e ciência e vêm analisando as condições práticas de aproximação ao

ensino de Ciências de textos variados, inclusive literários. Enfraquecendo barreiras disci-

plinares, esses autores procuram aproximações entre as produções da literatura e o conhe-

cimento científico, tomando como importante argumento de análise a dimensão cultural, e

têm ponderado sobre as implicações positivas da historicidade e da polissemia, próprias

dos textos literários, para o enriquecimento do processo de ensino-aprendizagem de temas

científicos e sobre a contribuição das aulas de ciências para o desenvolvimento de práticas

de leitura nas escolas.

1.3 – Linguagem e Aprendizagem

Em paralelo à discussão das relações entre linguagens literária e científica, a pes-

quisa educacional aborda também o tema da aprendizagem. Um número expressivo de

pesquisas em Educação em Ciências tem, sob a ótica da psicologia sócio-cultural e com

focos de atenção variados, estudado questões relativas ao funcionamento da linguagem nas

situações de ensino-aprendizagem e discutido a dinâmica das interações discursivas em

aulas de ciências.

Tais estudos, entre os quais mencionamos Mortimer & Machado (1997), Machado

(1999), Wertsch & Smolka (1999), Machado & Colinvaux (2000), Machado (2000), Gui-

marães (2000), Dumrauf & Cordero & Colinvaux (2001) e Mortimer & Scott (2002), vêm

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8

dedicando significativos esforços a evidenciar o papel central da linguagem nos processos

escolares de ensino-aprendizagem e têm conseguido levantar interessantes questões e for-

mular um conjunto de dimensões e categorias que possibilitam as análises e a compreensão

acerca dos embates da linguagem cotidiana com a linguagem científica, em sua manifesta-

ção nesse contexto específico.

Mas, se já são abundantes os resultados empíricos sobre essa temática, várias ques-

tões permanecem, todavia, em aberto, estimulando a discussão, a articulação entre idéias e

a busca por refinamentos teóricos. Podemos, então, apontar questões que, em nosso enten-

der, merecem atenção e que, por estarem intimamente vinculadas ao eixo anterior, podem

contribuir para o entendimento das relações entre linguagem científica e linguagem literá-

ria e da pertinência de sua aproximação.

No tocante ao eixo da aprendizagem, o ponto de partida é a visão de que aprendiza-

gem é um processo que envolve a produção/criação de novas significações e ocorre, por

caminhos diversos, tanto em sala de aula como em outros contextos sociais. Nesta perspec-

tiva, o fenômeno da aprendizagem está estreitamente associado a processos de compreen-

são do mundo material e simbólico. O movimento construtivista de educação em ciências

(MCA/Movimento das Concepções Alternativas em Ciências) tem sido fundamental para

delinear esta visão de aprendizagem e, mais recentemente, os trabalhos sustentando esta

perspectiva teórica costumam buscar referências nos estudos de Edwards & Mercer (1987),

Lemke (1990) e Wertsch (1991) e incluir noções e categorias desenvolvidas por Bakhtin e

seu Círculo, como assinalamos anteriormente.

Assim pressupondo, formulamos algumas questões para a pesquisa, a fim de enca-

minharem a reflexão e as articulações teóricas e orientarem o desenvolvimento e as análi-

ses do trabalho empírico, pois como nos lembra Moisés (2001, p.9) – um dos autores em

que procuramos referências a Machado de Assis: “com toda a evidência, a questão nos

parecerá ociosa se não a crivarmos de interrogações”.

O estudo que desenvolveremos sobre o uso do texto literário em sala de aula de Ci-

ências baseia-se nos pressupostos de que a aprendizagem é um processo de significação, no

qual a linguagem tem um papel central, e as linguagens científica e literária têm especifici-

dades e guardam possibilidades de aproximação. Assim sendo, as questões de estudo po-

dem ser formuladas como segue.

Page 22: Tese experimentos de botânica

9

• quais são as especificidades da linguagem literária e da linguagem científica?

• como essas características podem se manifestar e ser percebidas em sala de aula

de ciências?

• quais são as implicações práticas da aproximação entre a linguagem científica e

a linguagem literária para o ensino e a aprendizagem de ciências?

• quais são os impactos do uso do texto literário para a formação e o trabalho dos

professores na escola?

• quais as implicações teóricas da produção e do uso da linguagem, em suas espe-

cificidades, na sala de aula?

Essas são as questões para a investigação, que procuraremos atender ao longo do

desenvolvimento do trabalho. A complexidade da realidade da sala de aula e das manifes-

tações de linguagem que a constituem, em confronto com as exigências epistemológicas

próprias de um trabalho de pesquisa, nos cobrará empenho, calma e atenção. Pois como

nos lembra o Barão de Kernoberg, referindo-se à Botânica, “a ciência não se colhe de afo-

gadilho; é preciso penetrá-la com segurança e cautela”.

Page 23: Tese experimentos de botânica

10

Page 24: Tese experimentos de botânica

11

2 – DO RISCO DE SER DEVORADO

“Que multidão de dependências na vida, leitor! Umas coisas nascem de outras, enroscam-se,

Desatam-se, confundem-se, e perdem-se, E o tempo vai andando sem se perder a si.”

Machado de Assis (Esaú e Jacó)

2.1- Na atmosfera da peça

Segundo Pablo e Ranoi, alunos de uma das turmas de 6a série com as quais foi de-

senvolvido o trabalho empírico com a Lição de Botânica, a peça “é a historia de um barão

e seu sobrinho Henrique. Dona Leonor e suas duas sobrinhas Cecília e Helena. Henrique

se apaixonou por Cecília e queria se casar com ela, mas o Barão não queria que Henrique

se casasse com Cecília porque queria que ele fosse botânico e a botânica exige muito dele

e ele não podia se casar. Então foi falar com dona Leonor para não permitir o encontro

dos dois e esqueceu seu livro de botânica sueco. Cecília implorou para Helena ajudá-la a

se casar com Henrique. Helena encontrou o livro do barão e teve uma idéia, o Barão vol-

tou para pegar seu livro e Helena comentou que gostava de botânica e o Barão se encan-

tou com a sabedoria de Helena e se ofereceu para ser seu professor e ele foi se apaixo-

nando por ela e pediu sua mão em casamento Helena pediu três meses para pensar e libe-

rou Henrique para casar com Cecília.”.

Esse resumo, redigido pelos dois alunos após assistirem à apresentação da peça, as-

sinala bem os elementos essenciais da trama. Nada escapou aos meninos: os personagens e

seu parentesco; a paixão entre os jovens vizinhos; a proibição do casamento, vista a voca-

ção para a Botânica e sua pressuposta incompatibilidade com o matrimônio; a visita para

impedir o namoro; o livro esquecido; o desespero da jovem apaixonada; a idéia a partir do

livro encontrado; o interesse pelo estudo; a sedução do mestre e os pedidos de casamento.

Não faríamos melhor.

A síntese da história é realmente essa. Uma história simples de romance proibido,

tecida em meio a assuntos de ciências costurados com fina ironia pelo escritor. “A ciência

do amor e o amor à ciência”, conforme anuncia seu apresentador. E como o texto apresen-

Page 25: Tese experimentos de botânica

12

ta diversas referências diretas a conceitos e conteúdos de Botânica, que estão ali prêt-a-

porter, as aulas de ciências poderiam seguir explorando essas pistas.

“As gramíneas têm ou não tem perianto?... Perianto compõe-se de duas palavras

gregas: peri, em volta, e anthos, flor... Posso compará-la à violeta, Viola odorata de Li-

neu, que é formosa e recatada... Estudaremos uma por uma todas as famílias: as orquí-

deas, as jasmíneas, as rubiáceas, as oleáceas, as narcisas, as umbelíferas... .”

Como nos apontou Umberto Eco (2003), os textos literários, pelos diferentes planos

de leitura que permitem, podem nos valer para muitas coisas. Nesse sentido, tentando a-

proveitar mais amplamente o texto da peça, localizando outros pontos interessantes que ele

oferece para as aulas e, sobretudo, para a reflexão pelos professores de ciências, outros fios

colocados por Machado de Assis nas artimanhas de Helena junto ao Barão poderiam ser

puxados.

“Que tenho eu com a ciência?... Botânico e sueco, duas razões para ser grave-

mente aborrecido... Acabo de receber esse livro da Europa; é obra que vai fazer revolu-

ção na ciência... Sou o Barão de Kernoberg, seu vizinho, botânico de vocação, profissão

e tradição, membro da Academia de Estocolmo, e comissionado pelo governo da Suécia

para estudar a flora da América do Sul... Henrique está começando a estudar botânica

comigo. Tem talento, há de vir a ser um luminar da ciência. Se o casamos está perdido...”

As falas acima, entre outras, são exemplos de diálogos da peça que despertam nossa

atenção para o confronto entre a época em que foi escrita e os dias atuais em que é lida,

suscitando algumas perguntas que apontam para continuidades e rupturas: qual é a posição

dessa peça no conjunto da obra de Machado de Assis e da literatura realista brasileira na

passagem ao século XX? Como era o contexto sócio-histórico e de produção científica do

Brasil nessa época e quais as suas representações sobre o conhecimento, a ciência e os ci-

entistas? A quantas andava o processo de inserção da ciência e das idéias científicas na

cultura brasileira? Estudava-se ciências nas escolas? Quais as especificidades da Biologia

entre as ciências naturais e as da Botânica entre as Ciências Biológicas?

“Vocês me fazem perder o juízo! Aqui andam bruxas decerto. Perianto de um lado,

bromélias de outro; uma língua de gentios, avessa à gente cristã. Que quer dizer tudo is-

Page 26: Tese experimentos de botânica

13

so... Eu não passo de aparências, minha senhora, aparências de homem, de linguagem e

até de ciência...”

O espanto de Dona Leonor e a confissão do Barão nos sugerem perguntar: quais di-

ferentes vozes sociais se enunciam no texto da peça? Quais as características da linguagem

científica? Aprender ciência envolve aprender a falar cientificamente? Quais os diferentes

gêneros de discurso e linguagens sociais que se manifestam em aulas de ciências?

Esse rol de perguntas contém articulações possíveis a partir da peça, nesse jogo de

buscar relações e atribuir sentidos. Não procuraremos responder a todas elas, e algumas,

por se mostrarem mais promissoras à reflexão, serão priorizadas à medida que se avançar

pelos dois eixos estabelecidos na problemática – literatura e ciência e linguagem e aprendi-

zagem – visando responder às questões formuladas para a pesquisa.

Essas indagações, eixos e questões se constituem ou se remetem a diversos traba-

lhos de pesquisa em Educação em Ciências e a estudos sobre linguagem e aprendizagem, a

respeito dos quais estamos em processo de conhecer, aproximar e confrontar. Assim, am-

pliando as considerações já citadas na descrição da problemática desse trabalho, apresen-

tamos a seguir, o referencial teórico no qual nos apoiamos.

2.1.1 – A peça e seu autor

Consideramos relevante procurar conhecer um pouco sobre o escritor ou o poeta de

quem emprestaremos um texto para trabalho em sala de aula. Tanto para ampliar as opor-

tunidades de conhecimento literário dos próprios professores de ciências, e suas chances de

maior diálogo com os professores de Língua Portuguesa, como para poder melhor apreciar

esse texto frente aos condicionamentos de sua época e poder contextualizar e indicar para

os alunos alguns significados da obra e de seu autor. Ah! O texto literário sempre tem um

autor!

Segundo o que foi colocado por alguns trabalhos já citados, uma das tendências da

linguagem científica seria um esforço em diminuir, nos enunciados que produz, as marcas

do sujeito que os falam ou escrevem, como se os textos científicos quisessem despistar o

leitor, impondo-se pelo distanciamento, fazendo-o esquecer de que foram escritos por al-

guém em algum determinado momento. Nos textos científicos, se vemos bem destacadas

as condições de produções do conhecimento, já não podemos enxergar tão bem o autor.

Nesse sentido, os textos literários se diferenciam pois geralmente podem ser apreciados em

Page 27: Tese experimentos de botânica

14

função de propriedades e marcas de estilo próprias de cada escritor que, em diferentes me-

didas, sempre se manifestam e se revelam em seus escritos.

Com o intuito de sistematizar referências a respeito de Joaquim Maria Machado de

Assis, recorremos a alguns textos sobre a vida e a obra do escritor. O mestre ou bruxo, co-

mo alguns o chamam. Sabemos que Machado de Assis, já desde os últimos anos de sua

vida, é reconhecido e reverenciado como expressão maior de nossa literatura. Mas, ao que

nos parece, a apreciação crítica de sua extensa obra e do alcance de seu olhar, longe de

estar esgotada ou de ter deixado de despertar interesses, é objeto de consideráveis polêmi-

cas e ainda instiga muitos pesquisadores.

Em “O viajante imóvel – Machado de Assis e o Rio de Janeiro de seu tempo”, Tri-

go (2001), como um fotógrafo urbano ou geógrafo disfarçado, segue o escritor para, atra-

vés de extratos de crônicas, contos, poemas e romances, descrever lugares, imagens e emo-

ções e tentar entender a cidade do Rio de Janeiro na época do Segundo Reinado.

Em “Machado de Assis, Historiador”, Chalhoub (2003) com interesse de historia-

dor que já pesquisara a escravidão e as epidemias no Rio imperial, encontrando nos ro-

mances machadianos uma fonte de consulta rica e prazerosa, assume a empreitada de de-

monstrar com novos nuances a hipótese, que ele nos alerta já ser bem investigada, de que

ao contar suas histórias, Machado de Assis escreveu e reescreveu a história do Brasil no

século XIX.

Alfredo Bossi (2000) em Machado de Assis – O enigma do olhar” retoma a distin-

ção que gosta de traçar entre os atos de ver e olhar, explorando a visão móvel construída

pelo escritor e a originalidade de seu foco narrativo. São textos de pesquisas recentes que

nos reafirmam a importância de Machado de Assis para a cultura brasileira e atestam que

sua vida e seus escritos ainda dão muito o que falar.

Mas não cuidemos de biografias. Contornaremos, então, a tarefa de apresentar da-

dos sobre a vida de Machado de Assis, destacando, apenas, que nas fontes consultadas2,

entre tantas disponíveis, encontramos o mesmo entusiasmo para com o mestre e encanto

para com o bruxo, autor de nossa Lição. Mas não deixa de ser instigante a história do me-

nino pobre, nascido no Morro do Livramento em 1839, neto de escravos alforriados, torna-

do órfão muito cedo, vendedor de doces para garantir seu sustento e que, ao que parece,

muito pouco freqüentou a escola.

2 Buscamos dados biográficos e da produção literária de Machado de Assis em: MOISÉS, M. Machado de Assis: Ficção e utopia. São Paulo: Cultrix, 2001; BAGNO, M. (Org.) Machado de Assis para principiantes. São Paulo: Ática, 1998; LAJOLO, M. Machado de Assis. (Literatura Comentada). São Paulo: Abril Educa-ção, 1980; WERNECK, M. H. O Homem Encadernado. Ed. UERJ, 1996.

Page 28: Tese experimentos de botânica

15

Uma dimensão da obra de Machado de Assis que também podemos considerar, vis-

to que tomamos como motor da pesquisa um texto para teatro, é a discussão proposta por

Loyola (1997) acerca do teatro produzido por Machado de Assis. Travando polêmica com

críticas anteriores, encabeçadas já por Quintino Bocaiúva, que o cristalizaram como pouco

teatral, com baixo potencial para ser encenado, comédias mais para serem lidas do que

representadas, a autora procura mostrar, em meio à ironia e comicidade das tramas, a sin-

gularidade e a modernidade de sua dramaturgia, buscando compreendê-la à luz do conjunto

da obra do autor.

Na argumentação da pesquisadora, a Lição de Botânica, última peça escrita por

Machado, serve como importante ponto de análise no percurso de demonstrar o alcance

cênico do teatro machadiano, observando que suas comédias promovem o encontro e a

problematização de duas esferas convencionais: as convenções sociais (formalidades, pro-

tocolos, excessos de mesuras, justificativas) e as convenções teatrais da época (sucessão de

acontecimentos conflituosos, provocando grandes quedas, desencontros, lágrimas, traves-

timentos ou efeitos de ridículo). O que se tem no palco, embalada por fina ironia, é a que-

bra dessas convenções. “A ironia derradeira de Machado de Assis em Lição de Botânica

coincide com a última frase da peça; ao desfecho súbito dado por Helena diante de uma

espécie de afasia do barão e do espanto de D. Leonor (após o pedido de casamento), a

personagem encerra o assunto: ‘Não se admire tanto, titia; tudo isso é botânica aplicada.’

” (Loyola, 1997, p.71).

Buscando referências em um estudo desenvolvido anteriormente (Salomão, 1998),

voltado ao espaço cultural da escola pública, podemos continuar essa história e contextua-

lizar a obra teatral de Machado de Assis, um apaixonado pelo teatro, com a análise de Faria

(1993) sobre as motivações ideológicas dos escritores brasileiros, que se dedicaram à dra-

maturgia em meados do século XIX, fortemente influenciados pelo realismo francês.

Ele afirma que “encarar o teatro como uma arte regeneradora da sociedade tor-

nou-se uma atitude comum a toda uma geração dos jovens intelectuais que se agruparam

em torno do Ginásio para apoiar a reforma realista” (p.144). “Ginásio” aqui é o Ginásio

Dramático, pequeno teatro inaugurado no Rio de Janeiro em 1855. Por seu repertório e

pela estética das encenações, tornou-se reduto realista, em declarada oposição ao Teatro

São Pedro de Alcântara, maior e principal casa de espetáculos da corte, onde ainda reinava

absoluto o famoso empresário e ator romântico João Caetano. “Ginásio” em tributo ao

Théâtre Gymnase Dramatique , de Paris, que a partir de 1852 iniciara a renovação realista,

apresentando as novas comédias, dramas de casaca, acompanhadas por significativas modi-

Page 29: Tese experimentos de botânica

16

ficações na mise em scène. Boa parte desses textos dramáticos foi traduzida e representada

no Brasil com pouco tempo de atraso em relação à França.

Faria nos apresenta um panorama do trabalho desses jovens autores já expoentes da

intelectualidade brasileira da época, e através de suas obras e de suas opiniões veiculadas

pela imprensa da época discute o papel que atribuíam ao teatro nacional. Para Quintino

Bocaiúva, o teatro era um meio de propaganda bastante eficaz. Impressionado com as pri-

meiras peças francesas apresentadas no ginásio, representando o retrato de uma sociedade

civilizada, moralizada e regida por uma ética burguesa impecável, o intelectual considera-

va que esse tipo de dramaturgia exerceria uma influência benéfica no espírito dos brasilei-

ros.

José de Alencar, que viria a se tornar nosso maior dramaturgo realista, também ti-

nha idéias muito claras a respeito do teatro que desejava para o Brasil. Impulsionado pelo

entusiasmo com a reforma realista, chega a interromper a carreira de romancista para arris-

car-se no território da “alta comédia”, ainda não explorado pelos autores brasileiros. Escre-

ve, à maneira de Dumas Filho, a peça O Demônio familiar, dedicada à imperatriz Teresa

Cristina e encenada no Ginásio em 1857. Na história do teatro brasileiro, esta peça se cons-

titui em um divisor de águas, marcando a ruptura com o romantismo e o início da discus-

são nos palcos, sob a ótica burguesa, dos problemas sociais da época, aspirando à regene-

ração de nossa sociedade.

Acompanhando esse movimento, também Machado de Assis, nas palavras de Faria,

vai definir o teatro como “verdadeiro meio de civilizar a sociedade e os povos. Essa foi

uma idéia jamais abandonada por ele, que criticava duramente o gosto do público pelo

“gênero artisticamente inferior” das farsas “ movidas a pancadaria”. Machado “queria um

teatro que não fosse mero passatempo das massas, mas um instrumento de civilização e

moralização dos costumes, pois acreditava na função educativa da arte, que devia ‘cami-

nhar na vanguarda do povo como uma preceptora’” (Faria, 1993, p.152).

E para educar o público era necessário um repertório de peças nacionais que retra-

tasse os costumes da vida social para poder moralizá-los. “Favorável ao teatro utilitário,

ao palco transformado em espaço para debate de questões sociais, Machado recheou seu

texto com referências ao teatro como ‘canal de iniciação’, um meio de educação pública,

aproximando-o da imprensa e da tribuna. Porém mais insinuante e eficaz do que a palavra

escrita ou falada, a palavra dramatizada é que tinha melhores condições de inocular nas

veias do povo ‘o sangue da civilização’”.

Page 30: Tese experimentos de botânica

17

Ao que parece, será mesmo a cor desse sangue que vai tingir as relações entre a li-

teratura e a ciência no Brasil que se encaminha ao século XX.

2.1.2 – O autor da peça, outros autores e a ciência do Brasil

Num tempo em que, no Brasil, a formação de cientistas e a produção de pesquisa

científica ainda lutavam com precários recursos, já se produziam, socialmente, representa-

ções sobre a ciência e suas façanhas. Circulando nos salões e nas praças públicas daquela

época, por meio da literatura e demais produções culturais, essas representações podem,

hoje, nos ajudar a compreender o processo de inserção da ciência e de suas idéias na cultu-

ra brasileira. O trabalho de doutorado de Pinto Neto (2001), através de análises da produ-

ção literária brasileira do final do século XIX e das primeiras décadas do século XX, pro-

cura entender o processo de produção dessas representações e a formação de um imaginá-

rio científico e seus significados sociais. Mais uma vez, lembramos Umberto Eco: a litera-

tura pode servir para muitas coisas.

A pesquisa destaca um conjunto de romances da época, nos quais a ciência se mani-

festa diretamente, através de três caminhos: pelas imagens literárias que expunham

elementos da ciência daquele momento; pelo uso explícito de explicações e teorias

científicas em seus textos e, ainda, pelas inúmeras definições que se apresentavam para o

papel da ciência na sociedade. Manifestações indiretas à ciência também ocorrem nesses

textos, quando teorias científicas são usadas para definir e explicar as ações e o destino

final de algumas personagens. Quanta ciência!

Ao longo do século XIX, os homens puderam vislumbrar um futuro no qual a ciên-

cia e seus produtos passariam a compor a vida cotidiana. Segundo Pinto Neto (2001),

transformavam-se intensamente as relações entre esse homem e a natureza e dele com a

própria sociedade. Começam a ser inseridos nas produções culturais os novos modos de

viver fundados nas contribuições da ciência e nos ícones e conceitos que marcam esses

novos tempos: velocidade, racionalidade, conforto e produtividade. Configuram-se novos

objetos do desejo. Segundo Sevcenko, citado pelo autor, foram três os grandes saltos dados

pelas ciências naturais nessa época, marcando a verdadeira revolução social que se proces-

sava: a teoria darwinista, os avanços na microbiologia permitindo a Revolução Sanitária e

as pesquisas aplicadas de Química e Física que permitiriam a Revolução Tecnológica.

Nesse período, sobretudo na Europa e na América do Norte, intensificam-se os me-

canismos de divulgação das conquistas científicas e tecnológicas para toda a sociedade.

Pinto Neto (2001) destaca, entre eles, as grandes Exposições Mundiais que, com caráter

Page 31: Tese experimentos de botânica

18

educativo e concebidas como grandes vitrines, propiciavam às elites e aos homens comuns

o contato direto com as novas produções científicas. A magnitude da ciência também podia

ser exibida através dos grandes monumentos arquitetônicos que marcavam essas exposi-

ções e que possuíam um grande valor simbólico. Pois, enquanto aos olhos saltavam os a-

vanços as técnicas de engenharia, no imaginário dos indivíduos, inseria-se a possibilidade

de uma vida nova, propiciada pelo progresso científico e tecnológico.

No século XX, esse processo de produção de representações sobre a vida moderna

se dinamizou através do desenvolvimento dos veículos de comunicação, com destaque para

os livros e jornais. O autor analisa que, curiosamente, a circulação desses impressos permi-

tia que as representações sobre as novas conquistas chegassem a lugares onde os próprios

objetos e seu uso não conseguiam chegar. Nas páginas dos livros, dois tipos de literatura se

constituem nesse momento. Uma “literatura de antecipação”, da qual Júlio Verne será o

grande expoente, que divulga o progresso científico e dele se nutre para projetar o futuro,

recheando de inovações e aventuras a vida cotidiana de seu mundo de ficção. O outro tipo

de literatura que se manifesta, e que será a expressão do positivismo que idolatra a ciência,

é o “romance experimental”, que se alicerçava com base nos princípios das ciências natu-

rais, sobretudo a fisiologia de Claude Bernard, e que tem em Emile Zola seu principal ar-

quiteto. Momento delicado da relação entre ciência e literatura, pois, como assinala Pinto

Neto, “esta nova ‘fórmula’ para a produção literária pretende afastá-la justamente do que

lhe é mais peculiar, a sua relação com o universo simbólico” (p.29).

Simone Vierne (1994), também citada pelo autor, caracteriza como “efeito Júlio

Verne” o interessante recurso literário empregado pelo próprio escritor, que consistia em

citar em seus romances imensas listas de termos ou objetos científicos. Dois efeitos podem

ser observados a partir dessa estratégia: um papel didático, despertando o interesse e até a

paixão do leitor pelos assuntos científicos e, o mais intrigante, fazer-nos emergir da ciên-

cia, fugir de suas garras racionais para os braços do imaginário, por meio de uma maciça

referência à própria ciência. Questão interessante que guarda aproximações com os estudos

de Bachelard sobre as imagens poéticas e que nos apresenta mais um elemento para essa

discussão sobre o uso do texto literário no ensino de Ciências.

Na Europa em meados do século XIX, ao mesmo tempo em que se consolidavam

os métodos e as conquistas científicas, constituía-se uma literatura que trazia a cientifici-

dade como marca pungente. Pinto Neto (2001) chama a nossa atenção para o fato de que,

nessa simultaneidade, uma fazia a propaganda da outra. E atravessando os mares, essa lite-

ratura chega ao Brasil, um país monárquico ainda fortemente agrícola e com mão de obra

Page 32: Tese experimentos de botânica

19

escrava. Sua chegada coincide com o interesse crescente pelos debates sobre doutrinas com

ares de ciência, com as primeiras publicações de ficção científica e com iniciativas de for-

mar instituições de pesquisas nos moldes europeus. Os assuntos da ciência entram na mo-

da, através da literatura, em meio às discussões acerca do desenvolvimento da nação, en-

quanto alguns de seus produtos e benefícios vão aos poucos se fazendo presentes nas prin-

cipais cidades.

Nesse percurso, muitos intelectuais brasileiros, inspirados pelos escritos franceses,

se convertem em dedicados mosqueteiros em prol de nossa modernização, voltando seus

interesses e suas letras para o longo combate que se inicia. Isso reafirma o que comenta-

mos, anteriormente, acerca dos primeiros autores realistas brasileiros verem o teatro como

inoculador (reparemos o termo de cunho científico) do sangue da civilização. Algum tem-

po se passa e surge o romance naturalista brasileiro, que nos anos seguintes produzirá mui-

tos frutos, tendo como modelo sempre as novidades francesas. Tais escritores acreditavam

que ao difundir idéias e saberes do mundo civilizado contribuíam para construir nossa pró-

pria urbanidade e civilização.

Assim, a literatura assume os papéis de veículo de idéias e saberes científicos e de

produtora de contextos onde é representada uma vida social para a qual a ciência é condi-

ção de modernidade e progresso. O autor nos lembra, ainda, que somando-se a esse movi-

mento, ocorre a adesão de muitos de nossos escritores a doutrinas filosóficas de cunho ci-

entificista, das quais é um exemplo o positivismo que, ao final daquele século, contava

com grande aceitação no Brasil.

Se tomarmos como uma convenção social a valorização da ciência e a distinção dos

indivíduos que a praticavam, expressão das representações sociais burguesas que se consti-

tuíam naquela época, podemos retornar à tese de Loyola (1997) sobre a originalidade do

teatro de Machado de Assis e considerar que, com a nossa Lição, o autor desafia mais uma

convenção. Não vemos nas mulheres da história nenhum deslumbramento para com os

assuntos científicos. “Que tenho eu com a ciência!”, dizia Dona Leonor. E os exageros do

Barão na dedicação ao estudo de sua amada ciência são cuidadosamente trabalhados pelo

texto, provocando o efeito cômico da elegante comédia. Podemos, assim, entender a peça,

junto a outros de seus textos que colocam a ciência na berlinda – entre os quais o conto O

Alienista é exemplo modular, como uma evidência da ironia refinada e do ceticismo tenaz

que nos são apresentados como marcas da obra do escritor. O texto de Machado de Assis,

para usar uma expressão de Possenti (1997), não é um discurso daqueles que babam

ingenuamente pela ciência.

Page 33: Tese experimentos de botânica

20

A Lição de Botânica foi escrita em 1906. Machado de Assis vem a falecer em

1908, ano em que ainda publica Memorial de Aires, iniciado em 1907. Os últimos anos de

sua vida foram marcadamente sofridos com a amargura pela perda da esposa Carolina, em

1904, com quem vivera 35 anos. Datas são números. Datas são pontas de icebergs. Com

essa metáfora, Bosi (in Novaes, 1996, p.19) nos lembra que a memória das sociedades pre-

cisa repousar em sinais inequívocos, sempre iguais a si mesmos e, nisso os números são

muito bons.

Para ele, datas são pontos de luz sem os quais a escuridão, provocada pelo acúmulo

de eventos através dos séculos, impediria a visão dos vultos das personagens e o desenho

de seu movimento. E a força e a resistência dessas combinações de algarismos viria da

relação inextrincável entre o acontecimento, que elas fixam com a sua simplicidade arit-

mética, e a polifonia do tempo social, do tempo cultural, do tempo corporal, que pulsa sob

a linha de superfície dos eventos (p.19).

Assim, podemos articular, ainda que de forma breve, alguns icebergs. A passagem

do século XIX ao século XX na história do Brasil se coloca como um período fértil quando

se quer focalizar o desenvolvimento de nosso universo científico. Só para citar grandes

pontas: em 1893, é criado em São Paulo o Instituto Bacteriológico, onde Adolfo Lutz tra-

balha na modernização dos laboratórios. Na fazenda paulista do Butantã, em 1899, Vital

Brasil inicia a fabricação de soro antipeçonha e funda-se o Instituto Butantã em 1901. Em

1900 no Rio de Janeiro, é criado o Instituto Soroterápico Municipal, passando a Instituto

Federal em 1901 e a Instituto de Medicina Experimental de Manguinhos em 1907, cujos

trabalhos representaram o Brasil na Exposição de Berlim daquele ano, e a personagem cen-

tral é Oswaldo Cruz. Em 1909 são divulgadas as descobertas de Carlos Chagas sobre a

tripanossomíase humana (Martins, 1994).

Muitos pesquisadores trabalharam nesse desenvolvimento científico e muitos outras

datas e outros nomes poderiam ser destacados. Lidar com a Lição, um texto escrito nessa

mesma época, suscita o desejo de olhar essa história procurando, sobretudo, compreender o

conturbado cenário sócio-cultural de final de século em que ela se faz. E ainda aí Machado

de Assis nos provoca: “Quanto ao século, os médicos que estavam presentes ao parto re-

conhecem que este é difícil, crendo uns que o que agora aparece é a cabeça do XX, outros

que são os pés do XIX. Eu sou pela cabeça, como sabe” (citado por Faraco in Bagno, 1998,

161).

Atribuir sentidos a um emaranhado de datas que sinalizam acontecimentos signifi-

cativos, simultâneos, e muitas vezes contraditórios e conflituosos, entre os quais o episódio

Page 34: Tese experimentos de botânica

21

da “Revolta da Vacina”, em 1904, é exemplar, pode contribuir para suprir lacunas concre-

tas de nossa formação docente, no tocante à história das ciências, e nos fazer concordar

com Bosi (1996), quando afirma que “a memória carece de nomes e de números e que o

ato de narrar paga tributo ao deus Chronos”.

2.1.3 – A ciência da peça

A adoção de uma nomenclatura específica para a Botânica pode ser considerada, na

história das ciências naturais, como um marco importante no processo de separação entre o

modo popular e o erudito de se ver o mundo. Na Europa, segundo Thomas (1989), a sepa-

ração entre a terminologia popular e a erudita para identificação e descrição de plantas e

animais já era antiga e vai se intensificar no século XVIII, à medida que os cientistas pas-

saram a escrever manuais padronizados, em latim, para um público internacional.

Os nomes populares e “pitorescos” das plantas e dos animais baseavam-se em

conotações religiosas, semelhanças com partes do corpo humano ou de animais,

propriedades medicinais e várias outras referências. A grande variedade de nomes para

uma mesma planta ou animal, variando em cada região, era fortemente lamentada pelos

naturalistas, que viviam a compilar dicionários de Botânica; por muitos cultivadores, que

tinham seus negócios complicados visto as confusões e as fraudes; pelos protestantes, na

refutação às referências à Virgem e aos santos e ainda por sensibilidades refinadas que se

feriam com a excessiva “grosseria” dos nomes vernáculos, ligados aos aspectos corporais.

O sistema de nomenclatura proposto por Lineu em 1735, e amplamente adotado en-

tre os botânicos, eliminava os nomes vulgares, tidos como um obstáculo à ciência, e esta-

belecia para todas as plantas o uso de dois nomes latinos, indicando gênero e espécie. Es-

ses nomes não podiam ser baseados em características consideradas subjetivas, como o

cheiro, o gosto ou as propriedades medicinais.

O protesto enunciado por um inglês contemporâneo a Lineu, com relação à substi-

tuição dos nomes das plantas – “classificá-las botanicamente... de modo que ninguém a

não ser um botânico possa encontrá-las, se assemelha a escrever em hebraico uma gramá-

tica inglesa. Explica-se a coisa, tornando-a ininteligível” (Thomas, 1989, p.103) – já pres-

sentia a progressiva especialização da linguagem científica e seu futuro isolamento num

domínio exclusivo aos estudiosos. Podemos lembrar aqui uma recorrência assinalada por

Machado de Assis, quando expressa o estranhamento do homem comum para com os no-

mes científicos, na voz de Dona Leonor, indignada com tantos nomes estranhos.

Page 35: Tese experimentos de botânica

22

Em Thomas, encontramos exemplos que mostram que a exigência de novos termos

refletia-se também na descrição dos animais e evidenciam o complexo processo histórico

de racionalização científica moderna, permeado pela linguagem.: “O pai de sir William

Petty observava que um açougueiro rural podia ser um excelente anatomista, mas empre-

gava uma linguagem diferente, chamando um tendão de ‘fivela’, uma membrana de ‘vil-

me’ e uma artéria de ‘tubo’. Ou ainda: “‘Oh, cavalheiro’, dizia um cavalariço do século

XVIII, depois de se provar incapaz de responder a uma longa série de perguntas que lhe

dirigira um fidalgo sobre o animal aos seus cuidados, ‘considerando que vivi treze anos

em um estábulo, é incrível como eu sei pouco de um cavalo’ ” (Thomas, 1989, p. 96; 102).

Esse, entre outros exemplos são colocados pelo autor para mostrar como a sabedoria popu-

lar passa a ser deliberadamente desprezada pelos pesquisadores cultos da Europa, na parte

final do século XVIII.

A introdução da nova terminologia latina, eliminando os nomes vernáculos que as

pessoas usavam para identificar as plantas e os animais, alargaria, pela linguagem, o dis-

tanciamento que se instalava entre os modos popular e erudito de ver e falar o mundo. “Os

nomes populares eram um obstáculo à ciência e aqueles que desejassem permanecer igno-

rantes da linguagem latina, dizia John Berkenhout em 1789, nada tinham a ver com o es-

tudo da botânica.” (Thomas, 1989, p. 103).3

Se considerarmos o esforço por uma estruturação como característica marcante da

linguagem científica, que busca progressivamente a eliminação do vivido enquanto repre-

sentado na linguagem (Possenti, 1997), podemos avaliar a importância desse tema na histó-

ria do desenvolvimento das ciências biológicas. O conhecimento sobre as plantas é um dos

mais antigos produzidos pela humanidade, que dele sempre dependeu para a obtenção de

alimentos, remédios e substâncias para sua defesa. Podemos pensar então que o objeto de

estudo da Botânica é ao mesmo tempo conhecimento popular por excelência e um marcan-

te exemplo, em termos de linguagem, de ruptura epistemológica.

Mas eliminar as marcas do vivido não é tarefa simples e nem rápida. E essa parece

ser uma distinção interessante entre a Biologia e as outras ciências naturais. Jacob (1983)

considera que a história da hereditariedade ilustra bem esse fato. Pois se o homem logo

descobriu como cultivar plantas e criar animais, o que demanda grande experiência, supõe-

se que já desenvolvera alguma idéia de hereditariedade e a aplicava em seu benefício. Mas,

3 Em um movimento dialético, devemos contrapor que tais considerações acerca deste distanciamento, que se fez inerente à produção do conhecimento científico, não desejam promover um apagamento dos aspectos positivos da linguagem científica.

Page 36: Tese experimentos de botânica

23

considerava, ainda, que na hora de semear, além de escolher bem as sementes, também era

preciso esperar pela lua mais propícia e rezar ao deus encarregado das colheitas.

O autor cita o exemplo literário de um herói de Voltaire, que enfrentava seus inimi-

gos com uma mistura de rezas, encantamentos e arsênico, e considera que foi provavelmen-

te no mundo vivo que foi mais difícil de separar o arsênico do encantamento (p. 9). En-

quanto a Física disparava seus estudos confiante nas virtudes do método científico, o estu-

do da continuidade dos seres vivos conservava em seu referencial as crenças e curiosida-

des.

Outras distinções da Biologia em relação às demais ciências são traçadas por Mayr

(1998a), quando analisa a história do pensamento biológico. Para o homem comum, a mar-

ca da ciência é a descoberta de um fato novo. Para o autor, tratando-se da ciência biológi-

ca, mais do que a descoberta de novos fatos, são importantes o desenvolvimento e o apri-

moramento dos conceitos, sendo que os avanços nas diversas áreas da Biologia se deveram

mais à introdução de melhorias nos conceitos existentes do que propriamente a novas des-

cobertas.

Também é avaliado como uma característica de toda atividade científica, incluindo

as biológicas, o rigor das diversas metodologias. E Mayr observa que, devido à filosofia

das ciências estar sendo descrita na maior parte das vezes por físicos, a experimentação

tem sido considerada como o método primordial da ciência, desmerecendo a importância

que outras metodologias desempenham nas outras ciências. Mas a Biologia se constituiu e

se beneficiou, sobremaneira, pelo método observacional-comparativo que, a seu ver, tem

toda a legitimidade para produzir conhecimentos científicos: a “observação, na biologia,

forneceu, provavelmente, mais conhecimentos do que todos os experimentos juntos”.

Para apontar as especificidades da Biologia, Mayr (1998a) cita a juventude dessa

ciência, visto que só no século XIX ela ganha maior estatuto científico, inclusive porque é

quando o próprio termo é criado – aparecendo por volta em 1802, usado por Lamarck e

Treviranus, articulando o estudo dos animais e dos vegetais em um objeto único, os seres

vivos, excluindo os minerais que também eram estudados pelos naturalistas da época. Os

temas que se tornariam “biológicos” eram até então tratados pela medicina (anatomia e

fisiologia) ou pela história natural. Divisão que o historiador vê hoje como sinal de notável

bom senso, dado que já refletiria a distinção entre as causas próximas (fisiológicas) e as

causas últimas (evolutivas) que, concomitantemente, regem os fenômenos biológicos. E,

concordando com a observação de Jacob (1983), o autor afirma que a revolução nas ciên-

Page 37: Tese experimentos de botânica

24

cias físicas nos séculos XVII e XVIII não provocou efeitos nas ciências biológicas, que

esperaram pelos séculos seguintes para se inovarem.

Uma outra diferença significativa apontada nesse contexto é a importância das leis.

Se na Física elas desempenham um papel demonstrativo essencial e permitem previsões

exatas do curso dos fenômenos, na Biologia elas foram perdendo a força e o sentido que

tinham no início, pois, nesse campo, percebeu-se que as regularidades são menos contun-

dentes e as generalizações só podem ser pensadas em termos probabilísticos. A vida sem-

pre nos reserva surpresas.

Como já citamos, Mayr (p.61) vê como uma particularidade marcante da Biologia a

“importância avassaladora dos conceitos”. Os biologistas abdicaram das leis e organiza-

ram as suas generalizações em estruturas conceituais, mais flexíveis e com maior poder

heurístico. O desenvolvimento da Biologia tem sido, assim, construído com a introdução

de novos conceitos ou princípios, refutação de outros e, principalmente, com a cristaliza-

ção e refinamento de conceitos-chaves para cada um dos seus ramos. E dada à complexi-

dade e extensão do tema, uma história mais consistente dos conceitos biológicos ainda es-

taria para ser escrita.

E aqui, pensando nessas palavras caras à Biologia, traçamos um vínculo forte com

as noções de linguagem do Círculo de Bakhtin, com relação ao processo de constituição

das diferentes linguagens sociais e à palavra como fenômeno ideológico, já que o destino

da palavra é o da sociedade que fala (Bakhtin/ Volochinov, 1988).

Uma última característica da Biologia destacada por Mayr (1998a) é sua relação

mais direta com a dimensão ética. Ele considera que, numa tradição moderna (embalada

pela ideologia burguesa) que se interessou por isentar as ciências físicas de maiores com-

promissos com os valores humanos (desideologizando o mundo da matéria), liberando-as

para avançar desenfreadamente na produção do conhecimento, as diversas ciências bioló-

gicas, em diferentes graus, parecem sentir mais fortemente o peso das explicações que

formulam e dos conflitos que levantam, percebendo mais claramente suas implicações e

responsabilidades. E sabemos que tais conflitos, sem dúvida, refletem-se e emergem, tam-

bém, no contexto do ensino escolar de Biologia.

Com relação à questão dos conceitos usados na Biologia, podemos fazer uma breve

ponderação. A noção de que alguns de seus conceitos-chaves sofreram, ao longo do tempo,

um melhoramento, refinando-se e mantendo-se em sua rede conceitual pode, a princípio,

passar a idéia de continuidade histórica e de desenvolvimento científico estritamente por

Page 38: Tese experimentos de botânica

25

acumulação. Tal idéia é discutida por Canguilhem (1977, p. 20) ao refletir, com bases no

pensamento de Bachelard, sobre o desenrolar da história das ciências da vida.

O autor destaca que o historiador da ciência deve lançar sobre o passado do pensa-

mento e da experiência uma luz recorrente. Iluminação essa que deve impedir que se con-

funda a persistência dos termos (perpetuados por inércia lingüística) com a identidade dos

conceitos, e a inovação de fatos de observação análogos com parentescos de métodos e de

problematização. Analisando episódios do processo de constituição da Biologia, ele afirma

a descontinuidade histórica e o desenvolvimento científico por rupturas e invenções. Com

essa perspectiva, formula que a história da Biologia realizou-se através da superação de

certas noções e da efetiva produção de um “novo objeto científico”, elaborado na interse-

ção de várias disciplinas.

Nesse contexto, a Biologia vai traçando sua trajetória de desenvolvimento, marcada

por acirrados debates, e construindo e conquistando a unificação de seu domínio científico,

ao mesmo tempo em que se diversificava em diversos territórios. E em todos eles, como

um aspecto característico da vida, a diversidade podia ser notada. Assim, apesar de a Bio-

logia ser considerada jovem, a quase infinita riqueza da vida orgânica foi sempre objeto de

construção de conhecimento pelos homens, que desde os mais remotos tempos, cada um no

seu canto, às vezes no canto alheio, e com motivações diversas, se ocuparam em explorá-la

e estudá-la.

Segundo Mayr (1998a), sempre que se trate da diversidade, as classificações se tor-

nam necessárias, o que justificaria a quase obsessão dos naturalistas dos séculos XVII,

XVIII e XIX por desenvolver classificações, algumas bem mais interessantes que outras. A

dedicação desses estudiosos à ordenação do mundo vivo chegava a nutrir um verdadeiro

desprezo por parte dos cientistas da Física e alguns biologistas experimentais, que conside-

ravam a História Natural, em seus esforços essencialmente descritivos, como uma forma de

filatelia, até indigna de status científico. Pura arrogância e incompreensão da parte deles,

segundo o autor. Pois não puderam perceber a sua fertilidade e originalidade e a grande

contribuição que trouxeram às pesquisas em outras áreas da Biologia. Pois, ao que parece,

de Aristóteles a Darwin, sem a História Natural, teriam ficado todos de mãos vazias.

Uma outra ponderação que podemos apresentar refere-se à questão dos métodos.

Mayr (1998a) exalta a validade e a contribuição dos métodos de observação e comparação,

utilizados pelos que se dedicavam aos estudos biológicos. Parece-nos que uma certa birra

do autor para com a visão mecaniscista de mundo e seus adeptos o leva a fazer tal distinção

e a tocar sempre nessa tecla. São inegáveis a riqueza e o valor do trabalho dos naturalistas

Page 39: Tese experimentos de botânica

26

classificadores, mas havia outras coisas importantes acontecendo no terreno dos estudos

biológicos.

Prestes (2003) vai destacar que acirrar a rivalidade entre os pesquisadores descriti-

vos e os que se dedicavam à experimentação, tem determinado uma visão histórica pela

qual a Biologia, como ciência experimental, só teria se evidenciado no século XIX, influ-

enciada sobremaneira pela fisiologia de Claude Bernard. Para a autora, tal perspectiva leva

a negligenciarmos o relevante trabalho desenvolvido, no século anterior, por pesquisadores

experimentadores como Bonnet, Needham, Trembley e Spallanzani, que contribuíam para

a definição dos seres vivos como objeto de estudo e para a constituição da Biologia e, tam-

bém, leva a mascarar os intensos debates que ocorriam, internamente, nos dois campos de

investigação, como se fossem dois blocos uniformes de idéias e procedimentos.

Voltando à grande importância que, indiscutivelmente, as classificações exercem

para a Biologia, destacamos a distinção que Mayr estabelece ao afirmar que “esquemas de

identificação não são classificações” (1998a, p.175). A identificação tem apenas o objetivo

de enquadrar um indivíduo estudado em uma das classes de uma classificação já existente,

observando-se um número reduzido de caracteres. A classificação, ao contrário, utiliza um

grande número de caracteres e trata de reunir os indivíduos em grupos cada vez mais com-

plexos. As chamadas “classificações de objetivo especial”, como por exemplo a classifica-

ção de plantas medicinais baseadas em suas propriedades curativas, correspondem a es-

quemas de identificação.

A história da taxonomia começa séculos antes de Cristo, com Aristóteles, que é ce-

lebrado como o pai da ciência da classificação. O eminente filósofo demonstrava um imen-

so interesse pela diversidade do mundo vivo. Nas classificações de animais que desenvol-

veu, não utilizou seu método de definição por divisão lógica e dicotômica, como é comum

se pensar, mas procedeu de uma maneira muito moderna, conforme é destacado por Mayr

(1998a). Formava grupos baseados na observação e, posteriormente, selecionava em cada

um deles caracteres diferenciadores significativos. Os grupos formados tinham seus atribu-

tos avaliados e eram ordenados em diferentes seqüências.

Essa sistemática de classificação, que nas suas categorias refletia a grande impor-

tância atribuída por Aristóteles aos quatro elementos: fogo, água, terra e ar, não tinha o

objetivo de servir a uma rápida identificação dos animais. Apesar da originalidade de sua

metodologia de classificação, a divisão lógica dicotômica, prezada por ele em outros do-

mínios, vai triunfar na História Natural até a época de Lineu, inclusive referida como “mé-

todo aristotélico”.

Page 40: Tese experimentos de botânica

27

Após a morte de Aristóteles, a história natural decaiu e, nos períodos seguintes, os

animais deixaram de ser objetos de investigação e se tornaram muito mais símbolos de

virtudes morais e religiosas, sendo observados apenas com uma preocupação espiritual ou

estética. Segundo Mayr (1998a), somente a partir do século XIII, com a redescoberta dos

escritos biológicos de Aristóteles e o interesse crescente pelas ervas medicinais, o estudo

dos seres vivos ganhou novo ânimo. No fim da idade Média e na Renascença, o prestígio

da filosofia de Aristóteles vai contribuir para despertar o interesse e revalorizar o estudo

dos animais, ajudando a zoologia a se desenvolver como ciência.

Como os escritos de Aristóteles sobre as plantas foram perdidos, a história oficial

da Botânica começa com os estudos de seu aluno Theofrasto (371-287 a.C.), que não che-

gou a adotar nenhum sistema formal de classificação vegetal. Muitos anos mais tarde, o

médico grego Dioscórides (60 d. C.) vai dar uma importante contribuição para o desenvol-

vimento da fitologia, conseguindo reunir, sob critérios de uso prático para o homem, uma

grande quantidade de informações sobre as plantas. Foi considerado a maior autoridade

sobre o assunto, principalmente sobre as propriedades medicinais, e seu livro Matéria me-

dica foi o livro-texto de Botânica por mil e quinhentos anos. É interessante notar o forte

vínculo inicial da Botânica com a medicina, sendo que até o século XVI todos os autores

de livros sobre a natureza eram médicos. Nessa época, a crescente descoberta de novas e

ricas floras e o grande interesse pelas ervas medicinais levaram à implantação de cátedras

de Botânica nas escolas de medicina da Europa.

O desenvolvimento da Botânica toma um novo fôlego ao longo do século XVI.

Conforme destaca Mayr (1998a), inicia-se a era dos “pais alemães da Botânica”, pesquisa-

dores que deixaram de compilar os textos gregos para observar as plantas diretamente, e

dedicaram seus esforços para descrever e agrupar as plantas em grupos afins, dando uma

grande contribuição para o desenvolvimento da Botânica Sistemática. O minucioso traba-

lho de ordenação das plantas realizado pelos herbaristas não se baseava em nenhum siste-

ma consistente e não tinham o objetivo de classificar os indivíduos focalizados, mas, de

reconhecer-lhes as propriedades individuais. Os livros que publicavam se constituíam em

belos catálogos ilustrados de descrições e de nomes de plantas e alcançavam enorme popu-

laridade, visto o interesse crescente despertado pelas novas e ricas floras locais que esta-

vam sendo descobertas.

Nos séculos seguintes, vários naturalistas se destacaram e cada um desenvolvia seus

próprios métodos de observação e de classificação das plantas. Cesalpino ainda no século

XVI e Ray e Tournefort no século XVII são vultos importantes desse percurso e que irão

Page 41: Tese experimentos de botânica

28

exercer grande influência sobre o futuro trabalho de Lineu. O avanço técnico que, em gran-

de parte, possibilitou esse progresso da Botânica foi a invenção do herbário, no início do

século XVI, que permitia a conservação adequada e por longos períodos dos espécimes

coletados. Para incrementar os estudos botânicos, seguiram-se o desenvolvimento das téc-

nicas de gravura em madeira e a criação dos jardins botânicos.

A flora brasileira também foi objeto de estudo dos herbaristas europeus. Inúmeros

deles, principalmente de procedência alemã, sueca, inglesa e suíça, estiveram no Brasil a

partir do século XVII e, sobretudo, ao longo dos séculos seguintes, participando de expedi-

ções em diversas partes do país, tendo descrito e classificado inúmeras espécies de plantas

nativas brasileiras. Ferri (1994) traça um panorama detalhado das aventuras desses inúme-

ros pesquisadores “nativos” e “exóticos”, que em seus percursos, escreviam a história des-

se campo da ciência no Brasil. Vários deles não retornaram a seus países, aqui se instalan-

do definitivamente e exercendo uma participação bastante significativa na vida científica

brasileira. Os livros que publicaram, junto às obras dos pesquisadores brasileiros, foram de

um imenso valor para o conhecimento de nossas plantas e para o desenvolvimento da Bo-

tânica em nosso meio.

Reforçando essas referências, Nogueira (2000) também destaca que desde o século

XVII, o país abrigou naturalistas viajantes, grandes expedições científicas e convênios

bilaterais, propiciando à comunidade científica local o estabelecimento de parcerias. Enten-

dendo-se, assim, que a formação e a condição atual da Botânica no Brasil espelham de

forma marcante os desdobramentos das ações de nosso Estado e os interesses estrangeiros.

Para Ferri (1994), a Botânica no Brasil começou com os próprios índios, com as

observações que procediam no intuito de obter alimentação e demais recursos para sua

vida em geral, e com a transmissão oral que faziam desses conhecimentos às gerações se-

guintes, que por sua vez os enriqueciam com suas próprias descobertas. A história escrita

de nossa Botânica, sistematizada pelo autor (apud. Nogueira, 2000) identifica cinco perío-

dos distintos: (i) dos cronistas, que inclui as cartas escritas por Nóbrega e Anchieta no sé-

culo XVI até meados do século XVII; (ii) período científico inicial, durante a permanência

dos holandeses no Nordeste, cujo marco é a publicação do livro Historia Naturalis Brasili-

ae, escrita por Marcgrave e publicada em 1648 – segundo Nogueira (2000), tal período foi

pouco significativo para a evolução de nossa Botânica uma vez que não teve maiores re-

percussões científicas; (iii) período da ida de brasileiros para estudar em Coimbra, a partir

de meados do século XVIII; (iv) período dos naturalistas viajantes, abrangendo o século

XIX e início do XX, com uma efervescente produção de conhecimento sobre a flora brasi-

Page 42: Tese experimentos de botânica

29

leira. Nesse período também ocorre a chegada da Família Real, em 1808, fato que causou

um grande impacto em nossa Botânica, pela criação de jardins botânicos e outros empre-

endimentos relevantes; (v) período contemporâneo, pontuado com a criação da Universi-

dade de São Paulo, em 1934, quando inicia-se efetivamente a institucionalização da Botâ-

nica no Brasil, e com a criação da Sociedade Brasileira de Botânica, em 1950.

Nogueira (2000) destaca que, com relação à institucionalização da ciência no Bra-

sil, os pesquisadores concordam que, em função da riqueza biológica aqui existente, foi

através das ciências naturais que teve início “nossa cultura científica”. Em nenhum outro

campo científico existiu maior número de pesquisadores estrangeiros explorando e estu-

dando as regiões do Brasil, a que somam-se os esforços de vários brasileiros, ligados ao

Jardim Botânico e ao Museu Nacional.

Iniciamos esse tópico sobre “a ciência da peça” falando da importância que teve pa-

ra a Botânica a adoção de uma terminologia científica, gestada nos séculos XVII e XVIII.

E vamos encerrá-lo lembrando de Carl Lineu, em geral, um dos únicos nomes de toda essa

história que é citado nos atuais livros de ciências do Ensino Fundamental.

Lineu, que viveu entre 1707 e 1778, já era uma celebridade em sua época. Segundo

Mayr (1998a), nenhum outro naturalista gozou tão grande fama durante sua vida. Dizem as

más línguas que era muito pedante e tinha um gênio difícil, mas, suas importantes

contribuições ao desenvolvimento da Botânica sistemática lhe garantiram um lugar seguro

na memória das gerações seguintes. Os critérios interessantes que utilizou nas

classificações, as regras para grafia dos nomes científicos, a terminologia para a

morfologia vegetal, o número reduzido de taxa que empregava, entre outros aspectos,

permitiram o êxito de suas classificações, que tinham como intuito principal uma

identificação segura das plantas. Seu prestígio servia para divulgar a taxomonia e, ainda

que refutasse as idéias de evolução dos seres vivos, contribui para seu desenvolvimento, ao

participar do debates teóricos sobre a seleção natural.

Ao longo desse estudo, estaremos trazendo novas referências à figura de Lineu.

Mas vale destacar, aqui, o fato de que, por maior êxito que tenha alcançado em seu traba-

lho e por maior que tenha sido a autoridade que conquistou junto à comunidade científica

de sua época, Lineu não tinha a concordância e a admiração de todos os seus contemporâ-

neos naturalistas. Não devemos imaginar que não existiam diferenças, debates, e mesmo

disputas, entre os pesquisadores. O próprio Mayr (1998a), que mostra claramente sua ad-

miração e a grande importância que atribui ao botânico sueco, comenta algumas discor-

dâncias e críticas dirigidas a Lineu. Em Prestes (2003), também encontramos exemplos de

Page 43: Tese experimentos de botânica

30

ferrenhas oposições mantidas a ele, como vemos com Trembley, acerca da falta de experi-

mentação em seus trabalhos, com Spallanzani, sobre métodos descritivos, ausência de ex-

perimentos, dedicação excessiva à nomenclatura, uso de um número restrito de caracteres

classificatórios ou explicações equivocadas sobre a fecundação externa de anfíbios e, ain-

da, com Buffon, que parece ter sido seu principal e declarado opositor.

Embora nascidos no mesmo ano de 1707, o mundo conceitual onde Lineu vivia era

totalmente diferente do de Buffon. Para Mayr (1998a), os dois formaram duas tradições

distintas na História Natural. O livro de Buffon, Histoire naturelle (1749), lido por prati-

camente todo europeu educado, promoveu grande impacto entre os pesquisadores. Suas

atenções se voltavam para os animais e para os aspectos utilitários dos seres vivos, para

classificá-los empregava o maior número possível de caracteres e afirmava a continuidade

entre eles. Abominava o sistema lineano de descrição telegráfica e de rápida identificação.

Em Prestes (2003), que analisa a importância científica de Spallanzani no século XVIII,

evidenciamos uma melhor apreciação da obra de Buffon, em comparação ao trabalho de

Lineu, posição provavelmente apoiada na maior afinidade e ligação entre Buffon e Spal-

lanzani.

É curioso observar que Machado de Assis, imaginamos que sem perceber, faz uma

provocação entre Lineu e Buffon, colocando os dois juntos, harmoniosamente, na mesma

cena da Lição de Botânica. O primeiro vendo suas famosas regras de nomenclatura sendo

empregadas pelo Barão – Viola odorata, de Lineu”, o segundo aparece filosofando: “A

paciência é o espírito do gênio, dizia Buffon”.

2.2 – Em outros ares

2.2.1 – Textos alternativos em aulas de Ciências

As pesquisas que têm tratado das possíveis implicações positivas da utilização de

textos alternativos aos textos didáticos no ensino de Ciências configuram parte do campo

de pesquisa no qual julgamos inserir-se o nosso estudo.

Nessa perspectiva, dois trabalhos de Zanetic (1997, 1998) nos apresentam subsídios

relevantes para essa reflexão. São estudos precursores de nossa problemática que, no con-

texto do ensino de Física em nível médio e superior, desenvolvem outros argumentos a

favor da integração de textos literários com a aprendizagem científica. Os dois textos se

remetem à tese do autor, “Física também é cultura”, de 1990, na qual são discutidos os

pressupostos educacionais, históricos e filosóficos que, em sua visão, devem orientar a

Page 44: Tese experimentos de botânica

31

construção do saber em Física nas escolas. Alguns dos argumentos levantados pelo autor

poderão contribuir para nossa reflexão orientada na direção das relações entre linguagem e

os processos de aprendizagem de conteúdos de Biologia.

Zanetic (1997) discute a possível integração entre o ensino de Física e a Literatura

Universal, favorecendo a aprendizagem conceitual e estimulando, nos alunos, a continui-

dade do interesse por temas científicos após a permanência na escola. Para refletir sobre a

convivência com as produções literárias, o autor parte, a exemplo de outros escritores, da

consideração de sua própria história como leitor. E são muito densas e positivas essas me-

mórias, que ainda guardam entusiasmo com as aventuras de Emília operando a chave do

tamanho ou com a epopéia dos Lusíadas.

O artigo destaca exemplos do potencial que a literatura oferece ao ensino de Ciên-

cias: a promoção de uma perspectiva interdisciplinar; a possibilidade de reparar e contem-

plar as diferenças individuais entre os alunos; o aprimoramento da formação dos professo-

res e, sobretudo, o desenvolvimento do hábito e do prazer da leitura, que são reconhecidos

pelo autor como fatores fundamentais para o estudo de qualquer disciplina e como desafio

a ser empreendido por toda a escola. A base teórica para a discussão desses pontos é bus-

cada em Bachelard e Snyders.

Vários escritores da literatura universal de todas as épocas, de origens filosóficas,

científicas ou literárias, são apresentados como opções para experiências com diferentes

textos nas aulas de Física e para a reflexão junto aos professores. Entre eles, Platão, Gali-

leu, Giordano Bruno, Kepler, Descartes, Newton, Milton, Camões, Poe, Dostoievski, Eins-

tein, Brecht e Ítalo Calvino. O artigo apresenta ainda alguns parâmetros para a escolha de

textos de leitura e possibilidades de discussão dos mesmos.

Em estudo posterior, Zanetic (1998) retoma essa temática, discutindo com bases te-

óricas diferenciadas as relações entre as grandes sínteses científicas e as obras da literatura.

Possivelmente exemplificando aquela perspectiva de maior intimidade e de olhares de de-

sejo que Vierne (1994) nos lembrou, o trabalho aponta as contribuições de cientistas que

produziram verdadeiras obras literárias e mostra a utilidade desses textos em sala de aula,

favorecendo o ensino de Física e de outras disciplinas, apontando também as possíveis

lições que se depreendem dessa discussão.

Duas diferentes famílias são apresentadas como categorização dos escritores consi-

derados – cientistas com veia literária, quando a produção científica pode ser lida como

Page 45: Tese experimentos de botânica

32

obra literária, a exemplo dos textos de Giordano Bruno, Kepler, Galileu, Newton, Darwin,

Einstein, entre outros; e escritores com veia científica, referindo-se a escritores que utiliza-

ram o conhecimento científico como fonte inspiradora de conteúdo e como guia metodoló-

gico/filosófico, entre os quais se destacam Camões, Milton, Goethe, Poe, Flaubert, Dostoi-

evski, Júlio Verne, Monteiro Lobato, Bertolt Brecht, Jorge Luiz Borges e Ítalo Calvino.

O livro Diálogos de Galileu é tomado como exemplo para uma interessante análise

científico-literária. As considerações de Feyerabend, acerca da “metodologia anárquica de

Galileu”, e de Alexandre Koyré, sobre os Diálogos subentenderem várias obras – obra de

polêmica e combate, pedagógica, filosófica e histórica, são trazidas para aferição do valor

pedagógico que esses textos podem conter. Segundo o autor, uma ótima oportunidade para

um leitor contemporâneo se iniciar nos meandros da Física Clássica, compreendendo a

essência galeliana do movimento de queda dos corpos e o papel da matemática como

linguagem da Física.

A apreciação de textos dos cientistas-escritores é aprofundada com bases na teoria

epistemológica de Bachelard e na teoria lingüístico-literária de Umberto Eco, observando

uma aproximação e uma relação de complementaridade entre essas visões teóricas, no sen-

tido de que ambas tentam mostrar a articulação, em uma via de mão dupla, da produção de

uma obra de arte com a produção de conhecimento científico e não mais um pertencimento

a mundos metodológicos distintos e sem analogias.

Em sua Obra Aberta, Umberto Eco traça paralelos entre a construção do conheci-

mento científico e o desenvolvimento da criação literária, apontando a aproximação epis-

temológica entre ciência e arte e caracterizando uma verdadeira lição gnosiológica, relativa

à construção de todas as formas de conhecimento. As operações mentais desses dois cam-

pos do conhecimento humano acabariam se cruzando e se complementando.

Experiências de abertura ou fechamento das obras de arte, por exemplo, permitindo

diferentes leituras ou exigindo leituras uniformizadas, estariam, segundo o autor, estreita-

mente vinculadas às diferentes visões de mundo dos artistas nas diferentes épocas e estas

se alimentariam das concepções construídas pelos cientistas naqueles momentos sócio-

históricos. Consideramos que a influência das idéias científicas nas produções literárias em

fins do século XIX, conforme citamos com base em Pinto Neto (2001), exemplificam bem

essas relações.

