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Maria Inês de Carvalho Delorme Domingo é dia de felicidade: As crianças e as notícias Tese de Doutorado Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação do Departamento de Educação da PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para obtenção do título de Doutor em Educação. Orientador: Profª. Rosália Maria Duarte Rio de Janeiro Dezembro de 2008

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Maria Inês de Carvalho Delorme

Domingo é dia de felicidade:

As crianças e as notícias

Tese de Doutorado

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Departamento de Educação da PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para obtenção do título de Doutor em Educação.

Orientador: Profª. Rosália Maria Duarte

Rio de Janeiro Dezembro de 2008

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Maria Inês de Carvalho Delorme

Domingo é dia de felicidade:

As crianças e as notícias

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Educação do Departamento de Educação do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Profª. Rosália Maria Duarte Orientadora

Departamento de Educação - PUC-Rio

Profª Tania Dauster Magalhães e Silva Departamento de Educação - PUC-Rio

Profª. Zena Winona Eisenberg Departamento de Educação - PUC-Rio

Profª. Rita Marisa Ribes Pereira

UERJ

Profª. Silvia Pimenta Velloso Rocha UERJ

Prof. Paulo Fernando C. de Andrade Coordenador Setorial do Centro de

Teologia e Ciências Humanas

Rio de Janeiro, 09 de dezembro de 2008.

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora e do orientador.

Maria Inês de Carvalho Delorme

Graduação em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1977), Graduação em Pedagogia (1990) e Mestrado em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1994). Professora da rede pública municipal do Rio de Janeiro com lotação na MultiRio, onde atualmente dirige o Núcleo de Publicações desde 2001. Professora concursada da Faculdade de Educação da UERJ e Doutora (2005-2008) na área de Educação: Infância e Mídia, pela PUC-Rio.

Ficha Catalográfica

CDD: 370

Delorme, Maria Inês de Carvalho

Domingo é dia de felicidade: As crianças e as notícias / Maria Inês de Carvalho Delorme; orientadora: Rosália Maria Duarte – 2008. 290 f. ; 30 cm Tese (Doutorado em Educação)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. Inclui bibliografia 1. Educação – Teses. 2. Crianças. 3. notícias. 4. Televisão; I. Duarte, Rosália M. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Educação. III. Título.

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Agradecimentos À orientadora Rosalia Duarte, pela aposta, confiança e estímulo, além dos bons combates. À Vice-Reitoria Comunitária da PUC-Rio, pela bolsa de isenção de pagamento que tornou possível essa pesquisa. Aos meus pais, Fernando e Valda, pelo amor e apoio permanentes. Ao meu amado marido Celso, pé-de-valsa, amigo, companheiro, pai e padrasto exemplar. Aos meus filhos, Vicente, Eduardo, Artur e Helena, que gratificam todos os momentos e dias da minha vida, pela admiração mútua, amor e amizade definitivos. As bravas e amadas mulheres da família que fizeram acontecer relações viáveis e felizes entre a vida familiar, a profissional e a acadêmica, como mestras e doutoras: minhas irmãs Ana Teresa e Cacala, minha prima-irmã e comadre Angela M.Borba e minha tia Maria A. J. O. Borba.

À minha tia Maria Antonieta, a Dedei, uma tia superespecial e sinistra, como a chamam os sobrinhos, por conseguir aliar cumplicidade, competência e rigor acadêmico com as causas do coração, sem ressalvas. A dois professores emblemáticos que tive o privilégio de conhecer já adulta, amigos admiráveis, que conjugam competência com simplicidade: Regina de Assis e Leandro Konder. A Tânia Dauster, Rita Ribes, Silvia Pimenta, Patricia Corsino, Maria Apparecida Mamede e Zena W. Eisenberg, pela parceria e pelas críticas preciosas. A Joanna Miranda, ex-aluna, muito amiga e quase filha que tensiona com delicadeza os limites difusos entre quem/o quê/como ensina e aprende, além das vertigens cúmplices.

A duas amigas muito especiais das quais não desejo me afastar nunca, pelo que são e pelo que representam: Cristina Campos, que incita a professora que há em mim, e Martha Neiva, que despertou e continua provocando a jornalista que também me habita. À equipe do Núcleo de Publicações e Impressos da MultiRio, pelo exercício diário do trabalho que aprendemos a fazer juntos, sustentados na confiança, no suor, na troca e no bom humor indispensáveis.

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Resumo

Delorme, Maria Inês de Carvalho; Duarte, Rosália Maria. Domingo é dia de felicidade: as crianças e as notícias. Rio de Janeiro, 2008, 190 p. Tese de Doutorado – Departamento de Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Domingo é dia de felicidade é o título desta tese de doutoramento, voltada

para o exame de diferentes variáveis que possam contribuir para um melhor

entendimento das relações que as crianças estabelecem com as notícias oriundas

da televisão. A pesquisa configura-se como um estudo de cunho etnográfico sobre

crianças que freqüentam o primeiro ano do ciclo de formação em uma

determinada escola pública municipal da cidade do Rio de Janeiro, no período

escolar de 2007. No foco deste estudo, encontram-se crianças que se caracterizam

como sujeitos ativos, participativos, que gostam de opinar e que se sentem aptas a

questionar certos padrões da televisão e do mundo adulto, em situações interativas

com seus pares. Meu objetivo nuclear foi conhecer e compreender suas

preferências, os recortes que fazem do que vêem, seus sentimentos, modos de

relação entre suas experiências e as notícias televisivas, numa análise que

envolveu a produção, considerou dados de veiculação até alcançar a repercussão e

as marcas dessas notícias em suas vidas. Para isso, as crianças foram consideradas

como produtoras e consumidoras da cultura, configurando-se, assim, numa

audiência crítica também dos telejornais. Para conhecer os atributos dos

acontecimentos que permitem vir a veiculá-los como notícias na televisão e, ao

mesmo tempo, para ser possível entender as diferentes repercussões dessas

notícias na vida das crianças, houve uma aproximação teórica de áreas

diferenciadas como Comunicação Social, Educação e Teoria da Literatura,

articulação esta que se fez sempre norteada pelas possibilidades de alcance e

limite conceituais, cujos aproveitamentos impliquem a passagem de um campo

disciplinar a outro.

Palavras-chave: Crianças; notícias; televisão.

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Abstract

Delorme, Maria Inês de Carvalho; Duarte, Rosália Maria. (Advisor). Sunday is a happy day: children and television news. Rio de Janeiro, 2008, 190p. Thesis – Departamento de Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

The title of this dissertation is Sunday is a happy day. Here i analyse

different variables that may contribute to a better understanding of the

relationships established between children and the news originating in television.

The research as such has an ethnographic bias about children who attend the first

year of basic education in a municipal school in Rio de Janeiro, during the 2007

school term. In the core of this study these children are characterized as active

and participatory subjects who like to express opinions, who feel the aptitude for

questioning certain standards, as shown by television and the world of adults, in

interactive situations with their peers. My main objective was to get acquainted

and to understand their preferences, their development based on what they watch,

their feelings and expectations, and the modes of relationship between their

experiences and television news. The analysis involved television news

production, broadcasting data and its repercussion in their lives. Thus, children

were regarded as culture producers and consumers as well as a critical audience of

newscasts. In order to know the attributes of events that might become news on

television and at the same time to be able to understand the different repercussions

of such news in these children’s lives, the theoretical approach included diverse

areas such as Social Communication, Education and Theory of Literature. Those

were guided, which was always guided by the possibilities of conceptual limit and

range, allowing for the transition from one discipline to another.

Key-words: Children; news; television.

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Sumário 1 A professora, seus alunos e a televisão ....................................... 9

1.1 GRUPEM – Aproximação do tema da pesquisa ........................... 12

2 Domingo é dia de felicidade, uma introdução à tese .................... 17

3 Os passos e os percursos ............................................................. 22

3.1 Reflexões teórico-metodológicas ................................................... 22

3.2 A pesquisadora e as narrativas infantis ........................................ 28

3.3 Questões éticas que envolvem as relações entre crianças, a

pesquisadora e o professor ........................................................... 32

3.4 A escola e a turma ........................................................................ 36

3.5 Minha entrada no campo .............................................................. 38

3.6 Registro e análise de materiais empíricos .................................... 40

4 A televisão que vai à escola .......................................................... 43

4.1 As crianças, suas famílias e a televisão ....................................... 43

4.2 Crianças, professora e televisão ................................................... 65

4.3 Crianças e outras mídias, na escola ............................................. 70

4.3.1 As outras mídias ........................................................................... 73

4.3.2 “Notícia boa, nunca, nem no papel!” ............................................. 81

4.3.3 As crianças e as notícias da televisão .......................................... 82

4.3.4 Performance, agir como se .......................................................... 87

4.3.5 A ordem e a regra como proteção ................................................ 94

4.3.6 Padrões estéticos do telejornal: O casal William Bonner e Fátima

Bernardes ...................................................................................... 98

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4.3.7 “O ficcional e o imaginário” ........................................................... 103

4.3.8 “Perdido, notícias mais ou menos e notícias para trás” ................ 107

4.3.9 “Tem vezes que não, mas é muito raro, tem vezes!” .................... 113

4.3.10 A notícia é importante e por isso se repete? Ou se repete muito

e, por isso, acaba se tornando importante? .................................. 115

4.3.11 A produção das notícias ................................................................ 116

4.3.12 As fontes se alimentam delas mesmas ......................................... 117

4.3.13 Quando as fontes e os repórteres se confundem ......................... 118

4.3.14 Na televisão, a beleza também é fundamental ............................. 119

4.3.15 As câmeras de segurança como fontes: medo e desejo .............. 122

4.3.16 Bandidos são negros, pobres, sem família, sem casa e sem

escola ............................................................................................ 125

4.3.17 (In)visibilidade ............................................................................... 127

4.3.18 O medo de ser notícia ................................................................... 133

4.3.19 Quando eles foram os seus outros ............................................... 137

4.3.20 Editar, ver, editar de novo, ver de novo ........................................ 140

4.3.21 O caso Isabella Nardoni ou Pais matam filhos? ........................... 143

5 Encaminhando conclusões ........................................................... 146

6 Referências Bibliográficas ............................................................. 167

7. Anexos .......................................................................................... 171

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1 A professora, seus alunos e a televisão

Naquela manhã chuvosa de 1985, eu disse aos meus alunos que havia

acabado a hora do recreio, que parassem com aquela brincadeira de pique. Pedi para

que se levantasse aquele que permanecia deitado no chão e que viessem, todos, para

a sala de aula. Também lembrei para que não se esquecessem de dobrar e de trazer

os panos que estavam usando para brincar. Os que chegaram mais rápido perto de

mim expressaram com indignação e impaciência o tamanho do meu

desconhecimento: “Inês, a gente não está se sujando, o chão está seco; a gente só

está brincando de Tancredo.” E a turma foi se organizando com energia para me

explicar o que só eles sabiam. E seguiram: “O morto fica coberto com a bandeira,

parado, né? Morto. A gente tem que tirar a bandeira sem tocar nele, para ele não

acordar. Quando alguém toca ou esbarra no defunto, ele levanta, fica vivo, muito

zangado e sai correndo para pegar a gente.”

Essa história, que chamo de “situação–síntese”, aconteceu numa escola

situada na zona portuária do Rio de Janeiro, bairro do Caju.

De 1977 até 1994, fui professora alfabetizadora da rede pública. Naquele

período, mais especificamente no ano de 1985, o Brasil viveu a morte de Tancredo

Neves e, com isso, suas expectativas de mudança, conforme nossa História já

registra. O luto nacional e o funeral do político ocupavam amplamente a mídia, e

foi, em especial, o noticiário televisivo o responsável pelo contato daquelas

crianças com as imagens da morte, a que tiveram acesso direto, de forma contínua,

por mais de duas semanas, em domicílio.

Naquela época, não podia entender o(s) caminho(s) que juntos, crianças e

adultos, trilhávamos no processo de conhecimento individual e coletivo já

intermediado pela presença marcante e crescente da televisão. Portanto, fazia-se

necessário, desde então, compreender, com mais profundidade, a interação que

meus alunos estabeleciam com o que viam na tevê. Eles me faziam entender a

infância como uma etapa comum, pela qual todos passavam, mas, ao mesmo tempo,

comprovavam haver algo que se realizava de maneira muito peculiar, específica em

cada um deles. Vários aspectos, como época, lugar, relações familiares, etc.,

produziam modos próprios de ser criança, e estes aspectos personalizavam a

vivência da infância em cada uma das minhas crianças. Com isso, crescia em mim

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um desconforto necessário e produtivo, carregado de ambivalências,

imprevisibilidades, contradições e conflitos que me impunham o desafio de pensar

em televisão e audiência sob um prisma diferente daquele cristalizado pelo senso

comum. Não era possível aceitar a existência de uma relação linear e simplista que

colocava, de um lado, a televisão como emissora e, de outro, uma audiência infantil

homogeneizada, despreparada e passiva.

Desde então, vim observando as crianças interagirem criativamente com os

produtos e objetos que resultam dos expressivos avanços tecnológicos a que têm

acesso, cada vez num ritmo mais frenético, como o cinema, o rádio, a internet e os

celulares, e também com as notícias da televisão. Mais recentemente, as narrativas

ganharam sons, imagens, cores, movimentos e interatividade, tornando possível

construir e reconstruir o “era uma vez”, os casos e as histórias em diferentes

suportes e linguagens. Em paralelo, o mercado nitidamente veio estimulando o

consumo e, com isso, vem facilitando o acesso gradativo da população às novas

“tecnologias da informação, da comunicação e do conhecimento”, como parece

mais adequado nomeá-las, sob o viés do mercado.

Neste mundo altamente tecnologizado, está inserida a escola como uma

instituição social. Dentro dela, há crianças e professores com histórias, valores,

experiências prévias, expectativas e até mesmo com maior ou menor contato com

essas tecnologias, ou seja, há um encontro previsto e altamente estimulante entre

pessoas diferentes. Nesse espaço, espera-se que o professor regente1, aquele que

atua um ano letivo inteiro com uma mesma turma de crianças, esteja ciente de que

elas são pessoas diferentes, ainda que da mesma idade, que a interação delas tanto

será produtiva na resolução de desafios e de conflitos, quanto deverá ser geradora

de conflitos que precisarão ser administrados dentro/com o grupo. Esta

característica da sala de aula, também do espaço escolar, sugere que exista uma

intervenção atenta do professor para garantir e valorizar os espaços de fala e de

escuta de todos, num ambiente de respeito e de acolhimento das diferenças. Como

professora de crianças, essa conduta implicou sempre a possibilidade de

compreender e de partilhar a rede de significação simbólica que (des)unia meus

alunos, sem igualá-los. Essa rede de significados tecida na linguagem se sustentava

nas enunciações e narrativas. As conversas dos meus alunos sobre o que viam na

1 Refiro-me aqui ao professor II, como é classificado e nomeado pela Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro.

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televisão indicavam conhecimento e apropriação de muitas funções da narrativa

televisiva, como: entreter e informar e, ao mesmo tempo, propagar idéias, valores e

concepções de vida, reais e/ou muitas vezes imaginadas, algumas jamais

experimentadas, impactando o processo de constituição de suas identidades. As

narrativas, assim, cumpriam a função de tecer a existência entre os meios e a

sociedade, e, assim, escutar com atenção e buscar compreender as narrativas

infantis eram ações determinantes para se conhecer(em) o(s) modo(s) como as

crianças se sentiam parte do mundo, como entendiam e se expressavam no/sobre

este mesmo mundo. Eu julguei oportuno e esclarecedor ouvir e considerar as

histórias contadas pelas crianças a partir do que a televisão lhes oferecia como uma

possibilidade de transformação das práticas sociais que “falam” da sociedade e que,

ao mesmo tempo, constituem saberes acerca desta mesma sociedade. E, desde

então, pude supor que fosse a televisão o lugar de onde as crianças retiravam grande

parte do que sabiam para compreender o cotidiano e a vida.

A partir de 1995, concluído meu mestrado, passei a integrar o corpo docente

da Uerj (graduação de Pedagogia, nas áreas de Educação Infantil e de

Alfabetização) e, nessa condição, julguei pertinente incorporar aos meus planos de

cursos questões ordinárias da vida contemporânea que julgava imprescindíveis para

a formação universitária de professores e pedagogos, tais como: a) a dicotomia

existente ainda hoje entre os que pensam televisão (produtores) e os que consomem

(quase todos) os produtos televisivos; b) a ocupação crescente do espaço da

televisão na vida de professores e alunos, de todas as idades, e o quase total

desconhecimento da sociedade organizada sobre as características dessa forma de

linguagem; c) o desconhecimento por grande parte da sociedade quanto ao fato de a

televisão brasileira ser uma concessão estatal, o que possivelmente justifica uma

relativa imobilidade para buscar conhecer, desejar, discutir e questionar a qualidade

da programação oferecida; d) a tendência de professores e pedagogos em formação

a tomarem, com muita freqüência, como “perda de tempo” a possibilidade de

conversar na escola sobre o que se vê na tevê; e) uma desatenção para com os

aspectos comerciais que pautam e que submetem a programação da televisão aberta

e que, em grande parte, criam e endossam os vínculos com o consumo de bens

materiais e simbólicos, suscitando sonhos e demandas, além de disseminarem

fortemente o conceito do “descartável”; f) a prevalência de uma ótica do consumo

como elemento maléfico, atribuído à programação televisiva, em que esta,

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supostamente, seria a principal responsável pelas desigualdades socioeconômicas e

culturais do povo brasileiro. Nesse viés, estaria na televisão a causa das piores

mazelas contemporâneas, como a miséria, a violência e a falta de esperança. Essas e

muitas outras questões relativas ao oficio do professor e à função da escola no

mundo contemporâneo permaneciam, em mim, à busca de respostas e de

compreensão.

Por tudo isso, retornei à PUC-Rio, em 2005, desta vez como aluna do

Doutorado em Educação, para estudar e compreender melhor a relação das crianças

com as mídias, mais particularmente com a televisão.

1.1 GRUPEM2 - Aproximação do tema da pesquisa

Meu objeto de estudo emergiu da análise do material empírico reunido na

pesquisa Crianças e televisão, realizada entre 2004 e 2006, pelo Grupo de Pesquisa

em Educação e Mídia (GRUPEM), da Pontifícia Universidade Católica do Rio de

Janeiro (PUC-RJ), com apoio do CNPq e parceria institucional com a TVE/Rede

Brasil.

A intenção do referido grupo de pesquisa era coletar um material que lhe

possibilitasse abarcar não apenas as expectativas das crianças com relação à TV,

mas, mais diretamente, a relação que elas estabeleciam com o que viam

regularmente, incluindo gostos, interesses, críticas e grau de conhecimento da

linguagem e dos formatos televisivos.

Com esse viés, a pesquisa Crianças e televisão foi encaminhada como um

estudo de base quantitativa, considerando-se a dimensão da audiência infantil da

televisão brasileira, o que justifica a intenção à época de se coletarem dados entre

um significativo número de sujeitos de modo a ser possível traçar um panorama

geral da relação entre crianças e televisão. Naquele momento, inspirada em um

modelo de investigação desenvolvido pelo Fundo das Nações Unidas para a

Infância (Unicef) que vinha sendo desenvolvido em outros países, intitulado "TV

como te quiero", os pesquisadores do GRUPEM optaram por fazer uma chamada

2 Ver http://www.grupem.pro.br/. A pesquisa Crianças e televisão: o que elas pensam sobre o que aprendem com a tevê, ver Rev. Bras. Educ.Rio de Janeiro, n. 33, 2006, disponível em: http://www.scielo.br/scielo. Acesso em: 30 2008.

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pela televisão convidando crianças a participar da pesquisa com o envio de suas

opiniões. Inicialmente, buscava-se ainda obter elementos de comparação entre

crianças brasileiras e crianças de outros países.

Neste percurso, a equipe do GRUPEM optou por essa chamada pela

televisão apenas veiculada em âmbito regional e somente através de emissoras de

televisão públicas, em que a TVE/Rede Brasil garantiu a produção e veiculação de

um spot em que a pergunta dirigida às crianças era a seguinte: “O que eu penso da

tevê?”. (DUARTE, R. MIGLIORA, R. LEITE, C. 2006). Esse spot teve como

objetivo convidar crianças da Região Sudeste, com idades entre 8 e 12 anos, a

enviar cartas, desenhos ou mensagens eletrônicas para o grupo de pesquisa com

suas reflexões a respeito do que viam na televisão, do que gostavam e não gostavam

de ver, por quê. Para garantir um maior número de respostas, o GRUPEM envolveu

também os professores na campanha, e, para isso, foram confeccionados cartazes

dirigidos a eles, solicitando-lhes que estimulassem seus alunos a participar da

pesquisa. Os cartazes foram encartados no jornal Folha Dirigida.

Com este empenho de divulgação, a equipe do GRUPEM recebeu mais de

900 respostas, entre desenhos e textos. Todo o material foi catalogado e

identificado. Os textos, digitados e fragmentados em unidades de significação que

se configuraram na principal fonte de dados desta pesquisa.

Todos os textos foram analisados por todos os membros do grupo de

pesquisa, a partir de categorias teóricas (definidas previamente a partir da literatura

de referência), e categorias não-teóricas (extraídas da primeira leitura dos textos).

Isso permitiu a organização das informações, idéias, opiniões e reflexões expressas

pelas crianças a respeito dos diferentes canais de televisão a que têm acesso; dos

seus programas prediletos; da violência presente nos produtos televisivos; do papel

desempenhado pela televisão no seu cotidiano; das concepções delas acerca da

influência da televisão na sociedade, além de temáticas mais gerais, como consumo

e qualidade da produção televisiva.

Essa pesquisa realizada pelo GRUPEM está disponibilizada, hoje, em um

livro3 recém publicando que se configura como uma compilacão de grande parte

dos relatórios temáticos originados a partir da análise da empiria.

3 Duarte R. (org) – A televisão pelo olhar das crianças. SP: Editora Cortez, 2008.

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Em 2005, portanto, assim que ingressei no doutorado e no GRUPEM, em que a

análise do material estava iniciada, fortaleci minha intenção inicial de compreender

a relação que crianças estabeleciam com a produção audiovisual. A equipe do

GRUPEM estava debruçada sobre este material que, exposto ao olhar e às análises

sob diferentes viéses dos estudiosos e pesquisadores a ele dedicados. Nessa etapa,

coube a mim a análise de elementos que as crianças demonstravam recortar e

consumir a partir do que a televisão lhes oferecia e que envolvia materiais e

produtos, sentimentos, atitudes e comportamentos. Esses elementos podiam ser

reunidos sob o titulo Televisão e Consumo, tema e título final do relatório por mim

elaborado, estruturado a partir de duas categorias, não excludentes, que emergiram

do material produzido pelas crianças.

Uma das categorias extraída dos textos das crianças tomava a televisão

como uma “tecnologia de primeira necessidade 4 ”, um objeto de consumo

indispensável, considerando-se quatro outras necessidades básicas: a) a de se ter

pelo menos um aparelho de televisão com controle remoto; b) de companhia; c) de

pertencimento; d) de ter contato com sentimentos. A segunda englobou as

possibilidades de consumo de certos conteúdos como subprodutos da relação que

estabelecem com o que “esse eletrodoméstico” (tal como era entendida a TV por

grande parte das crianças) lhes disponibiliza. Dessa segunda categoria, fazem parte

outras “necessidades” de consumo: a) bens materiais e simbólicos; b) diversão e

fantasia; c) informação; d) conhecimento.

Ao fim da minha análise e dos demais trabalhos do GRUPEM, ficou

evidenciada a importância de serem desenvolvidas novas investigações que

mergulhassem com mais profundidade em certas questões sinalizadas pelas

próprias crianças do universo de pesquisa. Uma delas, que se destacou das demais

pela recorrência, consistia em buscar compreender melhor a concepção que as

crianças têm sobre as notícias da televisão, como estas se relacionam com o que

definem e recortam como tal, principalmente diante do repúdio e medo dos

noticiários da televisão, expressos pelas crianças que haviam participado da

pesquisa do GRUPEM .

4 NECESSIDADE, neste estudo, é entendida como uma categoria cultural que supera os aspectos bio-psico-físicos que caracterizam o ser humano como espécie.

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Neste ponto, houve uma sinergia imediata e densa entre a configuração de

minha vida pessoal e profissional, sempre entre a jornalista e a professora, diante

dessa complexa questão que envolvia as crianças e o mundo em que vivem. A

abrangência da questão, que, a meu ver, retrata e sofre muitas interveniências de

naturezas muito diferenciadas, exigia que eu delimitasse os alcances e as

possibilidades do meu futuro estudo. Assim, a abordagem do tema exigia uma

aproximação direta com as crianças na intenção de conhecer e de compreender o

conceito de notícia usado por elas, em que seria tomado como pontos de partida os

telejornais e os programas televisivos identificados por elas como fontes de

notícias.

O tratamento da empiria do GRUPEM indicava serem as “notícias da

televisão” um conceito ambíguo e difuso, uma vez que poderia abarcar avisos ou

anúncios de fatos e/ou situações de tempos passados, presentes ou futuros; esses

fatos poderiam não só estar referenciados em cenários e espaços variados, muitas

vezes simultâneos, como também integrarem dados, eventos e fatos ficcionais ou

imaginários. Essa pesquisa do GRUPEM deixou também para mim, como

pesquisadora, um pano de fundo que evidenciava uma tendência contemporânea de

convergirem jornalismo e ficção. Parecia haver movimentos simultâneos em dois

sentidos, provocando um deslocamento da ficção, por um lado, que cada vez mais

se afastaria do herói trágico, modelar e, por outro, a busca de um herói simpático,

desde que fosse plenamente identificado com o espectador, o que tornaria, assim, a

ficção cada vez mais documental5.

Ao mesmo tempo, o jornalismo, cada vez mais sensacionalista, já vinha

fazendo de suas matérias pequenos espetáculos, cheios de apelos emocionais, nos

quais a linguagem pretensamente poética, a música, a edição, a beleza plástica

pareciam procurar levar o espectador a um clima envolvente e embebido de

dramaticidade em que a emoção tomaria o lugar de uma pretensa escuta racional e

ponderada das notícias. Emoção e afeto, assim, pareciam conquistar um lugar até

então privilegiado nos domínios que pareciam destinados exclusivamente à

informação e à chamada “transmissão objetiva” de conhecimentos. E, como

5 A novela Páginas da Vida, veiculada em horário nobre pela TV GLOBO, de 10 de julho de 2006 até 2 de março de 2007, compunha sua trama com depoimentos de cidadãos comuns, em cenas gravadas ao vivo, nas ruas da cidade do Rio de Janeiro.

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decorrência disso, vieram a reboque novas perguntas que, durante o doutorado,

mereciam ser aprofundadas e respondidas.

Assim, foram esses encaminhamentos e um volume significativo de

questões e de dúvidas que justificaram a pesquisa que se segue sobre as crianças e

as notícias.

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2 Domingo é dia de felicidade, uma introdução à tese O objeto desta pesquisa é conhecer a compreensão que as crianças têm do

que seja notícia da televisão e como elas se relacionam com as mesmas. Para

realizá-la, decidi acompanhar as crianças e as notícias que chegam na escola,

tomando como pressuposto o fato de que certas notícias (oriundas da televisão)

deixam algum tipo de marca e de repercussão na vida dessas mesmas crianças.

Deste modo, tomei como material de análise a repercussão que as notícias

da televisão têm na vida das crianças, expressas por elas mesmas, para buscar

conhecer o que, como e por que certos aspectos do noticiário passam a integrar o

modo de cada um se ver, de ver o outro, de compreender e de se situar, de se

relacionar e de se entender “no/em relação ao” mundo social. As crianças

confirmaram haver elementos da televisão que são recortados de forma muito

pessoal, nem sempre intencional ou consciente, que ora são lembrados, ora

esquecidos, às vezes intencionalmente omitidos, que significam e que ecoam, a

partir dos quais cada uma delas se apropriou de um modo peculiar. Por meio dessas

apropriações, estabelecem-se ainda possibilidades de relações e de trocas

simbólicas entre as crianças e delas com os adultos da escola que emergiam no

cotidiano escolar.