Page 46: Tese experimentos de botânica

33

Zanetic observa também que um caminho similar é empreendido por Bachelard, na

encruzilhada de suas vertentes epistemológica e poética, ao admitir que o mundo da razão

pode entrar em contato com o mundo da imaginação e que essas duas formas de diálogo

inteligente com o mundo, efetivamente, se tocam em seus momentos de maior inventivida-

de e se complementam na construção total sobre a realidade. Como as idéias de Bachelard

acerca das relações entre as imagens poéticas e o pensamento racional já compõem nossas

referências iniciais, as conexões traçadas por Zanetic contribuem para nossa maior reflexão

sobre elas.

O autor encontra motivação para esses estudos, que propõem uma leitura do bosque

cultural onde se cruzam os caminhos da ciência e da arte, em diversos elementos. Na recu-

sa de um ensino de Física pautado pela exploração excessiva de fórmulas, de conceitos e

de leis, seguida de resolução de exercícios descontextualizados, através do qual nunca são

abordados o significado físico de tais teorias, suas limitações e suas possibilidades de

transformação e de tentativas de diálogo com o cotidiano; nas premissas de que a ciência

tem vários componentes culturais que podem ser trabalhados em sala de aula e de que exis-

tem diferentes dimensões pelas quais o currículo escolar poderia explorar os conteúdos da

Física, articulando elementos históricos, filosóficos e ideológicos, num convite interdisci-

plinar; e ainda na insatisfação pessoal com o fato de que Galileu, Kepler ou Newton, entre

outros incríveis personagens da história da Física, continuem como ilustres desconhecidos

dos alunos e de muitos dos professores. São, sem dúvida, argumentos relevantes que inte-

ressam a todos nós professores, no contexto de nossas disciplinas.

O conjunto de estudos considerados a seguir, voltados para a utilização de textos al-

ternativos no ensino de Física, aborda questões relativas às condições de leitura nas escolas

e às contribuições que textos de diferentes naturezas podem trazer ao ensino de Ciências.

Algumas referências teóricas tomadas em comum por esses artigos são buscadas nos traba-

lhos de Snyders, Apple, Khun, Vygotsky e Orlandi.

Ricon e Almeida (1991) focalizam as relações entre linguagem científica e aprendi-

zagem de Física e as práticas de leitura na escola. Desenvolvem uma análise sobre a intro-

dução de crônicas, poemas e textos de divulgação científica, em aulas de Física, como op-

ção à leitura exclusiva de textos didáticos. O trabalho discute a forma padrão de apresenta-

ção dos conteúdos de Física nos livros didáticos e suas implicações para o ensino; a neces-

sidade de se reconhecer posições ideológicas perante o conhecimento científico e de traçar

Page 47: Tese experimentos de botânica

34

relações entre os conteúdos curriculares ensinados e os contextos político-sociais e a im-

portância de uma perspectiva cultural para o ensino científico.

Através de ensaios com turmas de alunos e de professores experimentando essas

variações de textos e de linguagem, visando avaliar a mediação da leitura nos processos de

aquisição de conhecimentos de Física, os autores observaram a enunciação, por partes dos

sujeitos pesquisados, de conhecimentos e de sentimentos que raramente seriam ventilados

em aulas encaminhadas somente por livros didáticos; evidenciaram assim a possibilidade

do estabelecimento de novas e importantes relações que o uso de tais textos propiciou ao

ensino. Foram observadas também entre os professores envolvidos, tanto uma tendência à

uma interpretação única dos textos literários propostos e ao direcionamento da leitura obje-

tivando uma visão pré-determinada, quanto a não aceitação como corretas de algumas res-

postas inesperadas ou metafóricas dadas pelos alunos. Essa evidência do encerramento em

uma única leitura possível pode ser o reflexo da postura científica que embasa a formação

desses professores e também uma pista da desconsideração, pelos mesmos, do potencial da

linguagem poética para as situações de aprendizagem.

Partindo do uso de textos alternativos no ensino médio de Física, Silva (1997) in-

vestiga como as representações dos professores podem fazer parte da construção de suas

práticas pedagógicas, influenciando a interação com os alunos e, muitas vezes, condicio-

nando aspectos contraditórios no cotidiano de sala de aula.

Almeida & Queiroz (1997) discutem outros aspectos dessa temática, pesquisando

alunos adultos em classes de ensino supletivo e o emprego de fragmentos de um livro de

divulgação científica. Também considerando a importância das representações de alunos e

professores.

Pensando em um projeto de escola que inclua transformações de natureza cultural,

Almeida (1998) pesquisa o papel constitutivo da linguagem na produção científica e desta-

ca relações interessantes entre a alfabetização científica e os textos de divulgação, levan-

tando aspectos e características desses textos e do funcionamento de sua leitura em contex-

to escolar.

Silva e Almeida (1998), analisando as interações discursivas em sala de aula, pro-

movem um confronto entre textos de livros didáticos e de divulgação científica, identifi-

cando as diferentes perspectivas de leitura que tais textos costumam engendrar e suas im-

plicações para o ensino de Física.

Page 48: Tese experimentos de botânica

35

A aproximação e complementaridade entre as questões de investigação e um cru-

zamento das bases teórico-metodológicas desses trabalhos comentados permitem delinear

um movimento de pesquisas em Educação em Ciências, com foco nas questões de lingua-

gem e leitura em contexto escolar, e evidenciar sua consistente produção4. Embora esses

trabalhos estejam voltados em sua maior parte ao ensino de Física no ensino médio, con-

templam a perspectiva do texto literário, e algumas de suas formulações aqui destacadas

são bastante pertinentes às nossas questões de investigação e estarão sendo aproveitadas no

desenrolar de nossa discussão; além disso, como já afirmamos, contribuem para constituir

o campo de pesquisa no qual se insere este trabalho, que se desenvolve com outras bases

teóricas e dirige seu foco de atenção para as ciências do ensino fundamental, notadamente

os conteúdos de Biologia.

Ainda fazendo parte desse movimento de pesquisas, o estudo de Souza (2000) dis-

cute uma proposta de trabalho com o tema fotossíntese em turmas de 8a série do ensino

fundamental. Com uma perspectiva interdisciplinar, levanta interessantes questões sobre

leitura, escrita e experimentação no ensino de Ciências, analisando os efeitos discursivos e

a mediação da linguagem na produção de significados pelos alunos e na construção de seu

conhecimento sobre aquele fenômeno. Tendo em vista a maior aproximação com a nossa

temática, visto tratar de um conteúdo tradicional de Biologia e a interessante articulação de

elementos analíticos que propõe, apresentamos algumas de suas considerações, que se

constituem em contribuições teóricas e metodológicas para as pesquisa desse campo.

O trabalho observa algumas especificidades da linguagem científica e destaca a ne-

cessidade de o ensino escolar propiciar aos alunos o acesso a essa forma de linguagem,

desenvolvendo possibilidades e estabelecendo estratégias de mediação. Em suas bases teó-

ricas foram articuladas considerações da epistemologia, da história da ciência, da lingüísti-

ca e de pesquisas sobre linguagem no ensino de Ciências. Apoiando-se na linha francesa de

análise do discurso, sobretudo em textos de Pêcheux e Orlandi, explora as noções de atri-

buição de sentidos, efeitos de sentido e de condições de produção de textos. Os obstáculos

4 Esse conjunto de trabalhos se desenvolveu em articulação com o Grupo de Estudo e Pesquisa em Ciência e Ensino – gepCE da FE- Unicamp. Vários deles foram apresentados no I e II Encontro de Ensino de Ciência, Leitura e literatura, constituintes do 10o e 11o Congresso de Leitura do Brasil – COLE realizados na Uni-camp, em 1996 e 1997. Os trabalhos apresentados nos dois eventos encontram-se publicados em Cadernos Cedes, ano XVIII, no 41. Campinas, SP: Unicamp/ Cedes, 1997 e Linguagem, leituras e Ensino de Ciência. Campinas, SP: Mercado das Letras, 1998.

Page 49: Tese experimentos de botânica

36

epistemológicos formulados por Bachelard; os fenômenos de continuidades e rupturas ob-

servados por Snyders e o conceito de zona de desenvolvimento proximal postulado por

Vygotsky são tomados como importantes referências, tanto para a elaboração da proposta

de ensino que é desenvolvida, quanto para a análise dos dados obtidos.

A proposta de ensino da autora constituiu-se de uma seqüência de atividades inclu-

indo questões escritas, discussões, atividades práticas, leitura de diferentes textos (didático,

fragmentos de textos originais de diários de cientistas do séc. XVII e poético), apresenta-

ção de vídeo sobre a história do conhecimento sobre fotossíntese e luz e, finalmente, pro-

dução de texto pelos alunos. As análises dos dados obtidos identificaram as concepções

alternativas dos alunos com relação ao fenômeno da fotossíntese e as diferentes relações

que estabeleceram com os diferentes textos trabalhados. Por sua pertinência, destacamos

algumas das conclusões daquela pesquisa:

Partindo do conhecimento dos alunos a respeito da fotossíntese e com a noção de

obstáculos foram observados uma polissemia no emprego de algumas palavras, tendência

ao antropocentrismo, imediatismo nas conclusões e impressão de completude do conheci-

mento. Foram levantadas algumas possibilidades práticas de superação desses obstáculos

identificados e de maior aproximação com o discurso da ciência.

Destacou-se a necessidade do aluno se apropriar do discurso científico e de se criar

situações de aprendizagem escolar exercitando o falar ciência. Algumas idéias sobre “con-

versar ciências” esboçadas por Lemke (1990) foram utilizadas de forma interessante para

as análises das interações discursivas nas atividades de intertextualidade e de leitura com

textos originais dos cientistas: as noções de diálogo triádico, o qual limita e direciona o

diálogo para determinadas questões, e de breaks, provocando rupturas na estrutura da lin-

guagem científica, favorecendo o interesse, a atenção e o diálogo entre os alunos.

Também, uma análise da linguagem dos livros didáticos concluiu que ela se apre-

senta supostamente neutra, pedagogicamente higienizada e mostrando um grande consenso

sobre os produtos científicos que veicula. A leitura de textos originais de cientistas de sé-

culos passados mostrou-se como boa opção para criar pontes entre a linguagem científica e

a linguagem comum e enriquecer aspectos da ciência não contemplados pelos textos didá-

ticos. A autora conclui, ainda, que a leitura é um processo complexo e que trazer a voz dos

cientistas para o ensino de Ciências, através de fragmentos de seus textos originais, favore-

ce uma articulação entre as linguagens e permite deslocamentos de sentidos próximos aos

científicos, potencializando a aprendizagem.

Page 50: Tese experimentos de botânica

37

Tais articulações teórico-metodológicas e conclusões alcançadas por Souza (2000)

são inspiradoras e trazem elementos importantes para a nossa reflexão sobre a temática do

uso de diferentes textos no ensino científico. Sobretudo nos alertam para a importância das

condições de leitura e para o fato de que somente textos diferenciados não garantem leitu-

ras diferenciadas e mais promissoras para a aprendizagem em ciências.

Outra reflexão que se encontra em meio a essa problemática é a relação entre dis-

cursos e ensino de Ciências, configurada por Lopes (1999 e 2000). Considerando que um

educador não tem como se esquivar de refletir sobre importantes aspectos da linguagem, a

autora pontua alguns deles no contexto da epistemologia escolar, também explorando o

conceito de obstáculo verbal postulado por Bachelard (1996a) e as pesquisas sobre a histó-

ria das disciplinas escolares, entre elas, as de André Chervel (1990).

Para Bachelard, existem continuidades e descontinuidades entre o conhecimento

comum e o conhecimento científico e, também, ao longo do próprio desenvolvimento his-

tórico das ciências. Num processo permanente de ruptura, o conhecimento novo se faz na

luta para desconstruir conhecimentos anteriores. O novo se produz suplantando os obstácu-

los epistemológicos. Entre eles, segundo Bachelard e conforme já comentamos, estaria a

linguagem. Pois, a linguagem científica se encontra sempre em um movimento de revolu-

ção semântica, já que a construção de uma nova racionalidade demanda uma nova lingua-

gem. Nos domínios de uma teoria científica que se desenvolve, a desatenção para com os

novos sentidos dos termos empregados torna-se uma barreira à produção do conhecimento

e à sua compreensão.

Também considerados por Lopes estão os estudos de André Chervel (1990) que de-

safiam a noção de que os conteúdos de ensino sejam impostos como tais à escola pela soci-

edade e pela cultura, de forma que ela apenas ensinaria conhecimentos gerados fora dela,

como, por exemplo, a ciência produzida pelos cientistas. A escola não seria, unicamente,

agente de transmissão de saberes exógenos. Para o autor, na tensão entre sua função educa-

tiva e seu compromisso com a instrução, a escola produz e reproduz as disciplinas escola-

res, que se constituiriam por algumas construções puramente escolares, artificiais e, sabia-

mente, colocadas a serviço de interesses diversos. Fruto de um longo diálogo entre profes-

sores e alunos, “as disciplinas são o preço que a sociedade deve pagar à sua cultura para

poder transmití-la no contexto da escola” (p. 222). Nessa perspectiva, entendemos a exis-

tência de especificidades para as manifestações da linguagem científica no universo esco-

lar.

Page 51: Tese experimentos de botânica

38

Por esse caminho teórico, e deixando claro que as ciências de referência e as disci-

plinas científicas escolares, a epistemologia das ciências e a epistemologia escolar, tal co-

mo a linguagem científica e a linguagem científica escolar, ainda que mantendo muitas

aproximações entre si, não coincidem, Lopes (1999 e 2000) afirma a necessidade de pro-

blematizações que busquem compreender as tensões entre linguagem científica, linguagem

comum e linguagem especificamente escolar. Esta última, segundo a autora, construída

pelo professor, para atender às necessidades de didatização do conteúdo científico. Esse

jogo entre linguagens pode ter, segundo é destacado por ela, resultados perigosos, quer seja

porque o domínio da linguagem científica pelo aluno tem servido como critério de aprova-

ção e seleção, mascarando seleções feitas por critérios outros, quer seja porque o ensino,

não discutindo as diferenças entre linguagem científica e linguagem cotidiana, torna o co-

nhecimento esotérico e sem significado para o contexto cultural dos alunos.

Nesse contexto, destacamos, também, que ao discutirmos questões relativas à lin-

guagem científica no âmbito do ensino e da aprendizagem escolar de Ciências, entendemos

as devidas distâncias que se impõem entre essa linguagem e aquilo que dela circula no en-

sino, em sala de aula.

A articulação citada por Lopes, entre o eixo epistemológico e o das necessidades

didático-pedagógicas não é trabalho sem produto. Como nos provoca Geraldi (1991) é nes-

sa articulação que se constrói o conteúdo de ensino e por ela se define a função social do

professor, como articulador e mediador. Tais relações entre o conhecimento científico e o

conhecimento escolar, atravessadas por questões de linguagem, também são discutidas por

Almeida (2004), ao enfocar a Ciência como prática discursiva. Vemos, assim, que as re-

gras desse jogo entre linguagens, que se exerce na escola, as quais entendemos não serem

regras completamente fixadas e que deixam espaços para superação e instalação de novas,

devem e podem ser procuradas e percebidas como uma importante questão para o trabalho

docente. As pesquisas até agora comentadas nesse referencial atestam essa necessidade e

essa possibilidade.

2.2.2 – Bakhtin: Um ponto teórico central

Em Goulart & Colinvaux & Salomão (2003), procedendo a uma análise comparati-

va entre pesquisas sobre aprendizagem com dados de linguagem, já com vistas a definir

Page 52: Tese experimentos de botânica

39

bases analíticas para esse trabalho, destacamos algumas idéias do Círculo de Bakhtin5, no

sentido de identificar, discutir e ampliar as referências bakhtinianas presentes naquelas

pesquisas. Em outro estudo (Salomão, 2003), voltado para a formação continuada de pro-

fessores, também nos apoiamos em noções desenvolvidas pelo Círculo de Bakhtin para

embasar o desenvolvimento de atividades de integração entre ciências e literatura nas sé-

ries iniciais do Ensino Fundamental. A partir dessas referências e reconhecendo a grande

importância atribuída a esse aporte teórico para nossas análises e reflexões, destacamos, a

seguir, seus pontos fundamentais.

No sentido bakhtiniano, a verdadeira substância da língua é constituída pelo fenô-

meno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações (Ba-

khtin/ Voloshinov, 1988). No movimento dos sujeitos nas infindáveis situações de enunci-

ação, os signos – pelo seu caráter vivo, polissêmico e ideologicamente opaco – têm sua

significação determinada nos contextos em que são produzidos. Possenti (2001) reforça

essa idéia ao afirmar ser fato observável em qualquer língua que as palavras não só referem

(ou têm um sentido), mas carregam com elas efeitos de sentido específicos decorrentes de

sua enunciação, porque elas têm uma história, uma origem social, são distribuídas desi-

gualmente pelos interlocutores e pelas circunstâncias. Ou como no dizer do poeta Manoel

de Barros, “palavras têm sedimentos. Têm boa cópia de lodo, usos do povo, cheiros de

infância, permanência por antros, ancestralidades, bosta de morcego etc” (1998).

Historicamente, estes signos vêm-se organizando em linguagens sociais, as quais

caracterizam não só diferentes segmentos sociais, como diferentes campos de conhecimen-

to; são modos como os conhecimentos desses campos se organizam e são expressos. Os

feixes de significações que os signos comportam podem ser estendidos a compreensões

diversas do mundo, tanto construídas na vida cotidiana dos grupos sociais, empiricamente,

quanto na tradição de formação de áreas de conhecimento, como a religião, a ciência, a

filosofia, a arte, o direito, entre muitas outras (Goulart, 2003).

5 Em torno do pensamento de Bakhtin, há uma polêmica com relação à autoria de algumas obras. A revela-ção, nunca devidamente confirmada, de que livros publicados sob a autoria de Voloshinov e de Medvedev teriam sido, na verdade, escritos por Bakhtin é a fonte da polêmica. Esses dois pensadores eram grandes amigos de Bakhtin e com ele formaram um grupo de estudos, durante dez anos, partilhando um amplo con-junto de idéias. A expressão Círculo de Bakhtin, criada por estudiosos desses pensadores, serve para identifi-car o conjunto da obra, no qual a produção de Bakhtin se destaca. Nos textos que produziram, as diferenças e as aproximações entre eles são bastante acentuadas. Em Faraco (2003) e Tezza (2003) encontramos detalhes sobre a questão da autoria e sobre a vida e a obra do Círculo. Nesse trabalho, também usamos essa expressão e faremos menção, quando tratarem-se das obras assinadas por Voloshinov ou Medvedv.

Page 53: Tese experimentos de botânica

40

As linguagens sociais, bem como os gêneros do discurso (estes, organizando os co-

nhecimentos de determinadas maneiras, associadas às intenções e propósitos dos locutores

em diferentes instâncias sociais) são apropriados por meio de enunciados concretos que são

ouvidos e reproduzidos durante a comunicação verbal viva que se efetua entre os sujeitos.

Parece-nos pertinente a reflexão de que o discurso do professor de Ciências, origi-

nado na linguagem científica, seja marcado por gêneros discursivos característicos daquela

esfera de conhecimento, que incluem definições, descrições de objetos, processos e fenô-

menos, entre outros, isto é, mais conceituais, que possuem alguns traços discursivos típi-

cos. O discurso dos alunos deve apresentar, no processo de aprendizagem, marcas de apro-

ximação do conteúdo que está sendo ensinado à sua vida cotidiana, às suas referências con-

textuais mais familiares. Ao mesmo tempo, deve apresentar indícios de apropriação dos

traços característicos do discurso científico que lhes está sendo ensinado. Nosso desafio é

encontrar indicadores para a análise dos enunciados produzidos nas interações de sala de

aula, de modo que possamos compreender melhor aspectos do processo de ensino-

aprendizagem.

Segundo Bakhtin, palavras/enunciados/gêneros entram no repertório lingüístico de

uma pessoa, primeiramente, como palavras/enunciados/gêneros alheios, para aos poucos se

irem incorporando como palavras/enunciados/gêneros próprios. Voltando à Introdução

deste trabalho, é possível lembrar, aqui, as jasmíneas, rubiáceas e outros termos botânicos,

notadamente científicos, que Helena domina, emprega com segurança, como palavras pró-

prias, para impressionar e convencer sua tia Leonor. Podemos pensar que o escritor forne-

ce à locutora palavras do gênero científico, como se fossem verdadeiras armas para as suas

intenções e seus enunciados cotidianos.

Bakhtin destaca, também, o modo como a relação locutor-ouvinte se dá. Para ele, a

compreensão de uma fala é sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa, já que

“toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a

produz: o ouvinte torna-se o locutor” (Bakhtin, 1992, p. 290). O próprio locutor é, em cer-

to grau, respondente. O enunciado é elaborado em função do Outro, em função de sua rea-

ção-resposta, de sua contrapalavra. Para Bakhtin tem suma importância a idéia de que o

enunciado está ligado aos elos que o precedem, mas também aos que o sucedem na cadeia

discursiva.

Lembrando que Possenti (1997) afirma ser o discurso científico um discurso logi-

camente estabilizado, que exige do ouvinte uma determinada direção, podemos imaginar

que, no âmbito da linguagem científica, essa relação locutor-ouvinte envolve uma atitude

Page 54: Tese experimentos de botânica

41

responsiva ativa mais disciplinada, mais específica, de certa forma controlando as contra-

palavras daquele que lê ou escuta, procurando produzir uma leitura unívoca. O referido

aprendizado e formação do cientista consistiria, assim, em desenvolver sua compreensão

mantendo suas contrapalavras dentro de determinados domínios.

A assimilação da palavra do Outro na constituição da linguagem e do ser humano

adquire um sentido profundo ao definir as bases de nossa atitude e de nosso comportamen-

to no mundo, como palavra autoritária e como palavra interiormente persuasiva. Segundo

Bakhtin (2002, p143), “a palavra autoritária (religiosa, política, moral, a palavra do pai,

dos adultos, dos professores, etc) carece de persuasão interior para a consciência, en-

quanto que a palavra interiormente persuasiva carece de autoridade” (grifo nosso), não se

submetendo a qualquer autoridade, sendo freqüentemente desconhecida socialmente (pela

opinião pública, a ciência oficial, a crítica).

Há inter-relação e embates entre tais palavras. A palavra autoritária se encontra u-

nida à autoridade, exigindo de nós o reconhecimento e a assimilação; está ligada ao passa-

do hierárquico. “A palavra autoritária pode organizar em torno de si massas de outras

palavras (que a interpretam, que a exaltam, que a aplicam desta ou de outra maneira),

mas ela não se confunde com elas” (Bakhtin, 2002, p.142,3). Considerando que o presente

estudo incluirá análises de atividades desenvolvidas em sala de aula, onde o professor e os

alunos constroem um discurso produzindo enunciados, a caracterização de tais palavras

nos parece necessária relacionada às demais noções destacadas.

Uma outra relação relevante para o estudo do processo de ensino-aprendizagem em

foco é a de excedente de visão. De acordo com Bakhtin, esse excedente de minha visão

interna e externa do Outro, bem como de meu conhecimento sobre o Outro é condicionado

pelo lugar que ocupo, pelo tempo, pelas circunstâncias; tal excedente contém em germe a

forma acabada do Outro, “cujo desabrochar requer que eu lhe complete o horizonte sem

lhe tirar a originalidade” (Bakhtin, 1992, p. 45). Em suma, o Outro é capaz de nos olhar

de um lugar que nos é inacessível e, assim, pode nos dar o acabamento, impossível a cada

um de nós – pelo processo de identificação, proporcionamos o princípio de acabamento do

Outro. Pensando no contexto de sala de aula, podemos perguntar de que modo o professor

se relaciona com os alunos, seus saberes e equívocos e seus esforços de compreensão?

A consideração do excedente de visão comporta as idéias de exotopia e de alterida-

de, importantes para o ato de compreensão. Exotopia – o olhar de fora que possibilita o

excedente de visão - no tempo, no espaço ou na cultura. E na perspectiva de aproximar

textos literários e textos científicos, tecidos sob diferentes lógicas, podemos nos valer das

Page 55: Tese experimentos de botânica

42

afirmações de Bakhtin acerca da literatura, transpondo-as para as produções científicas,

tomando a ciência como prática de cultura e o texto científico como um objeto cultural.

Para Bakhtin (1992), na cultura, a exotopia é o instrumento mais poderoso da com-

preensão, pois a cultura alheia só se revela em sua plenitude e em sua profundidade aos

olhos de outra cultura. Um sentido revela-se em sua profundidade ao encontrar e tocar ou-

tro sentido, um sentido alheio. Formulamos a uma cultura alheia novas perguntas que ela

mesma não se formulava. Buscamos nela respostas às nossas perguntas, e a cultura alheia

nos responde, revelando-nos seus aspectos novos, seus novos sentidos. No encontro dialó-

gico de duas culturas, cada uma conserva sua própria unidade e totalidade e se enriquecem

mutuamente.

Outro aspecto a destacar dos estudos do pensador russo, e que nos serve para articu-

lar os dois eixos de discussão desse trabalho – ciência e literatura / linguagem e aprendiza-

gem, é o movimento exterioridade/interioridade que o leva a postular que é a expressão

verbal que organiza o pensamento. Daí, para o enfoque deste estudo, é possível depreender

a importância de atividades de produção de linguagem para a construção do conhecimento,

e, por extensão, para o dimensionamento e a avaliação pelo locutor-ouvinte do conhecido e

do desconhecido, ou do pouco conhecido, sobre o tema abordado, por meio da elaboração

do discurso.

Na perspectiva da construção do conhecimento, também a interdiscursividade e a

intersubjetividade, fundadas no princípio dialógico da linguagem, ganham relevância. As

temáticas abordadas nas salas de aula contribuiriam para a ampliação do conhecimento de

mundo dos alunos (e dos professores), levando-os a constituir, associados aos diferentes

conteúdos curriculares, novas formas de organizar e entender o mundo, por meio da apro-

priação, da elaboração e do entrecruzamento de novas linguagens e de novos gêneros dis-

cursivos (Goulart, 2003).

As interações discursivas em sala de aula, onde acontecem o confronto e o encontro

de conhecimentos de professores e alunos, trariam à tona, revelando-a, o que Bakhtin de-

nominou de dialética interna do signo. Na direção desse trabalho, estamos concebendo tal

dialética no entrecruzamento das linguagens sociais cotidiana, científica e literária, obser-

vando no processo de ensino/aprendizagem como a interdiscursividade e a intersubjetivi-

dade, expressas nos gêneros discursivos utilizados em sala de aula, se manifestam nas inte-

rações discursivas, aproximando e afastando aquelas linguagens, destacando aspectos do

processo de aprender e ensinar Ciências.

Page 56: Tese experimentos de botânica

43

O plurilingüismo da linguagem literária, isto é, a sua constituição no entrelaçamen-

to de múltiplas linguagens é detacado por Bakhtin (2002) como um grande valor social. Da

mesma forma, podemos conceber um certo plurilingüismo na linguagem de um modo ge-

ral, na medida em que esta se constitui com as palavras de outros, desde a gênese: “Esse

processo de luta com a palavra de outrem e sua influência é imensa na história da forma-

ção da consciência individual. Uma palavra, uma voz que é nossa, mas nascida de outrem,

ou dialogicamente estimulada por ele, mais cedo ou mais tarde começará a se livrar da

palavra do outro. Este processo se complica com o fato de que diversas vozes alheias lu-

tam pela sua influência sobre a consciência do indivíduo – da mesma maneira que lutam

na realidade social ambiente” (p.143).

Bakhtin (1998) apresenta três categorias básicas de criação do modelo da lingua-

gem no romance que consideramos produtivas para conceber os processos de constituição

da linguagem dos sujeitos: hibridização; inter-relação dialogizada das linguagens e diálo-

gos puros. As duas primeiras categorias nos parecem relevantes para abordar a constituição

do discurso no processo de ensino-aprendizagem. A hibridização seria a mistura de, no

mínimo, duas linguagens sociais no interior de um único enunciado. No caso da literatura,

o modelo de linguagem é postulado como um híbrido lingüístico intencional, isto é, um

sistema de fusão de línguas literariamente organizado, um sistema que tem por objetivo

esclarecer uma linguagem com a ajuda de outra, plasmar uma imagem viva de uma outra

linguagem, uma dialogização das linguagens. Podemos observar esse processo no texto da

Lição de Botânica. Segundo Bakhtin, o texto literário, notadamente o romance, requer uma

expansão e aprofundamento do horizonte lingüístico, um aguçamento de nossa percepção

das diferenciações sócio-lingüísticas.

O autor afirma que uma hibridização involuntária, inconsciente, é uma das modali-

dades mais importantes da existência histórica e das transformações das linguagens. “No

fundo, a linguagem e as línguas se transformam historicamente por meio da hibridização,

da mistura das diversas linguagens que coexistem no interior de um mesmo dialeto, de

uma mesma língua nacional, de uma mesma ramificação, de um mesmo grupo de ramifi-

cações ou de vários, tanto no passado histórico das línguas, como no seu passado paleon-

tológico, e é sempre o enunciado que serve de cratera para mistura” (Bakhtin, 2002, p.

157).

Umberto Eco (2003), ao destacar a função da literatura em manter em exercício a

língua como patrimônio coletivo, reforça essa reflexão de Bakhtin sobre o fenômeno de

hibridização da linguagem, observando que a língua, por definição, vai aonde ela quer e

Page 57: Tese experimentos de botânica

44

nenhum poder pode barrar o seu caminho ou desviá-la por decreto, mas que mesmo indo

para onde quer, a língua é sensível às sugestões da literatura. E podemos pensar que ela, tal

qual a literatura, aceita também sugestões da ciência.

Podemos especular ainda que a linguagem de cada um de nós se construa e se trans-

forme no mesmo movimento de hibridização pela palavra do Outro, atravessada por gêne-

ros discursivos diversos, fundados também em diversas linguagens sociais. Assim, pode-

mos considerar que, no espaço da aula de ciências, o trabalho do professor seria fazer com

que os alunos tomem conhecimento e se apropriem de uma linguagem social, a científica,

como um modo valorizado socialmente de compreender e explicar fenômenos de variados

tipos. Nesse processo a tensão entre as compreensões/explicações dos alunos, construídas

no cotidiano, e a do professor, fecundada no conhecimento da ciência, deve gerar enuncia-

dos heterogêneos/híbridos, entrevistos em índices sintáticos, lexicais e composicionais.

Paulatinamente, poderiam ser identificadas em tais enunciados de modo mais intenso as

características da linguagem social do discurso científico – palavras próprias!

E a literatura, como entraria neste cenário? O plurilingüismo da linguagem literária,

postulado por Bakhtin, ao nosso ver, reforça o papel relevante que o trabalho com textos

literários pode ter na escola, por mostrar a realidade, ou modos de conceber aspectos da

realidade, para além do que está posto, levando os leitores a compreenderem que o ser hu-

mano, a sociedade, o mundo podem ser diferentes. Nessa direção, ao emparelharmos a

linguagem literária com a linguagem científica, pressupomos que a lida com a primeira

pode vir a potencializar a aprendizagem da segunda.

2.2.3 – Pesquisas sobre aprendizagem e linguagem

Considerando-se que um dos objetivos desse trabalho é a investigação do papel po-

tencializador de textos literários na aprendizagem de conteúdos científicos, as concepções

de aprendizagem e suas relações com a linguagem se colocam como um dos eixos para

discussão, conforme foi apontado. Com que premissas e fundamentos teóricos esses fenô-

menos têm sido abordados nas pesquisas em Educação em Ciências?

A aprendizagem é por essência um conceito da psicologia e um antigo objeto de es-

tudo dessa ciência. Colinvaux (2003a) destaca que, independentemente de suas diferenças

metodológicas e interesses diversos de investigação, todas as tradições teóricas da psicolo-

gia compartilham uma noção básica de aprendizagem como o processo pelo qual ocorrem

mudanças duradouras nas estruturas, nos processos e nos mecanismos psicológicos, mu-

danças essas resultantes principalmente da experiência, isto é, de fatores externos ao indi-

Page 58: Tese experimentos de botânica

45

víduo. Diferindo-se, assim, do fenômeno de desenvolvimento, o qual dependeria de fatores

internos ou endógenos ao próprio indivíduo.

O que distinguiria então, em linhas gerais, as diferentes tradições teóricas de apren-

dizagem seria o papel que o sujeito da aprendizagem desempenha nesse processo. A tradi-

ção comportamentalista da psicologia, comumente associada à expressão “teorias de a-

prendizagem”, considera que só se encontram acessíveis para análise as respostas (condu-

tas, comportamentos, respostas) aos estímulos dados e que sobre o que se passa na mente

do sujeito envolvido no processo de aprender não se pode tratar.

Tal perspectiva teórica começou a ser questionada em meados do século XX, e o

fenômeno da aprendizagem passa a comportar outros significados, segundo os quais as

variáveis do sujeito que aprende interferem no processo. Com essa nova orientação, o fun-

cionamento da mente humana passa a ser hipotetizado, para que se possa compreender as

relações que se estabelecem entre o sujeito e os estímulos externos. Reconhece-se que en-

tre o ensino e a aprendizagem há um indivíduo que pensa, interpreta, atribui sentido aos

conteúdos trabalhados, às idéias e aos materiais que lhe são apresentados. As novas ques-

tões formuladas sobre essa base cognitiva têm contribuído para constituir uma perspectiva

construtivista para a aprendizagem escolar.

Referindo-se a essa questão, Pozo (1998) reforça a consideração de que nos últimos

anos a psicologia científica produziu uma importante mudança de orientação. A psicologia

comportamentalista ou condutista, até então hegemônica nesse campo de estudos, começou

a perder o seu domínio, vendo se fortificar um novo enfoque, conhecido como psicologia

cognitiva, que pode ser representado pela noção de processamento de informação.

O autor chama a nossa atenção para o fato de que a maior parte dos campos de pes-

quisas em psicologia, incluindo memória, atenção, inteligência, interação social e emoção,

foi abarcada por essa nova orientação. Mas destaca que, na área da aprendizagem, o pró-

prio programa cognitivo manteve um certo afastamento, deixando essa área de estudos por

muito tempo aberta para os condutistas, que sempre a tiveram como um de seus assuntos

preferidos. O que pode ser bem evidenciado pelo volume de obras de referências sobre

aprendizagem, nas bibliotecas pedagógicas, que têm a postura condutista como base teóri-

ca. Mais recentemente, como já assinalamos, a psicologia cognitiva volta seu interesse para

o fenômeno da aprendizagem, procurando alternativas e viabilizando a elaboração de no-

vas referências teóricas e, ainda, revalorizando as explicações cognitivas dos processos de

aprendizagem já propostas, anteriormente, por alguns psicólogos.

Page 59: Tese experimentos de botânica

46

A aprendizagem pode ser considerada como um conceito central para a educação e

para os processos pedagógicos e didáticos, visto que a ação de ensinar tem como objetivo

último promover processos de aprendizagem e deles colher resultados. Mas, conforme ana-

lisa Colinvaux (2003a), a despeito dessa importância e de toda expectativa social deposita-

da na escola como locus privilegiado de sua promoção, a aprendizagem se mantém ainda,

em muitos meios educacionais, como uma idéia esquiva, pouco refletida e pouco analisada,

sendo quase sempre tomada na base de suposições.

Essa espécie de estabilização da idéia de aprendizagem se justifica, segundo a auto-

ra, pois existiria já sedimentado, norteando o trabalho dos professores nas escolas e os di-

versos níveis da gestão das políticas públicas de educação, com reflexos nos currículos e

programas de ensino, um ideário ainda bastante tradicional, que comporta uma noção de

aprendizagem aparentemente bem definida e pouco problematizada. Nessa perspectiva, a

aprendizagem é vista como inteiramente subordinada ao ensino, sendo o fenômeno de a-

prender entendido como um efeito final, uma decorrência lógica e imediata da ação de en-

sinar que lhe é anterior. Essa expectativa é uma fonte permanente de angústia para os pro-

fessores, que às vezes não vêem seus empenhos para com o ensino devidamente retribuídos

com a aprendizagem alcançada pelos alunos. E, ao que nos parece, no contexto escolar, tal

vinculação do aprender ao ensinar tem resistido às orientações alternativas da psicologia

cognitiva, como o movimento construtivista, que propõem uma mudança de postura para o

ensino procurando resgatar o pólo da aprendizagem.

Subestimando a complexidade das relações entre ensino e aprendizagem, essa con-

cepção mais sedimentada de aprendizagem escolar atribui ao processo de aprendizagem

algumas características marcantes que, em algum sentido, podem se mostrar ilusórias e

equivocadas: (i) ser um evento previsível e controlável, o que implica na organização dos

currículos e dos programas de ensino, com a tentativa de regulação dos conteúdos e dos

tempos a eles reservados; (ii) avançar passo-a-passo de forma linear e cumulativa, sempre

na direção do concreto ao abstrato, do simples ao complexo e do particular ao geral; (iii)

comportar pontos de chegada e (iiii) ser passível de medição ou avaliação, que em geral

tem seu resultado aferido de forma dicotômica, pela qual seria considerado que o aluno

aprendeu ou que não aprendeu.

São características que conferidas à aprendizagem suscitam muitos conflitos e con-

tradições no cotidiano da vida escolar. Em um movimento de problematização desses as-

pectos, Colinvaux (2003a) sugere algumas pistas para que as noções sobre aprendizagem

Page 60: Tese experimentos de botânica

47

escolar possam ser refletidas, resignificadas, constituindo-se uma outra perspectiva que

possa proporcionar orientações mais promissoras e melhores resultados. Uma primeira

consideração é procurar uma outra forma de conceber as relações entre ensino e aprendiza-

gem – comumente vistas como subordinação da aprendizagem ao ensino, procurando reco-

nhecer que, mesmo intimamente interligados, tais processos guardam entre si uma relativa

autonomia, e que a aprendizagem não se explica completa e exclusivamente como efeito

do ensino.

Como contraponto à visão de que a aprendizagem é sempre um evento previsível e

controlável, e que para ser bem sucedida carece de ser regrada, a autora cita o exemplo das

pesquisas recentes em educação que têm focalizado a aparente liberdade da aprendizagem

que acontece fora das escolas, em contextos não formais de educação, como centros de

ciências e museus. Experiências de aprendizagem que, mesmo despojadas da extensiva

regulação que se tem em contexto escolar, promovem aprendizagens significativas.

Quanto a avançar passo a passo de forma linear e cumulativa, seguindo sempre em

certas direções, algumas questões relevantes podem ser apresentadas, contornando equívo-

cos de interpretações teóricas e aproveitando resultados de estudos que têm sido empreen-

didos, envolvendo diferentes disciplinas nos diferentes graus de ensino. Colinvaux (2003b)

considera que o vetor que indica, para o caminho da aprendizagem, a direção do concreto

ao abstrato, implicando, por exemplo, em que as crianças menores devem se restringir a

trabalhos com material concreto, é traçado por uma visão redutora de alguns pressupostos

teóricos de Piaget e de Vygotsky.

Os estágios de desenvolvimento psicológico/cognitivo e a noção de pensamento

formal, propostos pelo primeiro, e a diferenciação dos graus de elaboração de conceitos

pensada pelo segundo, mais do que apontar para impossibilidades e existência de limita-

ções, podem mostrar as potencialidades do pensamento humano em cada momento de sua

trajetória de desenvolvimento e criar expectativas positivas e estimulantes e não, propria-

mente, restritivas. Além disso, é passível de questionamento a noção de que a trajetória de

desenvolvimento, e podemos pensar de um determinado processo de aprendizagem, se

encerra para todos os indivíduos com a chegada a um único e mesmo ponto. Ponto final

que, idealizado pela racionalidade e ótica ocidentais modernas, tem sido configurado como

formas de pensamento abstrato.

A idéia de a aprendizagem seguir do simples ao complexo, que serve para orientar a

organização dos currículos e dos programas de ensino, também guarda seus problemas. O

Page 61: Tese experimentos de botânica

48

fato de o conhecimento se desenvolver passo a passo, de modo linear e cumulativo, pode

ser questionado tanto com argumentos da psicologia como da epistemologia. E, hoje, ou-

tros modelos mais complexos como redes ou sistemas estão sendo pensados como alterna-

tivas à idéia do caminho único, reto e linear para a construção dos conhecimentos.

O ponto de partida e o ponto de chegada do processo de aprendizagem têm sido

considerados com a visão de que o aprender deve ir do particular ao geral, iniciando-se

pela realidade e experiência concreta e particular do aluno e dirigindo-se para as necessi-

dades e exigências da vida cotidiana e social. A perspectiva construtivista assume as no-

ções prévias dos alunos sobre o tema a ser estudado como ponto de partida da aprendiza-

gem significativa, promovendo vínculos substantivos e produtores de sentido com a nova

informação.

Apesar disso, duas contradições podem ser apontadas aqui: muitas vezes, nem as

experiências dos alunos são devidamente valorizadas como forma efetiva de conhecimento

e nem suas noções prévias, que precisam ser confrontadas com o novo a ser aprendido, são

bem aproveitadas para as situações de ensino, como assinala as pesquisas de Aisenberg

(1994). Além disso, a aprendizagem escolar precisa gerar conhecimentos socialmente valo-

rizados e de aplicação prática para o mundo da vida, mas o ponto de chegada da aprendi-

zagem precisa também poder ampliar os horizontes culturais e fortalecer o interesse dos

alunos pelo conhecimento, o que pode ser representativo para toda a vida.

A última característica da aprendizagem pontuada no início dessa problematização

é poder ser medida ou avaliada, o que em geral, vendo sendo feito de forma dicotômica,

pela qual consideramos que o aluno aprendeu ou não aprendeu. Os processos de avaliação

escolar, institucionalmente pressionados, e seus resultados, muitas vezes, complicados,

injustos e sofridos evidenciam a importância dessa questão para o universo pedagógico. Os

acirrados debates sobre avaliação, entre os professores, talvez deixem passar despercebida

essa interessante hipótese, de que, devido à sua complexidade, a aprendizagem não é tão

facilmente evidenciada dentro dos diferentes campos de conhecimento e que os alunos,

necessariamente, podem chegar a diferentes estágios de significação dos conteúdos curri-

culares.

Na problemática desse trabalho, estamos considerando como ponto de partida a vi-

são de aprendizagem que o movimento construtivista de educação em ciências

(MCA/Movimento das Concepções Alternativas em Ciências) tem procurado delinear.

Aprendizagem é um processo permanente que envolve a produção/criação de novas signi-

Page 62: Tese experimentos de botânica

49

ficações e ocorre por caminhos diversos tanto em sala de aula como em outros contextos

sociais.

Conjugando-se essa visão com algumas das observações sobre os diversos aspectos

da aprendizagem, aqui problematizadas com base em Colinvaux (2003a e 2003b), tem-se

que aprendizagem é um processo multi-facetado (cognitivo, social, lingüístico e afetivo) e

multi-determinado (fatores de ordem social, institucional, curricular, do professor e do alu-

no); pode evoluir por diferentes trajetórias ou percursos (linear, passo-a-passo, ou rupturas,

revisões, ampliações); pode se dar em distintos e inusitados espaços (escolar ou não esco-

lar) e em diferentes instâncias de tempo (tempo uniformizado das tarefas escolares e o

tempo da cognição de cada indivíduo).

Nesse percurso de lapidar uma concepção de ensino e aprendizagem em Ciências

que reserve espaços para a inserção de textos literários, outros aspectos sobre esses com-

plexos fenômenos podem estar sendo considerados. Nos trabalhos de Driver (1987), Guns-

tone (1988) e Reiner (2001), voltados para a mudança conceitual, encontramos aproxima-

ções teóricas e conclusões de pesquisas em ensino de Ciências que tratam da força, da re-

sistência e da importância das idéias e crenças que os alunos trazem sobre os objetos de

estudo científico e das relações entre aprendizagem e currículo. São estudos que evidenci-

am diferentes direções em que a aprendizagem pode se dar e sugerem a inserção dos con-

teúdos de ensino em contextos mais amplos de relações e de conhecimento, destacando a

necessidade de propostas curriculares de ensino de Ciências mais flexíveis.

A pesquisa em educação em ciências tem refletido, também, sobre o lugar da lin-

guagem nos processos escolares de aprendizagem, estudando questões relativas ao funcio-

namento da linguagem nas situações de ensino-aprendizagem e discutido a dinâmica das

interações discursivas em aulas de ciências, como já foi considerado na apresentação da

problemática desse trabalho. Mostramos, a seguir, um breve painel com considerações so-

bre alguns desses estudos, os quais utilizam em suas análises, entre outras referências teó-

ricas, noções do Círculo de Bakhtin.

O estudo de Mortimer & Machado (1997), voltado à aprendizagem por mudança

conceitual no ensino médio de Química, tem suas bases teóricas, sobretudo, nas noções de

níveis interpsicológico e intrapsicológico dos processos psicológicos, traçados por Vy-

gotsky; de diferentes linguagens sociais, polissemia, dialogismo, discurso de autoridade e

discurso internamente persuasivo, pensadas por Bakhtin; e de dualismo funcional dos tex-

tos, desenvolvida por Lotman.

Page 63: Tese experimentos de botânica

50

A análise dos enunciados produzidos pelas interações discursivas nas aulas de ciên-

cias observadas distinguiu, com base em Lotman, as funções dos enunciados em unívoca e

dialógica e, também, observou a sua alternância e confronto, ao longo das enunciações. A

noção dos diferentes tipos de funcionamento dos enunciados foi ampliada com os critérios

estabelecidos por Bakhtin para distinguir diferentes gêneros de discurso, entre eles o “con-

teúdo referencialmente semântico” e o “aspecto expressivo das enunciações”. Analisar a

alternância entre os discursos da professora e dos alunos permitiu mostrar que o uso de

estratégias de ensino que partem da utilização de conflito cognitivo exige, além de um bom

desenho da atividade a ser realizada, um movimento discursivo adequado para implemen-

tá-la.

Machado (1999) e Machado & Colinvaux (2000), analisando o ensino médio notur-

no de Biologia, percebem que o processo escolar de ensino-aprendizagem pode ser caracte-

rizado por movimentos que se configuram pelo trânsito e fluxo de significados em sala de

aula. Estes movimentos foram interpretados a partir de Bakhtin, em termos de polifoni-

a/polissemia.

Machado (2000) investiga o processo de construção de conceitos químicos, bus-

cando os traços dos diálogos que se constituem na sala de aula. É grande a importância de

Bakhtin como referência teórica para a pesquisa, principalmente com as noções de vozes,

palavra própria, palavra alheia, palavra autoritária e compreensão responsiva ativa. A

postulação de Vygotsky de que a linguagem e a cognição constituem-se mutuamente é

pedra angular para a reflexão desenvolvida.

A autora destaca a essencialidade das interações sociais para a constituição do

sujeito e de suas elaborações conceituais, caracterizando a atividade cognitiva através da

mediação pelo outro e pelas palavras. Assim, a linguagem assume, além de sua função de

instrumento de comunicação, um papel constitutivo na elaboração de conceitos e na

construção do conhecimento científico. Destaca-se a importância que deve ser dada à

realização e ao acompanhamento de atividades práticas em grupos; e, confirmando idéias

já presentes na perspectiva piagetiana e no movimento construtivista de educação em

Ciências, caracterizam-se as dificuldades que surgem nessas atividades como próprias e

necessárias ao processo de produção de conhecimento, deixando de ser entendidas como

erros, entraves ou desvios.

Guimarães (2000) analisando, em aulas de ciências na 7a série do ensino fundamen-

tal, as diversas seqüências do padrão discursivo descrito por I-R-F – no qual I corresponde

Page 64: Tese experimentos de botânica

51

à iniciação do diálogo pelo professor, geralmente através de uma pergunta, R à resposta

dada pelos alunos e F ao feedback oferecido pelo professor a essa resposta – apresenta tre-

ze categorias de classificação de feedback, relativas aos usos que o professor faz das inter-

venções orais dos alunos nas seqüências I-R-F observadas; e quatro tipos de seqüências ou

ciclos de aula, configurados a partir do encadeamento de categorias e padrões I-R-F em

aulas dialogadas. A reflexão desenvolvida sobre os movimentos de construção dos enunci-

ados nas aulas destaca a relevância da dimensão lingüística e aponta para as estratégias

docentes e discentes que viabilizam a construção e a reconstrução de significados para os

conteúdos científicos.

Dumrauf & Cordero & Colinvaux (2001) utilizam a noção bakhtiniana de gênero

discursivo para investigar o ensino e a aprendizagem de conteúdos de Física, no ensino

superior da Argentina, focalizados em uma modalidade de aula teórica denominada teórico

dialogado. As práticas discursivas do corpo docente envolvido na aula foram analisadas

com vistas a se identificar aspectos específicos do contexto de sala de aula que pudessem

caracterizar um gênero discursivo pedagógico. Foram identificados, nas intervenções do-

centes, aspectos epistemológicos, pedagógicos e sociológicos que se julgou poderem carac-

terizar um gênero próprio para aquele contexto de educação formal de ciências, evidenci-

ando através desses movimentos discursivos o processo de construção do conhecimento

através da linguagem.

Complementam esse conjunto de referências estudos que envolvem categorias de

análise multidimensional. Com tal abordagem, Duit (1999) discute visões de aprendizagem

em ciências por mudança conceitual, que integram questões racionais e afetivas, e focaliza

a aprendizagem em vários níveis. O autor, que não vê as diversas concepções teóricas –

behavioristas, construtivistas e sócio-construtivistas como rivais – e, sim, como comple-

mentares, considera a importância de se desenvolver visões de multiperspectivas para subs-

tituir o que considera visões monísticas de ensino e aprendizagem em Ciências. A comple-

xidade de tais fenômenos, segundo ele, demanda um olhar com maior amplitude e que fo-

calize tanto a dimensão racional como a dimensão afetiva dos alunos, o que comportaria

levar em maior conta, nas atividades de ensino, aspectos como sua motivação, interesses e

crenças.

Já em Goulart & Colinvaux & Salomão (2003), apresentamos uma análise compa-

rativa entre três pesquisas com dados de linguagem que, também, percorrem essa trilha e

desenvolvem estruturas analíticas multidimensionais. Dois desses estudos, Leander &

Page 65: Tese experimentos de botânica

52

Brown (1999) e Mortimer & Scott (2002) remetem-se ao ensino e aprendizagem de Ciên-

cias e empregam noções bakhtinianas. O primeiro procurou articular em uma estrutura

analítica as dimensões cognitiva, social, afetiva, discursiva e institucional, que atuam nas

interações discursivas. Para cada uma delas, ao longo das interações, observaram-se dinâ-

micas de estabilidades e instabilidades. A dialogicidade dos discursos expressa a estabili-

dade/instabilidade da linguagem, tensionada por forças centrípetas e de forças centrífugas.

Puderam ser evidenciados os movimentos realizados e as posições ocupadas pelos alunos

no que os autores caracterizaram pela metáfora da dança das instabilidades/estabilidades,

que ocorre em sala de aula.

Já Mortimer & Scott (2002), voltados para a formação inicial e continuada de pro-

fessores, desenvolveram uma ferramenta teórico-metodológica para análise da forma como

os professores podem agir para conduzir as interações discursivas, visando a construção de

significados científicos pelos alunos. A estrutura analítica formulada inter-relaciona cinco

aspectos da atuação do professor – intenções, conteúdo discursivo, abordagem comunicati-

va, padrões de interação e intervenções. No decorrer das seqüências de ensino, observou-se

a emergência de um padrão cíclico nos uso das abordagens comunicativas (dialógicas, de

autoridade, interativo, não interativo), vinculado a um padrão rítmico de seqüência de ati-

vidades implementadas. Configurou-se, assim, uma interessante espiral de ensino, consti-

tuídas por ciclos sucessivos de abordagens comunicativas, ao longo dos quais observa-se

uma transformação das idéias cotidianas dos alunos, em direção a uma visão científica so-

bre o tema abordado, evidenciada, sobretudo pela transformação, também progressiva, em

sua maneira de falar sobre eles. Esses três estudos são exemplos de tentativas de lidar com

a complexidade do fenômeno de aprendizagem, produzindo formas analíticas capazes de

apreendê-lo em suas várias dimensões.

Os estudos aqui discutidos apresentam subsídios teórico-metodológicos e observa-

ções para enriquecer a reflexão sobre a importância da linguagem nos processos de ensino

e aprendizagem de Ciências. Sua proximidade com o presente trabalho se confirma, ainda,

por empregarem noções bakhtinianas com as quais estamos lidando e por destacarem ques-

tões que, também, se pronunciam em nossas análises, como a autoridade do discurso cien-

tífico e os caminhos da apropriação da linguagem científica pelos alunos.

Page 66: Tese experimentos de botânica

53

Page 67: Tese experimentos de botânica

54

3 - NO CAMINHO DA ESFINGE

“A certa distância estava uma ‘vaquinha’ pastando.

Era o nome que, no sítio, Pedrinho dava a certo besouro de pintas amarelas que o Visconde dizia ser um ‘coleóptero’.”

Monteiro Lobato

3.1 – O trabalho empírico a partir da Lição de Botânica

Com o objetivo de vivenciar a inserção de um texto literário em aulas de Ciências

para fins de análise, desenvolvemos com duas turmas de 6a série do Ensino Fundamental

um conjunto de atividades a partir da peça Lição de Botânica. Como campo empírico para

a pesquisa contamos com a Escola Estadual Municipalizada Polivalente Anísio Teixeira,

em Macaé, RJ, que atende a alunos de 5a a 8a séries do Ensino Fundamental. No ano de

2004, quando foi implementado o trabalho, contava com cerca de 1200 alunos em um total

de 32 turmas, funcionando nos turnos da manhã e da tarde. A escola estava comemorando

em 2004, 25 anos de fundação.

Procurando uma maior integração do tema da peça com a proposta curricular das

turmas envolvidas, o trabalho foi planejado para as turmas de 6a série, visto que os conteú-

dos de classificação biológica e de Botânica têm sido tradicionalmente estudados nesta

série. Após contatos com um dos professores de Ciências que atua em quatro das, então,

oito turmas de 6a série da escola – todas no turno da tarde – e a confirmação de seu interes-

se e disposição em participar da pesquisa, iniciamos os trabalhos que seguiram o crono-

grama abaixo.

Atividades Data

Reuniões com o professor regente Mês de fevereiro de 2004 Atividades com os alunos Turma 601 Turma 603

Aplicação da Atividade no 1 01/03 01/03 Aulas sobre classificação dos seres vivos x 01/03

Aula sobre flores e polinização 01/03 04/03 Apresentação da peça e discussão com a turma 08/03 08/03

Aplicação da atividade no 2 10/03 11/03 Aplicação da atividade no 3 e prática de dissecção de flores 15/03 15/03

Montagem do herbário Mês de abril Mês de abril

Page 68: Tese experimentos de botânica

55

Comentários sobre as atividades:

I – Reuniões da pesquisadora com o professor de Ciências das turmas, para planejamento

das atividades.

Foi feita uma apresentação mais detalhada da proposta de pesquisa e de seus objeti-

vos. O professor mostrou o que já estava desenvolvendo, como primeiro tópico do pro-

grama de ensino, e houve uma negociação no sentido de adequar a continuidade das aulas

em função do que se pretendia com a pesquisa. Fizemos o planejamento conjunto de um

cronograma de atividades para as duas turmas e de aspectos do trabalho que não estavam

ainda completamente definidos.

A escolha das turmas 601 e 603 para serem envolvidas na pesquisa se deu em fun-

ção da maior adequação do horário das aulas de ciências daquelas turmas.

Na primeira reunião, o professor recebeu uma cópia do texto da peça para leitura e

indicação de suas observações, destacando o que considerasse relevante para os objetivos

do estudo. Na reunião seguinte, ele apresentou seus comentários sobre o texto, indicando

algumas passagens que considerou mais interessantes com relação às idéias de ciência e de

linguagem científica.

II – Aula para aplicação da atividade no1.

A atividade no1 se constituiu de um questionário para ser respondido individual-

mente, com oito questões relativas às características e à importância da ciência, à lingua-

gem científica, à classificação dos seres vivos e à função das flores para os vegetais (cópia

no anexo 1).

Na turma 603, essa atividade foi aplicada anteriormente à primeira das três aulas

planejadas pelo professor e permitiu levantar noções prévias dos alunos sobre os itens a-

bordados, configurando-se em um pré-teste; já para a turma 601, a aplicação foi realizada

após a primeira das aulas planejadas, não tendo, assim, funcionando como pré-teste para as

questões relativas à função das flores para os vegetais e, possivelmente, tendo ocorrido

influência das aulas nas respostas sobre as características e importância da ciência e sobre a

linguagem científica.

III – Realização de três aulas ministradas pelo professor, com a presença da pesquisadora.

As três aulas tiveram o objetivo de dar continuidade ao tópico inicial do programa

planejado pelo professor, e que já estava sendo trabalhado com as turmas, procurando in-

tegrar o texto literário ao estudo desse tópico e, ainda, visou a abordar alguns conceitos e

Page 69: Tese experimentos de botânica

56

termos científicos que iriam aparecer no texto da peça e cujo conhecimento havíamos con-

siderado interessante para que os alunos aproveitassem melhor a sua apresentação. Inclu-

ímos aqui, a “questão do perianto”, o fenômeno da polinização e algumas características

da família das Gramíneas.

Na turma 601 acompanhamos as aulas, efetuando registros em caderno de campo, e

na turma 603 foram feitos registros em caderno de campo e em videogravações, que foram

posteriormente transcritas.

IV - Apresentação da peça Lição de Botânica para as turmas envolvidas.

Com a participação de cinco alunos do Ensino Médio do Colégio Módulo, escola da

rede privada de Macaé, RJ, na qual a pesquisadora atuava na época como professora de

Biologia, foi montada uma apresentação da peça Lição de Botânica. Os alunos convidados

para compor o elenco estavam cursando a 2a ou a 3a séries do Ensino Médio e já haviam

participado, em anos anteriores, de atividades cênicas envolvendo poesia, desenvolvidas

pela pesquisadora naquela escola. Durante os meses de janeiro e fevereiro o grupo adaptou

e estudou o texto da peça, realizou os ensaios e planejou e produziu o figurino e a cenogra-

fia.

A montagem foi apresentada na biblioteca da E.E.M. Polivalente Anísio Teixeira,

em duas sessões separadas para as turmas 601 e 603, no horário previsto para as aulas de

Ciências.

Após cada apresentação, realizamos com a turma uma discussão sobre a peça para

captar as impressões dos alunos acerca de alguns aspectos que foram destacados. As duas

apresentações e as respectivas discussões foram registradas em videogravações e foram

transcritas (fotos das apresentações estão mostradas no segmento de análise sobre as dis-

cussões).

V – Aula para aplicação da atividade no 2.

A atividade no 2 se constituiu de um questionário a ser respondido em duplas, com

oito questões relativas ao conteúdo da peça Lição de Botânica e a tópicos sobre classifica-

ção dos seres vivos abordados pelo professor, em aulas anteriores. Algumas questões en-

volviam a consulta a um conjunto de textos: dois textos didáticos, preparados e trabalhados

pelo professor nas aulas (referidos como texto no 1), dois textos preparados e fornecidos

pela pesquisadora (referidos como texto no 2) e o texto adaptado da peça, cuja cópia foi

Page 70: Tese experimentos de botânica

57

também fornecida aos alunos (Nos anexos 2, 4 e 5 temos, respectivamente, cópia da ativi-

dade no 2; do texto no 2 e do texto adaptado da peça).

VI – Aula para aplicação da atividade no 3.

A atividade no 3 (cópia no anexo 3) se constituiu de duas partes. A primeira corres-

pondendo a um questionário a ser respondido em grupos de quatro alunos, com seis ques-

tões também relativas ao conteúdo da peça Lição de Botânica, articulado aos conteúdos de

Botânica e de classificação do seres vivos que foram desenvolvidos pelo professor. As

questões exigiam consulta a um texto de pesquisa (referido como texto no 3) fornecido pela

pesquisadora e ao texto da peça (cópia do texto no 3 no anexo 4).

Após a resolução do questionário, foi desenvolvida, nos próprios grupos, uma ativi-

dade prática de dissecção de um espécime de flor de hibisco (Hibiscus sp) em prancha de

isopor, para observação com lupa e identificação das estruturas do perianto, do gineceu e

do androceu (fotos dessa atividade estão mostradas junto com as pranchas do herbário, no

segmento “Tal qual os botânicos”).

VII – Atividades práticas: dissecção de flores e montagem de um herbário

Para encerrar o trabalho empírico da pesquisa, foram propostas duas atividades prá-

ticas. A primeira consistiu em uma dissecção de flores de hibisco – Hibiscus sp, com vistas

à observação e identificação das estruturas vegetais relacionadas à reprodução. A segunda,

também implementada separadamente com as duas turmas, envolveu a montagem de um

herbário com espécimes de plantas do jardim e do entorno da escola. Para isso contou-se

com a participação de uma auxiliar de pesquisa, ex-aluna da pesquisadora em turma do

ensino médio e, no ano da pesquisa, aluna do curso de graduação em Ciências Biológicas.

A montagem do herbário constituiu-se de três momentos: apresentação de um her-

bário confeccionado pela auxiliar de pesquisa em disciplina de seu curso, para que os alu-

nos conhecessem o trabalho, incluindo uma breve descrição das etapas de confecção; cole-

ta, em grupos de dez alunos, de espécimes vegetais nos jardins da escola e nas ruas de seu

entorno e consecutiva prensagem em prensa de madeira, para secagem; e, finalmente, mon-

tagem das pranchas com os espécimes desidratados e identificados, com etiqueta contendo

classificação do espécime (família e espécie provável), coletor, data e local de coleta e,

Page 71: Tese experimentos de botânica

58

ainda, a organização das pranchas em pastas com plásticos, compondo o herbário6. O tra-

balho de acompanhamento de secagem dos espécimes nas prensas foi feito pela auxiliar de

pesquisa. Ela também preparou, a partir de fontes especializadas, um catálogo contendo

foto e texto descritivo de todas as plantas que foram coletas pelos alunos, para uso na iden-

tificação dos espécimes durante a montagem das pranchas (fotos das atividades de monta-

gem do herbário e cópias de algumas pranchas estão mostradas no segmento 5.6 – “Tal

qual os Botânicos”).

A partir das notas no caderno de campo, das videogravações transcritas das apre-

sentações da peça seguidas das discussões que foram realizadas e das respostas escritas,

dadas pelos alunos as vinte e duas questões presentes nas atividades nos 1, 2 e 3, formou-se

o corpo de dados sobre os quais se desenvolveram as análises. A transcrição das aulas ante-

riores à apresentação da peça não foi objeto de análise, vista a extensão do conjunto dos

outros dados, que foram priorizados face às questões de pesquisa.

O quadro a seguir relaciona as atividades desenvolvidas com o material gerado pa-

ra análise.

Atividades Material para análise

Reuniões com o professor regente Notas em diário de campo

Atividades com os alunos

Turma 601

Turma 603

Aplicação da Atividade no 1 Respostas escritas Respostas escritas Aulas sobre classificação

dos seres vivos

x Transcrição de videogravação e notas em diário de campo

Aula sobre flores e polinização

Notas em diário de campo Transcrição de videogravação e notas em diário de campo

Apresentação da peça e discussão com a turma

Fotos e transcrição de videogravação

Fotos e transcrição de videogravação

Aplicação da atividade no 2 Respostas escritas e notas em diário de campo

Respostas escritas e notas em diário de campo

Aplicação da atividade no 3 Respostas escritas e notas em diário de campo

Respostas escritas e notas em diário de campo

Montagem do herbário Fotos e notas em diário de campo

Fotos e notas em diário de campo

6Aproveitando-se a realização do IX EPEB – Encontro Perspectivas do Ensino de Biologia, em julho de 2004, na FE-USP/SP, apresentamos como relato de experiência o trabalho “Helena e as lições do Barão: o texto literário em aulas de Ciências” (Salomão et al, 2004). O trabalho, constituído em co-autoria entre a pesquisadora, o professor de Ciências das turmas pesquisadas e a auxiliar de pesquisa, relatou as atividades desenvolvidas em torno do texto de Machado de Assis, apresentando suas principais bases teórico-metodológicas e discutindo resultados das análises preliminares dos dados, até então, já desenvolvidas (o resumo do relato de experiência apresentado no IX EPEB está no anexo 7).

Page 72: Tese experimentos de botânica

59

Passamos agora a descrever as análises desenvolvidas a partir dos dados obtidos a-

través do trabalho empírico.

3.2 – Primeiras questões

As primeiras questões referem-se às questões da atividade no 1, desenvolvida antes

da apresentação da peça. São questões bastante pertinentes com a temática das especifici-

dades do conhecimento científico, com as aproximações entre linguagem científica e lin-

guagem cotidiana e com a trama da Lição de Botânica. Para identificação das questões

usaremos a convenção N/M sendo N o número da atividade e M a ordem seqüencial da

questão. As respostas foram analisadas, reunidas em categorias e apresentadas em tabelas.

Ao longo das análises, os enunciados dos alunos foram transcritos das páginas da pesquisa

na íntegra e na forma original, sem que se fizessem menção ou correções a possíveis difi-

culdades gramaticais.

3.2.1 – Sobre a ciência.

Considerando-se que as noções prévias dos alunos têm sempre um papel fundamen-

tal nos processos de aprendizagem e construção de significados, as questões 1/1, 1/2 e 1/3

visam a perceber as noções que os alunos têm das especificidades do trabalho científico e o

valor social que atribuem à ciência. As tabelas 1, 3, 5, 7 e 2, 4, 6, 8 mostram, respectiva-

mente, as respostas dadas pelas turmas 601 e 603 e sugerem algumas interpretações.

Descobrir o novo e conhecer a natureza.

Os dados das tabelas 1, 2, 3 e 4 referem-se às respostas dos alunos à questão 1/1:

“O que caracteriza a atividade da ciência, ou seja, qual é uma diferença marcante entre o

trabalho do cientista e o trabalho de outros profissionais?”.

Page 73: Tese experimentos de botânica

60

TABELA 1

Respostas da Turma 601 à questão 1/1: O que caracteriza a atividade da ciência, ou seja, qual é uma diferença marcante entre o trabalho do cientista e o trabalho de outros profissionais?

No de respostas Respostas Total Sub-totais

Coisas danatureza

Seres vivos

Descobreespécies

Classifi-ca

Pesqui-sa

Enten-de

Explora

Natureza

17 5 4 3 2 1 1 1

Coisas novas

Atua-lidade

Pesquisa Estudo aprofun-

dado

Traz conhe-

cimento

Apren-de

ConheceDescoberta, Novidade,

Produção de conhecimento

14

5 2 2 2 1 1 1 Descobre coisas a favor da

humanidade Meio ambiente e mundo melhor Bem estar da

sociedade

2 1 1

Fórmulas Laboratório isolado, escuro. “Modos” científicos

2 1 1

Respostas genéricas,

sem definição

5

X

TABELA 2

Respostas da Turma 603 à questão 1/1: O que caracteriza a atividade da ciência, ou seja, qual é uma diferença marcante entre o trabalho do cientista e o trabalho de outros profissionais?

No de respostas Respostas

Total Sub-totais

Coisas novas

Pes-quisar

Criar Estudar

Inven-tar

Apren-der

Infor-mar

Descoberta, Novidade,

Produção de conhecimento

24 11 4 3 2 2 1 1

Natureza Seres vivos Natureza

10

4 6 Cura de doenças Remédios Bem estar da

sociedade

4 2 2 Não pode

faltar nada

Mais prática

que teoria

Com-panhei-rismo

Sério e inteligen-

te

Mais delicada e complicada

Usa pintinhos e

ratos

“Modos” científicos

6

1 1 1 1 1 1 Respostas genéricas

sem definição. 1 X

Page 74: Tese experimentos de botânica

61

De acordo com a essência das características apontadas e as semelhanças e proxi-

midades entre elas, foi possível, a partir de leituras e releituras das respostas dos alunos, na

ótica dos objetivos da pesquisa, agrupar as respostas em cinco categorias distintas: nature-

za, descoberta/conhecimento, bem estar da sociedade, modos científicos e respostas indefi-

nidas, e dividí-las em sub-itens mais específicos. As respostas de alguns alunos quando

constituídas por diversos itens foram computadas em mais de uma categoria.

Podemos notar que são bastante acentuadas as relações traçadas entre a ciência e a

novidade, caracterizada pela produção de conhecimento, descobertas, ou invenções, e entre

a ciência e a natureza, às vezes caracterizada ou identificada pelos seres vivos. Resultados

que nos remetem às considerações de Mayr (1998, p.39) sobre as especificidades da Biolo-

gia no quadro das ciências: As descobertas são o símbolo da ciência, na idéia do público.

Em algumas respostas estão conjugadas as duas noções, novidade e natureza. As

respostas citadas a seguir (com grifos nossos) exemplificam as relações propostas.

A marca científica é aquela coisa da natureza e não uma coisa qualquer (Felipe, T. 601). Uma diferença é que o trabalho do cientista é estudar a ciência, ou seja, estudar a natureza e os seres vivos (Pauline, T. 603). Na minha opinião são as coisas da natureza que caracterizam a atividade de ciên-cias o trabalho do cientista é querer conhecer e o dos profissionais não (Patrick, T.601). Que o trabalho do cientista é que ele explora a natureza e vai descobrindo coisas novas nesse mundo, trabalham com ciência. As outras é assim você trabalha na se-cretaria atendendo telefone, etc. É só aquela coisa e o cientista não. É sempre des-cobrindo coisas novas, pesquisando e entendendo a natureza (Paola, T. 601). O cientista está sempre descobrindo coisas (Guilherme, T. 603) Porque eles descobrem muitas coisas (Willian, T. 603). Porque os cientistas gostam de pesquisar para descobrir e inventar coisas novas (Gizele, T. 603).

Alguns alunos fizeram referências explícitas a outros profissionais, comparando sua

atividade com a dos cientistas. As características citadas estão apresentadas a seguir nas

tabelas 3 e 4.

Page 75: Tese experimentos de botânica

62

TABELA 3

Referências à atividade de outros profissionais nas respostas da Turma 601 à questão 1/1: O que caracteriza a atividade da ciência, ou seja, qual é uma diferença marcante entre o traba-

lho do cientista e o trabalho de outros profissionais?

Categorias Total Sub-itens No de respostas

Não tem nada a ver com a descoberta da natureza 1 Não descobre é só trabalhar 1

Ensinam o que foi descoberto pelos cientistas 1 Não pesquisam, são só profissionais 1

Sem relação com

a descoberta e com a natureza

5

O trabalho não é querer conhecer 1 Estudam uma espécie fixa 1

É só aquela coisa 1

Rotina do trabalho

3 Trabalha na secretaria atendendo telefone 1

Pequena exigência de ordem intelectual

1 Mexem só com um pouco de ciência 1

TABELA 4

Referências à atividade de outros profissionais nas respostas da Turma 603 à questão 1/1: O que caracteriza a atividade da ciência, ou seja, qual é uma diferença marcante entre o traba-

lho do cientista e o trabalho de outros profissionais?

Categorias Total Sub-itens No de respostas

Não descobre 1 Trabalho na cidade 1

Não estudam os animais e as plantas 1

Sem relação com

a descoberta e com a natureza

4

Muitas vezes destroem a natureza 1 Não estudou a ciência 1

Trabalham com outro fator 1 Pequena exigência

de ordem intelectual

3 Às vezes tem tudo mastigado 1

Função social 1 Divertir e ajudar 1

As referências apresentadas nas tabelas 3 e 4, apesar de serem em pequeno número,

completam a caracterização da atividade dos cientistas com uma contraposição a outros

profissionais e reforçam a perspectiva da novidade, da descoberta e do vínculo com a natu-

reza como marcas da ciência. São atribuídas às outras profissões a idéia de rotina de traba-

lho, onde as coisas já estão determinadas, e de ausência de novidade e de vínculos com a

pesquisa e o conhecimento. A distância das outras atividades para com a natureza foi des-

tacada, inclusive, pelo aspecto negativo de, às vezes, destruir a natureza.

Page 76: Tese experimentos de botânica

63

Ciência e Biologia.

Já as tabelas 5 e 6, mostradas a seguir, referem-se à questão 1/2 na qual são pedidos

exemplos que mostrem a importância que a ciência pode ter para a sociedade atual.

TABELA 5

Respostas da Turma 601à questão 1/2: Cite dois exemplos que mostrem a importância que a ciência pode ter para a sociedade atual.

Categorias Total Sub-categorias

No de respostas

Itens No de respostas

Seres vivos 12 Espécies 3

Fotossíntese 1

Natureza

17

Preservar 1 Saúde / cura de doenças /

remédios 5

Conhecimento 2 Controle/organização 1

Sociedade

9

Desenvolvimento 1

Descobertas, conhecimentos

27

Indefinida

1 As invenções, as descobertas 1 Qualidade da saúde 2 Tecnologia 2 Veredicto de crimes 1 Outras maneiras de engravidar 1

Ação / produtos

da ciência

7

Fornecer comida e objetos 1 Indefinida 4

TABELA 6

Respostas da Turma 603 à questão 1/2: Cite dois exemplos que mostrem a importância que a ciência pode ter para a sociedade atual.

Categorias Total Sub-categorias

No de respostas

Itens No de respostas

Sociedade

20

Saúde / cura de doenças / remédios

20

Seres vivos 7 Fósseis 2

Astros / universo 2 fotossíntese 1

Natureza

13

Poluição 1

Descobertas, conhecimentos

35

Indefinida

2

Tecnologia 2 Meios de transporte 2

Ação / produtos

da ciência

5

Comunicação 1

Page 77: Tese experimentos de botânica

64

Observando-se o conjunto de respostas, podemos observar, ainda pelos dados da

tabela 1 e 2, que a turma 601 priorizou como característica da atividade científica sua rela-

ção com a natureza, enquanto a turma 603 realçou a descoberta e produção de novos co-

nhecimentos. Essa tendência se confirma e se fortalece quando, considerando as tabelas 5 e

6, percebemos que os alunos citam exemplos que mostram a importância da ciência para a

sociedade e, na categoria mais citada pelas duas turmas – descoberta e produção de conhe-

cimento, a turma 601 atribui maior relevo aos itens ligados à natureza, enquanto a turma

603 atribui a importância da ciência sobretudo às descobertas que oferece à sociedade no

campo da saúde – cura de doenças e criação de remédios.

Consideramos que os resultados da turma 601, destacando a natureza / seres vivos

como objeto central da ciência, sugerem que os alunos estão identificando a ciência em

geral como Biologia, associando-a com o conteúdo tratado na ciência escolar daquele mo-

mento, e mostrando nas respostas a influência do contexto de aula em que a atividade foi

desenvolvida. Essa turma, por diferenças no cronograma de atividades da pesquisa, res-

pondeu à atividade no 1 após as duas aulas nas quais foi explorado o conteúdo de classifi-

cação dos seres vivos, destacando a sua importância para o conhecimento e preservação da

biodiversidade. Foi trabalhado um texto tratando dos critérios usados para estabelecimento

dos taxa (grupos para classificação), dos sistemas de classificação e da terminologia cientí-

fica proposta por Lineu. Os enunciados a seguir, citando exemplos que foram dados sobre

a importância social da ciência, demonstram a referência direta dos alunos ao conteúdo

estudado pela turma:

As espécies. Sem a ciência nós estaríamos se perguntando até hoje que planta é aquela? Que animal é esse? As plantas (Paola, T. 601). Descoberta de novas espécies de animais e plantas. Aprofundar o estudo dos ani-mais (Felipe, T. 601). A descoberta de várias espécies de plantas e animais (Lucas a, T. 601). É importante na classificação e na divisão dos seres vivos (Lucas b, T. 601).

A seguir, considerando a resposta de Tayara (T. 601) à questão sobre o que

caracteriza a atividade da ciência (1/1), percebemos que, além de articular a idéia de

descoberta com o conteúdo estudado sobre a classificação dos seres vivos, ela também

caracteriza o trabalho do cientista diferenciando-o do trabalho do professor, mostrando a

efetiva referência ao contexto escolar:

Page 78: Tese experimentos de botânica

65

Dos cientistas é um trabalho que descobre novas espécies, e a dos outros profissio-nais ensinam o que foi descoberto pelos cientistas: o gênero, nome, espécie, famí-lia, etc.

Já a turma 603 respondeu à atividade no 1 antes dessas aulas, e embora já se confi-

gurasse para as aulas de ciências a “atmosfera” da biodiversidade, este sim um conceito já

introduzido em aula anterior nessa turma, parece ter tido mais eco nesse momento, mar-

cando as noções prévias dos alunos, a caracterização da atividade científica em termos de

avanços na área de saúde, aspecto científico que mais circula na mídia e em textos de di-

vulgação científica com os quais os alunos, em geral, têm oportunidades de contato. Essa

perspectiva está explicitada nos enunciados a seguir, que mostram a importância atribuída

à ciência:

O seu conhecimento geral da ciência que nos ajuda para curar doenças graves como aids, câncer, etc (Raphael, T.603). Descobrir remédios e tecnologia (Renata, T.603). Ele pode achar a cura de doenças e clone (Marlon, T. 603). Aparelhos para prevenir doenças e criar remédios para nós nos tratarmos (Ander-son, T. 603).

Com a análise desse ponto e o sentido que estamos lhe atribuindo, percebemos a

responsabilidade e a participação que o ensino de Ciências tem no desenvolvimento pelos

alunos de uma concepção de ciência, de sua complexidade e diversidade. Se de início, as

respostas focalizando a natureza podem estar surgindo condicionadas pelo contexto de

produção da aula, em uma atitude responsiva, podem a partir daí serem incorporadas ao

feixe de significações da ciência que cada aluno reúne para si, ampliando-o na direção da

Biologia. Se a aprendizagem envolve a produção de significados, podemos considerar que,

através do trabalho com os conteúdos de ensino que tratam dos seres vivos, aprende-se

também o que é a Biologia, vendo-se demarcado seu campo epistemológico, ao perceber as

manifestações da vida como objeto do trabalho científico.

Para complementar a discussão acima, destacamos a categorização feita nas tabelas

5 e 6 dos exemplos citados pelos alunos sobre a importância da ciência para a sociedade

em exemplos que destacam o conhecimento e a descoberta e outros que citam a ação ou os

produtos da ciência. Essa distinção se deu observando para os primeiros, sobretudo, a pre-

Page 79: Tese experimentos de botânica

66

sença nos enunciados de termos e expressões como: descoberta, aprofundar o estudo, cri-

ar, informar, trazer o conhecimento, dá conhecimento, mostra, ensina, ajuda ou transmite.

Já os exemplos considerados como ação ou produtos da ciência apresentam diretamente os

bens oriundos da atividade científica ou são iniciados pelo verbo fornecer ou pela expres-

são para, como nos enunciados abaixo:

Lâmpada e eletricidade (Evelyn, T. 601). Tecnologia e clone (Jennifer, T. 603). Satélite – pegam imagens de um país e transmite para o outro. Luz – para iluminar (Guilherme, T. 603). Fornecer comida para o homem e fornecer objetos como: couro, madeira, etc (Scarlet, T. 601). Para nos ajudar a se controlar nos horários (relógio). E para nos ajudar a entrar na data (calendário) (Mariângela, T. 601). Para o veredicto de crimes, para o controle de qualidade da saúde (Isadora, T. 601). Ou ainda pela forma meio telegráfica da resposta de Kelvin (T. 601): Sem ciência sem remédios, sem ciência sem automóveis.

Podemos ponderar que todos os exemplos da importância social da ciência lembra-

dos pelos alunos, incluindo os que foram categorizados como “conhecimento” ou “desco-

berta” mostram, em última instância, “produtos” científicos e refletem a “ação” da ciência.

A distinção feita vai apenas no sentido de evidenciar, através da tônica dos enunciados dos

alunos, a tensão apresentada entre uma perspectiva que vemos como epistemológica, vin-

culada ao reconhecimento de um processo de produção do novo pela ciência, e uma pers-

pectiva mais pragmática, com destaque para a aplicação e uso do novo que foi produzido.

Essa tensão e a forte relação traçada pelos alunos entre ciência e natureza nos pare-

cem interessantes no sentido de reforçar o papel do ensino na construção de significados

para as ciências biológicas. Os conteúdos curriculares da 6a série, que tradicionalmente,

acompanhando a maioria dos livros didáticos, se dedicam ao estudo dos seres vivos têm

uma participação importante nesse processo de reconhecer a natureza como objeto constru-

ído pela ciência, que corta e recorta o real. O conhecimento que obtemos sobre os seres

vivos na vida cotidiana tem uma outra essência.

Page 80: Tese experimentos de botânica

67

E aqui traçamos um gancho com a Lição de Botânica e com a introdução a esse tra-

balho. Quando Helena, blefando junto a sua tia, responde sobre a serventia de saber Botâ-

nica com o enunciado: serve para conhecer as flores dos meus bouquets, para não confun-

dir jasmíneas com rubiáceas, nem bromélias com umbelíferas, supomos que ela estabelece

uma ruptura. Helena não diz que quer conhecer as flores de seus bouquets para não con-

fundir, por exemplo, margaridas com camélias, cravos ou rosas, pois isso, provavelmente,

ela já saberia fazer com o que aprendeu no seu dia a dia. Ao querer as lições com o Barão,

almeja a um outro conhecimento que, no seu enunciado, vem especificado pela linguagem,

aqui bem caracterizada em termos da nomenclatura biológica. A diversidade vegetal é pro-

duto do processo de evolução da vida na natureza, já as famílias vegetais são objetos e

produtos científicos.

Exigências e virtudes.

Ainda com relação às questões 1/1 e 1/2, acerca da caracterização da atividade cien-

tífica, podemos identificar algumas respostas que, como nos exemplos baixos (grifos da

pesquisadora), expressam claramente uma conotação positiva e um sentimento de confian-

ça na ciência.

O trabalho do cientista ele descobre plantas, animais e etc... Assim é o grande trabalho dos cientistas (Letícia, T. 601). Ela descobre coisas a favor da humanidade (Vinícius, T. 601). O cientista traz o conhecimento para a sociedade para que a sociedade possa atua-lizar os seus conceitos (Gregory, T. 601). Porque os cientistas se interessam pelo meio ambiente. Ajudando a ter um mundo melhor (Mariângela, T. 601). É que os cientistas tentam salvar a natureza e a estudam e os outros muitas vezes destroem a natureza (Alan, T. 603). Eles inventam coisas para nos ajudar e nos explicando o que devemos fazer para que a natureza continue existindo (Rony, T. 603). O trabalho dos cientistas é um trabalho importantíssimo para nós, por eles tenta-rem descobrir curas para doenças gravíssimas (Raphael, T. 603).

Conforme as idéias desenvolvidas, em vários momentos, pelo Círculo de Bakhtin

em sua filosofia da linguagem, os enunciados estão sempre concretamente situados na vida

Page 81: Tese experimentos de botânica

68

social e emergem de uma atitude valorativa em relação a essa determinada situação. Todo

enunciado está fundido com julgamentos de valor social refletidos em um tom apreciativo,

uma entonação. Essa perspectiva positiva explicitada pelos alunos em relação ao conheci-

mento científico é, então, bastante pertinente ao contexto de uma aula de ciências. As ex-

pectativas favoráveis que a própria aula levanta para a atividade científica e para os conhe-

cimentos por ela produzidos dão o tom, criam o contexto no qual podem se constituir e-

nunciados com entonação positiva.

Essa atitude avaliativa frente à ciência, expressa nas respostas, é também reflexo e

espelho do status social de que essa esfera de atividade humana usufrui em nosso meio,

uma sociedade que se reconhece como científico-tecnológica, e podemos supor que contri-

bui de forma efetiva para reforçar os aspectos axiológicos e constituir e sustentar a idéia de

autoridade da linguagem científica.

As tabelas 7 e 8 que mostram as respostas à questão 1/3, quando se pede aos alunos

que identifiquem características importantes para um cientista, podem completar essa ar-

gumentação. A atitude apreciativa novamente se expressa em tons altamente positivos,

demonstrados por uma acentuada referência a atributos de ordem intelectual e ético-moral

que consideramos refletirem uma postura de grande respeito e admiração pelo trabalho

científico, além de uma severa expectativa sobre as exigências que demanda ao profissio-

nal.

Page 82: Tese experimentos de botânica

69

TABELA 7

Respostas da Turma 601 à questão 1/3: Cite três características que um cientista deve ter, como pessoa ou como profissional

Categorias Total Itens No de res-postas

Curiosidade / procurar pesquisar / explorador / observador / interesse

15

Estudo / conhecimento / sabedoria 13

Inteligência / esperteza 9 Experiência 2

Ordem intelectual

40

Facilidade para cálculo 1 Respeito / compostura / caráter /

seriedade / consciência / responsabilidade

10

Paciência / persistência / cuidado 5 Solidariedade 2

Educação 1

Ordem ético-moral

19

Profissionalismo 1

Organização 6 Simpatia / alegria 3 Calma / atenção 3

Eficiência 1

Ordem prática / habilidades

14

Dom 1 Esquisito 1

Descobrir coisas novas para os homens 1 Fazer institutos de preservação 1

Cuidar da natureza e do meio ambiente 1

Outras / indefinido

5

Estudar a origem das coisas 1

Page 83: Tese experimentos de botânica

70

TABELA 8

Respostas da Turma 603 à questão 1/3: Cite três características que um cientista deve ter, como pessoa ou como profissional

Categorias Total Itens No de res-postas

Estudo / conhecimento / sabedoria 18 Inteligência / esperteza 11

Curiosidade / gostar de descobrir/ pesquisador 4 Experiência 2

Ter idéias geniais 1

Ordem intelectual

37

Bom currículo 1 Paciência / cuidado 7

Respeito / sinceridade / seriedade / responsabilidade

5

Admiração / paixão / amor pela ciência 5 Coragem / força de vontade / dedicação 5

Solidariedade / companheirismo / amizade 4 Fidelidade à ciência / obediência às regras 2

Educação 1

Ordem ético-moral

29

Profissionalismo 1 Calma 4

Habilidade / saber trabalhar 3 Simpatia / legal 2

Ordem prática / habilidades

10 Saber falar bem 1

Tecnologia 2 Ciência / cientista 2

As plantas e os animais 1

Outras / indefinido

6

Ter jeito para clonar 1

Os atributos de ordem intelectual foram os mais encontrados e sempre citados em

conjunto, como nas respostas a seguir:

Observador, estudioso, explorador (Gregory, T. 601).

Conhecimento, interesse, explorador (Lucas, T. 601).

Conhecimento. Ser um bom pesquisador (Anaina T.601).

Deve ser curioso e inteligente (Rafaela, T. 603).

Ensino, teoria e saber fazer descobertas (Anna beatriz, T.603).

Assim, além de ter idéias geniais (Rhaiza, T. 603), o cientista desenhado pelos alu-

nos é um indivíduo que, indiscutivelmente, tem muito conhecimento, inteligência e curio-

sidade. A experiência e a facilidade com cálculos também contam e, bem lembrado em

tempos de poucos empregos, um bom currículo é importante. O destaque dado a essa di-

Page 84: Tese experimentos de botânica

71

mensão cognitiva sugere que os alunos reconhecem a ciência como uma atividade difícil e

exigente, o que lhe confere respeito e prestígio social, reforçando a noção de autoridade

científica.

Foi interessante encontrar tantas referências a valores éticos e morais como caracte-

rísticas esperadas para os profissionais da ciência. A responsabilidade, o respeito, a paciên-

cia, a coragem, a dedicação, o amor e a solidariedade, citados como características neces-

sárias aos cientistas, confirmam aquela avaliação positiva e um sentimento de confiança

dos alunos na ciência e nos cientistas. Quase todas as respostas citando virtudes conjugam

também algumas características que consideramos como de ordem intelectual, sugerindo o

reconhecimento por eles da essencialidade dessa dimensão constitutiva para a ciência.

3.2.2 – Sobre a linguagem científica

As questões 1/4a e 1/4b focalizam a linguagem científica e visam a aferir em uma

primeira tomada, as impressões que os alunos guardam da linguagem pela qual as manifes-

tações da ciência se apresentam: 1/4a: “Você já estudou vários assuntos de ciências e sem-

pre tem contato com notícias da ciência através da televisão ou de revistas e jornais. Pen-

sando nisso, você já observou a forma de linguagem da ciência? Você acha que ela possui

uma forma de falar diferente da linguagem que usamos no dia a dia?”; 1/4b: “Explique por

que você pensa assim ou dê algum exemplo que mostra se existe diferença na maneira de

falar da ciência”. As tabelas 9 e 10 apresentam, respectivamente, as respostas das turmas

601 e 603.

Page 85: Tese experimentos de botânica

72

TABELA 9

Respostas da turma 601 às questões 1/4a e 1/4b: Você já estudou vários assuntos de ciências e sempre tem contato com notícias da ciência a-través da televisão ou de revistas e jornais. Pensando nisso, você já observou a forma de lin-guagem da ciência? Você acha que ela possui uma forma de falar diferente da linguagem que usamos no dia a dia? Explique por que você pensa assim ou dê algum exemplo que mostra se existe diferença na maneira de falar da ciência.

Pergunta inicial Total Respostas No de respostas

Sim 27 Sim e não 2

Não 1

Existência de diferenças?

31

Indefinido 1 Categorias de respostas

Quanto às diferenças Total Sub-itens No de

respostas Científica ≠ da popular 9

Em latim 4 Vários tipos de ciências 1

Fórmulas 1 Com estudo e simplificada 1

Especificidades da linguagem

17

Espécie = tipo 1 Facilita o estudo e a comunicação

Entre os cientistas 4

Clara e objetiva 2 Mais evoluída 1

Aspectos positivos

8

Quer saber muito mais coisas para nosso bem 1 Complicada / complexa 3

Difícil / esquisita 2 Aspectos restritivos /

dificuldades

6 Às vezes dá para entender, às vezes não 1

Fala da importância das plantas 1

Na língua em que nasceu 1

Indefinida

3

Palavra interessante, diferente e desconhecida 1

Page 86: Tese experimentos de botânica

73

TABELA 10

Respostas da turma 603 às questões 1/4a e 1/4b: Você já estudou vários assuntos de ciências e sempre tem contato com notícias da ciência a-través da televisão ou de revistas e jornais. Pensando nisso, você já observou a forma de lin-guagem da ciência? Você acha que ela possui uma forma de falar diferente da linguagem que usamos no dia a dia? Explique por que você pensa assim ou dê algum exemplo que mostra se existe diferença na maneira de falar da ciência.

Pergunta inicial Total Respostas No de respostas

Sim 20 Não 9

Sim e não 1

Existência de diferenças?

31

Não sei 1 Categorias de respostas

quando às diferenças Total Sub-itens No de

respostas Nomes científicos ≠ dos populares 6

Inventa símbolos para seus inventos 2 Usa palavra diferentes /

Outra forma de expressão

2

Especificidades da linguagem

11

Tem raízes desconhecidas e até estrangeiras 1 Fala da clonagem 1 Fala da ciências 3

Só fala de plantas e animais 2

Indefinida / tautológica

8

Fala com carinho / com entusiasmo 2 Aspectos restritivos /

dificuldades

3

Complicada

3

Sem gírias, sem palavrões 1

Com educação 1

Aspectos positivos

3

Com sabedoria 1

Quando não há diferenças.

A maior parte dos alunos considera a existência de diferenças entre a linguagem ci-

entífica e a linguagem cotidiana.

As respostas que dizem não haver diferenças são respostas curtas sem maior argu-

mentação sobre a opinião dada. Por exemplo:

Eu não acho muito diferente não. Porque eu não acho diferente (Jannyne, T.601). Não. Porque não tem diferença (Carlos e Lucas, T. 603) Não. É igual (Raphael e Guilherme, T. 603). Não. Se ela tem uma linguagem diferente até hoje eu nunca percebi (Tais, T. 603)

Page 87: Tese experimentos de botânica

74

Uma outra observação quanto às respostas que negam a existência de diferentes

linguagens é o fato de que o seu maior número ocorreu na turma 603, que não havia ainda

estudado o conteúdo sobre a classificação dos seres vivos, no qual é bem destacada a ter-

minologia científica. Estudo que provavelmente influenciou a quase totalidade de respostas

positivas na turma 601.

Diferentemente, a resposta de Pauline (T. 603), que inicialmente nega a existência

de diferenças, traz um comentário curioso:

Não. Ela possui a mesma forma de falar da linguagem que usamos no dia a dia. Eu penso assim, porque estou sempre informada da linguagem da ciência. A falta de diferenças entre as linguagens observada pela aluna é justificada por ela

– Eu penso assim – pelo fato de que ela se sente sempre informada, é conhecedora dessa

linguagem que, portanto, já faria parte da linguagem do seu dia a dia e não seria mais uma

linguagem diferente, no que o diferente poderia ter de incompreensível e de estranhamento.

Essa observação de Pauline é bastante instigante, sobretudo quando pensamos em termos

de categorias como palavras próprias e palavras alheias e dos embates entre as linguagens

sociais, nas diferentes esferas da atividade humana, e entre os gêneros discursivos, primá-

rios e secundários, em seu permanente processo de interpenetração, nas interações entre a

linguagem e a vida concreta, bem ao gosto de Bakhtin.

As diferenças.

As categorias postas para sistematizar os exemplos apontados sobre a diferenciação

entre as linguagens, nas tabelas 9 e 10, foram pensadas em termos de: atributos intrínsecos

à própria linguagem, suas relações com os interlocutores, seu conteúdo, objetivos ou pos-

sibilidades, e nos mostram aspectos interessantes da visão que os alunos vão construindo

sobre os modos da ciência.

Como especificidades da linguagem científica, aspecto que mais foi considerado

pelos alunos, foram destacadas a existência dos nomes científicos distintos dos nomes po-

pulares, a etimologia das palavras e a criação pela ciência de palavras novas, de símbolos e

de fórmulas. Na turma 601, há enunciados, como os citados a seguir, que usam diretamente

o conteúdo estudado na aula anterior, reforçando as perspectivas já comentadas sobre as

inter-relações entre os enunciados e suas condições de produção e, também, de como o

ensino vai incrementando o processo de atribuir significados à linguagem utilizada pela

ciência, aqui sendo aproximada pela terminologia científica.

Page 88: Tese experimentos de botânica

75

Sim. Nomes científicos (Felipe, T.601) Sim. Nomes científicos e fórmulas (Lucas, T. 601). Porque nós usamos nomes populares e os cientistas usam nomes científicos ex: bumbum / glúteo (Kelvin, T. 601). As vezes a linguagem é em latim (Mariângela, T. 601). Sim. Porque nós já dizemos “modo científico de dizer”. Muitas coisas que eles fa-lam de uma forma nós falamos de outra (Ana Paula, T. 603). Pela exatidão de suas respostas percebemos que alguns alunos, estrategicamente,

consultaram o texto didático ou as anotações das aulas anteriores, colhendo deles exemplos

para ilustrar a diferenciação que desejavam mostrar:

Sim. Porque a ciência tem outros nomes indicados a uma palavra, mas que têm o mesmo significado. Ex: Canis lupus – espécie lobo. Grama – gramináceas . vege-tais – acea(s) (Paola, T. 601). Sim. Pois para facilitar o estudo do cientista, ela possui uma linguagem meio que universal. Porque existem palavras que popularmente são diferentes. Popular: cão, “dog”. Científico: Canis familiares (Isadora, T. 601). Sim. Ela possui uma forma diferente de falar, que é o latim, usada pelos cientistas para que cada espécie estudada não tenha um nome popular. Ex: Canis lupus – espécie de lobo. Um exemplo: canis latrans – espécie de coiote. Já pensou os cien-tistas falarem de cada espécie de coiote com o nome de coiote? Tem que existir um nome científico (Tayara, T. 601).

Consideramos que os enunciados de Isadora e de Tayara, citados acima, que mos-

tram vínculo com a matéria estudada em aula evidenciam, também, uma visão positiva em

relação às especificidades da linguagem científica. Outras respostas nessa perspectiva posi-

tiva foram:

Sim. É claro. Porque eles dão um nome para cada ser de outra espécie que todos cientistas entendam (Danila, T. 601). A linguagem dos cientistas são claras e objetivas. Porque os cientistas são mais es-tudiosos e sabem dar uma resposta mais simplificada (Matheus, T. 601). Sim e já percebi a linguagem deles. Sim. Porque ela quer saber muito mais coisas para o nosso bem. Eu penso assim porque ele estuda ciências e eu observo a lin-guagem dele (Patrick, T. 601).

Page 89: Tese experimentos de botânica

76

Sim. Porque hoje em dia as pessoas falam com qualquer maneira e os cientistas fa-lam com o português mais claro (Agatha, T. 601). Sim. Eles falam com educação, com sabedoria (Rafaela, T. 603). Sim. As palavras são diferentes dos estudiosos, sem gírias, sem palavrões (Marco Aurélio, T. 603).

Podemos observar que na valorização positiva expressa para a linguagem científica,

os alunos das duas turmas empregaram propriedades de naturezas diferentes. A turma 601,

fazendo eco às aulas dadas, lembrou aspectos como clareza, objetividade, uniformidade,

universalidade, comunicação e entendimento entre os pesquisadores e facilitação do estu-

do. Características e objetivos que foram comentados nas aulas, onde foram enfatizados os

esforços de sistematização realizados pela ciência para permitir o conhecimento da grande

variedade de seres que compõem a biodiversidade do planeta, e os critérios estabelecidos

por Lineu para a universalizar a nomenclatura taxonômica.

Nesse sentido, evidenciamos as inter-relações entre os enunciados e suas condições

de produção e, também, as possibilidades do ensino incrementar o processo de ampliação

de significados para a linguagem da ciência, aqui aproximada pela nomenclatura biológica.

A aluna Tayara (T. 601) até já concebe a necessidade de uma linguagem diferenciada para

a atividade da ciência, no caso a taxonomia: Tem que existir um nome científico.

Já nas respostas da turma 603, e também em algumas da turma 601, supomos que,

por falta de maiores informações sobre a terminologia científica, os alunos destacaram

como característicos aspectos positivos voltados para as boas intenções, a norma culta da

língua, a cultura elaborada e o conhecimento, predicados que socialmente são atribuídos

aos cientistas.

Ser complexa, complicada, difícil e esquisita foram características apresentadas pe-

los alunos para a linguagem da ciência que nós entendemos como sendo aspectos restriti-

vos e que trazem dificuldades, como nas respostas a seguir:

Sim, que de vez em quando a ciência usa muitas linguagens esquisitas. Eu acho que há muitas diferenças entre nossas falas e a da ciência (David, T.601). Sim. Porque ela fala de um jeito mais complicado. As palavras, as famílias, etc (Thiago, T. 601). Sim. São nomes mais complicados em tudo. Os nomes científicos os animais (Gui-lherme, T. 603).

Page 90: Tese experimentos de botânica

77

Sim. Não. Porque o modo de falar da ciência algumas vezes é mais complicado. Algumas partes do corpo humano os cientistas conhecem por outro nome que mui-tas pessoas conhecem (Paulo Henrique, T. 603). Bem talvez sim talvez não. Porque às vezes dá pra entender a língua da ciência, às vezes não porque tem várias coisas difíceis na ciência. A ciência é muito difícil que eu não sei explicar da maneira como fala a ciência (Evelyn, T. 601). Apesar de as respostas apontando dificuldades não terem sido em grande número,

nos alertam para a possibilidade do ensino de Ciências, notadamente o de Biologia, esbar-

rar nesse ponto, ao dar ênfase exagerada à terminologia científica, cobrando a memoriza-

ção de termos e de classificações. Algumas observações de Souza (2000), pautadas nas

pesquisas de Lemke, que já comentamos anteriormente, chamam a atenção dos professores

para essa questão. Superar essa abordagem negativa dos termos científicos é um grande

desafio para o ensino. Levar os alunos a perceberem o importante papel constitutivo que a

linguagem tem para o desenvolvimento do pensamento humano e para o conhecimento de

uma forma geral, inclusive para a ciência, em seus processos de estabelecer objetos de es-

tudo e de produzir conhecimento sobre eles.

A resposta de Gregory (T. 601): “sim é uma linguagem mais complexa de falar. Sim

existe diferença porque existem vários tipos de ciências”, aponta para outra questão, pois

imaginamos que ela sugere a percepção dele de que existem várias ciências, o que deman-

da várias linguagens diferentes. É como se ele entendesse que cada ciência que vai se cons-

tituindo, vai plasmando para si uma nova linguagem? É como se concordasse com Bakhtin

quando imagina a quase infinita variedade dos gêneros de discurso? Pois, “todas as esferas

da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre relacionadas com a uti-

lização da língua. Assim, não é de surpreender que o caráter e os modos dessa utilização

sejam tão variados como as próprias esferas da atividade humana... e cada esfera dessa

atividade comporta um repertório de gêneros de discurso que vai diferenciando-se e am-

pliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa” (Bakhtin,

1992, p.279).

A estruturação e a objetividade

Alguns dos enunciados que mostram os exemplos citados sobre a importância da

ciência nos fizeram lembrar as considerações de Possenti (1997) e de Mortimer et al (1997)

sobre as características dos enunciados científicos. Enunciados que, segundo os autores,

concretizam um esforço de estruturação da linguagem, pelo qual procura-se um certo apa-

Page 91: Tese experimentos de botânica

78

gamento do sujeito e uma tentativa de eliminação da experiência vivida que é representada

na linguagem cotidiana. Poderia-se dizer que a linguagem científica, vigilante, empenha-se

em retirar de seus enunciados a perspectiva de um enunciador. Assim, nos enunciados con-

siderados a seguir que, praticamente, contêm um mesmo conteúdo temático, e foram pro-

duzidos nas mesmas condições, foi interessante observar a subjetividade dos locutores ma-

nifestada em diferentes graus, sugerindo a opção de alguns alunos por uma maior objetivi-

dade, traço mais próximo da linguagem científica.

Sobre o conteúdo taxonomia, Paola se envolve diretamente na descoberta das espé-

cies que a ciência pode propiciar. Já Felipe e Lucas parecem não estar lá.

As espécies. Sem a ciência nós estaríamos se perguntando até hoje que planta é aquela? Que animal é esse? As plantas (Paola, T. 601). Descoberta de novas espécies de animais e plantas. Aprofundar o estudo dos ani-mais (Felipe, T. 601). É importante na classificação e na divisão dos seres vivos (Lucas, T. 601).

Com relação à conscientização e à responsabilidade ecológica, Patrick formula a

contribuição científica de uma forma bem mais objetiva que os outros colegas e, ao nosso

ver, não se compromete com ela.

Um exemplo é preservar a natureza e o segundo exemplo não matar bicho para não deixá-los em extinção (Patrick, T. 601). Porque nos mostra coisas importantes para os seres vivos e nos ensina como tratá-la (Lais, T. 601). A importância é que ela transmite para a sociedade atual que não devemos poluir rios e mares. Também que nós não devemos poluir qualquer coisa solo, água, ar e também ela nos ensina várias coisas interessantes (Letícia, T. 601). Eles inventam coisas para nos ajudar e nos explicam o que devemos fazer para que a natureza continue existindo (Rony, T. 603). Paulo Henrique parece sentir na própria pele e apreciar melhor do que Renata os

benefícios que a ciência traz à sobrevivência e ao conforto humanos:

Remédio e vacinas que podem levar a morte se não for tratada. A gasolina que a-juda os automóveis, motos, aviões, navios e etc a voar, andar e navegar se não ía-mos ter que viajar a pé e etc (Paulo Henrique, T. 603). Descobrir remédios e tecnologia (Renata, T. 603).

Page 92: Tese experimentos de botânica

79

O número de enunciados que estamos considerando como ligados à subjetividade,

isto é, que apresentam formas como os pronomes eu, nós, nos, nossos ou verbos na 1a pes-

soa do plural, foi significativamente menor, no total de respostas dadas (15/61). Obviamen-

te, sabemos que enunciados “mais objetivos” não são exclusividade da linguagem científi-

ca e, em enunciados responsivos em um contexto escolar, talvez seja a forma mais comum,

já cultivada, dos alunos se expressarem. Mas, no movimento de procurar indícios da apro-

priação, por parte deles, de elementos dos gêneros de discurso típicos da linguagem cientí-

fica, o grande número de respostas nas quais o enunciador não se evidencia de forma mais

expressiva pela linguagem nos instiga e sugere que esse traço próprio da linguagem da

ciência pode estar marcando a fala dos alunos. Estendemos para todo o enunciado o que

Bakhtin (1992) afirmou para a palavra: o que se ouve soar na palavra é o eco do gênero

em sua totalidade.

Palavras da ciência.

Pensando agora propriamente em palavras, destacamos algumas respostas onde a-

parecem termos notadamente científicos e procuramos refletir sobre o seu uso nesses enun-

ciados, com as noções de palavra alheia, palavra própria e hibridização das linguagens es-

boçadas por Bakhtin.

Foram poucos os alunos que responderam à questão sobre as diferenças entre a lin-

guagens científica e cotidiana, incluindo em seu enunciado termos marcadamente científi-

cos, por exemplo:

Várias coisas. Porque a linguagem ela é meio científica mesma da forma de escre-ver e como falar. Por exemplo as sépalas nós chamamos de caules ou folhas. (Letí-cia, T. 601). Porque nós usamos nomes populares e os cientistas usam nomes científicos ex: bumbum / glúteo (Kelvin, T. 601). Na linguagem popular é uma sélula na linguagem científica é uniselular (Kevin, T. 601).

Letícia e Kelvin apresentam, respectivamente, as palavras sépalas e glúteo como

exemplos de palavras científicas e que não seriam utilizadas por eles em sua fala cotidiana.

Sépalas, que são folhas modificadas e que em conjunto com as pétalas formam o perianto

da flor, entrou no repertório de Letícia na aula anterior de ciências, e inclusive é tomada,

Page 93: Tese experimentos de botânica

80

equivocadamente, pela aluna como sinônimo de caule ou de folhas. Glúteo não foi assunto

da última aula e Kelvin já a trazia em sua bagagem. Podemos pensar que as duas respostas

se constituem em esboços de híbridos discursivos, vistos que, propositalmente, querem

expressar linguagens diferentes. Mas ficamos intrigados. Apesar de estarem sendo utiliza-

das nesses enunciados servindo aos propósitos dos alunos ou seja, para caracterizar a lin-

guagem científica diferenciando-a da linguagem comum, sépalas e glúteo já se colocariam

como palavras próprias para seus locutores? Imaginamos que ainda estejam no ponto das

palavras alheias/próprias, a meio caminho.

Já na resposta de Kevin, percebemos uma outra situação. Pois célula, palavra cien-

tífica, é citada como exemplo de linguagem popular, em oposição a unicelular, que o locu-

tor ainda vê nos domínios da ciência, palavra própria/alheia. Consideramos célula já como

palavra própria para o aluno. O fato de grafá-las com s sugere que a intimidade entre eles é

mais oral do que escrita.

Pois eles mechem com os animais, as plantas ou seja “ecossistema”. Eles desco-brem remédios, etc (José Eduardo, T. 603).

Para caracterizar a atividade da ciência, a resposta acima incorpora uma palavra ci-

entífica, usando-a para aglutinar o conteúdo das palavras que estão no início do enunciado

e as relações entre elas. Entendemos que o termo ecossistema citado entre aspas aparece

aqui como palavra própria/alheia. O locutor caracteriza a atividade da ciência, que ele rela-

ciona à lida com os seres vivos, resumindo-a com uma palavra notadamente científica,

como se sentisse que ecossistema funciona melhor para seu propósito, intuindo e expres-

sando os laços fortes, vínculos orgânicos, de mão dupla, que unem a atividade humana à

sua linguagem.

3.2.3 – Sobre as classificações biológicas.

Helena – “Pedirei licença à minha tia. Quando será a primeira lição?

Barão – Quando quiser. Pode ser amanhã. Tem certamente notícia da anatomia

vegetal...

Helena – Notícia incompleta.

Barão – Da fisiologia?

Helena – Um pouco menos.

Page 94: Tese experimentos de botânica

81

Barão – Nesse caso, nem a taxonomia, nem a fitografia...

Helena – Não fui até lá.

Barão – Mas há de ir... Verá que mundos novos se lhe abrem diante do espírito. Es-

tudaremos uma por uma todas as famílias: as orquídeas, as jasmíneas, as

rubiáceas, as oleáceas, as narcisas, as umbelíferas, as...”

Pelos nomes científicos que nos apresenta, a classificação vegetal citada acima pelo

Barão de Kernoberg nos causa certo estranhamento. Como dirá Dona Leonor à Helena,

mais à frente na história: “Virgem Santa! E que ganhas tu com esses nomes bárbaros?”.

Mas tal estranhamento é de uma natureza diversa do estranhamento que nos pode ser pro-

duzido pelo texto a seguir, que o poeta argentino Jorge Luis Borges diz ter encontrado em

uma certa enciclopédia chinesa7:

“Os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c)

domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na pre-

sente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um

pincel muito fino de pêlo de camelo, l) et coetera, m) que acabaram de quebrar a bilha, n)

que de longe parecem moscas”.

Mesmo que não conheçamos, com maiores detalhes, as famílias vegetais citadas pe-

lo Barão, não duvidaríamos de que possam existir e estarem mesmo compondo uma classi-

ficação vegetal. Assim, poderíamos imaginar a ampliação daquela lista, o que é sugerido

pelo próprio botânico – “as ...”, incluindo novas famílias. Mas, e quanto aos animais da

enciclopédia chinesa?

Foi o estranhamento para com essa classificação e a impossibilidade de, sequer,

conseguir pensá-la, o que levou Michel Foucault a escrever, em 1966, “As palavras e as

coisas: uma arqueologia das ciências humanas”. O livro nasceu do riso provocado pela

taxonomia de Borges, a partir de cuja leitura, o filósofo vê sacudidas as familiaridades do

nosso pensamento, abalando as superfícies ordenadas e os planos com os quais distingui-

7 Segundo Ítalo Calvino (1990), Borges inventou um novo gênero literário, inventando-se a si mesmo como narrador. O truque do escritor foi simular que o livro que desejava escrever já havia sido escrito por um autor desconhecido, de língua e cultura também desconhecidas, e, então, comentar e resumir esse livro hipotético. O que, algumas vezes, provocou em seus leitores créditos indevidos. Assim, suas obras desdobram-se em outras obras de uma biblioteca real ou imaginária, proporcionando-lhes múltiplas aberturas para o infinito.

Page 95: Tese experimentos de botânica

82

mos e tornamos sensata a profusão do seres ao nosso redor. Nada é absurdo na enumeração

chinesa, nenhum dos seres, entre os fantásticos e os reais, nos é inconcebível, exceto, a

própria enumeração. “No deslumbramento desta taxonomia, o que alcançamos imediata-

mente, o que, por meio do apólogo, nos é indicado como o encanto exótico de um outro

pensamento é o limite do nosso: a pura impossibilidade de pensar isto (Foucault, 1966,

p.3).

Em sua reflexão, o filósofo vai dizer que o impossível nessa categorização descon-

certante constitui-se, simplesmente, na falta de uma moldura, de um quadro que permita ao

pensamento operar sobre as semelhanças e as diferenças dos seres. Na falta de um espaço

para o encontro ordenado entre eles, de um sítio onde a sua vizinhança possa se dar, falta

que nos é revelada pela série alfabética (a, b, c, d) que une os seres entre si, ocupando os

espaços vazios entre eles. Ou seja, tais animais só podem encontrar-se na voz imaterial que

pronuncia a sua classificação, na página da enciclopédia onde estão escritos, isto é, na lin-

guagem, no não lugar da linguagem.

No livro, o autor procura entender quais as bases de ordenação, quais os exercícios

de ordem, que desde o século XVI, deram condições para surgir o saber, tornando possí-

veis teorias e conhecimentos daquela época. Focalizando a linguagem, os seres naturais e

as trocas econômicas, ele procura pelo a priori histórico e pelo elemento de positividade

que serviram como terreno para o surgimento e a constituição de idéias, de ciências e de

racionalidades. Não procura pela história no sentido tradicional, procura por uma arqueo-

logia. E nesse percurso, encontra o que entende como as duas grandes descontinuidades na

episteme da cultura ocidental: a que inaugura a idade clássica – meados do século XVII – e

a que assinala o limiar da modernidade – início do século XIX. O que ordena nosso pen-

samento não é o que ordenava o pensamento clássico. Como exemplo, a História Natural

teria muito mais relações com a gramática geral clássica e a análise das moedas feita em

sua época, do que com a própria Biologia que depois se constituiu.

Essa perspectiva teórica caracteriza o estruturalismo, que procurando pela estrutura

ou pela forma do momento presente, vê a razão e a história como descontínuas, que se rea-

lizam por saltos e rupturas, constituindo-se em nova razão e em nova história.

No capítulo 5, “Classificar”, Foucault vai analisar a História Natural da época clás-

sica, vista por ele como a era da representação. Antes, já existiam “histórias” de animais e

de plantas, que juntavam e teciam tudo o que se dizia sobre eles, compondo a rede semân-

tica que os envolvia. Não havia divisão entre observação, documento e fábula, tudo servia

para compor os signos. No século XVII, ocorre uma “decantação” do conhecimento, os

Page 96: Tese experimentos de botânica

83

seres são despidos das muitas palavras que recolheram para si e os signos tornam-se repre-

sentação. Segundo o autor, a História Natural instala-se nesse espaço silencioso aberto en-

tre as palavras e as coisas. A ordem descritiva proposta por Lineu comporta um olhar es-

treito e minucioso sobre as plantas, seguido por uma transcrição com palavras neutraliza-

das e fiéis. Uma ordem descritiva que se pauta na definição do que os botânicos denomi-

nam por estrutura, conjunto de quatro variáveis para o estudo dos órgãos vegetais. A His-

tória Natural, com sua “língua bem feita”, é uma nova maneira de fazer história, a que ex-

põe as coisas em quadros, ordenadas e com um nome. Os herbários, as coleções e os jar-

dins botânicos são os documentos dessa nova história8.

A segunda descontinuidade, considerada pelo filósofo, na história das ciências bio-

lógicas se dá ao final do século XVIII. A História Natural não se tornou a Biologia. Neste

momento forma-se uma nova episteme que define novas condições de possibilidade do

conhecimento, recortando na experiência outro campo de saber, armando o olhar cotidiano

de outros poderes teóricos e redefinindo as condições nas quais um discurso sobre os seres

é reconhecido como verdadeiro. Para o autor, são os estudos de Cuvier, que fazem a reno-

vação, introduzindo a idéia de descontinuidade das formas vivas, abrindo pela dissecção

dos animais, o caminho para uma história própria à vida. A anatomia, o organismo, a orga-

nização interna e a série são elementos desse novo arranjo. Mayr (1998a) também destaca

as inovações propostas por Cuvier, ainda que mantenha bases da lógica aristotélica, e ates-

ta a importância de seus estudos e o impacto que produziu entre os zoólogos. A abordagem

dos seres vivos feita por Cuvier distingui-se pelo interesse na classificação e nos seus prin-

cípios, dispensando os esquema de identificação tão fortes em Lineu.

As reflexões de Foucault nos ajudam a pensar e a compreender aspectos do proces-

so histórico de constituição da Botânica e da Biologia, somando-se e confrontando-se a

outras referências que já estamos discutindo, e a atribuir novos sentidos à tarefa de classifi-

car os seres vivos, realçando a importância e a complexidade das classificações biológicas.

Assim, voltemos aos “mundos novos abertos diante de nossos olhos”, voltemos à classifi-

cação do início desse tópico, que nos é bem mais concebível e familiar, das famílias vege-

tais.

8 “As palavras e as coisas” é um livro brilhante e polêmico de Foucault, que marcou profundamente a Lin-güística e as demais ciências humanas. Segundo Billouet (2003), o texto contém uma periodização do passa-do recente, um consistente manifesto estruturalista e uma reflexão sobre a destruição do humanismo. E apre-sentando as teses muito discutidas da morte do homem e do apagamento do sujeito.

Page 97: Tese experimentos de botânica

84

“... Estudaremos uma por uma todas as famílias: as orquídeas, as jasmíneas, as

rubiáceas, as oleáceas, as narcisas, as umbelíferas, as...”.

A consciência do Barão de quanto é extenso o caminho do conhecimento produzido

e seu entusiasmo e desvelo para com a educação científica de Helena, cujos interesses es-

cusos o público bem sabe, ao lado do efeito cômico que propiciam à situação da peça, não

deixam de lembrar o entusiasmo de todo professor de ciências ao iniciar um por um o estu-

do dos Reinos e Fila de seres vivos, geralmente na 6a série do Ensino Fundamental. Entu-

siasmo e desvelo requeridos a quem sabe o volume de informações e conceitos envolvidos

e imagina os percursos de transposição didática necessários. Poderíamos até dizer, parodi-

ando os gregos: longo é o programa (que aqui tem a extensão de toda a biodiversidade) e

breve o calendário.

O trecho da peça destacado anteriormente mantém vínculos diretos com os conteú-

dos de ciências que, de uma forma geral, são trabalhados na 6a série. Na proposta curricular

estabelecida para as turmas enfocadas nessa pesquisa constavam, como tópicos iniciais,

conteúdos relativos à diversidade e à classificação dos seres vivos. O professor responsável

já havia preparado três aulas para o seu desenvolvimento.

A importância das classificações.

Para as turmas envolvidas na pesquisa, a introdução ao estudo dos seres vivos foi

desenvolvida com o apoio de dois textos didáticos organizados pelo professor, focalizando

as questões da diversidade, a importância das classificações, noções de taxonomia, o pio-

neirismo de Aristóteles na iniciativa de estudar o mundo natural e o trabalho realizado por

Lineu.

Apesar da forma resumida, com destaque para as categorias taxonômicas, com que,

em geral, esse tópico de estudo costuma ser desenvolvido no ensino de Ciências, podemos

pensar na sua relevância a partir da importância que possui em termos históricos e na forte

relação que mantém com o processo de constituição da Biologia como uma ciência autô-

noma. Como já assinalamos, Mayr (1998a) sustenta que a diversidade entre os organismos

sempre foi percebida como o aspecto mais característico do mundo vivo e que sempre que

se trate da diversidade, as classificações se fazem necessárias, exercendo assim uma impor-

tância vital para a Biologia, estando a formulação dos sistemas de classificação imbricados

ao próprio processo de desenvolvimento dos estudos biológicos e, em grande parte, contri-

Page 98: Tese experimentos de botânica

85

buindo para a sua ocorrência. As considerações de Foucault ampliam essa perspectiva,

chamando a atenção para as rupturas que se efetivam nesse percurso histórico.

Nesse contexto, julgamos interessante avaliar o que os alunos pensavam sobre o

tema, naquele momento inicial do estudo, e o que já haviam aprendido sobre ele anterior-

mente, de forma a poder imaginar que sentidos todas essas referências à taxonomia vegetal

trazidas pelo texto de Machado de Assis poderiam representar para eles. As tabelas 11e 12

mostram, respectivamente, as respostas dos alunos das turmas 601 e 603 à questão 1/5,

relativa à importância das classificações biológicas: “A Biologia é a ciência que estuda os

seres vivos. Ela se preocupa em classificar esses seres em diferentes grupos. Na sua opini-

ão, qual é a importância de se classificar cientificamente os seres vivos?”. As respostas dos

alunos, quando constituídas por mais de um item, foram computadas em mais de uma cate-

goria.

TABELA 11

Respostas da turma 601à questão 1/5: A Biologia é a ciência que estuda os seres vivos. Ela se preocupa em classificar esses seres em

diferentes grupos. Na sua opinião, qual é a importância de se classificar cientificamente os seres vivos?

Categorias Total de respostas

Sub-itens No de respostas

Diferenciar 9 Organizar 4

Diferenciação

15

Identificar 2 Facilitar 3

Melhor estudo 5 Maior conhecimento 4

Conhecimento

13

Melhor entendimento 1 Não responderam 2 x 2

TABELA 12

Respostas da turma 603à questão 1/5: A Biologia é a ciência que estuda os seres vivos. Ela se preocupa em classificar esses seres em

diferentes grupos. Na sua opinião, qual é a importância de se classificar cientificamente os seres vivos?

Categorias Total de respostas

Sub-itens No de respostas

Diferenciar 14 Organizar 3

Reconhecer 1

Diferenciação

19

Contar 1 Melhor estudo / pesquisa 9

Facilitar 5 Maior conhecimento 3

Conhecimento

18

Observação 1 Não responderam 2 x 2

Page 99: Tese experimentos de botânica

86

As respostas mostram, em princípio, que não há maiores dificuldades em se reco-

nhecer a importância das classificações biológicas. Os alunos das turmas 601, que já havi-

am tido as aulas sobre o tema, e os da turma 603, que só haviam discutido o primeiro dos

textos sobre biodiversidade, respondem com equivalente facilidade.

As respostas foram distinguidas nas categorias diferenciação e conhecimento, visto

a ênfase que se julgou estar sendo atribuída a um ou outro dos dois aspectos: identifica-

ção/reconhecimento das diferenças e semelhanças existentes entre os seres e necessida-

de/interesse pelo seu conhecimento e estudo sistemático. Percebe-se um equilíbrio no nú-

mero de respostas entre os dois grupos. Seguem-se, respectivamente, exemplos de enunci-

ados que destacam cada um desses aspectos.

Para diferenciar as coisas como animais, plantas e etc (Stephan, T. 601).

Classificamos para organizar as plantas e animais em semelhanças e diferenças

(Letícia, T. 601).

Para saber mais facilmente sua identificação (Matheus, T. 601).

Para mim é importante porque assim podemos saber suas semelhanças e diferen-

ças de forma mais rápida (Paula, T. 603).

Para ficar mais fácil de reconhecer os animais (Gizele, T. 603).

Existem muitos animais então precisa ocorrer a classificação para organizar os es-

tudos dos seres (Scarleth, T. 601).

Para haver maior conhecimento sobre os seres vivos (Isadora, T. 601).

Para melhorar as condições de estudo das espécies (Kelvin, T. 601).

Para poder ser estudado melhor, para conhecer melhor os animais (plantas) (Lai-

za, T. 603).

Page 100: Tese experimentos de botânica

87

Para quando formos estudar saber o nome da espécie o que ele faz o que ele gosta,

etc (Paulo Henrique, T. 603).

Pois separando fica mais fácil de estudar ou pesquisar cada ser vivo (Ana Caroli-

ne, T. 603).

Alguns alunos também destacam a grande diversidade que pode ser observada entre

os organismos para justificar a necessidade e a importância das classificações.

Porque existem milhares de espécies diferentes (Ana Beatriz, T. 603).

É porque existem vários seres vivos, animais, plantas e humanos, para distinguir as

suas diferenças e semelhança (Lais, T. 601).

Na minha opinião, a importância de classificar os seres vivos é que cada espécie

de ser vivo tem uma forma diferente de sobrevivência (Pauline, T. 603).

Conforme já destacamos, anteriormente, Mayr (1998a) faz uma importante distin-

ção entre esquemas de identificação e classificações no conjunto de trabalhos dedicados à

diversidade biológica. Juntamente com as classificações de objetivo especial, os primeiros,

partindo de um pequeno número de diferenças observadas entre os seres vivos e visando

sua identificação rápida e segura, com função mais prática, enquadram o indivíduo em uma

classificação já existente, funcionando como sistema de armazenamento e recuperação de

informações sobre ele. As classificações, por sua vez, utilizando um número maior de ca-

racteres, se propõem a estabelecer relações entre os diversos seres vivos e formar grupos

mais complexos, contribuindo para um conhecimento mais amplo sobre eles, caracterizan-

do um contexto de produção de conhecimento específico. Segundo já discutimos, histori-

camente, essas duas posições distintas poderiam ser representadas, respectivamente, pelos

estudos e classificações desenvolvidas por Lineu e Buffon, no século XVIII.

Nas respostas analisadas, a ênfase em uma das duas categorias propostas, identifi-

cação/reconhecimento das diferenças e semelhanças existentes entre os seres ou necessida-

de/interesse pelo seu conhecimento e estudo sistemático, pode refletir a importante distin-

ção feita por Mayr entre esquemas de identificação e classificações. Assim, podemos con-

Page 101: Tese experimentos de botânica

88

siderar que o conjunto de respostas dos alunos evidencia e reafirma essa tensão entre as

perspectivas de identificar e de classificar os seres vivos.

Com relação à dimensão lingüística, observou-se que nas duas turmas consideradas,

muitos alunos incluem em suas respostas o termo espécie, enquanto alguns ainda acrescen-

tam os termos família, gênero, ordem, classe, filo e reino e o conceito de taxonomia, como

estudo da classificação dos seres vivos, aproveitando os subsídios fornecidos pelos textos

estudados. No item B4, analisado anteriormente, com relação às respostas dos alunos sobre

a linguagem científica, já consideramos o aparecimento de termos científicos nos enuncia-

dos dos alunos sob o ponto de vista do movimento de transformação de palavras alheias

em palavras próprias, conforme postula Bakhtin. Aqui também é possível imaginar esse

processo de apropriação.

Termos e conceitos científicos podem ser vistos como ferramentas precisas para a

compreensão da realidade, sendo elementos constitutivos do conhecimento e um dos com-

ponentes da linguagem social da ciência e dos gêneros discursivos próprios dessa esfera de

atividade. A incorporação desse vocabulário específico nos enunciados dos alunos é um

indício de que percebem sua importância e funcionalidade nesse domínio discursivo, indi-

cando, como uma possível conseqüência do ensino, que traços da linguagem científica,

começam a ser utilizados como recursos argumentativos, dentro de um contexto de signifi-

cações e de produção de linguagem e de conhecimento.

Ainda com relação à questão 1/5, observamos que alguns alunos parecem inverter a

lógica interna da ação de classificar os seres vivos, como nos exemplos a seguir.

É muito importante para os seres vivos poderem se organizar (David, T. 601).

Assim os animais são individualizados, fazendo com que cada espécie tenha carac-

terísticas próprias (Vinícius, T. 601).

A classificação é importante para que haja uma diferença entre os seres (Lucas, T.

601).

Se você não classificar os seres vivos eles podem morrer (Lucas, T. 603).

São respostas que soam confusas, como se a classificação existisse anteriormente à

própria diversidade e, de certa forma, contribuísse pra ela ou trouxesse alguma vantagem

Page 102: Tese experimentos de botânica

89

concreta para a vida real de cada ser, quando na realidade o que ela faz é possibilitar e via-

bilizar a maior constatação dessa diversidade, a ampliação dos conhecimentos e a configu-

ração de perspectivas de manipulação e de preservação das espécies.

Essas respostas nos alertam para o fato de que um tema de compreensão aparente-

mente simples, cuja maior dificuldade se julgaria estar em conhecer muitos nomes científi-

cos, guarda também alguma complexidade, além dos embaraços causados à aprendizagem

pela cobrança, às vezes excessiva, da terminologia científica e da nomenclatura taxonômi-

ca, como já comentado anteriormente com relação às questões 1/4a e 1/4b.

Critérios para a classificação.