Antes de iniciar uma apresentação da configuração desta tese em capítulos,

é importante estabelecer um posicionamento desta pesquisa diante dos chamados

“estudos de recepção”. Não entendo os modos de recepção como menos

importantes, menos complexos e nem pouco relevantes e, assim, não desconsidero

as circunstâncias particulares e diferenciadas relativas ao modo como as pessoas

assistem à televisão e seu impacto destas na forma como se relacionam e interagem

com o que lhes é apresentado. No entanto, o momento e a circunstância da recepção

não se constituem nos objetos desta pesquisa, mas sim os seus resíduos

significativos ou fragmentos perceptivos, as repercussões ou marcas que deixam

nas crianças como o resultado de complexas combinações que busquei entender

neste estudo sobre e com as crianças.

Este estudo aconteceu durante um ano letivo, de fevereiro a novembro de

2007, em uma escola pública municipal, localizada na Zona Oeste do Rio de

Janeiro, com uma turma de crianças de 7 anos, em média, no primeiro ano do ciclo

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de formação, e se caracterizou como uma pesquisa qualitativa de cunho

etnográfico.

Essa pesquisa está aqui estruturada e se inicia com um texto de Abertura em

que o trajeto pessoal e profissional da pesquisadora justifica seu retorno à

universidade e a uma área determinada de estudo que se coaduna com a tese ora

apresentada. O capítulo 1 se configura como uma aproximação ao tema da

pesquisa, enquanto o capítulo 2, esse texto que está em curso, vem a ser a

Introdução à Tese como um todo e, por isso, cada um dos capítulos vem sendo

apresentado com uma breve indicação teórica sobre os conceitos de base utilizados

neles. O capítulo 3, Os Passos e os Percursos, se destina a apresentar e discutir as

decisões metodológicas em sua relação direta com os aportes teóricos. O capítulo 4,

intitulado A televisão que vai à escola é o mais denso e o que justifica a importância

deste estudo. Nele, está apresentada toda a empiria organizada em três grandes

eixos na globalidade de sua análise, ou seja, de modo articulado com os preceitos

teóricos para ser possível alcançar o objetivo desta tese. As categorias identificadas

emergiram do próprio campo e tiveram sua origem na relação do

pesquisador-investigador com o mesmo, diante de sua complexa dinâmica.

Segue-se o capítulo 5, no qual são apresentados os aspectos conclusivos em que as

características deste tipo de pesquisa sugerem o título À Guisa de Conclusões. A

finalização da tese se dá com as Referências Bibliográficas e os documentos em

anexo, capítulos 6 e 7, respectivamente.

Para dar continuidade à Introdução, objeto do capítulo de mesmo nome,

passo ao Capítulo 3, Os Passos e os Percursos, destinado à metodologia. É sabido

que as estratégias metodológicas estabelecidas para a pesquisa não só têm relação

estreita com os aportes teóricos previamente pensados, como funcionam como

elementos questionadores, um do outro, na busca por atender à complexidade do

campo. Assim, passada a fase inicial em que o pesquisador já pode ver uma certa

configuração do campo, as bases teóricas e algumas alternativas metodológicas

precisaram ser revistas. Ainda assim, determinados pilares teóricos sustentadores

deste estudo não foram e nem poderiam ser alterados, como a concepção de criança

como sujeito de direitos, ativo e participativo, que se caracteriza pelo que é, desde

que nasce, e não pelo que lhe falta sob a ótica do senso comum e do mundo adulto,

como propõem os estudiosos da Sociologia da Infância e, mais precisamente,

aqueles que estudam as culturas infantis, como Manuel Jacinto Sarmento (2007),

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professor da Universidade do Minho, em Braga, Portugal. Em pesquisas dessa

natureza, os instrumentos metodológicos de costume são a observação e as

entrevistas, individuais e coletivas, reconhecidos os seus limites e possibilidades,

também as gravações de áudio e as videogravações. Uma preocupação

teórico-metodológica que permeou todo o trabalho de campo consistiu em garantir

espaços para que as crianças valorizassem e respeitassem as diferenças entre elas,

proporcionando, sempre que possível, circunstâncias de deslocamentos em que

pudessem tanto tomar contato com outros-diferentes, verem a si mesmas como

outros, além de me disponibilizar a ser conhecida e questionada por eles como um

outro, adulto e pesquisador.

Ainda nesse mesmo capítulo 3, destinado à metodologia, foram

incorporadas, portanto, questões referentes à escolha da escola, a minha entrada na

escola, a uma caracterização detalhada da configuração desse campo, que se

constitui no meu universo de pesquisa. Também há neste capítulo uma discussão

sobre os compromissos éticos que se impõem quando se pesquisa sobre as crianças

tomando as mesmas como sujeitos e protagonistas da pesquisa. O capítulo se

conclui com as explicitações das formas de registro utilizadas, dos procedimentos

usados na análise dos dados, bem como o uso de outros recursos metodológicos no

afã de validar e legitimar as minhas interpretações expondo-as às crianças, aos

sujeitos da minha pesquisa.

O capítulo 4, intitulado A televisão que vai à escola, é onde este exercício

acadêmico se justifica como uma tese em que se busca conhecer e demonstrar como

determinado grupo de crianças entende o que sejam as notícias da televisão, além

de buscar identificar e compreender como essas mesmas crianças se relacionam

com o que entendem por notícia, em todas as suas dimensões, da produção aos

textos que a caracterizam, a origens e efeitos. Para ser possível adensar as

categorias elencadas relacionando-as criticamente com as teorias destinadas a

sustentá-las, esse capítulo foi dividido em três grandes eixos: 1- As crianças, suas

famílias e a televisão; 2 - As crianças e as outras mídias na escola; 3 - As crianças e

as notícias da televisão.

No primeiro eixo do capítulo em questão, identificado como 4.1., As

crianças, suas famílias e a televisão, busquei entender como se dava a dinâmica de

aproximações e de distanciamentos entre as crianças para conhecer os seus critérios

de agrupamentos temporários porém freqüentes em que o ideário de Georg Simmel

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(1987) contribuiu para a análise. Nesse percurso, Simmel (idem) favoreceu a

compreensão do dinamismo das interações sociais entre as crianças do grupo.

A relação de cada uma das crianças com os adultos que são identificados por

elas como sendo os seus responsáveis é uma questão complexa – muito

diferenciada em relação à compreensão dos papéis sociais atribuídos à maternidade

e à paternidade, ao que supostamente cabe a cada gênero –, uma vez que se trata de

homens e mulheres nos quais se destaca uma característica comum, o “desejo de

família”. Segundo Roudinesco (2003), no livro A Família em Desordem, o “desejo

de família” vem crescendo nos últimos anos, ao mesmo tempo em que a autora

observa uma pressão da sociedade para legitimar todos os rearranjos familiares

devido à busca social de normatização, ou seja, por uma forte vontade de

integração e de pertencimento.

Nesse primeiro eixo do capítulo 4, discutem-se ainda as parcerias eventuais

entre crianças e adultos, tendo como foco a televisão, a expectativa de

(des)encontros pela importância do aparelho em suas vidas e o que ele proporciona,

as escolhas e preferências de cada um. Pode-se dizer ainda que as crianças desse

grupo vivam e se confrontem com circunstâncias e situações muito adversas onde

muito lhes falte, que elas brincam, riem e jogam de modo muito envolvente e

criativo, como defende Sarmento6, no texto Imaginário e Culturas da Infância

(2003, p.2). E mais que, nesse aspecto, o fictício e o imaginário sejam

instrumentais para o jogo, embora resida neste último (no jogo), a estratégia mais

evidente na distinção ente um e outro. Essa distinção e tais conceitos são tratados ao

longo da discussão que travei, me valendo do ideário de Wolfgang Iser (1996),

estudioso alemão inscrito no campo da Teoria da Literatura. As articulações feitas

entre os saberes dessa disciplina e da Educação se deram pela recorrência ao

conceito de performance. Nesse sentido, quero deixar claro que, embora não deseje

desconectar esse conceito de performance das reflexões de Iser, parti da defesa e da

conceituação interligada que o teórico fez sobre real, ficcional e imaginário. Isto

porque penso que são das relações que esses três termos estabelecem entre si que a

6 Este texto foi produzido no âmbito das atividades do Projeto “As Marcas dos Tempos: a Interculturalidade nas Culturas da Infância”, Projeto POCTI/CED/49186/2002 , financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Baseia-se numa conferência proferida no âmbito das Jornadas “Educação e Imaginário”, realizadas na Universidade do Minho, Portugal, em Março de 2003.

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performance assume, no campo da Educação, uma especificidade de bom

rendimento para as reflexões aqui estabelecidas.

A relação entre as crianças, a professora e a televisão e, ainda, a relação das

crianças com as outras mídias, na escola, estão discutidas em seguida, dentro do

mesmo capítulo 4, nos eixos 4.2. e 4.3.

Na tese apresentada, parte do capítulo 4 se refere à relação das crianças com

as outras mídias na escola, onde sobressai o peso do texto e da estética audiovisual

sobre as outras mídias, principalmente pela idade e pelo perfil socioeconômico das

crianças. O perfil das crianças e suas práticas cotidianas indicam ser a televisão a

principal fonte de onde recortam as notícias que vêem e que ouvem e, ainda, que

essas características típicas da televisão (poder ver e ouvir) sejam elementos

diferenciais quando se discute os aspectos relativos à veracidade e à atualidade das

notícias, em outras mídias. Aqui nesse capítulo, nitidamente as crianças expressam

alguma desconfiança e uma imensa dificuldade para explicar o que sentem como

uma possibilidade de manipulação das representações do mundo em que vivem em

várias mídias, também na televisão.

A outra parte e eixo desse capítulo, se dedica à discussão sobre As Crianças

e as Notícias da Televisão, em que foram feitas aproximações da Educação com

áreas afins, como já havia sido iniciado, com a Teoria da Literatura de Iser, para

sustentar as relações entre os aspectos ficcionais e imaginários e, agora, com a área

de abrangência da Comunicação Social. Fui buscar em Silva (2005), no campo do

Jornalismo, que é parte da área de abrangência da Comunicação Social, certos

valores-notícia para definir o caráter de noticiabilidade dos acontecimentos. A

produção de notícias e de um telejornal sugeriram a retomada do conceito de

performance de Iser para explicar os aspectos relativos ao agir como se (1996).

Nesse capítulo, portanto, foram apresentadas e discutidas as concepções

infantis sobre padrões estéticos dos jornalistas e dos telejornais, sobre critérios de

importância, de veracidade, de credibilidade. Ficaram muito presentes elementos

como uma tensão entre o medo e o desejo de aparecer na televisão e, ainda, o que

chamei de (in)visibilidade dessas crianças na mídia, retomando certos preceitos

teóricos de Sarmento(2007, p.25-49).

Segue o capítulo 5, que se refere aos efeitos conclusivos desta tese, as

Referências Bibliográficas, no capítulo 6 e os documentos em anexo, no capítulo 7.

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3 Os passos e os percursos 3.1 Reflexões teórico- metodológicas

É durante o período de permanência do pesquisador no campo que os

aportes teóricos que constituem a base teórica da pesquisa são postos à prova. Foi

na interação da pesquisadora com a globalidade das experiências vividas e

imaginadas pelas crianças que emergiram recorrências, discrepâncias e

ambigüidades que tensionaram as escolhas, as decisões prévias e a flexibilidade da

pesquisadora.

À medida que o investigador observa e captura, registra e analisa cenas e

situações, depoimentos e relatos, sempre que possível considerando os seus

contextos, vão emergindo sentidos com certa regularidade e, também,

eventualmente, aspectos que até então não tinham sido pensados. È o material

coletado que exige do investigador movimentos de aproximações e de

distanciamentos para ser possível identificar os grupamentos de estruturas

recorrentes, carregadas de sentido, que se configuram em categorias.

Essa estruturação da empiria em categorias foi se constituindo ao longo do

processo de interação com o campo e, assim que foram configuradas como tal, elas

passaram a funcionar como se fossem trilhas de acesso e de visibilidade sobre as

relações que as próprias categorias estabeleciam entre si, sobre a articulação delas

com os sentidos, sem negar as contradições e as ambigüidades existentes.

Deste modo, nessa movimentação composta de aproximações e de

distanciamentos, os procedimentos metodológicos da pesquisa são questionados

pelos aportes teóricos previamente pensados, e vice-versa, no afã de atender à

complexidade do campo. As categorias elencadas também vão sendo questionadas

de modo a verificar se as mesmas são adequadas para acolher e permitir analisar o

material coletado de forma integral, sem qualquer tipo de corte, restrição ou

omissão de modo a fazer com que a empiria venha a caiber nas categorias já

pensadas.

Passada a fase inicial de conhecimento mútuo, em que se tornou possível

identificar uma configuração do campo, foi se tornando necessária uma revisão na

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base teórica definida inicialmente e, também, a inclusão de algumas alternativas

metodológicas diante de alguns aspectos que emergiram pela sua força,

abrangência e complexidade. Esses aspectos estão tratados nos capítulos que se

seguem, em que apresento cada uma das categorias elencadas com as abordagens

teóricas prevalentes, em cada caso.

É importante ressaltar que foram estabelecidas a priori algumas concepções

sustentadoras deste estudo das quais ele não poderia se desviar, em quaisquer

circunstâncias, sob o risco de invalidar a pesquisa em si, na sua totalidade. E uma

concepção de base, sobre a qual procurei operar como um pilar de sustentação

inegociável, referia-se a uma concepção de criança como sujeito de direitos, ativo e

participativo, que se caracteriza pelo que é, desde que nasce, e não pelo que lhe falta

sob a ótica do senso comum e do mundo adulto.

Uma característica comum a pesquisas como esta implica que ela aconteça

onde exista e seja legitimado um espaço garantido de encontro entre sujeitos, e,

nestes casos, os instrumentos metodológicos de costume são a observação e a

entrevista, individuais e coletivas, reconhecidos os seus limites e as suas

possibilidades.

No entanto, em geral, a riqueza do campo sugere que seja mantido um certo

cuidado para não escapar do que e de como se busca conhecer, ainda com maior

apuro quando as crianças são entendidas como os sujeitos da pesquisa e se deseja

garantir sua autoria e protagonismo numa circunstância em que elas e o pesquisador

precisam se dar a conhecer mutuamente. Assim, como buscava conhecer a relação

que as crianças estabelecem com as notícias da televisão, precisei destacar certos

aspectos em detrimento de outros, não por serem menos importantes, mas para

apurar o foco no meu objeto de estudo.

Deste modo, julguei prudente explicitar alguns pontos-chave que busquei

manter vivos nesta pesquisa, tal como foram defendidos por Maria Thereza Freitas

(2003), citados aqui na ordem proposta pela autora: 1. A necessidade de a fonte de

dados ser o contexto onde cada uma das crianças vive, como um sujeito particular

único, diferenciado dos outros, e, ao mesmo tempo, entender o lugar delas como

parte de uma totalidade social; 2. a importância de buscar conhecer os fenômenos

daquela determinada realidade social em sua complexidade, em sua totalidade; 3. a

ênfase da coleta dos dados estar centrada na compreensão pautada na descrição,

incluindo-se aí os modos de relação entre cada criança e seu grupo, sua comunidade

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escolar, com a professora e vice-versa; 4. a garantia do meu lugar como

pesquisadora sendo parte da investigação, capacitada a estabelecer relações

intersubjetivas com os sujeitos da pesquisa, sem poder perder de vista o meu lugar

sócio-histórico, diferenciado e exotópico; 5. tomar a situação de pesquisa como um

espaço de compreensão e de reflexão para os sujeitos da minha pesquisa e também

para mim, como pesquisadora, onde a profundidade do conhecimento deveria valer

mais do que sua precisão, e da qual eu não precisaria esperar nenhum “efeito

conclusivo”, no sentido de alcançar verdades fechadas ou definitivas.

Nesse viés, trabalhamos com situações de entrevistas, tendo como objetivo

a mútua compreensão, ativa e responsiva, entre mim e as crianças, em pares ou em

pequenos grupos, atendendo às minhas demandas e também às deles, buscando

sempre valorizar e resguardar a interação e os espaços de diálogo, garantindo a

enunciação de cada um, bem como a alternância dos sujeitos falantes, para que

todos – eles e eu – fôssemos tanto ouvintes como locutores.

Vale destacar que o trabalho acadêmico sustentado nos princípios da

alteridade funciona em sentidos simultâneos e desafiadores. Neste caso, em

primeiro lugar, eu desejava me permitir conhecer e ser vista pelas crianças sob o

olhar alteritário delas em relação as imagens de criança a elas impostas pelo mundo

adulto. A professora, a jornalista e a pesquisadora que vivem em mim também

tensionaram uma à outra de forma alteritária, o que, além das vertigens que

provocou em muitas situações, exigiu-me revisar as prioridades e os caminhos.

Minha vida como professora, jornalista e, agora, pesquisadora, mantinha-se

pautada no preceito bakhitiniano de que para haver compreensão (1988, p. 132),

precisaria haver pelo menos duas consciências em diálogo, opondo ao interlocutor

sua contrapalavra nesse processo dialético de construção de sentidos, e essa

conduta facilitava a defesa das entrevistas em pares, sempre que possível, e também

das chamadas entrevistas narrativas.

E, nesse processo de construção de sentidos na escola, é importante chamar

atenção para o elevado teor de complexidade que envolve a relação do professor

com seus alunos, além da presença de um outro, o pesquisador, na sala de aula.

Hoje, há uma série de estudos pertinentes e oportunos sobre esse tipo de

circunstância e relação que, inegavelmente, permeia toda a pesquisa, assim como

deixa marcas sobre ela.

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Um elemento totalmente imprevisto na pesquisa e que a enriqueceu

significativamente, foi proposta, por parte das crianças, a criação de um telejornal,

encampado pela professora e no qual, diferentemente dos jornais escolares feitos

até então, as notícias não estariam referenciadas na comunidade escolar, mas na

mídia (em especial na mídia impressa), para numa etapa seguinte serem

transformadas ou adaptadas para a televisão, tal como foi proposto pela professora

regente da turma.

Todo esse processo foi planejado e encaminhado pela professora. Grande

parte dele foi filmada por duas câmeras com microfones (de mão e um boom) para

tornar possível que as crianças se vissem e escutassem suas vozes na televisão,

etapa em que colaborei ativamente com os recursos técnicos necessários, tanto para

tornar possível atender ao desejo das crianças, quanto para obter o registro

audiovisual de uma atividade muito enriquecedora para este estudo.

Essa filmagem resultou em mais de duas horas de gravação feitas por duas

câmeras, uma Super VHS da escola e outra, Betacam, que foi levada por mim e

operada por dois profissionais da MULTIRIO (Empresa Municipal de Multimeios

da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro) desde a fase de planejamento coletivo da

tarefa até o final da gravação.

No entanto, apesar do reconhecimento e de terem sido considerados aqui

todos os procedimentos, inclusive a produção do telejornal, vale insistir que essa

pesquisa tenha se sustentado basicamente na coleta de dados feita no meu caderno

de campo, onde foram feitos os registros diários do que considerei significativo

para o estudo, onde procurei registrar a interação das crianças comigo, entre elas ,

delas com a professora e com outras crianças e adultos da escola.

Eventualmente me utilizei de um audiogravador, muito mais para me

permitir interagir “inteira” em certas ocasiões, sem a preocupação de escrever e de

registrar, do que por ter a pretensão de que a audiogravação pudesse captar a

globalidade do que ali acontecia. Havia em mim a certeza de que os recortes que

aconteciam no percurso imprimiriam as minhas marcas como pesquisadora em

relação estreita com o campo, além da impossibilidade assumida de ser possível

capturar tudo.

Acho importante dizer que a professora mostrava se esforçar para, de

alguma forma, ela e suas crianças virem a contribuir para os meus estudos. Assim,

por mais cuidado que eu tenha tido, ainda que sem qualquer intenção de passar em

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branco pelo grupo, percebi a imagem da professora sobre um outro, pesquisador,

que exigiu dela um tipo de esforço no sentido de atender às expectativas do que eu

estaria buscando naquele espaço. Ainda assim, a minha interação com ela e com as

crianças se deu sem problemas e, aos poucos, ela pôde perceber que ouvir as

crianças era importante para mim, muito mais do que encontrá-las caladas,

organizadas em suas mesas, porém silenciosas e desmotivadas.

Resta informar que as alternativas metodológicas utilizadas foram

devidamente autorizadas pelos responsáveis e pela equipe da escola, e em nenhuma

situação foram introduzidas antes mesmo de terem sido apresentadas às crianças

para que entendessem os encaminhamentos, as razões para tais procedimentos

sempre acompanhadas de um acordo tácito em que elas poderiam decidir não se

deixar gravar ou filmar, ainda que com autorização dos adultos. Essas questões

relativas à ética na pesquisa com crianças estão tratadas mais à frente, neste

capítulo. Ainda que o uso do audiogravador tenha acontecido pouquíssimas vezes,

e as crianças pareceram não se interessar nem expressar qualquer curiosidade em

relação a ele. O encontro com o gravador portátil suscitava nelas um tipo de

lembrança e de desejo que as levava a me pedir, com insistência, para que eu

levasse uma máquina fotográfica digital, para dar “para eles se verem na máquina!

Gravador é chato porque não tem cara, só a voz da gente. A minha boca está aqui, ó,

eu falo tudo de novo!” (JH, mo, 7 anos). E pediam: “Tia, gosto mais daquele outro

seu gravador digital, gravador não, aquele de fotos que a gente se vê. Traz tia, deixa

eu mesmo usar? Deixa, deixa tia.”(VS, mo, 6 anos; LS, ma, 7 anos)

Um outro dado relevante e que me causou um relativo desconforto se referia

ao fato de as crianças me chamarem de “tia”. Nunca, em quase 20 anos de

magistério, meus alunos me chamaram de outra forma que não fosse o meu nome.

No entanto, diante de uma relação já estabelecida com os adultos da escola, em que

todos eram assim tratados, não me opus e busquei não expor o meu desconforto.

Aconteceu, ainda, de as crianças fazerem algumas atividades gráficas sobre

o que gostavam, ou não, de ver na televisão, também sobre seleção de notícias do

jornal impresso para ser possível montar o telejornal. Nesses casos, eu procurava

escutar as crianças enquanto faziam a atividade e, em algum momento posterior, em

pequenos grupos, eu buscava conversar com elas, retomar a atividade e a

circunstância em que ela aconteceu.

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Em trabalhos desta natureza, em que o registro no caderno de campo do

pesquisador é a fonte por excelência da coleta de dados e da geração do material de

análise, alguns cuidados precisam ser tomados de modo a garantir a personalidade

do pesquisador no seu estudo, sem, no entanto, que ele se confunda com o campo,

para ser possível fazer as aproximações e os distanciamentos necessários não só

para a realização do estudo mas, também, para a validação do mesmo.

Estabeleci para mim, desde o início da pesquisa de campo, alguns

procedimentos que me permitiriam minimizar os riscos de direcionamento, para ser

possível identificar os aspectos subjetivos e para conhecer aspectos gerais e

sistêmicos de funcionamento do grupo, que, no percurso, às vezes até em um único

dia, se montou e se remontou em diferentes configurações, em contextos variados.

Nesse sentido, precisava reconhecer e lidar com a necessidade de buscar as

formas possíveis de validar as minhas escutas, leituras e interpretações, na medida

em que o processo interpretativo de captação dos sentidos funcionava a partir dos

meus recortes e registros e, desse modo, como pesquisadora, era também um

instrumento importante na investigação. Assim, para ser possível conhecer de que

modo as notícias da televisão deixavam suas marcas naquelas diferentes crianças

que compunham o grupo, eu precisava buscar as confirmações possíveis de que as

interpretações estabelecidas atendiam ao ponto de vista delas, e não aos meus nem

aos da professora, o que não era uma tarefa simples.

Decidi então trabalhar com métodos de triangulação, usados em pesquisas

qualitativas realizadas com crianças, em que o pesquisador pode contrastar

materiais impressos (trabalhos gráficos) produzidos pelas crianças com seus

próprios depoimentos registrados no caderno de campo, conversas, fichas

documentais disponíveis na escola e as videogravações, por exemplo. Esse trabalho

foi feito e está indicado no capítulo referente à análise do campo. No entanto,

sempre que foi possível, procurei incluir as crianças nessa triangulação, na qual, em

pequenos grupos, procurávamos conversar, rever e ouvir delas algumas

informações sobre critérios utilizados por elas para a seleção e o recorte de algumas

notícias em detrimento de outras. Essas triangulações se deram a partir de decisão

metodológica que permitia que eu me colocasse como instância mediadora numa

das pontas do triângulo, na outra as crianças em pequenos grupos e na terceira,

trabalhos, fatos, histórias contadas, preferências e experiências. Ou seja, nessa

terceira ponta poderiam estar trabalhos gráficos ou audiovisuais como o telejornal,

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um determinado episódio de certo programa de televisão e, com freqüência,

algumas notícias veiculadas pelo telejornal ou o próprio, como um formato

específico de programa.

Assim, nesse mecanismo de depuração do processo interpretativo, também

a videogravação do telejornal foi a elas apresentada de modo a se verem, se

escutarem e participarem da edição desse material na escola. Foi levado para a

escola um computador com editor de imagens, com possibilidades gráficas e de

inserção de sonorização; nesse momento, a participação das crianças foi

determinante para perceber como se viam, as imagens que tinham de si, das outras

crianças do seu grupo e, em especial, como entendiam a produção das notícias dos

telejornais.

Na última etapa de visionamento, em que o vídeo foi apresentado a elas já

editado, segundo os critérios estabelecidos por eles, em grande parte feito na escola

em dias anteriores, sempre com a participação deles, também procurei filmar esse

visionamento para que eles pudessem, ainda, ver como reagiram ao verem a si

mesmos depois dos reajustes propostos. Esse telejornal, em sua forma final, ficou

com duração aproximada de 15 minutos.

Depois de editado com a co-participação das crianças, o vídeo foi entregue a

elas, em cópias em DVD para cada uma, também para a escola e para professora.

3.2 Lukacs A pesquisadora e as narrativas infantis

Narrar ou Descrever? foi o título dado por Lukacs a um ensaio escrito por

ele, traduzido e publicado no Brasil pela editora Civilização Brasileira em 1964. A

partir desse ensaio, em que o húngaro Lukacs defende a sua concepção de narrativa,

estabelecendo um contraponto com a concepção de Benjamim expressa no texto O

Narrador, o filósofo Leandro Konder escreveu, em 2002, um artigo intitulado A

Narrativa em Lukacs e em Benjamim. Embora fossem contemporâneos, à época em

que os textos foram publicados originalmente, os dois não tomaram conhecimento

um do outro. Para Konder, a afinidade de ambos era evidente, embora existisse uma

diferença clara na abordagem do tema, por cada um deles.

Para Lukacs, a defesa da descrição sobre a narrativa implicava uma

cumplicidade com o existente, como se a realidade fosse sempre aquilo que ela é no

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momento em que é descrita, legitimando-o (o existente). Já a narrativa estimularia a

compreensão da realidade em permanente transformação, “num movimento

incessante em que engendra o novo”. (Konder, 2002) E, assim, Lukacs comparou a

atitude de quem descreve e de quem narra como se o primeiro fosse um observador

contemplativo do mundo, enquanto o segundo, o narrador, se expressasse como

quem vive os acontecimentos.

É o mesmo Konder que ressalta o olhar diferenciado de Benjamim ao

resgatar as origens remotas das narrativas, em que identifica o ato de narrar como a

“expressão de um trabalho artesanal que se realiza sobre a matéria-prima da

experiência”. (Konder, 2002) Assim, iniciando com os marinheiros viajantes,

passando pelos camponeses e chegando aos artesãos, a arte de narrar foi assim se

aprimorando de modo a mobilizar o “contador de histórias por inteiro”, de forma

que mãos e gestos, expressões e movimentos ajudassem a sustentar o fluxo do que

era dito exemplarmente. Talvez se justifique na forma como a sociedade foi se

remontando a preocupação de Benjamim com o declínio da narrativa, como indica

Konder. Segundo ele, no lugar das velhas histórias, “sempre surpreendentes e

renováveis, as mudanças do mundo estivessem propondo sua substituição por

informações e notícias que só seriam capazes de suscitar interesse enquanto eram

novas”.(2002, p.3)

Deste modo, ao defender a importância de as crianças criarem, contarem e

ouvirem histórias encantadas, relatos de situações reais e imaginadas e que o

fizessem, sempre, por inteiro, eu pretendia estimular a narratividade das crianças,

sujeitos da pesquisa e, assim, compreender o que as aproximava e/ou afastava do

jornalismo informativo produzido e veiculado nos telejornais.