Segundo Mayr (1998, p. 172), perguntas aparentemente simples como: qual a fun-

ção de uma classificação? ou quais os caracteres mais confiáveis? sempre foram alvo de

grandes polêmicas entre os pesquisadores da história natural, podendo-se dizer que a histó-

ria da sistemática foi uma briga sem fim com os mesmos e antigos problemas. O processo

de classificação consiste literal e indiscutivelmente em agrupar objetos individuais em ca-

tegorias e classes. A causa das intermináveis controvérsias era definir a melhor maneira de

realizar tais agrupamentos. Desde os gregos, ainda que já se percebesse que alguns caracte-

res eram mais úteis do que outros na delimitação dos grupos, a eleição de caracteres a se-

rem usados no desenvolvimento das classificações biológicas era fonte de grandes dúvidas.

A abordagem das classificações biológicas no ensino de Ciências sem referências mais

significativas à sua dimensão histórica mostra-se bastante redutora com relação às dificul-

dades envolvidas nesse processo e funciona ocultando a complexidade do tema.

Nas turmas envolvidas na pesquisa, fazendo eco a essas marcas históricas, se não

foram observadas maiores dificuldades para reconhecer a importância das classificações

dos seres vivos, a identificação de critérios usados para desenvolvê-las não parece tão sim-

ples para os alunos. As tabelas 13 e 14 mostram, respectivamente, as respostas das turmas

601 e 603 à questão 1/6, que pede a citação de três critérios utilizados em classificações

científicas conhecidas por eles: Cada critério foi computado como nova resposta a cada vez

que foi citado.

Page 103: Tese experimentos de botânica

90

TABELA 13

Respostas da turma 601à questão 1/6: Cite três critérios que você sabe que são usados pela ciência para classificar os seres vivos.

Categorias Total de alunos Sub-itens citados No de respostasCritério como

taxon

13 Espécie, gênero, família, ordem, classe, filo

36

Critério “encarnado”: exemplos dos próprios seres vivos, categorias

e nomes científicos

10

Cão, lobo, humanos, flores, animais, Canis familiares, Canis lupus, aéreo, terrestre, aquático, vertebrados, rép-teis, mamíferos, vivíparos, ovíparos,

carnívoro

32

Total Organização corporal / Anatomia / Físico / Forma

7

Diferenças e Semelhanças 3 Estrutura de reprodução 1

Ambiente onde vive 1 Jeito 1

Características 1

Critério “autêntico”

6

Cores 1

15

Critério como recursos

2 Tecnologia, estudo, paciência, inteligência

4

Não souberam responder

x X x

TABELA 14

Respostas da turma 603 à questão 1/6: Cite três critérios que você sabe que são usados pela ciência para classificar os seres vivos.

Categorias Total de alunos Sub-itens No de respostasCritério como

taxon

7 Espécie, gênero, família, ordem, classe, filo

27

Critério “encarnado”: exemplos dos próprios seres vivos, categorias

e nomes científicos

9

Anfíbio, herbívoro, mamífero, anfíbio, répteis, animal, vegetal,

mineral, terrestre, aéreo, aquático, humano

27

Total Organização corporal / Anatomia / órgãos

7

Diferenças / Semelhanças 6 Ambiente onde vive 3

Estrutura de reprodução 2 Raça 2

Alimentação 1 Jeito 1

Hábitos 1 Tamanho 1

Critério “autêntico”

12

Sexo 1

25

Critério como recursos

2 Observação / arrumação

2

Não souberam responder

5

x

5

Page 104: Tese experimentos de botânica

91

Apreciamos o conjunto de respostas dadas tomando como critério para agrupá-las

uma maior exatidão no uso do termo critério. Como critérios “autênticos”, foram conside-

radas as respostas que realmente se constituem em critérios para possíveis classificações

biológicas. “Encarnados” são os exemplos de seres vivos, os nomes científicos e as pró-

prias categorias de classificações conhecidas tomadas como critérios. Muitos alunos cita-

ram exemplos de taxa e alguns ainda incluíram recursos ou procedimentos importantes

para a ação de classificar como sendo critérios para classificação.

Entre os critérios autênticos citados, os de maior ocorrência foram: organização

corporal, anatomia e diferenças e semelhanças de forma genérica, que eram exemplos da-

dos no texto didático trazido pelo professor e que alguns alunos da turma 601 tinham dis-

ponível. Entre os encarnados, os mais lembrados, quase como um tributo a Aristóteles,

foram animal, vegetal, mamífero, terrestre, aéreo e aquático.

Apesar de na turma 603 a maioria dos alunos ter citado critérios “autênticos”, a di-

ficuldade em reconhecer o que vem sendo utilizado como critérios de classificação bioló-

gica pode ser percebida pela citação, nas duas turmas, de um número menor de critérios

“autênticos” comparado à soma dos critérios “encarnados”, taxa e recursos citados – 6 alu-

nos x 25 alunos na turma 601 e 12 alunos x 18 alunos na turma 603. Nas duas turmas a

maioria das respostas são critérios encarnados. Indicando essa dificuldade observamos que

dos cinco alunos da turma 603 que não souberam responder à questão, três haviam respon-

dido sem dúvidas à questão anterior 1/5, sobre a importância das classificações.

Se o estabelecimento de critérios para constituir as classificações nunca foi tarefa

simples para os pesquisadores da sistemática, para os alunos que se defrontam com as clas-

sificações produzidas também não é fácil percebê-los. A atenção parece se voltar para as

próprias categorias formuladas, ficando ocultos o seu critério de definição e, junto com ele,

o trabalho científico envolvido, de certa forma contribuindo para mistificar a classificação,

que soa como sempre pronta e natural.

De qualquer forma, a variedade de respostas dadas incluídas como “critérios encar-

nados” deve ser valorizada, no sentido de mostrar que os alunos já têm acumulados diver-

sos conhecimentos sobre as classificações biológicas, e que somados às referências aos

taxa e aos “critérios autênticos” compõem um repertório inicial relativo à taxonomia, que

lhes permite construir novos significados e ampliar seu conhecimento.

Page 105: Tese experimentos de botânica

92

3.2.4 – Sobre as flores.

Lineu considerava que uma classificação deveria ser um sistema que permitisse ao

botânico “conhecer” as plantas, possibilitando ao estudioso atribuir-lhes um nome, com

rapidez e segurança. Daí a necessidade de escolher como base para a classificação caracte-

res bem definidos e estáveis. Desprezando os aspectos vegetativos que se mostravam con-

fusos devido ao grande número de adaptações ao ambiente que podem manifestar, Lineu

elegeu a flor como maior fonte de caracteres para seu método de classificação que, refle-

tindo a importância por ele atribuída ao processo reprodutivo, foi equivocadamente cha-

mado de “sistema sexual” (Mayr, 1998, p.207).

Apresentado em primeira edição em 1735, o Systema Nature de Lineu utilizava

quatro critérios básicos referentes ao número, forma, proporção e situação dos estames e

pistilos da flor e incluindo, entre outras, questões como se as flores eram ou não visíveis e

se ocorriam ou não os elementos masculinos e femininos na mesma flor. Esses critérios

correspondem às quatro variáveis que compõem a estrutura da flor, conforme visto em

Foucault (1966). Estratégia do olhar restritivo e perspicaz que se constituía. Mayr (1998, p.

208) avalia que por mais artificial que tenha sido esse sistema, pautado tanto na divisão

lógica como na intensiva observação dos caracteres externos, ele era extremamente eficien-

te e prático para o trabalho de identificação e para a reserva e recuperação de informações

sobre as plantas. Isto justificou a grande aceitação que teve entre os botânicos, a preponde-

rância que conquistou sobre outros sistemas desenvolvidos e sua rápida adoção por quase

todo mundo.

A estrutura e a importância.

Machado de Assis tece em sua Lição de Botânica algumas alusões a esse conjunto

de referências sobre o emprego das flores para as classificações vegetais e o trabalho de-

senvolvido por Lineu. Entre elas, destacamos as polêmicas científicas da época a respeito

das estruturas florais, a nomenclatura binominal de Lineu e a metáfora das mulheres como

flores, sobre as quais comentaremos a seguir.

Tais alusões aos assuntos da Botânica, que brotam nas falas do Barão, são mostras

da facilidade com que a literatura, enquanto expressão da arte, consegue pinçar temas de

outras esferas do conhecimento e, em seu aparente descompromisso com a exatidão e as

explicações das ciências, consegue lidar com eles, aglutinando e arranjando pontos tão

significativos de tais domínios. Possibilidades que gostaríamos de considerar como efeitos

do fenômeno de exotopia, pelo qual uma cultura, através do excedente de visão que possui

Page 106: Tese experimentos de botânica

93

da outra, tem condições de compreender, informar e completá-la em suas especificidades,

conforme discutido por Bakhtin. Possibilidades que são também, nas dimensões cognitiva

e escolar, vínculos possíveis entre o texto literário e os conteúdos de ensino, a serem explo-

rados de forma interessante e proveitosa pelos professores.

Barão – “As gramíneas têm ou não têm perianto? A princípio adotou-se a negativa,

posteriormente... V. Senhoria talvez não conheça o que é o perianto...

Cecília – Não, Senhor.

Barão – Perianto compõe-se de duas palavras gregas: péri, em volta e anthos, flor.

Cecília – O invólucro da flor!.

Barão – Acertou! É o que vulgarmente se chama cálice. Pois as gramíneas eram

tidas...”

Como o próprio Barão nos indica em seu diálogo com Cecília, as flores estavam na

pauta dos debates científicos da época mas, dado o cunho erudito do assunto, era provável

que os leigos, incluindo aí Cecília, Helena, D. Leonor e nossos alunos do Ensino Funda-

mental, não conhecessem o perianto e nem as gramíneas. Assim, tivemos o interesse em

identificar, através de atividades da pesquisa, a função e a importância que os alunos atri-

buíam às flores e em procurar garantir, por uma breve abordagem pontual desses tópicos

em aula anterior à apresentação da peça, que tivessem informações iniciais e pudessem

melhor aproveitar a história.

As tabelas 15 e 16 mostram, respectivamente, as respostas das turmas 601 e 603 à

questão 1/7: “Qual é a importância das flores para a vida dos vegetais?”. Cada item presen-

te nas repostas foi computado como nova resposta.

Page 107: Tese experimentos de botânica

94

TABELA 15

Respostas da turma 601 à questão 1/7: Qual é a importância das flores para a vida dos vegetais?

Categorias de respostas

Sub-categorias Total Sub-itens No de respostas

Reprodução / Perpetuação 19 Disseminação 3

Dar frutos 2

Corretas

25 Polinização 1 Alimentação 5

Sobrevivência 1 Equivocadas ou

imprecisas

7 Soltam coisas de que elas precisam 1

Biológicas

Perspectiva ecológica

1 Transmitem alimento para todos os seres vivos

1

Beleza 2

Antropocêntricas

x

3 Cor 1

Não souberam responder

x

x

x

x

TABELA 16

Respostas da turma 603 à questão 1/7: Qual é a importância das flores para a vida dos vegetais?

Categorias

de respostas

Sub-categorias

Total

Sub-itens

No de respostas

Puxar água /sais minerais 4 Dar vida/ Sobrevivência 2

Fazer oxigênio 1 Fotossíntese 1

Adubo para ela mesma 1

Equivocadas ou imprecisas

9

Alimento 1 Para os insetos comerem 1 Dá vida para os animais 1

Perspectiva ecológica

3

Para adubar o solo 1 Reprodução 1

Biológicas

Corretas

2 Polinização 1

Importante para nossa vida 2 Produção de perfume 2

Para abelha fazer nosso mel 1

Antropocêntricas

x

6

Embelezar o ambiente 1 Não souberam

responder

x

10

x

10

Page 108: Tese experimentos de botânica

95

As respostas foram classificadas como antropocêntricas, quando relacionadas à vida

humana e seus valores, ou biológicas, quando relacionadas a algum aspecto da Botânica,

sendo então consideradas corretas, equivocadas/imprecisas ou com uma perspectiva ecoló-

gica. Computou-se o número de alunos que não souberam responder.

Na turma 601, que respondeu à atividade 1 já tendo participado da aula na qual o

professor apresentou o tema da estrutura e função das flores e do processo de polinização,

todos os alunos souberam responder e foi marcadamente maior o número de respostas bio-

lógicas com referências corretas, sobretudo destacando a função de reprodução vegetal. As

respostas antropocêntricas não foram muito expressivas.

Com relação aos enunciados produzidos pelos alunos e sua provável relação com o

que foi dito pelo professor na apresentação sobre o assunto, podemos observar alguns as-

pectos.

As flores são importantes pois são elas que “fabricam” os vegetais (Lucas, T. 601).

Lucas resolve a questão dando um sentido figurado a seu enunciado, utilizando o

verbo fabricar entre aspas e, assim, resumindo toda a seqüência que começa com as flores

que polinizadas e fecundadas originam os frutos, que contêm as sementes, que se desen-

volvem em novos vegetais.

Na resposta abaixo as aspas também são usadas, mas com uma intenção que imagi-

namos ser distinta da de Lucas.

É a “estrutura de reprodução” (Scarleth, T. 601)

Scarleth parece querer acertar a questão repetindo as palavras usadas pelo professor

ao apresentar o tema e que, aqui, representam as palavras da ciência e demarcam sua lin-

guagem, a qual costuma utilizar grupos nominais e atribuir maior densidade léxica aos

termos que emprega.

O mesmo conteúdo temático pode ser encontrado nos enunciados abaixo, sem as

aspas:

Elas que carregam a estrutura de reprodução dos vegetais, tendo assim uma im-

portância para a vida dos vegetais (Vinícius, T. 601).

Page 109: Tese experimentos de botânica

96

Que ela tem os aparelhos reprodutores necessários para a reprodução (masculino

e feminino) (Danilo, T. 601).

Comparando-se as respostas mostradas a seguir, consideramos que a primeira, assi-

nalando a polinização da flor como condição para sua participação na reprodução do vege-

tal e, assim, no processo de perpetuação da espécie, mostra-se como uma resposta já mais

enriquecida e completa quando comparada a segunda resposta também correta:

A importância das flores na vida dos vegetais é que as flores sendo polinizadas

permitem que aquela espécie não desapareça. (Kelvin Costa, T. 601).

Para a reprodução da espécie (Isadora, T. 601).

A resposta mostrada abaixo nos remete à necessidade de reflexão, pelo professor,

sobre o que pode ser lido nos escritos dos alunos, sobre a tensão entre o dito e o que ficou

por dizer:

A importância é o perianto e etc. Ela também não ia poder ter frutos. (Washyng-

ton, T. 601).

Tudo indica que Washyngton sabe que a importância da flor é realizar a reprodução

vegetal, mas ele deixa isso apenas implícito ao dizer que ela, isto é, a planta sem as flores,

não poderia ter frutos. Ele parece se lembrar de que o professor utilizou vários elementos

para explicar o assunto, visto sua grande complexidade, mas consegue citar apenas o peri-

anto e então resume tudo o que não pode se lembrar com o etc.

Porque sem as flores não teria tantos vegetais. (David, T. 601).

Sim, é verdade! O estudo da evolução vegetal nos mostra que o desenvolvimento

das flores, tornando a reprodução sexuada mais eficiente, permitiu a grande expansão do

grupo das Angiospermas9. Mas se isso não está dito explicitamente na frase de David, pode

ser um conhecimento implícito não expresso na resposta. Então é preciso pensar no que foi

9 Angiospermas: grupo das plantas com flores.

Page 110: Tese experimentos de botânica

97

falado na aula anterior e imaginar se ele estaria considerando tais premissas e apresentando

aqui uma conclusão final da importância das flores para a vida dos vegetais, o que torna

sua resposta bastante satisfatória, apesar de aparentemente vaga.

Além de nos indicar que os alunos da turma 601, em sua maioria, acompanharam as

explicações do professor e aprenderam sobre a composição e a importância das flores, essa

questão pôde nos chamar a atenção para a forma de escrita dos alunos. Na perspectiva de

que a linguagem é elemento constitutivo do conhecimento, sendo portanto condição para

que a aprendizagem ocorra, respostas menos ou mais completas e formuladas de uma for-

ma menos ou mais interessante em termos de linguagem mostram que os alunos têm cami-

nhos distintos para tecerem seus enunciados e que esses podem indicar a permanência em

pontos distintos dos processos de construção de significados.

Diante de uma resposta incompleta ou evasiva a uma questão, torna-se importante

que o professor se pergunte: “o que o aluno quis dizer com isso?” e desenvolva uma apre-

ciação mais ampla, considerando a perspectiva de que os enunciados têm uma dimensão

dialógica e são referentes a um dado contexto de produção e, de certa forma, são sempre

enunciados responsivos e se constituem, como propõe Bakhtin, em contra-palavras às pa-

lavras já formuladas. O professor pode tentar recuperar a cadeia de enunciados que já se

promoveu em sala de aula e procurar entender o que o aluno pretendeu dizer, remetendo-se

a enunciados anteriores que aqui estariam ocultos, mais ainda presentes e fazendo eco nos

novos enunciados. É como se fosse uma única conversa, mesmo que ocorra em momentos

diversos, interrompidos pelos intervalos que separam uma aula dada da realização de uma

atividade escrita pelos alunos e, ainda, da posterior leitura e correção pelo professor dos

textos produzidos. Mais à frente, na análise de outras respostas, poderemos retomar essas

considerações, complementando-as com as noções bakhtinianas de gêneros do discurso

primário e secundário.

Na turma 603, o grande número de alunos que não souberam responder à questão e

de respostas consideradas equivocadas ou imprecisas pode ser justificado pelo fato de que

essa turma ainda não havia tido a aula sobre as flores. A questão se caracterizou como um

pré-teste, evidenciando o desconhecimento da maioria dos alunos sobre o assunto. Dados

que mostraram ter sido importante a iniciativa de apresentar tais conteúdos em aula anteri-

or à apresentação da peça, procurando fazer com que os termos e conceitos vinculados à

Botânica fizessem algum sentido para os alunos, possibilitando-lhes uma melhor aprecia-

ção do texto e da graça da Lição de Botânica. Implementa-se uma via dupla: o ensino aju-

da a peça e a peça ajuda o ensino.

Page 111: Tese experimentos de botânica

98

Cores e perfumes.

Os registros fósseis mais antigos atribuídos claramente às angiospermas, incluindo

flores e grãos de pólen, datam de cerca de 130 milhões de anos atrás. As plantas com flores

se tornaram dominantes no mundo inteiro entre 80 e 90 milhões de anos atrás. Como pos-

síveis razões para esse sucesso evolutivo estão diversas adaptações, sobretudo a evolução

de mecanismos especializados de polinização e dispersão de sementes.

As plantas, em sua condição de organismos fixos, não podem deslocar-se de um lo-

cal para outro à procura de um parceiro para a reprodução sexuada. Desenvolveram, então,

incorporado às suas flores, um conjunto de características que as tornaram atraentes para os

diferentes agentes polinizadores e, através da marcante interação mantida com eles, conse-

guem orientar a determinação dos parceiros, garantindo a ocorrência da fecundação cruza-

da e as conseqüentes condições de variação genética e possibilidades de evolução. Como

exemplos de tais interações, vemos que flores polinizadas por besouros têm tipicamente

cores pouco vistosas e odor forte; as polinizadas por abelhas são comumente azuis ou ama-

relas com marcas características; flores polinizadas por mariposas e borboletas freqüente-

mente têm o tubo da corola longo; as polinizadas por aves produzem grandes quantidades

de néctar e são freqüentemente vermelhas e sem odor; quando polinizadas por morcegos

produzem muito néctar, têm cores pouco vistosas e fortes odores e flores polinizadas pelo

vento têm pétalas pequenas ou ausentes, não produzem néctar, têm cores pouco vistosas e

não apresentam odor (Raven et al, 2001). Nesse último caso se incluem as Gramíneas do

Barão de Kernoberg, motivo da polêmica acadêmica sobre o perianto.

A compreensão da importância das flores para a vida dos vegetais inclui a noção

das adaptações florais para permitir ou potencializar sua interação com os agentes polini-

zadores específicos e garantir a eficiência da fecundação. Este tema de estudo é, portanto,

bastante interessante por permitir a articulação com aspectos evolutivos e ecológicos im-

portantes.

Com relação à dimensão evolutiva dos seres vivos, vale pontuar, aqui, o papel capi-

tal de Darwin para os estudos de taxonomia. Segundo Mayr (1998a), foi ele quem forneceu

a teoria básica de classificação biológica que até então faltara a todos os pesquisadores que

desenvolveram sistemas de classificação. Destacam-se a grande importância de Darwin

para a classificação da diversidade da vida e a presença da evolução como teoria unificante

da Biologia, assumida no decurso de um longo debate histórico nos séculos XIX e XX.

Apesar disso, vemos, pelas referências teóricas discutidas aqui, a grande força e tradição da

História Natural no campo dos estudos biológicos. Assim, podemos procurar entender a

Page 112: Tese experimentos de botânica

99

presença ainda marcante da Botânica e da Zoologia nos currículos escolares, nem sempre

trabalhadas com uma perspectiva evolutiva. Selles & Ferreira (2005) destacam essa ques-

tão, sugerindo a necessidade de se problematizá-la, à luz dos estudos sócio-históricos das

disciplinas escolares. Ainda que o ensino de Biologia venha difundindo a teoria da evolu-

ção e uma visão da Biologia como ciência autônoma e unificada, o ensino dos seres vivos,

manifestando uma continuidade histórica, ainda reserva destaque à História Natural.

Retomando a discussão sobre a importância das flores para a vida dos vegetais, pro-

curou-se conhecer o que os alunos já sabiam sobre o tema. As respostas das turmas 601 e

603 à questão 1/8: “Você sabe explicar por que muitas flores têm cores bonitas e bons

perfumes?”10 estão apresentadas, respectivamente, nas tabelas 17 e 16.

TABELA 17

Respostas da turma 601 à questão 1/8: Você sabe explicar por que muitas flores têm cores bonitas e bons perfumes?

Categorias

de respostas

Sub-categorias

Total

de alunos

Sub-itens

No de

respostasNão souberam responder X x x x

Respostas indefinidas X x x x Atrair agentes polinizadores 12

Polinização / pólen 4 Atrair pessoas 5

Atrair 3 Por causa do perianto 2

Corretas

27

Reprodução 1 Porque nascem assim 1

Porque é natural 1

Equivocadas ou imprecisas

3

Por causa da flor macho e fêmea espalhadas pelo vento

1

Biológicas

Perspectiva ecológica

x x x

Antropocêntricas X x x x

10 Nesse momento de análise dos dados, podemos reconhecer que a referida questão guarda uma conotação finalista de evolução, que reconhecemos ser comumente observada no contexto escolar.

Page 113: Tese experimentos de botânica

100

TABELA 18

Respostas da turma 603 à questão 1/8: Você sabe explicar por que muitas flores têm cores bonitas e bons perfumes?

Categorias

de respostas

Sub-categorias

Total

de alunos

Sub-itens

No de

respostasNão souberam responder X 13 x 13

Respostas indefinidas X 6 x 6 Corretas 1 Atrair o beija-flor 1

Já é da natureza delas 2 A natureza escolhe 2

Por causa da fotossíntese 1 Porque produzem oxigênio 1

Equivocadas ou imprecisas

7

Por causa da terra molhada e com esterco

1

Formar cadeia alimentar com o beija-flor

1

Biológicas

Perspectiva ecológica

2

Alimento para animais 1 Porque são bem cuidadas 1 Para usar o perfume e as

substâncias coloridas

1

Antropocêntricas

x

3 Para perfumar e embelezar 1

Conforme foi observado para a questão 1/7, sobre a importância das flores, os alu-

nos da turma 601, que haviam tido a aula sobre esse conteúdo, respondem sem dificuldades

a respeito das adaptações para a atração dos polinizadores, e observa-se um número redu-

zido de respostas equivocadas e nenhuma com visão antropocêntrica. Já na turma 603,

também coerente com os resultados da questão 1/7, muitos alunos não souberam responder

ou deram respostas indefinidas; entre as respostas com perspectiva biológica foram mais

numerosas as que julgamos equivocadas e apenas uma delas considerada correta e apare-

cem, ainda, respostas voltadas para a ótica humana.

A falta de subsídios de cunho científico para responder à questão parece permear a

maioria das respostas da turma 603 e pode ser percebida de forma mais clara pelo enuncia-

do abaixo:

Não sei e não tenho o que pensar e falar (Guilherme, T. 603).

O mesmo aluno havia respondido, equivocadamente, que as flores servem para su-

gar os minerais da terra, e como respondeu de forma interessante e participativa às outras

Page 114: Tese experimentos de botânica

101

seis questões da atividade, não se entende sua resposta aqui como expressão da falta de

interesse pela atividade de pesquisa.

Nas duas turmas surgem respostas referentes à espontaneidade e naturalidade das

características das flores, como as citadas abaixo:

Mais ou menos porque uma das flores nasce com cores diferentes e bem perfuma-

das cada uma tem o jeito de forma-se (Jackson, T. 601).

Porque já é da natureza da planta (Gizele, T. 603)

Porque são delas nascer assim (Jennifer, T. 603).

Essa postura de naturalização para explicar as características ou fenômenos que o-

correm nos seres vivos, e que se traduz em uma explicação tautológica, pode ser avaliada

como uma visão essencialista da natureza e estar refletindo a falta de argumentos científi-

cos e de conhecimento específico por parte dos alunos.

Mostrando que os enunciados dos alunos às vezes são mesmo enigmáticos para os

professores, duas respostas nesse mesmo caminho levantam dúvidas, não deixando claro o

conhecimento que o aluno já possui:

Algumas flores tem cores bonitas porque é natural e elas tem perfume por causa do

pólen (Patrick, T. 601).

A presença do pólen aqui pode fazer muita diferença na qualidade da resposta se ela

for uma referência ao processo de polinização, para o qual o perfume das flores tem grande

importância.

Porque é a natureza que escolhe (Ana Beatriz, T. 603)

Não se pode saber se a aluna está considerando em sua resposta o processo de sele-

ção natural, pelo qual as flores coloridas e com perfumes teriam sido “escolhidas” por esta-

rem mais adaptadas à reprodução sexuada. Como ela havia respondido a respeito da impor-

tância das flores com uma resposta antropocêntrica: “é importante para a nossa vida”, e já

Page 115: Tese experimentos de botânica

102

que se trata de um tema complexo e a turma ainda não teve aulas sobre isso nessa série, é

provável que a resposta se restrinja a uma visão essencialista da natureza.

A questão 1/8 pede que o aluno explique por que muitas flores têm cores bonitas e

bons perfumes. Como a resposta não se mostrou fácil para muitos dos alunos, é interessan-

te destacar aqui algumas considerações de Mayr (1998a) sobre a Biologia evolutiva e que

estão fortemente relacionadas à forma como a questão foi formulada.

Com a intenção de distinguir a importância que as narrativas históricas podem ter

para algumas ciências, em relação a outras que se mostram mais ligadas a axiomas e leis

gerais, Mayr destaca que tais narrativas têm grande valor explicativo, visto que os eventos

mais antigos de uma seqüência histórica normalmente constituem uma contribuição causal

para eventos posteriores.

Com relação à Biologia evolutiva, para quem as narrativas históricas dão grande

contribuição, o autor aponta como aspecto mais característico o tipo de questão que se co-

loca. Em vez de se concentrar no “o quê?”, como faz a Biologia das causas próximas, ela

pergunta pelo “por quê?”11. Se um organismo apresenta certas características, elas devem

derivar das de um ancestral ou foram adquiridas, por gozarem de vantagens seletivas. As-

sim, a questão “por quê”, no sentido de “para quê”, tem um poderoso valor heurístico para

a compreensão do mundo vivo, ajudando a elucidar as causas evolutivas, que junto às cau-

sas próximas podem propiciar o conhecimento satisfatório dos processos biológicos.

Nesse contexto, podemos perceber que a questão 1/8, que se remete às implicações

evolutivas dos vegetais, formulada com a expressão “por que?”, na verdade, tem o sentido

de “para que as flores têm cores e perfumes?”. O conjunto de respostas dos alunos mostra

um dado interessante, nesse sentido: na turma 603, que apresentou apenas uma resposta

correta, todos os enunciados responsivos, com exceção de dois deles, começam com o ter-

mo “Porque...” e na turma 601, onde a maior parte das respostas foi correta, a maioria dos

enunciados começa com o termo “Para...”. Coisas da linguagem!

11 Conforme já pontuamos nesse trabalho, segundo Mayr (1998, p. 87 - 94), a Biologia pode ser dividida entre o estudo das causas próximas, objeto das Ciências Fisiológicas, e o estudo das causas últimas (evoluti-vas, históricas), objeto da História Natural. As causas próximas dizem respeito às funções de um organismo e às suas partes, incluindo seu desenvolvimento. As causas últimas buscam explicar por que esse organismo é do jeito que é. Esses dois tipos de causalidade se devem à existência, nos seres vivos, de um programa gené-tico. As causa próximas tratam da decodificação do programa e as causas evolutivas de suas mudanças ao longo do tempo e das razões para sua ocorrência.

Page 116: Tese experimentos de botânica

103

Encerramos, assim, as análises das nossas Primeiras Questões, propostas pela Ati-

vidade no 1 de pesquisa, abordando aspectos relativos à ciência, à linguagem científica, às

classificações biológicas e às flores. Buscou-se promover uma reflexão junto aos alunos e

captar suas idéias acerca desses tópicos. Procurou-se, também, criar um contexto teórico e

discursivo que pudesse iluminar o palco para a apresentação da peça escrita por Machado

de Assis, em 1906.

Mulheres como flores.

Para finalizar esse capítulo do trabalho, aproveitamos, ainda, para tratar uma última

questão teórica, a partir do tópico de análise sobre as flores, suscitado pela Lição de Botâ-

nica. Considerando que estamos lidando com um texto literário no ensino de Ciências, e

que o emprego de metáforas tem sido, tradicionalmente, uma distinção feita entre as lin-

guagens científica e literária, podemos propor uma articulação entre imaginação e metáfo-

ras, a partir de considerações inter-relacionadas de Jorge Luis Borges e de Bachelard.

O poeta argentino se admira de que, mesmo sendo possível formular um número

quase infinito de metáforas, já que para obtê-las bastaria encadear duas coisas diversas, os

poetas pelo mundo afora e pelos tempos afora continuam a empregar um número reduzido

de metáforas surradas pelo uso. Ele cita alguns modelos dessas metáforas batidas, que têm

se repetido nas obras literárias: olhos como estrelas, tempo fluindo como um rio; mulheres

como flores; vida como sonho; dormir como morrer; batalha como incêndio e o inverso de

cada uma delas, que também são metáforas: estrelas como olhos, rio fluindo como o tem-

po, etc (Borges, 2000).

Para Borges, o mesmo modelo metafórico pode produzir efeitos e sensações diver-

sas a cada vez que aparece, já que é sempre um apelo à nossa imaginação. Para ele, o se-

gredo e a força das metáforas, das quais a literatura sempre tira algum proveito, reside em

que elas sejam sentidas pelo leitor ou pelo ouvinte como uma metáfora, ou seja, como um

significado apenas insinuado e não afirmado com exatidão. Porque no seu entender, “qual-

quer coisa sugerida é bem mais eficaz do que qualquer coisa apregoada. Talvez a mente

humana tenha uma tendência a negar declarações. Lembrem o que dizia Emerson: argu-

mentos não convencem ninguém. Não convencem ninguém porque são apresentados como

argumentos. E então os contemplamos, e refletimos sobre eles, e os ponderamos, e acaba-

mos decidindo contra eles. Mas quando algo é simplesmente dito ou – melhor ainda – in-

sinuado, há uma espécie de hospitalidade em nossa imaginação. Estamos dispostos a acei-

tá-lo” (Borges, 2000, p. 40).

Page 117: Tese experimentos de botânica

104

As relações entre razão e imaginação e o valor das imagens e das metáforas para

nosso pensamento também podem ser vistos sob a ótica de Bachelard. Como já considera-

mos anteriormente, ele nos oferece um duplo legado de reflexões. Por um lado analisa a

formação de um novo espírito e de um novo pensamento científico, discutindo as noções

de ruptura e de obstáculos epistemológicos e a função positiva do erro na gênese de co-

nhecimento que estará sempre em retificação. Nesse percurso, percebe as armadilhas que a

linguagem, terreno minado, pode reservar ao pesquisador, pois, o pensamento e o discurso

científicos, que se querem clarificados e sem ambigüidades, devem lutar incessantemente

contra as imagens, contra as analogias, contra as metáforas (Bachelard, 1996a, p. 48).

Por outro lado, num convite à arte e à poesia, que pode soar como contraditório

mediante tamanha atenção para com o rigor de uma linguagem e de uma racionalidade

científicas renovadas, o mesmo pensador nos permite perceber a capacidade da poesia em

mobilizar nossa imaginação e fertilizar nosso pensamento. O encantamento das metáforas

age no íntimo de nossa razão. “Não se pode confinar as metáforas, tão facilmente quanto

se pretende, apenas no reino da expressão. Quer se queira ou não, as metáforas seduzem a

razão” (Ibid. p. 97). E assim, o filósofo e epistemólogo, que tanto advertira o espírito cien-

tífico sobre os perigos do devaneio poético, se reconhece perigosamente envolvido pela

poesia, tão imprescindível, e reclama para si, e para todos nós, “o direito de sonhar”.

Como destaca Pessanha (1994, p.x), “de fato, nesse momento, o próprio Bachelard

já se encontra definitivamente seduzido pelo material que compõe a ganga de onde tenta

extrair as idéias científicas, para que possam brilhar com o brilho puríssimo do ouro da

cientificidade”. E, nesse jogo de seduções, encontra-se com o poeta Borges que também

sugere que “as metáforas vão surpreender a imaginação” (Borges, 2000, p.49).

Machado de Assis salpicou em sua Lição várias metáforas. Destacamos aqui a das

mulheres como flores que, segundo a ironia de Borges, é a mais surrada entre todas, em

todos os tempos.

D. Leonor – “O meu jardim é composto de plantas vulgares.

Barão – É porque as melhores flores estão dentro de casa.”

D. Leonor mostra-se intrigada pela visita inesperada de um botânico sueco desco-

nhecido, quanto mais que não considera a flora de seu jardim capaz de despertar interesses

científicos. O Barão, antes de expor os motivos de sua visita à casa de D. Leonor, qual seja

tentar impedir o namoro de Cecília com Henrique, quer ser gentil e respeitoso com a vizi-

Page 118: Tese experimentos de botânica

105

nha, preparando o terreno para a constrangedora conversa. As flores vêm em seu socorro,

insinuando polidez e originalidade.

Barão – “Que me deixe acompanhá-la em seus estudos, repartir o pão do saber

com V. Senhoria. É a primeira vez que a fortuna me depara com uma dis-

cípula. Discípula é, talvez, ousadia de minha parte...

Helena – Ousadia, não; eu sei muito pouco; posso dizer que não sei nada.

Barão – A modéstia é o aroma do talento e da graça. V. Senhoria possui tudo isso.

Posso compará-la à violeta, Viola odorata de Lineu, que é formosa e reca-

tada...”

Helena, em pleno desenvolvimento de seu plano para ajudar o namoro da irmã,

numa seqüência de simulações, dissimula não ter preparo suficiente para ser considerada

uma discípula de tão preparado mentor. E o que era uma afirmação verdadeira, quase uma

confissão – “posso dizer que não sei nada” – soa como modéstia aos ouvidos iludidos do

Barão. Novamente, as flores auxiliam o botânico. E, agora, na nova metáfora, a mulher

aparece vestida de lilás e a violeta corretamente descrita por Lineu, o que, além de sugerir

gentilezas e admiração, demonstra também a erudição do mestre.

Nesse ambiente onde se misturam metáforas e nomes científicos, podemos lembrar

que as flores já têm significados para os alunos. Como metáfora surrada, como presente

romântico e carinhoso, como enfeite para o ambiente, como alimento para os animais, co-

mo material para os perfumes ou como órgão de reprodução vegetal, as flores existem.

Assim, é interessante pensar como o ensino de Botânica pode estar ampliando esses signi-

ficados, à medida que mostra as flores inseridas na dinâmica da evolução da vida vegetal e

animal e as toma como elementos a serem investigados, coletados, dissecados e classifica-

dos.

Por fim, complementando nossas referências teóricas iniciais, assinalamos que as

relações entre metáforas e imaginação poética ou imaginação científica há muito têm sido

objeto de consideração e análise em campos distintos de pesquisas, que delas não querem

mais prescindir como caminho para o conhecimento. Nas discussões sobre o papel das me-

táforas no pensamento científico destacamos, entre outros, o trabalho de Mary Hesse

(1966). “Bons tempos estes para os amigos da metáfora!”, diz Cohen (1992), referindo-se

à respeitabilidade, ainda repleta de polêmicas, que vem sendo conquistada por esse tópico

Page 119: Tese experimentos de botânica

106

em meio aos pesquisadores, rompendo com uma desconfiança e uma desconsideração clás-

sicas da filosofia ocidental, herdeiras de Platão e Aristóteles.

Já por volta de 1970, as metáforas começam a mudar de vida. Conforme analisa

Zanotto (2002), nesse período, inicia-se uma virada paradigmática, pela qual a metáfora

começa a perder seu enfoque objetivista e a ganhar status epistemológico. Deixa de ser

vista apenas como fenômeno e ornamento da linguagem poética e persuasiva, segundo a

tradição retórica clássica, e é percebida como um elemento cognitivo fundamental, como

fenômeno de pensamento, despertando o interesse da psicologia cognitiva e das ciências da

linguagem. E as pesquisas disparam, com variadas frentes de trabalho.

Entre os inúmeros estudos marcantes que se efetivaram, Zanotto apresenta o livro

Metaphors we live by, de Lakoff e Johnson, de 1980. Partindo da análise de expressões

lingüísticas, e com base nas pesquisas de Reddy, os autores inferiram um sistema conceitu-

al metafórico subjacente à linguagem que influenciaria nosso pensamento e nossa ação. As

metáforas da vida cotidiana estudadas por eles – por exemplo, “discussão é guerra”, “tem-

po é dinheiro”, “feliz é para cima”, “idéias são objetos” – dão vida nova para esses instru-

mentos lingüísticos vistos, agora, como essenciais à compreensão do mundo, da cultura e

de nós mesmos. “A metáfora é como se fosse um dos cinco sentidos, como ver, ou tocar, ou

ouvir, o que quer dizer que nós só percebemos e experienciamos uma boa parte do mundo

por meio de metáforas” (Lakoff e Johnson, 2002).

No âmbito da Educação em Ciências, também houve repercussões da virada para-

digmática acerca das metáforas. Assim, algumas pesquisas, voltadas à dimensão lingüísti-

ca, lhes têm dedicado atenção especial, destacando seu potencial como instrumento para o

ensino e a aprendizagem. Nos estudos de Coracini (1991), Cachapuz (1989) e Sutton

(1992), o potencial das metáforas também é considerado, funcionando em diversos papéis

no ensino de Ciências.

Terrazan (1997) apresenta uma revisão de literatura em ensino de Ciências Natu-

rais, sistematizando resultados de pesquisas que, no período focalizado, investigam o uso

de analogias e metáforas como recursos didáticos ou instrucionais, evidenciando o grande

número de trabalhos produzidos e o interesse que o tópico desperta junto aos pesquisado-

res. O trabalho identificou a abordagem do tema, na literatura já produzida, em três linhas

diferenciadas: trabalhos voltados para o raciocínio metafórico e a construção de conheci-

mento, para a formulação, desenvolvimento e avaliação de estratégias e materiais de ensi-

no, e para a reflexão docente acerca de seu ideário sobre ensino e aprendizagem e de suas

práticas pedagógicas.

Page 120: Tese experimentos de botânica

107

Martins (2001 e 2001) resignifica o conceito de retórica, ampliando-o no sentido de

conjunto de recursos para moldar e apresentar idéias de forma coerente, completa e coesa,

por meio da utilização coordenada de vários meios de comunicação. E nesse movimento,

as metáforas ganham realce como instrumentos do pensar, como ferramentas epistêmicas,

como ingredientes para as explicações científicas, para a comunicação de idéias científicas

e para a construção de uma nova maneira de olhar o mundo e seus fenômenos.

O trabalho de Braga (2003), voltado à caracterização de um gênero de discurso

próprio dos textos de Biologia presentes em livros didáticos de Ciências, desenvolve análi-

ses sobre o uso das metáforas nesses textos voltados ao ensino. Vemos, assim, que mesmo

em um terreno tradicionalmente ingrato, nutrido por concepções epistemológicas reticen-

tes, as metáforas já espalharam numerosas raízes.

Todos esses estudos mostram aspectos positivos do uso das metáforas para o ensino

e a aprendizagem em Ciências e ponderam sobre algumas dificuldades e restrições, tam-

bém observadas em sua utilização, pois, nem tudo são flores. Assim, fornecem subsídios

interessantes para pensarmos os poderes e encantos das metáforas e os perigos de nos en-

tregarmos à sua sedução. Experiências com a linguagem vividas por nós na vida cotidiana,

na literatura, na ciência e nos encontros promovidos entre elas.

Page 121: Tese experimentos de botânica

108

Page 122: Tese experimentos de botânica

109

4 – IMAGENS DA PEÇA

“Em cima de um palco, arena, ou em qualquer espaço transformado de espaço cotidiano em espaço poético (ocupado pela arte), a atividade dramática aponta em nossa memória os lugares

por onde passamos na nossa experiência cotidiana. Pelo espetáculo, pelo evento ou pelo jogo dramático ...

revela-se um tempo da coletividade – sua forma de existir.”

Joana Lopes

4.1 – Imagens

Lição de Botânica, de Machado de Assis

Apresentação para as Turmas 601 e 603 da

Escola Estadual Municipalizada Polivalente Anísio Teixeira

Março de 2004

Page 123: Tese experimentos de botânica

110

Page 124: Tese experimentos de botânica

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Page 125: Tese experimentos de botânica

112

4.2 – O que se diz sobre ela

A apresentação da peça Lição de Botânica foi realizada separadamente para as tur-

mas 601 e 603, na biblioteca da escola. Com o objetivo de captar as primeiras impressões

dos alunos a respeito da peça, desenvolvemos, após a apresentação, uma discussão em gru-

po com cada turma, que foi gravada em vídeo. Apresentamos a seguir nossas considera-

ções sobre esses dados, em muito, orientadas pela perspectiva analítica multidimensional

sugerida em algumas de nossas referências teóricas. Entendemos que esses dados possam

indicar pontos importantes para a reflexão sobre o processo de inserção do texto literário

nesse contexto de ensino.

Durante os ensaios da peça, surgiu entre os alunos que formaram o elenco e a pes-

quisadora uma certa preocupação com relação às dificuldades que os alunos da 6a série

poderiam enfrentar para o acompanhamento e a compreensão do texto da peça, dado a sua

linguagem bastante formal, muitas vezes incompreensível para os próprios atores, alunos

do ensino médio. Pensamos então em superar essa suposta dificuldade realizando algumas

adaptações no texto, como por exemplo traduzir diversas expressões em língua francesa,

substituir palavras muito desconhecidas e resumir algumas falas mais longas.

Uma outra estratégia “facilitadora”, que se mostrou bem aceita pelo público, foi a

introdução de uma espécie de apresentador para a história. Esse novo personagem, à guisa

de um comentador, faz uma introdução à peça12, apresentando seus personagens e o con-

texto no qual se passam as cenas, e em alguns momentos retoma a palavra, alinhavando o

desenrolar da história e criando expectativas para as cenas seguintes. O apresentador ganha

relevo quando, ao final da história, se revela ao público como sendo Henrique, personagem

central da trama que, contudo, não aparece concretamente na peça, tendo apenas seu nome

citado. Essa observação se faz necessária visto que nas discussões das turmas há referên-

cias a ele.

A discussão com a turma 601 se inicia com a clássica pergunta aos alunos sobre se

gostaram da peça. Eles respondem, em coro, aquele também clássico “sim!” que, ao lado

do “não!”, se mostrará bem ensaiado nessas turmas, nos fazendo lembrar os enunciados

mais ou menos estáveis que, segundo Bakhtin, caracterizam os distintos gêneros discursi-

vos e podem ser vistos como formas peculiares e já estáveis das interações discursivas em

sala de aula. Pode-se notar, também, a entonação imposta nessas exclamações, comum em

respostas dadas a perguntas dirigidas a toda turma. Incentivados a não responderem apenas

12 O texto para o “apresentador” foi escrito pela pesquisadora e pelos alunos do elenco (cópia no anexo 6).

Page 126: Tese experimentos de botânica

113

sim ou não, complementam com “gostei!”, “amei!” e pedidos de autógrafos para os atores.

Desde o início e ao longo de toda a conversa, pode ser observado muito riso coletivo entre

os alunos, achando graça das intervenções dos colegas, e diversos momentos em que gru-

pos de alunos respondem juntos, demonstrando atenção e interesse ao que estava sendo

tratado.

Quando são perguntados, alguns alunos responderam prontamente o nome da peça,

o autor e a época em que a história se passa, informações dadas pelo apresentador. Após a

pergunta sobre os personagens e o que acontece na história, a aluna Isadora toma a palavra

e direciona sua fala em um outro sentido, dando sua opinião acerca da apresentação de uma

peça de teatro em aula de ciências:

Eu achei uma peça interessante, achei bacana porque mistura os dois assuntos e fi-ca mais divertido aprender do que você ficar aprendendo no projetor (referência à projeção de transparências na aula anterior em sala) igual foi na sala, com o profes-sor ensinando. Olhando para o professor: não é que você seja menos interessante (risos da turma) mas é que a história eu acho que fica assim, mais legal quando a gente mistura as duas coisas, né? A interpretação com a botânica. Achei que ficou legal.

Podemos destacar que várias opiniões próximas a essa, citando aspectos positivos

da apresentação da peça para a aprendizagem, serão dadas pelos alunos ao responderem à

questão 1 da atividade no 2, aplicada no encontro seguinte, que comentaremos no próximo

capítulo. Na continuidade da discussão junto aos alunos, não havendo outras intervenções

nessa direção, que consideramos mais voltada ao contexto escolar, perguntamos sobre os

personagens e os aspectos principais da história. Alguém quer casar com alguém?

O entendimento do conteúdo é exato:

– Barão de Kernoberg, dona Leonor, Helena e Cecília.

– Cecília, quer casar com Henrique, que é sobrinho do Barão.

A pergunta sobre o que o Barão foi fazer na casa de dona Leonor já não se mostra

tão simples. Inicialmente, três respostas fogem à ordem cronológica dos fatos da história

ou são equivocadas:

– O Barão quer casar com Helena.

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114

– Foi falar de botânica. Se ela estava interessada em aprender alguma coisa so-

bre botânica.

– Foi pedir a mão de Helena em casamento.

Uma quarta aluna dá o motivo exato apresentado na trama:

– Para impedir o casamento de Henrique. Ele achava que o matrimônio ia atra-

palhar ele estudar botânica.

A pesquisadora destaca para a turma a resposta da aluna, que coloca a discussão na

direção pretendida, e relembra a fala com a qual o Barão expressara essa sua opinião de

que os sábios casados seriam mais sábios se... Um aluno completa o enunciado: não fos-

sem casados. É interessante notar que o aluno se lembrou do enunciado ouvido no começo

da peça e até repete os gestos com os braços feitos pelo ator para embalar a fala do perso-

nagem. Na continuidade dos comentários sobre o desenrolar da história, um aluno conta

que ao final, os dois casais ficam juntos. A diferença é que ela [Helena] pediu três meses

para pensar para casar.

A lembrança de que a peça se passa no bairro do Andaraí, no Rio de Janeiro, pro-

voca risos entre eles, pois se lembram e cantam o refrão da música popular que fala do

bairro carioca e é tema musical de uma telenovela exibida naquele período, e que tem esse

bairro como endereço da maioria de seus personagens. A pesquisadora faz um pequeno

comentário pedindo que os alunos imaginem o bairro do Andaraí, no tempo em que Ma-

chado de Assis andava por lá.

Nesse momento, uma aluna interrompe a discussão sobre a história, perguntando

sobre como o elenco conseguiu as roupas que estavam usando. A resposta da pesquisadora

sobre os recursos usados para se fazer teatro na escola, trazendo objetos de casa e pedindo

emprestado a alguém conhecido, desencadeia, a partir daquela pergunta, uma conversa

sobre quem já participou de teatro. Vários alunos comentam, com satisfação, sobre peças

em que atuaram, incluindo trabalhos na própria escola, em igrejas que freqüentam e mes-

mo em grupos de teatro. Dois deles, contudo, manifestam um sentimento de tristeza e certa

frustração por problemas ocorridos com a sua apresentação. Entendemos esse trecho da

discussão, como evidência de que os alunos ligam os assuntos tratados na interação a refe-

Page 128: Tese experimentos de botânica

115

rências próprias e podem encaminhar as interações para lugares imprevistos. No caso, foi a

“fuga ao assunto da conversa”, promovida pela aluna, que nos informou sobre aspectos

relevantes para aquele contexto do trabalho. A apresentação da peça estabeleceu laços com

a própria experiência de alguns alunos com o teatro.

A aluna que havia dado a direção esperada para os comentários sobre a história, de-

finindo de forma exata o que o Barão havia ido fazer na casa de Dona Leonor, tenta reto-

mar o assunto e completar sua opinião, consultando as anotações que havia feito no cader-

no: voltando na história, a Helena teve uma idéia pra mudar esse conceito do Barão. A

pesquisadora pede que ela aguarde um instante, para dar oportunidade a alguns alunos que

já haviam manifestado interesse em falar sobre sua participação em teatro e encerrar essa

seqüência.

Após isso, a aluna completa então: é que a Helena teve a idéia para mudar o con-

ceito do Barão sobre ciência e matrimônio não se davam bem. Podemos observar alguns

detalhes de suas intervenções. (i) Na primeira fala, para impedir o casamento de Henrique.

Ele achava que o matrimônio ia atrapalhar ele estudar botânica, ela emprega a palavra

matrimônio, termo mais formal não usual entre os adolescentes, mas que fora utilizado

pelo Barão no texto da peça; (ii) na segunda e terceira intervenções, após o tempo investido

nos comentários sobre teatro, reinicia sua fala, contextualizando-a com a expressão voltan-

do na história; (iii) utiliza a palavra conceito para significar a opinião do Barão sobre a

referida incompatibilidade e, também, substitui botânica por ciência, indicando que com-

preende que na história uma corresponde à outra. Por esses detalhes, podemos perceber sua

competência lingüística e notar a segurança com que enuncia sua posição e como articula

bem a linguagem para desenvolver suas observações.

Na seqüência da discussão, ao serem perguntados, todos se lembram do que permite

a Helena ter a idéia para ajudar Cecília: o livro esquecido pelo Barão! É quando uma aluna

mostra seu grau de atenção e observação das cenas dizendo: Professora,teve um detalhe

também. Quase que o Thiago esqueceu de esquecer o livro, né?, em referência ao ocorrido

com Thiago, ator que interpreta o Barão. Os alunos riem e comentam que o esquecimento

do esquecimento iria comprometer todo o desenrolar da história.

A referência ao livro permite à pesquisadora puxar a discussão para os conteúdos

de ciências que estão referidos na peça. Temos a seguinte seqüência13:

13 A numeração dos turnos de fala na seqüência citada é provisória para essa parte da análise, não correspon-dendo à numeração na transcrição completa. As letras A numeradas com índices representam os alunos en-volvidos.

Page 129: Tese experimentos de botânica

116

(T1) Pesquisadora - Tem duas coisas que vocês já estudaram nas aulas. Quem lem-bra?

(T2) A1- Perianto (T3) Pesquisadora - Isso. Essa palavra aparece e vocês já estudaram... Risos (T4) A2- Perianto... que é flor em volta, sei lá (risos dele) (T5) A3- Tem as pétalas e as sépalas. (T6) Pesquisadora - É; é o conjunto das pétalas e sépalas. (T7) Vários alunos falam (inaudível) (T8) A4- É uma palavra grega (T9) Pesquisadora - E pra quê que serve? (T10) Vários alunos falam (inaudível) (T11) A5- Para segurar... (T12) A6- Para atração... (T13) A3- Atração dos agentes polinizadores (T14) Pesquisadora- Isso. Serve para ... (faz uma síntese sobre o que eles falaram)

Muito bem, lembra das transparências que a gente viu? (referência à aula anterior)

(T15) A7- Lembro. (T16) Pesquisadora- E o livro tratava de qual família? (T17) Vários alunos- Gramíneas! (T18) Pesquisadora- Muito bem! E vocês lembram de alguma planta dessa família? (T19) A3- A grama (rindo) (T20) Pesquisadora- Juro que nem tinha pensado! Lembrei do milho, do arroz, da

cana. (rindo) E qual era a questão do livro? Essa pergunta é muito difícil. (T21) A3- Que um cientista que achava que o perianto não existia. (T22) Pesquisadora- Perianto de quem? (T23) Vários alunos- Da flor. (T24) A3- Das gramíneas. (T25) Pesquisadora- Posteriormente... O que eles acharam? (T26) A3- Que existia. (T27) Pesquisadora- O quê que a Cecília falou? (T28) A3- Que acha isso um absurdo. (T29) Pesquisadora- A Cecília sabia o que era perianto? (T30) Vários alunos- Não! Risos (T31) Pesquisadora- Ela queria dar o golpe no barão! (T32) A8- Cecília não, Helena! (T33) Pesquisadora - Isso, Helena. Desculpe, a Cecília sabia porque o barão tinha

explicado pra ela.

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Podemos perceber através dessa seqüência o quanto o texto literário, sobretudo

quando interpretado como comentou a aluna Isadora, ecoa facilmente na memória dos alu-

nos e como esse trecho da peça pode funcionar na articulação com o conteúdo visto em

sala de aula. Recorremos aqui à noção de plurilingüismo desenvolvida por Bakhtin a res-

peito dos textos literários. O termo perianto, por exemplo, é citado várias vezes na história,

em diferentes contextos e nuances de sentidos. Na cena III, o Barão comenta sobre o livro

que traz em mãos e define o perianto para Cecília, supondo que ela não o conhece. Na cena

IX, o Barão, já entusiasmado e preso nas artimanhas de Helena, cita o debate científico em

torno da estrutura floral, contando que Helena já tem conhecimento prévio sobre ela. E,

finalmente, na cena XII, Helena e Cecília utilizam o termo, evocando sua autoridade, para

impressionar a tia sobre a importância do estudo da Botânica, enquanto Dona Leonor o

toma como uma palavra estranha e de intenções duvidosas.

Supomos que nesse movimento a peça cria uma polifonia em torno da palavra peri-

anto, já que poderíamos identificar na seqüência de cenas, respectivamente, a voz da ciên-

cia, muito próxima à do professor de ciências, a voz do leigo que confia na autoridade da

ciência, e ainda, a voz do leigo cético às afirmações científicas, em muito influenciada pela

voz da igreja. O perianto foi logo pinçado do texto da peça e lembrado pelo aluno A1 como

um dos assuntos já estudados em aula. O que dizem sobre ele (turnos 4 a 13) intercala in-

formações trazidas pela aula (turnos 5, 6, 11, 12 e 13) e pela peça (turnos 4, 8 e 21 a 33),

num processo de entrelaçamento de diferentes vozes que vai compondo a idéia de perianto,

ampliando seus significados.

No turno 14 antes de lançar uma nova pergunta, a pesquisadora faz uma pequena

síntese do que os alunos disseram sobre o perianto e procura lembrá-los das transparências

apresentadas em aula, nas quais foram mostrados exemplos de diferentes flores e seus res-

pectivos agentes polinizadores, exemplificando o grau de especificidade e adaptação que

pode ser alcançado entre eles. Julgamos que momentos de síntese como esse correspondem

ao que Mortimer & Scott (2002) consideram como momentos para se “manter a narrativa

do ensino”, ou seja, intervenções que têm a intenção de levar uma etapa da atividade ao

fechamento, pontuando o estágio de desenvolvimento da história científica e do entendi-

mento compartilhado pela turma. Os autores reconhecem que esses momentos são marca-

dos pela autoridade da ciência e de sua linguagem social, e destacam a importância de tais

intervenções, nas quais o professor estabelece uma linha divisória para concluir uma se-

qüência de interações e faz afirmações sobre “onde chegamos até o momento”.

Page 131: Tese experimentos de botânica

118

O turno 17 mostra que vários alunos se lembram de que o livro do Barão, obra que

vai fazer revolução na ciência!, trata da família das Gramíneas. E nos turnos 21 a 28, a

aluna A3 observa que o livro discute a questão da existência ou não do perianto nessa

família e lembra-se que Helena simula estar preocupada com as conclusões que ele

apresenta. Conferindo no texto da peça, notamos que há um equívoco da aluna e da

pesquisadora com relação ao que é posto, pelo Barão, sobre as pesquisas com o perianto

das gramíneas. Mas o que vale aqui é a lembrança, pela aluna, de uma questão polêmica.

Nesse ponto da discussão gostaríamos de ter explorado melhor com a turma, por esse

caminho oferecido pelo texto e lembrado pela aluna, o confronto de idéias que é próprio da

ciência e a provisoriedade de suas afirmações. Mas essa possibilidade acabou escapando e

a ênfase da conversa foi dada à ironia de Helena, blefando junto ao Barão. Também nos

escapou a intenção de comentar sobre o processo de polinização das gramíneas pelo vento,

relacionando-o como uma adaptação ao seu polêmico perianto, possibilidade que, depois,

foi bem explorada com a turma 603.

Podemos acompanhar a participação da aluna A3 na seqüência (turnos 6, 13 e 19) e

observar que ela, mais que os outros alunos que participam da interação, consegue incorpo-

rar itens do discurso científico da aula anterior em sua fala. Como palavras próprias, péta-

las, sépalas, agentes polinizadores e a grama como exemplo de gramínea são termos que

ela traz da aula para montar o perianto da peça, caracterizando aquele processo de polifo-

nia que sugerimos ter sido estabelecido a partir do texto literário. Podemos destacar que a

aluna em questão é a mesma que faz o primeiro comentário acerca da história da peça, a-

firmando sua contribuição positiva para o ensino de Ciências.

Um aspecto que nos chama a atenção na transcrição da conversa sobre a peça é o

grau elevado de atenção que os alunos demonstraram, fazendo observações interessantes e

lembrando de detalhes bastante sutis. Por exemplo, nos turnos 27 e 29, a pesquisadora e

alguns alunos se confundem considerando que é a personagem Cecília quem conversa com

o Barão sobre as gramíneas. No turno 32, o aluno A8, atento, nos corrige: Cecília não,

Helena!

Na continuidade da discussão, a referência às pretensões do Barão de estudar com

Helena todas as famílias vegetais, permite que os alunos relacionem ao termo família as

outras categorias de classificação biológica que foram apresentados em aula. Sem exigên-

cias de maior exatidão, a pergunta da pesquisadora: “tudo isso tem a ver com o quê?” leva

ao termo taxionomia, usado por um dos alunos. A pesquisadora desenvolve, então, um

novo momento de síntese, aproveitando o que foi levantado pelos alunos.

Page 132: Tese experimentos de botânica

119

Uma outra questão é colocada com referência à origem do botânico da peça. Muitos

se lembram de que ele era sueco. Quando se pede que imaginem uma justificativa para a

nacionalidade escolhida por Machado de Assis para seu Barão, um aluno justifica que era

devido ao livro ser em sueco, confundindo causa com conseqüência. Outro arrisca sua hi-

pótese, em forma interrogativa : “porque os suecos eram famosos pela botânica deles,

não?”. Tendo recebido um sinal de aprovação pela pesquisadora: “Isso! Não esquece isso

não”, quando, mais à frente, pode retomar sua fala na interação, já repete seu enunciado

com entonação de certeza: “porque os botânicos, os suecos eram famosos pela botânica

deles!”. Após um “muito bem!” da pesquisadora, sua hipótese é aplaudida com graça pelos

colegas.

O que a pesquisadora desejava com essa questão era traçar uma relação, que supõe

existir, entre o botânico sueco da peça e a figura de Lineu. Então pergunta: “Isso! Os sue-

cos eram famosos pela botânica deles. Quem vai se lembrar de um botânico sueco famo-

séssimo? Celebridade!”. Devagar, a resposta “Carlos Lineu!” vem em coro, talvez puxada

pela exclamação da pesquisadora: “que o professor explicou...”. E alguns alunos concor-

dam com a possível referência do escritor ao eminente botânico sueco: “Ah, eu também

ache isso.”

Com uma perspectiva multidimensional, gostaríamos de destacar na interação mos-

trada a seguir, ocorrida no início da seqüência sobre o perianto, traços que apontam para as

dimensões afetiva e social que constituem uma interação discursiva:

Pesquisadora- Quem vai responder essa agora, tem que ser esperto.

A9- Isadora vai, Isadora ou Vinícius!

Pesquisadora- Aposto que vai ser você.

A9- Eu?!

Podemos evidenciar pela primeira intervenção da aluna A9 como uma turma pode

estabelecer expectativas para uma maior ou menor participação dos colegas, inclusive,

refletindo nesse processo, marcas da auto-estima de alguns dos alunos. A aluna considera

os dois colegas espertos e capazes de responder à questão que será apresentada. Ela não

ouviu a questão ainda, mas pela exigência levantada pela pesquisadora, já não se sente ca-

paz de respondê-la, “Eu?!”. Percebemos, por esse exemplo, a importância de se prestar

atenção à participação de todos os alunos, nas atividades de interação, para que não se fa-

voreça sempre a manifestação de um mesmo grupo, os que têm maiores facilidades pra

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120

intervir, e se deixe de esperar e promover a participação de todos. E por esperteza e visão

de conjunto da aluna A9, é mesmo Isadora quem fala primeiro e Vinícius quem mata a

charada.

Ainda numa perspectiva multidimensional, podemos pontuar a manifestação da di-

mensão social ao longo de toda a discussão, através dos diversos momentos em que obser-

vamos o riso coletivo, quando um aluno ou aluna faz uma intervenção engraçada, demons-

trando senso de humor ou observação crítica e provoca o riso do grupo de colegas, ou

quando o grupo ri junto de uma determinada situação que tenha surgido.

Em um domínio de reflexão teórica no qual se pensa sobre as diversas expressões

da linguagem e da autoridade e, também, instigados pelos estudos de Bakhtin, não se pode

deixar passar despercebido o riso que se manifestou durante a interação discursiva sobre a

peça. Riso solto bastante pertinente com a idade dos alunos envolvidos e sempre na esprei-

ta, pronto para escapar e que, na discussão, se insinua como autorizado por uma situação

escolar diferenciada. Riso que nos tempos modernos tornou-se, sobretudo, censura, ironia

degradante e punitiva, mas que guarda ainda, desde tempos remotos, aspectos criadores e

um imenso valor de interação social, fragmentos de um passado festivo.

Contribuiu para a emergência desse riso a própria comicidade do texto da peça, cri-

ada pela ironia do autor ao tratar os assuntos científicos em meio às urgências da vida coti-

diana e ao focalizar, pela linguagem, a tensão entre duas esferas da vida social. E foi inte-

ressante observar que os alunos acharam muita graça da comédia machadiana, mesmo em

seu tom sóbrio e linguagem bastante formal. Podemos comentar, inclusive, que a forma da

montagem da peça não optou por realçar ou criar maiores efeitos cômicos. Aproveitando as

noções propostas por Bakhtin, consideramos que no contexto da aula de ciências, domínio

da produção social que estamos caracterizando como marcado pela autoridade, a apresen-

tação de temas científicos de forma cômica, sob uma outra ótica que não a do ensino em

sua acepção escolar mais formal, estabeleceu uma certa condição de exotopia, permitindo

um olhar de fora e a produção de um excedente de visão sobre o conteúdo científico e tal

condição, como nos sugere o pensador, pode ajudar a conhecê-lo e a compreendê-lo me-

lhor. Outras referências à exotopia estarão sendo feitas na continuidade das análises.

Finalizando os comentários sobre a peça, uma última questão indagou aos alunos

sobre a justificativa dada por Helena a sua tia para querer saber Botânica. Como em outros

momentos, vários alunos respondem juntos. As respostas individuais que se seguem, recu-

perando enunciados que foram emitidos uma única vez na história, confirmam a atenção

dos alunos ao desenrolar da peça: “Para saber o nome das plantas”; “Para saber o nome

Page 134: Tese experimentos de botânica

121

das flores”; “Para não confundir” e “Ela falou que era para não confundir quando viesse

em bouquet para ela”.

A partir do comentário anterior, deixamos indicado que os turnos 9 a 14 da intera-

ção focalizada contém uma questão importante em termos epistemológicos para a Biologia.

A indagação “E pra quê serve?” estará sendo discutida, envolvida por dois significados

diferentes, no contexto das questões 1/8, 3/4 e 3/5.

Ao final, o professor da turma sugere tirar uma foto do grupo junto com os atores.

Através das imagens da vídeo-gravação notamos a alegria e o entusiasmo dos alunos e,

também, a consideração que demonstraram para com as atividades da pesquisa empírica.

Após as fotos, muitos alunos da turma fazem fila para pedir autógrafos aos alunos do elen-

co.

A discussão com a turma 603, após a segunda apresentação da peça, segue, em li-

nhas gerais, a mesma seqüência de comentários da turma anterior, tentando-se explorar

alguns pontos que foram deixados de fora na primeira sessão. A atenção e interesse da tur-

ma pela peça e sua compreensão sobre a história também podem ser bem evidenciados. Os

conteúdos de ciência que entram na trama são bem reconhecidos pelos alunos, que con-

seguem fazer ligações significativas com o que foi trabalhado em sala de aula. Outros as-

pectos relevantes à problemática desse estudo serão comentados nas análises das atividades

2 e 3, com as quais estão relacionados.

Encerrando-se a discussão com essa turma, explora-se uma questão colocada pelo

apresentador sobre qual seria o tema da peça, dois assuntos que estão sempre na moda.

Um dos alunos se lembra: “ciência e amor”. Outro aluno recupera o próprio enunciado do

apresentador: “O amor à ciência e a ciência do amor!”. Na seqüência, ao serem pergunta-

dos e citarem exemplos de notícias ligadas à ciência recentemente veiculadas na mídia, dão

dois exemplos:

“Se existe água em Marte!”

“Um sapo de três cabeças e oito pernas... Os garotos estavam no parque brincando

e encontraram, pensaram que era um monstro.”

São exemplos aleatórios e curiosos, com jeito de ficção científica, que à primeira

vista, podem mostrar a diversidade de temas que o domínio científico evoca nos alunos.

Mas, também, nos levam a pensar a existência de uma espécie de contradição permanente

Page 135: Tese experimentos de botânica

122

para o mundo da ciência que o homem produz. No contínuo de um mesmo fio, estendido

pela racionalidade científica e pelos avanços que a ciência tem viabilizado, dois pontos

distintos parecem se manter: um mundo de poder racional e de alta tecnologia, que permite

até a conquista espacial, e um outro mundo de substrato mitológico com criaturas monstru-

osas, que ainda nos assustam e ameaçam. Tem-se a impressão de que o fio estará sempre

tensionado por essa simultaneidade de distintas visões de mundo, ambas patrocinadas pelo

imaginário. Os dois exemplos parecem mostrar a astúcia e o medo que cercam a vida e a

curiosidade humanas e sugerem o quanto a ciência, que está sempre na moda assim como o

amor, pode trocar idéias com a literatura.

Nesse movimento de análise das discussões sobre a peça, foi possível perceber vá-

rios aspectos significativos para a reflexão acerca do funcionamento do texto literário em

aulas de Ciências. Embora não utilizemos, de uma forma mais direta, as categorias multi-

dimensionais de análise discutidas em nossas referências teórico-metodológicas, reconhe-

cemos que nos foram inspiradoras para compor uma perspectiva para as análises, no senti-

do de ajudar a compreender que tais aspectos observados atendem a dimensões distintas,

que podem estar associadas entre si, pelas quais sempre passam os processos de ensino e

aprendizagem. Dimensões que lembramos, segundo Leander & Brown (1999), podem ser,

entre outras, afetiva, social, conceitual/cognitiva e discursiva/simbólica. Apresentamos a

seguir uma breve sistematização de alguns aspectos das discussões que puderam ser obser-

vados e ponderados no sentido de ter implicações para o trabalho escolar.

Foi possível constatar a atenção e o interesse que a apresentação despertou entre os

alunos, evidenciando a comunicabilidade do texto de Machado de Assis e a positividade de

apresentações teatrais na escola. Também observamos diversas manifestações de senso de

humor e de riso coletivo entre os alunos, sugerindo o entendimento do grupo sobre o que

estava sendo tratado e indicando, pelo grau da sua participação, a importância de se pro-

mover, em aula, momentos de maior interação. Em alguns momentos, houve oportunidade

de expressão de sentimentos pessoais dos alunos como satisfação, frustração, orgulho e

baixa auto-estima. E, também, de estabelecimento de relações imprevistas com elementos

de fora do contexto escolar, o que se mostra como relevante para o trabalho pedagógico.

Pôde-se observar o bom entendimento do conteúdo da história pelos alunos, e, atra-

vés de sua participação nas interações discursivas, notou-se a capacidade de articulação do

pensamento pela linguagem e a riqueza de recursos discursivos que utilizam em suas ex-

planações. Percebemos a referência por vários alunos a enunciados da peça, ligados ou não

aos conteúdos científicos, o que entendemos como evidência da capacidade do texto literá-

Page 136: Tese experimentos de botânica

123

rio, sobretudo quando representado, de marcar a memória dos alunos, provocar ecos em

seus enunciados e desenvolver sua capacidade lingüística.

Pela citação de conceitos e de termos científicos trabalhados nas aulas anteriores

e/ou apresentados na peça, foi constatado um processo de assimilação do discurso científi-

co por alguns alunos, insinuando o emprego de termos científicos já como palavras pró-

prias. Através das articulações propostas entre trechos da peça e os tópicos do conteúdo de

ensino, evidenciou-se possibilidade do texto literário abrir caminhos para a sua exploração.

Possibilidades que se efetivam, sobretudo, pelo plurilingüismo do texto literário e pelas

condições de interdiscursividade que pode viabilizar, contribuindo para a ampliação dos

feixes de significados dos conteúdos científicos.

Constatou-se a apreciação positiva dos próprios alunos sobre o trabalho com a peça,

atribuindo-lhe valor para o ensino e a aprendizagem em Ciências. Consideramos que o

texto literário conseguiu promover uma condição de exotopia, para a abordagem sobre

alguns tópicos do conteúdo científico. A comicidade da peça, explorando a tensão entre a

ciência e vida cotidiana, estabeleceu uma outra ótica para o estudo da Botânica, abrindo-

lhe novas possibilidades.

Page 137: Tese experimentos de botânica

124

Page 138: Tese experimentos de botânica

125

5 – FRENTE A FRENTE COM A ESFINGE

“Uma obra de arte deveria sempre nos ensinar que não tínhamos visto o que vemos”

Paul Valéry

Novas Questões

Os alunos agora já conhecem o Barão, Helena, Cecília, Dona Leonor e Henrique.

Por caminhos de linguagens, a ciência e a Botânica estão na mira da literatura e, também,

olham para ela. 5.1 – Sobre a peça e a Ciência

A atividade de pesquisa no 2 se constituiu de um questionário com oito questões re-

lativas à apresentação e ao conteúdo da peça Lição de Botânica e a tópicos sobre classifi-

cação dos seres vivos. Essa atividade foi aplicada em sala, em horário de aula de Ciências,

em dias seguintes à apresentação da peça na escola e a posterior discussão com as turmas.

Para responderem à atividade 2, na qual algumas questões articulavam os planos da

peça e do conteúdo científico, os alunos formaram duplas e receberam cópias de um con-

junto de textos didáticos14 e uma cópia impressa do texto adaptado da peça Lição de Botâ-

nica para que fizessem as consultas demandadas pelas questões já que, certamente, não se

poderia garantir que os aspectos destacados por elas teriam sido percebidos durante a apre-

sentação e apreendidos pela memória dos alunos. Nesse sentido, as respostas foram formu-

ladas a partir do que foi percebido na apresentação ou abordado na discussão que se seguiu

e do que está sendo encontrado nos textos escritos e recordado das aulas dadas.

É interessante assinalar, a partir de notas do diário de campo, o interesse despertado

nos alunos pela presença do texto teatral impresso. Ao identificarem que era a mesma his-

tória assistida, vários alunos mostraram surpresa e uma certa satisfação: “– É a peça toda

mesmo?”, “– É o teatro!”, “Foi você que digitou tudo isso?!”, comentando com os colegas

ou folheando as páginas numa pequena exploração do texto, observando que era dividido

14 Texto no 2 (texto apresentando recortes de revistas e de jornal e fragmentos de livro didático, contendo exemplos de seres vivos e seus respectivos nomes científicos) e texto no 3 (texto contendo observações sobe famílias vegetais) fornecidos pela pesquisadora Os alunos que possuíam cópia do texto no 1(dois textos or-ganizados e trabalhados pelo professor nas aulas dadas: “Toda a vida do mundo” e “Classificar a Biodiversi-dade”) puderam utilizá-lo para consulta (cópias desses textos no anexo 4).

Page 139: Tese experimentos de botânica

126

em cenas, localizando as personagens e percebendo que as falas estavam demarcadas por

travessões estruturando os diálogos.

Foi agradável perceber que um grupo de alunas da turma 603, enquanto outros gru-

pos se organizavam para o trabalho, partiu logo para uma brincadeira de leitura da peça,

dividindo os papéis entre si e fazendo baixinho a leitura da Cena I. Iniciativa que foi toma-

da pela pesquisadora como demonstração de que a apresentação da peça realmente agra-

dou-lhes e foi uma experiência significativa, que de alguma forma as envolveu e mobili-

zou. Indícios do valor e da força que a literatura e o teatro podem ter para nossas aulas.

A peça Lição de Botânica

Nas análises já apresentadas sobre a discussão a respeito da peça assistida, assina-

lamos diversos aspectos que se destacaram. Entre eles, a atenção e o interesse demonstra-

dos pelos alunos, o bom entendimento que tiveram da história, a referência explícita à posi-

tividade da apresentação para a aprendizagem da Botânica, a oportunidade de expressão de

sentimentos particulares de alguns alunos, o senso de humor que se manifestou em muitas

falas e o riso coletivo que se fez presente em vários momentos. Essas observações guardam

relação direta com as questões 2/1, 2/2 e 2/3 da atividade 2, que retomam as indagações

iniciais que dinamizaram a discussão e pretendem captar a fala de um número maior de

alunos, para que tais aspectos possam ser melhor apreciados.

Entendemos que a discussão sobre a peça em si mesma também agradou aos alunos

e imaginamos que, em sua memória, ela tenha se colado à própria apresentação, já que

realizada logo após a mesma, no mesmo local e com os alunos ainda sendo filmados. As-

sim, reconhecemos a sua provável contribuição para as respostas à atividade 2, quando os

alunos puderam aproveitar as colocações feitas pelos colegas, compartilhando de seus en-

tendimentos e considerações e, também, as sínteses firmadas pela pesquisadora que condu-

ziu a discussão. A interação e a troca de impressões entre os alunos também foi buscada

propondo-se a resolução da atividade no 2 em duplas.

A tabela 19 apresenta, simultaneamente, as respostas das turmas 601e 603 à questão

2/1: “Vocês gostaram de assistir a uma peça de teatro na escola? Por quê?”. Para cada item

constituinte das respostas foi computada uma nova resposta, ou seja, uma mesma dupla

gera mais de uma resposta quando se refere a mais de um item.

Page 140: Tese experimentos de botânica

127

TABELA 19

Respostas das turmas 601e 603 à questão 2/1: Vocês gostaram de assistir a uma peça de teatro na escola? Por quê?

Categorias de respostas

Por que Gostaram?

Total

Sub-itens

No de respostas

Interessante / Legal 20 Divertido/engraçado 16

Dinâmico 2

Dimensão

Lúdica

40

Diferente 2

Porque fala da botânica 20 Porque fala de ciências / do estudo 14

Dimensão cognitiva (ciência/ estudo)

38

Porque fala da biodiversidade 4 Mostra atores antigos / fala do passado 4

Incentivo a quem quer fazer teatro 2

Dimensão cultural

8 Teatro é cultura 2

Envolve o amor / peça romântica 6 Dimensão romântica

8 Por causa do Henrique 2

Ensinar a respeitar o conhecimento 2 Ensina a pensar no próximo 2

Sim

Dimensão ética

6

Alguém se preocupa conosco 2

Não

x

0

X

0

Todos os alunos disseram ter gostado de assistir à peça. O conjunto de respostas foi

agrupado em função das justificativas para a peça lhes ter agradado. Tais argumentos fo-

ram considerados como caracterizando as dimensões lúdica, cognitiva, cultural, romântica

e ética, levando-se em conta as diferentes percepções que expressaram sobre a experiência

vivida.

Em maior número, e praticamente na mesma proporção, duas dimensões se destaca-

ram como justificativa. Primeiramente, o aspecto lúdico, apontando que foi interessante e

divertido assistir à peça e que a apresentação tornou a aula de ciências dinâmica e diferen-

te. Também foi destacado o aspecto cognitivo, vinculado ao contexto escolar, pelo fato de

a história encenada se referir aos temas de ciências e ter relação com a matéria já estudada.

Os outros aspectos foram citados num número menor de respostas. Os enunciados

considerados como tendo uma dimensão cultural fizeram referências diretas ao teatro e ao

fato da peça falar do passado, lembrando se tratar de uma “peça de época”. Também desta-

caram como positiva a dimensão romântica da história, aspecto que permeia toda a peça.

Alguns alunos incluíram a dimensão ética, valorizando o fato da peça despertar a preocu-

pação e o respeito para com o próximo e para com o conhecimento.

Page 141: Tese experimentos de botânica

128

As respostas abaixo articulam alguns dos aspectos apontados como positivos e co-

mo justificativas para a peça ter agradado aos alunos:

Sim. Porque é um assunto que envolve a ciência, o amor e a Botânica que também

se inclui na ciência falando sobre as plantas (Agatha e Mariângela, T. 601).

Sim. Porque isso foi uma forma divertida que nós aprendemos as duas lições. Bo-

tânica e um romance divertido (Letícia e Maêva, T. 601).

Sim. Porque é uma peça romântica que fala sobre a ciência, por isso é muito

interessante (Paula e Ana Paula, T. 603).

Sim, porque nos mostra coisas interessantes e coisas que nós já vimos nas aulas de

ciências e foi uma ótima maneira de nos mostrar a Botânica! (Manuela e Débora,

T. 603).

Sim, porque relatou algumas coisas que eu estou estudando e foi engraçada (Gize-

le e Rafaela, T. 603).

Sim. Porque é uma peça interessante e nos mostra umas reações de atores antigos

(Cássio e Paulo, T. 603).

Uma única dupla levantou um aspecto negativo da apresentação, apesar de terem

gostado de assistí-la:

Sim gostamos de assistir a peça mais em algumas partes ficaram muito enjoativas.

Gostamos principalmente das partes que o Barão de Kernoberg falou daquelas

partes das flores o perianto (Patrick e David, T. 601).

Foi interessante perceber que a atenção dos alunos se voltou para aspectos diferen-

ciados e que sua avaliação positiva sobre a peça se baseou em diversas dimensões. Alguns

deles encontram sentidos que não estavam explicitamente vinculados ao tema e nem à co-

micidade da história, tirando da Lição lições que não estavam diretamente previstas, como

mostrado nas respostas abaixo:

Page 142: Tese experimentos de botânica

129

Sim. Porque além de estar num local educativo, o teatro nos deu uma lição, que

não devemos pensar só em si, como o Barão pensava, em que seu sobrinho era ci-

entista e não podia se casar, e no final, ele refletiu e se apaixonou pela irmã da pe-

quena do seu sobrinho. Aprendemos também sobre flores, plantas, espécies... Foi

bem legal o teatro na escola (Laís e Tayara, T. 601).

Sim. Porque é muito legal e ensina as pessoas a respeitar mais as coisas de que es-

tão contando (Evelyn e Juan, T. 601).

Sim. Porque é estimulante para quem tem vergonha de fazer teatro (Marco Aurélio,

T. 603).

Sim. Porque é bom saber que alguém se preocupa com o nosso futuro (Thales, T.

603).

A questão 2/1 se referia, de forma genérica, a assistir uma peça de teatro na escola e

pretendia conhecer a percepção dos alunos sobre a experiência com o teatro na vivência

escolar. Como a pergunta foi tomada por eles como uma referência à Lição de Botânica, as

respostas praticamente adiantaram a questão 2/2. Comentamos abaixo algumas observa-

ções a partir da análise das respostas às questões 2/2a e 2/2b: “Vocês gostaram da peça

Lição de Botânica? O que acharam mais interessante na história que é contada?”.

Pelo conjunto de respostas observa-se que os alunos reafirmam a apreciação positi-

va da peça, destacando igualmente os aspectos lúdicos, cognitivos e românticos, como de-

monstrado nos enunciados que se seguem:

Sim. Porque misturou um romance com a arte da botânica (Gabriela e Isadora, T.

601).

Sim. Porque é uma história legal e ensina ciências (Kelvin e Lucas, T. 601).

Sim. Porque eles com tudo isso, misturaram as ciências com o amor, e teve uma ó-

tima lição (Lais e Tayara, T. 601).

Page 143: Tese experimentos de botânica

130

Sobre o que acharam mais interessante na história, as respostas também foram di-

versificadas. O item mais destacado foi a intenção de Helena de ajudar a irmã e a estratégia

encontrada por ela para atingir seu objetivo, como exemplificam as respostas abaixo:

Que a melhor coisa é os irmãos que são unidos como Cecília e Helena (Thales, T.

603).

Tem várias mas a que a gente achou mais interessante é a parte em que Helena

finge gostar de botânica pra mudar a idéia do barão sobre Henrique e Cecília (Pa-

blo e Ranoi, T. 601).

Outros itens mais citados como aspectos interessantes se referiram às explicações

do Barão sobre o perianto, à ligação entre o amor e a ciência e à mudança de idéia do Ba-

rão ao final da história. Muitos alunos aproveitaram o texto impresso da peça, acompa-

nhando o desenrolar da história, para escolher ou localizar a parte que seria destacada e

alguns, economizando as palavras, responderam à questão somente com a citação da cena

em que o item aparecia:

Cena I (André e Washyngton, T. 601).

Cena VIII (José Eduardo e Rony, T. 603).

Alinhando-se com a discussão desenvolvida com o grupo após a peça, as questões

analisadas reiteram o interesse dos alunos e sua avaliação positiva sobre a apresentação. As

respostas fazem eco a vários pontos comentados naquela conversa e se remetem a diversos

enunciados que ocorreram constituindo as opiniões dos alunos, as sínteses elaboradas pela

pesquisadora, as falas do apresentador da peça ou a consideração bastante elaborada apre-

sentada pela aluna Isadora (turma 601) logo no início da discussão, já comentada anterior-

mente. Configura-se o fato de que, na visão das turmas, a história mistura o amor e a ciên-

cia e nessa mistura aprendemos mais fácil (Anaina e Paola, T. 601).

A questão de pesquisa 2/3 pediu aos alunos que fizessem um resumo da Lição de

Botânica: “Escrevam um pequeno texto, resumindo a história da peça (mostrem os fatos

principais que possam dar uma idéia da história)”.

Page 144: Tese experimentos de botânica

131

Um dos resumos produzidos, o dos alunos Pablo e Ranoi da turma 601, já foi apre-

sentado na introdução do referencial teórico-metodológico desse trabalho, visto o conside-

rarmos bem detalhado e preciso e bastante interessante no sentido de apresentar aos leito-

res os elementos principais da história.

A maioria dos outros resumos produzidos, com suas diferentes ênfases e estilos de

redação, nos dá uma idéia satisfatória da história, mostrando o grau de atenção e a capaci-

dade de compreensão dos alunos. A tabela 20 mostra um panorama dos argumentos

apresentados nos resumos redigidos.

TABELA 20

Respostas das turmas 601e 603 à questão 2/3: Escrevam um pequeno texto, resumindo a história da peça

(mostrem os fatos principais que possam dar uma idéia da história)”.

Categorias de respostas/resumos

Total de resumos

Sub-itens No de resumos

Apresenta três argumentos

13

Posição do Barão frente ao namoro, plano de Helena e final feliz com o duplo romance

13

Plano de Helena e final feliz 5 Posição do Barão e plano de Helena 2

Apresenta dois argumentos

9

Posição do Barão e final feliz 2 Posição do barão frente ao namoro 3

Apresenta apenas um argumento

4 Plano de Helena 1 Foge ao pedido

na questão

4

x

4

Argumentos equivocados ou secundários

3

x

3

A maioria dos alunos mostra uma boa compreensão da história, articulando dois ou

três dos principais argumentos da trama, respeitando a seqüência em que os acontecimentos

ocorrem, ainda que nem todos os textos produzidos funcionem tão bem como um resumo da

peça. Alguns, por omitirem elementos importantes da trama, não conseguiriam dar uma

idéia clara do conteúdo da peça para alguém que não a tivesse assistido. Na seqüência de

resumos abaixo, por exemplo, vemos que, de um para o outro, os detalhes vão sumindo e,

junto com eles, as especificidades e a própria essência da história.

Page 145: Tese experimentos de botânica

132

“Lição de Botânica (resumo)

Era uma família que morava no Andaraí, existia uma tia que se chamava dona Le-

onor e duas sobrinhas Helena e Cecília. Helena era viúva e Cecília era apaixonada

por Henrique seu vizinho, sobrinho do barão de Kernoberg, o barão era sueco, Bo-

tânico, ele era contra o casamento. O Barão um dia foi a casa de dona Leonor pa-

ra pedi-la que não deixasse Cecília se casar com Henrique, mas o barão se encon-

trou com Helena e dali surgiu uma grande amizade, que acabou em um romance,

depois mudou o seu conceito sobre o casamento e no que era só uma lição de botâ-

nica acabou sendo um romance” (Letícia e Maêva, T.601).

“O Barão não aprovava o namoro de seu sobrinho Henrique com Cecília, pois to-

do botânico deve ter voto de celibato. Logo após Cecília pede a sua esperta irmã

Helena, para ajudar a não perder Henrique. Helena bola um plano, arranja um

bom partido e salva o casamento de sua irmã” (Danilo e Vinícius, T. 601).

“Conta a história que Cecília queria se casar com Henrique o sobrinho do barão

de Kernoberg e o barão não concedia a mão de seu sobrinho e em 20 minutos He-

lena a irmã de Cecília convenceu o barão a conceder a mão de seu sobrinho”

(Dhuliano e Vanderson, T. 603).

Notamos que no primeiro resumo, embora escrito com concisão, os elementos im-

portantes estão presentes e temos bem demarcados os sujeitos, o espaço e a temporalidade

da história. No segundo resumo, ainda que preservados os dados essenciais, já não temos o

bairro, nem a tia, nem o botânico sueco, nem as lições de Botânica. E no terceiro, tão ligei-

ro como a persuasão de Helena, de toda a trama tecida pouca coisa restou.

Os resumos que apresentaram apenas um argumento, na verdade não podem ser

considerados resumos da história, mas sim como uma exposição do elemento que os alunos

entenderam como central, tal como exemplificado a seguir:

O Barão de Kernoberg era um botânico sueco que não aceita o casamento de seu

sobrinho Henrique com Cecília porque iria atrapalhar os estudos de seu sobrinho

Henrique que iria se tornar botânico também (Lucas e Felipe, T. 601).

Page 146: Tese experimentos de botânica

133

Sete duplas mostraram dificuldades para resumir a peça, apresentando apenas al-

guns elementos da história de forma descontextualizada ou confusa, ou fugindo ao objetivo

da questão ou, ainda, apresentando no lugar de um resumo uma espécie de comentário,

dando sua apreciação sobre aspectos observados, como nas respostas abaixo:

É uma história muito instrutiva que inclui a botânica com a ciência e o amor entre

duas coisas, além de gostar de Helena o Barão também gostava de Botânica (Aga-

tha e Mariângela, T. 601).

O Barão de Kernoberg queria ensinar Helena a aprender botânica, mas a tia dela

achava horrível esse negócio de aprender botânica. É também graças ao livro que

subiu a paixão entre Barão de Kernoberg e Helena (Patrick e David, T. 601).

Tal como afirmamos para as questões anteriores sobre se os alunos gostaram da pe-

ça e o que mais lhes chamou a atenção, podemos considerar que também para a elaboração

dos resumos os alunos levaram em conta tanto o que lembravam da apresentação, quanto

as considerações levantadas na discussão e as informações dadas pelo apresentador da pe-

ça, que podemos considerar como textos paralelos que contribuíram para sistematizar o

conteúdo da história e destacar seus pontos decisivos.

Algumas indicações desses aportes podem ser vistas, por exemplo, no fato de que a

maioria dos resumos coloca o Barão como protagonista da história, mas vários outros des-

tacam Cecília como personagem principal, perspectiva proposta na fala do apresentador; de

quem também se vêem repetidas algumas expressões, como o amor pela ciência e a ciên-

cia do amor ou Helena é realmente muito esperta ou ela traça um plano para ajudar Cecí-

lia. Assim, compreendemos os resumos dos alunos como novos enunciados nessa corrente

de enunciados que já se davam a partir da peça, e dos quais na verdade emanam, guardan-

do com eles um intenso diálogo, como nos sugere Bakhtin, num plano mais amplo, quando

propõe o princípio dialógico constitutivo da linguagem e um ambiente responsivo do uni-

verso da cultura.

Ainda na dimensão sociolingüística, uma outra consideração sobre os resumos da

peça pode ser pensada. Foi interessante ver as diferentes formas escolhidas pelos alunos para

resumirem a história. Em geral os resumos, assim como as resenhas e as sinopses, ainda que

feitos sem condições para maior acabamento como nas circunstâncias dessa atividade, mes-

mo seguindo traços modelares próprios do gênero discursivo que constituem, guardam

Page 147: Tese experimentos de botânica

134

espaços para as marcas individuais de seu autor e mostram suas escolhas no plano dos acon-

tecimentos e no plano lingüístico: sua atenção, as prioridades que elege junto ao conjunto de

dados, a perspectiva que adota para narrar os fatos, os recursos expressivos que utiliza e os

efeitos de sentido que suscitam, enfim, todo o seu trabalho com a linguagem, o que nos

termos de Possenti (2001) define o estilo do autor e individualiza seu discurso.

Nesse contexto, observa-se que alguns resumos se caracterizam por empregar no

seu início expressões que indicam uma descrição ou exposição da peça, como por exem-

plo:

“O teatro fala sobre a Lição de Botânica e os personagens são o barão, o sobrinho

Henrique, D. Leonor e suas sobrinhas Helena e Cecília ...”,

“A peça conta a história de um Botânico que se chamava Sr. Barão de Kernoberg

...” ou

“O texto nos conta a história de uma menina chamada Cecília que se apaixonou

por Henrique ...”.

Já outros resumos vão instalar os autores em nova posição, introduzindo o leitor

diretamente no interior da peça, iniciando-se como uma narração, usando fórmulas que

estão bem próximas de expressões clássicas como “era uma vez...”:

“Havia uma menina chamada Cecília que era apaixonada pelo sobrinho do Ba-

rão...”,

“Essa é a história de um barão e seu sobrinho Henrique...” ou

“Cecília era uma jovem muito apaixonada por Henrique...”.

Ainda entre as muitas especificidades dos resumos que poderiam ser assinaladas,

referindo-se ao ponto de vista e ao estilo dos autores, notam-se determinados efeitos de

sentido produzidos por seus enunciados e, também, a expressão de uma carga axiológica,

quando os alunos apresentam uma avaliação própria a respeito da ação e das intenções das

personagens, tais como nos dois exemplos considerados a seguir:

Page 148: Tese experimentos de botânica

135

O efeito irônico, o golpe certeiro nas intenções que atribuem à Helena, obtido pelos

alunos ao usarem a terminologia científica no enunciado com o qual resumem a história:

“Que a sobrinha mais velha estava mais interessada no barão do que no estudo das gramí-

neas e do perianto” (Lucas e Marlon, T. 603). O emprego dos termos científicos, a exemplo

de Machado de Assis, recupera o tom irônico da peça. Não seria a mesma coisa se disses-

sem, por exemplo: “... estava mais interessada no Barão do que no estudo das plantas ou da

Botânica”.

Já um outro resumo tece outras significações: “... mas a irmã de Cecília, Helena,

finge que quer aprender botânica mas no fundo ela quer ajudar sua irmã e no final dessa

história Helena consegue não só juntar Cecília e Henrique mas também conquistar o cora-

ção do Barão” (grifos da pesquisadora). Fingir não é uma atitude ética, mas, se no fundo as

intenções são nobres e querem ajudar, a pessoa deve ser recompensada, conquistando algum

prêmio valioso.

Essas análises sobre os resumos produzidos a respeito da peça mostram a variedade

de aspectos que podem ser observados em um resumo, revelando que a sua produção não é

uma tarefa tão simples. O exercício de resumir uma história pode envolver a mobilização de

diversos elementos, como discutimos a pouco. Resumir uma história é, de início, encurtá-la,

mas não se pode sair por aí cortando qualquer pedaço. E o próprio resumo, torna-se também

uma história, que para fazer sentido, impõe algumas exigências. Num paralelo possível com

atividades de resumo de textos voltados ao ensino de Ciências, guardando as diferenças,

podemos pensar que, também nesse contexto, resumir seja uma tarefa complexa, e que

exige, antes de tudo, um domínio da totalidade do texto a ser resumido e o empenho pelos

exercícios com a linguagem. Aspectos aos quais podemos dedicar maior atenção durante as

práticas de ensino.

5.2 – Sobre o Sr. Barão de Kernoberg.

Através de questões da atividade no 1 de pesquisa já analisadas, foi possível identi-

ficar alguns traços do retrato que os alunos desenharam para os cientistas, ao lhes atribuí-

rem características que julgavam importantes e pertinentes. Também foram identificadas,

por eles, a existência de uma linguagem própria à ciência e algumas características especí-

ficas dessa maneira científica de falar. Naquela atividade foram abordados, ainda, alguns

aspectos sobre as classificações biológicas e a reprodução vegetal. Para as duas turmas

envolvidas, tais questões se desenvolveram antes da apresentação da peça Lição de Botâni-

ca, e para a turma 603 também antes das aulas sobre os referidos tópicos de ciências, se

Page 149: Tese experimentos de botânica

136

constituindo, assim, em oportunidade para identificarmos as noções prévias que os alunos

expressavam sobre esses temas.

Discutiremos agora as questões 2/4a e 2/4b, que também tratam dos cientistas, ago-

ra se remetendo ao contexto da história. Algumas considerações podem ser feitas a partir

das novas respostas e de seu confronto com as anteriores.

Ao escrever a história de mais uma Helena, a última que inventou para o teatro,

Machado de Assis tinha lá os seus propósitos. Entre eles, talvez buscasse ainda contribuir

com suas letras para o desenvolvimento do teatro brasileiro, expressão artística que, desde

sua juventude, tanto apreciava e julgava necessária à cultura nacional. Sabemos que o es-

critor também tinha seus caprichos, que na visão de Loyola (1997) se manifestaram na

Lição de Botânica através de uma refinada ironia, da quebra de algumas das convenções

sociais e teatrais da época e de uma visão cética para com os assuntos da ciência.

O Barão de Kernoberg se apresenta às suas vizinhas como botânico de vocação,

profissão e tradição, membro da Academia de Estocolmo, comissionado pelo governo da

Suécia para estudar a flora da América do Sul15, celibatário e esposo da ciência e, ao longo

da peça, vai se dizendo respeitoso, envelhecido, de gênio áspero e autoritário, apenas su-

portável e, ainda, original. As mulheres da história também emitem suas impressões sobre

ele. Logo de início, alertando o público, Cecília o considera bastante moço, ao contrário do

que pensara! Dona Leonor, com uma tenaz má vontade com relação a tudo o que diz res-

peito à ciência, acha que ser botânico e sueco já são duas razões para ele ser gravemente

aborrecido, e ainda o percebe como um urso esquisitão. Já Helena, que à parte observava

ser o mestre perigoso, o considera distinto, amável, bom, sábio e inteligente e tenta fazê-lo

ver que, no caso do namoro de Henrique, está sendo caprichoso e egoísta.

Com esses traços, que vão aparecendo à medida que o Barão se envolve na história,

Machado de Assis compôs seu personagem formando uma caricatura do cientista obstina-

do e dedicado à ciência, que se torna cômico à medida que tem suas peculiaridades profis-

sionais exacerbadas e exploradas na tensão com a esfera da vida cotidiana.

Além das características mostradas através do próprio texto da peça, o apresentador

também anunciara aos alunos que o Sr. Barão é um famoso botânico sueco que está no

Brasil para estudar a flora da América do Sul e é um cientista muito importante e que só

15 Em FERRI (In: AZEVEDO, 1994) e NOGUEIRA (2000) encontramos referências a inúmeras expedições e visitas de pesquisadores estrangeiros ao Brasil, durante um longo período, às quais, devemos, simultanea-mente, uma grande retirada de material de nossa fauna e flora e grande parte do desenvolvimento de nossa botânica e zoologia e mesmo de instituições de pesquisa.

Page 150: Tese experimentos de botânica

137

pensa naquilo, ou seja, estudar suas queridas plantas. E na discussão com as turmas após

a apresentação, houve menção às intenções do botânico sueco de impedir o namoro de seu

sobrinho que também deveria ser botânico e, portanto, não deveria se casar. Todas essas

referências sobre o Barão estavam disponíveis aos alunos para definir a visão de cientista

mostrada na peça.

Na tabela 21 apresentamos as respostas das turmas 601 e 603 à questão 2/4a: “Po-

demos ver que a peça apresenta uma visão de cientista, representada pela personagem do

Sr. Barão de Kernoberg. Como é este cientista?” Para cada característica atribuída ao cien-

tista nos enunciados dos alunos foi computada uma resposta.

TABELA 21

Respostas das turmas 601e 603 à questão 2/4a: Podemos ver que a peça apresenta uma visão de cientista, representada pela personagem do

Sr. Barão de Kernoberg. Como é este cientista?

Categorias

de respostas

Total de respostas

Sub-itens

No de

respostasSó dava importância à ciência 18

Amor e ciências não combinam 10 Só falava de Botânica 8

Outros 8

Convicções

50

Muda de idéia ao final da história 6 Extrovertido / Simpático / Legal / Humor 8

Sério / Rigoroso / 6 Organizado / Detalhista 4

Calmo / Educado 4

Aspectos positivos

24

Com táticas 2 Exigente / Caprichoso / Cabeça-dura 6

Egoísta 6 Antipático / Chato 4 Arrogante / Grosso 4

Temperamento Aspectos negativos

22

Amargo 2 Estudioso / inteligente / sábio 20

Cientista de Botânica 6 Muito cuidadoso com a Botânica 4

Ordem Intelectual

32 Bem informado 2

Sueco 8

Origem

12 Viajante 4

O que foi dito pelos alunos sobre o Barão pôde ser agrupado nas categorias relacio-

nadas às convicções, ao temperamento, à ordem intelectual e à origem. O grande número

Page 151: Tese experimentos de botânica

138

de respostas se deve a que, em sua maior parte, os enunciados eram compostos por vários

itens. Nota-se que quase tudo do que foi descrito anteriormente sobre ele foi aproveitado

pelos alunos.

Individualmente, os dois pontos mais comentados foram o fascínio do Barão por

sua ciência, e a total dedicação que lhe devotava, e ser estudioso, inteligente ou sábio, con-

forme vemos nos exemplos abaixo.

Um botânico sueco fascinado pela ciência (Pablo e Ranoi, T. 601)

Ele era um cientista que só pensava em estudar sobre a botânica (Anna Beatriz e

Mariana, T. 603)

O Barão era muito inteligente (Jannyne e Ramon T. 601)

Ele era um cara inteligente, estudioso, estuda botânica, etc. (Carlos Roni e Max-

son, T. 603)

Os atributos de ordem intelectual também haviam sido os mais destacados como ca-

racterísticas necessárias aos cientistas na atividade 1/3 (tabelas 7 e 8), alinhando-se com as

respostas relativas ao cientista da peça. A paixão pela ciência também fora destacada como

marca do cientista idealizado, como nos enunciados de Alan e Guilherme, entre outros da

atividade 1/3:

Amor, paixão pelo que faz e ser inteligente (Alan, T. 603).

Inteligente, apaixonado por planta e animais (Guilherme, T. 603).

As convicções fortes e o empenho para com o estudo parecem ser mesmo caracte-

rísticas essenciais aos homens e mulheres da ciência e estão sempre presentes na biografia

dos grandes cientistas de todas as épocas. Moacyr Scliar (2002, p.67) exemplifica isso de

forma clara, ao apresentar a vida de Oswaldo Cruz, cientista que na época de Machado de

Assis era um dos grandes expoentes da ciência no Brasil, dizendo que “com eles [seus a-

migos], Oswaldo Cruz partilhava duas coisas: primeiro, a dedicação à ciência, a coisa

Page 152: Tese experimentos de botânica

139

mais importante em suas vidas; depois, a convicção de que estavam empenhados em prol

de um projeto grandioso, que ajudaria a mudar o país”.

Podemos dizer que o “problema” do Barão era seu exagero, demonstrado nas refe-

rências excessivas aos assuntos da Botânica e na dedicação exclusiva ao universo científi-

co, eliminando outras dimensões de sua vida pessoal. E a caricatura na qual esses traços

estão bem marcados funciona para identificá-lo junto aos leitores e ao público da peça.

Quando agrupados em categorias, os aspectos mais destacados pelos alunos são os relacio-

nados às convicções e à obstinação do Barão, incluindo seu ponto de fé que a ciência não

se dá bem com o matrimônio e o fato de que ele só falava de botânica. Pensando em cien-

tistas reais, podemos imaginar que esse exagero seja mesmo uma tendência comum para

eles, ou faz parte de um imaginário sobre eles, quando vemos Moacyr Scliar fazer questão

de dizer que “não devemos pensar em Oswaldo Cruz como um tecnocrata obcecado com

seus projetos e incapaz de pensar em qualquer outra coisa. Era um homem de vasta cultu-

ra... freqüentava teatros, lia os autores da época, acompanhava os acontecimentos... gos-

tava muito de poesia...” (2002, p. 67).

Os alunos também destacaram como características do cientista vários pontos do

temperamento do Barão. Características que podemos distinguir como aspectos positivos e

negativos. Helena se incumbiu de elogiar o Barão e apontar-lhe alguns defeitos e as carac-

terísticas diretamente indicadas por ela aparecem nas respostas dos alunos. Outras foram

bem deduzidas por eles.

Não há como separar aqui o personagem do ator. O aluno Thiago que dava vida ao

Barão era bastante carismático e arrebatou os corações femininos das jovens platéias. De

fato, como já destacamos nas análises das discussões realizadas após a apresentação, os

alunos e alunas ficaram bastante entusiasmados com a presença dos adolescentes que com-

punham o elenco da peça. De forma que respostas vendo o cientista como legal, extrover-

tido, de bom humor, podem estar sendo referidas mais ao ator e não propriamente ao Sr.

Barão. Interferência difícil de controlar e aferir, quando pensamos em casos como o de que

Cleópatra, rainha do Egito, que para expectadores de uma certa faixa de idade terá sempre

o rosto de Elizabeth Taylor.

Alguns alunos lembraram também a origem sueca do Barão e suas viagens a servi-

ço da ciência, o que guarda relações com a história da Botânica no Brasil.

Vemos que, em linhas gerais, o Barão não decepciona os alunos em suas expectati-

vas sobre os atores da ciência. As respostas à questão 1/3 trouxeram uma visão muito posi-

tiva sobre os cientistas que gozam de muita credibilidade e grande respeito entre os alunos,

Page 153: Tese experimentos de botânica

140

visto os numerosos atributos de ordem ético-moral como paciência, cuidado, caráter e res-

ponsabilidade que haviam sido citados. E vários desses aspectos positivos foram recorren-

tes nas novas respostas, referidas ao Barão.

O que surge como novidade são algumas referências a características do tempera-

mento do cientista que consideramos negativos, como citados nos exemplos a seguir:

Ele era um cientista amargo que só a ciência para ele era importante (Kelvin e

Lucas (T. 601)

Chato, arrogante, cabeça-dura (Paula e Ana Paula, T. 603)

Ele é exigente e egoísta mais tem o seu lado positivo, ele é inteligente (Laís e Taya-

ra, T. 601).

Consideramos que tais predicados não tão elogiáveis possam mesmo se manifestar

em qualquer pessoa ou profissional, inclusive nos cientistas. Então é interessante perceber,

pela atividade no 1, que quando os alunos falam do cientista idealizado não elencam gratui-

tamente aspectos negativos, ofuscando a imagem dos sábios que têm em grande considera-

ção. E aqui entra a figura do Barão desenhada por Machado de Assis, caricatura do pesqui-

sador obstinado, na qual sabemos residirem muitos dos efeitos cômicos da Lição. Esse

botânico considerado chato, egoísta, amargo ou arrogante sem dúvida desmistifica a ima-

gem dos cientistas como indivíduos quase perfeitos e, abrindo espaço para as imperfeições,

humaniza as personagens reais do mundo da ciência.

Apesar de somente Paula e Ana Paula (T. 603) terem chamado o Sr. Barão de “ca-

beça-dura”, vários alunos concordariam com elas, ao destacarem como característica do

cientista suas fortes convicções sobre as incompatibilidades entre o amor e a ciência, o que

realmente se constitui num dos pilares da trama. Mas alguns alunos se lembraram de dizer

que ele mudaria de idéia no “final feliz” da história.

Uma pessoa que se acha velha e acha que a ciência e o amor não se misturam, só

depois Helena muda seu pensamento (Stephan e Felipe, T. 601).

Um homem que se dedicou a vida toda a Biologia, que se casou com a ciência, mas

no final acabou namorando com Helena (Laiza e Rhaiza, T. 603).

Page 154: Tese experimentos de botânica

141

Sério, não pensa em mais nada a não ser a ciência, mas ele iria parar e ter tempo

para pensar em tudo (Manuela e Débora, T. 603).

Através dessa análise sobre o que os alunos disseram a respeito do cientista da pe-

ça, podemos ver que o Sr. Barão de Kernoberg é um personagem interessante e polêmico,

no sentido de conseguir expressar características marcantes atribuídas às pessoas que se

dedicam à ciência, ajudando a reconhecer um modelo e, ao mesmo tempo, em sua origina-

lidade, ajuda a criticar e a romper esse modelo.

Lembramos, a partir de Bakhtin em seus estudos sobre Rabelais, que toda caricatu-

ra, com seus traços grotescos, tem por base uma visão carnavalesca de mundo, e que o riso

que ela pode promover mantém forças capazes de degradar o que está bem estabelecido e

revestido de reconhecimento e poder. Riso que degrada para relativizar, para inverter, para

desafiar a ordem, para renovar e afirmar novas possibilidades. Assim, o botânico obstina-

do, que como dizem Agatha e Mariângela, alunas da turma 601, quer passar o seu amor da

botânica para todos, nos faz rir da sisudez da ciência e desconfiar da gravidade excessiva

de seus obreiros.

Outras considerações significativas desenvolvidas por Bakhtin podem também ser

aproximadas aqui, a partir da figura do Barão. Primeiramente, é a noção de excedente de

visão e as condições de exotopia que a literatura possui em relação à ciência, o que lhe

permite ter esse olhar de fora, apreciativo, em certa medida capaz de compreendê-la em

suas especificidades e de apontar seus limites. Quando o escritor, com os recursos que mo-

vimenta para ver o mundo, coloca o pesquisador em seu foco, também instaura para nós

um plano distinto de observação para a ciência, nos aspectos contemplados pela trama, e

permite que olhemos a Botânica com um outro olhar, brincalhão e revelador, inacessível a

nós, por exemplo, quando estamos, circunspetos, tratando de seus assuntos nas situações de

ensino e aprendizagem. Já fizemos menção às essas questões do riso e da exotopia nas aná-

lises sobre a discussão a respeito da peça. Cumpre destacar, ainda, que pela Lição de Botâ-

nica, a exotopia se instala em duplo sentido, permitindo que o ensino de Ciência também

veja a literatura.

Em segundo lugar, podemos nos referir também às noções de linguagens sociais e

de plurilingüismo. Bakhtin atribui um grande valor social à heteroglossia ou plurilingüismo

constitutivo da linguagem, especialmente a literária, ou seja, a condição de ser gerada no

entrelaçamento de diversas linguagens e nas tensões entre elas, o que lhe atribui uma espe-

cial dinamicidade semiótica. Faraco (2003, p. 57) observa que Bakhtin valorizava, sobre-

Page 155: Tese experimentos de botânica

142

tudo, o processo de dialogização das vozes sociais, isto é, o encontro sócio-cultural dessas

vozes e a dinâmica que estabelecem entre si, pois podem se apoiar mutuamente, se interi-

luminar, se contrapor, se polemizar, se diluir em outras, se parodiar, se arremedar e assim

por diante.

Na Lição de Botânica, vemos nos movimentos de encontro da linguagem cotidiana

com a linguagem científica a ocorrência de várias dessas possibilidades de contato citadas

acima. Assim, no contexto de ensino de Ciências, consideramos proveitoso o trabalho com

o texto literário como oportunidade de os alunos perceberem com mais intensidade as es-

pecificidades das diferentes linguagens, contribuindo, assim, para a ampliação de seu uni-

verso cultural, pois o plurilingüismo constitutivo da literatura requer de nós uma expansão

do plano da linguagem, e propicia um aguçamento de nossa percepção das diferenciações

sócio-lingüísticas, que são reflexos e espelhos de diferentes formas de ver aspectos da rea-

lidade e de construir conhecimento sobre eles.

5.3 – Sobre a linguagem do Sr. Barão

As questões 1/4a e 1/4b, já analisadas nas tabelas 9 e 10, enfocaram as idéias mos-

tradas pelos alunos sobre a linguagem usada pela ciência. Percebeu-se que a maior parte

deles reconhece a existência de uma linguagem científica específica, identificada por eles

como sendo constituída por termos próprios, nomes diferentes dos populares, palavras no-

vas inventadas pelos cientistas, símbolos, fórmulas e termos em latim. Aspectos positivos

dessa linguagem também foram destacados pelos alunos, como a clareza e a objetividade e

a possibilidade de promover uma comunicação exata, facilitando o estudo e a troca de in-

formações entre os cientistas. Consideramos também como avaliação positiva da lingua-

gem científica, numa outra dimensão, a referência a não ter gírias e nem palavrões e ser

usada com educação e sabedoria. Em menor número, mas citados quase na mesma propor-

ção que os positivos, alguns aspectos restritivos foram atribuídos à linguagem científica,

caracterizando-a como sendo difícil e complicada.

Vejamos agora como fala o Sr. Barão de Kernoberg e como a linguagem científica

manifestada na história é percebida pelos alunos. A tabela 22 mostra as respostas das tur-

mas 601 e 603 à questão 2/5: “Em várias partes da história, aparecem indicações de que a

linguagem usada pela Botânica não é uma linguagem comum. a) Como é a linguagem da

Botânica, segundo as indicações da peça? B) Identifiquem uma frase da peça que mostre

isso (indiquem quem diz a frase e em que cena da peça)”. Para cada item constituinte das

respostas foi computada uma resposta.

Page 156: Tese experimentos de botânica

143

TABELA 22

Respostas das turmas 601 e 603 à questão 2/5: Em várias partes da história, aparecem indicações de que a linguagem usada pela botânica não é uma linguagem comum. a) Como é a linguagem da botânica, segundo as indicações da peça? B) Identifiquem uma frase da peça que mostre isso (indiquem quem diz a frase e em

que cena da peça).

Categorias de Respostas

Total de respostas

Sub-itens No de respostas

Complicada 26 Aspectos restritivos / Dificuldades

44 Difícil 18

Em Latim 12 Sueca 8

Etimologia / idioma

22

Grego 2 Científica 8 Diferente 6

Exige dedicação 4 Nomes científicos estranhos 2

Especificidades da linguagem

22

Comum 2 Mais antiga / mais civilizada / mais elevada 6

Perfeita / Encantadora 4 Preservativa 2

Aspectos positivos

14 Profunda 2

O item B da questão tinha o objetivo de facilitar a resposta ao item A, orientando a

reflexão dos alunos para respondê-lo e procurando garantir a vinculação das respostas ao

contexto da peça. Detalhes da análise das respostas ao item B não serão tratados aqui, mas

as respostas se mostram coerentes, apresentando, em sua maioria, enunciados da peça que

efetivamente embasam a característica apontada para a linguagem científica.

As respostas ao item A foram analisadas em seu conjunto e relacionadas como as-

pectos restritivos ou positivos, especificidades e etimologia ou idioma. A maior parte dos

alunos assinalou como característica da linguagem científica retratada na peça ser difícil e

complicada, aspectos que consideramos como restritivos. Em segundo lugar e igualmente

citados foram os aspectos relativos às especificidades da linguagem científica e os relacio-

nados à etimologia e aos idiomas. Um número menor de alunos destacou aspectos conside-

rados positivos.

Quais eram as referências à linguagem usada pelo Barão que os alunos tinham co-

mo base para elaborarem suas respostas? No próprio texto da peça, que foi apresentado e

que os alunos tinham disponível para consulta, há referências diretas e indiretas à lingua-

gem da Botânica: os termos técnicos, os nomes das famílias vegetais, a origem etimológi-

Page 157: Tese experimentos de botânica

144

ca, as subdivisões da Biologia e algumas falas dos personagens citando ou repetindo essas

palavras e mostrando a reação das pessoas a elas, como, por exemplo, nas falas de Cecília

e de Dona Leonor, mostradas a seguir.

Cecília – “Só o nome! Perianto. É nome grego, titia; um delicioso nome grego. (à

parte) Estou morta para saber do que se trata.”

Dona Leonor – “Vocês me fazem perder o juízo! Aqui andam bruxas decerto. Peri-

anto de um lado, bromélias de outro; uma língua de gentios, aves-

sa à gente Cristã. Que quer dizer tudo isso?"

Na discussão sobre a peça com as duas turmas, também há referências a vários des-

ses termos botânicos que aparecem na peça e, na turma 603, houve uma breve menção com

relação direta à linguagem da Botânica, transcrita a seguir16:

(T1) Pesquisadora - ... A Dona Leonor, ela achava a linguagem da botânica uma

linguagem muito fácil, muito simples?

(T2) A1- Não, complicada!

(T3) Pesquisadora – Ela achava uma linguagem ...

(T4) A2 - Complicada.

(T5) Pesquisadora - Quem consegue lembrar alguma coisa que ela falou e que mos-

tra pra gente que ela achava que a linguagem da botânica era complicada?

(T6) A3- A Helena falou uma palavra lá e ela ficou: umbe, umbe...

(T7) Pesquisadora - Umbe? Né? Umbelíferas! A Helena fingindo que era um nome

muito comum e tal. Muito bem! Alguém lembra outro exemplo?

(T8) A4- Da cueca.

(T9) Pesquisadora – Da cueca? Ah! Aí era pra brincar com sueca! A Helena estava

muito interessada em estudar botânica?

Inicialmente, podemos apreciar as respostas a partir dos subsídios que estavam dis-

poníveis. Pela própria apresentação, os alunos tiveram diversas indicações de que a termi-

nologia da Botânica é diferenciada e contém palavras que podem ser consideradas difíceis.

16 A numeração dos turnos de fala na seqüência citada é provisória para essa parte da análise, não correspon-dendo à numeração na transcrição completa.

Page 158: Tese experimentos de botânica

145

Além disso, esse aspecto também foi destacado na discussão, como mostrado pelo trecho

anterior. Assim, justifica-se a ampla citação dessas características.

Vários alunos caracterizaram a linguagem científica da Lição de Botânica por um

dos idiomas ou nacionalidade que são citados na peça. O mais comentado foi o latim, de-

vido provavelmente ao conhecimento prévio dos alunos, sobre a regra de nomenclatura

científica que exige que os nomes científicos sejam escritos em latim ou latinizados. E,

aqui, a linguagem científica fica abarcada pela nomenclatura taxonômica, e que é certa-

mente o aspecto mais explorado na peça.

Com relação à etimologia e aos idiomas, que foram citados como características da

linguagem científica, é interessante perceber a complexidade que se tem nesse contexto,

evidenciando em termos lingüísticos os processos históricos e sociais de produção dos co-

nhecimentos científicos. O público da peça fala português, o Barão e seu livro são suecos,

o perianto é grego e as famílias de plantas estão em latim, devido à nomenclatura de Lineu,

que também era sueco. É mesmo provável que essa pequena espécie de torre de Babel,

divertidamente explorada pelo texto literário, tenha sido capaz de armar alguma confusão

na cabeça dos alunos.

A referência a palavras difíceis e a etimologia das palavras pode ser encarada como

um ponto interessante para a reflexão acerca do ensino e aprendizagem de ciências, lem-

brando-se que Bachelard (1996a, p.122), nas análises do que julgava serem entraves da

linguagem ao pensamento científico, percebia como um terreno movediço essa questão

relativa às línguas naturais: “parece que basta uma palavra em grego para que a ‘virtude

dormitiva do ópio que faz adormecer’ deixe de ser um pleonasmo. A aproximação de duas

etimologias de origens diferentes provoca um movimento psíquico que pode dar a impres-

são de que se adquire um conhecimento. Toda designação de um fenômeno conhecido por

um nome erudito torna satisfeita a mente preguiçosa”. A respeito desse último aspecto

considerado por Bachelard, imaginamos que, além do movimento psíquico desencadeado

pelo termo erudito, contribua também, para o conforto de nossas mentes, uma boa pitada

da autoridade socialmente atribuída à linguagem científica.

Voltando às respostas dadas pelos alunos, percebemos que as especificidades apre-

sentadas para a linguagem científica não são muito interessantes e, de certa forma, são até

tautológicas. Os aspectos positivos citados nas respostas também não são significativos em

função do que se esperaria de uma linguagem social de contornos bem definidos como é a

científica. Eles soam mais como elogios aos modos do Barão e como ecos da linguagem

culta do próprio texto machadiano, bem enlaçado às referências à Botânica.

Page 159: Tese experimentos de botânica

146

Podemos comparar as respostas dadas sobre a linguagem da Botânica indicada pela

peça com as respostas dadas, anteriormente, à questão 1/4a, referida à linguagem da ciên-

cia de forma geral, sem relações com a Lição de Botânica. De início, alguns aspectos se

mostram alinhados. Possuir termos e expressões próprias, diferenciadas da linguagem coti-

diana, e ser escrita em latim são aspectos recorrentes nos dois momentos. As referências

positivas voltadas à norma culta da língua e aos padrões de educação dos locutores também

haviam sido citadas pela turma 603.

Dois novos sentidos podem ser considerados: os aspectos positivos citados anteri-

ormente pela turma 601, voltados à clareza, objetividade e uniformização, pertinentes e

relevantes à função de comunicação entre os pesquisadores, desaparecem das novas

respostas, voltadas ao contexto da peça. E o fato de ser uma linguagem complicada e

difícil, que também já havia sido relacionado, fica bastante realçado. Entendemos que

aqueles aspectos relacionados à comunicação científica foram inicialmente citados porque

a atividade de pesquisa havia sido precedida pela aula na qual o professor comentara sobre

tais aspectos. Os alunos se recordavam dessas observações e as reconheceram como

atributos importantes da linguagem científica. No contexto da Lição de Botânica esses

elementos não estão mais tão presentes e marcantes e o tom de Machado de Assis ressoa

mais alto. Já as complicações e dificuldades trazidas pelos termos científicos, desafios concre-

tos aos que desejam se dedicar à taxonomia, além de terem sido claramente destacadas na

discussão sobre a apresentação, são decididamente um dos motes da peça, tendo sido labo-

riosamente exploradas pelo escritor. Assim, entendemos que a maioria dos alunos respon-

deu adequadamente ao identificar que a ciência da peça tem uma linguagem complicada.

As respostas ao item B da questão também reforçam essa avaliação, pois mostram uma

coerência entre a característica da linguagem que é apontada e o enunciado da peça que é

destacado por eles para justificá-la. Levantamos a hipótese de que os alunos reconheceram

a linguagem da peça como uma caricatura da linguagem científica, quando alguns de seus

traços efetivos são exacerbados para produzir um efeito desejado. E podemos estender para

a caricatura da linguagem científica o que comentamos a respeito do Barão como estereó-

tipo do cientista.

Uma última observação a partir da linguagem científica da Lição de Botânica pode

ser feita em termos da compreensão sobre os gêneros de discurso, como entendidos por

Bakhtin. Se pelo plurilingüismo inerente aos textos literários, temos a coexistência de vá-

rias linguagens sociais dentro de um mesmo ambiente textual, reafirmamos a literatura

Page 160: Tese experimentos de botânica

147

como espaço privilegiado para a observação do funcionamento dos distintos gêneros de

discursos, que emanam de tais linguagens, nas interações produzidas.

Dissemos que o “problema” do Barão era seu exagero. Podemos dizer que sua lin-

guagem sofre do mesmo mal. E mais ainda, sofre de uma inadequação, que no contexto da

peça foi propositalmente “plantada” pelo autor. Em termos bakhtinianos, poderíamos dizer

que o Barão utiliza elementos da linguagem social da ciência inadequados à esfera de co-

municação verbal na qual estava envolvido. Guardasse a sua língua para as suas ervas e as

aulas que agendava. A linguagem cotidiana corre solta e feliz nos enunciados da história e

quando a linguagem científica, exagerada pelo excesso de termos botânicos, entra em cena

há uma espécie de estranhamento, ela não cabe ali, ela fica sobrando. Primeiro, porque o

ambiente não é de créditos à ciência, muito pelo contrário, “Dona Leonor acha horrível

esse negócio de aprender botânica” e, também, “a sobrinha mais velha estava mais inte-

ressada” em outras coisas que não o estudo, como disseram alguns alunos. Segundo, por-

que o primeiro mandamento de um gênero discursivo é o seu exercício, o seu bom

funcionamento nas atividades sócio-discursivas.

Aos poucos, o Barão vai mostrando a Helena que se ela deseja aprender Botânica

deverá aprender sua linguagem, que sabemos ter especificidades em termos sintáticos,

composicionais e lexicais; tendo esses últimos uma forte presença no caso da taxonomia.

Reafirmando o que tem sido tomado como um axioma para os estudos sobre ensino e a-

prendizagem em Ciências que, na perspectiva de Lemke (1990), consideram a dimensão

lingüística: aprender Ciências envolve aprender a falar Ciências.

No contexto de reflexão teórica do Círculo de Bakhtin, essa noção ganha consistên-

cia pelo fato de os gêneros do discurso, dentro de sua relativa estabilidade, serem vistos

como meios de conhecimento situado, sendo modos e meios sócio-históricos de visualiza-

ção e conceituação da realidade e que, conforme é destacado por Marcuschi (2002), carac-

terizam-se, sobretudo, por seu funcionamento nas atividades concretas, mostrando-se mais

por suas funções comunicativas, cognitivas e institucionais do que por suas peculiaridades

lingüísticas e estruturais. Concluindo, lembramos que, tanto para Medvedev quanto para

Bakhtin, envolver-se em uma determinada esfera de conhecimento implica desenvolver

também um domínio dos gêneros que lhe são peculiares. Em outras palavras, aprender os

modos sociais de fazer é também aprender os modos sociais de dizer (Faraco, 2003, p.

116).

Page 161: Tese experimentos de botânica

148

5.4 – Sobre a nomenclatura científica

Encerrando a atividade no 2 de pesquisa, as questões 2/6, 2/7 e 2/8 referem-se mais

diretamente a conteúdos de Biologia, constituindo-se, assim, em oportunidade para se re-

tomar aspectos suscitados pela história de Machado de Assis e explorar tópicos da classifi-

cação biológica. O conteúdo dessas questões será aproveitado na atividade prevista para o

final da pesquisa, que consiste na montagem, com as duas turmas, de um herbário de espé-

cimes vegetais coletados no entorno da escola.

Naturalistas suecos e novos olhares

Comentaremos a seguir as respostas dos alunos à questão 2/6: “O Barão de Kerno-

berg, o cientista da peça, é sueco. Vocês encontram alguma relação entre isso e a história

real da botânica?”.

A figura de Lineu apareceu, anteriormente, em três momentos que compõem o con-

texto da pergunta. Na aula expositiva, o professor comentou sobre sua nacionalidade e so-

bre a importância de seu sistema de classificação biológica; no texto da peça ele é citado

quando Helena é comparada pelo Barão à violeta, Viola odorata de Lineu; e na discussão

com os alunos sobre a apresentação, quando se reafirma sua importância e se levanta a

hipótese da relação entre o Barão e o famoso botânico. A partir desse conjunto de referên-

cias, a maioria dos alunos respondeu à questão relacionando o botânico sueco da peça à

figura do naturalista Carl von Linné.

Porque existiu na vida real um botânico sueco, o Carlos Lineu (Anaina e Paola, T.

601)

Sim, o botânico Carlos Lineu também era sueco (Kelvin e Lucas, T.601).

Sim. Porque o maior botânico é sueco e o seu nome é Carlos Lineu (Cássio e Pau-

lo, T. 603)

Alguns alunos assumem a perspectiva da hipótese que foi levantada pela pesquisa-

dora na discussão:

Pelo avanço da Botânica na Suécia e talvez em homenagem a Carlos Lineu (Ste-

phan e Felipe, T. 601)

Page 162: Tese experimentos de botânica

149

Outros alunos assimilam a hipótese com um sentido mais forte, já apresentando-a

como uma certeza:

O autor bota o barão de Kernoberg no lugar porque Carlos Lineu era sueco e o

barão também e ele acabou fazendo uma homenagem a Carlos Lineu botando no

lugar dele também um sueco (Evelyn e Juan, T. 601).

Como podemos ver nos exemplos a seguir, algumas respostas reafirmam a impor-

tância do trabalho de Lineu como foi enfocado em sala de aula, mas colocam em primeiro

plano o mesmo destaque dado por um dos alunos, na discussão sobre a peça, aos estudos

de Botânica produzidos pelos suecos:

Sim. Porque os suecos são muito famosos pela sua grande botânica (Letícia e Ma-

êva, T. 601).

Que a maioria dos botânicos famosos são suecos (Jackson e Thiago, T. 601).

Os alunos Eduardo e Rony se entusiasmam com as referências ao trabalho de Lineu

e se mostram radicais na consideração dos méritos dos pesquisadores suecos:

Sim e porque os suecos são muito mais inteligentes que os brasileiros (José Eduar-

do e Rony, T. 603).

As respostas em seu conjunto fazem eco às informações dadas e às impressões tro-

cadas nas interações anteriores e, mais uma vez, expressam uma entonação, a dimensão

valorativa contida em todo enunciado, como é destacado pelo Círculo de Bakhtin.

Embora a questão 2/6 nos parecesse poder ser facilmente respondida, já que a in-

formação envolvida era muito simples e havia sido bastante comentada, um número signi-

ficativo de alunos não a respondeu (14/34 alunos na turma 603 e 8/32 alunos na turma

601). Resultado que demonstra que as coisas, em sala de aula, nunca são totalmente previ-

síveis e garantidas e que nem sempre o que é abordado é percebido por todos os alunos. As

coisas ditas, repetidas e explicadas podem escapar aos ouvidos, podem não tecer significa-

dos, podem driblar a memória.