É possível afirmar que, mesmo antes da minha entrada no campo, como uma

estudiosa do tema, eu vinha observando crianças de escolas públicas municipais

cariocas em interação criativa com os expressivos avanços tecnológicos a que têm

acesso, em geral com o audiovisual, por meio da televisão, mas também com a

internet e com os celulares. De alguma forma, parecia estar havendo uma relativa

ampliação dos espaços de narrativas, agora com sons, imagens, cores, movimentos

e interatividade e, com o acesso gradativo aos meios de produção audiovisual,

supostamente estaria se tornando possível construir e reconstruir o “era uma vez”,

os casos e as histórias em diferentes suportes e linguagens.

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Como pesquisadora, estudar as crianças a partir de suas narrativas implicava

a possibilidade de compreender e de partilhar a rede de significação simbólica que

as unia, sem igualá-las. Essa rede de significações, tecida na linguagem se

sustentava nas enunciações e narrativas e, por isso, ouvi-las e registrá-las tornou-se

imperioso para conhecer o(s) modo(s) como as crianças são/estão no mundo. Era

preciso levar em conta, na análise das narrativas delas que a televisão tem a

possibilidade de criar e de transformar as práticas sociais que “falam” da sociedade,

como também de constituir saberes acerca desta mesma sociedade. Além do fato de

que, hoje em dia, parecer ser a televisão o lugar de onde as crianças retiram o que

sabem e o que lhes é oferecido para compreender o cotidiano e a vida. Deste modo,

as narrativas das crianças sobre as notícias da televisão constituíram-se no principal

material empírico deste estudo. Mesmo assim, alguns questionamentos não podiam

ser evitados, e as suas possíveis respostas estão apresentadas ao longo deste texto,

como por exemplo: até que ponto, se pode garantir a autoria e o protagonismo

infantil, considerando-se que há recortes, registro e análise que são de

responsabilidade do pesquisador? Mesmo não havendo direcionamento, quais são

os limites de interferência do pesquisador que não se faz isento, omisso,

despercebido? Em que medida essas questões podem vir a se constituir em um

problema?

Trabalhar a partir das narrativas das crianças implica aceitar certa dimensão

de incerteza, na medida em que não se pode supor que o mundo infantil esteja de tal

modo organizado e planejado pelos adultos para que nele não caibam mudanças,

que dele não se esperem propostas de transformação que, tudo indica, seriam

ameaçadoras e desestabilizadoras da visão adultocêntrica da estrutura de mundo

que lhes interessa manter (Larrosa & Lara, RJ: 1998, p.75-76).

O trabalho com as narrativas orais das crianças, transmutadas em linguagem

escrita, alternativa escolhida por mim, visava me colocar no lugar de um adulto

diferenciado, um outro – adulto, numa circunstância específica, aquela de quem

deseja reformatar a discussão entre o conhecimento e a alteridade do mundo

infantil. Assim, precisava capturar com meus olhos, ouvidos e mãos suas falas,

expressões de sentimentos, intervenções e pausas para que as mesmas pudessem

valer como questionamentos sobre o mundo de que faço parte, o dos adultos. Não

havia, portanto, possibilidade de as crianças do meu universo de pesquisa dirigirem

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seus olhares e suas falas a um gravador ou a uma câmera de videogravação, como

uma escolha metodológica, diante de uma intenção de captar e de reproduzir tudo.

Neste estudo, estava certa da minha intenção de estar disponível para

observá-los e interagir com eles, como também, e ainda com maior interesse, de ser

observada e questionada por eles para compreendê-los melhor. Assim, supunha

que, ao ser notada e aceita por eles como um outro (adulto), estaria sendo permitido

a eles que me devolvessem algumas dessas imagens “que colocamos sobre eles para

classificá-los, para excluí-los, para proteger-nos de suas presenças às vezes

incômodas, para enquadrá-los institucionalmente em casa e na escola, para

submetê-los as nossas práticas” (Sarmento) e, com isso, reduzir as possibilidades

de emergirem surpresas que podem vir a ser vertiginosas ou ameaçadoras para o

adulto.

Fazer uma pesquisa com crianças que se sustenta, especialmente, nas

narrativas delas se justifica pela importância que o ato de contar histórias têm para a

conformação dos fenômenos sociais. A narrativa como uma prática discursiva

funciona não apenas como uma forma de investigação, mas como uma alternativa

muito produtiva de coleta de dados nas Ciências Sociais, nos dias de hoje.

A entrevista narrativa, tal como é chamada por alguns estudiosos de

metodologias (Bauer e Gaskell, 2000), de que se servem as pesquisas qualitativas é

uma alternativa de geração de dados que têm infinitos ganhos e alguns problemas

epistemológicos que, como dizem seus autores (idem, p. 91), têm o tamanho e a

dimensão “do que as narrativas nos contam”.

Há duas críticas semelhantes porém diferentes que recaem sobre o uso das

“entrevistas narrativas” (EN). Uma delas se refere às expectativas e hipóteses

levantadas pelo narrador/informante em função do que ele supõe que o pesquisador

deseje ouvir, o que, de fato, pode ocorrer, mas que não é uma prerrogativa exclusiva

das entrevistas narrativas. Outra critica comum se refere ao risco de o pesquisador

direcionar e influenciar o universo pesquisado de modo a escutar o que, de

antemão, esperava ouvir.

Ciente dos riscos e com atenção permanente para evitar que os mesmos

viessem a ocorrer, eu não criei nenhuma estratégia que pudesse mascarar o meu

interesse em interagir com as crianças, em dialogar e até mesmo em me expor,

dependendo da situação, dando o meu ponto de vista pessoal sobre alguma coisa. O

que me preocupava e do que precisava fugir, era do risco de uso da EN como uma

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variação estratégica para o antigo esquema de perguntas e respostas, que, num

momento posterior, pudessem vir a ser avaliadas segundo critérios de certo ou

errado, verdadeiro ou falso, etc., o que não atenderia a esta pesquisa.

Por mais se evidenciasse uma tendência de as crianças buscarem agradar à

pesquisadora, não acredito que isso tenha se refletido nas interações que

estabeleceram com seus amigos, com a professora nem em contato direto comigo.

O uso das EN foi alimentado sempre pelo interesse de conhecê-las, de

compreendê-las melhor sem julgá-las nem confrontá-las em relação às suas

próprias narrativas, nem em relação à dos amigos.

Como também não supunha que contradições, ambigüidades, tensões e

conflitos infantis fossem ficar à margem de suas narrativas, não me cabia

resolvê-los nem tampouco verificar seu teor descritivo em relação a fatos

supostamente reais, ficcionais ou imaginários.

3.3 Questões éticas que envolvem as relações entre crianças, a pesquisadora e o professor Já explicitei o meu desconforto em relação a ser tratada pelas crianças como

sendo “tia” e a flexibilização necessária diante do carinho, da aproximação sem

reservas e, sobretudo, da confiança das crianças e da equipe da escola em relação a

mim. Não tenho dúvida de que essa relação foi construída de modo parceiro e

interativo na convivência que estabelecemos durante todo o ano letivo. Muitas

questões se impuseram aqui como desafios a serem enfrentados em que a maioria

delas dizia respeito ao espaço delimitado, por um lado, pela garantia à autoria e ao

protagonismo infantil e, por outro, pela necessidade de não expor as crianças em

nenhuma instância, fosse na escola, na família, nas comunidades em que vivem e

nos diferentes espaços que este estudo puder alcançar.

É extremamente delicado e difícil encontrar um ponto de equilíbrio que

satisfaça tanto a valorização das vozes e das narrativas infantis, quanto ter que

protegê-las diante do uso que pode vir a ser feito do que dizem e do que são. O meu

modo próprio de ser e de lidar com crianças, não me permitiria criar nem propor a

elas que se dessem outros nomes, diferentes do que têm. Assim, optei por fracionar

na menor parte possível o nome de cada uma das crianças usando as letras iniciais

do primeiro e segundo nomes, ou do nome e do sobrenome, identificando-as por

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apenas duas letras maiúsculas, seguidas de uma pequena sigla indicativa quanto ao

gênero – “mo” para os meninos e “ma” para as meninas –, seguida da idade em

julho de 2007.

Ainda assim, preciso deixar aqui registrado o quanto este texto se ilumina e

se robustece ao incluir os dados do campo e, ao mesmo tempo, o quanto ele se torna

desinteressante e, até mesmo, enfadonho quando, no lugar dos nomes pelos quais

são chamadas as crianças, aparecem duas letras maiúsculas, uma sigla formada por

duas letras minúsculas e um número, como por exemplo: VS, mo, 6 anos.

Um outro ajuste que resolvi fazer se refere à transcrição das suas falas com

erros de português. No afã de ser o mais fiel possível às falas e aos depoimentos

infantis, anotei o que pude com as circunstâncias, cenas e situações tal como eram

ditas e expressas pelas crianças. No entanto, com freqüência, nas situações em que

eu devolvia a eles o que tinham dito, por exemplo, durante as atividades gráficas

desenvolvidas pela professora, ou durante uma brincadeira, tanto eu ficava

constrangida de expor uns aos outros ao ler para elas textos com erros, quanto até

mesmo a professora se apropriava disso com crítica e se mostrava insegura de vir a

ser avaliada pelos eventuais erros cometidos por seus alunos. Vou exemplificar

com uma expressão muito típica desse grupo, usada para se referir a um grupo de

pessoas reunidas em que ao menos uma das crianças estivesse incluída: “nós tudo

fomos embora, nós tudo tava com fome, etc.” Eventualmente, eles usam o termo a

gente com o verbo, em geral, com uma concordância errada: “a gente fumo” ou “a

gente comiam depressa para não pegarem tasco” (referindo-se a ter que dar no

lanche pedaços de bolo Ana Maria para os meninos de outras turmas). Algumas

outras palavras eram usadas com freqüência pelas crianças como “fulano”,

“bertrano”, “sircrano” e “pobrema”, para referirem-se a “fulano”, “beltrano”,

“sicrano” e “problema”.

Escutei inúmeras vezes as crianças se expressando de forma incorreta, o que

pode ser reconhecido menos como erro, mais como variação dialetal, sem que

houvesse qualquer intervenção de adultos. No entanto, ao entenderem o

funcionamento dos meus registros para análise posterior, sem que nada houvesse

que impedisse a leitura dos depoimentos deles, a professora, e também as crianças

começaram a se mostrar inseguras em relação à possibilidade de virem a ser

corrigidas pela professora ou ainda serem motivo de deboche. Por isso, decidi

corrigir minimamente na transcrição escrita seus textos orais, sempre com a

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preocupação de preservar as falas originais, sem, no entanto, oferecer,

especialmente para as instituições escolares, elementos para crítica sobre aspectos

que não são estáticos e que, ao final deste estudo, já poderiam estar reestruturados

se consideramos a idade e a turma em que se encontram: o primeiro dos nove anos

que compõem o ciclo de formação.

Uma outra questão que precisa ser explicitada e que influenciou a minha

decisão de substituir os nomes das crianças pelas suas iniciais se deve à importância

do local de moradia como elemento diferenciador, muito valorizado e utilizado com

muito peso na identificação do grupo. Decidi, nesse caso, revelar a localização da

escola pública municipal na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro e, em cada

caso, poder me referir livremente às comunidades próximas onde as crianças

moram por ter entendido que, desse modo, o estudo seria mais produtivo para

compreender as crianças, seus medos, suas expectativas e parcerias eventuais em

função da comunidade de que são parte.

Assim, à guisa de conclusão deste item, gostaria de informar que a minha

pesquisa teve seu projeto analisado e autorizado para sua consecução pela

Secretaria Municipal de Educação da Cidade do Rio de Janeiro (anexo 1). Assim

que cheguei à escola, foi expedida para cada um dos responsáveis por cada criança

uma autorização para a participação da mesma na pesquisa, na qual se incluía o

direito de uso de imagem em fotografias e em gravação audiovisual, além da voz,

em caso de audiogravação (anexo 2). Ainda assim, as crianças sempre foram

consultadas em relação ao seu desejo, de não serem filmadas, gravadas ou

fotografadas, mesmo com a autorização de seus responsáveis. No caso do telejornal

e da proposta de gravação, edição, etc., houve duas crianças que foram autorizadas

a participar da atividade desde que não fossem filmadas “dando notícias, para que

não aparecessem na televisão”.

De todo modo, cada criança recebeu uma cópia gravada da última forma da

filmagem do telejornal que também entregue para o acervo da escola e será usada

por mim apenas em atividades de natureza acadêmica.

Ainda que possam parecer simples, as escolhas teórico-metodológicas que

dizem respeito à gerações de dados, às análises feitas partir das recorrências e

discrepâncias, regularidades e descontinuidades encontradas, os sentidos, as redes

de significações e algumas decisões são desafios que fazem parte das atribuições do

pesquisador. Mesmo que sejam feitas todas as ressalvas possíveis, não se pode

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negar que cada pesquisa expressa tanto a competência, a habilidade e as

fragilidades do pesquisador, em diferentes níveis e nuances, quanto, também, o

amálgama que resulta numa cor, tessitura e personalidade próprias a cada estudo.

As expectativas, as hipóteses e os percursos que se cumpriram, ou não,

integram esse relato assim como o registro de todos os tipos de dados analisados,

das narrativas às fichas de matrícula, alguns desenhos, cenários e depoimentos.

Em pesquisas desta natureza com crianças é desejável que o pesquisador se

exponha e que se ponha à prova, também, quanto às suas interpretações, à

construção de sentidos e de categorias que vê emergir, pondo-se disponível para

expor seu olhar sobre as crianças e vê-lo questionado e legitimado por elas,

também. Assim, quando o pesquisador devolve a elas, de modo estimulante,

algumas de suas escolhas, atitudes e argumentos, respeitosamente, elas se mostram

valorizadas, respeitadas e aptas a rever e/ou validar as mesmas. Deste modo, tanto

nas atividades mimeografadas oferecidas pela professora, quanto em situações em

que foram feitas audiogravações, representações gráficas ou videogravações, como

no caso do telejornal, as crianças puderam se ver, se ouvir, refazer opiniões e

depoimentos, criticarem-se a si e aos outros. Com isso, também a pesquisa tem a

oportunidade de se reestruturar e se validar ao permitir contrastar “perspectivas,

métodos, dados e teorias como forma de depurar o processo interpretativo”.

(Corsaro, 2003 in Borba, p.90)

Uma estratégia que funcionou muito bem durante toda a minha permanência

no campo consistiu em observar e, sobretudo, conversar com as crianças sobre suas

vidas, as coisas que gostam de fazer quando não estão na escola, suas brincadeiras

prediletas, seus medos e desejos, etc., o que foi criando o vínculo e a confiança

necessários para o fluir suave e continuado da pesquisa. Como sujeitos da minha

pesquisa, elas ajudaram na triangulação desejada entre os conceitos teóricos e as

metodologias, o meu olhar e a minha análise, postos à prova, sempre que possível,

ao ouvi-las e ao me propor a dialogar sobre a minha forma de conhecê-las e de

compreendê-las.

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3. 4 A escola e a turma

A escolha da escola e de uma determinada turma foi norteada pelo desejo de

trabalhar com um grupo em fase inicial de sistematização da leitura e da escrita (6-7

anos), freqüentando essa escola pela primeira vez para cumprir uma nova etapa que

dura, no mínimo, 9 anos e que configura a Educação Fundamental. Essa turma e

escola específicas foram indicadas pela Coordenadoria Regional de Educação

(CRE) por representarem um universo variado de alunos integrado num mesmo

grupo – alguns oriundos de creches e pré-escolas públicas e particulares; outros,

muito pobres, oriundos de favelas próximas com Índice de Desenvolvimento

Humano (IDH) e Índice de Desenvolvimento Social (IDS) muito baixos, como Rio

das Pedras (Jacarepaguá) e Terreirão (Recreio dos Bandeirantes). Há outras

crianças que moram em bairros menores, que ficam dentro da área de abrangência

de um bairro extenso da zona oeste, que se chama Jacarepaguá, como: Gardênia

Azul, Merck, Taquara, Freguesia, Tirol e outros.

A escola fica situada dentro de um condomínio de classe média-alta, na

mesma Zona Oeste da cidade, num bairro que em uma de suas extremidades faz

fronteira com Jacarepaguá. Fazem parte desta turma, ainda, filhos de trabalhadores

do condomínio, como: porteiros, faxineiros, eletricistas, biscateiros, etc.

O tempo de permanência no campo foi de aproximadamente oitenta horas,

divididas em dois dias fixos semanais; minha estada na escola se iniciava com a

chegada das crianças às 7h30, e se encerrava as 10h, em geral, quando estivesse

terminado o tempo de recreio a elas destinado. Alguns dias, fui à escola para

acompanhar atividades das crianças com a professora em horários excepcionais,

como, por exemplo, nos horários planejados para produção, gravação,

visionamento e edição do telejornal, realizado pelas crianças.

A pesquisa de campo teve início nos primeiros dias de aula, ainda em

fevereiro de 2007, e foi concluída nos primeiros dias de novembro de 2007. Ela

aconteceu, mais ou menos, dentro do tempo previsto, devido a uma licença médica

solicitada pela professora. Essa licença, que se iniciou nos últimos dias de outubro,

acabou gerando uma dissolução do grupo, por ter sido necessário dividir a turma em

outras três salas de aulas da escola.

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Quadro sinóptico da Turma (20 Crianças7) Gênero

10 meninos 10 meninas Idades em 2007

16 crianças com 7 anos

nascidas em 2000

2 crianças com 6 anos

nascidas em 2001

2 crianças com 8 anos

nascidas em 1999 Religiões informadas

2 famílias deixaram em

branco

12 famílias são Católicas

Apostólicas Romanas

6 famílias são Evangélicas

Pai: profissão e escolaridade 2 crianças não conhecem o

pai 3 famílias não informaram

2 pais são operadores de máquinas

1 pai tem ensino superior

1 é pedreiro 6 têm 1º grau completo 1 é eletricista

2 estão desempregados 3 não concluíram o 1º grau 2 motoboys

3 são comerciantes e/ou vendedores autônomos

3 têm o 2º grau completo

3 são vigilantes 4 não concluíram o 2º grau 4 são jardineiros, auxiliares

de serviços gerais de condomínios, etc.

Mãe: profissão e escolaridade As 20 crianças conhecem e

vivem com a mãe 10 mães têm 1º grau

completo 1 mãe trabalha como professora de 5ª /8ª

4 mães não concluíram o 1º

grau

1 trabalha como explicadora onde mora

2 são vendedoras 4 têm o 2º grau completo

2 são garçonetes 6 são do lar, não trabalham

fora de casa

Todas as que iniciaram o 2º Grau o completaram 8 trabalham como

domésticas e/ou diaristas em casas de família Residência das crianças e responsáveis

7 Dados obtidos nas fichas informativas de cada aluno, que são atualizadas anualmente pelos seus responsáveis. Essas ficam arquivadas na secretaria da escola e que foram disponibilizadas pela direção para esta pesquisa .

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Comunidades de baixa renda

(Terreirão, Morro do Banco)

Condomínios da Barra da Tijuca

(onde pais trabalham)

Adjacências (Gardênia, Anil,

etc.)

7 crianças 5 crianças 8 crianças Acesso a tecnologia em casa

Todos têm pelo menos um

telefone celular

3 crianças têm um computador

4 crianças têm 1 TV

4.têm 2 TVs 10 têm 3 TVs

7 crianças citam o uso do rádio ao falar em notícias

3.5 Minha entrada no campo

Antes da chegada à sala de aula escolhida por mim juntamente com a

direção, houve um contato bastante produtivo com a professora indicada para o

caso. Desde o primeiro momento, ela se mostrou segura, acolhedora, sem exageros

e, de certo modo, deixou até transparecer um pequeno orgulho, ou uma ponta de

vaidade por ter sido a professora indicada pela direção para a pesquisa. Essa minha

percepção se deu apenas no nosso segundo encontro, na mesma semana, quando a

reencontrei com os demais professores da escola, no dia em que participavam de

um centro de estudos. Naquele dia, anterior ao de início das aulas, fui apresentada

pelo grupo gestor da escola aos professores e funcionários. A diretora me deu

“cinco ou dez minutinhos” para que eu me apresentasse e explicasse para o grupo os

motivos da minha estada na escola por um período semelhante ao ano letivo.

Naquele momento, de modo resumido, expliquei os objetivos da minha pesquisa,

que exigiam uma aproximação planejada com as crianças, uma busca de escuta e de

compreensão de suas narrativas, brincadeiras, conversas, etc. Ao ser resumido, o

objeto da pesquisa se restringiu à questão “crianças e televisão, o que vêem, sobre o

que falam, etc.”, mas sem qualquer outro direcionamento. Assim que citei a palavra

televisão, vi os professores se reposicionarem nas cadeiras. Estabeleceu-se um

clima que parecia um misto de curiosidade com crítica, que gerou um ruído

imediato, além de uma chuva de perguntas sobre a minha pesquisa, sobre como

pesquisar este tema na escola. Algo assim: “não trabalhamos com televisão dentro

da sala de aula! Como você vai pesquisar? Não estimulamos que os alunos fiquem

colados na televisão! Poderia ser mais produtivo você trabalhar com vídeos e

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televisão na sala de leitura da escola!; Bem, para mim, é melhor ficar colado na

televisão do que na rua, se metendo em encrenca!; Lá em casa, televisão é proibido,

só nos fins de semana”; etc. Diante de tamanha curiosidade e da necessidade

expressa de os professores dizerem como cada um vê e pensa a sua relação e

também de suas crianças com a televisão e, ao mesmo tempo, do relógio que corria

num espaço destinado a planejamento e organizações para o ano letivo que se

iniciaria dias depois, acabei fazendo uma proposta que foi aceita pela direção e

pelos professores. Me dispus a estar na escola num dia próximo, em que o grupo

também lá estaria (para organizar a sala de aula), de modo a favorecer o acesso e

contato para aqueles que desejassem conversar, saber mais sobre a pesquisa e o que

eu pretendia estudar.

Assim, nesse dia combinado, ainda na mesma semana, estava eu na escola,

nos dois turnos, por duas horas na parte da manhã e pelo mesmo período à tarde, me

dispondo assim para aproximações, contatos, para conhecer e ser mais bem

conhecida, certa de que essa conduta favoreceria a minha relação e meus

deslocamentos pela escola. Todos os que passaram por mim falaram comigo,

acenaram ou me beijaram e se encaminharam para fazer as tarefas do dia. A

professora da sala de aula onde aconteceria a pesquisa trouxe “dois amigos” para eu

conhecer: o professor de Educação Física da escola e uma professora de turma

correspondente à dela, mas com crianças um pouco mais velhas. Todos começavam

o ano com a expectativa de como seria a vivência do sistema de ciclos nas escolas

municipais, agora como uma exigência da Secretaria Municipal de Educação.

No dia 5 de fevereiro de 2007, lá estávamos nós, antes mesmo do carnaval,

para dar início ao ano letivo e, com ele, à minha pesquisa. Já na sala de aula da

turma 1103, naquele mesmo dia, as crianças me vasculharam por todos os ângulos

possíveis, não sem pequenos comentários, e um deles me soou interessante: “Tia,

você trabalha na televisão?”

As crianças também pareceram estranhar a minha presença ali, silenciosa,

sentada numa cadeira e mesa a elas destinadas, fazendo anotações. Diante da

movimentação delas ao meu redor, a professora pediu a eles, com rigor, que

fizessem silêncio, para que me deixassem em paz e, também, “para poderem

aprender”. Dizia ela: “Silêncio, meninos e meninas. Essa conversa atrapalha muito,

e assim vocês não vão aprender nada!”, enquanto distribuía atividades

mimeografadas. Nesse primeiro dia, percebi a alegria das crianças com os

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reencontros mútuos, também com os espaços familiares, a alegria de brincar e de

conversar, enquanto estavam no refeitório e no pátio, na hora do recreio. Pouco

depois, as aulas seriam interrompidas para o carnaval, para serem retomadas em

seguida.

3.6 Registro e análise de materiais empíricos:

A produção do material empírico se fez por meio de entrevistas coletivas e,

em alguns casos, individuais, registradas em um caderno de campo manuscrito que

ia sendo repassado, no mesmo dia, como um texto digital para o computador. Essa

rotina teve a intenção de minimizar a eventual perda de informações, já que, por

maior que seja o cuidado, é certo que sempre algo se perde, em especial nas

situações em que eu era parte da/na interlocução com as crianças.

Em alguns momentos, usei uma máquina fotográfica para registrar cenas ou

situações que julguei interessantes e, se dependesse das crianças, a usaria

diariamente, porque, na opinião delas, fazer pesquisa na sala de aula implicava no

uso freqüente de máquina fotográfica para registro das situações escolares

rotineiras: “Tia, me tira na sua máquina, porque eu estou lendo livrinho” (ML, ma,

7 anos); “Tia Inês, tia , olha pra mim, tira uma foto de mim aqui comendo meu Ana

Maria [bolo] delicioso” (TS, ma ,7 anos). E também recebi uma crítica explícita:

“Nunca vi pesquisa sem fotografia. Quando teve aqui outra mulher pra estudar o

mangue preto (vegetação de uma lagoa próxima), era foto da gente direto. Tia, tira

foto da gente, puxa, tira para a sua pesquisa!” ( YC, mo, 7 anos).

Durante a pesquisa, foi desenvolvida pela professora uma atividade muito

especial, por solicitação das crianças, já no segundo semestre letivo. Ela está

registrada aqui, neste momento, para explicar como e por que foi introduzida na

pesquisa duas câmeras de filmagem que resultaram em algumas horas de gravação.

Nesse percurso, também procurei conversar com as crianças, sempre que

possível, sobre suas vidas – o que faziam quando não estavam na escola, suas

brincadeiras favoritas, suas famílias, seus medos, suas raivas, preferências, etc. –,

buscando escapar das situações que se assemelham à aplicação de um questionário

oral para que, gradativamente, fosse se estabelecendo uma relação de confiança que

permitisse uma interlocução livre, sem julgamentos de qualquer natureza de minha

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parte. Essas situações que nomeei aqui de interlocução livre são chamadas por

alguns estudiosos de metodologias de pesquisas qualitativas como uma modalidade

das entrevistas narrativas (EN), que não me parece uma nomenclatura de todo

inadequada, mais pela valorização das narrativas do que pelos aspectos que

caracterizam as entrevistas. Também tive acesso à ficha informativa de todas as

crianças para as observações e os registros necessários.

Muitas vezes, em sala de aula, as atividades mimeografadas propostas pela

professora deram origem a diálogos muito interessantes entre eles, deles comigo ou

com a professora, e algumas dessas atividades gráficas foram fotocopiadas em

xerox, e, nas minhas cópias, fiz o registro de suas falas, seus comentários e suas

narrativas.

A análise qualitativa do material produzido no trabalho de campo foi feita

na forma clássica, da empiria aos conceitos teóricos em sucessivos movimentos de

ida e volta, com a ajuda de um software que auxilia a análise de dados não

numéricos e não estruturados (NUD*IST 4.0).

Uma das estratégias adotadas durante o tempo em que estive com as

crianças consistia em conversar informalmente sobre o que gostavam de brincar e

sobre suas relações sociais, e essa prática ajudou muito, tanto na construção de

conhecimentos mútuos sobre e para a pesquisa quanto no processo interpretativo.

As crianças demonstraram gostar de falar de si, de contar histórias de suas vidas, de

falar sobre suas práticas sociais e culturais e, neste percurso, eram expressos seus

valores, significados e expectativas. Suponho que tenha sido o meu interesse em

ouvi-las, demonstrado em atitudes cotidianas e simples, que tenha feito com que,

gradativamente, de forma espontânea, elas se aproximassem e me oferecessem

explicações sobre condutas, escolhas e preferências, me mantendo informada sobre

pessoas e casos que envolviam sua família e, também, sobre o modo de pensar

diante de determinadas situações. Essa atitude oportunizou o acesso a uma miríade

de aspectos importantes que me ajudaram a questionar, rever ou validar certas

hipóteses e interpretações.

Com esse objetivo, foram feitas, ainda, três sessões de visionamento com

edição do material de filmagem do telejornal em que, ao se verem na tela da

televisão, puderam estabelecer um olhar alteritário sobre si em que, mais uma vez,

os seus depoimentos contribuíram para validar ou para exigir redirecionamento das

minhas interpretações.

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As entrevistas aconteceram sem um ritual preestabelecido, de modo

informal, em pequenos grupos, pelo menos com um par de crianças, e sempre se

iniciavam a partir de assuntos pendentes entre nós, entre elas ou delas com os

acontecimentos a sua volta. O audiogravador foi utilizado em poucas situações e

não tinha um significado expressivo para esse grupo. Ele era usado como um

recurso para me atender, para me ajudar, e nem todas as crianças demonstraram

interesse para se ouvir. Algumas delas riam ao identificar suas vozes e, em regra,

pediam para que eu levasse máquina fotográfica digital para a pesquisa. Esse desejo

reiterado das crianças em relação ao registro de suas imagens em fotografias não

me permitiu descartar a hipótese de que o meu interesse sobre programas de

televisão tivesse contribuído, de alguma forma, para essa valorização expressiva da

imagem sobre o som, representada pela suposta preferência da máquina fotográfica

no lugar do audiogravador, o que deixo aqui relatado apenas como uma

possibilidade.

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4 A televisão que vai à escola

4.1 As crianças, suas famílias e a televisão

Todos os materiais reunidos e analisados neste estudo se sustentaram,

essencialmente, nas narrativas infantis e nas práticas discursivas que aconteceram

dentro da escola e estas se complementaram por uma observação atenta em relação

às trocas de olhares, aos gestos, aos silêncios, sorrisos e choros que surgiram ao

longo do trabalho como forma de expressão e de linguagem.

Para conhecer e analisar essa complexa triangulação entre crianças, a

programação televisiva e a dinâmica das suas vidas familiares, precisei não apenas

observar, acompanhar e registrar, mas também me dispor a conversar diretamente

com elas. Só assim, seria possível conhecer e compreender como cada uma sentia e

entendia o seu universo familiar. Essa foi uma questão relativamente fácil de ser

encaminhada, principalmente nos horários destinados ao lanche, que aconteciam no

refeitório, e nos intervalos para o recreio. Ao perceberem minha proximidade e

interesse, as próprias crianças me procuravam quase todos os dias em que estive na

escola, na maioria das vezes em pequenos grupos mistos, em geral carreados por

meninas com interesse e extrema curiosidade sobre a minha vida particular:

“Você tem pai? Você é velha e tem pai ainda? Mentira?! Você tem marido? E filhos? A professora falou que você estuda. Mas aqui é escola de criança, não é de gente velha. Tem até escola de gente velha, pai, mãe, assim... quase velha, mas não muito velha, mas aqui não é!” (TS, ma, 7 anos) Nesse questionário a que fui submetida com relativa freqüência,

incluíam-se perguntas de outras naturezas, que, ao atender à curiosidade delas,

funcionavam também como portas de aproximação, um convite para o

estabelecimento de uma relação de inclusão e de pertencimento entre nós, agora sob

o viés do consumo, menos de bens materiais, mais de ordem simbólica:

“Você mora aqui perto? Você tem cara de morar aqui neste condomínio de gente rica (onde fica a escola). Você tem televisão com controle, no seu quarto? Onde você mora? Eu bem vi você chegando de carro, e era bem um Palio. Palio é fofy (fofo)! Acho que você vai lá naquele Boticário que tem dentro, lá bem dentro da porta do Mundial para comprar esse perfume.

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Eu adoro o cheiro do perfume do Boticário, só que eu não tenho mais, o meu já acabou. Na sua bolsa tem glitter de boca? Deixa a gente ver? Tem cheirinho? Tia, você não é Flamengo? Diz alto aí para todo o mundo saber!” (TO, ma, 7 anos; VS, mo, 6 anos; LE, mo, 7 anos; LF, mo, 7 anos)

As questões relativas a essa aproximação estão desenvolvidas ao longo

desta tese, no entanto, antecipo alguns aspectos para justificar o fato de ter sido a

curiosidade infantil sobre a minha vida pessoal um elemento facilitador de acesso à

vida das crianças, em relação às suas famílias e à programação televisiva.

O grupo de crianças, desde o início, demonstrava alterar sua configuração

interna sem que houvesse uma explicação óbvia ou simples, para mim. Era comum

as crianças se remontarem em grupos menores, por um período determinado de

tempo, em circunstâncias específicas que eu precisava conhecer e que me levaram

ao ideário de Simmel8.

Com Simmel, as aproximações e distanciamentos feitos pelas crianças

podiam ser melhor compreendidos além da sua área de referência ser a Sociologia

que se mostrava totalmente compatível com uma opção conceitual anterior e crucial

sobre ser criança, neste estudo, fundamentada nos estudiosos da Sociologia da

Infância. Deste modo, estavam descartadas as antigas concepções de crianças que

sugeriam ser a frequência escolar indispensável para que fosse transmitido ou

ensinado às crianças certo jogo pronto e fechado de regras sociais, com o objetivo

de torná-las sociáveis e aptas à convivência social. Nesse viés, se apóiam, ainda

hoje, algumas crenças do senso comum sobre a importância da creche, da

pré-escola e da escola pelo seu papel socializador, resultante de um conceito de

socialização que, absolutamente, não cabe neste estudo.

Nesse escopo, Simmel (1987, p.164) favoreceu a compreensão do

dinamismo das interações sociais deste grupo que freqüentava cotidianamente, uma

mesma turma e escola, considerando-se que diferentes circunstâncias e modos

variados de interações sociais produziam crianças/alunos muito diferentes que se

encontravam na sala de aula e na escola.

8 Georg Simmel (01/03/1858 – 28/09/1918), alemão, nascido em Berlim. Foi um dos sociólogos que desenvolveram o que ficou conhecido como micro-sociologia, uma análise dos fenômenos no nível micro da sociedade. Foi um dos responsáveis por criar a Sociologia na Alemanha, juntamente com Max Weber e Karl Marx.

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Mas não só o espaço escolar era compartilhado, em muitos casos também o

local de moradia, as dias e vindas para a escola, as preferências em relação as

atividades de lazer, as referências diferenciadas sobre o que julgavam ser parte do

mundo feminino ou masculino e, também, em as opiniões sobre o que viam na

televisão.

Nesta linha, torna-se possível afirmar que cada grupo de crianças e seu

professor formem “todos” sempre únicos e muito diferenciados entre si, em que

pesam variáveis intervenientes que justificam seus processos de particularização.

Nesse grupo não era diferente, havia elementos constitutivos de cada um dos alunos

que impactava a turma e que interferiam nos modos como eles interagiam social e

cotidianamente, tais como: a) suas experiências prévias (das crianças e da

professores), dentro e fora da escola; b) o bairro ou comunidade onde moram, mais

ou menos próximas da escola; c) a configuração das famílias de que cada uma; d) a

convivência com irmãos e outras crianças; e) uma relação mais ou menos dialógica

com os integrantes do núcleo familiar; f) o nível de participação na vida social da

família e da comunidade; g) a possibilidade de adultos da família serem

interlocutores sobre o que vêem na televisão; h) o nível de escolarização da família;

i) o acesso maior ou menor a livros, computadores, teatro, cinema, etc.; j)

capacidade de dar e de receber afeto; k) uma relação diferenciada de cada criança

com o professor do grupo, etc.

Estas e outras variáveis afetavam a relação entre as crianças, delas com a

professora e, para esse estudo, estas precisavam ser conhecidas para contextualizar

e ser possível entender como o grupo se relacionava e interagia com o que viam na

televisão. Essas preocupações, de certo modo reafirmavam que os possíveis

resultados, explicações ou respostas alcançados por essa pesquisa, não poderiam

ser simplesmente aplicados em quaisquer outros contextos ou grupos, já que cada

pessoa e o grupo de que é parte têm características muito particulares.

Segundo Simmel, todas as relações sociais, das de base mais afetivas às que

se estabelecem por questões profissionais, religiosas ou por outros tipos de

interesses ou de impulsos básicos, sem exceção, carregam em si as categorias de

aproximações e distanciamentos como uma especificidade de toda e qualquer

relação humana.

Neste percurso como pesquisadora, estavam comigo vivas e com muita

força a jornalista e a professora, partes da minha história que se tensionaram

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mutuamente, com alteridade nos dois sentidos, e que exigiram de mim que

encontrasse um espaço possível para estranhar o familiar de algum ponto no fio da

navalha que, imaginariamente, demarcava o lá e o cá, o dentro e fora, “um ponto

ideal naquele espaço social (1987 p.184).” Ainda segundo Simmel, no lugar de

“uma estrangeira”, me inseri nesse grupo espacial específico como quem não é

parte dele, do início ao fim da tarefa, e, assim, introduzi nele certos conflitos,

qualidades, tensões e deslocamentos que, ainda que viessem a gerar algum

desconforto eventual, por si só, ali não se originariam.

Nesse processo de encontro com o campo, brotavam perguntas que

precisariam ser respondidas nesta pesquisa. E não eram poucas, como: Quem são as

crianças? Onde moram? O que gostam, ou não, de ver na televisão? O que fazem

quando não estão na escola? Saber se a(s) televisão(ões) que têm em casa é/são em

cores, em preto e branco, com ou sem controle remoto? Se têm telefone celular,

computadores? Com que e sobre o que eles gostam de conversar? Com quem vêem

televisão? Sozinhos ou acompanhados, de quem? Que tipo de parceria estabelecem

com quem compartilham a audiência? Em que horários? Preferências e rejeições,

circunstâncias, etc.

Apoiada nos aspectos da sociabilidade defendida por Simmel, não tenho

dúvida de que emergiram nessa turma certas sociações (1987, p.174) que

mereceram destaque pela sua força no grupo, tais como: 1. O time de futebol do

coração (nesse grupo há uma disputa acirrada entre flamenguistas e vascaínos); 2.

A área de moradia (todos moram relativamente próximos uns dos outros, com uma

exceção; no entanto, ir e vir junto para a escola cria um tipo de sociação, dentro do

grupo); 3. Ter mais de um aparelho de televisão, em casa (mesmo que não

funcionem, todos); 4. Tipo de moradia (favelado? casa de rua?); 5. Ser paraíba

(parece haver certo preconceito em relação a quem acabou de chegar do

Norte-Nordeste, ou com os quem têm parentes próximos e diretos lá); 6. Ser

analfabeto (usado como xingamento, com peso de uma ofensa para quem é mal

informado, não está a par dos últimos acontecimentos e notícias). Essas sociações

postas aqui para análise se referem a elementos de natureza mais simbólica do que

material – os quais, no grupo em questão, funcionam como favorecedores de

aproximações e distanciamentos temporários, de acordo com as circunstâncias – e,

ao longo deste trabalho, serão aprofundadas, em cada caso.

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O conceito de sociabilidade de Simmel se sustenta em algo abstrato, algo

“jogado socialmente” que cria um mundo “sociológico ideal”. Ele parte do

princípio de que esse conceito de “homem sociável” também seja um fenômeno

muito peculiar, visto que só tem existência no mundo social, “em nenhum outro

lugar”. Assim, o que fundamenta a sociabilidade não são os atributos objetivos,

palpáveis e concretos, nem os produtos desses atributos, como “a riqueza, a posição

social, a cultura, a fama, os méritos, etc.”. (1987, p.168) Ou seja, a sociabilidade

refere-se aos aspectos simbólicos e lúdicos que resultam da vida social e que, por

isso, lhe tornam dependente mais das personalidades de cada um dos grupos do que

de seus propósitos manifestos ou objetivos. A sociabilidade, como uma forma

lúdica ou livre de sociação, só poderia ser extraída da realidade social do grupo em

interação, o que tem um valor diferenciado para o estudo. (1987, p.172)

Havia alguns indícios de que acontecia uma violação do conceito de

sociabilidade nesta turma em relação a todos os itens até agora observados, e uma

possível explicação para esse fato era o clima de competição latente que gerava

uma tensão permanente entre eles, por variados motivos, quase sempre

relacionados a uma necessidade de reconhecimento, de destaque ou simplesmente

para que fossem reconhecidos socialmente como sendo “bons para alguma coisa”,

como, entre outros, para: cantar, falar inglês, jogar futebol, para o comércio (vender

coisas usadas). Não foi explicitada por nenhum deles a vontade de “ser bom” para

qualquer aspecto relacionado diretamente à vida escolar ou, ainda, para algo que os

mobilizasse intencionalmente no sentido de se apropriar de conhecimentos, áreas,

atividades ou práticas que se referissem à atividade escolar. O que conheço sobre

meu universo de pesquisa permite reafirmar as diferenças individuais entre eles,

algumas sociações e arriscar uma única generalização possível de ser feita: o fato de

todos eles se mostrarem aptos, preparados e desejosos por serem “descobertos” por

alguém exterior ao mundo social de que são parte, para que venham a ter

visibilidade social fora, para se tornarem conhecidos por alguma genialidade

própria, expertise ou talento que lhes dê destaque, sucesso e um tipo de ascensão

social que gere fortuna, “muito dinheiro, claro”.

Para retomar a questão-chave deste capítulo, que se destina a refletir sobre

as relações que as crianças estabelecem com os adultos – responsáveis com quem

vivem – e a televisão, é importante explicar como nem sempre a visão que a escola

tem de família e de pesquisa favorece o estudo. A família de cada uma das crianças

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tem um formato, uma forma própria de ser que não se enquadra numa imagem

generalizante de um outro – um ou mais adultos – que tem funções diferentes das

dos adultos da escola, acontecendo o mesmo em relação ao papel do pesquisador.

Sempre preocupada em compor, ajudar e enriquecer meu trabalho, em alguns casos

a equipe da escola criou certos atalhos e ferramentas, no afã de agilizar minha

pesquisa, que não se coadunavam com o escopo do estudo.

Certas conduções estabelecidas para a pesquisa que tornam imprescindível

a aproximação com o campo em processo de investigação também impõem

algumas restrições. Certo dia, fui convidada pelos gestores da escola para

“aproveitar” a presença de um determinado responsável (pai/mãe) que já estaria lá,

por outros motivos, no sentido de “tentar retirar dele mais elementos e assim poder

garantir a precisão do que as crianças diziam”. Diante da proposta, optei por perder

“em produtividade”, como se fora o caso, e trabalhar com as informações e os

significados infantis a que tinha acesso, em contato direto com as crianças, já que

não buscava encontrar e, portanto, não esperava extrair das crianças, menos ainda

de seus pais, qualquer tipo de verdade, de certeza ou definição. O teor de incerteza,

de dúvida, os elementos fantásticos e imaginários que emergissem precisariam ser

compreendidos, ou não, na relação que fosse possível estabelecer entre nós, no

período escolar.

No mais, desde o início, a possibilidade de estabelecer contato com as

famílias de todas as crianças foi apresentada pelos gestores da escola como uma

tarefa impossível, já que “desde a pré-escola, nós, o grupo aqui da coordenação,

chama, chama, chama e só vêm as mesmas quatro famílias, três mães e um pai, que

ficam querendo saber o que está acontecendo de errado com as crianças para chegar

em casa e descascar elas. Quer ver chegar todo o mundo aqui? Basta faltar professor

na turma por doença ou alguma coisa assim. Eles vêm rapidinho. Ou então nas

festas, só que as crianças vão crescendo, e os pais vão se afastando ainda mais. Mas

a gente sabe que eles têm uma vida difícil, e faltar ao trabalho é complicado, a gente

entende”. E segue a diretora: “Agora, quando tem algo que me preocupe em que eu

vejo a necessidade de dividir com a família o problema, se eles não vierem aqui...

(pausa) eu vou lá. E vou mesmo! Pergunta só para a minha coordenadora

pedagógica. A gente não quer nem saber. Vou na casa deles quantas vezes precisar.

Às vezes eu tenho que ir lá e trazer para cá, junto comigo, o pai ou a mãe, às vezes

uma avó, para conseguir conversar sobre uma coisa ou outra. Mas eu faço.”

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Diante da dinâmica já instalada entre a escola e os pais dessa turma, e ainda

pelo fato de o meu objeto de pesquisa poder prescindir de qualquer tipo de

“comprovação objetiva” advinda das famílias das crianças, bastou-me aceitar uma

outra proposta da direção. Foram disponibilizadas as fichas informativas de cada

criança, que foram lidas com muito cuidado e atenção. Essas fichas tinham sido

preenchidas no ato da matrícula e atualizadas naquele ano, e, a partir delas, foi

possível confirmar os endereços, as datas de nascimento, com que pessoas moram,

que adulto(s) se identifica(m) como sendo o(s) responsável(eis) pela criança e

verificar a existência de alguma configuração diferenciada ou expressiva em cada

caso. Todas as crianças dessa turma, por exemplo, têm registro de nascimento, a

documentação completa exigida pela escola. Na medida do possível, a escola pede

que as crianças levem um retrato 3 x 4, que, no caso dessa turma, todas elas têm e

estão anexados às suas fichas. Uma única criança foi registrada apenas pela mãe.

Essa criança é o menino GO, de 8 anos, que costumava me chamar pelo menos uma

vez por semana para conversar, e com muita freqüência ele citava o pai, expressava

uma ansiedade imensa pela volta do mesmo, que não vive com a mãe e, segundo

ele, estaria no Ceará, mas voltaria para o Rio a qualquer momento, para a casa em

que o menino vive com a mãe. Não raro, ele pedia à professora para conversar

comigo com a condição explícita de ser “só eu e ela”, situações em que reiterava o

desejo de viver com pai e mãe juntos, numa mesma casa, como uma família feliz.

Disse ele para a professora:

“Tia, deixa eu sem fazer Educação Física, só hoje? Eu tenho um assunto para conversar só com a tia Inês. Não é nada de ninguém daqui não, nem dedoduragem, nada, é coisa da minha vida!” (GO, mo, 8 anos)

A reação da professora sempre era positiva, no sentido de permitir a conversa

de bom grado, respeitando a imensa ansiedade do menino GO, ainda que, de modo

pouco amistoso em relação a ele, talvez até também em relação a mim, ela

propusesse uma condução “pedagogizante” para o nosso diálogo, que soava mais

inadequada para mim do que propriamente para ele. O menino ficou olhando para

ela, parecia ouvir sem escutar, enquanto aguardava o ponto final da fala da

professora:

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“Conversa bem com ele, Inês, você que é calma, porque eu preciso descobrir por que esse garoto bate tanto nos amigos, bate sem parar e não participa de nada. Esse garoto só faz o que ele quer, na hora em que ele quer! Ele voa direto, está sempre num outro mundo!”

GO mal esperou a saída da professora da sala e começou a falar o seu segredo

que está relatado aqui, parcialmente, no afã de resguardar o menino e sua história. E

foi direto ao assunto: “Esse é um segredo, uma notícia incrível, um segredo que

você não pode contar de jeito nenhum.” Nesse momento, a professora entrou na

sala de aula onde estávamos para pegar sua bolsa, e, imediatamente, ele parou de

falar. Ela saiu, e ele retomou a fala:

“Tia, meu pai não voltou ainda, mas eu já sei onde ele está. Eu , minha mãe

e meus irmãos fomos lá na casa dele. Sabe o ônibus Linha Direta? Aquele que vai pela Linha Vermelha? Sabe quando dá naqueles prédios? É por ali, na rua A, onde sempre tem festa. Meu pai casou de novo com a Márcia, a madrasta, aquela (referindo-se a uma pessoa que ele supunha que eu devesse saber quem é)... mas ele ainda está escondido porque os bandidos estão todos atrás dele. Só que minha mãe descobriu onde ele andava e nós fomos todos lá. Ele estava bem parado, de chapéu, mas eu olhei assim e vi lá longe que era ele. Eu tinha certeza, eu corri para abraçar ele. Minha mãe deixou Marquinho com a Márcia, que eu não chamo ela de mãe, só de madrasta, mãe é mãe, aí a Márcia resolveu levar Marquinho para o Norte, para a casa da mãe dela. Meu pai não voltou ainda, ele está no Rio, mas não voltou. Ele disse que vai trazer os móveis dele, o armário, o ventilador, o DVD , a TV e que vai trabalhar na televisão.” (GO, mo, 8 anos)9

Eu fiz a primeira interrupção, ao perguntar a ele o que o pai iria fazer na

televisão, em que ele iria trabalhar. Ele respondeu:

“Tia, não sei, mas ele diz isso. Ele trabalhava na TV a cabo, mas pegaram ele. Agora ele está escondido lá na Rua A e está já enricando10 de novo. Sabe onde é? Tem uma rua pra cá (fez com a mão esquerda), e outra pra lá (fez com a mão direita). É bem ali, na Rua A. Ele tem muita cotia, muita. O programa de televisão em que ele vai trabalhar eu não sei quando vai ser, nem qual. Meu irmão Alexandre, aquele que só pega mulher velha, ele não é meu irmão assim bem irmão. Ele é neto da mesma avó... não, ele é sobrinho da minha vó. E agora só falta Ronaldo, que é namorado da minha mãe, mas ele não é meu pai.” (GO, mo, 8 anos)

9 Relato parcial do depoimento do menino em que foram suprimidos detalhes e outras informações que pudes- sem expor de modo exagerado e/ou desnecessário sua história. 10 Enricar é um termo muito usado nesse grupo para significar enriquecer, ficar rico. “Enricando de novo”, no caso, significa voltar a ficar rico como já fora um dia, pela ótica do filho.

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A leitura das fichas informativas da turma me ajudou a fazer algumas

anotações, e, ao voltar aos meus registros, pude confirmar ser GO aquele menino

identificado como sendo o único da turma que tem em sua certidão de nascimento

apenas o nome da mãe, sendo que ela, curiosamente, nunca aparece nas suas falas,

apenas o da madrasta, sempre acompanhado da ressalva “de que ela não é a minha

mãe.” A figura do pai foi citada em todas as oportunidades em que o menino se

referiu a sua casa e a sua família, também sem citar o nome dele, apesar de

relacionar a sua figura a uma lista infinita de sonhos que considera realizáveis

diante de uma reaproximação entre o pai e a mãe, na casa onde mora. Os sonhos e

expectativas expressam sua visão de “família” com pai e mãe morando juntos, além

de isso parecer implicar uma retomada de certo padrão de vida que lhe devolveria

televisão, DVD, mobiliário, etc., já que, na expectativa do menino, o pai está

“enricando” de novo.

No seu livro mais recente, A Família em Desordem (2003), Roudinesco11

chama a atenção para a ampliação do conceito de família a partir de alianças com

estudiosos da Psicologia (Clínica e Social), da Psicanálise, da História e do Direito,

não só pelos rearranjos familiares e suas complexas dinâmicas, mas também pelo

que chama de “desejo de família”, que vem se fortalecendo nos dias atuais. Caso

fosse possível, arrisco-me a dizer que nessa aliança deveriam estar incluídos ainda

os professores, pedagogos e profissionais da área de Educação em geral. Segundo

Roudinesco, essa discussão entrou em pauta mais recentemente devido a uma

pressão exercida pelos grupos homoafetivos, que, em dado momento, teriam

contestado e rejeitado as famílias por acreditar que elas fossem opressoras da

liberdade sexual e, assim, obstaculizavam a vocação humana de amor e de

felicidade (idem, p.199). Esse novo valor socioafetivo e moral foi enfrentado pela

autora ao legitimar essa busca social de normatização, uma forte vontade de

11 Elisabeth Roudinesco, historiadora e psicanalista, é professora na École Pratique des Hautes Études. Exerce interferência esclarecedora sobre os temas candentes de nossa época e participa ativamente na mídia, colaborando no jornal Le Monde. Autora de renome, com diversos livros que marcaram época, tem publicados por esta editora: A família em desordem; De que amanhã... (com Jacques Derrida); Dicionário de psicanálise (com Michel Plon); História da psicanálise na França (dois volumes); O paciente, o terapeuta e o Estado; Por que a psicanálise?; e Filósofos na tormenta. Para a televisão, escreveu o roteiro do documentário Sigmund Freud, a invenção da psicanálise (com E. Kapnist, 1977), exibido no Brasil pela GNT.

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integração e de pertencimento que não se coadunaria mais com a antiga postura de

ruptura com a ordem vigente, já que ter uma família e/ou ser parte de uma se

mantém como um valor e um desejo contemporâneo e, portanto, legítimo. Esses

desejos, escolhas e expectativas se constróem e se transformam nas vivências dos

indivíduos em grupos, em campos socialmente estabelecidos, e se aplicam também

aos modos como as famílias vêm se organizando. Essa dinâmica da vida, portanto,

convida a um repensar conceitual de modo a acompanhar a dinâmica dos grupos

sociais e as demandas que são parte das redes de significados compartilhados que

precisam ser legitimados.

Segundo a mesma autora, família pode ser conceituada como uma

estruturação psíquica, na qual cada membro tem um lugar definido, sendo que, para

o lugar do pai, da mãe ou do filho, não é necessário laço biológico ou consangüíneo.

A família como fonte de companheirismo e de afeto, de valorização de cada

membro, é parte do mundo simbólico de crianças e adultos brasileiros como espaço

social e afetivo que representa apoio, proteção e segurança, como um tipo de

convivência social que ainda parece ser indispensável ao desenvolvimento pleno de

todas as dimensões das personalidades de cada pessoa. É na vivência familiar, ainda

que não só nela – também na escola (que a cada dia se inicia mais cedo), na vida da

comunidade onde moram e por meio da mídia –, que hoje as crianças se estruturam

como sujeitos. Tanto é que, quando algumas dessas circunstâncias se ausentam, a

lei jurídica tem o dever de garantir alternativas para a sobrevivência de cada uma

dessas crianças e, com isso, garantir a manutenção da própria sociedade.

Nesta pesquisa, ratifico o compromisso de não fazer qualquer juízo de valor,

reconhecendo como “família” todos os diferentes modos de grupamentos de

pessoas que coabitem numa mesma casa por laços consangüíneos e/ou

socioafetivos, por afinidades, com ou sem relação direta de parentesco, também por

interesses e circunstâncias, etc., desde que entre eles sejam estabelecidos e

mantidos certos laços mútuos de compromissos em relação às suas crianças.

Retornando às crianças em sala de aula, jamais supus que a vida escolar se

mantivesse ao largo das experiências que alunos e professores vivem fora da escola

e, por isso, buscava o tempo todo conhecer as experiências subjetivas, advindas das

práticas audiovisuais com a televisão, que pareciam se configurar como um

comportamento extremamente habitual e simples, um rotina “já posta”e bastante

sedimentada em suas vidas. Pesquisas indicam e a própria televisão divulga, tanto

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que os televisores estão presentes em todos os lares brasileiros, quanto o

crescimento da população-audiência, além do número de horas/dia de exposição do

público infantil à programação televisiva12. E, ainda, pelo fato de a televisão, nesse

caso, servir como um elemento que espacialmente unia as famílias em torno dela,

nem por isso favoreceu aproximações, diálogos e nem mesmo contato físico entre

as crianças e seus familiares.

Nesse universo determinado de pesquisa, a triangulação

televisão-famílias-crianças aconteceu de modo semelhante em cada caso, com

apenas duas exceções, que serão discutidas mais à frente. A leitura das fichas e as

conversas com as crianças indicam que em 20 casas podem ser encontrados 34

aparelhos de televisão funcionando, sendo que todas as crianças têm em casa, pelo

menos, uma televisão em cores e com controle remoto. E aqui não se inclui um

número significativo de aparelhos quebrados que, certamente, são guardados mais

pelo seu valor simbólico do que monetário, sem serem jogados fora e sequer

consertados. Quando as crianças se referiam à permanência em casa dos aparelhos

que não funcionavam, dois argumentos foram usados como justificativa: de que o

conserto era muito caro, que televisão não era para ser jogada fora, talvez na

esperança de um dia poder vir a consertá-las; e, contraditoriamente, que o problema

era muito simples diante de um diagnóstico já estabelecido e que, inclusive, teria

validade para todos os aparelhos quebrados: “Tia, é válvula, sempre é. Válvula

queimada que tira o som e a imagem, mas dá pra consertar de volta”, como explica

a menina ML, de 7 anos, cuja fala sugere que a família desconheça que há mais de

20 anos não são mais produzidas televisões com válvulas.