Page 163: Tese experimentos de botânica

150

Algumas referências à figura de Lineu e ao trabalho científico por ele desenvolvido

já foram apresentadas em nossos referenciais e nas análises das questões 1/7 e 1/8, referi-

das às flores. Ressaltamos, ainda, alguns aspectos destacados por Mayr (1998, p. 201), a

respeito daquele que tem sido chamado de “pai da taxonomia”. Lineu foi considerado um

modelo de taxonomista meticuloso e descritivo e era visto, também, como uma personali-

dade bastante contraditória. Com inclinações para a numerologia e o misticismo, era exa-

geradamente pragmático e demonstrava grandes recursos literários. Viveu muitos anos na

Holanda e visitou vários outros países. Lineu se interessava por uma ampla variedade de

temas biogeográficos e ecológicos, contudo, as classificações se constituíam em seu prin-

cipal interesse. Sua obsessão em classificar qualquer coisa que lhe caísse nas mãos pode

ser demonstrada pela elaboração de uma classificação dos próprios botânicos, categoriza-

dos em fitologistas, botanófilos, colecionadores, metódicos, adônicos, oradores, erísticos e

assim por diante.

Apesar das incongruências que se puderam apontar em seu método e das muitas

inconsistências encontradas em seus escritos, Lineu mantém toda a celebridade que con-

quistou. Para Mayr (1998, p. 202), a nomenclatura binominal, a introdução de um rigoroso

sistema de diagnose estilo telegrama, o desenvolvimento de uma terminologia elaborada

para a morfologia vegetal, a padronização de sinonímias e demais aspectos da pesquisa

taxonômica, propostos e tratados por Lineu, proporcionaram simplicidade e consenso à

taxonomia e à nomenclatura biológica que se encontravam caóticas. Tais contribuições

justificam a popularidade e o sucesso que obteve entre os estudiosos. Com a autoridade

que já dispunha no meio científico, o pesquisador sueco pôde impor seu método e impulsi-

onar de forma intensiva o desenvolvimento do mundo da sistemática, no século XVIII e

início do XIX. Cabe lembrar aqui a visão exposta por Foucault acerca desse período e as

tintas fortes que usa para pintar o quadro desse movimento de consolidação do trabalho dos

naturalistas taxonomistas, e que contribuem para uma compreensão mais amplamente de

tal dinâmica histórica.

É oportuno lembrar, ainda, as relações existentes entre toda essa produção científi-

ca dos naturalistas da época clássica, que aparece coroada no trabalho e na figura de Lineu

com outras dimensões da vida social, como a cultura popular e a linguagem cotidiana da-

quela época. Já discutimos, no referencial teórico desse estudo, as considerações de Tho-

mas (1989) acerca do processo de mudança de perspectivas para se ver o mundo natural

ocorrido na Inglaterra do século XVIII. Nos percursos histórico-sociais que se sucedem, a

visão de um mundo submisso e feito para o homem começava a ser desconstruída, proces-

Page 164: Tese experimentos de botânica

151

so gradual que teve no desenvolvimento da História Natural um significativo fator impul-

sionador.

Thomas (1989, p. 62), aproximando-se das considerações de Foucault (1966), afir-

ma que toda observação da natureza envolve a utilização de categorias mentais, com as

quais os observadores abordam e ordenam a massa de fenômenos ao seu redor, atribuindo-

lhes determinados significados e que tais categorias agregam-se à visão dos observadores

moldando sua percepção. Destaca, assim, a relevância do trabalho dos naturalistas ao cons-

tituírem uma nova maneira de olhar para as coisas da natureza, segundo um sistema de

classificação com traços mais imparciais e objetivos e menos antropocêntricos. E assinala

que, por sua vez, essa nova maneira de olhar, à medida que também influenciava a percep-

ção dos indivíduos comuns e não-cientistas, contribuía para enfraquecer vários pressupos-

tos populares, enfraquecendo a ótica antropocêntrica que, então, dominava a imagem dos

animais e das plantas.

Para o autor, que analisa diretamente o contexto da Inglaterra, no bojo dessa nova

perspectiva teceu-se, também, entre os pesquisadores cultos uma desvalorização e um des-

prezo pela sabedoria popular, de quem os progressos da História Natural eram, na verdade,

grandes devedores. Sentimentos que ajudavam a cavar um abismo entre os modos popular

e erudito de se ver o mundo natural, abismo que se alargaria com a introdução da nova

terminologia latina e das regras padronizadas da nomenclatura lineana, sob a convicção de

que os nomes vulgares eram obstáculos à ciência.

Ainda que na própria prática efetiva do eminente Lineu houvesse incoerências e a

permanência de muitos elementos das antigas terminologias e que, eventualmente, surgis-

sem em setores da sociedade tênues tentativas de resistência, o caminho iniciado foi irre-

versível e pode-se considerar que, no correr do século XIX, o mundo culto já tinha elimi-

nado a linguagem corrente e usual para falar dos seres vivos. O que supomos ser o triunfo

daquela “língua bem feita”, que traçava as relações entre as palavras e as coisas.

Essas são referências históricas pertinentes ao estudo e ao ensino das classificações

biológicas que podem fazer falta para uma compreensão mais plena dos processos de pro-

dução social do conhecimento científico. E podem auxiliar os professores e alunos a des-

mistificarem, junto a outros saberes eruditos, as classificações existentes e as especificida-

des da nomenclatura biológica, percebendo sua edificação nos embates e nas tensões entre

diferentes visões de mundo, entre distintos modelos de subjetividade e entre determinadas

expressões da linguagem na vida concreta dos indivíduos.

Page 165: Tese experimentos de botânica

152

Regras de nomenclatura.

Na continuidade da atividade no 2, a questão 2/7 também procura explorar os víncu-

los da peça com os conteúdos de ensino e pretende, ainda, evidenciar para os alunos o fato

de que as convenções da linguagem científica exigem um determinado rigor e possuem

uma autoridade reconhecida, impondo-se nos contextos em que aparecem, independentes

de sua natureza. Regras são regras e se é um escritor quem escreve, é o Barão, um botânico

especializado, quem está falando e, mais do que nunca, a terminologia científica deve estar

corretamente empregada. Eis a questão: “O Barão ao comparar Helena com a flor violeta

(cena IX), refere-se a ela como Viola odorata de Lineu. Consultando o texto no 1, identifi-

quem todas as regras de nomenclatura que foram usadas para escrever o nome da violeta

dessa forma”.

O texto no 1 corresponde aos textos sobre a biodiversidade e a sua classificação,

preparados pelo professor e explorados nas aulas expositivas, num dos quais são apresen-

tadas e comentadas algumas das regras de nomenclatura científica propostas por Lineu. Ao

longo do conteúdo do texto, são enunciadas as seguintes regras: o nome da espécie deve

estar em latim; deve ser composto por duas palavras; a primeira representa o gênero e deve

ser grafada com letra maiúscula; a segunda determina a espécie e deve ser grafada com

letra minúscula e o nome científico deve estar destacado em itálico ou grifado. Essas regras

ainda são consideradas atualmente e encontram-se incorporadas aos Códigos Internacio-

nais de Nomenclatura, específicos para cada ramo da Biologia.

Uma boa parte dos alunos, cerca de 40%, respondeu de forma satisfatória, identifi-

cando três ou quatro das cinco regras envolvidas. 30% dos alunos citaram duas ou apenas

uma das regras possíveis e outros 30% não responderam a questão ou deram respostas eva-

sivas. Com relação ao enunciado das respostas, a maioria apresenta diretamente as regras,

sem checar e confirmar seu emprego no caso da violeta; apenas dois grupos traçaram uma

relação explícita com a flor, identificando Viola como gênero e odorata como nome

indicativo da espécie.

Como se tratava de uma questão com consulta, respondida em duplas, e se consti-

tuia diretamente em reconhecer na grafia de Viola odorata o exercício das regras citadas

acima, consideramos a princípio que a questão seria facilmente resolvida pelas turmas.

Contudo, vemos que a suposta facilidade da questão não se evidenciou claramente. Apesar

do número expressivo de respostas adequadas, o restante do conjunto de respostas mostrou

a complexidade que o tema apresentava para os alunos de 6a série, naquele momento inici-

Page 166: Tese experimentos de botânica

153

al do período letivo e nas primeiras aulas de Ciências voltadas para o estudo da diversidade

dos seres vivos.

Dando nomes científicos à diversidade

Encerrando a atividade no 2 e completando o movimento proposto pelas questões

2/6 e 2/7, que destacaram a figura de Lineu e suas regras de nomenclatura, a questão 2/8

buscou sondar a importância atribuída pelos alunos aos nomes científicos, explorando a

sua ocorrência em textos didáticos e de divulgação que enfocavam perspectivas diversas.

Conforme foi discutido no tópico “3.2.3 – Sobre as classificações biológicas” com

referência às questões 1/5 e 1/6, classificar um ser vivo pode significar confrontá-lo com

um esquema de identificação, promovendo o seu reconhecimento e a sua identificação den-

tro desse quadro já desenvolvido, recuperando-se um conjunto de informações sobre ele.

Pode, também, significar um processo de estudo, do qual resultaria o reconhecimento e

definição de suas especificidades em relação a outros seres já identificados e o seu posicio-

namento num determinado conjunto evolutivo, fundando-se e descrevendo-se um novo

grupo. Nas duas situações de classificação, os nomes científicos são ferramentas importan-

tes. Ferramentas das quais já apresentamos alguns componentes epistemológicos e alguns

determinantes histórico-sociais.

A tabela 23 apresenta as respostas das turmas 601 e 603 à questão 2/8: “Nos textos

no 1 e 2 encontramos nomes científicos de algumas espécies de seres vivos. Consultando

esses textos, expliquem a importância dos nomes científicos para a Biologia”.

TABELA 23

Respostas das turmas 601 e 603 à questão 2/8: Nos textos no 1 e 2 encontramos nomes científicos de algumas espécies de seres vivos.

Consultando esses textos, expliquem a importância dos nomes científicos para a Biologia.

Categorias de respostas

No de respostas

Conhecer / estudar melhor

30

Identificar / encontrar / classificar / nomear Ver diferenças e semelhanças

26

Comunicação entre os cientistas

20

Fazem referência à biodiversidade

14

Preservar

6

Econômica

2

Não sabem / não responderam

4

Page 167: Tese experimentos de botânica

154

O conjunto de respostas foi agrupado em sete categorias. Para cada item citado nos

enunciados foi computada uma nova resposta.

A maioria dos alunos definiu a importância dos nomes científicos por suas relações

com a produção de conhecimentos sobre os seres vivos e com o desenvolvimento do seu

estudo. Outro grupo de 20 alunos citou o fato de os nomes científicos facilitarem a comu-

nicação entre os cientistas, ao tornarem a linguagem universal. Como vemos nas respostas

a seguir:

Porque o nome tem que ser em Latim e ser científico para ser conhecido no mundo

inteiro, assim foi melhor para estudar os seres vivos (Anaina e Paola, T. 601).

Para na hora de estudar já vamos saber suas características, sua espécie, ambiente

e etc (Cássio e Paulo, T. 603).

Para se tornar universal para os cientistas (Gabriela e Isadora, T. 601).

A importância é se você for dar uma palestra todas as pessoas for cada uma de um

lugar diferente todos iriam entender (Gizele e Rafaela, T. 603).

Outros 26 alunos destacaram a noção de os nomes científicos terem importância pa-

ra a diferenciação entre os seres vivos e para a sua identificação rápida e segura, bem ao

gosto de Lineu. Como nos exemplos abaixo:

Para que quando necessitar achar algum animal tenha menos dificuldade (Danilo e

Vinicius, T. 601).

É importante para diferenciar as espécies e os animais e na hora de procurar de-

mora menos (Marco Aurélio, T. 603).

São respostas bastante satisfatórias e alinhadas com o que os alunos já haviam dito

em função da questão 1/5, sobre a importância das classificações científicas. As novas res-

postas também expressam as possibilidades das classificações, e dos nomes científicos que

Page 168: Tese experimentos de botânica

155

as constituem, atenderem à dupla demanda de se identificar e de se classificar a diversida-

de da vida, como foi evidenciado naquela tarefa anterior.

A noção de que os nomes científicos contribuem para a preservação dos seres vivos

é citada em seis respostas. Uma única dupla se lembrou de incluir um aspecto econômico,

que não constava explicitamente dos textos de apoio e que havia sido comentado pelo pro-

fessor apenas na aula expositiva. E apenas quatro alunos não souberam responder.

É oportuno comentar, ainda, uma defasagem observada entre o desenvolvimento

dessa questão e as expectativas que tínhamos em relação a ela. O texto no 2, a ser utilizado

junto com os textos no 1 para desenvolver a questão, apresentava cinco fragmentos de tex-

tos didáticos ou de divulgação, citando nomes científicos de diversos seres vivos. Cada um

desses fragmentos se remetia a um contexto distinto, alguns relacionados a fatos ocorridos

recentemente, e exibia uma perspectiva diferenciada para se perceber a relevância dos no-

mes científicos, tal como identificar e conhecer a diversidade, recursos para a biotecnolo-

gia, definição da nacionalidade das espécies, degradação ambiental e medidas de preserva-

ção ou doenças parasitárias e sanitarismo.

O objetivo da atividade era possibilitar, através das informações teóricas sistemati-

zadas no texto no 1 e das evidências empíricas reunidas no texto no 2, que os alunos pudes-

sem perceber a exatidão e a funcionalidade dos nomes científicos e pudessem atribuir no-

vos sentidos à sua determinação para os seres vivos, ampliando a sua compreensão acerca

da importância das classificações e do valor da nomenclatura científica. Contudo, reconhe-

cemos que o desenvolvimento da atividade não se deu da forma mais adequada para que

tais objetivos fossem atingidos. Sendo a última questão a ser respondida no espaço da aula

reservada para a atividade, o tempo disponível se mostrou insuficiente tanto para uma lei-

tura mais detalhada dos textos e para uma reflexão que permitisse traçar relações e tirar

conclusões sobre o papel da nomenclatura científica naquelas situações enfocadas quanto,

também, para a devida orientação e acompanhamento que a complexidade da tarefa mos-

trou requerer.

Somente três duplas fizeram referências explícitas a conteúdos do texto no 2, como

no exemplo a seguir:

Por ter uma grande quantidade de seres vivos é preciso separá-los em grupos con-

forme suas semelhanças e diferenças, para preserva-los e os entende-los melhor.

Ex.: Titanus giganteus, maior besouro do mundo, medindo 15 a 16 cm, podendo al-

cançar até 20 cm de comprimento. (Stephan e Felipe Fernando, T. 601)

Page 169: Tese experimentos de botânica

156

Apesar disso, as respostas dos alunos, ainda que tenham ficado, de forma geral, res-

tritas às informações diretamente apresentadas no texto no 1 e não tenham incorporado

novos argumentos trazidos pelo outro texto disponível para consulta, conforme o pretendi-

do, mostraram-se bastante adequadas e pertinentes por citarem aspectos relevantes sobre a

importância da nomenclatura científica para a Botânica e para toda a Biologia.

O movimento proposto pelas questões 2/6, 2/7 e 2/8, com base nos textos para con-

sulta, pode ser visto como provocando uma articulação de idéias que julgamos importante

para um confronto com a impressão passada pela Lição de Botânica acerca da linguagem

da ciência, de que é difícil e complicada. Vejamos: destacando a figura de Lineu, invoca a

dimensão histórica da nomenclatura científica usada atualmente; focalizando as regras rí-

gidas que demandam um domínio especializado de seus praticantes, procura denotá-la co-

mo constituinte de um conhecimento plenamente distinto do conhecimento cotidiano e,

evidenciando os importantes papéis que desempenha na construção e na difusão desse co-

nhecimento, contribui para compensar e superar as dificuldades daquela linguagem reco-

nhecida como difícil e complicada.

É interessante que os alunos possam perceber que não é à toa, nem em vão, que a

linguagem da ciência é uma linguagem “difícil e complicada”. O que não quer dizer que

seja uma linguagem inacessível a quem a ela se dedicar e que não possa ser ensinada e

aprendida, não devendo ser vista como um privilégio exclusivo de alguns.

5.5 – Sobre o estudo da Botânica

Complementando a iniciativa implementada com as questões da atividade no 2, a a-

tividade no 3 de pesquisa também trabalha com conteúdos de Botânica e com aspectos do

ensino e da aprendizagem de ciências, abordados a partir de situações e enunciados da pe-

ça. Para respondê-la, os alunos formaram grupos de quatro alunos e receberam uma cópia

do texto da peça e uma cópia do texto didático no 3, que foi preparado pela pesquisadora

contendo informações sobre as famílias vegetais citadas na história da peça.

As Famílias

Discutimos a seguir as respostas dos alunos à questão 3/1:

“Na cena IX, o Barão diz a Helena que, ao estudarem botânica, mundos novos irão

se abrir diante de seus espíritos. E ele lhe diz que estudarão várias famílias de plantas. a)

Quais foram as famílias de plantas citadas por ele? b) Consultando o texto no 3, identifi-

quem cinco plantas conhecidas de vocês que fazem parte dessas famílias.”

Page 170: Tese experimentos de botânica

157

Nas duas turmas, a questão 3/1a foi respondida adequadamente por quase todos os

alunos, tendo apenas um grupo respondido de forma incompleta, citando apenas uma das

famílias. Pelo próprio tipo de questão, voltada para termos definidos, as respostas mostra-

ram-se padronizadas. A maioria dos grupos, além de retirar do texto da peça a seqüência de

famílias vegetais citadas pelo Barão no trecho indicado, incluiu, ainda, a família das Gra-

míneas, citada por ele no diálogo com Helena, no início da cena e que, também, se encon-

trava descrita no texto didático para consulta. Equivocadamente, dois grupos de alunos

citaram, também, como sendo uma família, a violeta, Viola odorata, que é mencionada na

metade da cena, e um outro grupo mencionou o perianto, mostrando que percorreram o

texto da peça à procura dos exemplos citados e que todo termo científico encontrado foi

tomado como uma família. É interessante notar que na redação de sua resposta, a maioria dos alunos suprimiu

os diversos artigos definidos “as”, referidos às diversas famílias, que existem no enunciado

da peça:

Gramíneas, orquídeas, jasmíneas, rubiáceas, oleáceas, narcíseas, umbelíferas (Ra-

phael, José Eduardo, Guilherme e Carlos Roni, T. 603).

Entendemos essa opção como uma consideração por eles de que a presença dos ar-

tigos cria na frase um efeito que dá ênfase, intensifica e alonga a citação, apropriado à lin-

guagem literária e às intenções da fala do personagem naquele contexto, mas que não é

uma presença necessária em uma resposta no âmbito de um estudo, podendo ser suprimi-

dos.

Dois grupos apenas deixam à mostra o vínculo direto de sua resposta com o texto

da peça, ao copiarem todos os artigos ou, pelo menos, o do final e as reticências que existi-

am na fala do Barão:

As orquídeas, as jasmíneas, as rubiáceas, as oleáceas, as narcíseas, as umbelífe-

ras, as... (Pablo, David, Felipe, T. 603).

Gramíneas, orquídeas, jasmíneas, rubiáceas, oleáceas, narcíseas, umbelíferas, as...

(Lais, Cristina, Scarlet, Jannyne, T. 601).

Page 171: Tese experimentos de botânica

158

A questão 3/1b pretendeu apresentar aos alunos, de forma sucinta, informações so-

bre as famílias vegetais citadas pelo Barão, no intuito de mostrar-lhes como elas se consti-

tuem de vegetais bastante conhecidos por eles e importantes sob vários aspectos e que, por

determinados critérios estabelecidos, foram classificadas naquelas famílias.

Para fornecê-las ao botânico sueco, o escritor provavelmente pesquisou em alguma

fonte especializada o nome daquelas famílias, cuja relevância científica, de certa forma,

fica reconhecida e afirmada, pois o Barão as seleciona entre muitas outras possíveis.

Quando citadas no contexto da história, no qual Helena nada sabe sobre elas e nem mesmo

está interessada, não podendo, portanto, lhes atribuir maiores significados, a situação se

torna engraçada e as famílias citadas pelo Barão aparecem em bloco como simples ruído

científico, o que, de algum modo, funciona tanto para as intenções da peça quanto para

abafar a importância concreta desses vegetais.

Pode-se pensar, aqui, na ocorrência do “efeito Júlio Verne”, analisado por Vierne

(1994) e já comentado nesse estudo, através do qual, pela citação de uma longa seqüência

de termos ou objetos científicos, como é comum se encontrar nas obras de ficção daquele

autor, o texto literário consegue, além da função didática de divulgar a ciência, um efeito

que pode ser considerado antagônico, pois, a partir de referências à própria ciência, projeta

o leitor para fora do universo científico, soltando suas âncoras racionais e liberando-o para

espaços de sua própria imaginação. Em alguma medida, Machado de Assis consegue esse

efeito e coloca para segundo plano a cultura científica do Barão.

A questão 3/1b, ultrapassando o contexto literário, focaliza a lista de famílias citada

como objeto de estudo e pede que os alunos identifiquem cinco plantas já conhecidas por

eles que façam parte dessas famílias, consultando o texto que descreve as famílias e infor-

ma sobre sua importância. As respostas produzidas pelos alunos mostram padrões diferen-

ciados, que indicam sua maior ou menor facilidade em fazer a pesquisa nos textos e formu-

lar a resposta.

A maioria dos grupos apresentou os cinco exemplos de plantas reconhecidas por e-

les como foi pedido pela questão. Entre esses, aproximadamente a metade citou plantas de

uma mesma família, não se interessando em representar as outras famílias mencionadas,

como na resposta a seguir:

Milho, trigo, arroz, cana-de-açúcar e aveia (Ana Caroline, Maxson, Marco Aurélio

e Débora, T. 603)

Page 172: Tese experimentos de botânica

159

A outra metade dos grupos incluiu plantas de cinco famílias diferentes, ilustrando

todas as famílias que apareceram na fala do Barão e mostrando maior disposição para a

pesquisa e um aproveitamento mais interessante da fonte de consulta:

Orquídea, oliveira, jenipapo, abacaxi, arroz (Stephan, Kelvin, Danilo, Kevin, T.

601)

Alguns grupos mostraram respostas mais restritas. Um deles citou apenas três e-

xemplos de plantas e outros quatro grupos citaram como exemplos o nome das próprias

famílias ou de gêneros apresentados no texto de consulta, não garantindo que correspon-

dessem a plantas que são conhecidas por eles, como fora solicitado na questão.

A resposta mostrada abaixo apresenta, em relação às outras que também citaram

plantas de diferentes famílias, um maior grau de organização e detalhamento, pois identifi-

ca para cada exemplo a família correspondente e inclui uma a mais do que fora pedido,

contemplando todas as famílias citadas pelo Barão e explorando melhor o texto de consulta

onde havia oito itens disponíveis.

b) Orquídeas – baunilha

Jasmíneas – jasmim

Rubiáceas – café

Oleáceas – azeitona;

Umbelíferas – cenoura

Narcíseas – bastão do imperador (Mariângela, Lucas, Paola e Maêva, T. 601).

Podemos fazer uma pequena observação acerca da afirmação do Barão de Kerno-

berg, que figura na questão 3/1: ao incentivar Helena para o estudo da Botânica, ele lhe diz

que, a partir daquele estudo, ela verá que mundos novos se lhe abrem diante do espírito.

Passando ao largo de uma possível ironia de Machado de Assis, gostaríamos de aproximar

de tal afirmação à perspectiva colocada por Thomas (1989), já comentada aqui, com rela-

ção à transformação que pode ocorrer em nossa percepção sobre as coisas do mundo, à

medida que adquirimos novos sistemas de categorização, e ao fato de que tais sistemas

efetivamente ajudam a configurar uma outra visão de mundo. Essas são referências impor-

tantes quando se pensa na Biologia e no ensino de Biologia, tão obcecados por classifica-

ções.

Page 173: Tese experimentos de botânica

160

A educação e a aprendizagem científica vêm, através dos tempos, permitindo aos

indivíduos conhecer o desconhecido e, também, tornar o já conhecido algo diferente, am-

pliando sua atmosfera de significações. Numa compreensão dialética desses processos,

ponderamos que o saber científico sobre o mundo natural, enquanto uma forma socialmen-

te valorizada de conhecimento, deve ser decididamente almejado e promovido sem que,

contudo, haja a desconsideração e a submissão dos saberes populares e autênticos dos alu-

nos. Tal questão é um aspecto que deve estar presente na tensão que se exerce entre os co-

nhecimentos científicos e os conteúdos científicos escolares. Nesse contexto, conhecer os

nomes científicos de plantas bastante triviais ao nosso cotidiano pode ser encarado como

experiência complexa e de grande sentido simbólico.

Uma nota no caderno de campo da pesquisa soa provocativa com relação a essas

possibilidades de novas visões de mundo e de ampliarmos os feixes de significados que

recolhemos para as palavras e para as coisas: durante a atividade, um aluno da turma 603,

olhando pela janela o capim que crescia alto em algumas partes do pátio da escola, aponta

e diz à pesquisadora: “professora, aquilo tudo ali é gramíneas, não é?”. São os tais mun-

dos novos! Poderíamos apostar que, para ele, o “mato” do pátio não mais será o mesmo!

As Gramíneas

As questões 3/2 e 3/3 exploram ainda a classificação das plantas em famílias, foca-

lizando as Gramíneas, tão referenciadas na peça, com o objetivo de informar aos alunos

algumas características dessa grande e importante família vegetal.

“Barão – Vossa Senhoria há de desculpar-me. Acabo de receber este livro da Eu-

ropa; é obra que há de fazer revolução na ciência; nada menos que uma monografia das

gramíneas, premiada pela Academia de Estocolmo.”

Pensando na história da peça, ficamos a imaginar por que o autor teria escolhido as

Gramíneas para figurar no livro de Botânica do Barão. Arriscamos duas hipóteses de certa

forma contrárias, mas que, no final das contas, acabam se completando: porque as Gramí-

neas são realmente uma família vegetal muito importante, digna de suscitar o interesse

permanente de qualquer botânico e mesmo da Academia de Estocolmo ou, então, porque

nessa família, esquecendo-se as plantas de grande valor econômico, incluem-se também

todas as espécies de capim, o que no entendimento leigo está entre as coisas mais comuns e

Page 174: Tese experimentos de botânica

161

sem valor que existem no mundo, assim, uma atenção tão solene devotada às Gramíneas

pela ciência poderia render algumas risadas.

Antes de tratarmos da família escolhida, podemos destacar a própria presença do

objeto livro na Lição de Botânica. Livro que trazido pelo Barão e esquecido na sala de D.

Leonor permite todo o desenrolar da trama. Como salientou uma aluna da turma 601, na

discussão após a apresentação, “quase que o Thiago [aluno que interpretava o Barão] es-

queceu de esquecer o livro, né?”, e o esquecimento do esquecimento iria comprometer

toda a continuidade da história.

Tanto para as ciências, quanto para a literatura que as tem como tema e, mais ainda,

para o ensino escolar de ciências, um livro não é um objeto qualquer. Pinto Neto (2001),

como já citamos no referencial teórico, tentando compreender o processo de formação de

um imaginário sobre o universo científico na sociedade brasileira do final do século XIX,

busca as representações sobre a ciência e o fazer científico que estavam presentes em nossa

produção literária daquele período. E nesse percurso, os livros ganham um grande relevo.

Segundo o autor, as verdades se revelam e se escondem nas páginas dos livros que

aparecem nos romances analisados. O conteúdo e os termos científicos neles impressos

produzem significados diversos, a partir das múltiplas leituras que contemplam. E para os

personagens leitores, tais leituras são capazes de informar, formar, revelar, corar as faces,

mobilizar, interferir nos destinos. A posse dos livros tem, nos romances, sentidos diferen-

ciados, como privilégio reservado com distinção a alguns, causa estranheza e certo incô-

modo quando nas mãos de outros. Outras histórias colocam um ou mais livros acompa-

nhando e marcando a vida dos personagens, em especial dos mais jovens, servindo-lhes

como guia, oráculo e dando-lhe respostas e sentido a sua vida.

É interessante destacar que nos romances focalizados, além dos livros, outros obje-

tos portadores de conhecimento também se fazem notar, sendo em sua maioria objetos de

uso escolar, passem-se, ou não, as histórias no ambiente dos colégios. É longa a lista en-

contrada, onde figuram, entre outros, instrumentos de demonstração, instrumentos de me-

dida, cartas geográficas, estampas coloridas, exemplares zoológicos e botânicos, coleções

de minerais e peças anatômicas. Objetos que na sua aparição encarnam a imagem da mo-

dernidade.

Através de vários indícios, Pinto Neto (2001) avalia que a ciência que se fez pre-

sente nas obras literárias analisadas possui muita proximidade com a ciência escolar, tendo

encontrado em seu modelo e dispositivos o devido respaldo. E que a relação com a ciência,

representada por diversas personagens, traz marcadamente, como elemento comum, uma

Page 175: Tese experimentos de botânica

162

formação livresca. São os livros, sobretudo, que colocam os personagens em contato com o

conhecimento científico. E, nesse movimento de livros dentro de livros, vão-se incremen-

tando a circulação da ciência na vida real da sociedade e a vinculação da formação científi-

ca aos demais atributos de civilidade.

A obra de Machado de Assis é rica na apresentação de figuras e cenas de escola,

nas quais as sofridas lembranças dos personagens refletiam sua revolta e sua aflição pela

precariedade de nossa educação pública. À parte do tom amargo e crítico dos seus escritos

de escola, não se pode ter dúvidas de que ele amava os livros. E, embora consideremos

que, diversamente de muitos outros escritores do período, Machado de Assis não tinha uma

perspectiva tão maravilhada para com os progressos da ciência, imaginamos, a partir das

referências sobre os livros como objetos de grande simbolismo, que essas representações

também estavam na cabeça do escritor. Assim, podemos atribuir um papel especial ao livro

trazido pelo Barão e imaginar que ele era, deveras, suficientemente significativo para sus-

tentar toda a arquitetura da história.

Voltando ao conteúdo do livro trazido pelo Barão de Kernoberg, apresentamos as

análises das respostas dos alunos à questão 3/2: “A) Sobre qual família vegetal trata o livro

que o Barão levava consigo e que Helena usa para mostrar seu interesse pela botânica? B)

Consultando o texto no 3, mostrem a importância dessa família de plantas”.

Na aula expositiva que antecedeu a apresentação da peça, o professor da turma ci-

tou a família das Gramíneas como exemplo de plantas com o perianto reduzido e poliniza-

das pelo vento. Na peça, seu nome é mencionado sete vezes. Na discussão sobre a peça, as

Gramíneas ficam bem destacadas e são facilmente lembradas por serem o assunto do livro

e a pista para o início da conversa entre Helena e o Barão. No texto no 3, disponível para a

consulta, as Gramíneas são a primeira das famílias descritas. E na questão 3/1, sobre as

famílias citadas na história, elas estão em quase todas as respostas. Assim, ficou muito

fácil, e a parte inicial da questão 3/2 se torna apenas ilustrativa e é respondida com exati-

dão por todos os alunos.

Investindo na iniciativa de explorar conteúdos de ensino a partir do texto literário,

tal como a questão 3/1, a questão 3/2b, mais do que o objetivo de obter dados para a refle-

xão, tinha a intenção de informar aos alunos sobre as Gramíneas. Incomodava a idéia de

que ao final dessa profusão do termo Gramíneas, eles não tivessem a oportunidade de saber

quem, de fato, são esses vegetais que, pelas graças do Barão, poderiam acabar saindo, de

certa forma, desmerecidos da história. Mas alguns aspectos das respostas obtidas podem

ser considerados.

Page 176: Tese experimentos de botânica

163

Como se trata de uma questão de consulta e o conteúdo para as respostas está apre-

sentado de forma direta pelo texto a ser consultado, não há maiores dificuldades para re-

solvê-la. O exercício segue um modelo muito comum no contexto do ensino escolar, não

apresentando a complexidade da questão 2/8, também de consulta, mas que exigia o cru-

zamento de informações e o estabelecimento de relações. Nesse contexto, as respostas se

dão de forma padronizada, dentro dos limites do texto de referência, podendo-se evidenciar

em algumas delas, a ocorrência de cópia literal do texto.

Entre as respostas cujos enunciados não contém cópia direta do texto, destacamos a

resposta a seguir, que apresenta duas conclusões tiradas pelo grupo, a partir de informações

dadas de forma indireta, e que incorpora conhecimento prévio dos alunos, já que, no texto

para consulta, não há referências ao valor medicinal das gramíneas:

As Gramíneas além de ser a base da alimentação tem um grande poder medicinal

(Jennifer, Renata e Lucas, T. 603).

Metade dos grupos de alunos ilustrou com apenas um item a importância das Gra-

míneas, a outra metade citou dois argumentos entre os oito informados pelo texto. É inte-

ressante observar que a atenção dos alunos se voltou para diferentes aspectos sobre a im-

portância daquela família, sendo o mais citado o fornecimento de alimento para o homem e

para o gado, seguido da importância econômica de forma geral.

A questão do perianto, que segundo a jovem Cecília deve ser uma questão impor-

tantíssima, é o tema da questão 3/3, que encerra o turno sobre as Gramíneas: “O Barão

explica a Helena que as plantas da família tratada no livro não apresentam determinada

estrutura em suas flores. A) Qual é essa estrutura? B) Qual é a função dessa estrutura para

as flores? C) Como vocês explicam a polinização das flores dessa família citada pelo livro

do Barão?”.

Como já pontuamos para a questão 3/2, na aula expositiva que antecedeu a apresen-

tação da peça, a estrutura e a função do perianto das flores e os diversos processos de poli-

nização figuram da explicação do professor. Na peça, o termo perianto é mencionado nove

vezes. E na discussão com as turmas, os alunos se lembraram com facilidade dessa palavra

grega e souberam definir sua composição e sua função na planta e, ainda, notamos que em

torno do perianto se manifestou uma forma de plurilingüismo, nos termos de Bakhtin,

quando pudemos atribuir a diferentes segmentos sociais as observações a seu respeito. To-

Page 177: Tese experimentos de botânica

164

das essas referências ao perianto foram orais, não havendo nenhum enunciado escrito a ser

consultado pelos alunos.

A questão 3/3 foi pensada no contexto da pesquisa como uma oportunidade de os

alunos sintetizarem na forma escrita as informações que foram sendo repassadas em todas

aquelas oportunidades. A questão foi respondida de forma bastante satisfatória pelos alu-

nos. Todos os grupos atribuíram funções corretas para o perianto. Aproximadamente, me-

tade dos grupos citou apenas uma das funções, enquanto a outra metade respondeu articu-

lando duas funções. No confronto com análises anteriores, é interessante lembrar que na

resolução da questão 1/8, sobre por que a maioria das flores tem cores e perfumes destaca-

dos, a turma 603 não apresentou um resultado positivo, visto que a maioria dos alunos não

soube responder, outros deram respostas imprecisas ou equivocadas e apenas um deles

respondeu de forma acertada. Nessa nova oportunidade, como indícios de um movimento

de aprendizagem, todos os alunos respondem.

Focalizando aspectos lingüísticos, discutimos a seguir sobre uma resposta ao item B

da questão, que se destaca entre outras que, aparentemente, apresentam as mesmas infor-

mações trazidas por ela:

A função do perianto é atrair os agentes polinizadores pelas suas cores variadas e

pelos seus diversos odores e proteger o órgão reprodutor (Mariângela, Lucas, Pao-

la, Maêva, T. 601).

À primeira leitura, sua distinção se dá no sentido de que, por seu estilo, parece ser

uma resposta mais organizada, mais completa e mais correta do que as outras. Esmiuçando

a análise, percebemos que em seu enunciado podemos identificar os três componentes dos

enunciados que, segundo Bakhtin (1992), caracterizam um determinado gênero de discur-

so: conteúdo temático, estilo verbal e estrutura composicional. A resposta, sobretudo por

sua forma composicional, se encaixa bem no que poderíamos classificar por gênero “defi-

nição científica”, já que comporta elementos estabilizados em um grande número de outras

definições científicas que já conhecemos.

Como já comentamos, os gêneros são meios de conhecimento situado, são modos

de visualização e de conceituação da realidade, caracterizando-se por seus aspectos formais

e por seu funcionamento nas ações concretas de uma determinada esfera de atividade. As-

sim, podemos compreender a impressão positiva que se teve da resposta logo no seu come-

ço, já que por sua proximidade com os gêneros da linguagem científica, ela soa como uma

Page 178: Tese experimentos de botânica

165

resposta mais adequada e mais acertada para o contexto no qual se dá. O que percebemos

aqui é uma boa apropriação pelos alunos do gênero em questão.

A resposta ao item C da questão (Como vocês explicam a polinização das flores

dessa família citada pelo livro do Barão?) mostrada a seguir também estaria se caracteri-

zando como um enunciado próprio do gênero de “exposição científica”:

A polinização das flores das Gramíneas é feita pelo vento (Anaina, Letícia, Lucas,

Thiago, T.601).

Várias outras respostas a esse item, também corretas, mostram enunciados curtos

como os citados a seguir:

Pelo ar (Juan, Gregory, Ranoi, Felipe, T. 601)

Vento (Gabrielle, Jackson, Matheus, Lucas, T. 601).

O vento (Raphael, José Eduardo, Guilherme, Carlos, T. 603).

Pelo vento (Ana Caroline, Maxson, Marco Aurélio, Débora, T. 603)

Através do vento (Stephan, Kelvin, Danilo, Kevin, T. 601).

Em termos de informação estão tão corretas como a anterior, mas não se comparam

a ela e nem se mostrariam eficientes como resposta no contexto de uma discussão científi-

ca. Os incrementos que criariam uma atmosfera propícia aos objetivos do enunciado, orga-

nizando-o, adiantando-lhe o entendimento e criando uma expectativa favorável à sua com-

preensão, e que caberiam aos elementos do gênero, ficaram ausentes, desperdiçados.

Podemos comparar as respostas acima pensando, também, na ocorrência dos gêne-

ros de discurso primários e secundários e na possibilidade de passagem de um ao outro,

conforme proposto por Bakhtin (1992). Entendemos que as respostas com enunciados mais

curtos se constituem no gênero primário, a exemplo de uma conversa cotidiana, geralmente

embalada pelo fluxo da oralidade, mantendo vínculos diretos com o seu contexto mais i-

mediato. No caso, as respostas, mesmo sendo escritas, omitem as outras referências neces-

sárias ao todo do enunciado, contando com a compreensão ativa de seu interlocutor que já

sabe do que se trata.

Já as respostas que destacamos como expressões de gêneros da linguagem científica

demonstram essa passagem dos enunciados aos gêneros secundários, próprios a contextos

de comunicação mais exigentes, sendo respostas que guardam uma autonomia enunciativa

Page 179: Tese experimentos de botânica

166

e têm uma formulação que permite a compreensão em outros contextos que não o daquela

interação. São respostas que podem não demonstrar exatamente um maior conhecimento

dos alunos sobre o tema em questão, mas mostram uma melhor percepção sua com relação

ao que seja uma linguagem mais elaborada, mais requisitada e com um trânsito mais segu-

ro naquelas paragens. Poderíamos dizer que já estão mais envolvidos na esfera do conhe-

cimento científico, tendo construído, assim, um conhecimento de melhor qualidade.

Para que estudar Botânica

Vejamos a questão 3/4: “Na cena XII, qual foi a resposta dada por Helena à Dona

Leonor, quando ela lhe pergunta para que vai lhe servir estudar Botânica?”

Essa mesma pergunta já fora feita aos alunos na discussão sobre a peça, em cuja

análise foi possível ver a atenção demonstrada por eles à história apresentada. Muitos alu-

nos falaram ao mesmo tempo e apenas algumas respostas puderam ser entendidas na ví-

deo-gravação:

“Para saber o nome das plantas”;

“Para saber o nome das flores”;

“Para não confundir”;

“Ela falou que era para não confundir quando viesse um bouquet para ela”.

Para essa nova resposta, os alunos podiam trocar idéias entre si e consultar a cópia

impressa do texto da peça. Assim, consultada a cena XII, as respostas escritas da maioria

dos alunos vieram padronizadas, reportando na íntegra o enunciado de Helena:

“Serve para conhecer as flores dos meus bouquets, para não confundir jasmíneas

com rubiáceas, nem bromélias com umbelíferas”.

Quando discutimos as considerações teóricas de Bakhtin acerca das noções de pa-

lavras e enunciados alheios e palavras e enunciados próprios, citamos o exemplo dessa

mesma passagem da peça, no sentido de que podíamos ver Helena utilizando-se dos nomes

das famílias vegetais tomando-os como palavras próprias, já que estava ali procurando

impressionar e convencer sua tia quanto à validade do estudo que pretendia. Ou seja, as

palavras do Barão, ouvidas inicialmente por Helena nos domínios da Botânica, estavam

agora povoadas por suas intenções e servindo aos seus interesses num diálogo cotidiano.

Page 180: Tese experimentos de botânica

167

Também já fizemos referência a essa mesma fala de Helena, na análise da questão

1/2, com relação à distinção entre conhecimentos cotidianos e conhecimentos científicos e

à ruptura que se poderia ver instaurada pela personagem entre tais conhecimentos, a partir

da utilização da terminologia científica, caracterizando as flores de seus bouquets como

novos objetos, recortes da natureza próprios do saber da ciência.

Com relação à atividade, a resposta de um único grupo se diferencia do padrão das

demais por contextualizar a resposta da personagem em função do desenvolvimento da

história, assinalando que Helena não estava sendo sincera ao declarar seus motivos:

“Ela deu a desculpa que era para conhecer as flores e quando receber bouquets

não confundir jasmíneas com rubiáceas, nem bromélias com umbelíferas” (Anaina,

Letícia, Lucas e Thiago, T. 601).

Essa resposta traz um comentário próprio dos alunos sobre como eles entenderam a

fala de Helena, explicitando a intenção da personagem, e não reproduzindo literalmente o

seu enunciado. Pode, assim, ser valorizada e comparada com as demais na perspectiva co-

locada por Bakhtin e Voloshinov (1988) com relação ao discurso reportado, procurando

compreender os caminhos para a citação da palavra de outrem, já que “o discurso citado é

o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas é, ao mesmo tempo, um discurso

sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação” (p. 144).

Segundo os teóricos, a citação do discurso alheio pode se dar sob duas orientações

principais e opostas. Numa primeira tendência, chamada de linear, a reação ao discurso do

Outro visa à conservação de sua integridade, delimitando-o com fronteiras bem nítidas,

reproduzindo-o na medida exata, o que também funciona para protegê-lo de interferências

alheias. Na outra possibilidade de transmissão do discurso citado, chamada de estilo pictó-

rico, há um empenho em desfazer a estrutura compacta do discurso anterior e abrem-se

caminhos pela linguagem para permitir ao enunciador infiltrar no tecido desse discurso

suas réplicas e seus comentários. É o segundo processo que podemos perceber ocorrendo

naquela resposta dos alunos, em oposição a todos os outros grupos que citaram a fala de

Helena pelo discurso direto, como se estivesse entre aspas.

Mas o que mais nos interessa aqui é a relação que pode ser traçada entre as duas

modalidades de tratamento do discurso reportado e uma outra idéia discutida por Bakhtin

(1998), acerca das palavras autoritárias e das palavras interiormente persuasivas. Con-

forme já assinalamos no referencial teórico, essas duas categorias são formas muito distin-

Page 181: Tese experimentos de botânica

168

tas de assimilação da palavra do Outro e têm uma forte influência na formação da lingua-

gem e da subjetividade individuais, atuando mesmo na definição de nossa postura frente às

coisas do mundo.

Em Faraco (2003, p. 125), encontramos essa relação explicitada, no sentido de en-

tender que, ao aceitar introduzir no discurso original réplicas, comentários ou polêmicas, o

discurso reportante toma o discurso reportado como palavra internamente persuasiva e que,

ao contrário, mantendo a integridade da voz alheia, encara o discurso citado como palavra

de autoridade. E o autor destaca que a opção por uma das formas de transmissão pode re-

fletir a posição que o discurso ocupa nas hierarquias sociais, as quais sempre influenciam o

trato com o discurso alheio. Variações nas formas de transmissão insinuariam possibilida-

des de mudanças nessas hierarquias? Que efeitos de sentido podem decorrer a partir dessas

variações?

E se o procedimento de reportar a fala de uma personagem da literatura, tornando-a

internamente persuasiva não tem, em si mesmo, grande relevância, ele pode ser visto no

contexto de ensino escolar, marcado por enunciados de autoridade, como possibilidade

fecunda frente a outros discursos – dos professores, dos cientistas, dos livros didáticos –

caracterizando um exercício de autonomia e promovendo conquistas acerca da relação com

o saber. Tais considerações guardam grande proximidade com uma freqüente, e aparente-

mente simples, indagação dos alunos em sala de aula, frente a questões que lhes são pro-

postas: “é para responder com as minhas palavras?”. Indagação indiciária de autoridade e

da qual, talvez, não tenhamos ainda apreendido mais atentamente o significado e a com-

plexidade.

O objetivo da questão 3/4 era que os alunos recuperassem o que havia sido coloca-

do pela personagem e pudessem responder à questão 3/5, que o tem como base: “Imitando

a forma da resposta de Helena, imaginem uma resposta que vocês poderiam dar a essa

mesma pergunta, para mostrar a importância e a utilidade que vocês atribuem ao estudo da

Botânica”.

Nesse momento das análises, já distante daquele em que as atividades escritas fo-

ram preparadas, observamos essa questão e passamos a considerá-la uma pergunta mais

complexa do que havíamos anteriormente suposto. O próprio percurso da pesquisa percor-

rido até aqui, com as referências teóricas que foram sendo enlaçadas e com as reflexões já

desenvolvidas, tratou de transformá-la, como iremos indicar mais adiante. Não que interfe-

rências idênticas não se tenham exercido também para as outras questões, que ganharam ou

perderam relevo frente ao que fora inicialmente calculado, já que as perspectivas metodo-

Page 182: Tese experimentos de botânica

169

lógicas de toda pesquisa se vêem sempre em movimento, mas essa questão em especial,

aos olhos da pesquisadora, parece ter adquirido uma maior profundidade, gerando a im-

pressão de ser mais desafiadora.

Não se trata agora de mostrar a fala de Helena, como na questão anterior, mas de

usá-la para encaminhar sua própria resposta. Para ser respondida, a pergunta impõe para os

alunos duas frentes de trabalho: imitar a forma de resposta de Helena e mostrar a impor-

tância e a utilidade atribuídas por eles ao estudo da Botânica. Podemos, assim, apreciar as

respostas sob dois aspectos: vendo o que os alunos entendem por “imitar a forma da res-

posta” e o que estão considerando como importância e utilidade do estudo da Botânica.

Uma primeira providência para proceder à analise é definir o que seria para nós

mesmos “imitar a forma de resposta de Helena”. E aqui podemos começar a explicar,

também, o realce que essa questão foi ganhando no desenrolar da pesquisa.

Desde a primeira leitura da peça Lição de Botânica, esse enunciado de Helena

chamou-nos a atenção. Podemos considerá-lo como um dos principais elementos que nos

levaram a imaginar a peça como base para o desenvolvimento do projeto da pesquisa, e

não é por acaso que ele está no início desse texto, tentando também fisgar o leitor. E esta-

mos impressionados com ele até hoje, pois, volta e meia ao longo das análises, ele é recor-

rente, abarcando um novo sentido que foi percebido, como comentamos há pouco.

A questão 3/5 foi pensada no intuito de propiciar uma oportunidade para que os a-

lunos, valendo-se daquele enunciado, explorando alguns de seus aspectos estruturais ou

temáticos e figurativos, refletissem sobre o que havia sido tratado em torno da peça e pu-

dessem expressar a importância e a utilidade que atribuíam à aprendizagem de Botânica.

Tínhamos a perspectiva de que imitar Helena seria produzir uma paródia de seu enunciado,

tal como propomos comumente em sala de aula, quando se pede aos alunos que façam uma

paródia de uma determinada música, compondo uma nova letra que inclua tópicos que es-

tão sendo estudados. Era algo parecido que esperávamos dos alunos. Mas, ao longo desse

estudo, refinando a noção de paródia e encontrando novas referências sobre processos de

intertextualidade, percebemos que os alunos poderiam seguir caminhos diversos.

Em meio a discussões acerca das noções de dialogismo e polifonia, fundamentais

na concepção de linguagem formulada pelo Círculo de Bakhtin, encontramos sistematiza-

das algumas indicações sobre a paródia e outros processos de intertextualidade. Fávero

(1999) distingue duas acepções para a paródia. Originária do grego significa, etimologica-

mente, um canto paralelo, uma canção cantada ao lado de outra canção. De acordo com

Aristóteles, a arte da paródia teria surgido com Hegemon de Tarso (séc. V a.C.), ao fazer

Page 183: Tese experimentos de botânica

170

uma inversão e empregar o gênero épico, até então destinado aos feitos dos grandes heróis,

para representar homens comuns inseridos em sua vida cotidiana.

A outra acepção de paródia, que coincide com a que vemos constando em dicioná-

rios, a define como imitação cômica ou burlesca de uma composição literária, arremedo ou

sátira que guarda sempre a idéia de criticar ou ridicularizar o discurso ou texto que lhe deu

origem. É essa concepção que emerge e floresce nos estudos bakhtinianos sobre a visão

carnavalesca de mundo, experimentada desde a Antiguidade até o Renascimento e vivenci-

ada nas diferentes formas de cultura popular. Visão de um mundo às avessas onde, por

breves intervalos, a ordem cotidiana e os papéis sociais podiam ser licenciadamente sub-

vertidos e a força do riso que, a um só tempo, é capaz de corroer e de edificar, podia se

infiltrar nas estruturas dos poderes estabelecidos, do governo, da Igreja, da ciência fratu-

rando-as e mostrando o seu avesso.

Como palco privilegiado de luta entre diferentes vozes, a paródia, que depois será

esvaziada de sentidos pela nova estética forjada na Idade Moderna, é um texto ambivalen-

te, que não pretende apenas denegrir o texto parodiado, mas tanto o rebaixa como o faz

renascer, renovar-se, purificar-se, superar-se, como foi lido por Bakhtin nos textos de Ra-

belais (Bakhtin, 1996) ou nos romances de Dostoievski (Bakhtin, 1997).

Com tais referências, entendemos que a produção tanto de uma outra letra de uma

música alterando, temática ou figurativamente, a letra original, quanto de uma resposta que

imite a forma da resposta de outrem, pode, como um canto paralelo, ser considerada uma

paródia em sua acepção etimológica. Mas, na visão bakhtiniana, concebendo a paródia

como uso não-sério da linguagem e como integrante do gênero sério-cômico, a questão de

imitar a forma de resposta da personagem de Machado de Assis não iria se resolver como

uma paródia, já que os alunos não teriam razões, nem estariam mobilizados, para subver-

ter, ironizar ou se opor e rejeitar a fala de Helena, “destronando-a”, características que per-

cebemos como base do texto paródico, e estariam muito mais propensos a querer direta-

mente reforçá-la e enaltecê-la.

Então, pensamos ser oportuno apreciar as respostas dos alunos, vendo como se saí-

ram da empreitada de imitar a forma da resposta de Helena, através das noções de intertex-

tualidade, conforme discutidas por Fiorin (1999) como incorporação de um texto pré-

existente em outro, reproduzindo ou transformando o sentido incorporado.

O autor discute a ocorrência do fenômeno de intertextualidade em suas relações

com elementos da semiótica configurada por Greimas, tratando a distinção entre os planos

do discurso e do texto, e com a idéia de dialogismo traçada por Bakhtin, vendo no texto a

Page 184: Tese experimentos de botânica

171

presença simultânea de duas vozes. A intertextualidade pode se manifestar, então, pelos

processos de citação, alusão e estilização. Todos três podendo provocar efeitos de sentido

que negam o sentido do texto referenciado – relações polêmicas – ou que confirmam aque-

le sentido – relações contratuais.

Através da citação, o novo texto mostra, repete elementos, palavras, do outro; na

alusão, não são citadas palavras, mas reproduzidas construções sintáticas, nas quais algu-

mas figuras são substituídas por outras que lhe são plenamente correspondentes; e pela

estilização temos a reprodução do conjunto de procedimentos do “discurso de outrem”, ou

seja, do estilo de outrem, vendo-se estilo como conjunto das recorrências formais nos pla-

nos da expressão e do conteúdo, capazes de indicar individualização.

Focalizando as respostas dos alunos nessa direção, foi interessante perceber que e-

les seguiram diferentes opções. Como o fenômeno de intertextualidade está ocorrendo aqui

no âmbito de um enunciado curto, e não de um texto mais amplo, não temos muitos ele-

mentos para a caracterização, mas pensamos ser viável fazer um exercício de análise e ten-

tar reconhecer, nessa proporção, aproximações com os três processos citados de incorpora-

ção do texto alheio, procurando ver como os alunos se saíram com a encomenda de inter-

textualidade.

Vários grupos de alunos entendem que “imitar a forma da reposta” é repetir, com-

pleta ou parcialmente, o enunciado, incorporando ou não novos termos, como vemos nos

exemplos a seguir.

Algumas dessas respostas podem ser consideradas como citações contratuais da

resposta de Helena:

Serve para conhecer as famílias das flores que eu uso nos meus bouquets (Agatha,

Evelyn, Washyngton, Tayara, T. 601).

Para conhecer as flores do meu jardim (Stephan, Kelvin, Danilo, Kevin, T. 601).

Para conhecer as flores, as plantas ao nosso redor. Elas servem também para ali-

mentos, medicina e etc ... (Mariângela, Lucas, Paola e Maêva, T. 601).

Para conhecê-las melhor e não confundi-las (Ana Caroline, Maxson, Marco Auré-

lio e Débora, T. 603).

Page 185: Tese experimentos de botânica

172

Porque eu acho muito importante conhecer os diversos tipos de plantas (Jennifer,

Renata e Lucas, T. 603).

Também vemos como citação respostas que não trazem o verbo conhecer mas em-

pregam outros verbos com o mesmo sentido, como por exemplo:

Para identificar as flores que nós vemos (Gabrielle, Jackson, Matheus, Lucas, T.

601).

Para entender as flores e saber sobre elas (Dhuliano, Vanderson, Tásio e Marlon,

T. 603).

Uma outra resposta já pode ser considerada como alusão contratual à resposta de

Helena, por conservar grande parte da estrutura sintática e substituir as famílias vegetais:

Estudar Botânica é importante para conhecer as flores, para não confundir oleá-

ceas com orquídeas, nem bromélias com rubiáceas (Laiza, Pauline, Rafaela e

Rony, T. 603).

Um dos grupos “entrou na atmosfera literária”, produzindo uma resposta que tam-

bém poderia estar na peça, como se tivessem encarnado a personagem, e até apresentaram

um novo aproveitamento para o estudo da Botânica “à maneira de” Helena, que bem pode-

ria ter sido usado por ela, resposta que podemos considerar como uma estilização contra-

tual de sua resposta:

– Ah! Titia como queria estudar a Botânica, como poderei saber o que é perianto

ou até as gramíneas. (Paula, Tais, Ana Paula e Manuela, T. 603).

Outros grupos de alunos elaboraram enunciados que não mostram maior ligação

com a forma do texto proposto como base e, ao nosso ver, não caracterizariam a manifes-

tação de intertextualidade. Consideramos que, embora fugindo àquelas referências textuais,

essas respostas imitam a fala de Helena pelo plano discursivo, o que, a partir de Fiorin

(1999, p. 32), podemos entender como manifestação do fenômeno de interdiscursividade

que, tal como o anterior, também diz respeito à presença de duas vozes num mesmo seg-

Page 186: Tese experimentos de botânica

173

mento. Pela interdiscursividade, que, em última instância, é inerente à constituição de todo

discurso, incorporam-se percursos temáticos, percursos figurativos, temas ou figuras de um

discurso em outro. E ela pode se dar, confirmando ou polemizando com o discurso antece-

dente, através da citação e da alusão, quando, respectivamente, se repetem “idéias” de

outro ou se incorporam temas ou figuras de outro para servirem de contexto para a sua

própria compreensão.

Vemos as respostas mostradas abaixo como exemplos de interdiscursividade, citan-

do ou aludindo ao discurso de Helena, tomando-o como inspirador ou pano de fundo para

seu próprio discurso. Em meio à originalidade e sinceridade dos argumentos usados pelos

alunos, podemos sentir a presença da personagem e o eco de suas palavras abrindo-lhes

caminho:

Para estudarmos as flores que nós pensávamos que eram inúteis e podem servir

para alguma coisa (Raphael, José Eduardo, Guilherme R.e Carlos Roni, T. 603).

Para alimentar a nossa sede de aprender não só sobre a ciência mais também so-

bre a nossa vida (Alan, Willian, Paulo Henrique e Thales, T. 603).

Como um contraponto a todos esses enunciados, nas respostas a seguir, a par do le-

gítimo valor e aplicação que apresentam para o estudo da Botânica, não percebemos a exis-

tência de Helena e entendemos que os grupos não “imitam” a forma da sua resposta. Na voz

dos alunos enunciadores, sabemos que ecoam outras vozes, concernentes ao contexto discur-

sivo da atividade, mas não distinguimos mais claramente a voz da personagem da peça:

Para preserva-la, não maltratá-las, etc (Juan, Gregory, Ranoi e Felipe, T. 601).

Para nós entendermos melhor o que é botânica e o seu significado (Lais, Cristina,

Scarleth, Jannyne, T. 601).

Então, com relação à forma dos enunciados, primeiro aspecto sob o qual as respos-

tas foram apreciadas, podemos perceber, que, mesmo tendo sua resposta, em certo grau,

restringida pela questão proposta, os alunos, traçando diferentes sentidos para a pergunta,

encontraram caminhos diversos e válidos para enunciá-la. Entendemos que, tal como os

resumos da peça produzidos pelos alunos, esses exercícios de redação são experiências

Page 187: Tese experimentos de botânica

174

importantes com a linguagem, e que têm proximidade com as aulas de Ciências, referindo-

se a atividades de pesquisa e de consulta a textos didáticos e de divulgação científica. Nes-

se sentido, consideramos que o ensino de Ciências, promovendo oportunidades e dedican-

do maior atenção à escrita dos alunos, pode contribuir para o seu aprimoramento.

Focalizamos, a seguir, o segundo aspecto colocado para a análise da questão 3/5,

que corresponde ao que foi destacado pelos alunos como importância e utilidade de se a-

prender Botânica, e completamos a justificativa para a observação a respeito da complexi-

dade dessa questão.

Cerca de 70% dos alunos destacaram como importância da aprendizagem da Botâ-

nica as aquisições relativas ao próprio estudo e ao conhecimento sobre as plantas, indica-

das pelos verbos “conhecer”, “entender”, “saber”, “aprender”. Em uma outra direção, 20%

dos alunos citaram argumentos sobre a utilização e a aplicação dos saberes da Botânica

diretamente na vida cotidiana. E 10% valorizaram a aprendizagem como possibilidade de

identificação e de reconhecimento das plantas, o que poderia ser entendido como atribui-

ção vinculada tanto ao conhecimento sobre as plantas como ao uso desse conhecimento.

Podemos considerar que as respostas mais numerosas, voltadas à aprendizagem, estariam

vinculadas ao próprio contexto escolar da atividade e, também, que estariam condiciona-

das, de forma direta, pela resposta da personagem Helena, que nelas estaria sendo reprodu-

zida.

Retomando a questão 1/2 do início do trabalho empírico, que pedia exemplos que

mostrassem a importância que a Ciência pode ter para a sociedade atual, vimos que a maio-

ria dos alunos destacou a importância da produção de conhecimentos e da realização de

descobertas. Mas o conjunto de respostas demonstrou, ainda, uma significativa tensão entre

descobertas/conhecimento da ciência e ação/produtos da ciência. Tensão essa que reapare-

ce e, também, pode ser vista configurada nesse novo conjunto de respostas e em várias das

respostas dos grupos com relação à aprendizagem de Botânica, como nos exemplos abaixo.

Ajuda no dia a dia e no nosso estudo que é necessário tudo de todas as matérias

(Anderson, Rhaiza, Guilherme, T. 603).

Para conhecer as flores, as plantas ao nosso redor. Elas servem também para ali-

mentos, medicina e etc ... (Mariângela, Lucas, Paola e Maêva, T. 601).

Page 188: Tese experimentos de botânica

175

Para alimentar a nossa sede de aprender não só sobre a ciência mais também so-

bre a nossa vida (Alan, Willian, Paulo Henrique e Thales, T. 603).

É interessante destacar nos dados a ocorrência dessa tensão entre o conhecimento e

a sua aplicabilidade e importância social e perceber que, historicamente, ela tem sido uma

constante a permear não só as reflexões mais recentes sobre questões curriculares mas,

também, o próprio processo de disciplinarização da Biologia, em todos os níveis de ensino.

Diversos estudos, com perspectivas sócio-históricas, sobre o desenvolvimento do ensino de

Ciências, chamam a atenção para essa ocorrência. Goodson (1997), focalizando o cenário

da Inglaterra na virada para o século XX, identifica que no desenvolvimento dos currículos

das disciplinas científicas, notadamente da Biologia, sempre houve o confronto entre obje-

tivos utilitários e pedagógicos, que se relacionavam com a aplicação e a relevância social

desses saberes e objetivos claramente acadêmicos, mais voltados para as ciências de refe-

rência.

Nesse mesmo período, também nos Estados Unidos, sob influências trazidas da In-

glaterra, essa tensão se faz presente. Rosenthal & Bybee (1987 e 1988) constatam que a

constituição e a afirmação da Biologia como disciplina escolar oscilavam entre três objeti-

vos ou tradições distintas, voltadas, mais diretamente, ao conhecimento e à sua transmis-

são, aos métodos ou às questões pessoais e sociais dos alunos. E a ênfase em cada um des-

ses objetivos variou, ao longo do séc. XX, segundo a situação sócio-econômica do país e

suas demandas mais acentuadas. Segundo os autores, a questão poderia ser caracterizada,

de uma forma ampla, como uma polêmica entre a Biologia entendida como “ciência da

vida” ou como “ciência do viver”, “ciência para a vida”.

Questão complexa e que se encontra emaranhada, também, a fatores concretos que,

naquele momento, ligavam o ensino de Biologia à ciência Biologia que, então, se desen-

volvia buscando consolidar-se como ciência autônoma e unificada. Entre tais fatores esta-

vam as exigências e os programas dos exames oficiais, a falta de livros textos específicos

para o ensino secundário, a necessária e adequada formação dos professores e as tradições

científicas fragmentadas e ainda fortemente vinculadas à Botânica, à Zoologia e à Fisiolo-

gia, e mais anteriormente, à História Natural.

Esses estudos mostram que o desenvolvimento da Biologia como disciplina escolar,

naqueles países, se deu simultaneamente a iniciativas políticas de ampliação da educação

pública a um número maior de estudantes e, também, aos embates travados entre os pró-

prios cientistas nas universidades, no âmbito do longo e disputado processo de unificação

Page 189: Tese experimentos de botânica

176

da Biologia como ciência autônoma – no qual sobressaía-se o papel da evolução como teo-

ria unificante17. Dois fatores que, deixando os currículos escolares no fogo cruzado da His-

tória, não se restringiam apenas a influenciar a definição de metodologias e de temáticas a

serem abordadas no ensino, mas envolviam, também, a liberação de apoio e de recursos

oficiais, exercendo, assim, fortes pressões no trabalho de articulação entre os conhecimen-

tos produzidos pelas ciências de referências e os próprios interesses pedagógicos das insti-

tuições escolares.