Um outro aspecto muito interessante e que tem referência imediata com os

valores simbólicos de sucesso e de pertencimento se referia à quantidade de

aparelhos eletrodomésticos da cada uma das famílias, como se fosse possível

acompanhar o ritmo em que novos produtos são lançados, gerando uma valorização

no grupo daqueles que conseguem com maior agilidade perseguir esse sonho

coletivo que jamais se realizou. A televisão, em si, escapou da lista de sonhos não

realizados, tanto pela facilidade atual de compra em suaves prestações, quanto pelo

que ela representa na vida de todo cidadão contemporâneo.

12 Segundo IBOPE/PNT, em 2007, crianças e adolescentes viram quase cinco horas de TV aberta no Brasil.

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Na busca por compreender as relações entre essas crianças, delas com suas

famílias e com a televisão, há uma determinada concepção de criança que norteia

este estudo e que se articula com os pressupostos utilizados para a compreensão do

imaginário infantil em sua complexa relação com o real e com o mundo ficcional.

Mesmo diante de uma vida incerta e insegura, em que muitas vezes essas

crianças sequer tinham a garantia de voltar para casa e reencontrar seus familiares e

responsáveis e a falta de alimentos variados e saudáveis para a sua sobrevivência

(parecia não lhes faltar comida, exatamente), para indicar apenas dois elementos

muito citados indicados por eles, os dispositivos de jogo permitiam abarcar certos

produtos de consumo no próprio ato de brincar das crianças. Assim, mesmo diante

de circunstâncias muito adversas nas quais muito lhes falte, como uma casa segura

(onde não houvesse risco de balas perdidas), um emprego fixo para seus pais,

sapatos para ir e vir para a escola ( eles desejavam tênis “de marca”) além de falta

de carinho e de atenção, etc. – eles brincavam, riam e jogavam de modo muito

envolvente e criativo.

Ao assistir e participar com eles dos lanches no refeitório e das atividades de

pátio, além do tempo em que estive em sala de aula, podia ver as crianças

demonstrarem como criam mundos outros, por meio do jogo e da ficção, de uma

existência na qual até o trágico e o insólito aparecem transmutados em projeção

imaginária de uma realidade também outra, uma realidade alternativa.

Entre as crianças que brincavam, ainda que muito do que desejavam lhes

faltasse, elas brincavam com a própria falta da qual reclamavam, sem parecer que

essa fosse uma situação traumática, sob a ótica dos bens de consumo. Isso sugere

uma noção amistosa, ainda que cruel, de pertencimento que lhes une em relação ao

que falta a todos, pelo que era desejado pela maioria, tais como: iPod, bonecos do

High School Musical, uma casa perto da praia, assistir aos jogos de futebol nos

estádios, ter um carro, comprar tênis “de marca” etc. Essas crianças dispunham de

uma capacidade de enfrentamento que incitava os jogos ficcionais entre eles, em

que ficção e imaginação se mesclavam em experiências extremas em que

recriavam-se, os seus pares e nesse percurso, também o mundo.

Aqui vale uma referência a uma opção conceitual, seguida do seu

encaminhamento, no sentido de enfrentar as questões relativas ao jogo e à

brincadeira de modo menos restritivo, em que não bastava contrapor as questões da

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vida real aos seus elementos ficcionais, nem supor que eqüivalessem ao que o senso

comum chama de verdade ou de mentira.

Sarmento 13 (2003, p.2), vem contribuindo com algumas definições de

imaginário infantil que têm sido material de estudo de muitas áreas identificadas

nessa relação das crianças com o mundo, mesmo diante da ressalva de que a

“investigação venha sendo dominada pelas correntes teóricas da Psicologia. As

perspectivas predominantes são as psicanalíticas e as construtivistas”. Ainda

segundo ele, para Freud o imaginário infantil corresponderia “à expressão do

princípio do desejo sobre o princípio da realidade, sendo o jogo simbólico uma

expressão do inconsciente, para além da formação da censura” (idem, p.2), o que

para Piaget seria bastante diferente. Para o segundo estudioso, o suíço Piaget,

gradativamente o pensamento simbólico infantil deveria ir dando lugar, num

processo de superação de fases que, segundo ele, marcariam igualmente o

desenvolvimento de todas as crianças, ao pensamento racional, este sendo o ápice

do pensamento humano.

Concordo mais uma vez com Sarmento (idem, p.3), ao destacar as

diferenças essenciais entre as diversas orientações da Psicologia e, ao mesmo

tempo, sinalizar que “as perspectivas psicológicas do imaginário infantil possuem

um elemento comum, concebido como a expressão de um déficit – as crianças

imaginariam o mundo porque carecem de um pensamento objetivo ou porque estão

imperfeitamente formados os seus laços racionais com a realidade”.

Esta idéia do que falta às crianças como sendo a justificativa da existência e

da atuação do imaginário, que se sustenta no que indicam que lhes falte, sem se

referir a bens materiais, mas a razão, a uma participação na vida política e

econômica, a fala (infans), a luz (a-luno), etc., resulta de um pressuposto

epistêmico que vem sendo revisto, em especial pela Psicologia, mas que não atende

à compreensão de crianças e dos complexos mecanismos de funcionamento do seu

imaginário, segundo o mesmo Sarmento.

13 Este texto foi produzido no âmbito das atividades do Projeto “As Marcas dos Tempos: a Interculturalidade nas Culturas da infância”, Projeto POCTI/CED/49186/2002 , financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Baseia-se numa conferência proferida no âmbito das Jornadas “Educação e Imaginário”, realizadas na Universidade do Minho, Portugal, em março de 2003.

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Em função disso, é importante destacar aqui tanto a concepção de criança

que sustenta esta tese quanto a concepção utilizada para compreender a relação

entre real, ficcional e imaginário.

A concepção de criança que sustenta este estudo é a de sujeito ativo, não só

por ser falante, dotado de outras formas de linguagem que não apenas a oralidade

mas, por ter direito à participação na vida social como ator social do mundo de que

é parte. Como produtoras e consumidoras permanentes de cultura, as crianças têm o

que dizer, tem a livre expressão como um direito e precisam ser ouvidas sobre o que

pensam, sobre o que desejam, ou não; têm o direito de se calar e de escolher como,

quando e se querem expressar seus medos e expectativas. As crianças não só têm o

direito de acesso ao que é produzido e veiculado por meio das mídias,

especialmente por meio da televisão, quanto o direito de opinar sobre o que lhes é

oferecido por ela, com a qual compartilharam quase 5 h do seu dia, no ano desta

pesquisa.

As crianças desta pesquisa interpretavam e agiam sobre o mundo de modo a

estruturar e a estabelecer padrões sociais que, com muita freqüência, vinham

interpelar certos modelos e padrões do mundo adulto, ainda que sob a forma de

brincadeira ou jogo. Muitas vezes, diante de ordenações muito rígidas e totalmente

pré- planejadas pelos adultos, como costumava acontecer dentro das salas de aula,

elas criavam e se utilizavam de certos mecanismos que funcionavam nos

interstícios dessas mesmas ordenações, por meio de linguagens expressivas como o

olhar, os gestos, desenhos e outras alternativas.

Nessa perspectiva, a infância se conceitua como uma categoria

sócio-historicamente construída, que abarca aspectos que se referem ao que é

comum a todas as crianças como parte da espécie humana, tais como idade, gênero,

etnia, etc. Como categoria social, ela tem uma estrutura que influencia e é

influenciada por modos próprios de ser/ver a criança, de viver a infância, que

podem ser diferentes e até conflitantes entre si, de acordo com cada grupo social.

Assim, ser criança e ter infância em cada tempo, lugar, cultura e estrutura social são

possibilidades que se adequam ao conjunto de regras e recursos socialmente

disponíveis, em cada caso, aos modos estabelecidos de organização simbólica,

ainda que os mesmos não sejam estáticos e que, por isso, estejam em permanente

processo de transformação na vida social.

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Isto implica tanto reconhecer a infância como uma fase comum a todas as

crianças, quanto afirmar haver elementos muito peculiares que se realizam na

vivência dessa etapa e que personalizam a experiência de cada uma delas de modo

bastante peculiar, subjetivo e muito diferente de uma para outra. E esses processos

de subjetivação que dependem da vivência em interação social têm conseqüências

complexas e muito variadas na construção simbólica do mundo de vida de cada

uma. Na linha do que defendem os estudiosos das culturas infantis, como Sarmento

(2005, p.373), entre essas variáveis intervenientes que merecem destaque estão o

maior ou menor grau de participação da criança na vida familiar e comunitária e as

relações que estabelece com adultos e crianças, seus impactos nas representações,

recriações e na capacidade de interpretar e de transformar suas heranças culturais. É

o mesmo Sarmento (idem) que define as culturas infantis como “um conjunto

estável de atividades ou rotinas, artefatos, valores e idéias que as crianças produzem

e partilham em interação com seus pares”.

Nesse processo de interação social, em que as crianças constróem e

compartilham suas redes de significados, pesam as relações que estabelecem com

seus pares, com os adultos e com o mundo em que vivem. Ainda que se possa supor

que o imaginário infantil tenha uma ordem de funcionamento muito mais intensa e

abrangente que o dos adultos, essa dimensão do pensamento humano é inerente ao

que lhe caracteriza como tal. A vida ordinária cotidiana de crianças e de adultos

segue determinadas rotinas, estruturas e ordenações, em que as expressões

“realidade” e “mundo real” são usadas, freqüentemente, para garantir padrões de

comportamentos e de expectativas de mudança que, de alguma forma, não ponham

em risco essas mesmas estruturas e ordenações, na medida do possível.

Por tudo isso, torna-se necessário pôr em questão o que seja o real, para ser

possível chegar aos aspectos ficcionais e imaginários que mais diretamente nos

interessam neste estudo sobre e com crianças, no qual os jogos simbólicos que

envolvem o imaginário se impuseram como uma atividade expressiva característica

e preferencial das crianças estudadas.

Tomei o pensamento do crítico literário Wolfgang Iser, que se dedicou à

Teoria da Literatura, como referência para adensar e compor esta análise dessas

questões. É claro que uma apropriação conceitual da Teoria da Literatura no

contexto deste estudo, na área da Educação, exige que sejam feitas certas ressalvas,

já que não se trata aqui da relação entre o leitor e o discurso ficcional da literatura,

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como pensou Iser (1996, p. 341-363), mas do imaginário e do ficcional infantis num

estudo de campo pragmático, que, tradicionalmente, não estaria afeto à ficção.

Os conceitos desenvolvidos por Iser que ajudaram a compor o estudo aqui

apresentado são os de performance e de real, ficcional e imaginário, como

propostos por ele.

Iser foi um estudioso alemão contemporâneo que dirigiu seus estudos mais

especificamente para a área da Literatura, tendo se inspirado, para desenvolver seu

trabalho, em quatro grandes campos, como: a Psicologia Social, a Psicanálise da

Comunicação, a Sociologia da Comunicação e a Pragmática, esta como parte da

Filosofia da Linguagem.

Tendo essa contribuição como referência, acompanhei e registrei a criação

de brincadeiras pelas crianças que envolviam certos programas de televisão vistos

pela maioria delas, ou que, de certa forma, naquele grupo, as crianças

majoritariamente acreditassem que todas viam. Assim, em geral, estabeleciam no

refeitório um tipo de “competição-relâmpago” que funcionava como uma

seqüência de quiz14, que colocava todas as crianças em situação de prontidão para

entrar no jogo e tentar vencer. Essa brincadeira, segundo eles, chegou à escola

depois que o menino LE, de 7 anos, esteve numa festa de aniversário em que

aconteceu algo semelhante “mais ou menos assim, não era tudo bem assim, a gente

faz mais legal sem ter adultos”, disse ele. A brincadeira começa quando uma

criança inicia a competição-relâmpago com o quiz da vez, que imediatamente é

aceito pelas demais, com muita excitação e energia: “Quem viu Big Brother ontem?

Quem gosta da Gisele e o que aconteceu com ela no episódio15 de ontem?” Uma

outra pergunta feita foi “qual é o nome da dupla, dos dois jogadores, não serve só o

nome de um não, que ganhou o vôlei de praia no Pan de domingo?” Uma outra, que

teve como pano de fundo o programa Zorra Total, fez uma pergunta que iria

comprometer as demais crianças com o programa do sábado seguinte, para

identificar o vencedor, aquele que acertasse a resposta, ou o que chegasse mais

perto dela. Algo mais ou menos assim: “Quem sabe como é que a Márcia vai

conseguir mentir para o Leozinho, aquele corno chifrudo, que é marido dela, para

enganá-lo, de novo?” O refeitório fica inflamado de falas e opiniões, e cada um tem

14 Quiz é uma palavra da língua inglesa que significa adivinhação, um teste rápido; a palavra foi introduzida nesta tese por mim, não pelas crianças. 15 O termo episódio foi usado pela criança.

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que “guardar a sua resposta na cabeça e ver o que vai dar na tevê, não adianta gritar

que eu não vou ouvir”, ameaça o menino LH, 7 anos.

Uma outra pergunta comum se refere ao mundo automobilístico, não só para

testar o conhecimento do nome e das marcas, porém algo mais: “Quem conhece e já

andou no Ford KA novo, modelo novo?” Em geral, quem fazia a pergunta tinha

grandes chances de ser o vencedor nesses casos, a não ser quando o grupo fazia uma

impugnação e esta era aceita por todos. Um caso em que isso aconteceu foi quando

a menina ML, 7 anos, tida pelo grupo como a que tem os brinquedos mais atuais e

mais caros, fez seu quiz sobre televisores. LE, menino de 7 anos, logo se levantou e

gritou no refeitório, dizendo “o pai dela cata os jogos no lixão dos ricos, na portaria

dos prédios que ficam na praia, lá pelo Leblon, Copacabana ou ali, naquela praia

onde tem o Alpha Barra 1, 2 , 3 até 20” (referindo-se a um condomínio na beira da

praia da Barra da Tijuca que tem vários blocos), deixando transparecer algum

sentimento de raiva, nesse momento, sem que se pudesse definir exatamente em

relação a que, apenas levantar algumas hipóteses. Talvez devido a sua explícita

desconfiança em relação a todos os brinquedos que a amiga ML dizia ter ou, talvez,

pela possibilidade de uma minoria poder morar “à beira da praia”. Em todas as

alternativas, no entanto, o menino se mostrava em situação de desigualdade, talvez

no lugar de “perdedor e/ou desprestigiado”, menos em relação ao grupo da turma,

porém de modo intenso em relação àqueles que tinham melhores condições

financeiras do que ele e sua família. A menina ML disse: “É verdade, tia. É tudo

verdade, minhas amigas já viram tudo”, dirigindo-se a mim, não ao amigo LE. Ela

diz ter o Laptop das Princesas, um computador, apesar de ela não poder usá-lo, um

MP3 que a madrinha comprou para ela na loja Casa e Vídeo, além de inúmeros

aparelhos de televisão. Não deve ser por acaso que, como uma das fomentadoras da

tal brincadeira, que a pergunta tenha vindo dela: “Quem tem mais televisões em

casa?” As respostas surpreenderam pelas quantidades: “Quatro, disse ML, 7 anos”;

“Seis, respondeu KS, 6 anos; “Quatro também, disse LF, 7 anos”. Até que um outro

menino, o LH (7 anos) reagiu e gritou assim: “Mas só vale funcionando!”, o que fez

uma outra menina (TS, 7 anos) refletir e ratificar o argumento: “Ah, é! É sim! Tem

que estar ligando, desligando e dando pra ver as imagens com cor. E tem que ter voz

também!”, ao que o grupo respondeu com um sonoro “aaaaa ...”, indicando

decepção. Imediatamente todos começam a refazer as contas, que, segundo o novo

critério, faziam com que os resultados numéricos caissem bastante, e, assim, ML,

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que pensava ser a vencedora quando propôs o quiz, perdeu seu lugar para uma outra

criança, devido ao novo pacto. Chegou - se, ao final, à média de 1,7 aparelhos em

cores, por pessoa, como resultado da divisão de 34 aparelhos pelas 20 crianças que

fazem parte dessa turma.

As crianças da turma às quais estou chamado neste trabalho de os

“puxadore” 16 da brincadeira, aqueles que alavancavam as

“competições-relâmpago” a que pude assistir, eram quatro: três meninas e um

menino que, num piscar de olhos, transformavam o tempo e o espaço do refeitório

da escola em um ambiente lúdico, com regras próprias de um tipo de brincadeira de

onde se extraia um vitorioso, aquele que respondesse primeiro e que conseguisse

justificar sua resposta com argumentos considerados válidos pelo grupo. Assim,

surgia uma pergunta por dia, já que foi estabelecido assim, só podendo haver uma

questão por dia, “no lanche” (refeitório) e, eventualmente, uma outra, no pátio, que

os meninos determinaram ter que ser sobre futebol, o que as meninas detestavam,

apesar de não terem conseguido mudar tal regra. Elas ficavam em volta, arriscavam

palpites nos ouvidos umas das outras, mas não participaram efetivamente da

brincadeira, nessa circunstância, durante todo o ano.

Durante o tempo em que estive no campo, não faltaram elementos para

comprovar que aquelas crianças se configuravam como uma audiência televisiva

tão fiel quanto crítica e questionadora e, assim, mais uma vez, confirmavam sua

participação ativa nas rotinas culturais oferecidas pelo ambiente social, do qual a

programação televisiva fazia parte. Essa participação ativa se configurava em

apropriações, questionamentos, recriações que, com isso, permitiriam que

questionassem e propusessem transformações para o mundo em que vivem, em

função daquele em que tinham a liberdade de criar, desejar e viver em situações de

brincadeira e de jogo.

Na “competição-relâmpago” em que foi colocada uma pergunta sobre o

relacionamento de determinado casal da televisão (Márcia e Leozinho, do programa

Zorra Total17) foram expressos valores e concepções sobre a dinâmica dos casais

16 Nome dado por mim a cada uma das crianças que inicia o jogo e que, assim, puxa a brincadeira, instala novas regras compatíveis com a dimensão simbólica da proposta. 17 Segundo o IBOPE Media Worlkstation PNT, nos dados contabilizados até 13/07/2008, os dez programas mais vistos pelas crianças de 4 a 11 anos são: 1º. A Favorita; 2º A Turma do Pica Pau; 3º A Grande Família; 4º Malhação; 5º Temperatura Máxima; 6º Os Mutantes, Caminhos do Coração; 7º Zorra Total; 8º Jornal Nacio nal; 9º Futebol na TV Globo e 10º Beleza Pura.

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em que foi posta uma crítica quanto à suposta “habilidade” da mulher, não

só por conseguir trair o marido com freqüência, mas, por além de enganá-lo,

convencê-lo do contrário. Assim, ao final da cena, a mulher usava a expressão

“contornei”, olhando diretamente para a câmera com um sorriso capcioso para

indicar que, mais uma vez, havia ludibriado o seu marido, mas não àquelas

crianças. Elas aguardam pela virada do marido, a quem chamam de “otário, corno,

chifrudo e boiola”, considerando inaceitável uma mulher trair e enganar seu

marido. Aí certamente estão embutidos os papéis sociais de mãe e de esposa, mais

do que de mulher (como gênero) que tem a ousadia de enganar “um homem” –

neste caso, destacado pela função social de “marido”, que, contudo, poderia ser

também um pai, ou não.

Nos jogos de futebol do pátio, quando aconteciam brigas e reclamações, era

comum os meninos usarem a expressão “contornei” entre eles, associada do piscar

de olhos da personagem Márcia, de modo recriado, performatizado (ISER, 1996),

adaptado e criativo, sempre que “ganhavam no grito”, em geral, “quando a gente dá

uma volta no juiz ou no adversário”, disseram LE, LH e LF, todos meninos com 7

anos.

Enquanto, de outro lado, LE, já de pé, ainda chorando, desafiava o rival:

“Tudo bem, vou contar pra minha mãe, você vai ver! Ela vai vir aqui e vai te dizer

que foi ELA [falou gritando] que mandou eu sentar perto da professora pra

aprender rápido, pra ficar sossegado e prestar atenção. Você vai ver só!”

Assim, à guisa de uma conclusão para este tema que envolve crianças,

televisão e famílias, pretendo voltar meu olhar para a figura materna como sendo a

responsável pela determinação sobre o que não deve ser feito, o que não deve ser

visto, no que não se pode mexer, como por exemplo, a televisão, que se configura

mais como um aparelho que tem uma única dona, a mãe, e menos como uma fonte

de diversão, entretenimento, informação e, eventualmente, também de

conhecimentos. Vejamos o que disse a menina TS, 7 anos, sobre sua vida familiar:

“Quando eu e minha mãe éramos do mundo, quando a gente não conhecia as palavras da Bíblia, a gente até fazia umas coisas daquelas da novela: beber, fumar, namorar, mas agora não. Agora nós só sabemos as palavras e as notícias que o missionário fala, ele explica o que aconteceu. Ele sabe as palavras da Bíblia, e nossa mãe não quer a gente nas notícias, com coisa de morte, de tiro, nem nua, nem sem roupa.”

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Na seqüência, a menina TS inclui sua amiga ML, de 7 anos, tanto porque suas mães são amigas quanto pelo fato de freqüentarem a mesma igreja:

“Quando nos éramos do mundo, a gente queria ser artista, não é, ML? Hoje a gente nem quer mais, a gente sabe que é a palavra de Jesus que conta a história da vida. O resto é tudo mentirada!”

A amiga reforça o argumento no sentido de comprovar o poder da mãe, em especial da mãe da amiga TS:

“Um dia, nós fomos a uma igreja lá na Gardênia, que não é a nossa e das nossas mães, é a da tia Cristina. Lá tiram o diabo do corpo, mas essa não é a nossa igreja, a da gente é outra. Lá a TS viu tirar o diabo do corpo de uma mulher que estava com um bebê, só que ainda bem que a gente dormiu nessa hora.”

Na mesma hora, para poder entender, perguntei a TS: “Ué, você viu ou você

dormiu bem na hora? Como foi isso?” Ela respondeu assim:

“A minha mãe mandou eu fechar o olho e dormir imediatamente, Tia Inês, você sabe o que é isso? Ela fez eu dormir porque era perigoso, mas que o bispo tirou o capiroto, tirou. Isso eu tenho certeza. Capiroto é um outro nome do diabo, e quem chama assim é o Wagner Montes, na Record, no canal 9. Só que, quando a minha mãe manda, é já, na hora. Eu obedeço e todo o mundo que está ali perto, acho que a ML também teve que obedecer”.

A menina WR chegava todos os dias perfumada, de cabelos molhados e

bem penteados, variava os brincos, que compunham com a maquiagem leve e o

glitter (batom com brilho), que não podia faltar. Essa menina fazia questão de

responder com um sorriso suavemente tímido aos elogios que recebia das amigas e

da professora: “É minha mãe que me cuida, que me arruma de manhã e ela deixa eu

usar meu batom.” É ela também uma das crianças que mais reclama, sempre com

uma fala em tom baixo, sobre suas expectativas frustradas em relação a uma

parceria mais efetiva com a mãe:

“Na minha casa tem máquina de lavar roupa, som, mas não tem microondas. Tem televisão, claro. Eu adoro ver coisas legais na televisão: desenho animado, Sítio do Pica Pau Amarelo, novela, A Grande Família e Linha direta. Detesto jogo de futebol e ver jornal, mas tenho que ver com a minha mãe, com a minha madrinha e a minha tia. A mãe da tia também. Eu fico só vendo de longe, brincando. Quando eu acho que vai acabar, eu vou chegando, e aí, muitos dias, a minha mãe não deixa eu ficar em casa, com a família, pra ver os meus programas. Ela me leva com ela no culto

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Orar para Jesus. Eu sei, ela está certa, porque só Jesus pode fazer as coisas melhorarem. Eu não gosto de ir lá, mas eu sei, ela está certa. Não adianta ficar só no eu quero, eu quero, só. Tem que orar pro Jesus melhorar.”

E conclui assim: “Meu maior sonho era brincar só eu e minha mãe um dia ou

sair só eu e ela pra gente ficar junto, ir ao shopping e ao cinema. Eu nunca fui ao

cinema com ela, só fui uma vez com a mãe da minha tia. Eu queria sentar e brincar

com ela de mãe e filha, de casinha e de escola, mas eu que ia ser a professora.” Com

isso, ela botou a mão na boca como se tivesse feito uma revelação imprópria que

tenha escapado do seu controle. Saiu da sala de aula para beber água e não voltou

mais ao assunto.

Como eu já havia dito, a vida das crianças na escola trazia ao debate tanto

aspectos relativos à programação televisiva, no caso, um personagem do programa

Zorra Total, como também a representação simbólica de família ali colocada pela

figura da mãe como alguém que “vai à forra”, que protege e que estabelece ordens

para serem cumpridas pelo filho num espaço que não é o da família, mas do âmbito

escolar. A figura protetora, a detentora do amor incondicional em relação aos seus

filhos, é um dado relevante nesse grupo, com três raras exceções, e começo o relato

por elas. Um dos casos se refere à vida do menino GO, de 8 anos, já relatada neste

trabalho. Ele vive, objetivamente, na mesma casa com a sua mãe, ainda que ela não

pareça valer, para o menino, como uma referência familiar de segurança, proteção e

alento. Ele só se referiu à mãe enquanto esteve na escola (após as “férias do Pan”,

ele retornou por poucos dias e, no mesmo mês de agosto, saiu da escola)

respondendo a um chamado da direção que colocava sobre ela uma expectativa de

contribuição no sentido de ajudá-lo a realizar o tão sonhado reencontro com quem

ele chama de pai, que não tem seu nome no registro de nascimento do filho, apesar

de isso pesar menos diante da certeza do sentimento filial do menino GO. Era uma

hipótese levantada pela equipe gestora da escola que o reencontro do menino com o

pai pudesse tranqüilizá-lo e, com isso, melhorar não só seu desempenho escolar,

como também sua relação com os amigos da turma.

Os outros dois casos são vividos por dois meninos, GB e JH, que serão

citados a seguir. Em ambos os casos, ao se referirem a suas histórias familiares, que

têm estrutura calcada nas figuras de pai e de mãe como co-responsáveis, parece

haver certo orgulho ou uma prerrogativa de superioridade diante dos demais, como

se eles fossem mais protegidos que os outros. Nos dois casos, também, os pais são

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citados mais que as mães como sendo presentes e participativos em brincadeiras

que gostam de fazer juntos e em relação aos programas que vêem com os filhos na

televisão. Segue a fala do menino GB, de 7 anos, que tem em casa apenas uma

televisão “mais ou menos pequena, mas que é colorida e com controle remoto”:

“Eu gosto muito de ficar com meu pai vendo TV Globinho, Scooby Doo e Paraíso tropical. Ele deixa eu escolher o programa que eu gosto com o controle na minha mão. Eu vou virando, virando, até achar o que a gente quer. Só que, na hora do jornal, eu tenho que ver com ele o do SBT , só que eu nem gosto, mas eu vejo com ele. Adoro ver novelas, e ele vê comigo e aí ele reclama que é ele que não gosta das novelas, mas ele fica junto e vê comigo.”

JH, um menino muito falante e ativo de 7 anos , “vascaíno de coração, como o

meu pai”, fica de segunda a sexta-feira com a mãe, na casa da patroa dela, no

condomínio onde a escola se situa. Na casa da patroa da mãe, ele só pode ver

televisão “com horário marcado, antes e depois do almoço e só um pouco, para

poder fazer os deveres”. Ele relembra com muito gosto os dias de férias em que

houve o Pan, em que pôde permanecer na casa dele com o pai, que saía para

trabalhar, mas deixava autorizada sua ida ao “restaurante do tio comer um PF

[prato-feito], na mesma calçada da casa dele, em Rio das Pedras”, e assim que o pai

chegava, eles falavam “só de Pan, Pan sem parar”. E segue:

“Não tinha ninguém pra me encher o saco. O dia todo eu via campeonato de tudo e ia guardando na cabeça pra poder contar depois tudo pro meu pai, quando ele chegava. Quando o Brasil ganhava medalha, eu saía gritando ‘Brasil, Brasil’. Eu torci pra tudo: remo, judô, salto triplo, ginástica olímpica, futebol de homem e de mulher, tênis de mesa e até badminton.”

O que JH mais gosta de fazer, “assim, na época de aulas”, diz ele, em que só

vai para casa nos fins de semana com a mãe, é ficar com o pai diante da tevê:

“Eu gosto muito de jogar futebol com meus irmãos grandes e de ver o Vascão na televisão junto com meu pai. Ele gosta de ver novela antes quando o jogo vem depois, mas isso é só durante a semana. No sábado e no domingo, pára tudo, pára Faustão e tudo para o meu futebol, com meu pai.”

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No restante do grupo, recai sobre a figura materna a referência direta com o

que sentem e entendem como família, ainda que essas referências sobre o papel da

mãe variem em cada uma das crianças do grupo.

4.2 Crianças, professora e televisão

Vale lembrar que, no primeiro dia de aula, quando a professora encontrou sua

turma demonstrando alegria e entusiasmo, não conseguiu amenizar suas

expectativas sobre o sucesso em relação às aprendizagens escolares durante o ano

letivo que se inaugurava. Antes de entrar na sala de aula, disse ela: “Agora, num

espaço de crianças grandes, que vão aprender a ler e escrever”; ainda com as

crianças enfileiradas na porta, perguntou também: “E aí? Está todo o mundo

animado pra estudar, pra ficar quietinho, ouvir a tia e aprender?” Em seguida,

algumas crianças responderam e logo foram seguidas pelos demais:

“Siiiiiiiimmmmmmmmm”. Continuou a professora: “Então todo o mundo está me

prometendo que vai ficar quietinho, prestando atenção, sem fazer bagunça? Sem

confusão? Sem briga?”Ao que eles responderam:

“ Nãããoooo! A gente vai zoar muuuito, vamos gastar muuuito o LE, que voltou careca [a cabeça dele estava raspadinha, com desenhos que pareciam riscos feitos com máquina de cortar cabelo] e...”, grita JH do final da fila, “vamos jogar muuuito futebol no campo”.18

Sem aparentar desânimo, a professora riu, não retrucou, entrou em sala

seguida pela fila de crianças, onde imediatamente se instalou um troca-troca de

lugares para cada um escolher as mesas que, nessa etapa da escolarização, passam a

ser carteiras individuais (mesa e cadeira). Não demorou a surgir uma briga entre

dois meninos por uma mesma mesa, próxima da professora e da janela da sala de

aula, que ocupa praticamente uma parede lateral inteira.

Tudo aconteceu muito rapidamente. Aos gritos, LE e LF se bateram, se

ofenderam, até o primeiro ir ao chão, chorando. Enquanto a professora corria para

chegar ao fundo da sala na tentativa de intervir na briga, àquela altura o suposto

vencedor já se exibia com uma cadeira na mão, dizendo: “Eu tô doido, eu tô doido,

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eu tô doido!19”, enquanto girava o corpo e ria. A turma se dividiu entre uma grande

parte que ficou parada, assistindo à cena sem nada fazer, enquanto um pequeno

grupo misto, formado por três meninos e duas meninas, aplaudia enfaticamente e

gritava muito alto, todos juntos: “Porrada! Porrada!”

A professora chegou e foi categórica: “É, senhor Jajá (referindo-se ao LF), o

senhor chegou hoje, depois das férias, e já voltou doido, é isso? Então, o senhor vai

sentar bem perto de mim, mesmo, juntinho de mim, mas não naquela mesa da

janela; do outro lado, ali, coladinho, bem juntinho de mim, porque eu vou ficar de

olho no senhor. Essa de ficar doido comigo não cola! Eu, de Dona Juju não tenho

nada!”

Nesse percurso, em que eu estava convencida quanto à propriedade de pensar

a vida social e cultural, juntamente e a partir da vida daquelas crianças e daqueles

adultos que compõem aquela determinada comunidade escolar, como era o

dia-a-dia deles, as decisões que tomam ou que deixam de tomar, sempre conectadas

com o “campo de possibilidades” considerado válido para aquele determinado

grupo, estava certa de que o trabalho a cada dia abria novas perspectivas que me

exigiam corrigir os percursos iniciais para manter o foco.

Bem ali, sentada a uma das mesas que ocupei durante quase todo o ano letivo,

mantive-me atenta para poder ouvir, anotar tudo, repercutir as escutas e

observações, dialogar quando oportuno e, ao mesmo tempo, tentando guardar as

informações que mereciam registro e reflexão, que foram muitas.

A professora e grande parte daquela turma de crianças compartilhavam uma

rede de significados em que eu podia afirmar sem dúvida que fazia parte daquele

repertório sociocultural do grupo – também da professora – assistir a pelo menos

um programa de televisão em comum, Zorra Total, produzido e veiculado nas

noites de sábado pelo canal aberto de maior abrangência e audiência do Brasil, a

Rede Globo.

Não por acaso, logo no início do ano letivo, quando dois meninos brigaram

pela posse de uma mesma mesa, fui abordada pela menina AG, de 6 anos, que me

perguntou: “Tia, tia Inês, você vê Zorra? Eu gosto mais da Eugênia, que nem grita,

18 Esse prolongamento da vogal tônica que faz a palavra “muito” soar como [muuuuito] é um jargão criado por um determinado programa televisivo, em que uma personagem dizia “vou beijar muuuiiito”. 19 “Eu tô doido” é uma expressão usada por outro personagem do programa Zorra Total, em que, mais uma vez, há um casal – o marido é o senhor Jajá, e a esposa é a Dona Juju.

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só entra e sai da lâmpada!” Sem ouvir a minha resposta, ela me deu ‘tchau’ com a

mão e saiu da sala. Fiquei com a hipótese de que a pergunta-comentário feita por ela

tenha sido um recurso, tanto para me incluir na mesma rede de significados, me

ajudando a ser parte do grupo, quanto abrir uma brecha para ela apresentar uma

oposição de modo discreto e sem enfrentamentos à briga com gritos que havia

acontecido, referenciando-a no personagem da tevê, conhecido como senhor Jajá. A

Eugênia, uma personagem, que funcionava como “o gênio da lâmpada”, também

era parte do programa Zorra Total.

Não foi por acaso, na circunstância da briga, que a professora tenha se

inserido e partilhado do grupo e do contexto do impasse que trouxe à cena os

referidos personagens da televisão, mostrando conhecer a rede de significados do

grupo. A minha presença ali, como um elemento novo, não só mobilizou uma

criança (a menina AG), como também a professora, cada uma a seu modo.

Nessa situação, a professora veio a mim e, naturalmente, teceu um

comentário, expressando com ele sua preocupação de se proteger de julgamentos de

valor que são dela, não meus, e não faltaram explicações para uma conduta da qual

ela pareceu se envergonhar, as quais não me cabe julgar. Segue aqui o depoimento

dela, agora contextualizado, apesar de o mesmo já ter sido citado anteriormente:

“(...) eu não vou dizer que eu não vejo, porque eu vejo. Mas eu não vejo assiiiiim, direto, todos os sábados. Só se eu estiver em casa, assim... sem ter nada para fazer. (...) Mas como está tudo muito violento, eu não tenho carro, acabo ficando em casa. Meu dinheiro não dá, também, para viver em shopping e em cinema. Minha mãe, que está velhinha, adora ver Zorra, ela não perde. Eu até falo para ela me contar tudo porque..., você sabe, né? Essas crianças não perdem um sábado, adoram, amam. O tal do seu Jajá, então... eles adoram.” (professora regente da turma).

A presença na escola de fragmentos perceptivos ou sobras que deixam

marcas a partir do que vêem na televisão e, também, sobre a compreensão de cada

uma das crianças sobre família e os modos como elas se relacionam não se dá sem

conflitos, tensões, ambigüidades e contradições.

GT, uma menina de 7 anos, mora numa bairro próximo, em Jacarepaguá,

com a família: pai, mãe e um irmão. Sua mãe está desempregada, e o pai trabalha

com entulho (lixo), no shopping, até de madrugada. Ela tem um irmão de 9 anos e

um outro irmão mais velho, filho só do pai, que mora no Ceará com uma avó. Na

casa dela, há três televisões: “Duas pequenas, desse tamanho (fez com a mão), e

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uma das pequenas é colorida, e tem uma enorme (precisou abrir bem os braços), que

é nova, grande e tem controle remoto.” É natural que as demais crianças do grupo

tenham ficado muito impressionadas com o depoimento dela, até mesmo porque é

quase uma unanimidade no Brasil e na América Latina o valor simbólico de se

dispor em casa, pelo menos, de uma televisão em cores e com controle remoto. No

entanto, o brilho dos olhos dela e dos das demais crianças da turma se esmaece

rapidamente quando ela conclui sua fala:

“Só que eu não posso brincar, nem ligar. Nada. Não posso fazer nada nessa, nem o Lucas, nem mexer em nada, só quando a minha mãe está em casa. E, na minha casa, tem uma coisa de só poder ter uma televisão ligada, aí é que é o saco. Pior é que eu e Lucas só gostamos da televisão grande da minha mãe, que tem controle”.

Uma outra menina emenda sua fala na da anterior, para ratificar alguns aspectos:

Minha mãe chega em casa e a primeira coisa que ela faz é ligar a televisão. Ela gosta de ver jornal, notícias, Luciana Guimenez. Eu acho que ela nem vê, mas a gente tem que ficar tudo ouvindo, porque ela liga. Eu só gosto da novela O Profeta e queria muuuito ver o Alemão e a Siri vencendo, terminado juntos no Big Brother. Sabe o que aconteceu? Sabe, tia Inês? Minha mãe saiu com a amiga dela e eu não vi tevê nesse dia. Todo dia ela vê jornal, eu detesto, mas ela liga e eu vejo, às vezes porque minha mãe vê. Eu mesma, é só no Natal que eu gosto, porque dá notícias de compras, de shoppings com árvores enormes, coisas boas e bonitas.” (AG, ma, 6 anos)

Durante o tempo em que estive no campo, pude verificar que as escolhas das

crianças diante da programação televisiva de que dispõem só acontecem quando

não estão acompanhados dos adultos de suas famílias. Quando estão juntos em

casa, diante da televisão, o que viam era determinado pela escolha dos adultos, com

exceção dos meninos JH e GB. No entanto, as crianças não lhes obedeciam sem

recusas, ainda que não as explicitassem diretamente, o que era dito e questionado,

sugerindo que ela funcionasse como uma “agência”, tal como sugerem os

estudiosos da Sociologia, em especial os que se dedicam às culturas infantis.

Segundo eles, “agência” configura uma possibilidade de as crianças

organizarem-se de forma autônoma tanto em relação aos seus pares como em

relação às ordens sociais instituídas. Assim, se em casa atendiam ao que os adultos

lhes impunham em relação aos horários e às escolhas diante da televisão, na escola

esses impasses e recusas eram ditos e compartilhados. Essa conduta pode ser

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explicada por Corsaro e Edler (apud SARMENTO, 2005, p. 373), quando

sinalizam que as crianças não só participam criativamente da sociedade em que

vivem como também se mostram totalmente habilitadas para questionar essa

mesma sociedade – o poder, a ordem, as regras, etc. – e, assim, acabam afetando a

sociedade e não apenas sendo afetadas por ela.

Não foi possível, neste estudo, estabelecer qualquer parâmetro de

regularidade sobre a relação dos adultos com as crianças que coabitam uma mesma

casa, diante da televisão. Não houve padrão de constância ou regularidade em

relação a certos programas, nem em relação a um ou outro formato de programa

televisivo, também quanto ao horário em que as famílias estão em casa,

habitualmente, segundo as crianças.

Neste estudo, foi demonstrado que as culturas infantis se expressavam,

preferencialmente, nos intervalos de tempo vagos e livres, determinados pelos

adultos como parte das rotinas das crianças, em casa e também na escola, sempre

que nesse lapso de tempo estivessem distantes do olhar dos adultos, ainda que com

autorização prévia deles. Os espaços de expressão das culturas das crianças

ocuparam “os interstícios dos ordenamentos espaciais e temporais que os adultos

organizaram para elas.” (Corsaro in BORBA, 2006).

A casa em que as crianças vivem com suas famílias, também a escola, como

instituições sociais diferenciadas que funcionam em espaços, tempos e com

ordenamentos sociais diferentes, não impediam que as crianças mantivessem seu

olhar infantil curioso e crítico sobre o mundo adulto. Assim, podia notar as crianças

criando e estabelecendo, coletivamente, certas estratégias e recursos que lhes

permitiam tanto lidar com os valores, comportamentos e hábitos que lhes eram

impostos, quanto estabelecer seus próprios pactos, acordos e negociações que

garantiam não só um sentimento de pertencimento ao mundo, mas permitiam

também compreendê-lo para poder viver e agir no/sobre este mundo. Mesmo

reconhecendo a casa onde moravam e os membros de cada família como o tipo mais

próximo de audiência televisiva, onde supostamente aconteceriam apropriações e o

estabelecimento de significações a partir da interação tevê-audiência, o que as

crianças relataram não confirma essa tese.

A menina LS, de 7 anos, disse: “A gente ouve, ouve, ouve números demais,

chatices, coisas tristes e não adianta nada”, se referindo ao horário do telejornal,

qualificando seu período de duração como sendo regido por um acordo tácito de

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passividade, de silêncio e de escuta, para mais tarde, talvez, vir a ser possível fazer

algo mais prazeroso:

“Não pode falar nada para não atrapalhar o jornal, só ouvir. Grita minha mãe, grita minha avó, beltrano e cicrano. As crianças têm que ficar mudas, só ali, paradas. Eu fico só vendo do meu quarto até acabar e, aí, eu posso começar a ver minha novela, que eu adoro.”

Na sala de aula e na escola, as ricas interações que aconteciam se davam a

despeito da autorização dos adultos e costuravam as relações entre as crianças de

modo que os adultos naturalmente se excluíam e, assim, perdiam a chance de

conhecer as culturas das crianças. Deste modo, não eram capazes de compreender

como elas se relacionavam com os valores do mundo adulto: suas ressalvas,

questionamentos, os contornos e negociações que não configuravam, de nenhum

modo, a uma obediência servil diante do poder e da força dos adultos.

4.3 Crianças e outras mídias, na escola:

Ainda que exista uma unanimidade quanto à presença marcante dos avanços

tecnológicos na vida contemporânea de todos, principalmente daqueles que vivem

nas grandes metrópoles, pode-se afirmar que as oportunidades de acesso (e de

apropriação) a essas tecnologias e a tudo o que elas oportunizam ainda sejam muito

desiguais e que isso dificulte a conhecer as complexas relações e as repercussões

desse fenômeno na vida de todos.

A escola, como uma instituição social que tem um espaço próprio, um

tempo, regras de funcionamento e ordenações muito particulares, não tem como se

manter ao largo da vida que acontece fora dela e, mesmo aquelas que não dispõem

de recursos tecnológicos para o fazer pedagógico cotidiano, não podem supor que

estes não façam parte da vida da comunidade escolar, da vida de professores e

alunos. Com ou sem o endosso da equipe responsável pela gestão pedagógica e, até

mesmo, a despeito da autorização dos responsáveis, as tecnologias e as mídias lá

estão como sendo parte desse novo tecido que caracteriza a experiência de

professores e alunos. Isso implica dizer que o fato de ser possível, por exemplo,

tirar fotografias e fazer pequenas anotações num aparelho de telefonia celular

simples modifica os padrões de registros gráficos e fotográficos, para citar apenas

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alguns, como resultado de transformações que passam pela interação entre os

sujeitos e as mídias. Com isso, não apenas são introduzidas novas formas de

registros que dão suporte à memória como são proporcionados intercâmbios

on-line, quase em tempo real, de idéias, imagens e informações. Esse pequeno

exemplo, que se refere apenas aos celulares, indica possibilidades e recursos de que

crianças e adultos dispõem, mesmo quando os aparelhos em si estão em casa ou

desligados nos bolsos ou nas mochilas, porque, mais do que nos aparelhos, operam

nos sujeitos novas formas de constituição, estruturação e ordenação do pensamento.

Assim, a vida contemporânea passa a funcionar sob a égide dessas

possibilidades, que se ampliam a cada minuto, exponencialmente, também quando

nos referimos aos iPods, aos MP3, às máquinas fotográficas, aos audiovisuais,

como vídeos, DVDs, televisores digitais, entre outros.

As crianças, cada dia mais cedo, convivem com as imagens sonorizadas e

em movimento em suas casas além de terem acesso a videolocadoras onde podem

alugar desenhos animados, filmes e vídeos, tanto aqueles destinados ao público

infantil quanto ao adulto. Cada vez mais rapidamente, também, os seriados da

televisão e os longas-metragens, que fazem sucesso no cinema e/ou na televisão,

estão disponibilizados para serem alugados e vistos em casa, repetidamente, de

forma linear e na sua integralidade, ou de modo fragmentado, no intervalo de outras

atividades e, até mesmo, simultaneamente, enquanto agem, conversam e/ou

brincam.

Isso posto é recorrente o fato de as crianças comentarem entre elas, na

escola, vídeos, filmes e experiências interativas com mídias, principalmente no que

se refere à programação televisiva em canal aberto, em geral. Quase sempre, seus

comentários passam despercebidos ou não têm repercussão entre os adultos da

escola. A televisão é elemento importante e muito presente nas vidas das crianças,

embora não seja, ainda hoje, considerada uma fonte válida e legítima de assuntos,

informações e entretenimento que mereça espaço na escola.

Como aprofundar essa reflexão sobre a relação entre crianças e mídias em

que a televisão está incluída se em casa e na escola as crianças pouco ou não

dialogam sobre o que vêem na televisão? Quando me refiro a diálogo, levo em

consideração as situações/interações com a mediação da professora regente em que

sejam consideradas as vozes e opiniões de todos, nas quais sejam respeitados os

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pontos de vista individuais e coletivos e, mais, nas quais o diálogo seja tomado

como sendo elemento favorecedor e indispensável à aprendizagem.

Se a educação formal, aquela que se dá dentro do espaço e tempo escolares,

é uma empreitada essencialmente coletiva, que exige, pelo menos, a relação entre

duas pessoas, não me parece razoável que a atenção silenciosa seguida pela

obediência seja um requisito para a costura de uma produção maciça de atividades

mimeografadas. Silêncio e atenção, por si sós, não são elementos que produzem

encontro nem interação, podendo, no máximo, robustecer o argumento capcioso

que exige um tipo de “rentabilidade dos processos escolares”, que, historicamente,

parece vir produzindo mais desinteresse pela vida escolar e fracasso.

No caso dessa turma, a professora regente é cobiçada pela comunidade,

pelos pais e também pelas crianças como sendo uma das melhores da escola, muito

responsável, como de fato é. Competente e muito rigorosa quanto aos

compromissos que estabelece com a escola para a ação escolar, ela é muito assídua

e, de certo modo, rigorosa quanto aos deveres e valores nos quais acredita, como

pude acompanhar, além de receber seu apoio, durante todo o ano de 2007. O que

falta a ela, inegavelmente, falta a muitos de nós, professores, em termos de

formação prévia e continuada sobre o que seja uma compreensão mais ampliada e

atual sobre a infância, os modos próprios de constituição de conhecimentos,

conceitos e valores, além de alguns preceitos indispensáveis àqueles que atuam nas

séries iniciais em relação ao que chamarei de formalização da leitura e da escrita,

com todas as aspas que possam ser atribuídas à palavra formalização, usada na falta

de outra mais adequada.

Nesse percurso, acho importante situar exatamente a minha crítica em

relação à questão-chave desta pesquisa e deste tema, em particular. A(s) mídia(s)

vai(ão) à escola junto com as crianças e, também, com as professoras e os

funcionários, como parte de suas experiências cotidianas de vida, queiram ou não.

Chamo atenção aqui para uma relativa impermeabilidade dos planejamentos de

aula, que não prevêem nem deixam brecha, talvez por não fazer parte do repertório

sociocultural dessa comunidade escolar, o trabalho diário que se nutre de uma

interação dialógica com as crianças a respeito do que elas gostam, valorizam e

experimentam em relação às mídias e à televisão, particularmente, sob a mediação

do professor, dentro da sala de aula.

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Esse novo tecido da experiência contemporânea, que passa pela imagem,

pelo som e movimento proporcionados pelas mídias, era reconhecido, valorizado e

muito bem trabalhado sempre que este fosse entendido como um recurso paralelo,

para enriquecer a ação da professora. As alternativas pedagógicas que envolviam as

mídias, nesta escola, funcionavam como ferramentas que endossavam, ampliavam

ou tinham como função despertar o interesse das crianças sobre alguma questão. Ao

mesmo tempo, a sala de leitura da escola era especialmente ativa e se destacava,

inclusive, pelas produções audiovisuais, em que crianças e professores, junto com a

equipe gestora, já haviam sido premiados.

Para encaminhar uma conclusão desta introdução ao tema, deixo aqui uma

provocação no sentido de supor que, diante de planejamentos escolares tão bem

amarrados e conduzidos e, por outro lado, reconhecidas as necessidades de diálogo

e de interlocução entre as crianças e delas com os adultos, muitos elementos

curriculares sobre a vida de todos se percam, não pela falta de expressão, mas por

falta de escuta (dos adultos em relação a eles). A(s) cultura(s) infantil(is) está(ão)

lá, obviamente, junto com seus atores, protagonistas, produtores e consumidores,

como se fazia(m) presente(s) em todos os espaços possíveis, embora os adultos

fiquem à sua margem, sem perceber o quanto a vida escolar perde com isso.

4.3.1 As outras mídias

Ainda em maio de 2007, quando já se anunciavam os Jogos

Pan-americanos, em especial através da televisão, com contagem regressiva, eram

geradas muitas expectativas. As crianças antecipavam possíveis resultados para o

Brasil, para os esportes pelos quais tinham preferências, para atletas já conhecidos,

etc. Por outro lado, havia o desejo latente de em algum momento ir assistir aos

jogos nos estádios, no parque aquático ou em qualquer outro mobiliário urbano

onde aconteceriam disputas. Que eu tenha tomado conhecimento, nenhuma das

crianças desse grupo foi a qualquer um dos jogos, o que talvez tenha gerado alguma

frustração, mas não diminuiu nem desacelerou o interesse delas pela competição,

acompanhada de perto pela televisão. Houve um recesso escolar durante o período

dos Jogos, o que facilitou o visionamento.

Já há algum tempo, essas crianças pediam à professora para fazer um

telejornal, mais especificamente quando o jogador Romário, do Vasco da Gama,

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esteve por cinco jogos consecutivos, num período de cerca de dois meses, para

fazer se milésimo gol. Naquela época, a expectativa das crianças, em especial a dos

meninos que são vascaínos, era tanta que eles criavam a notícia do gol, mesmo

antes de ele ter acontecido. Essa foi a única época em que verifiquei algum interesse

deles por outras mídias, de modo explícito, como se alguma emissora de rádio ou

algum jornal impresso pudesse vir a saber da notícia do gol antes deles. Os aspectos

relativos aos seus medos, expectativas e hipóteses que criaram sobre a notícia do

gol do Romário, e outras as notícias, estarão tratados na última parte deste capítulo.

No entanto, crescia no grupo o desejo de eles poderem agir como se fossem

repórteres num jogo ficcional que abarca, sempre dentro de si, concordando com

Iser, as vivências e experimentações de cada criança, o que alguns preferem chamar

de “realidade”, e que, ao serem mescladas ou entremeadas pelo imaginário

expressam-se com visibilidade e relativa concretude no jogo ficcional. Nesse caso,

o jogo ficcional que lhes interessava viver era o de ser repórter e de poder funcionar

“como se”, questionando assim certos elementos e estruturas do mundo em que

vivem, além de apresentarem alternativas (mais) satisfatórias ou (mais)

favorecedoras, se é que se pode dizer e escrever assim, para esse mesmo mundo.

Nessa época, mais perto do final do primeiro semestre letivo, um dia a

professora me disse:

“Ei, Inês, me espera. Eles estão me pedindo para fazer um jornal de notícias para a televisão, mas eles não querem jornalzinho da escola, eles querem para a tevê. Ainda por cima, não pode ser com caixa, porque é de bebezinho, de criança do jardim. Eu não sei fazer, você sabe? Vamos fazer?”

Combinamos de conversar adiante e, naquela mesma semana, encontrei a

turma trabalhando com jornais diários e suplementos infantis para, a partir deles,

extrair e selecionar as notícias que gostariam de apresentar no telejornal, que,

inicialmente, seria sobre o Pan. O projeto estava em fase embrionária, em que as

crianças desconfiavam de que poderia não vir a acontecer.

A atividade de produção de notícias a partir de recortes de jornal, de certa

forma, foi uma condução determinada pela professora, e, a meu ver, ela já

direcionava as crianças sobre as notícias, dentre elas, ainda, para as que tinham

maior ou menor destaque naquele tipo de mídia no qual a primeira página oferece

muitos elementos diferenciadores, como o tamanho das fotos e dos textos:

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“Eu recortei só o gol mil desenhado no papel. É desenho, mas é verdadeiro, o Romário fez e eu vi. O resto? É notícia de gente famosa, mas eu não sei o que eles falaram, porque eu não sei ler, entende? Mas é importante, olha só! (mostra com o dedinho o espaço ocupado pela notícia na primeira página)” 20 (VS, mo, 6 anos)

A turma havia sido organizada em grupos, em quatro grupos de mesas, e a

atividade consistia em selecionar notícias do jornal, recortar e colar num papel A4.

A professora ia às mesas e perguntava aos grupos: “Vocês não têm notícia

nenhuma? Não gostaram de nada do Globinho?” No grupo que estava trabalhando

com o suplemento infantil do jornal O Globo, uma criança respondeu:

“Só gostamos desse dinossauro. Já apareceram até no Fantástico esses dinossauros. Eles existiram de verdade, e a história deles é de verdade, mas aqueles da televisão e da foto são todos de mentira. Tudo fabricado na televisão, de mentira.” (TS, ma, 7 anos)

A professora pergunta sobre como se pode saber de coisas que foram

notícias no passado, quando Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil, por exemplo.

As crianças se entreolham por alguns segundos, pensando numa possível resposta,

e uma delas fala:

“Coisas do passado? Acho que só no dicionário, nas palavras da Bíblia, que explicam todo o mundo como era para trás. E no livro da escola. No museu... não sei. Diz que conta, mas acho que lá só tem o passado de morto, da vida de morto quando ele era vivo (ahahaha), algumas cavernas, eu acho. Não, caverna não. Acho que é múmia morta, que já foi gente viva.” (TS, ma, 7 anos)

Assim, as crianças mostravam acreditar, e as práticas escolares, por sua vez,

pareciam endossar, a existência de certa concepção de realidade como sendo

estática, reificada e que se mantinha atrelada “a uma verdade” que apenas os livros

ou a mídia impressa poderiam contemplar, ou seja, “os livros escolares e a Bíblia”,

além do material histórico e documental disposto em museus.

Ao final daquele dia, eu e a professora conversamos sobre a atividade

proposta, que, segundo ela, funcionaria como um aquecimento para o telejornal, já

que seria impossível fazer um telejornal “a partir do nada”. Conversamos sobre o

que seria esse “nada”, e ficou claro que ela se referia ao fato de um telejornal só

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poder acontecer a partir de certas “informações sobre fatos reais”, e, assim, não

poderia haver fonte melhor do que o jornal impresso. Essa condução me pareceu

não só diretiva, como cerceadora da liberdade de criação das crianças, na medida

em que foi sugerido a elas que trabalhassem com um filtro prévio já estabelecido

pelo jornal apresentado, que se restringia a exemplares de dias diferentes do mes-

mo jornal O Globo, além de não ter sido dada às crianças a oportunidade de

perceber que um mesmo fato ou dado pode ter abordagens, focos, destaques e

imagens muito diferentes em cada um dos jornais de circulação diária na cidade

onde vivem.