Em Selles & Serra (2005), encontramos uma sistematização dessas referências só-

cio-históricas relativas ao processo de estruturação da Biologia como ciência escolar e às

tensões que se exerciam naquele contexto. Tem-se, também, uma reflexão esclarecedora

que retoma esse debate e insere tal problemática no universo atual da educação científica

escolar, mostrando a continuidade e a permanência dessas tensões e destacando, também, a

relevância que a compreensão da história da Biologia e da história da disciplina escolar

Biologia pelos professores pode desempenhar no desenvolvimento das práticas pedagógi-

cas e na qualidade do ensino de Ciências.

As autoras destacam o fato de as Ciências Biológicas estarem em franco desenvol-

vimento dentro de seus campos científicos e, cada vez mais, intimamente relacionadas a

tópicos de grande repercussão ética e social da atualidade como gravidez, aborto, sexuali-

dade, racismo, drogas, fome, problemas ambientais, concepções religiosas ou biotecnolo-

gia. O que cobraria de seu ensino uma disposição clara para o enfrentamento dessas ques-

tões. Inclusive, já destacamos aqui essa forte relação dos temas biológicos com a dimensão

ética, conforme as considerações de Mayr (1998a) acerca das especificidades da Biologia

frente a outras Ciências Naturais. Assim, o debate acerca das opções por um currículo mais

voltado aos campos de conhecimento científico ou às temáticas mais ligadas ao cotidiano

dos alunos – opções que não deveriam ser vistas como mutuamente excludentes mas, ne-

cessariamente, articuladas, longe de estar encerrado e fazer parte de um passado disciplinar

já superado, se insinua como um debate permanente e uma polêmica de grande significado

para a reflexão pelos alunos e professores.

17 Em SMOCOVITIS (1996), encontramos uma ampla discussão sobre esse conturbado processo sócio-histórico de unificação da Biologia, buscando consolidar seu estatuto científico, no decorrer do século XX. A narração apresentada pela autora descreve o movimento e o confronto de idéias e de interesses acadêmicos ocorridos no cerne desse processo e aponta os cientistas que o protagonizaram, destacando o importante papel da evolução como teoria unificante da Biologia.

Page 190: Tese experimentos de botânica

177

Com esse enfoque, voltando à questão 3/5, podemos fazer um deslocamento e con-

siderar que tão importante quanto ponderar sobre as respostas dadas por Helena e pelos

alunos seria pensar sobre a própria pergunta feita por Dona Leonor: “Mas de que te serve

saber Botânica?”. Indagação dirigida aos estudantes mas que, neles refletida, volta-se para

os próprios professores. Forquin (1993), ao discutir as relações entre educação e cultura e o

papel da escola nos processos de transmissão cultural, aponta a complexidade desse tema e

nos permite estendê-lo do âmbito do ensino de Ciências para o campo pedagógico de for-

ma geral.

Afirma ele que tal questão interpela cada professor, no fundo de sua identidade pro-

fissional e de suas intenções, pois não há ensino sem o reconhecimento, pelos alunos e pelo

próprio professor, da legitimidade de seu conteúdo, corolário da autoridade pedagógica.

“Todo questionamento ou toda crítica envolvendo a verdadeira natureza dos conteúdos

ensinados, sua pertinência, sua consistência, sua utilidade, seu interesse, seu valor educa-

tivo ou cultural, constitui para os professores um motivo privilegiado de inquieta reação

ou de dolorosa consciência” (p. 9), já que ninguém pode ensinar, sinceramente, aquilo não

considera verdadeiro e válido para os estudantes. É a noção do valor intrínseco daquilo que

é ensinado que ocupa o centro da especificidade da intenção docente como projeto de co-

municação formadora. Uma pedagogia cínica, que se saiba como mentira ou inutilidade

destruiria a si mesma.

Vemos, então, que Machado de Assis quase ao final da peça, pela voz da tia zelosa,

severa com o comportamento de suas sobrinhas e reticente com os assuntos da Ciência,

questiona a validade dos conhecimentos da Botânica, retocando a abordagem crítica e irô-

nica que já vinha sendo traçada sobre o universo científico do Barão. Abordagem que será

concluída com a frase final de Helena – “Não se admire tanto, titia; tudo isso é Botânica

aplicada!”, já que o interesse pelo estudo lhe rendera os pedidos de casamento. Mas, ao

mesmo tempo em que escreve a história do botânico sueco e interroga a personagem, o

escritor dirige, também, a nós, professores, uma questão: o que podemos fazer com aquilo

que aprendemos e que ensinamos. Questão que se revela muito mais importante e comple-

xa.

Encerrando a atividade no 3 de pesquisa, a questão 3/6, traçando uma relação direta

entre o texto literário e o ensino de Ciências, propõe aos alunos falarem explicitamente

sobre a possível contribuição da peça no seu processo de aprendizagem: “Vocês acham que

conhecer a peça de teatro Lição de Botânica ajudou vocês a entenderem a linguagem da

ciência e a se interessarem pelo estudo da Botânica? Expliquem por quê.”

Page 191: Tese experimentos de botânica

178

Entendemos que outras indicações sobre o papel da peça na dinâmica de aprendiza-

gem dos alunos já estão distribuídas ao longo das análises. Essa última questão cria a opor-

tunidade para uma enunciação mais direta sobre o tópico, contribuindo para uma breve

reflexão final e uma sistematização das idéias.

Todos os alunos pesquisados afirmaram que a peça os auxiliou no entendimento da

linguagem científica e no interesse pelo estudo da Botânica. Os dois fatores mais aponta-

dos como justificativa foram que a peça tornou o estudo e a Ciência mais interessantes e

que permitiu que aprendessem mais sobre as plantas. As respostas, abaixo, são exemplos

dessas considerações:

“Sim. Porque nos ajuda aprender sobre as plantas, aprender mais nas aulas de ci-

ências e entender sobre o mundo da Botânica” (Agatha, Evelyn, Washington e Ta-

yara, T. 601).

“Sim. Porque com ela foi fácil aprender a ciência e foi muito divertido” (Anaina,

Letícia, Lucas e Thiago, T. 601).

“Sim, porque nos ajudou a conhecer as variedades de plantas que servem para vá-

rios tipos de coisas” (Mariângela, Lucas, Paola e Maêva, T. 601).

São afirmações que expressam a avaliação positiva das turmas sobre a introdução

daquele texto literário nas aulas de Ciências. E que se mostram alinhadas com as respostas

anteriores, para as questões 2/1 e 2/2, sobre a apresentação da peça, quando, praticamente,

metade dos alunos enfatizou a dimensão lúdica e a outra metade a relação da peça com o

estudo, já que ela “fala sobre a Ciência”.

A relação da peça com a linguagem científica, no sentido de facilitar a compreensão

sobre a mesma, não fica bem evidenciada pelas respostas à questão 3/6, que em seu con-

junto, dão ênfase à dimensão do estudo. A resposta abaixo é a única que faz referência di-

reta à dimensão da linguagem:

“Sim. Por que nós acabamos de se interessar pelas umbelíferas e etc” (Raphael, Jo-

sé Eduardo, Guilherme e Carlos, T. 603).

Page 192: Tese experimentos de botânica

179

Apesar disso, através da participação dos alunos nas atividades e por suas respostas

às demais questões analisadas, temos elementos satisfatórios que indicam uma reflexão

interessante por parte dos alunos sobre a linguagem da ciência, nas interações geradas pela

apresentação da peça.

Ainda nessa última questão, um dos enunciados nos desperta a atenção, por trazer a

questão do teatro na escola e retomar aspectos abordados no início da discussão sobre a

Lição de Botânica:

“Sim. Porque quando se mistura interpretação e estudo, fica muito mais interessan-

te” (Jennifer, Renata e Lucas, T. 603).

Essa resposta dos alunos da turma 603 é a última a ser ordenada na seqüência em

que os dados foram organizados para as análises. E ela se aproxima muito da fala da aluna

Isadora, da turma 601, primeira aluna a participar na discussão feita com cada uma das

turmas sobre a peça:

“Eu achei uma peça interessante, achei bacana porque mistura os dois assuntos e

fica mais divertido aprender... quando a gente mistura as duas coisas, né? A interpretação

com a Botânica ...”.

Assim, atentando-se para a importância da mistura, cuja observação atribuímos ter

sido favorecida pela exotopia promovida pelo texto de Machado de Assis, a última referên-

cia dos alunos à peça se une à primeira, reiterando-a plenamente. E desse diálogo, onde

fica evidenciado o traço positivo do encontro entre diferenças que se complementam –

visões da Ciência e visões da Literatura, outras alunas, Anaina e Paola, também participam

pois, no meio do trajeto da pesquisa respondendo à questão 2/2, afirmam que:

“A história mistura o amor e a ciência e nessa mistura aprendemos mais fácil” (A-

naina e Paola, T. 601).

Assim, podemos considerar que, do começo ao fim das análises, encontramos dados

indicando que a peça agradou aos alunos e aguçou seu interesse pelo conhecimento, abrin-

do-lhes caminhos para o estudo e a aprendizagem.

Page 193: Tese experimentos de botânica

180

5.6 – Tal qual os Botânicos

Conforme já comentamos na apresentação das atividades da pesquisa empírica des-

se trabalho, foram desenvolvidas junto aos alunos duas atividades práticas, cujos temas

estão articulados com a Lição de Botânica.

A primeira, após a resolução do questionário da Atividade no 3, consistiu na reali-

zação, com os mesmos grupos de alunos, de uma prática de dissecção de exemplares de

flor de hibisco (Hibiscus sp), com o objetivo de observação das partes da estrutura floral e

de ajudar a compreensão do funcionamento dos mecanismos de reprodução vegetal. Os

alunos receberam alguns exemplares das flores, pranchinhas de isopor, alfinetes, uma lupa

de mão e pequenas etiquetas de papel com os nomes das partes da flor que deveriam ser

identificadas. Usando os alfinete, fizeram a dissecção das flores, observando e identifican-

do suas principais estruturas, relacionando-as com os processos envolvidos na reprodução.

A participação dos alunos nesta atividade foi bastante interessante, demonstrando atenção e

curiosidade e formulando diversas perguntas. Através de uma nota no diário de campo,

registrando a fala de uma das alunas, percebemos o interesse suscitado pela prática realiza-

da e seu impacto para alguns alunos: “Professora, vou detonar as flores da minha mãe, lá

em casa”. (fotos dessa atividade estão mostradas ao final desse segmento).

A segunda atividade prática, que complementa o trabalho empírico, consistiu na

montagem de um herbário, desenvolvido com as duas turmas, separadamente, reunindo

espécimes de plantas do jardim e do entorno da escola. Segundo já comentamos, para essa

atividade contou-se com a participação de uma auxiliar de pesquisa, aluna do curso de gra-

duação em Ciências Biológicas.

A montagem se desenvolveu em três etapas, realizadas em encontros sucessivos: (i)

apresentação aos alunos da técnica própria, através da mostra de um herbário confecciona-

do pela auxiliar de pesquisa em disciplina de seu curso, incluindo uma breve descrição das

etapas de confecção; (ii) coleta, em grupos de alunos, de espécimes vegetais nos jardins da

escola e nas ruas de seu entorno, para a qual contamos com a participação de um outro

professor das turmas. Em sala de aula, após a coleta, fizemos a prensagem dos espécimes

em prensas de madeira, para o processo de secagem e (iii) montagem das pranchas com os

espécimes já desidratados e sua identificação, a partir de um catálogo preparado pela auxi-

liar de pesquisa, que também ocupou-se do acompanhamento de secagem. A identificação

foi feita em etiqueta padrão, contendo classificação do espécime (nome vulgar, nome cien-

tífico da família e da espécie provável), coletor, data e local de coleta. As pranchas foram

condicionadas em pastas com plásticos, compondo o herbário. Foram produzidas 11 pastas,

Page 194: Tese experimentos de botânica

181

referentes aos grupos de alunos formados, num total de 73 pranchas, incluindo 20 espécies

vegetais diferentes.

Em todas as etapas da atividade, houve muita agitação e grande envolvimento dos

alunos. Foi possível observar aspectos relacionados a diferentes dimensões, como por e-

xemplo: a curiosidade pelos procedimentos a serem realizados, o esmero e a paciência na

execução das tarefas, a alegria e entusiasmo durante a saída para a coleta, o desejo de que

os espécimes coletados por eles ficassem bem condicionados para a secagem, a expectativa

e a surpresa dos meninos quanto ao procedimento de costurar os espécimes com agulha e

linha, o compromisso de seguir com exatidão as instruções técnicas; a atenção na identifi-

cação das espécies, a organização e o cuidado com o material coletivo e o interesse em

observar e conferir, no herbário finalmente organizado nas pastas, as pranchas produzidas

por eles. Todas essas observações evidenciam a repercussão positiva do trabalho empreen-

dido.

Focalizando a história da Botânica, vimos que o seu desenvolvimento, a partir do

século XVI, foi fortemente impulsionado pela invenção de técnicas para a conservação de

plantas, culminando com a criação do herbário, que permitia a manutenção adequada dos

espécimes, por longos períodos de tempo. Mayr (1998a) afirma que teria sido impossível o

acúmulo de informações sobre as espécies estudadas de 1500 até Lineu, sem os préstimos

dessa nova ferramenta técnica. Entre as várias possibilidades que abria, estavam as refe-

rências retrocedentes aos espécimes de todas as estações do ano, permitindo um estudo

permanente da flora. Os herbários se tornaram indispensáveis para a montagem das cole-

ções de plantas exóticas. O próprio Lineu deles se valeu para a maioria das descrições de

plantas não-suecas que realizou.

A idéia de compreensão e secagem das plantas teria surgido com Luca Ghini (1490-

1556), cujos discípulos também desenvolveram seus próprios herbários. Entre eles, o de

Cibo, datado de 1532, ainda existe até hoje. A referência a tal herbário, em sala de aula da

pesquisa empírica, despertou o interesse dos alunos, que quiseram saber se a pesquisadora

já o tinha visto. Em todo o mundo, os grandes herbários são fonte de estudo e pesquisa

para os botânicos, mantendo, também, coleções voltadas à visitação do público em geral.

Podemos destacar, ainda, uma outra inovação empreendida pela imaginação e pelo traba-

lho de Luca Ghini, que por volta de 1543, em Pisa, criou o primeiro jardim botânico uni-

versitário, sendo seguido pelo de Pádua, em 1545. Esses espaços tiveram grande relevância

para o ensino científico da época. Ao final do século XVI, floresceram os jardins botânicos

públicos da Itália e da França. Lembramos, aqui, as considerações feitas por Foucault sobre

Page 195: Tese experimentos de botânica

182

a importância dos herbários e jardins botânicos como documentos da História Natural da

época clássica e marcos daquela racionalidade científica.

Como já foi destacado, na história da Botânica no Brasil, com seus personagens

brasileiros e estrangeiros, foram publicadas inúmeras obras e montadas diversas coleções.

Para essas realizações, as técnicas de herborização eram condições básicas. Atualmente, o

herbário do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, é considerado o maior do Brasil, possuin-

do até o ano 2000, 500 mil amostras de plantas (Nogueira, 2000).

No âmbito atual da pesquisa em Botânica e do ensino universitário, o herbário man-

tém todo seu papel como um recurso imprescindível. Segundo Santos (2003), ele é tradi-

cionalmente utilizado na identificação das plantas para vários fins, como levantamento da

flora e seus recursos, reconstituição do clima de uma região, avaliação do desmatamento e

grau de poluição, capacitação de especialistas em taxonomia vegetal, constituindo-se, ain-

da, em um banco de dados para pesquisas diversas. Também no contexto do ensino escolar

de Ciências e Biologia, o herbário tem sido valorizado como um importante material didá-

tico. Krasilchik (1996), Oliveira & Matias (1998) e Santos (2003), entre outros, são autores

que destacam as contribuições da montagem de um herbário para o ensino e a aprendiza-

gem de Botânica, tais como uma melhor compreensão dos conteúdos relacionados, identi-

ficação e reconhecimento de plantas encontradas nas cercanias da escola e/ou moradia dos

alunos e estímulo à observação da natureza e das relações entre os seres vivos, podendo

subsidiar a formulação de propostas para conservação.

A seguir, para ilustrar o nosso estudo e, sobretudo, para valorizar o trabalho desen-

volvido com tanto empenho pelos alunos, tal qual os botânicos, apresentamos, junto às

fotos da prática de dissecção das flores, fotos da montagem do herbário e cópias de algu-

mas pranchas do herbário produzido por eles.

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6 - RESPONDENDO AO ENIGMA

“O passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente...”

Mario Quintana

Discussão e Considerações Finais

Para demarcar pontos de nossa trajetória no percurso deste trabalho, estamos nos

valendo da figura mitológica da esfinge grega, que lançava perguntas enigmáticas aos via-

jantes que cruzavam as estradas de Tebas, devorando aqueles que não conseguissem res-

pondê-las. Assim, não custa recordar essa parte do mito, contado por Sófocles na tragédia

Édipo Rei.

“... Foi então que surgiu Édipo e a ‘cruel cantora’ (a esfinge propunha o enigma

cantando) lhe fez a clássica pergunta: ‘Qual o ser que anda de manhã com quatro patas,

ao meio-dia com duas e, à tarde, com três e que, contrariamente à lei geral, é mais fraco

quando tem maior número de membros?’ Édipo respondeu de pronto: ‘é o homem, porque,

quando pequeno, engatinha sobre os quatro membros; quando adulto, usa as duas pernas;

e, na velhice, caminha apoiado a um bastão’. Vencida, a esfinge precipitou-se do alto de

um rochedo e morreu” (Junito Brandão, 1997, p. 254).

A lembrança desse episódio, à parte toda a intensidade e simbolismo contidos no

mito, nos veio como uma idéia brincalhona, como uma paródia, quando imaginamos que

todo projeto de pesquisa, de certa forma, se empenha por criar uma espécie de “monstro”

particular, o qual, depois, temos que enfrentar, combater, prestar-lhe contas, sob pena de

perdermos o sono, os prazos ou até a cabeça. Porém, se o caminho até a “cruel cantora”

gera medo e angústia, é somente a própria caminhada que poderá dar a resposta, consistin-

do as escolhas feitas tanto na condição de seguir vivo, se decifrado o enigma, quanto no

risco de ser devorado.

Mas, se o momento inicial desse trabalho, com a lembrança da história grega, já

comportava a angústia pela expectativa de perguntas e respostas, outras angústias, outro

mito, também se fazem presentes nesse momento de conclusão. E percebemos que ele já

estava anunciado no início desse texto, ao dizermos que, novamente, usaríamos o fio da

linguagem, não mais análogo ao de Ariadne, guia para sair de labirintos, mas para tecer

novos sentidos, como se fosse o fio de Penélope, retramado numa tecitura interminável,

seu estratagema para esperar a volta do esposo.

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205

Na Odisséia, elaborada por Homero, Penélope é a esposa de Ulisses, o maior dos

heróis gregos da Guerra de Tróia. A história narrada no poema, por várias vozes e em vá-

rios planos, é a de seu regresso, sua viagem de volta para casa, após dez anos de batalhas,

em meios a descaminhos e grandes aventuras, patrocinadas pelos deuses do Olimpo e re-

pletas de monstros, gigantes, feiticeiras, sereias e ervas milagrosas.

Ítalo Calvino (1993, p. 18;19), ao falar sobre a saga de Ulisses, vai destacar, como

maior perigo enfrentado pelo herói, a ameaça constante do esquecimento. Esquecer e aca-

bar não extraindo experiências do que sofrera, nenhum sentido daquilo que vivera. “Em

todas as situações Ulisses deve estar atento, se não quiser esquecer de repente... Esquecer

o quê? A Guerra de Tróia? O assédio? O cavalo? Não: a casa, a rota da navegação, o

objetivo da viagem. A expressão que Homero usa nesses casos é ‘esquecer o retorno’... O

retorno deve ser identificado, pensado e relembrado”. Sobre o tema, Calvino usa a expres-

são “esquecer o futuro” e afirma que a memória só vale, de fato, para todos nós, “se manti-

ver juntos a marca do passado e o projeto do futuro, se permitir fazer sem esquecer aquilo

que se pretendia fazer, tornar-se sem deixar de ser, ser sem deixar de tornar-se”.

Além de enfrentar enigmas, também gostamos de empreender pequenas odisséias,

talvez traços de nossa condição humana. Assim, nessa parte de conclusão do trabalho, es-

pécie de retorno, ainda há algumas tarefas importantes a cumprir, quase mil léguas a per-

correr. Rever, reunir, alinhavar, tecer. E, como nos ensina o mito, seguindo atento para não

esquecer.

A discussão apresentada nesse capítulo se organiza em três segmentos, sem contor-

nos muito rígidos, salientando aspectos metodológicos, questões teóricas e implicações

para o ensino e a aprendizagem de ciências. As três partes, em conjunto, procuram rever as

questões de pesquisa que foram inicialmente esboçadas, pertinentes aos dois eixos de aná-

lise firmados. Ao longo da discussão, estarão sendo formuladas algumas conclusões que,

em suma, procuram completar essa tese. Como esclarece Fiorin, “a conclusão fica sendo o

último esforço de persuasão” (Fiorin, 2001, p. 301).

Sobre a Metodologia

Sobre a intencionalidade18 de usar a Lição de Botânica como fio condutor para o

trabalho, podemos apresentar algumas ponderações. Esse olhar retrospectivo agora lançado

18 Achamos mais interessante empregar o termo “intencionalidade” no lugar do termo “intenção”, a exemplo de Greimas (apud Fiorin, 2001, p. 57) que, discutindo sobre enunciação, considera que o último termo impli-ca uma dimensão consciente que eliminaria do âmbito discursivo outras dimensões, como, por exemplo, o sonho.

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sobre os diversos procedimentos da pesquisa permite uma sistematização dos recursos me-

todológicos empreendidos e uma breve reflexão sobre seu alcance e limitações. Outros

traços desse arranjo estarão, ainda, sendo indicados, mais à frente, inseridos na discussão

sobre os resultados das análises e na apresentação das implicações para o ensino e a apren-

dizagem.

Procuramos fazer o texto literário funcionar em dois níveis que, em alguns momen-

tos, se tangenciaram e ganharam simultaneidade. Em primeiro lugar, a peça sugeriu ques-

tões teóricas e práticas para a própria investigação, como por exemplo: o autor da peça, o

contexto científico da época em que foi escrita, a história e as características da ciência que

toma como tema, a nomenclatura taxonômica como expressão da linguagem científica, o

movimento do trabalho de campo, constituído pelas atividades escritas anteriores à apre-

sentação da peça, a discussão sobre ela, as atividades escritas após a apresentação e a mon-

tagem do herbário.

Nesse espaço-tempo, a peça demandou que a pesquisadora buscasse informações e

aprendesse. Então, quando se diz, nas análises, que a lida com textos literários no ensino de

Ciências pode ajudar ao professor a suprir algumas lacunas de sua formação docente, nesse

caso específico, com relação à história da Biologia e da Botânica, é isso mesmo que se está

querendo afirmar: muita coisa foi buscada e aprendida às voltas com Machado de Assis.

As histórias nos convidam a saber.

No segundo nível, o próprio texto da peça se tornou material de análise empírica,

inicialmente, fornecendo os conteúdos de Biologia e de Botânica que foram explorados nas

atividades, como, por exemplo: a importância das classificações biológicas, a importância

das flores para as plantas, os diferentes tipos de polinização e as famílias vegetais. E, tam-

bém, fornecendo temas para a reflexão dos alunos, como a importância da ciência para a

sociedade, as características da atividade científica e as especificidades de sua linguagem.

Fosse outro o texto literário usado como argumento para a pesquisa, outras teriam

sido as relações propostas e as reflexões desenvolvidas e diferentes os conteúdos científi-

cos contemplados. Por exemplo, lêssemos “A Quinta História – Como Matar Baratas”, de

Clarice Lispector, e lá estaríamos nós pesquisando e falando de artrópodos, de insetos, de

Blattarídeos, de suas relações “desarmônicas” para com o próximo, da propagada resistên-

cia desses seres e da previsão de serem os possíveis sobreviventes de alguma grande catás-

trofe ambiental, dos medos, da maldade e da solidão dos homens.

Escolhido o poema de Vinícius de Moraes, “Não comerei da alface a verde pétala”,

poderíamos discutir sobre a necessidade vital de nutrição, sobre os hábitos alimentares,

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sobre as vantagens e desvantagens de se ser herbívoro, carnívoro ou omnívoro, e também,

sobre a comida como prazer, como ritual e como cultura.

Fosse a letra de “Brejo da Cruz”, de Chico Buarque, e poderíamos circular pela fic-

ção científica, nos perguntando sobre meninos mutantes azuis que funcionam como seres

autótrofos, capazes de produzir seu próprio alimento a partir da luz e que, atravessando os

céus e aterrisando em rodoviárias distantes, camuflam-se e vivem nas cidades sem que

ninguém os perceba. E assim por diante, visto que poetas e escritores se põem a falar sobre

tudo, inclusive sobre temas com que a imaginação científica também se entretém.

Mas algumas das reflexões viabilizadas pela experiência com o texto de Machado

de Assis poderiam, em algum grau, ser recorrentes com o uso de outros textos literários, o

que, inclusive, é condição necessária para que esse trabalho possa ter uma maior serventia.

Entendemos que entre tais reflexões estão as que concernem mais diretamente à dimensão

lingüística.

Está claro que a leitura que fizemos da Lição de Botânica privilegiou o tema da lin-

guagem, motivo mesmo de sua escolha para nortear o trabalho. Só para lembrar que essa

era uma das leituras possíveis, entre outras, assinalamos que naquela feita pelos alunos, e

enunciada após a apresentação, a ênfase foi dada ao tema do amor proibido entre os jovens,

pela intransigência do tio botânico, e tivemos que respeitar essa leitura e investir energias

em seus desdobramentos, até colhendo bons frutos acerca das idiossincrasias atribuídas ao

Barão.

Mas, sem dúvida, a peça viabilizou a abordagem e a reflexão, junto aos alunos, das

especificidades da linguagem científica, notadamente as da nomenclatura biológica. Viabi-

lizou, também, o estudo de questões relativas à produção de linguagem pelos próprios alu-

nos e algumas de suas implicações nos processos de aprendizagem em Ciências.

Novamente pensando-se em possibilidades de generalizações, consideramos que

questões relevantes voltadas para o uso da linguagem pelos alunos e suas implicações tam-

bém poderiam ser suscitadas por outros textos literários, oriundas que são de propriedades

intrínsecas à própria linguagem literária. Fosse outro o texto escolhido e também podería-

mos estar falando, por exemplo, de estilo nos resumos, discurso reportado, maior apropria-

ção dos termos e dos gêneros científicos pelos alunos, estruturação e objetividade de sua

linguagem, produção de efeitos de sentidos, construção de significados ou diferentes mo-

mentos nos processos de aprendizagem. Em grande parte, entendemos que isso se efetiva,

também, pela opção de se ter o texto literário como ponto de partida e os textos dos alunos

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como ponto de chegada. Na dinâmica que se exerce de um texto aos outros, muitas coisas

se produzem e se revelam.

Sobre o desenho do trabalho empírico, ou seja, sobre o movimento que se buscou

imprimir com a seqüência de atividades em torno da peça, podemos precisar alguns ele-

mentos que foram planejados e algumas surpresas surgidas na implementação. Como ve-

mos, hoje, esse caminho empreendido, o que ele pôde propiciar e, também, o que deixou

ficar vago ou lacônico.

As reuniões da pesquisadora com o professor de Ciências das turmas envolvidas, no

momento inicial da pesquisa, foram importantes para articular as atividades planejadas

com as aulas que já estavam em curso. Como um aspecto positivo, houve uma coincidência

entre temas da Biologia focalizados na peça e conteúdos de Ciências que já estavam sendo

tratados, o que evitou que a sua introdução provocasse uma interrupção no programa em

desenvolvimento.

Planejou-se uma explanação sobre alguns tópicos de Botânica que figuravam na

peça, com o objetivo de informar aos alunos e facilitar o entendimento da história, favore-

cendo uma apreciação mais plena. O professor recebeu uma cópia do texto da peça para

que o conhecesse previamente e pudesse indicar pontos que considerasse interessante para

a discussão. Recebeu, também, cópia das atividades escritas que seriam aplicadas e, na

análise que fez, considerou que estavam explorando os conteúdos de ensino de forma deta-

lhada, inclusive relacionando aspectos que, rotineiramente, não costumavam ser enfocados.

A primeira atividade implementada, atividade no 1, se compunha de oito questões

escritas. Esse questionário teve como objetivo geral captar as idéias dos alunos, naquele

momento, sobre aspectos que percebíamos emergirem da Lição de Botânica e que estáva-

mos elegendo e fixando como pontos para serem problematizados e refletidos com os alu-

nos. A atividade também preparava a atmosfera para a apresentação da peça, abordando

temas que iriam ser mencionados direta ou indiretamente pela história. É importante des-

tacar que as questões dessa atividade seriam retomadas na atividade no 2, onde foram foca-

lizadas em outra ótica, a partir do texto da peça.

Apesar de não ter sido anteriormente previsto, para a turma 603, a atividade funcio-

nou como um pré-teste, por ter sido desenvolvida antes da aula onde seriam tratados alguns

de seus temas. Esse acaso, em função do horário de aula das turmas, acabou criando a o-

portunidade de se apreender as concepções prévias dos alunos sobre alguns tópicos e pos-

sibilitando o confronto entre as respostas das duas turmas pesquisadas, com a observação

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209

de aspectos interessantes além dos que poderiam ser propiciados diretamente pelo conteú-

do das questões.

Nas aulas que antecederam à apresentação da peça, deu-se continuidade ao estudo

de aspectos da diversidade da vida e das classificações biológicas e houve a explanação do

professor, sobre os itens de Botânica que iriam figurar na peça. Ao final da aula, fez-se o

anúncio da apresentação que se daria na aula seguinte mas, de certa forma, a peça já entra-

ra em cena. Percebemos que se criou uma grande expectativa das turmas em relação à a-

presentação.

Pretendeu-se, assim, que a peça entrasse nas aulas, ocupando-lhes espaço e tempo,

e que os alunos percebessem a presença de um texto literário sendo inserido na aula Ciên-

cias não apenas como uma atividade extra ou pitoresca, mas como uma atividade efetiva de

ensino. Nesse sentido, podemos considerar que a Lição de Botânica funcionou como o

meio e como a mensagem. A mensagem de que a literatura pode ensinar Ciências.

Enquanto isso, nos bastidores da pesquisa, se complementava a montagem da peça

para as duas apresentações. Já foram citadas a introdução de um apresentador e as peque-

nas adaptações feitas no texto original, no sentido de facilitar sua compreensão para os

alunos. Agora, tratava-se dos últimos ensaios, após um mês e meio de trabalho, da arruma-

ção do figurino e do cenário, do planejamento de horários, da concentração. Os comentá-

rios sobre a expectativa positiva manifestada pelos alunos da escola com relação à apresen-

tação geraram, também para os alunos do elenco, uma grande ansiedade. Eles sabiam da

importância da peça para o desenvolvimento da pesquisa e procuraram corresponder, mani-

festando responsabilidade e envolvimento e demonstrando, em meio à atenção que o com-

promisso exigia, muita alegria e prazer em participar. Sem dúvida, nos divertimos muito.

Podemos avaliar que a montagem da peça para a apresentação na escola foi uma a-

tividade extra para a pesquisa, e demandou empenho e esforços consideráveis da pesquisa-

dora. Mas achávamos que o investimento valeria a pena e que, na verdade, era até necessá-

rio, entendendo-se ser a melhor forma de apresentar a história para os alunos no contexto

da pesquisa. O sucesso das apresentações não deixou dúvidas quanto à validade da opção.

Além disso, não aceitávamos a tese de Quintino Bocaiúva acerca da pouca dramaticidade

das peças de Machado de Assis, “comédias mais para serem lidas do que representadas”

e, de resto, concordávamos com Machado de Assis a respeito de que “mais insinuante e

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eficaz do que a palavra escrita ou falada, a palavra dramatizada é que tinha melhores

condições de inocular nas veias do povo ‘o sangue da civilização’”.19

A apresentação da peça se deu em sessões separadas para as duas turmas, seguidas

da discussão com os alunos. Tinha-se o objetivo de captar suas impressões sobre a peça,

explorando-se os principais aspectos da história. Preparou-se uma pequena lista com temas

para serem colocados no intuito de dinamizar a discussão. Pelas análises da videogravação,

vimos que, em linhas gerais, isso funcionou bem, apesar de alguns pontos planejados terem

escapado da conversa, muito em função de seu redirecionamento, com novas ênfases, a

partir da participação dos alunos.

A seqüência prevista para a discussão incluía uma parte inicial, investindo na frui-

ção do próprio texto literário e na experiência com o teatro. Desejávamos que a inserção da

peça na aula de Ciências resguardasse a sua natureza literária, propiciando, livremente,

uma abordagem de aspectos gerais da história e de sua apresentação. Na seqüência da dis-

cussão, procurou-se dar um outro rumo para a conversa, pressionando-a na direção das

questões vinculadas à linguagem científica e aos conteúdos de Botânica.

A estratégia da discussão mostrou-se interessante no sentido de ter garantido uma

apreciação coletiva da peça, proporcionando a oportunidade de os alunos falarem esponta-

neamente sobre ela e sobre os tópicos vinculados à ciência. Foi possível apreender pela

forma oral, no fluxo das interações, elementos que iriam ser retomados através da escrita

nas atividades seguintes. Como salientamos nas análises, a discussão permitiu captar as-

pectos importantes, em várias dimensões, mostrando a riqueza da interação promovida e a

ampla capacidade de interpretação dos alunos.

Um último efeito promovido pelas discussões, que não havia sido claramente pre-

visto, foi que elas se colaram à apresentação da peça, conforme se pôde perceber através de

algumas respostas, intensificando, para todos, aquela teia de referências em torno da histó-

ria, saldo positivo proporcionado pela experiência de interdiscursividade e inserção em

uma corrente dialógica.

19 Em virtude dos bons resultados da apresentação da peça e procurando-se aproveitar o intenso trabalho de montagem, articulou-se uma seqüência de quatro apresentações para as turmas de 1a e 2a séries do Ensino Médio da escola de origem dos alunos que compunham o elenco, contando, também, com o interesse do respectivo professor de Literatura, que estava tratando do Movimento Realista. Assim, o Barão, D. Leonor, Helena, Cecília e Henrique novamente entraram em cena. As apresentações se constituíram em uma experi-ência satisfatória, tanto de divulgação do texto machadiano, quanto de valorização do trabalho dos alunos.

Page 224: Tese experimentos de botânica

211

Avançando-se na implementação da pesquisa, deu-se o desenvolvimento das de-

mais atividades escritas. A atividade no 2 retoma aspectos abordados na primeira atividade

e na discussão, tais como a apreciação sobre a peça, as característica dos cientistas e espe-

cificidades da linguagem científica e a importância das classificações biológicas. Algumas

respostas dessa atividade puderam, assim, ser confrontadas com as anteriores, permitindo

observar a movimentação de significados atribuídos aos temas que estavam em pauta, no

universo discursivo em torno da peça.

A atividade no 3 pretendeu ser uma pequena lição de Botânica, estudando-se as

Gramíneas e, também, complementando a reflexão sobre a importância dessa ciência e

sobre a presença da literatura nas aulas de Ciências. Hoje, percebemos que, de certa forma,

a última questão dessa atividade, remetendo-se aos temas tratados no início da discussão

sobre a peça, permitia que se olhasse para trás e se fechasse o arco de idéias estendido a

partir da apresentação da peça. Com o conjunto das três atividades escritas e a proposta de

montagem do herbário também se procurou observar o funcionamento da história do Barão

na abordagem dos tópicos de ensino.

A confecção do herbário foi um componente da pesquisa que teve seu papel bastan-

te ampliado no decurso do trabalho. Pensada, então, como uma atividade significativa em

termos do estudo da Botânica, estaria pontuando, de forma mais clara, o funcionamento da

peça na abordagem dos conteúdos de ensino. Ao final do estudo, porém, sua montagem

pelos alunos adquiriu um valor especial. Houve, decerto, o ganho por uma atividade práti-

ca, motivadora de uma participação ativa das turmas, e com relevância para a aprendiza-

gem em Ciências, visto sua técnica específica e o envolvimento de informações sobre sis-

temática vegetal. Mas as referências à história da Botânica, as considerações sobre a im-

portância das classificações biológicas e da terminologia científica, a intimidade criada

com o Sr. Barão, e, também, a alegria dos alunos ao realizarem a atividade, revestiram o

herbário de novos sentidos.

Podemos reconhecer que o uso da peça como condutor da pesquisa trouxe, também,

algumas dificuldades. De início, havia a preocupação de que as atividades com os alunos

com vistas à produção de dados pudessem se mostrar inadequadas. Talvez o caminho em-

preendido aproximasse indagações e respostas de naturezas um pouco diversas. Em segun-

do lugar, a peça ganhava novos sentidos a cada leitura ou comentário que se fazia, enquan-

to que as questões propostas nas atividades, de certa forma, já tinham restringido e fixado

alguns deles. E, ainda, o aprofundamento do estudo teórico também alterava nossa aprecia-

ção sobre as relações que haviam sido traçadas entre a peça e o ensino de Ciências.

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212

Contudo, aos poucos, vendo-se o que emergia dos dados ao longo das análises, foi

possível sentir maior segurança para enfrentar a mobilidade do objeto investigado e a flui-

dez da trama da pesquisa. No mais, de Heráclito a Lulu Santos, muitos foram incisivos

afirmando que, tanto quanto as águas, tudo muda a todo tempo. Assim, incertezas, mobili-

dade e fluidez devem ser mesmo, em diferentes graus, contingências de qualquer trabalho.

Após as atividades escritas desenvolvidas junto aos alunos, iniciaram-se as análi-

ses, das quais podemos destacar alguns aspectos. Houve uma primeira sistematização dos

dados gerados. Todas as respostas das turmas à primeira questão proposta foram reunidas e

digitadas em uma certa seqüência, identificando-se os alunos pelo nome. A cada nova

questão, essa seqüência era repetida. Assim, ao final, numa linha vertical tínhamos, agru-

padas, as respostas de todos os alunos a cada questão, podendo enxergá-las em conjunto a

um só tempo, o que facilitou a reflexão e, numa linha horizontal, podia-se acompanhar as

respostas de cada aluno ao longo de toda a pesquisa. Procedimento que se mostrou interes-

sante em alguns momentos da análise, por propiciar uma melhor compreensão dos sentidos

das respostas dadas e uma apreciação da participação específica de alguns alunos.

A organização das tabelas procurou possibilitar uma maior visibilidade da diversi-

dade dos dados, apreendendo-os de forma qualitativa e, também, garantindo uma noção de

sua expressividade pelo aspecto quantitativo. Era importante salientar, por exemplo, que a

maioria dos alunos identificara determinado elemento ou que apenas um dos alunos res-

pondia de uma certa forma ou, ao contrário, que toda a turma respondia na mesma direção.

Mas se aspectos da linguagem dos alunos também precisavam ser apreendidos, seus enun-

ciados tornaram-se material de reflexão. No tecido das respostas obtidas, em alguns pon-

tos, sutis variações fizeram grande diferença e pequenos detalhes provocaram sentidos di-

versos que, no fundo, evidenciavam visões bastante diferenciadas sobre os assuntos trata-

dos. A riqueza dos dados expressou-se pelo conteúdo e pela forma dos enunciados e, tam-

bém, pelo jogo que sabemos instalar-se entre eles. É evidente que essas análises ficaram

restritas aos limites do domínio que dispúnhamos das ferramentas de análise lingüística.

A definição das categorias para compor as tabelas demandou leituras sucessivas, re-

flexões concentradas e uma conversa constante com as referências teóricas, na busca de

pistas para interpretar e compreender as respostas. E pôde-se compreender, mais claramen-

te, o quanto essa definição imprimia aos dados um determinado olhar, configurado por

premissas teóricas.

Os dados não são dados, no sentido de que possam estar prontos por aí para serem

apenas recolhidos, mas são construções da própria pesquisa e as categorias estabelecidas

Page 226: Tese experimentos de botânica

213

expressam as bases teóricas que se têm em mente. Oportunamente, François Jacob (1983,

p. 22) vai nos lembrar que “para que um objeto seja acessível à análise, não basta aperce-

ber-se dele. É preciso também que uma teoria esteja pronta para acolhê-lo. Na relação

entre a teoria e a experiência, é sempre a primeira que inicia o diálogo.‘O acaso só favo-

rece os espíritos preparados’, dizia Pasteur”.

Sobre as Bases Teóricas

Reconhecendo, assim, a necessária presença de referências teóricas em todas as e-

tapas da edificação de um trabalho de pesquisa, podemos apresentar algumas observações

acerca do uso do referencial teórico nesse estudo. O que, no íntimo, estará indicando o en-

tendimento que temos dos papéis que a teoria pôde exercer ao iluminar os caminhos, ou

seja, como ela pôde nos preparar o espírito.

De início percebemos que, em função da problemática construída, diferentes cam-

pos teóricos foram articulados – Crítica Literária, Epistemologia e História das Ciências,

Aprendizagem em Ciências e Lingüística. Campos de produção de conhecimento já bem

caracterizados e desenvolvidos e nos quais nos situávamos em posições muito diferencia-

das. Surgia, assim, um primeiro desafio teórico para a pesquisa. Buscar, em cada canto,

subsídios interessantes e satisfatórios para movimentar as idéias. O que nem sempre foi

uma tarefa simples e rápida.

Nesse contexto, consideramos que, ao longo do trabalho, tenha ocorrido um proces-

so importante de aprendizado teórico, constituído no embate entre teoria e empiria. O en-

frentamento dos dados, a partir das primeiras aproximações teóricas, suscitava e promovia

um melhor entendimento dos próprios conceitos teóricos. Os dois se esclareciam mutua-

mente. Assim, é interessante observar que o referencial teórico apresentado e discutido no

início do trabalho vai sendo ampliado, em alguns de seus elementos, ao longo da pesquisa.

Mas, cumpre assinalar que não se volta àquela seção inicial do texto para retocá-la, siste-

matizando possíveis complementações. Essas permanecem dispersas pelas análises, mar-

cando o ponto exato do estudo no qual se efetuaram.

Em Ecologia, existe o termo ecótone, que significa uma região de transição entre

diferentes ecossistemas, isto é, a linha de fronteira entre dois ambientes distintos. A palavra

vem do grego, oikos, casa, ambiente e tonos, tensão, pressão. Nos ecótones têm-se uma alta

densidade populacional e uma grande diversidade de seres vivos, posto que espécies oriun-

das das duas áreas vizinhas neles se instalam. Toda essa vida que se manifesta no ecótone

exerce pressões sobre ele, o que faz com que se torne uma faixa de fortes tensões (Soares,

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214

1999). Poder-se-ia propor uma analogia entre ecótones e estudos que articulam diferentes

campos de saberes.

A analogia se insinua quando se pensa no fervilhar de idéias que podem se aglutinar

em torno de temas interdisciplinares e nas tensões que, então, se fazem notar na atmosfera

criada para o trabalho. Tal como naqueles ambientes, nesses estudos destaca-se a riqueza

da diversidade e revela-se a complexidade do conjunto formado. Mas podemos pensar na

validade de se viver nas fronteiras, submetidos aos custos da convivência empreendida.

Dispensando as analogias, entendemos que as pesquisas instaladas na interseção entre

campos de conhecimentos diversos abrem para o objeto construído novos olhares e novos

horizontes de compreensão. Para as próprias teorias articuladas, trazem a perspectiva de

ampliar sua abrangência e mostrar adaptação a novas abordagens. Ao pesquisador deman-

da o empenho em ultrapassar barreiras de sua formação e a busca de um equilíbrio na lida

com as tensões.

Podemos pensar que a teoria vale pelo que nos ajuda a enxergar, discernir, enten-

der, explicar e prosseguir. Nesse sentido, os aportes teóricos presentes nesse trabalho parti-

ciparam com diferentes contribuições. Ponderando-se sobre como se lidou com cada um

deles, naquilo que é possível de ser reconhecido mais claramente, consideramos que cada

referência foi utilizada com papéis definidos, mas de forma alguma excludentes entre si.

Algumas noções e categorias teóricas exerceram um maior poder heurístico, ser-

vindo para ajudar a pensar e a relacionar as questões, acendendo as idéias e permitindo o

desenvolvimento e a coerência das reflexões. Outros estudos informaram sobre tópicos

importantes, ampliando nossos horizontes e dando maiores sentidos e consistência às dis-

cussões. As pesquisas citadas como tendo problemáticas aproximadas ou pertinentes per-

mitiram delimitar o campo de inserção desse trabalho e, sobretudo, identificar suas especi-

ficidades. Algumas categorias teóricas foram usadas, mais diretamente, como instrumentos

analíticos, permitindo o tratamento dos dados empíricos e seu aproveitamento.

Ainda, uma última forma de encarar as referências teóricas levadas em conta nos

vem a partir de considerações de Bachelard (1996, p. 7,8), sobre as imagens poéticas. Para

ele, tais imagens transportam-nos à origem do ser falante, colocando em ação nossa capa-

cidade lingüística. A leitura de um poema pode oferecer uma imagem que se torna real-

mente nossa. “Nós a recebemos, mas sentimos a impressão de que teríamos podido criá-la,

de que deveríamos tê-la criado”. Por isso, “ao recebermos uma nova imagem poética, sen-

timos seu valor de intersubjetividade. Sabemos que a repetiremos para comunicar o nosso

entusiasmo”. Pensamos que esse processo não procede apenas para os poemas, mas tam-

Page 228: Tese experimentos de botânica

215

bém nos ocorre para com algumas produções teóricas. Fazemos delas uma leitura poética.

E elas nos impulsionam a falar e a pensar. Assim, além de sua possível contribuição teórica

para o desenvolvimento de nosso trabalho, sentimos que as repetiremos para comunicar o

nosso entusiasmo.

Mas se podemos falar de uma relação de admiração e de encantamento com a pala-

vra do outro, podemos falar, também, de uma relação amorosa - que pressupõe que tudo

que é dito merece ser ouvido. É dessa forma que Bakhtin escuta as vozes alheias, até por

considerar que é em meio a elas que nos constituímos. Como já destacamos, algumas con-

cepções do Círculo de Bakhtin foram tomadas como base teórica central para esse trabalho.

Consideramos que esse pensamento, buscando compreender as manifestações da

linguagem nas fronteiras da vida cotidiana, da arte e de outras esferas da vida social, inclu-

sive da ciência, poderia ajudar a pensar as possibilidades de se enriquecerem as aulas de

Ciências, através do trabalho simultâneo dos temas científicos com textos literários. A con-

cepção de linguagem daqueles pensadores, tecida com verdadeira paixão ao longo do de-

senvolvimento de sua filosofia de linguagem, permite pensar o ensino de Ciências abrindo-

se à perspectiva dos textos literários, sendo incrementado e contribuindo para potencializar

as práticas pedagógicas. E vice-versa, como em uma via de mão-dupla.

Ao longo das reflexões desenvolvidas, várias noções traçadas pelo Círculo de

Bakhtin se mostraram relevantes e puderam ser consideradas nas análises. Diversos estu-

dos em Educação em Ciências, tratando das relações entre aprendizagem e linguagem,

conforme já salientamos, também empregam subsídios bakhtinianos. Entre os trabalhos

considerados, identificamos problematizações e análises a partir das categorias de

dialogismo, polifonia, linguagens sociais e gêneros de discurso, discursos de autoridade e

discursos internamente persuasivos, palavras alheias, palavras próprias e de compreensão

ativa. No caminho aberto pela Lição de Botânica, foi possível abordar, em outro contexto

de dados e em novas configurações, essas categorias já experimentadas e, além disso, in-

troduzir nas discussões as noções de dialética interna dos signos, hibridização, exotopia,

excedente de visão, interdiscursividade, intersubjetividade, plurilingüismo, dimensão valo-

rativa da linguagem, a expressão verbal como organizadora do pensamento e alguns ele-

mentos sobre o riso e a paródia. Sem dúvida, elementos do universo bakhtiniano da lin-

guagem, agora povoados por nossas intenções, se fizeram presentes nesse trabalho.

Porém, dizer que trabalhamos com as noções desenvolvidas pelo Círculo de Bakh-

tin não é uma afirmação que se faça impunemente. Aliás, como não deveria ser, também,

em relação aos outros autores que envolvemos. Mas, parece que o caso é mais delicado.

Page 229: Tese experimentos de botânica

216

Por exemplo, ao discutir sobre a exotopia, uma das categorias mais sugestivas de Bakhtin,

Tezza (2001, p. 285) faz questão de lembrar que transparece na obra do autor, como uma

marca própria, uma visível má vontade em classificar, em resumir, ou seja, em “fechar as

gavetas”. As categorias por ele estabelecidas, as raras e dispersas classificações e as tipo-

logias prometidas, mas quase nunca completadas em seus textos, se situam em um conti-

nuum e rompem com uma visão estanque que apontaria para uma imobilidade.

Nessa mesma direção, outros estudos que têm discutido as formas de apreensão do

pensamento bakhtiniano nas pesquisas, destacam suas peculiaridades e apontam certas

dificuldades que podem surgir quando se intenta extrair de seu conjunto teórico, ainda que

tão fértil, aquilo que ele próprio não desejaria oferecer. Faraco (2003, p. 39) nos provoca,

chamando a atenção para a dimensão fortemente filosófica do pensamento de Bakhtin.

Destaca que o pensador russo, ao elaborar suas reflexões, não focaliza o mundo como sim-

ples objeto calculável e nem quer construir um modelo instrumentalizante de análise estri-

tamente científica. Assim, Bakhtin não teria um método – modus faciendi, um conjunto de

procedimentos analíticos ou uma coleção de categorias formalizadas a nos fornecer. Mais

interessado, naquele momento, em compreender o mundo do que em explicá-lo, apresenta

grandes diretrizes para a construção de um entendimento mais amplo da realidade, sem,

contudo, deixar de lembrar a importância de estudos que aprofundem as análises.

Dessa forma, entendemos que a melhor contribuição dos estudos de Bakhtin para

nossas pesquisas seria a perspectiva metodológica, pautada por um saber dialógico. Suas

categorias não são grades onde o conjunto de dados possa ser facilmente encaixado. E

quanto à lida com a teoria, Bakhtin também nos é sugestivo. Roncari (1999, p. XI) observa

que, lendo seus trabalhos, podemos notar que são como um relato competente e compreen-

sivo de uma visita, e que resultam sempre de uma relação, do encontro de quem foi apren-

der com aqueles que procurou conhecer.

Nesse sentido, pensamos que aquela analogia com os ecótones ainda nos ajuda, a-

lertando para as tensões que ocorrem nas regiões de fronteiras. Aliás, podemos lembrar que

tensão e fronteiras são mesmo dois termos bastante caros ao Círculo de Bakhtin, talvez

duas chaves para movimentar seu pensamento. Se para pesquisadores formados nas áreas

da linguagem e da literatura, parece ser difícil escapar de um uso excessivamente instru-

mental de seus referenciais teóricos, podemos considerar o quanto deve ser fácil caírem em

tentação os professores de Ciências, formados em tradições com métodos experimentais

mais demonstrativos.

Page 230: Tese experimentos de botânica

217

Assim, no estudo de nosso referencial, tentamos dialogar com os autores e procu-

ramos ter alguns cuidados, visando não empobrecer ou trair a teoria, esgarçando seu tecido

e tirando os conceitos do fluxo de idéias em que foram pensados e do movimento no qual

ainda se encontram, fechando-os em si mesmos. Ainda que um cristal bem lapidado muito

nos impressione e seduza. Procuramos, sobretudo, ter atenção e cuidados com os enuncia-

dos dos alunos, interlocutores principais, atenciosos e colaborativos, procurando respeitá-

los e compreendê-los em suas falas, pedrinhas preciosas encontradas ao longo do caminho.

Caminho esse que se pretendeu caracterizar, tanto quanto possível, como um ensai-

o, idéia já explicitada no próprio título do trabalho. Ensaio em dois sentidos: ensaiar com

os alunos uma peça de teatro para apresentá-la em aula de Ciências e ensaio como proposta

teórico-metodológica, usando um texto literário para encaminhar uma reflexão sobre as

relações entre as diferentes linguagens e o ensino e a aprendizagem em Ciências. Essa vi-

são de ensaio como forma de reflexão teórica e de experiência com a linguagem nos vem

do escritor e poeta alemão Hans Enzensberger (1995) que, na introdução de um de seus

livros, justifica sua preferência por redigir suas reflexões na forma de ensaios. Afirma ele

que, assim, não é obrigado a falar sempre no mesmo plano, o discurso não está determina-

do de antemão: pode argumentar, pode narrar, pode deixar coisas irresolvidas. “Como o

próprio nome diz, o ensaio é uma tentativa, um modo de aproximação. A tese deve se de-

senvolver no decorrer do trabalho”.

Sobre as implicações para o ensino e a aprendizagem

Na continuidade desse caminho de retorno, também não se pode esquecer os objeti-

vos da viagem, correndo o risco de não extrair experiências do que se viveu, como disse

Ítalo Calvino a respeito de Ulisses, não se pode esquecer o futuro. Pensando nele, apresen-

tamos algumas considerações sobre as questões que foram propostas no início e sobre as

implicações e contribuições desse estudo para o ensino e a aprendizagem de Ciências e

para o nosso trabalho nas escolas.

Para a condução da pesquisa foram estabelecidos, inicialmente, dois eixos de dis-

cussão: Linguagem e Aprendizagem, Ciência e Literatura. Agora, não se desejaria mais

deixá-los estanques, mas, sim, voltar a vê-los entremeados no mundo da cultura e na vida

da escola. Entendemos os quatro elementos desses eixos como quatro fios, sendo dois mais

antigos, que se desenvolveram junto com o próprio homem; outros dois, um pouco mais

recentes, surgiram quando o homem se valeu dos antigos para produzir conhecimento so-

bre o mundo e sobre si mesmo. Quatro fios para belos bordados, sempre ambíguos e in-

Page 231: Tese experimentos de botânica

218

conclusos e cujo avesso, decerto, causa espanto. “Afinal, a linguagem é um fenômeno ex-

tremamente complexo e multifacetado” (Fiorin, 2002, p. 78) e, nisso, muito se assemelha à

aprendizagem (Colinvaux, 2003a), à qual está inalienavelmente ligado. Literatura e Ciên-

cia são modos distintos de ver, de narrar, de representar o mundo que, em muitas páginas,

se entrelaçam.

Nossa hipótese inicial era a possibilidade de a literatura enriquecer os processos es-

colares de ensino e aprendizagem de conteúdos científicos. O que podemos dizer, a partir

da experiência com a peça de Machado de Assis?

“Melhor é de risos do que de lágrimas escrever, porque o riso é a marca do homem.”

Rabelais

Inicialmente, um aspecto a ser apontado é a dimensão do prazer e da alegria na es-

cola. Freqüentemente, tais elementos são citados e valorizados, também, para outras estra-

tégias que procuram trazer alternativas à dinâmica do ensino escolar e, sem dúvida, podem

ser relacionados às atividades envolvendo textos literários em aulas de Ciências. Reconhe-

cemos que tal dimensão, evidenciada pelas análises desse trabalho, tem uma imensa impor-

tância e que em nenhum momento deve ser vista como secundária ou supérflua ao ensino,

mas, ao contrário, precisa ser sempre reconhecida como imprescindível ao universo do

trabalho escolar.

Se, historicamente, na dialética da vida social, a escola tem se revelado um espaço

de conflitos, contradições, expressão de poderes instituídos e de efetiva reprodução da or-

dem social, ela continua sendo, também, um espaço possível para a superação de tais de-

terminações e para a instauração do novo e, para os alunos, uma oportunidade concreta e

privilegiada de formação e de acesso ao conhecimento. Se nos Contos e nas contas da es-

cola listam-se dificuldades, aborrecimentos e insatisfações, também podem ser reconheci-

das e narradas inúmeras vivências positivas e felizes. E, conforme defendem Snyders

(1988, 1993) e Paulo Freire (1993), a alegria e o prazer que podem ser proporcionados pela

aprendizagem são dois dos grandes pilares para a construção de qualquer conhecimento.

Bases que necessitam ser constituídas durante a permanência na escola e conservadas pela

vida afora, tornando-se, então, um dos sérios compromissos e desafios para os professores.

Page 232: Tese experimentos de botânica

219

E, nesse sentido, entendemos que a experiência com a Lição de Botânica foi bem sucedida,

demonstrando que a literatura pode mobilizar recursos que agradam e motivam os alunos.

Mas entendemos que a introdução da literatura em aulas de Ciências, para ser apro-

veitada de forma mais plena, demanda cuidados e suscita alguns desdobramentos. Ela não

deve ser encarada apenas como forma de motivação inicial e de rápida utilização, toman-

do-se o texto literário como pretexto, supostamente agradável e facilitador para a aborda-

gem dos conteúdos de ensino, passando-se logo a seguir ao desenvolvimento das ativida-

des voltadas diretamente à esfera científica, numa perspectiva redutora. Também não é

adequado encerrar a leitura do texto em uma única direção, traçada de antemão para a aula

de Ciências, pois deve haver espaço e valorização para a emergência de novos sentidos.

Esses aspectos são dificuldades para a circulação da literatura também encontradas

em outras disciplinas. Como um pequeno parêntese, podemos lembrar algumas considera-

ções de Lajolo (1993), acerca do uso da literatura no ensino escolar de Língua Portuguesa,

que se somam a inúmeros estudos críticos de outros pesquisadores da área. A autora desta-

ca o relacionamento difícil evidenciado nesse contexto, do qual sobressai um amargo de-

sencanto, configurado por atividades de leitura literária como prestação de contas, tarefas e

obrigações ou pretexto para exercícios de gramática, que, muitas vezes, vêm desfigurar a

obra literária nas práticas escolares. “Ou o texto dá um sentido ao mundo ou ele não tem

sentido nenhum” (p.15), defende a autora.

Também, para ela, a imposição excessiva de técnicas de interpretação, comum em

atividades escolares, anularia a ambigüidade, o meio-tom, a conotação, atributos preciosos

da linguagem literária. E o desencontro que floresce, na escola, entre a literatura e os jo-

vens é sintoma de um desencontro maior, aquele vivido pelos próprios professores. Desen-

contros cuja superação é condição para que se possa usufruir o espaço, tão necessário à

educação, de liberdade e subversão, possível de se instaurar pelo e no texto literário.

“Palavra dócil

Palavra d’água pra qualquer moldura Que se acomoda em balde, em verso, em mágoa

Qualquer feição de se manter palavra.

Chico Buarque

Um segundo aspecto que podemos destacar como implicação para o ensino é que as

histórias nos convidam a saber, como foi possível constatar através da Lição de Botânica,

Page 233: Tese experimentos de botânica

220

pelo que nos mostrou, por exemplo, acerca da obra de Machado de Assis, da literatura e da

Ciência no Brasil do início do século XX e da História da Biologia e da Botânica. Assim,

há que se responder ao convite feito. Há que se investir nas pistas encontradas no texto

literário e nas relações diferenciadas que consegue traçar com a realidade, frestas abertas

para a pesquisa e a aprendizagem de alunos e de professores. Então, a proposta curricular

precisa estar aberta a contornos mais longos e imprecisos. E se há o convite ao conheci-

mento, o qual sabemos ser terreno inesgotável, o professor não precisa saber antes de seus

alunos e já entrar nas histórias conhecendo exatamente aonde vão dar, mas pode descobrir,

estudar e aprender junto a eles. Perspectiva essa que considera a imprevisibilidade e a inde-

terminação como inerentes às relações entre os processos de ensino e de aprendizagem, o

que, muitas vezes, é esquecido pelos professores. Ponderamos, também, que não estamos,

de forma alguma, desconsiderando a necessidade e a importância do conhecimento docente

para o exercício de mediar os processos de construção de conhecimento pelos alunos.

Quando pensamos que a literatura pode atuar nas aulas de Ciências, instigando ou-

tras leituras e novos conhecimentos, ampliando os horizontes do ensino, percebemos duas

instâncias em que isso pode se dar. Em uma primeira, que chamaríamos de mais cultural,

vemos as inúmeras referências trazidas de diferentes esferas sociais que cada texto literário

pode aglutinar ao seu redor e dispor ao nosso proveito. Inserções referidas ao campo da

temática específica do texto e ao próprio mundo literário de forma mais ampla, banhando

as aulas de Ciências nas águas da cultura já produzida. O que, decerto, proporciona aos

aspectos da realidade focalizados pelo ensino uma compreensão mais plena e mais interes-

sante do que a que seria subsidiada por referências estritamente de cunho científico.

Nessa ótica, se a ciência tem por princípio destacar determinadas dimensões ou as-

pectos do fluxo complexo da realidade e, ainda, controlar o uso dos adjetivos que lhes são

pertinentes, e a linguagem científica se caracteriza, sobremaneira, por um esforço para a-

pagar a experiência vivida e as relações entre os enunciados e os sujeitos, a literatura, es-

pecialmente através de seu plurilingüismo, poderia ajudar a recuperar esses elementos,

restaurando a complexidade dos fenômenos e os reintroduzindo no universo cultural mais

amplo. Tal noção, inclusive, é destacada por Mora (2003) a respeito dos textos de divulga-

ção científica, que recorrem a recursos tidos como próprios da literatura, como bases na

história e na tradição, emprego de ironia e humor, entrelaçamento de arte e ciência, uso de

metáforas e analogias, vínculos com o cotidiano, espaço para a metafísica e a religião, refe-

rências à cultura popular, reconhecimento dos erros humanos e dessacralização da ciência.

Page 234: Tese experimentos de botânica

221

Estratégias de linguagem que lhes conferem qualidade discursiva, grande comunicabilida-

de e proximidade com os leitores.

A outra instância na qual a exploração do texto literário teria repercussões, ampli-

ando os horizontes do ensino, pode ser entendida como a constituição de ferramentas, dis-

positivos ou recursos para o ensino e a aprendizagem de Ciências. No caso da Lição de

Botânica, pode ser um exemplo a compreensão, viabilizada pela peça, acerca das especifi-

cidades da Biologia frente a outras Ciências, da importância das classificações na constru-

ção dos conhecimentos da Biologia, das tensões históricas entre os objetivos do ensino

científico e das especificidades e funcionalidade da linguagem científica. Tal possibilidade

de ampliação de recursos pode contemplar, sobretudo, os próprios professores, no perma-

nente processo de amadurecimento de seus saberes.

Essas possibilidades se dão, principalmente, a partir da condição de exotopia que

pode ser instalada entre literatura e ciências, vistas como produções culturais distintas. Se-

gundo Bakhtin, no encontro dialógico de duas culturas, formulamos à cultura alheia novas

perguntas que ela mesma não se formulava e encontramos nela respostas às nossas pergun-

tas, revelando-nos novos aspectos e novos sentidos. Foi possível nos valer da exotopia cri-

ada por Machado de Assis. A peça romântica, sobre um namoro proibido, “fala da Ciên-

cia”, como foi lembrado pelos alunos. Mas, fala de fora, pois nela, a ciência, mudando de

lugar, está inserida na vida das pessoas – como esposa do Barão, como destino traçado

para Henrique ou como novidade para as mulheres da casa. Os próprios alunos perceberam

o valor do diálogo promovido, comentando que a “mistura” tornou o estudo e a aprendiza-

gem mais fáceis e interessantes. Entendemos, também, que essa posição axiológica expres-

sada pelos alunos implica em uma compreensão mais rica e mais aprofundada da própria

atividade científica. A Botânica e a Lição de Botânica iluminaram-se mutuamente.

Mas, destacamos que para o mirante instalado pela exotopia se mostrar proveitoso

carece de confiança. Vierne (1994), como já foi comentado, aponta o afastamento histórico

produzido entre literatura e ciência, pois uma desconfia muito da outra. Como visão de

mundo diferenciada, nos proporciona o estranhamento ao que já está explicado e o conhe-

cimento novo que, como expressão da arte, consegue produzir. Mas, exatidão e rigor con-

ceitual, ainda que considerados, não seriam seus interesses e compromissos. Aliás, poderi-

am estar intencionalmente subvertidos nos contextos poéticos.