E, mais uma vez, retornava a importância de se retomar a discussão sobre o real

como uma dimensão que é abarcada por uma outra, a do mundo ficcional, na

medida em que esses fatos reais a que a professora se referia nada mais eram do que

representações do real que já haviam passado pelo crivo de inúmeras pessoas, dos

repórteres fotográficos aos responsáveis pelos textos, que juntos iluminam e

obscurecem, tendo ainda que obedecer à linha editorial da empresa em que

trabalham. Deste modo, supor que exista um mundo real implica não reconhecê-lo

em sua dimensão mais própria como uma representação, por ser, por si só,

inapreensível, mas que, como uma representação, pode ser transmutado em

linguagem. Sendo que, mesmo essa representação, por mais que se avizinhe dos

aspectos relativos à veracidade e à fidedignidade, permanece como tal, e como

representação não tem uma única forma, mais correta nem melhor, já que todas as

formas de representação são legítimas.

É claro que, no caso do jornalismo informativo, há critérios e até mesmo

formatos que regulamentam esse tipo específico de texto, seguindo as funções a que

se destina, em que, ainda assim, não subtraem de uma notícia fidedigna, oriunda de

uma fonte segura, o fato de ser uma representação que se insere no mundo ficcional.

Até mesmo hoje, as fontes históricas e documentais estão sendo reconhecidas por

alguns historiadores como textos ficcionais. Um bom exemplo que pode ser tomado

como elucidativo, para citar apenas um, consiste em refletir sobre dois pintores

como Debret e Taunay, que chegaram ao Brasil na mesma viagem que trouxe D.

João VI e que, aqui, produziram reproduções da nossa terra de modo muito

20 Os trabalhos feitos pelas crianças a partir de jornais diários deram origem a entrevistas em grupo e a situações de diálogo que integram esta pesquisa. Os trabalhos integram o anexo XX.

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diferenciado, com o objetivo comum de manter o rei de Portugal informado sobre

como era o Brasil e o que aqui acontecia.

Voltando à sala de aula, não me cabia interpor nenhuma crítica à professora, e

eu buscava, sempre que possível, conversar com as crianças sobre as diferenças

entre o jornal diário, “de papel”, como eles diziam, e os telejornais. Um menino de

7 anos, LH, tentou me responder ao explicar:

“Lá no incêndio de Rio das Pedras, foi bombeiro, foi até helicóptero, e aí virou uma notícia, apareceu muitas vezes na televisão. Essa notícia foi muito importante, muito!”

Demonstrei solidariedade ao menino diante do fato que tinha sido tão

assustador, o que me fez pensar, também, de que modo essa notícia poderia vir a

ajudar a outras pessoas como um alerta, na escola, para tomarem alguns cuidados,

para tentarem evitar esses incêndios, entre outras coisas. No entanto, ele pareceu

concordar em parte, porque fez questão de enfatizar a importância dessa notícia em

si, como se todo o mundo precisasse saber o que houve ali, naquele contexto: “Tia,

muita gente ficou sem casa, sem comida, isso é importante, é triste. Por isso que fica

passando o dia inteiro na tevê, deu plantão até”, referindo-se ao plantão do Jornal

Nacional da TV Globo. E continuou:

“No jornal de papel sai, saiu também que eu sei, mas só uma vez. Quem quiser, vai lendo aquele que está com aquela tragédia do Rio das Pedras, porque o jornal fica velho, depois sai outro e aquele fica velho, sai da banca. Pronto, a notícia pára de sair, sai outra, sempre nova e até triste.” (LH, mo, 7 anos)

Com esse comentário, o menino LH chamou atenção para alguns aspectos

importantes. Um deles é o fato de os jornais impressos serem diariamente

substituídos por outros novos devido ao volume imenso de notícias que precisam de

espaço de veiculação. Para o menino, uma tragédia como aquela não sairia

facilmente de sua memória e nem estaria desatualizada rapidamente, além de

qualquer outra uma notícia, ainda que mais atual, não ter o poder de resolver os

problemas originados pela incêndio. As notícias, segundo ele, poderiam vir a ser

substituídas sempre, até por uma “nova e triste”, só que nada poderia ser pior do

que ele viveu na comunidade em que morava, ainda em que a noticia ficasse

obsoleta tão rapidamente.

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Quando falamos de jornal impresso e sua relação com a vida desse

determinado grupo de crianças, estamos nos referindo a uma prática que elas

desconhecem. Em nenhuma das famílias desse grupo de crianças há o hábito de se

comprar nem de ler jornais impressos em casa, menos ainda diariamente. No

entanto, eventualmente são lidos enquanto estão expostos nas bancas de jornais e,

em especial, quando as crianças buscam neles determinadas notícias que lhes

interessam. Vejamos o que disse a menina GT :

“Tia Inês, sempre a notícia diz uma coisa ruim que já aconteceu. No papel, só tem notícia que vai acontecer só de tempo, de chuva e de sol. Nunca tem notícia do outro ano, que já passou.”

Perguntei a essa menina se ela estava se referindo aos jornais impressos, “de

papel”, como eles dizem, ou aos telejornais das diferentes emissoras da televisão.

Ela explicou:

“Tia, se liga, não tem jornal de papel na minha casa, só da tevê. No rádio, dá notícia também de crime, de morte, de trânsito e de se vai chover, fazer sol. Futebol passa em todo lugar e fica até na banca, no jornal de papel. Mas notícias da televisão são tudo verdade, eu vejo lá que a chuva ficou aqui (mostra com a mão, na altura do joelho).”

As crianças não têm o hábito de ler jornais impressos nessa turma e a

maioria delas ainda não conseguia ler nem escrever, já que estavam no primeiro

ano, do primeiro ciclo de formação escolar. No entanto, o menino GB, de 7 anos,

que já lia com relativa fluência, em determinado momento pareceu nervoso,

demonstrava medo de ser desacreditado pelos amigos. E, assim, num ímpeto, ele se

introduziu entre mim e a menina GT, de 7 anos, para dizer:

“Tia Inês, eu vi no jornal de papel, lá no salão de cabelos que a minha irmã está trabalhando, que nasceu uma criança sem cérebro. Juro. Eu não estou mentindo. Pode acreditar.” (GB, mo, 7anos)

A preocupação de GB se referia tanto ao fato inusitado que contou para os

amigos, quanto à fonte ter sido um jornal impresso. Esses dois aspectos, ainda que

totalmente distintos, eram igualmente pouco comuns: nascer uma criança sem cére

bro, e o menino GB ter tido acesso a essa noticia por meio de um “jornal de papel”

impresso. Aí parece se justificar necessidade que sentiu de contar o fato, a fonte e

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de situá-la, indicando haver locais onde há revistas e jornais disponíveis, em que os

salão de cabeleireiros estão incluídos.

O fato de a televisão permitir a todos ver e ouvir textos e imagens a despeito

da maior ou menor capacidade de leitura e de escrita de cada um, sejam crianças ou

adultos, tanto favorece o acesso de todos às informações que ela veicula quanto

parece influenciar o olhar das crianças sobre o que viam no jornal impresso, como

pude notar durante a atividade escolar.

Dois meninos, LE e LH, ambos de 7 anos, estavam conversando sobre uma

notícia com texto e foto na primeira página. Em certo momento, LH pergunta ao

amigo:

“Você não está vendo que essa é uma notícia da televisão, olha aqui, você não está vendo a imagem? Romário fez o gol. Parou o Faustão para mostrar o pênalti. Essa imagem é pedaço da televisão, não é retrato e não é desenho. Não sei, mas o Romário nem está parado.”

Diante disso, perguntei a ele (LH) o que era “uma imagem que é pedaço de

televisão, sem ser retrato nem desenho”. Ele disse o seguinte:

“Tia Inês, na foto de papel a gente tira, mas tem que ficar paradinho, quieto. Se não ficar quieto, parado, borra tudo na foto. O Romário está correndo, ele está tirando a foto correndo, de lado, isso é de câmera de televisão. Nem o Esporte Gol mostrou essa imagem, nem no Faustão.”

A explicação dada pelo menino LH refletia a sua dúvida quanto à produção

de imagens para as diferentes mídias. Se a televisão proporcionava uma experiência

que envolvia imagens em movimento com som, a fotografia era estática e nem

sempre se conseguia capturar as imagens com qualidade. Naturalmente que as fotos

de esportes exigiam um repórter fotográfico que tenha experiência com

fotojornalismo, que usa as imagens fotográficas com um cunho mais factual. No

entanto, é possível que a experiência audiovisual proporcionada pela televisão

viesse provocando as crianças a refletirem na produção de imagens e também nas

imagens utilizadas no jornalismo informativo.

O menino YC viu no jornal impresso uma matéria sobre vacinas, em que a

imagem que a acompanhava não é uma fotografia, mas uma ilustração. Diante do

desenho, ele, que ainda não sabia ler, disse: “Esse desenho está dizendo que isso

tudo aqui é mentira, é desenho pra criança, então, não é notícia de verdade. Notícia

mesmo, sempre tem fotografia digital.”

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Assim que ele introduziu a palavra “digital”, perguntei se e como seria

possível nós identificarmos quando uma foto é digital e, ainda, como é a foto

quando não é digital. Ele explicou que “a foto digital é aquela que dá pra nós nos

vermos atrás, na mesma hora. A outra... ( pausa), eu não sei como é, mas não dá pra

ver atrás”. (YC) Então eu perguntei qual tipo de máquina ele acha que teria sido

usada para as fotos do jornal impresso. Ele disse: “Tia Inês, claro que é a outra, a

que não tem vídeo.”

Os meninos LH e LE também estavam envolvidos com questionamentos

sobre as imagens, sua produção e veiculação. Assim, LH criticou o fato de LE ter

recortado uma cena desconhecida até então para aquele grupo de amigos, sobre o

que LE explicou:

“Eu colei o Dodô aqui porque ele foi vitorioso, fez um gol de deixar o goleiro puto. Essa cena eu não vi na televisão, só nesse jornal.”

“Ah, é assim?”, perguntou LH. “Então você recorta e cola uma imagem de

mentira, só porque é boa para o seu time? E se nem tiver acontecido? Se for tudo

mentira?” LE ficou muito pensativo, em dúvida, e em seguida respondeu: “Na

televisão, eu também não vi o Romário dando um cala-boca na platéia (gesto

semelhante a um ‘psiu’, um dedo na boca mandando o público se calar). Você

recortou e colou aqui. Isso pode ser mentira do papel também.” A menina GV, de 6

anos, entrou em favor de LE na discussão: “Ele não fez isso, não fez esse ‘psiu’ no

milésimo, porque na tevê não apareceu. Eu acho que é mentira do papel. Pode ser

até uma coisa de outro jogo que o homem colou aqui, a foto errada de outro jogo.”

Como se pode perceber, na opinião dessas crianças, o fato de uma imagem

ter sido vista na televisão era o elemento que garantia credibilidade para a

informação veiculada na mídia impressa. As crianças mostraram ter noção do que

se pode chamar de “efeito photoshop”, que permitia alterar imagens com precisão

de modo a fazer com que “as pessoas acreditassem que a mentira virasse de

verdade”, como disse VS, que continuou: “Eu já vi até um leão ficar de cabelo liso,

lisinho, na revista. Você já viu isso, leão liso? Eu já vi na revista, mas é foto. Foto é

foto, desenho é desenho. O que eu vejo na televisão eu vejo com meu olho,

ninguém me engana.” (VS, mo, 6 anos)

As crianças do meu universo de pesquisa, portanto, tinham acesso em casa a

poucas mídias além da televisão. Em três casas, havia computadores que não

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podiam ser usados, e, algumas vezes, o rádio foi citado como sendo uma fonte

fidedigna de notícias e de programação, dia e noite, como uma mídia ainda usada

pelos seus pais ou parentes mais velhos. Diz a menina ML, de 7 anos:

“Eu adoro ficar tocando piano no Laptop das Princesas. Também jogo Onde está meu Mel? E Jogo da Velha. Dá pra mandar mensagem no Laptop das Princesas ou da Barbie, mas é diferente de computador, que eu tenho também, que eu não escrevo e nem faço estudos nele.”

O menino YC, de 7 anos, voltou ao gol do Romário e mostrou como

acompanhou nas outras mídias o acontecimento:

“Tia, você sabe, né, todo o mundo sabe que o Romário fez o mil. Aí eu fui ver Fantástico para ver todo o lance, depois deu de novo no rádio e também deu na banca. Eu acordei e vi no jornal da banca, muita foto, muita notícia.”

4.3.2. “Notícia boa, nunca, nem no papel!”

Duas meninas, LS e ML, ambas com 7 anos, vieram a mim para dizer: “Tia,

a gente nunca ouviu uma notícia boa, tia. Nunca, nem no papel.” Eu retruquei

demonstrando algum espanto e disse para elas que sim, que eu já havia lido e sabido

de muitas notícias boas. Elas acreditaram, mas pareciam não imaginar que

existissem notícias boas. Então, eu reafirmei que sim, que eu já tinha ouvido, visto e

lido, também, notícias boas. Nessa hora, a menina ML se pôs de joelhos, no que foi

seguida por LS, enquanto brincavam como se estivessem pedindo, como se

implorassem por uma graça, e repetiam, seguidamente: “Por favor, tia, conta,

conta...”, dizia ML. A amiga LS pedia também: “Conta, conta, conta... tia, por

favor.”

Decidi então contar uma notícia que eu havia lido num dos jornais que

estavam disponíveis na sala de aula, no dia do trabalho em grupo. E comecei a

contar, enquanto as duas me olhavam e me escutavam atentamente; falei para elas

que eu havia lido naquele dia, no jornal, que havia um tipo de macaco, que eu

achava que se chamava muriqui, que era muito alegre, carinhoso com os do seu

grupo. Eles quase não brigavam entre si e talvez acabassem, de tanto que estavam

sendo caçados, maltratados e mortos, por serem muito mansos. Diante desse risco,

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uma família em Minas Gerais resolveu cercar uma área de terra, semelhante a uma

floresta, que era dela, para cuidar da natureza e defender os animais. Já haviam

nascido muitos novos macaquinhos, filhotes que estão sendo protegidos. Assim,

eles não corriam mais o risco de deixar de existir. Quando acabei, disse: “Fim.”

Brincando, ainda insisti: “Ponto final!”

Acabei de narrar uma notícia e perguntei a elas se essa não era uma notícia

boa. As duas, LS e ML, me abraçaram, pularam de alegria, bateram palmas, fizeram

expressões com caras e bocas e disseram: “Ai tia, que fofos, que linda história. Tia,

nós amamos a sua notícia. Por que não dá essa notícia no RJ TV?” (ML, ma, 7anos).

LS, ma, 7 anos, foi mais longe: “Ah, podia dar no plantão, aí eu ia amar muito mais

ainda.”

4.3.3 As crianças e as notícias da televisão

Há estudos na área de Comunicação Social (Silva, 2004) que revelam não

haver uma unanimidade em relação ao que os jornalistas chamam de

“valor-notícia”, referindo-se aos critérios utilizados para selecionar, delimitar e

especificar o que merece destaque como uma notícia, em cada caso, assunto e meio

de divulgação. A mesma autora diz, também, “que não apenas em organizações

diferentes, como mesmo o repórter e o editor de uma mesma empresa podem

discordar entre si na decisão sobre o que são os valores-notícia21”. (idem, p.10)

No entanto, para efeito de análise, é preciso trabalhar com uma definição

desses conceitos orientadores como patamar de referência para certos “atributos do

acontecimento” (idem, p.11) que ajudem na compreensão do que seja uma notícia.

Silva (idem, p.12) enumera aspectos relativos aos valores jornalísticos das notícias,

não no afã de reduzi-las ao rol por ela organizado, mas para ser possível contemplar

as variáveis que foram destacadas pelos jornalistas que contribuíram para o seu

trabalho. Seguem aqui, sem ordem de importância, os valores que determinam os

atributos que com maior freqüência sustentam as notícias: 1. referente à pessoa de

destaque ou personagem público (proeminência); 2. incomum (raridade); 3.

referente ao governo (interesse nacional); 4. que afeta o bolso (interesse

pessoal/econômico); 5. que provoca indignação (injustiça); 6. grandes perdas de

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vida ou bens (catástrofe); 7. conseqüências universais (interesse universal); 8. que

provoca emoção (drama); 9. de interesse de grande número de pessoas (número de

pessoas afetadas); 10. grandes somas (grande quantia de dinheiro); 11. descoberta

de qualquer setor (descobertas/invenções); 12. assassinato (crime/violência).

Segundo a autora, depois de elaborado, esse levantamento foi submetido

para análise e eventuais contribuições a renomados pesquisadores e jornalistas, tais

como Nelson Traquina, Mauro Wolf e Michael Kunczik, junto com autores

brasileiros como Manuel Carlos Chaparro, Mário Erbolato e Nilson Lage, que a

endossaram e reconheceram serem esses os critérios que, hoje, determinam o

caráter de noticiabilidade. Como todo conceito, no entanto, também o de “notícia”

não é estático, ao contrário, se transforma no ritmo da efervescência da vida social.

Vale como ressalva, também, o fato de o conceito de “notícia” estar inserido

no campo do Jornalismo, que por sua vez é parte da área de abrangência da

Comunicação Social. Em minha pesquisa, tem significação quando e se relacionado

à área da Educação, o que amplia muito o desafio e os riscos enfrentados. No

entanto, este trabalho foi assim estruturado para ser possível conhecer o que as

crianças compreendem como sendo notícia da televisão, sem perder de vista suas

características principais afetas ao jornalismo/notícias, que chegue à escola e à sala

de aula e que vem com isso iluminar o espaço de múltiplas interfaces entre

Comunicação Social e Educação, sem desconsiderar as especificidades de cada

área.

Há ainda outro elemento que funciona como pano de fundo de todo

noticiário, em qualquer uma das mídias, que se refere ao caráter de atualidade da

notícia e que vale como um pressuposto dos noticiários em geral. Isso implica dizer

que todos os 12 itens elencados como valor-notícia têm, ainda, uma referência

temporal que justifica o jargão usado entre os jornalistas para se referir a algo que

tenha perdido o seu teor de atualidade, algo digno de ser tratado com desdém no

meio e que é comumente conhecido como “notícia velha”. Vamos ao que anunciou

a menina JS, de 7 anos: “Meu nome é tal. Eu estou falando da Rede Globo e vou falar da notícia do Shrek. Shrek III. Ele é legal, quem já viu o Shrek II é pra ver o Shrek III, porque eles vão ter filhinhos.”

21 Trabalho apresentado no NP 02, no V Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom, 2005, pela professora doutora Gislene Silva, da Universidade Federal de Santa Catarina.

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E continuou a ler o papel que trouxe na mão, um recorte de uma revista em

que havia o anúncio do “Shrek, que chega ao Brasil em 15 de julho”. No momento

da leitura, ela percebeu que já estava em agosto de 2007 e, surpresa, ela parou,

olhou para a professora e disse: “Ih! Já passou! E agora? Tia, eu quero gravar outra,

essa não pode mais, já passou!” A professora, então, respondeu à menina: “Deixa

de bobagem, JS, o filme ainda está passando nos cinemas, continua aí!” JS não

aceitou e, no final da sua participação, começou a chorar, enquanto dizia para a

professora: “Tia, não é mais notícia, já passou, está velha, já chegou agosto. Eu

quero fazer outra. Por favor. De Pan, deixa eu falar do Pan”, referindo-se aos Jogos

Pan-americanos, anunciados para setembro do mesmo ano.

Além da certeza de que o tempo passa continuamente, não há dúvida de que

o período compreendido entre a novidade e sua obsolescência venha sendo a cada

dia mais encurtado, tornando-se menor na medida em que alguns fatos podem ser

acompanhados e tornados públicos em tempo real, ou muito próximo disso.

Retomando as questões desse grupo de crianças, bem antes de surgir a idéia

de ser feito um telejornal na escola, o conceito de notícia já era parte do universo

vocabular significativo e cotidiano delas, porém utilizado em contextos muito

variados e, às vezes, até mesmo contraditórios. Vejamos alguns exemplos:

“No Faustão, só tem uma notícia para as famílias. Da Fininvest. Quem precisa de dinheiro vai lá, pega, mas tem que pagar depois.” (GV, ma, 6 anos) “Meu pai está lá no Norte. Ele tinha prometido fazer festa para nós quatro (são quatro filhos), mas só fez para o menor – Marquinho –, que ele esperou nascer. Ele avisou a notícia da festa pra todo o mundo, que ia ter isso e aquilo, se exibiu pra galera e depois... nada. Eu e meus irmãos todos acreditamos, mas não teve foi nada.” (GO, mo, 8 anos) “Eu jogo play station antes e depois do almoço, na televisão. Jogo com meu irmão de 11 anos. Ele é Flamengo, eu sou Vasco”, diz o menino LH, de 7 anos, para seu amigo de mesma idade, que responde: “Meu irmão joga botão comigo e videogame também. Mas minha mãe tira os cabos da tevê para ver as notícias do jornal e novela. Eu bem vi ontem na televisão a família toda do Romário lá, no jogo, esperando o golzão dele, mas não fez o mil.” (LE, mo, 7 anos)

Ainda sobre o mesmo assunto, disse o amigo (LH, 7 anos):

“Notícia é isso (fez mão de microfone e deu um tom de reportagem): Rooooooomário fez o milésimo! Não. Errei. Desculpem, telespectadores,

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vou começar de novo. Gravando. O Romário fez só hoje o milésimo gol, e a torcida vascaína foi ao delírio.”

O caráter polissêmico22 do termo notícia se expressa bem nesses três casos,

em que o fator tempo se faz presente em diferentes contextos. No primeiro

depoimento, pareceu-me que a perenidade com que o programa Domingão do

Faustão 23 vem anunciando e acenando com a possibilidade de se conseguir

dinheiro fácil e em tempo recorde atenderia ao valor-notícia que se refere a grandes

somas de dinheiro, e, certamente, este seria um assunto interessante para um

número representativo de pessoas (notícia de interesse comum). Considerando-se a

vida das crianças e de suas famílias, todas de baixa renda, conseguir dinheiro por

meio de um empréstimo “para pagar depois, sem papelada e sem confusão”

(vinheta da Fininvest24) valeria como uma notícia na medida em que anunciava uma

alternativa que poderia ser promissora.

No segundo caso, ficou flagrante a frustração do menino com o feito, ou o

prometido e não feito pelo seu pai, ao se remeter a uma festa para ele e seus irmãos.

Os quatro filhos sonhavam com essa festa que não aconteceu, apesar de ter sido

avisada ao entorno social deles. O anúncio da festa foi um evento digno de notícia,

mas, como ela não aconteceu, tanto se tornou uma notícia falsa, o que é

inadmissível, quanto tornou públicas suas tristeza e dor, fortalecendo assim seus

sentimentos de abandono e de perda da figura paterna, como estão tratados no

capítulo sobre crianças e suas famílias.

Sobre o terceiro e último depoimento, é preciso informar que os meninos

LH e LE, ambos com 7 anos, funcionavam dentro do grupo como os baluartes das

rixas que envolvem os grandes times cariocas de futebol e que, não por acaso, eles

tinham consciência de que no país em que vivem o futebol e as rixas entre times

sejam parte de um assunto de interesse geral, ou de uma maioria. Além disso, o uso

do linguajar criado por um conhecido apresentador de programa esportivo e um

texto com formato jornalístico foram elementos suficientes para caracterizar a

referida notícia.

22 Polissemia é, também, um conceito polissêmico e utilizado por muitos estudiosos em tempos e espaços muito distintos. Aqui, ele foi usado tal como propôs Mikhail Bakthin, referindo-se à multiplicidade de sentidos que podem ser atribuídos a um mesmo termo. 23 Programa de variedades, ao vivo, que acontece nas tarde de domingo, das 15h às 20h , em canal aberto, na emissora de maior abrangência no Brasil, desde 26 de março de 1989. 24 Um das empresas patrocinadoras do programa Domingão do Faustão.

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É surpreendente poder verificar, em contato com as crianças, a abrangência

dos conhecimentos já constituídos em grande parte do grupo a respeito do texto

jornalístico e do formato dos telejornais, principalmente quando se considera que a

turma estava em fase de sistematização da leitura e da escrita. Vejamos o caso da

menina TS, de 7 anos. Ela me contou que, aos 4 anos de idade, levou um tombo na

escola e que “sangrou muito”. Segundo ela, ninguém quis olhá-la, porque ela estava

transformada “num monstro de sangue”, e, por isso, precisou ir com a diretora da

escola para o hospital público municipal mais próximo. Sua preocupação agora, em

2007, ou seja, passados quatro anos do acontecido, referia-se à possibilidade de

alguém tê-la filmado naquela época, na escola ou no hospital. E segue TS: “Eu nem

sei se filmou, mas vai ver que filmaram tudo. Era uma notícia, porque eu estava em

tempo de morrer, mas, se um repórter estivesse lá, queria ver o que ela ia fazer.”

Sobre o que eu perguntei: “Ela quem?” E, de imediato, a menina TS respondeu: “A

minha mãe, ora.” Hoje em dia, a mãe de TS, com quem ela a mora, converteu-se à

religião evangélica e, segundo a mãe, sua filha TS não podia “aparecer na mídia, em

especial na televisão, para não acabar em foto nua, com coisa de tiro e muito menos

na internet”, o que foi acatado por mim e pela escola sem ressalvas. Mesmo assim,

diante do conhecimento que a menina tinha de que nos dias de hoje existiam

inúmeras possibilidades de as pessoas serem filmadas de modo quase que

imperceptível, instalou-se um sentimento de ameaça quanto à existência de uma

possível gravação do que aconteceu com ela, mesmo passados quatro anos.

Conversamos algum tempo, e eu busquei tranqüilizá-la com o argumento

usado pelo grupo e, desse modo, questionei se hoje essa já não seria uma notícia

velha. Ela respondeu prontamente que “sim, essa notícia já está muito velha,

velhíssima, mas eu quero dar!”. Assim, entendi que, apesar de essa ser uma notícia

vencida pelo fator tempo para o público em geral, para a menina TS essa era a

notícia da vida dela. Então, propus que ela desse a notícia, ali, para mim, já que não

estava autorizada a participar da filmagem do telejornal. Ela fez de um estojo de

plástico fininho um microfone e disse:

“Aconteceu uma tragédia na Escola M. XY. Uma menina de 4 anos chamada TS caiu da altura da cintura da mãe dela no chão e quase morreu, mas Deus salvou ela. Tia Inês, o repórter, quando acaba, diz

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eu sou fulano, beltrano25. Eu vou falar. Eu sou TS. Pronto, acabou. Pode passar a letrinha. Tchau”

Imediatamente após o final da notícia da menina TS, aproximou-se o

menino LH, que já chegou mandando a amiga LG, de 7 anos, “calar a boca, porque

você não vai falar nada, eu que vou dizer”:

“Alô cariocas todos, de olho no Pan, que a gente vai vencer. Boa noite”

(LH, mo, 7 anos), apoiando em seguida o microfone de faz-de-conta na mesa,

improvisado com um lápis-borracha. Perguntei a ele o que aconteceria em seguida,

se bastava dar a notícia e pronto. Ele respondeu: “Nada, acaba e aparecem as letras.

Entra a novela. Pronto.”

4.3.4 Performance, agir como se

Para compreender os jogos ficcionais das crianças na relação com as

notícias da televisão, lanço mão do conceito de performance, cunhado por Iser

(1996). Essa aproximação com o ideário de Iser tem como finalidade ampliar a

compreensão dos modos próprios de apropriação por parte das crianças do que

chamamos aqui de conteúdos televisivos.