Essas duas instâncias por meio das quais entendemos que a literatura traz repercus-

sões para o ensino de Ciências, lançando-nos à procura por outros conhecimentos, reme-

tem-nos a uma reflexão pedagógica mais ampla, concernente às noções de letramento e de

Page 235: Tese experimentos de botânica

222

práticas de leitura na escola. Processos que se inter-relacionam e se complementam no co-

tidiano escolar.

As pesquisas no campo da alfabetização, já há algum tempo, vêm se voltando à

perspectiva do letramento, no sentido de ampliar os significados daquele fenômeno, real-

çando suas implicações político-sociais e buscando propiciar, pelo uso da linguagem oral e

escrita, uma maior inserção dos sujeitos no mundo da cultura. Conforme sintetiza Goulart

(2000 e 2003), a questão do letramento estaria fortemente ligada ao trânsito dos sujeitos

por diferentes esferas da atividade social, pelo qual podem tornar-se capazes, entre outras

ações, de distinguir os temas dos enunciados com os quais têm contato, de avaliá-los e de

poder discutir com eles. A condição letrada, intimamente relacionada aos discursos que se

elaboram nas diferentes instituições e práticas sociais orais e escritas, está associada a mui-

tos objetivos e formas de expressão, entre elas a forma escrita.

Concordando com a autora, vemos o papel da escola no processo de letramento, a-

través de uma maior da circulação de textos no cotidiano escolar, criando oportunidades de

diálogos para os alunos e dando ênfase aos movimentos de interdiscursividade. Diferentes

discursos são produzidos historicamente, trazendo as marcas de seus produtores, espaços e

processos de produção, assim, a inclusão e a participação numa sociedade letrada envolve

conhecimentos de ordem prática, filosófica, científica e artística, além de hábitos, atitudes

e procedimentos que se constituem em valores sociais. Entendemos, então, que a atuação

da escola nesse processo, que deve se efetivar durante todo o período em que os alunos

nela permaneçam, demanda a participação de professores de todas as áreas e não, exclusi-

vamente, dos que alfabetizam ou ensinam Língua Portuguesa.

Assim, para o contexto desse estudo, podemos firmar a noção de ensinar Ciências

letrando, o que passa pelo aguçamento da compreensão dos alunos de que aquilo que a-

prendem em aulas de Ciências, se não lhes propicia uma aplicação imediata no âmbito das

ações de ordem prática, poderá aparecer em outros contextos e em outros textos de sua

vida, constituindo-se, assim, em ferramentas epistêmicas, lingüísticas e culturais para o

entendimento de novas situações, de novas questões e mesmo para o desempenho em ações

e decisões práticas. Como disseram os alunos, estudar Ciências vale “para alimentar a

nossa sede de aprender coisas não só sobre a ciência, mas também sobre nossa vida”.

O envolvimento do ensino de Ciências com as práticas de leitura na escola, que i-

luminamos com a noção de letramento, também é discutido por Silva (1998), ao instigar os

professores de todas as disciplinas a investirem na capacidade de leitura de seus alunos,

incluindo atividades consistentes de leitura em seus programas de ensino. São apresentadas

Page 236: Tese experimentos de botânica

223

por ele três teses, que bem cabem aqui: todo professor é um professor de leitura; a fantasia

não é uma exclusividade das aulas de literatura e as seqüências integradas de textos são

pré-requisitos para a formação do leitor. Teses que apostam na busca de aproximações en-

tre os campos discursivos da ciência e da literatura.

Nesse movimento de idéias, reencontramos os trabalhos em Educação em Ciências

citados em nosso referencial teórico, que enfocam questões da linguagem científica e tra-

tam da leitura na escola e da aproximação de textos alternativos em aulas de disciplinas

científicas, notadamente no Ensino Médio de Física. O presente trabalho procurou trazer

novos argumentos e algumas contribuições voltadas aos conteúdos de Biologia do Ensino

Fundamental a esse campo de pesquisas, tecido e tensionado entre os fios da linguagem, da

aprendizagem, da ciência e da literatura.

“Palavra boa Não de fazer literatura, palavra

Mas de habitar fundo O coração do pensamento, palavra.”

Chico Buarque

Conforme destacamos em nossas referências teóricas, o papel central da linguagem

nos processos de aprendizagem, manifestando-se como condições e como limites para o

conhecimento, tem sido discutido pelos estudos com dados de linguagem e análises de in-

terações discursivas no ensino de Ciências. Dessas pesquisas pôde-se depreender a neces-

sidade de os professores se voltarem, mais atentamente, para as questões relativas às lin-

guagens, já que sua produção e seu uso em sala de aula, de uma forma mais ingênua e es-

pontânea, conduziriam professores e alunos a negligenciarem essa dimensão imprescindí-

vel de toda aprendizagem. Se todo professor é um professor de leitura, todo professor é,

também, um professor de linguagens.

A linguagem científica em suas relações com o ensino e a aprendizagem escolar é o

terceiro aspecto que podemos destacar nessa discussão final. No caso específico da ciência,

enfatizamos que o reconhecimento de que ela se desenvolve produzindo uma linguagem

que tem especificidades e lhe dá determinada desenvoltura, manifestando-se através de

diversos gêneros de discurso, é um passo relevante para seu ensino e sua aprendizagem.

Como destaca Lajolo (2001, p.18), “se é verdade que o que conhecemos do mundo é aquilo

que do mundo nos é dado conhecer através e no limite da linguagem de que dispomos para

Page 237: Tese experimentos de botânica

224

falar dele, vale a pena investigar o uso específico que da linguagem fazem profissionais da

ciência....”.

Através das atividades iniciais da pesquisa, pudemos perceber o grande valor atri-

buído pelos alunos à ciência e ao conhecimento científico, pois “o cientista traz o conhe-

cimento para a sociedade para que a sociedade possa atualizar os seus conceitos”. Ficou

evidenciado, também, o reconhecimento da autoridade da ciência e de sua linguagem. Au-

toridade que lhes é conferida em função das inúmeras virtudes que foram relacionadas aos

cientistas e a partir das contribuições que os alunos reconhecem serem trazidas à sociedade

pelo seu trabalho, que vem indicada nos enunciados por expressões como “o grande traba-

lho dos cientistas”, “trabalho importantíssimo” ou “a favor da humanidade”.

Foi possível mostrar que os alunos percebem a existência de uma linguagem pró-

pria da ciência, diferenciada da linguagem comum. Essa distinção fica bem estabelecida

em várias respostas. O reconhecimento da existência de uma linguagem científica traz,

ainda, a valorização de suas especificidades, já que “a linguagem dos cientistas são claras

e objetivas. Porque os cientistas são mais estudiosos e sabem dar respostas mais simplifi-

cadas”. Na visão dos alunos, a linguagem da ciência constitui-se por termos próprios, in-

venção de palavras novas, símbolos, fórmulas e termos em latim e grego. E tem aspectos

positivos como clareza e objetividade, que facilitam a comunicação e a troca de informa-

ções entre os cientistas. Aspectos que, em conjunto, também se mostram restritivos, pois a

tornam uma “linguagem difícil e complicada”. Algumas dessas referências estavam sendo

apresentadas aos alunos pelas aulas de Ciências que tratavam das classificações biológicas

e da terminologia científica.

Ainda no contexto dessas respostas, foi possível perceber características da lingua-

gem científica, como as marcas de estruturação e o emprego de termos científicos, perme-

ando os enunciados dos alunos. Interpretamos esse evento como indícios do curso do pro-

cesso de apropriação dessa linguagem pelos alunos, que se efetiva ao longo de todo o ensi-

no de Ciências, de modo diferenciado entre eles, e através do qual palavras e sintaxes ori-

undas da ciência vão sendo tomadas como palavras e sintaxes próprias e os enunciados se

produzem em formas mais estruturadas e objetivas. Objetividade bem exercida, por exem-

plo, na concisão da resposta que mostra a importância social da ciência com apenas quatro

diferentes palavras: “Sem ciência sem remédios, sem ciência sem automóveis”.

Nas questões que se seguiram a partir da apresentação da peça Lição de Botânica, a

reflexão junto aos alunos acerca da linguagem científica pôde ser ampliada e novos signifi-

cados foram movimentados. Nesse contexto, conforme já assinalamos em vários momentos

Page 238: Tese experimentos de botânica

225

desse estudo, foram elementos fundamentais a exotopia em relação à Botânica promovida

pelo texto de teatro e o plurilingüismo que o constitui. Pelo encontro promovido entre as

linguagens literária, cotidiana e científica na e pela peça, foi possível para os alunos um

entendimento mais pleno das especificidades dessas linguagens. A exotopia ajudou a pen-

sar a distinção, o diálogo e o trânsito entre elas. Retomando a fala sobre os cientistas e a

linguagem da ciência, os alunos parecem perceber os traços caricatos do polêmico “Barão

que só falava de Botânica”. Os modelos de cientista e de linguagem científica, expressos

anteriormente, puderam ser retomados, revistos, confirmados ou desmistificados em alguns

de seus aspectos.

O conjunto de atividades da pesquisa procurou mostrar aos alunos que a linguagem

da ciência, no caso bem referida à nomenclatura científica, tem uma dimensão histórica e

que trabalha para constituir o conhecimento científico, distinguindo-o de outras formas de

conhecimento e promovendo a sua difusão. Aspectos que a tem caracterizado como difícil

e complicada. Linguagem que tem sua esfera de produção e circulação originais, mas que

dela flui a todo instante para outras esferas, para os embates com outras linguagens, através

dos discursos e dos produtos da ciência, constituindo suas relações de poder e conquistan-

do valor social. Linguagem difícil e complicada, desafio à aprendizagem, mas que pode

tornar-se acessível e familiar.

“Palavra minha

Matéria, minha criatura Palavra que me conduz

Mudo E que me escreve desatento, palavra.”

Chico Buarque

Um último aspecto a ser considerado sobre as implicações do uso do texto literário

para o ensino escolar de Ciências, é a produção de linguagem pelos próprios alunos inseri-

da na dinâmica de sua aprendizagem. Conforme já comentamos, entendemos que tais as-

pectos também podem ser contemplados e pesquisados em experiências com outros textos

literários, desde que se tomem esses textos como pontos de partida e se chegue ao texto

dos alunos, procurando ver sua linguagem atravessada pelas relações entre as linguagens

científica e literária. A Lição de Botânica, sem dúvida, privilegiou essa abordagem.

Page 239: Tese experimentos de botânica

226

Pela riqueza dos elementos percebidos nos enunciados orais e escritos dos alunos,

através dos exercícios de análise lingüística empreendidos, ficou evidenciada uma desen-

voltura bastante satisfatória na compreensão da peça, na discussão sobre seus principais

tópicos e na articulação dos conteúdos de Botânica que foram tratados. Os resumos da his-

tória redigidos por eles e outras diversas respostas formuladas apresentaram marcas de

estilo bem pronunciadas e efeitos de sentido diferenciados, expressando atribuição de juí-

zos, de valores e interpretações próprias a respeito dos fatos e dos temas. Os exemplos da

ocorrência de intertexualidade e de interdiscursividade nas respostas e a lida com o discur-

so reportado mostraram como os alunos podem mobilizar recursos lingüísticos de forma

interessante, e trabalhar o discurso alheio na perspectiva de superar sua carga de autorida-

de, tomando-os como discursos internamente persuasivos. Perspectiva interessante para o

ensino, considerando-se a autoridade atribuída à linguagem da Ciência.

No ensino de Ciências, a rotina de leitura que, em geral, fazemos dos textos dos a-

lunos dirige-se, sobretudo, para o conteúdo dos enunciados produzidos, no sentido de aferir

seus acertos, erros ou incompletudes frente ao que foi proposto, para a orientação de uma

revisão do texto ou para avaliação. A apreciação desses textos, muitas vezes, se faz emba-

ralhada à insatisfação pelas dificuldades encontradas quanto ao uso da norma culta da lín-

gua e nos leva a enfatizar aquilo que falta. Por isso, a observação de aspectos mais amplos

da dimensão lingüística nos enunciados dos alunos se consistiu em uma experiência muito

prazerosa e instigante para a pesquisadora. E seus resultados mostraram o quanto há para

ser considerado, com mais atenção e positividade, na produção verbal dos alunos em sala

de aula. Um empenho dos professores nesse sentido pode contribuir para o aprimoramento

da escrita e, conseqüentemente, do processo de aprendizagem de seus alunos.

Como as respostas produzidas estavam inseridas em uma cadeia de enunciados, o-

rais e escritos, a respeito da peça e das relações que foram traçadas entre ela e a ciência, foi

possível perceber nos enunciados redigidos os reflexos do trânsito que se dava entre a ora-

lidade e a escrita, repercutindo traços dos gêneros de discurso primários e secundários e de

seu processo de hibridização. Partindo disso, pensamos que a escrita dos alunos no ensino

de Ciências seja uma escrita muito tensionada, tanto pela exigência de um conteúdo mais

exato a ser tratado e a existência de gêneros de discurso típicos da linguagem científica,

mais próximos da linguagem escrita e que proporcionam aos enunciados maior consistên-

cia e inteligibilidade, como pela própria linguagem cotidiana dos alunos, vinculada mais

fortemente à linguagem oral, trabalhando os temas científicos. Tensão que é relevante e à

qual podem ser despendidos maiores cuidados no ensino.

Page 240: Tese experimentos de botânica

227

Nas análises das questões referentes a temas relacionados à ciência e à Botânica, fi-

cou evidente o fato de, ao longo do processo, as respostas dos alunos se imporem como

respostas de melhor qualidade, no sentido de mais apropriadamente científicas e de expres-

sar um conhecimento mais apurado, quando constituídas por uma linguagem mais próxima

à dos gêneros científicos, incluindo palavras e forma composicional peculiares. Se “envol-

ver-se em uma determinada esfera de conhecimento implica desenvolver também um do-

mínio dos gêneros que lhe são peculiares”, segundo Medvedev e Bakhtin ou “aprender

ciências é aprender a falar ciências”, segundo Lemke, certo grau de apropriação da lin-

guagem científica pelos alunos torna-se um imperativo para o ensino e uma importante

expectativa para a sua aprendizagem. E consideramos que isso deve ficar mais esclarecido

para os próprios alunos e professores, que podem voltar-se, conscientemente, para exercí-

cios desafiadores de linguagem, pela leitura e pela escrita, visando sua aproximação ao

universo científico.

Pensando-se na dinâmica de aprendizagem dos alunos, entendemos que eles, inseri-

dos em suas turmas, podem chegar a momentos diferenciados de significação dos conteú-

dos curriculares trabalhos. Um exemplo, nesse sentido, observado pelo acompanhamento

da participação de alguns alunos na discussão sobre a Lição de Botânica mostra que, en-

quanto os colegas de turma dão suas primeiras impressões a respeito da história, citando

personagens e dados do enredo, uma das alunas apresenta uma fala bastante articulada a

respeito da apresentação da peça favorecer o ensino e a aprendizagem de Ciências. Vemos,

assim, que enquanto os outros alunos estavam mergulhados nos fatos da história, atribuin-

do-lhes significados, ela já tecia uma apreciação da peça em termos de estratégias de ensi-

no e de aprendizagem de Ciências. No decorrer da discussão, sua participação bastante

efetiva também irá indicar a incorporação em seus enunciados de diversos itens científicos

tratados na aula anterior, mostrando a apropriação que fez daquilo que ouvira em sala de

aula e na apresentação da peça e da articulação que teceu entre essas referências.

Outra consideração relevante acerca da dinâmica da aprendizagem entrelaçada à

linguagem, para a qual os dados trouxeram elementos, é que os significados são criados e

ampliados a partir das interações verbais nas quais os sujeitos se inserem. Esse aspecto da

importância das interações discursivas está abordado em algumas de nossas referências

teóricas sobre aprendizagem em Ciências e, também, Bakhtin e Voloschinov já nos haviam

dado tal senha.

Acerca desse fenômeno, as análises forneceram diversos exemplos. Ilustramos, a-

qui, com o caso da explicação sobre as flores terem cores e perfumes, quando todos os alu-

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228

nos de uma das turmas não souberam responder à questão. A maioria deles não tinha sub-

sídios científicos para as respostas, apresentando, então, os significados que conseguia a-

tribuir naquele momento, muitos pautados em uma visão essencialista das flores. Mais adi-

ante, após a ampla cadeia de enunciados orais sobre o perianto, mobilizada pela peça, cru-

zando-se diversas referências a ele, todos os alunos da turma souberam responder a respei-

to de sua função, que é bem desempenhada, afinal, por ser a estrutura floral com cores e

perfumes. O acompanhamento da seqüência das respostas de diversos alunos, às duas ques-

tões comentadas, trouxe indícios de aprendizagem, por exemplo: “Não sei e não tenho o

que pensar e falar” → “Proteger as flores e chamar a atenção dos insetos para fazer a

polinização”.

Nesse sentido, quanto mais ricas forem as interações promovidas em sala de aula

sobre determinado tópico, sobretudo, articulando-se subsídios trazidos de campos discursi-

vos distintos, mais espaços de entrada nas redes de significações estarão sendo oportuniza-

dos aos alunos, já que a aprendizagem não é um processo linear e nem se dá da mesma

forma para todos eles.

O trabalho com o texto literário promoveu um movimento de significação em torno

de diversos elementos e de diversas palavras: a ciência, a Botânica, a linguagem científica,

as bromélias, as umbelíferas ... E se tem razão o poeta Manoel de Barros, e as palavras têm

mesmo, entre outras heranças, sedimentos, usos do povo, cheiros de infância, permanência

por antros, ancestralidades..., supomos que novas referências lhes puderam ser agregadas.

A produção de linguagem pelos alunos deixou ver o trânsito desses significados, oriundos

da literatura, da ciência, do conhecimento cotidiano, e a sua apreensão por parte deles, num

processo de ampliação do feixe que cada um está compondo para si, no decurso de suas

experiências com a linguagem.

Também vale ressaltar o processo de significação que se deu com o trabalho de

montagem do herbário como atividade final, através da qual ocorreu a manipulação de pro-

cedimentos de taxonomia vegetal e o emprego da terminologia científica de forma concreta

pelos alunos. Pelo interesse em participar das atividades e pelo ânimo demonstrado em sua

execução e na apreciação de seus resultados, os alunos nos deixaram ver os significados

positivos que estavam sendo atribuídos àquele trabalho. Consideramos que nas pranchas do

herbário estavam sendo costuradas, “com linha de pipa!”, bem mais que os espécimes de-

sidratados. Iam junto com eles os botânicos suecos, o Barão, Helena, o perianto, as gramí-

neas... Se, antes, os herbários eram as coleções dos botânicos e objetos dos museus, agora

eram, também, produções das turmas 601 e 603. Se os nomes científicos eram nomes es-

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229

quisitos, escritos em latim e sob algumas regras, agora, além disso, estavam ali na etiqueta,

reconhecidos e escritos por eles, identificando cientificamente as plantas do jardim e do

bairro da escola. Só é “pena que umas perdem a cor e ficam feias!”, conforme reparou um

dos alunos.

O trânsito de significados que pôde ser percebido nas atividades junto aos alunos

permitiu a emergência e a observação de alguns aspectos do processo de aprendizagem

escolar, que foram discutidos nas referências teóricas desse estudo. Assim, reforçamos

nossa concepção de que a aprendizagem é um processo constante de mudança, que envolve

a produção/criação de novas significações e ocorre, permeado pela linguagem, por cami-

nhos diversos e com pontos de chegada também diversos. As evidências empíricas obser-

vadas permitiram ampliar nossa reflexão sobre esses pressupostos e ressaltar a importância,

para o exercício pedagógico, de sua problematização permanente, guardando para o ensino

de Ciências a chave trazida por Drummond: “aprendi novas palavras e tornei outras mais

belas”.

Ainda que só concordemos com a parte inicial da afirmação dissimulada de Cecília,

“a ciência é uma grande coisa e não há remédio senão adorar a Botânica”, acreditamos

que a Biologia e a Botânica, vivendo a tensão histórica entre seus objetivos mais e menos

utilitários, têm muito a nos ensinar, além das questões de classificação biológica, aspecto

enfatizado nesse trabalho em função do texto de Machado de Assis. Da parte da pesquisa-

dora pode-se reconhecer que foram muitas as Lições aprendidas por meio desse Ensaio, de

modo que, sem ironias machadianas, poderíamos imitar a forma da resposta de Helena,

dizendo: “não se admire tanto, tudo isso é Botânica aplicada”.

Tivemos empenho em demonstrar a validade de nossa hipótese inicial – a literatu-

ra pode enriquecer os processos escolares de ensino e aprendizagem de conteúdos científi-

cos – e em mostrar que a literatura também é coisa útil e séria, mesmo que possa provocar

o riso ou desconcertar a ciência. E, ainda que as dificuldades e urgências da sala de aula

nos cobrem estratégias consideradas mais tenazes para enfrentar os desafios, insistiremos, transformando em metáfora os versos de Emanuel Marinho: “Poesia não compra sapato.

Mas como andar sem poesia”.

Page 243: Tese experimentos de botânica

230

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ANEXO 1 – Texto da Atividade No 1 de Pesquisa

Programa de Pós-Graduação FE – UFF

Projeto de Pesquisa Lição de Botânica – Atividade No 1

Escola Estadual Municipalizada Anísio Teixeira

Nome: ____________________________________ Turma: ________ Data: ______

1- Na sua opinião, o que caracteriza a atividade da Ciência, ou seja, qual é uma diferença marcante entre o trabalho do cientista e o trabalho de outros profissionais?

2- Cite dois exemplos que mostrem a importância que a ciência pode ter para a sociedade atual.

-3- Cite três características que um cientista deve ter, como pessoa ou como profissional.

4a- Você já estudou vários assuntos de ciências e sempre tem contato com notícias da ci-ência através da televisão ou de revistas e jornais. Pensando nisso, você já observou a for-ma de linguagem da ciência? Você acha que ela possui uma forma de falar diferente da linguagem que usamos no dia a dia?

4b – Explique por que você pensa assim ou dê algum exemplo que mostre se existe dife-rença na maneira de falar da ciência.

5- A Biologia é a ciência que estuda os seres vivos. Ela se preocupa em classificar esses seres vivos em diferentes grupos. Na sua opinião, qual é a importância de se classificar cientificamente os seres vivos?

6- Cite três critérios que você sabe que são usados pela ciência para classificar os seres vivos.

7- Qual é a importância das flores para a vida dos vegetais?

8- Você sabe explicar por que muitas flores têm cores bonitas e bons perfumes?

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ANEXO 2 – Texto da Atividade No 2 de Pesquisa Projeto de Pesquisa Lição de Botânica – Atividade No 2

Escola Estadual Municipalizada Anísio Teixeira

Nomes do grupo: __________________________________________________________ ___________________________________________ Turma: ______ Data: ___________ 1- Vocês gostaram de assistir a uma peça de teatro na escola? Por quê? 2- a) Vocês gostaram da peça Lição de Botânica?

b) O que acharam mais interessante na história que é contada? 3- Escrevam um pequeno texto, resumindo a história da peça (mostrem os fatos princi-pais, que possam dar uma idéia da história). 4- a) Podemos ver que a peça apresenta uma visão de cientista, representada pela perso-nagem do Sr. Barão de Kernoberg. Como é este cientista? b) Retirem do texto da peça uma frase que sirva para mostrar essa visão de cientista (in-dique quem diz a frase e em que cena da peça). 5- Em várias partes da história, aparecem indicações de que a linguagem usada pela Botâ-nica não é uma linguagem comum. a) Como é a linguagem da botânica, segundo as indi-cações da peça? b) Identifiquem uma frase da peça que mostre isso (indique quem diz a frase e em que cena da peça). 6- O Barão de Kernoberg, o cientista da peça é sueco. Vocês encontram alguma relação entre isso e a história real da botânica? 7- O Barão ao comparar Helena com a flor violeta (cena IX), refere-se a ela como Viola odorata de Lineu. Consultando o texto no 1, identifiquem todas as regras de nomenclatura que foram usadas para escrever o nome da violeta dessa forma. 8- Nos textos no 1 e no 2 encontramos nomes científicos de algumas espécies de seres vi-vos. Consultando esse texto, expliquem a importância dos nomes científicos para a Biolo-gia.

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ANEXO 3 – Texto da Atividade No 3 de Pesquisa Projeto de Pesquisa Lição de Botânica – Atividade No 3 Escola Estadual Municipalizada Anísio Teixeira Nomes do grupo: __________________________________________________________ ___________________________________________ Turma: ______ Data: ___________

1- Na cena IX, o Barão diz a Helena que, ao estudarem botânica, mundos novos irão se abrir diante de seus espíritos. E ele lhe diz que estudarão várias famílias de plantas.

a) Quais foram as famílias de plantas citadas por ele? b) Consultando o texto no 3, identifiquem cinco plantas conhecidas de vocês que fazem parte dessas famílias. 2- a) Sobre qual família vegetal trata o livro que o Barão levava consigo e que Helena usa para mostrar seu interesse pela botânica? b) Consultando o texto no 3, mostrem a importância dessa família de plantas. 3- O Barão explica à Helena que as plantas da família tratada no livro não apresentam determinada estrutura em suas flores. a) Qual é essa estrutura? b) Qual é a função dessa estrutura para as flores? c) Como vocês explicam a polinização das flores dessa família citada pelo livro do Barão? 4- Na cena XII, qual foi a resposta dada por Helena à Dona Leonor, quando ela lhe pergun-ta para que vai lhe servir estudar Botânica? 5- Imitando a forma da resposta de Helena, imaginem uma resposta que vocês poderiam dar a essa mesma pergunta, para mostrar a importância e a utilidade que vocês atribuem ao estudo da Botânica. 6- Vocês acham que conhecer a peça de teatro Lição de Botânica ajudou a vocês a enten-der a linguagem da ciência e a se interessar pelo estudo da botânica? Expliquem por quê.

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Anexo 4- Textos fornecidos para consulta nas atividades nos 2 e 3 de pesquisa.

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Anexo 5- Texto adaptado da peça Lição de Botânica

Adaptação de LIÇÃO DE BOTÂNICA - Machado de Assis, 1906

CENA I D. LEONOR, D. HELENA, D. CECÍLIA

(D LEONOR entra, lendo uma carta, HELENA e CECÍLIA entram do fundo.) HEL - Já de volta! CEC - (a HELENA). Será alguma carta de namoro? HEL - (baixo). Criança! LEO - Não me explicarão isto? HEL - Que é? LEO - Recebi ao descer do carro este bilhete: "Minha senhora. Permita que o mais respeitoso vizinho lhe peça dez minutos de atenção. Vai nisto um grande interesse da ciência". Que tenho eu com a ciência? HEL - Mas de quem é a carta? LEO - Do Barão de Kernoberg. CEC - Ah! o tio de Henrique! LEO - De Henrique! Que familiaridade é essa? CEC - Titia, eu... LEO - Eu quê?... Henrique! HEL - Foi uma maneira de falar na ausência. Com que então o Sr. Barão de Kernoberg pede-lhe dez minutos de atenção, em nome e por amor da ciência. Da parte de um botânico é por força alguma poético. LEO - Seja o que for, não sei se deva receber um senhor a quem nunca vimos. Já o viram alguma vez? CEC - Eu nunca. HEL - Nem eu. LEO - Botânico e sueco: duas razões para ser gravemente aborrecido. Nada, não estou em casa. CEC - Mas quem sabe, titia, se ele quer pedir-lhe... sim... um exame no Nosso jardim? LEO - Há por todo esse Andaraí muito jardim para examinar. HEL - Não, senhora, há de recebê-lo. LEO - Por quê? HEL - Porque é nosso vizinho, porque tem necessidade de falar-lhe, e, enfim, porque, a julgar pelo sobrinho, deve ser um homem distinto. LEO - Não me lembrava do sobrinho. Vá lá; aturemos o botânico. (Sai pela porta do fundo, à esquerda). CENA II HELENA e CECÍLIA HEL - Não me agradeces? CEC - O quê? HEL - Sonsa! Pois não adivinhas o que vem cá fazer o barão? CEC - Não. HEL - Vem pedir a tua mão para o sobrinho. CEC - Helena! HEL - (imitando-a).Helena! CEC - Juro... HEL - Que o não amas. CEC - Não é isso.

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HEL - Que o amas? CEC - Também não. HEL - Mau! Alguma cousa há de ser. É preciso que uma porta esteja aberta ou fechada. Porta neste caso é coração. O teu há de estar fechado ou aberto... CEC - Perdi a chave. HEL - (rindo). E não o podes fechar outra vez. O teu Henrique viu a porta aberta, e tomou posse do lugar. Não escolheste mal, não; é um bonito rapaz. CEC - Oh! uns olhos! HEL - Azuis. CEC - Como o céu. HEL - Loiro... CEC - Elegante... HEL - Espirituoso... CEC - E bom. HEL - Uma pérola .. (Suspira) Ah! CEC - Suspiras? HEL - Que há de fazer uma viúva, falando... de uma pérola? CEC - Oh! Tens naturalmente em vista algum diamante de primeira grandeza. HEL - Não tenho, não; meu coração já não quer jóias. CEC - Mas as jóias podem quer o teu coração. Ah! HEL - Que é? CEC - (olhando para fora). Um homem desconhecido que lá vem; há de ser o barão. HEL - Vou avisar titia. (Sai pelo fundo, esquerda). CENA III CECÍLIA e BARÃO CEC - Será deveras ele? Estou trêmula... Henrique não me avisou de nada... Virá pedir-me?... Mas não, não, não pode ser ele... Tão moço!... (O BARÃO aparece). BARÃO - (à porta, depois de profunda cortesia). Creio que a Senhora Dona Leonor Gouveia recebeu uma carta. . . Vim sem esperar a resposta. CEC - É o Sr. Barão de Kernoberg? (O BARÃO faz um gesto afirrnativo) Recebeu. Queira entrar e sentar-se. (À parte) Devo estar vermelha... BARÃO - (à parte, olhando para CECÍLIA). Há de ser esta. CEC - (à parte). E titia não vem... Que demora!... Não sei que lhe diga... estou tão vexada... (O BARÃO tira um livro da algibeira e folheia-o) . Se eu pudesse deixá-lo ... É o que vou fazer. (Sai) . BARÃO - (fecha o livro e ergue-se). V. Senhoria há de desculpar-me. Acabo de receber este livro da Europa; é obra que vai fazer revolução na ciência; nada menos que uma monografia das gramí-neas, premiada pela Academia de Estocolmo. CEC - Sim? (à parte) Aturemo-lo, pode vir a ser meu tio. BARÃO - As gramíneas têm ou não têm perianto? A princípio adotou-se a negativa, posteriormente... V. Senhoria talvez não conheça o que é o perianto... CEC - Não, senhor. BARÃO - Perianto compõe-se de duas palavras gregas: péri, em volta, e anthos, flor. CEC - O invólucro da flor. BARÃO - Acertou. É o que vulgarmente se chama cálice. Pois as gramíneas eram tidas... (Aparece D. LEONOR ao fundo) Ah! CENA IV CECILIA, O BARÃO e D. LEONOR LEO - Desejava falar-me? BARÃO - Se me dá essa honra. Vim sem esperar resposta à minha carta. Dez minutos apenas.

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LEO - Estou às suas ordens. CEC - Com licença. (À parte, olhando para o céu). Ah! minha Nossa Senhora! (Retira-se pelo fundo). CENA V D. LEONOR, BARÃO (D. LEONOR senta-se, fazendo um gesto ao BARÃO, que a imita). BARÃO - Sou o Barão de Kernoberg, seu vizinho, botânico de vocação, profissão e tradição, membro da Academia de Estocolmo, e comissionado pelo governo da Suécia para estudar a flora da América do Sul. V. Senhoria dispensa a minha biografia? (D. LEONOR faz um gesto afirmativo) Direi somente que o tio de meu tio foi botânico, meu tio botânico, eu botânico, e meu sobrinho há de ser botânico. Todos somos botânicos de tios a sobri-nhos. Isto de algum modo explica minha vinda a esta casa. LEO - Oh! O meu jardim é composto de plantas vulgares. BARÃO (gracioso). É porque as melhores flores da casa estão dentro de casa. Mas V. Senhoria engana-se; não venho pedir nada do seu jardim. LEO - Ah! BARÃO - Venho pedir-lhe uma coisa que lhe há de parecer singular. LEO - Fale. BARÃO - O padre desposa a igreja; eu desposei a ciência. Saber é o meu estado conjugal; os livros são minha família. Ou seja, fiz voto de celibato. LEO – Então não se case. BARÃO - Justamente. Mas, V. Senhoria compreende que, sendo para mim ponto de fé que a ciên-cia não se dá bem com o matrimônio, nem eu devo casar, nem... V. Senhoria já percebeu. LEO - Coisa nenhuma. BARAO - Meu sobrinho Henrique está começando a estudar botânica comigo. Tem talento, há de vir a ser um luminar da ciência. Se o casamos, está perdido. LEO - Mas... BARÃO (à parte). Não entendeu. (Alto) Sou obrigado a ser mais franco. Henrique anda apaixona-do por uma de suas sobrinhas, creio que esta que saiu daqui, há pouco. Impus-lhe que não voltasse a esta casa; ele resistiu-me. Só me resta um meio: é que V. Senhoria lhe feche a porta. LEO - Senhor Barão! BARÃO - Admira-se do pedido? Creio que não é polido nem conveniente. Mas é necessário, mi-nha senhora, é indispensável. A ciência precisa de mais um obreiro: não o encadeemos no matrimônio. LEO - Não sei se devo sorrir do pedido... BARÃO - Deve sorrir, sorrir e fechar-nos a porta. Terá os meus agradecimentos e as bênçãos da posteridade. LEO (sorrindo). Não é preciso tanto; posso fechá-la de graça. Antes de nos despedirmos, porém, desejava dizer-lhe que ignoro se há tal paixão da parte de seu sobrinho; em segundo lugar, pergunto se na Suécia estes pedidos são usuais. BARÃO - Na geografia intelectual não há Suécia nem Brasil; os países são outros: astronomia, geologia, matemática; na botânica são obrigatórios. LEO - Todavia, à força de andar com flores. . . deviam os botânicos trazê-las consigo. BARÃO - Ficam no gabinete. LEO - Trazem os espinhos somente. BARÃO - V. Senhoria tem espírito. Compreendo a afeição de Henrique a esta casa. (Levanta-se) Promete-me então... D. LEO - (levantando-se). Só prometo uma coisa: que vou pensar sobre seu estranho pedido.

CENA VI D. LEONOR, BARÃO e HELENA HEL - (entra e pára). Ah!

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LEO - Entra, não é assunto reservado. O Sr. Barão de Kernoberg.... (Ao BARÃO) É minha sobrinha Helena. (à HELENA) Aqui o Sr. Barão vem pedir que o não perturbemos no estu-do da botânica. Diz que seu sobrinho Henrique está destinado a um lugar honroso na ciên-cia, e... conclua, Sr. Barão. BARÃO - Não convém que se case, a ciência exige o celibato. LEO - Ouviste? HEL - Não compreendo... BARÃO - Uma paixão louca de meu sobrinho pode impedir que... Minhas senhoras, não desejo roubar-lhes mais tempo .... Confio em V. Senhoria, minha senhora... Ser-lhe-ei eternamente grato. Minhas senhoras. (Faz uma grande cortesia e sai). CENA VII HELENA, D. LEONOR LEO - (rindo). Que urso! HEL - Realmente. LEO - Perdôo-lhe em nome da ciência. Fique com as suas ervas, e não nos aborreça mais, nem ele nem o sobrinho. HEL - Nem o sobrinho? LEO - Nem o sobrinho, nem o criado, nem o cão, se o houver, nem cousa nenhuma que tenha rela-ção com a ciência. Enfada-te? Pelo que vejo, entre o Henrique e a Cecília há tal namoro. HEL - Se promete segredo... há. LEO - Pois acabe-se o namoro. HEL - Não é fácil. O Henrique é um perfeito cavalheiro; ambos são dignos um do outro. Por que razão impediremos que dois corações . . . LEO - Não sei de corações, não hão de faltar casamentos a Cecília. HEL - Claro que não, mas casamentos não se improvisam nem se projetam na cabeça; são atos do coração que a Igreja santifica. Tentemos uma coisa. LEO - Que é? HEL -Reconciliemo-nos com o Barão. LEO - Nada, nada. HEL - Pobre Cecília! LEO - É ter paciência, sujeite-se às circunstâncias. . . (à CECÍLIA que entra). Ouviste? CEC - O que, titia? LEO - Helena te explicará tudo. (à HELENA, baixo) Tira-lhe todas as esperanças. (Indo-se) Que urso! que urso! CENA VIII HELENA e CECÍLIA CEC - Que aconteceu? HEL - Aconteceu... (Olha com tristeza para ela). CEC - Acaba. HEL - Pobre Cecília! CEC - Titia recusou a minha mão? HEL - Qual! O Barão é que se opõe ao casamento. CEC - Opõe-se! HEL - Diz que a ciência exige o celibato do sobrinho. (CECÍLIA encosta-se a uma cadeira) Mas, sossega; nem tudo está perdido; pode ser que o tempo... CEC - Mas quem impede que ele estude? HEL - Mania de sábio. Ou então, evasiva do sobrinho.

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CEC - Oh! não! é impossível; Henrique é uma alma angélica! Respondo por ele. Há de certamente opor-se a semelhante exigência . . . HEL - Não convém precipitar as cousas. O barão pode zangar-se e ir-se embora. CEC - Que devo então fazer? HEL - Esperar. Há tempo para tudo. CEC - Pois bem, quando Henrique vier... HEL - Não vem, titia resolveu fechar a porta a ambos. CEC - Impossível! HEL - Pura verdade. Foi uma exigência do barão. CEC - Ah! conspiram todos contra mim. (Põe as mãos na cabeça) Sou muito infeliz! Que mal fiz eu a essa gente? Helena, salva-me! ou eu mato-me! Anda, vê se desco-bres um meio. . . HEL - (indo sentar-se). Que meio? CEC - (acompanhando-a). Um meio qualquer que não nos separe! HEL - (sentada). Há um. CEC - Qual? Dize. HEL - Casar. CEC - Oh! não zombes de mim! Tu também amaste, Helena; deves respeitar estas angústias. Não tornar a ver o meu Henrique é uma idéia intolerável. Anda, minha irmãzinha. (Ajoelha-se inclinan-do o corpo sobre o regaço de D. HELENA) Salva-me! És tão inteligente, que hás de achar por força alguma idéia; anda, pensa! HEL - (beijando-lhe a testa). Criança! supões que seja cousa tão fácil assim? CEC - Para ti há de ser fácil. HEL - Lisonjeira! (Pega maquinalmente no livro deixado pelo BARÃO sobre a cadeira) A boa vontade não pode tudo; é preciso.... (Tem aberto o livro) Que livro é este?... Ah! talvez do barão. CEC - Mas vamos.. . continua. HEL - Isto há de ser sueco... trata talvez de botânica. Sabes sueco? CEC - Helena! HEL - Quem sabe se este livro pode salvar tudo? (Depois de um instante de reflexão) Sim, é possível! Tratará de botânica? CEC - Trata. HEL - Quem te disse? CEC - Ouvi dizer ao barão, trata das... HEL - Das... CEC - Das gramíneas. HEL - Só das gramíneas? CEC - Não sei; foi premiado pela Academia de Estocolmo. HEL - De Estocolmo. Bem. (Levanta-se). CEC - (levantando-se). Mas que é? HEL - Vou mandar-lhe o livro... CEC - Que mais? HEL - Com um bilhete. CEC - (olhando para a direita). Não é preciso; lá vem ele. HEL - Ah! CEC - Que vai fazer? HEL - Dar-lhe o livro CEC - O livro, e... HEL - E as despedidas. CEC - Não compreendo. HEL - Espera e verás. CEC - Não posso encará-lo; adeus. HEL - Cecília! (CECILIA sai).

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CENA IX HELENA e o BARÃO BARÃO - (à porta). Perdão, minha senhora, eu trazia um livro há pouco ... HEL - (com o livro na mão). Será este? BARÃO - (caminhando para ela). Justamente. HEL - Escrito em sueco, penso eu... BARÃO - Em sueco. HEL - Trata naturalmente de botânica. BARÃO - Das gramíneas. HEL - (com interesse). Das gramíneas! BARÃO - De que se espanta? HEL - Um livro publicado. .. BARÃO - Há quatro meses. HEL - Premiado pela Academia de Estocolmo? BARÃO - (admirado). É verdade. Mas. . . HEL - Que pena que eu não saiba sueco! BARÃO - Tinha notícia do livro? HEL - Certamente. Ando ansiosa por lê-lo. BARÃO - Perdão, minha senhora. Sabe botânica? HEL - Não ouso dizer que sim, estudo alguma cousa e leio quando posso. É ciência profunda e encantadora. BARÃO - (com calor). É a primeira de todas. HEL - Não me atrevo a apoiá-lo, porque nada sei das outras, e poucas luzes tenho de botânica, apenas as que pode dar um estudo solitário e deficiente. Se a vontade suprisse o talento... BARÃO - Por que não? O espírito do gênio é a paciência, dizia Buffon. HEL - (sentando-se). Nem sempre. BARÃO - Realmente, estava longe de supor que, tão perto de mim, uma pessoa tão distinta dava algumas horas vagas ao estudo da minha bela ciência. HEL - Da sua esposa. BARÃO - (sentando-se). É verdade. Um marido pode perder a mulher, e se realmente a amar, nada a compensará neste mundo, ao passo que a ciência não morre.... Morremos nós, ela sobrevive com todas as graças e cada descoberta é um encanto novo. HEL - Oh! tem razão! BARÃO - Mas, diga-me V. Senhoria tem feito estudo especial das gramíneas? HEL - Por alto... por alto... BARÃO - Contudo, sabe que a opinião dos sábios não admitia o perianto... (HELENA faz sinal afirmativo) Posteriormente reconheceu-se a existência do perianto. (Novo gesto de HELENA) Pois este livro refuta a segunda opinião. HEL - Refuta o perianto? BARÃO - Completamente. HEL - Acho temeridade. BARÃO - Também eu supunha isso. Li-o, porém, e a demonstração é claríssima. Tenho pena que não possa lê-lo. Se me dá licença, farei uma tradução portuguesa e daqui a duas semanas... HEL - Não sei se deva aceitar... BARÃO - Aceite; e não me recuse um segundo pedido. HEL - Qual? BARÃO - Que me deixe acompanhá-la em seus estudos, repartir o pão do saber com V. Senhoria. É a primeira vez que a fortuna me depara uma discípula. Discípula é, talvez, ousadia da minha par-te.... HEL - Ousadia, não; eu sei muito pouco; posso dizer que não sei nada. BARÃO - A modéstia é o aroma do talento e da graça. V. Senhoria possui tudo isso. Posso compa-rá-la à violeta, - Viola odorata de Lineu, - que é formosa e recatada...

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HEL - (interrompendo). Pedirei licença à minha tia. Quando será a 1a lição? BARÃO - Quando quiser. Pode ser amanhã. Tem certamente notícia da anatomia vegetal... HEL - Notícia incompleta. BARÃO - Da fisiologia? HEL - Um pouco menos. BARÃO - Nesse caso, nem a taxonomia, nem a fitografia... HEL - Não fui até lá. BARÃO - Mas há de ir... Verá que mundos novos se lhe abrem diante do espírito. Estudaremos, uma por uma, todas as famílias: as orquídeas, as jasmíneas, as rubiáceis, as oleáceas, as narcíseas, as umbelíferas, as... HEL - Tudo, desde que se trate de flores. BARÃO - Compreendo: amor de família. HEL - (à parte). O mestre é perigoso. (Alto) Tinham-me dito exatamente o contrário; disseram-me que o Sr. Barão era... não sei como diga... era... BARÃO - Talvez um urso. HEL - Pouco mais ou menos. BARÃO - E sou. HEL - Não creio. BARÃO - Por que não crê? HEL - Porque o vejo amável. BARÃO - Suportável apenas. HEL - Demais, imaginava-o uma figura muito diferente, um velho macilento, melenas caídas, olhos encovados. BARÃO - Estou velho, minha senhora. HEL - Trinta e seis anos. BARÃO - Trinta e nove. HEL - Plena mocidade. BARÃO - Velho para o mundo! HEL - Só uma cousa lhe acho inaceitável. BARÃO - Que é? HEL - A teoria de que o amor e a ciência são incompatíveis. BARÃO - Oh! isso... HEL - Dá-se o espírito à ciência e o coração ao amor. São territórios diferentes, ainda que limítrofes. BARÃO - Um acaba por anexar o outro. HEL - Não creio. Demais, houve e há sábios casados. BARÃO - Que seriam mais sábios se não fossem casados. HEL - Não fale assim. A esposa fortifica a alma do sábio. Deve ser delicioso para o homem que despende as suas horas na investigação da natureza, fazê-lo ao lado da mulher que o ampara e ani-ma, testemunha de seus esforços, sócia de suas alegrias, atenta, dedicada, amorosa. BARÃO - (depois de um instante de hesitação e luta). Falemos da nossa lição. HEL - Amanhã, se minha tia consentir. (Levanta-se) Até amanhã, não? BARÃO - Hoje mesmo, se o ordenar. HEL - Acredita que não perderei o tempo? BARÃO - Estou certo que não. HEL - Serei acadêmica de Estocolmo? BARÃO - Conto que terei essa honra. HEL - (cortejando). Até amanhã. BARÃO - Minha senhora! (HELENA sai e o BARÃO caminha para a direita, mas volta para bus-car o livro que ficara sobre o sofá).

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CENA X BARÃO e D. LEONOR BARÃO - (pensativo). Até amanhã! Devo eu cá voltar? Talvez não devesse, mas é interesse da ciência... a minha palavra empenhada... O pior de tudo é que a discípula é graciosa e bonita. Nunca tive discípula, ignoro até que ponto é perigoso... Ignoro? Talvez não. . . (Põe a mão no peito) Que é isto. . . (Resoluto) Eia, voltemos às flores e deixemos esta casa para sempre. (Entra D. LEONOR). LEO - (vendo o BARÃO). Ah! BARÃO - Voltei há dois minutos; vim buscar este livro. (Cumprimentando) Minha senhora! LEO - Senhor Barão! BARÃO - (sai e volta). Creio que V. Senhoria não fica me querendo mal? LEO - Certamente que não. BARÃO - (cumprimentando-a). Minha senhora! LEO - (idem). Senhor Barão! BARÃO - (vai até à porta e volta). A senhora Helena não lhe falou agora? LEO - Sobre quê? BARÃO - Sobre umas lições de botânica... LEO - Não me falou em nada. .. BARÃO - (cumprimentando) Minha senhora! LEO - (idem) Senhor Barão! (o BARÃO sai). Que esquisitão! Valia a pena cultivá-lo de perto. BARÃO - (reaparecendo). Perdão... LEO - Ah! que manda? BARÃO - (aproxima-se). Completo a minha pergunta. Sua sobrinha falou-me em receber algumas lições de botânica. V. Senhoria consente? (Pausa) Há de parecer-lhe esquisito este pedido, depois do outro que acabei de lhe fazer . . . LEO - Sr. Barão, no meio de tantas cópias e imitações humanas ... BARÃO - Eu acabo: sou original. LEO - Não ouso dizê-lo. BARÃO - E como V. Senhoria responde à minha pergunta? LEO- Deixe-me refletir. BARÃO – Cinco minutos? LEO - Vinte e quatro horas. BARÃO - Nada menos? LEO - Nada menos. BARÃO - (cumprimentando-a). Minha senhora! LEO - (idem). Senhor Barão! (Sai o BARÃO). CENA XI D. LEONOR e CECÍLIA LEO – Que idéia será essa de Helena? Para que deseja ela aprender botânica? CEC - (entrando). Helena! (D. LEONOR volta-se) Ah! é titia. LEO - Sou eu. CEC - Onde está Helena? LEO - Não sei, talvez lá em cima. (CECÍLIA vai para o fundo) Onde vais?... CEC - Vou. .. Vou concertar o penteado. LEO - Vem cá; concerto eu. (CECÍLIA aproxima-se de D. LEONOR) Não é preciso, está excelente. Dize-me: estás muito triste? CEC - (muito triste). Não, senhora estou alegre.

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LEO - Mas, Helena disse-me que tu... CEC - Foi gracejo dela. LEO - Não creio; tens alguma cousa que te aflige; hás de contar-me tudo. CEC - Não posso. LEO - Não tens confiança em mim? CEC - Oh! toda! LEO - Pois eu exijo... (Vendo HELENA, que aparece à porta do fundo, esquerda) Ah! chegas a propósito. CENA XII D LEONOR, CECÍLIA e HELENA HEL - Para quê? LEO - Explica-me que história é essa que me contou o barão? CEC e HEL - (com curiosidade). O barão? LEO - Parece que estás disposta a estudar botânica. HEL - Estou. CEC – (sorrindo) Com o barão? HEL - Com o barão. LEO - Sem o meu consentimento? HEL - Com o seu consentimento. LEO - Mas de que te serve saber botânica? HEL - Serve para conhecer as flores dos meus bouquets, para não confundir jasmíneas com rubiáceas, nem bromélias com umbeliferas. LEO - Com quê? HEL - Umbelíferas. LEO - Umbe... HEL - ...líferas. Umbelíferas. LEO - Virgem santa! E que ganhas tu com esses nomes bárbaros? HEL - Muita coisa. CEC - (à parte). Boa Helena! Compreendo tudo. HEL - O perianto, por exemplo; a senhora talvez ignore a questão do perianto... a questão das gramíneas... LEO - E dou graças a Deus! CEC - (animada). Oh! deve ser uma questão importantíssima! LEO - (espantada). Também tu! CEC - Só o nome! Perianto. É nome grego, titia; um delicioso nome grego. (à parte) Estou morta por saber do que se trata. LEO - Vocês fazem-me perder o juízo! Aqui andam bruxas, decerto. Perianto de um lado, bromélias de outro; uma língua de gentios, avessa à gente cristã. Que quer dizer tudo isso? CEC - Quer dizer que a ciência é uma grande coisa, e que não remédio senão adorar a botânica. LEO - Que mais? CEC - Que mais? Quer dizer que a noite de hoje vai estar deliciosa, e podemos ir ao teatro lírico. Vamos, sim? Amanhã é o baile do conselheiro, e sábado o casamento da Júlia Marcondes. Três dias de festas! Prometo divertir-me muito, muito, muito. Estou tão contente! Ria-se, titia, ria-se e dê-me um beijo! LEO - Não dou, não, senhora. Minha opinião é contra a botânica, e isto mesmo vou escrever ao barão. HEL - Reflita primeiro; basta amanhã! LEO - Há de ser hoje mesmo ! Esta casa está ficando muito sueca; voltemos a ser brasileiras. Vou escrever ao urso. Acompanha-me, Cecília; hás de contar-me o que há. (Saem).

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CENA XIII HELENA e o BARÃO HEL - Cecília deitou tudo a perder... Não se pode fazer nada com crianças... Tanto pior para ela. (Pausa) Quem sabe se tanto melhor para mim? Aquele professor não é assaz velho, como convinha e não acho que não passa de um urso, como titia lhe chama, um urso com patas de rosas. BARÃO - (aproximando-se). Perdão, minha senhora. Ao atravessar a chácara, ia pensando no nos-so acordo, e, sinto dizê-!o, mudei de resolução. HEL - Mudou? BARÃO - (aproximando-se). Mudei. HEL - Pode saber-se o motivo? BARÃO - São três. O primeiro é o meu pouco saber; o segundo é o meu gênio áspero e autoritário. HEL - Vejamos o terceiro. BARÃO - O terceiro é a sua pouca idade. Vinte e um anos, não? HEL - Vinte e dois. BARÃO - Solteira? HEL - Viúva. BARÃO - Nesse caso, quarto motivo: a sua viuvez. HEL - Conclusão: todo o nosso acordo está desfeito. BARÃO - Sim, é melhor que o esteja. HEL - Bem Sr. Barão, não desejo forçá-lo; está livre, irei procurar outro mestre BARÃO - Outro mestre! Não faça isso. HEL - Por quê? BARÃO - Porque... V. Senhoria é inteligente bastante para dispensar mestres. HEL – Bem, se é assim, irei queimar os olhos nos livros. BARÃO - Oh! seria estragar as mais belas flores do mundo! HEL - (sorrindo). Mas então nem mestres nem livros? BARÃO - Livros, mas aplicação moderada. A ciência não se colhe de afogadilho; é preciso penetrá-la com segurança e cautela. HEL - Obrigada. (Estende-lhe a mão). E visto que me recusa suas lições, adeus. BARÃO - Já vou retirar-me. Mas não desejava sair sem que V. Senhoria me dissesse francamente o que pensa de mim. Bem ou mal? HEL - Bem e mal. BARÃO - Pensa então.. . HEL - Penso que é inteligente e bom, mas caprichoso e egoísta. BARÃO - Egoísta! HEL – É isso mesmo! (Senta-se) Por egoísmo opõe-se às afeições de seu sobrinho; por egoísmo, recusa-me suas lições. Aposto que, - desculpe a indiscrição da pergunta, - aposto que nunca amou? BARÃO - Nunca. HEL - De maneira que nunca uma flor teve a seus olhos outra aplicação, além do estudo? BARÃO – Engana-se, depositei coroas de cravos no túmulo de minha mãe. HEL - Ah! BARÃO - V. Senhoria sabe o que tem sido a minha vida? Um claustro. Cedo perdi a família e, então, desposei a ciência que me tem servido de alegrias, consolações e esperanças. Deixemos po-rém, tão tristes memórias... HEL - Memórias de homem; até aqui eu só via o sábio. BARÃO - Mas o sábio reaparece e enterra o homem. Volto à vida vegetativa! Eu não passo de aparências, minha senhora, aparências de homem, de linguagem e até de ciência... HEL - Quer que o elogie? BARÃO - Não; desejo que me perdoe. HEL - Perdoar-lhe o quê?

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BARÃO - A recusa em lhe dar aulas. HEL – (Levanta-se) Tanto perdôo que o imito. Mudo igualmente de resolução e dou de mão ao estudo. BARÃO – (levanta-se também) Não faça isso! HEL – Faço! Não lerei uma só linha de botânica, que é a mais aborrecível ciência do mundo. BARÃO - Mas o seu talento... HEL – Tinha apenas curiosidade. BARÃO - É a chave do saber. HEL - Que adianta isso? A porta fica tão longe! BARÃO - É verdade! Então ... Serei seu mestre! HEL - Não! Respeito os seus escrúpulos. Existem ainda, penso eu, os quatro motivos que alegou. Deixe-me ficar na minha ignorância. BARÃO - É a última palavra de V. Senhoria? HEL - Última. BARÃO - (com ar de despedida). Nesse caso... aguardo as suas ordens. HEL - Que se não esqueça de nós. BARÃO - Crê possível que eu pudesse esquecer? Apenas vinte minutos, mas os melhores da minha vida, os primeiros que hei realmente vivido! A ciência não é tudo, minha senho-ra. Há alguma cousa mais, além do espírito, alguma cousa essencial ao homem, e. . . HEL - Repare, Sr. Barão, que está falando à sua ex-discípula. BARÃO - A minha ex-discípula tem coração, e sabe que o mundo da ciência é estreito para conter o homem todo; sabe que a vida moral é uma necessidade do ser pensante. HEL - Não passemos da botânica à filosofia. Sr. Barão, volte às suas amadas plantas, não quero prender-lhe mais. Adeus! (Inclinando-se para despedir-se). BARÃO - (cumprimentando) Minha senhora! (Caminha até à porta e pára). Não transporei mais esta porta? HEL - Já a fechou por suas próprias mãos. BARÃO – Senhora, dê-me uma única esperança. HEL – A esperança de quê... BARÃO - A esperança de quê... a esperança de... HEL - Mas não é preciso dizer mais: já advinhei. BARÃO - (alvoroçado). Adivinhou? HEL - Adivinhei que quer a todo o custo ser meu mestre. BARÃO - (friamente) É isto. HEL - Aceito. BARÃO – (triste) Obrigado. HEL - Parece-me que ficou triste?... BARÃO - Fiquei, pois só adivinhou metade do meu pensamento. Não adivinhou que eu... que eu ... HEL - Que. . . BARÃO - (depois de alguns esforços para falar) Nada... nada... LEO - (vindo de dentro com voz alta e severa). Não admito! Não admito!

CENA XIV HELENA, BARÃO, D LEONOR e CECÍLIA CEC - (entrando pelo fundo com D. LEONOR). Mas titia... LEO - Não admito, já disse! Não te faltam casamentos. (Vendo o BARÃO) Ainda aqui! BARÃO - Ainda e sempre, minha senhora. LEO - Nova originalidade. BARÃO - Oh! não! A coisa mais vulgar do mundo. Refleti, minha senhora, e venho pedir para meu sobrinho a mão de sua encantadora sobrinha.

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LEO - A mão de Cecília! CEC - Que ouço! BARÃO - O que eu lhe pedia há pouco era uma extravagância, um ato de egoísmo, além de descor-tesia que era, e que V. Senhoria já me perdoou. Vejo tudo isso agora... LEO - Não me oponho ao casamento, se for do agrado de Cecília. CEC - (baixo a HELENA). Obrigada! Foste tu. .. LEO - Vejo que o Sr. Barão refletiu. BARÃO - Não foi só reflexão, foi também resolução. LEO - Resolução? BARÃO - (gravemente). Minha senhora, atrevo-me a fazer outro pedido. LEO - Ensinar botânica a Helena? Já me deu vinte e quatro horas para pensar. BARÃO - Peço-lhe mais do que isso, V. Senhoria que é, por assim dizer, irmã mais velha de sua sobrinha, pode intervir junto dela para... (Pausa) . LEO - Para... HEL - Acabo eu. O que o Sr. Barão deseja é a minha mão. BARÃO - Justamente! LEO - (espantada). Mas... Não compreendo nada. Helena, o que me diz? HEL - Que quero três meses para pensar. BARÃO - Três meses é a eternidade. HEL - Uma eternidade de noventa dias. BARÃO - Depois dela, a felicidade ou o desespero? HEL - (estendendo-lhe a mão). Está na suas mãos a escolha. (à D. LEONOR) Não se admire tanto, titia; tudo isto é botânica aplicada. CEC – (ao jovem que entra) Henrique! (o jovem segura sua mão).

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Anexo 6- Texto preparado para o apresentador da peça

Texto do apresentador da peça (Henrique) Boa tarde a todos vocês, Senhoras e Senhores! Vamos assistir agora a uma peça muito interessante.

Ela se chama Lição de Botânica e foi escrita por Machado de Assis, no ano de 1906!

Mas é, ainda, uma peça muito atual, pois trata de dois assuntos que estão sempre na moda: o amor e a ciência. O amor pela ciência, a ciência do amor. Ih, que confusão!

Bem, veremos, então, uma linda história romântica!

Apresentemos suas personagens:

• Barão Sigismundo de Kernoberg: um famoso botânico sueco que está no Brasil para estudar a Flora da América do Sul. É um cientista importante e que só pen-sa naquilo, ou seja, estudar suas queridas plantas.

• Dona Leonor: uma senhora muito séria e educada, que vive no Rio de Janeiro,

com suas duas sobrinhas, Helena e Cecilia. • Helena: moça jovem, já viúva, muito esperta, sensível e inteligente. • Cecilia: é irmã mais nova de Helena, e que está perdidamente apaixonada por

seu vizinho Henrique, (um rapaz muito distinto!) que vem a ser sobrinho do res-peitável Barão.

As cenas se passam na casa de Dona Leonor, no Rio de Janeiro, no bairro do Anda-raí. O desenrolar dessa história vocês mesmos verão! Entre as cenas IV e V : – Meiga e linda Cecília, está tão apaixonada! Mas as coisas não serão fáceis para ela. Prestem muita atenção ao estranho pedido que o Barão, tio de Henrique, irá fazer à Dona Leonor!

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Entre as cenas VII e VIII: – Pobre e linda Cecília, está tão apaixonada! Mas agora quem poderá salvá-la?... Prestem atenção: Helena é uma moça muito inteligente! Quando encontra o livro esquecido pelo Barão, ela traça um plano para ajudar Cecí-lia. Vejam o que vai acontecer! Entre as cenas IX e X: – Helena é realmente muito esperta! Seu plano está dando certo! O barão ficou muito interessado. Mas Dona Leonor está ficando desconfiada! Será que Helena vai mesmo estudar Botânica? Conseguirá ela ajudar Cecília? Entre as cenas XII e XIII: – Pobre Cecília! Seu namoro está ameaçado! Sua tia não quer dar permissão para as aulas de Helena! E sem as aulas, como poderá convencer o Barão! Os jovens apaixonados estarão mesmo separados? Ou o amor vencerá esta história? Prestem atenção ao final!

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ANEXO 7 – Resumo do Trabalho apresentado no IX EPEB – FE-USP – São Paulo, Julho de 2004

HELENA E AS LIÇÕES DO BARÃO: O TEXTO LITERÁRIO EM AULAS DE CIÊNCIAS

Simone Rocha Salomão (Doutorado FE/UFF)

Marcos Aurélio Pereira Maciel (Rede Municipal de Ensino, Macaé/RJ) Aline de Paula Barreto Cortez (Fundação Educacional da Região dos Lagos, Cabo Frio/RJ)

Este trabalho relata a implementação de um conjunto de atividades sobre classifica-

ção biológica e noções de botânica desenvolvidas a partir de um texto literário, com turmas de 6a série do Ensino Fundamental em uma escola municipal de Macaé, RJ.

Inserido no Projeto de Doutorado Lição de Botânica: um ensaio para as aulas de ciências do Programa de Pós-Graduação da FE/UFF, cujo objetivo geral é refletir sobre as relações entre linguagens científica e literária e as possibilidades de inserção da literatura em aulas de ciências, tais atividades fazem parte da pesquisa de campo do referido Projeto. Os autores são, respectivamente, a pesquisadora, o professor de ciências regente das tur-mas e a auxiliar de pesquisa, graduanda em Ciências Biológicas.

As atividades incluíram aulas sobre biodiversidade e sistemática biológica; apresen-tações da peça de teatro Lição de Botânica, escrita por Machado de Assis, em 1906; ses-sões de discussão sobre a peça e sua articulação com conteúdos científicos e uma oficina para montagem de um herbário com espécimes dos jardins da escola e seu entorno.

Em trabalhos anteriores (Salomão 1998 e Salomão & Souza 2001 e 2003), temos sistematizado reflexões teóricas sobre as relações entre as diferentes linguagens sociais e experimentado as possibilidades de sua aproximação em aulas de ciências.

Com esse relato, apresentamos alguns resultados das atividades implementadas jun-to às turmas envolvidas, evidenciando o papel potencializador do texto literário para o en-riquecimento da prática pedagógica em ciências, e apontamos caminhos metodológicos para que os professores possam compartilhar essa perspectiva.

Bibliografia Citada:

Assis, M. Obras Completas – Teatro. São Paulo: Ed. Globo, 1997. Salomão, S.R. O Espaço Cultural na Escola Pública – Momentos Habitados. Campinas; FE/UNICAMP, 1998 (Dissertação de Mestrado). _______ e Souza, M.G. Histórias de Insetos: aproximações entre linguagem científica e linguagem poética. In: Anais do I EREBIO. Niterói, RJ, 2001. _______ e Souza, M.G. Te esconde, bem-te-vi: máscaras, literatura e ciências na alfabeti-zação. In: Anais do II EREBIO. São Gonçalo, RJ, 2003.