Assim, vale ratificar que esta tese não trata da relação entre o leitor e o

discurso ficcional da literatura, como pensou Iser, mas que o imaginário e o

ficcional infantis neste estudo, que, em princípio, não estaria afeto à ficção, vieram

exigir a aproximação feita, que se contextualiza no âmbito de abrangência da

relação entre o ficcional e o imaginário. (p. 341 - p. 363)

Segundo o autor, as condições de percepção humana e a insuficiência de

uma visão cósmica ordenada, que vem dar lugar a um mundo provocador de

interferências, constituem dois dos aspectos mais importantes para que a

performance se faça valer como força – força do mesmo calibre da mímesis26. Se,

25 Nesse grupo, para se dirigirem a pessoas comuns de quem não sabem os nomes, é muito comum o uso das palavras “fulano, beltrano e cicrano”, não necessariamente na mesma ordem. 26 “Parece que a morphé aristotélica migrou da natureza para a mente do artista, pois o que é imitado não é a natureza, mas as formas armazenadas na memória do pintor, fazendo com que a natureza seja, por assim dizer, revelada. Tal processo representa uma modificação ampla nos fundamentos da mímesis e deriva de uma modificação no entendimento da natureza. (...) A natureza precisa conformar-se a um repertório de formas comuns ao artista e ao observador da obra de arte.” (ISER, 1996, p.345)

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na concepção clássica, a mímesis ainda podia se avizinhar da noção de transposição

ou de reflexo, na medida em que a idéia de realidade deixa de ser compreendida

como algo que é “dado”, paralelamente nos deparamos com a premência de

explorar a variante de performance, que, embora intrínseca à mímesis, passa a ser

entendida como algo além da transposição, quando a realidade passou a ser “tratada

como um processo contínuo de auto-realização”(1996, p.348). Em vez de se

concentrar na idéia de complementação da natureza, tal como a mímesis era

pensada na época aristotélica, o que de mais importante existe para ser posto em

pauta é aquilo que o artista guarda na lembrança sobre as formas da natureza, e não

mais a mímesis como parte integrante da natureza, como foi pensada na Grécia

antiga. E essa mudança de concepção vai acarretar conseqüências significativas

para os estudos sobre a percepção, sobre o narrador e sobre o artista em geral. A

perspectiva de uma antropologia literária pela qual Iser pensou a relação entre

mímesis e performance vem trazendo contribuições significativas para os estudos

sobre o narrador, bem como o conceito de mímesis da época clássica deixa-nos

como legado a respeitabilidade das variantes que o compõem (performance) e, por

isso, ainda instaura forte ebulição para as teorias que lêem as obras da

modernidade.

O conceito de performance de Iser permite configurar uma espécie de

resposta, criada pela criança, individual e coletivamente, diante da necessidade de

se reinventar sob novas formas em interação com a imagem em situações

ficcionais. Embora o senso comum insista na idéia de “recepção passiva” (e aí se

baseiam os que falam do mal que a TV pode causar à criança), se consideramos as

crianças como sujeitos capazes de entender e de questionar, a seu modo, as normas

e as ordenações sociais do mundo adulto, podemos inferir que elas, como todos os

demais sujeitos, também atuam pela performance. Atuar pela performance

significa trazer consigo uma espécie de falta antropológica, ou seja, uma espécie de

sede – sede com “e” fechado e sede com “e” aberto – antropológica de ser aquilo

que não é ou de não ser aquilo que é. Necessitamos dessa ficção antropológica, e é

isso que justifica nossa atração por algo distinto de nós. É justamente nessa

necessidade de se reinventar sob novas formas, como afirmamos acima, que reside,

paralelamente, uma necessidade também de dar respostas para as imagens que as

atravessam no mundo.

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As crianças deste universo de pesquisa, em muitas situações,

performatizaram, ao criar outras situações de interesse a partir de suas percepções,

que, por sua vez, foram motivadas por imagens, textos e configurações típicas da

televisão. Elas performatizaram em interação com as imagens televisivas, o que

implica dizer que não copiaram, não cederam, nem imitaram; recriaram-se, na

medida em que vivenciaram a necessidade de agir “como se”, à semelhança do que

ocorre no discurso ficcional.

E, ao agirem com se fossem repórteres, como se estivessem trabalhando na

televisão, como se fossem adultos – jornalistas apresentadores de um telejornal,

repórteres de externas –, performatizaram e recriaram, cada um a seu modo, a

dinâmica própria dos produtos audiovisuais. E recriar implicou, também,

questionar vários elementos que os estruturam, como: a dupla de apresentadores, as

vinhetas e propagandas, os padrões estéticos, os programas que vêm antes e depois,

entre outras coisas.

Voltando à sala de aula, o monitor da televisão estava ali, pronto para a

filmagem do telejornal. Ele foi feito a partir de uma moldura de um quadro grande

que foi encontrada no lixo de uma das casas do condomínio. Essa moldura estava

sendo destruída por cupins e não servia mais para exibir qualquer imagem em

paredes, mas, ao primeiro olhar, as crianças disseram: “Aqui! Esta! Nossa televisão

está aqui” e levaram a moldura para o pátio da escola. Outras crianças sugeriram

um monitor velho de um computador ou uma televisão quebrada, mas aquela

moldura foi a escolhida como sendo a televisão de todas as crianças da turma, onde,

por trás dela, cada um daria sua notícia e, assim, estaria sendo o repórter do

telejornal.

No dia marcado, a professora virou o monitor da tevê e foi surpreendida por

três círculos de tamanhos diferentes, desenhados com lápis preto na moldura,

depois de ela ter sido pintada na escola. Quando as crianças viram o enquadramento

perfeito, a moldura sobre um tripé e as câmeras prontas para a filmagem, não se

contiveram de alegria e gritaram. Bateram palmas. Um dos meninos (LE, 7 anos)

disse assim: “Ih! Vai ligar a televisão!” O grupo gritou: “Vai ligar! Vai ligar! Vai

ligar!”, seguidamente. A professora pediu calma, repetidamente, e avisou: “Fiquem

tranqüilos, a Tia Inês vai ajudar o tempo todo na filmagem... (pausa).” Eu

permanecia sentada, no canto da sala, com as duas meninas que não poderiam ser

filmadas. As crianças insistiam na questão: “Mas a gente vai fazer a gravação? A

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gente vai aparecer na fita da televisão? A Tia Inês falou que dava pra gente se ver na

tevê!” A professora respondia a eles: “Sim, vamos gravar aqui na sala ou na sala de

leitura com um tripé, junto com a professora da sala de leitura.”

Quando eles se certificaram de que tudo ia acontecer como fora planejado, o

menino IS, de 7 anos, dirigiu-se para o monitor e encostou o seu dedo indicador no

botão (círculo) de maior diâmetro ali desenhado e disse: “Eu sou só trabalhador da

televisão, eu ligo e desligo, tá?” E assim foi, até o final. O menino IS funcionou

como o segurador de cabos “igual ao do Faustão”, esteve por todo o tempo

operando para o bom funcionamento da filmagem. Ligar e desligar a televisão

foram ações repetidas por ele pelo menos umas 20 vezes em cada um dos dias de

filmagem, com o maior cuidado e atenção. Num dado momento, ele se explicou

para a professora diante de todo o grupo: “Eu não quero fazer sozinho, tia. Eu não

quero falar notícia nem nada, eu só vou querer trabalhar na tevê, porque eu falo

gago. Eu ligo e desligo o tempo todo pra não ficar tempo parado. Na tevê, não pode

ter tempo parado.” (IS, mo, 7 anos)

Ainda durante a filmagem, eventualmente aconteceu de algumas crianças

interagirem diretamente com os repórteres, comentando algumas notícias, fazendo

críticas ou pedindo para que os mesmos falassem mais alto. Essa intervenção direta

soava natural para as crianças da turma, em geral, com exceção daqueles que ali

estavam atuando como repórteres. Todos os que foram interrompidos enquanto

estavam apresentando suas notícias reagiram muito mal às intervenções, como se

uma situação como essa jamais pudesse acontecer. GV, ma, 6 anos, ao ser

interrompida por um amigo, solicitou à professora uma nova chance na televisão:

“Tia, quero ir de novo, quero gravar outra notícia, o JH me atrapalhou. Pior, agora

eu não tenho outra notícia nova”, e começou a chorar. A menina JS (7 anos)

também foi interrompida enquanto anunciava o filme Shrek 3, quando, de repente,

algumas crianças começaram a gritar “eu já vi, eu já vi”. Ela foi ficando irritada e

não conseguiu se conter, vindo a responder direto para os telespectadores: “E eu

perguntei se você já viu?” Na mesma hora, ela se mostrou desconfortável com a sua

reação e parou de falar. Olhou para a professora, olhou para mim e decidiu dar

continuidade à cena. Àquela altura, o menino IS, o encarregado responsável pela

ordem, pela produção, pelos fios e pelo tempo, se aproximara e, já bem perto, “para

não ter tempo parado”, apenas com sua presença pressionou JS a continuar, ou a

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desistir. Ela reassumiu com firmeza, até concluir sua tarefa com uma pergunta

dirigida à professora: “Está bom? Boa noite e muito obrigada.” Depois de um esforço teórico-conceitual exaustivo baseado na tentativa de

trabalhar com os conceitos de “verdade” e de “mentira” para a compreensão do que

acontecia no campo, ficou clara a necessidade de buscar uma sustentação mais

abrangente que pudesse abarcar a complexidade da relação entre o real, o ficcional

e o imaginário nesta pesquisa. Para isso, foi feita essa nova aproximação conceitual

com o ideário de Iser (1996), para entender essa relação entre o imaginário e o

ficcional infantis tão presente neste estudo do campo pragmático, que,

tradicionalmente, não estaria afeto à ficção. Assim, operei com os conceitos de real,

ficcional e imaginário tal como foram propostos por Iser, pelo fato de os mesmos

terem se mostrado capazes de iluminar certas questões sobre as relações que as

crianças estabelecem, não sem conflitos, com as notícias da televisão.

Mais uma vez, torna-se importante destacar que está sendo feita aqui uma

transposição de conceitos entre duas áreas distintas, a Teoria da Literatura e a

Educação, o que não é simples. Este enfrentamento parece ser produtivo nesta tese

sobretudo por permitir questionar também, aqui, o caráter de oposição entre real e

ficcional.

Sabe-se que a superação desse caráter dualista e opositor implica uma

transgressão a uma dicotomia que extrapola a simplicidade argumentativa que nos

permite afirmar sem problemas que a ficção traga em si elementos da realidade e

vice-versa.

A complexidade desse mecanismo exige que se rompa com o próprio

sistema de oposições, supondo que a ficção contém elementos do real sem a

intencionalidade de capturá-lo e de descrevê-lo na sua integridade e que, ao mesmo

tempo, a realidade não pode prescindir de aspectos ficcionais. Deste modo, estamos

obviamente nos referindo ao fato de as manifestações ficcionais se alimentarem de

dados referenciais, mas nem por isso serem deles um mero reflexo.

Hoje já se discute, em vários campos do saber – a Teoria da Literatura, a

História, a Análise de Discurso –, o fato de documentários e do discurso da

História, só para ficar em dois exemplos, se impregnarem de elementos fictícios,

pelo simples fato de ser inevitável a instauração de certos fenômenos que são vistos

de um determinado ponto de vista, para os quais são selecionados certos dados de

arquivo, de serem subordinados de formas diferenciadas em relação a um fato a

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outro etc. Um outro aspecto refere-se ao fato de que o real (ou a realidade)

enquanto um acontecimento, possa ser transmutado em linguagem e assim, passar a

se configurar como uma representação constituída a partir da linguagem. De fato, se

o real só existe no momento em que um sujeito dele se apreende para poder falar

dos referenciais que o compõem, ele só pode ser algo que se revista de aspectos

ficcionais.

Essas novas relações que atravessam os conceitos de ficção e de realidade

tornam-se ainda mais complexas quando introduzimos o conceito de imaginário.

Para confirmar essa idéia, basta que pensemos na multiplicação de imagens,

respostas, traçados decorrentes da imaginação. Deste modo, tornar-se imperioso

pensar nessas três dimensões a partir das relações que essa tríade estabelece entre si.

Isso sem perder de vista que, se por um lado, se ampliam o universo de relações e de

outras vias de compreensões, por outro tornam-se cada vez mais complexos os

percursos para se alcançar essas mesmas vias. Nesse percurso, pode-se dizer que o

fictício seja a concretização de um imaginário que traduz a seu modo certos

elementos da realidade. Desta forma, o real nada mais é do que uma representação,

no todo ou em parte, de algo que, pela sua própria natureza, seja inapreensível e,

como tal, pode ser transmutado em linguagem, mas não pode ser capturado nem

tomado como dado, pronto, acabado nem reificado. O ficcional, por sua vez,

permite que uma representação do real se torne um ato ou um evento, em que o

imaginário difuso interage e se impõe como um funcionamento, um mecanismo.

Isso quer dizer que, quando as crianças performatizam ao agirem como se

em movimentações de entrelaçamento de duas dimensões em jogo, o ficcional e o

imaginário se questionam e se complementam, garantindo espaço para que as

subjetividades se expressem também por meio do imprevisível, do improvável e até

mesmo do que é insólito, em alguns casos. Os aspectos que supostamente estariam

relacionados com o que o senso comum chama de “real”, nessa vertente, estariam

contemplados nos aspectos ficcionais, já que estes existem, sempre, como

representação.

Assim, as crianças recriam-se e, também, o mundo em que vivem, como ao,

por exemplo, performatizarem a Fátima Bernardes, quando já estão em jogo

elementos que se referem à forma própria como cada um a concebe e a representa

internamente como mulher, jornalista, bonita, que trabalha na emissora aberta e

comercial de maior abrangência no território nacional, que é esposa do jornalista

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que trabalha a seu lado, com quem tem três filhos, entre outras coisas. Esses dados,

supostamente objetivos, sofrem uma ordenação em que o imaginário atua como

uma instância que precisa ser acionada, junto com os aspectos ficcionais que

abarcam o real como uma representação, já que é inapreensível, parcial ou

integralmente como tal, mas que pode ser transmutado em linguagem sem

prescindir do imaginário como um mecanismo. Assim, à Fátima Bernardes, que é a

pessoa/profissional usada como exemplo, também foram atribuídas características

e adjetivações que expressavam desejos, hipóteses e fantasias de cada uma das

crianças ali presentes. O menino LE disse “não gostar dela porque detesto mulher

sem perna. Eu nunca via as pernas dela porque o Bonner bate nela se ela mostrar. Se

ela trabalhasse no Fantástico, acho que dava pra ver as pernas dela. Cara, o Bonner

é macho, ele enfrentou os ladrões na casa dele sozinho, protegeu a mulher e os

filhos”. Ouvindo isso tudo, a menina AG diz: “Eu queria casar com ele. Juro!”

Assim, se as crianças imaginaram poder interatuar com os repórteres

durante o momento em que eles apresentavam o seu telejornal, o mesmo não pôde

ser aceito pelos mesmos, pelos jornalistas-repórteres que estavam em ação, porque,

para eles, aceitar o diálogo e a provocação punha em risco essa tensão da

performance que põe em jogo suas representações do real, que nada mais são do

que elementos ficcionais em interação com o imaginário. Serem interrompidos

naquele momento parecia poder quebrar a linha tênue que mantinha a tensão

possível entre o fictício como uma concretização de um imaginário que traduziria, a

seu modo, certos elementos que entendem como sendo reais ou verdadeiros.

Aqui vale destacar uma ocorrência freqüente nesse grupo, em que os termos

“real” e “verdadeiro” eram usados como se fossem sinônimos. E, assim, a moldura

velha e comida de cupim que virou um monitor de televisão por meio de um jogo

envolvente entre elementos ficcionais e imaginários não pôde prescindir de botões

desenhados para ser possível ligar e desligar o aparelho. No entanto, foi este mesmo

grupo que, em outros contexto e circunstância, falou do controle remoto como uma

tecnicalidade indispensável, disputada em todas as famílias pelo conforto que gera

e, também, por tudo o que representa simbolicamente àquele que tem o controle da

televisão na sua mão. Durante toda a filmagem do telejornal, no entanto, o controle

remoto não foi lembrado por ninguém. Teria sido a função assumida

espontaneamente por IS, mo, de 7 anos, semelhante a um contra-regra, um

elemento favorecedor para o esquecimento? É preciso sinalizar, ainda, o modo que

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o menino IS encontrou para estar integrado à atividade do telejornal, atendendo ao

seu desejo sem desconsiderar sua limitação (gagueira), o que lhe exigiu criar um

espaço diferenciado de atuação que foi respeitado por todos os do grupo. Além de

ele ter sido extremamente participativo, ligou e desligou a televisão pelo lado

ocupado pela platéia, pelos telespectadores que ali se configuravam menos como

uma platéia comum e mais como um grupo de repórteres à espera da sua vez.

4.3.5 A ordem e a regra como proteção

Retomando a dinâmica do grupo de crianças, pode-se dizer que elas vivem

em tensão permanente com o fator tempo, presente e valorizado por elas em tudo o

que pensam e fazem, além da acentuação desse mesmo aspecto quando o tema em

pauta passou a ser a televisão e suas notícias. A palavra tempo, significando sua

ausência e a necessidade de se ter pressa, sempre se fez presente nas atividades

escolares, nas ocasiões indicadas para atividades livres em que aconteciam as

brincadeiras e os jogos, na entrada e na saída da escola. Quando a turma se reuniu

para fazer o telejornal, o tempo passou a exercer uma pressão ainda maior que

permeou a condução da professora e a vida dos alunos, dessa vez, porém, como

uma demanda oriunda deles.

Desde o início, a professora acreditava ser importante planejar todo o

telejornal, sem qualquer espaço para o imprevisível ou para quaisquer situações que

pudessem soar como perda de tempo. A professora pedia às crianças: “Escolham

alguma notícia bem legal. É melhor vocês já irem escolhendo as notícias para, na

hora da filmagem vocês trazerem tudo pronto, tudo já decidido.” As crianças

mantinham o diálogo: “Tia, a gente pode inventar uma notícia?” Perguntou uma

menina (TS, 7 anos), que foi seguida por uma ovação do grupo: “Ah, eu quero! Eu

quero inventar uma! Eu quero!” A professora ficou em dúvida, olhou para mim e

perguntou para eles: “Notícia no telejornal é inventada ou é verdade?” Ao que elas

todas responderam, sem titubear: “É de verdade!” Um menino (GB, 7 anos)

perguntou: “Tia, pode falar sobre o tempo, também?” Outro menino (LH, 7 anos)

disse: “Futebol, eu quero de futebol”. A professora reclamou com a turma: “Se ficar

nesse negócio de escolhe-escolhe não vai sair telejornal nenhum.” No dia seguinte,

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ela montou uma tabela com as notícias que as crianças gostariam de anunciar, não

como tendo protagonizado qualquer fato, “mas como jornalistas de verdade, que

dão as notícias na televisão”, pedem TS, IS, JH e ML. Tudo vinha ratificar

que as estruturas organizadoras do mundo adulto, mesmo dentro do espaço escolar,

em geral não contemplam as incertezas, o improvável nem o inesperado, e, para se

protegerem de suas dificuldades de flexibilização, de replanejamento e de

mudança, que lhes soam muito assustadoras, os adultos apuram os relógios,

reafirmam certas regras e enquadram em fôrmas e em formas tudo e todos os que

estejam ao seu alcance.

Por isso mesmo, o quadro sinótico no qual estavam indicadas cada uma das

notícias, seus possíveis repórteres e as emissoras previamente escolhidos ficou

mantido no quadro de giz com o aviso “por favor, não apagar”, por mais de duas

semanas, até que a professora da sala de leitura estivesse disponível para a

filmagem. Nesse período, as crianças perceberam que outras notícias iam

acontecendo e que pareciam mais interessantes do que as já escolhidas, e, com isso,

acabou se instalando um problema para a professora, que não permitia a troca para

não perder tempo; com isso, as crianças ficavam apavoradas de não vir a acontecer

a atividade prometida, não virem a fazer o telejornal.

A sucessão do tempo e a sua simultaneidade que caracterizam a vida e,

muito particularmente, o mundo das notícias, dentro dessa escola e nessa sala de

aula, perdiam um elemento do qual o noticiário precisa se alimentar, que é a

atualidade, e, com isso, as falas da professora geravam medo nas crianças: “Pode

não dar tempo de fazer o telejornal, vai acabar faltando tempo para todos falarem no

dia, pode não dar para ficar dias e dias aqui filmando, etc.”

Enfim, depois de devidamente preparados27 para a tarefa, em meados de

agosto a filmagem aconteceu e incluiu, ainda, os últimos acertos coletivos

estabelecidos por ela com seus alunos, como, por exemplo, a necessidade de irem

todos uniformizados e portando a autorização específica para a filmagem, já que só

16 das 20 crianças estavam autorizadas. Ela insistia, ainda, para que eles

anunciassem as notícias que estavam anotadas no quadro de giz, já semi-apagado.

Eles, por sua vez, insistiam em atualizar suas notícias e diziam: “Tia, agora já temos

outras notícias na cabeça, muito, muito, muito mais legais”, ao que ela respondia:

27 “Preparar” as crianças para determinadas tarefas é uma expressão usada com freqüência pela professora.

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“Eu só quero ver, se fizerem bobeira eu paro a filmagem, na mesma hora”, o que

não veio a acontecer, felizmente.

É interessante observar que termos e expressões bastante utilizados, como

“agora”, “há pouquíssimo tempo”, “ontem”, “no final da tarde de ontem”, “nos

últimos minutos do dia tal”, fossem amplamente empregados nos noticiários para

caracterizar o ritmo frenético dos acontecimentos e sua rápida divulgação pela

mídia. As crianças, de alguma forma, estavam sendo impedidas de acompanhar o

fluir do tempo, e, assim, se impunha que submetessem o caráter de atualidade das

notícias a uma organização escolar engessada.

Retomando-se a gravação do telejornal, ela só se iniciou depois de a

televisão ser devidamente ligada pelo menino IS, como já foi dito, o que foi seguido

pela notícia do Shrek 3, anunciada por JS. Aos poucos, as crianças e a professora se

mostravam surpresas, porque cada uma delas apresentava a sua notícia sem se

preocupar em seguir o combinado, o que gerou uma respiração bastante profunda

da professora, junto com a frase: “Ai, que alívio. Eles estão tranqüilos. Graças a

Deus.”

GT, menina de 7 anos, disse : “Boa noite! Meu nome é _ , estou aqui para

falar do avião da TAM. O avião da TAM explodiu.” O menino LH, de 7 anos,

entrou direto, dizendo: “Boa Noite! Meu nome é _. Eu quero falar que a mãe da

menina morava na América, e a menina foi visitar o pai, aí os dois morreram de bala

perdida. Obrigado!”

A menina AG, de 6 anos, disse que “viu na televisão uma mulher que foi

para a igreja, aí ela foi com a menina, com a filha dela, né? Aí a menina não queria

ficar na igreja, ela ficou do lado de fora, aí veio um bandido e matou ela,

‘estrupaçou’ ela toda.”

De repente, o fator tempo voltou a incomodar as crianças e a professora, já

que a menina AG “não tinha pressa, nem queria largar o microfone”, assinalava sua

amiga TS (7 anos). A professora, então, retomou o comando e perguntou à turma

“quem mais vai querer ir junto? Com quem?”, provocando, assim, uma polêmica no

grupo, já que não havia consenso quanto à obediência, ou não, a certos padrões

estéticos, como, por exemplo, poderem trabalhar no telejornal dois homens juntos.

“É preciso que formar um casal na vida real para trabalhar no telejornal? (GB, mo, 7

anos). Ele tinham dúvidas se duas mulheres poderiam apresentar juntas um mesmo

telejornal e havia , ainda, alguns que desejavam fazer a apresentação sozinhos.

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Todas essas questões não foram amplamente discutidas, mais uma vez, pelo

tempo, que pressionava todos e forçava uma decisão imediata, sob o risco de não

participarem da filmagem. O menino GB, de 7 anos, muito tímido e, ao mesmo

tempo, se mostrando encantado com a possibilidade de ser um repórter, pediu à

professora: “Tia, posso pegar um tic-tac bala para parar de tossir na frente do

público?”

De repente, duas duplas, uma de meninos e outra de meninas, abordaram a

professora, quase que simultaneamente. Os meninos falaram primeiro e pareciam

buscar uma confirmação. LH, de 7 anos, perguntou e, ao mesmo tempo, afirmou:

“A gente quer fazer telejornal, TE-LE-VI-SÃO na notícia, está entendendo? A

gente quer TELEVISÃO! Nós vamos ser os jornalistas, os repórteres que anunciam

as notícias, não é ?” Seu amigo, VS, de 6 anos, insistiu: “Eu quero fazer um repórter

de verdade, sem faz-de-conta, com câmera de tevê.” O primeiro lembrou ao

segundo que eles poderiam gravar aquela notícia do carro de polícia que passou por

eles “com a arma, uma metralhadora, pra fora do carro”. A gravação estava

adiantada, e esses meninos pareciam descrer que fossem poder mesmo ser

repórteres e, em seguida, poderem se ver como tal, na televisão.

A dupla de meninas formada por AG, de 6 anos, e TO, de 7 anos, se

encaminhou para gravar sua reportagem. AG avisou em tom alto, repetindo sem

parar que ela seria “a Fátima Bernardes, nem vem”, dirigindo-se à amiga TO.

Assim, na configuração que desejavam reproduzir, sobraria para TO ocupar o lugar

do homem, no caso, o do Willian Bonner, e ela não desejava fazê-lo. As duas

seguiram brigando, cochichando baixinho, até que AG fechou a questão,

afirmando: “Nós, as duas, vamos ser a Fátima, pronto.” Ao que TO respondeu com

muita raiva: “Ah, é? Se você não deixar eu também ser Fátima, eu vou ser da

Record e não sou mais da Globo, que eu até gosto mais.”

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4.3.6 Padrões estéticos do telejornal: O casal Willian Bonner e Fátima Bernardes

Não demorou a chegar a vez da dupla de meninas, que, juntas, entraram em

cena. As câmeras estavam acionadas. A primeira disse: “Boa noite! O meu nome é

AG.” Em seguida, a outra disse, como se retrucasse a primeira: “Boa noite. O meu

nome é TO.” A primeira (AG) retomou a palavra e deu toda a notícia que ambas

estavam disputando: “Passou no jornal que havia três homens na bicicleta indo para

o trabalho, e um ônibus estava vindo e atropelou (...) Boa Noite!” Terminada a

notícia, AG passou o microfone para TO, que tentou até se recusar a segurá-lo, mas

acabou recebendo-o e mantendo-se calada. O tempo corria, e ela se negava a dar

continuidade à notícia ou a apresentar uma outra. Dizia ela: “Agora ela já falou tudo

sozinha, ela já foi a Fátima!” A professora perguntou para as duas em que horário

teria sido veiculado o telejornal delas: TO diz que foi “à tarde”; AG responde,

contrariando a amiga com quem, supostamente, estaria dividindo a bancada do

telejornal: ”O meu foi à noite.” A professora pergunta às duas sobre a emissora do

telejornal delas. Antes que TO cumprisse sua ameaça e vingança, dizendo que havia

passado para a Record, como já havia anunciado, a outra, AG, se antecipou e disse

que o telejornal dela seria da Record, não da Globo. Desse modo, a menina TO

ficou duplamente ferida, tanto por não ter apresentado a notícia fazendo “o papel de

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Fátima Bernardes”, como disse, quanto por não ter conseguido castigar sua parceira

de bancada mudando de emissora antes dela, saindo da Globo e indo para a Record.

A menina TO ficou muito aborrecida, saiu do foco do monitor e da câmera e foi

para o fundo da sala de aula chorar, sozinha.

As notícias da televisão não tinham um sentido único nesse grupo e nem

sempre, entre as crianças, havia unanimidade de opiniões e explicações sobre o

assunto. Havia certos pontos de convergência dentro do grupo como, por exemplo,

o fato de “notícia ser crime. Sempre é”, dizia TS, com o que todos concordavam.

Dificilmente as crianças conversavam sobre fatos e acontecimentos sem

reafirmarem entre si: “Você já sabe, não é? Como sempre, crime, crime, crime.”

(VS, LH, GV, AG, GT)

As crianças participavam dos acontecimentos e das notícias, discutiam, se

emocionavam e se envolviam muito fortemente com elas, em especial, quando

estas se referiam a crimes, balas perdidas, mortes por acidentes e/ou cenas que

retratassem processos violentos, ou resultados de situações de violência. Injustiças

também não passavam despercebidas.

Com iguais força e teor, eles agregavam à noção de notícia como referência

a crime uma outra característica dela como “sendo sempre verdadeira”, ou seja,

notícias serem referencias a crimes que de fato aconteceram, ou melhor, que tinham

acabado de acontecer, provavelmente, “de madrugada, que é quando a maioria dos

crimes acontece”. ( GV, ma, 6 anos)

O grupo concordava com a veracidade das notícias, que de fato é um aspecto

relevante no mundo do jornalismo. No entanto, todas as vezes em que pairava

alguma dúvida em relação à veracidade de determinada notícia, emergia um outro

aspecto, que será tratado aqui como expressão de religiosidade. Esse aspecto foi

trazido ao grupo como um contraponto, encaminhado por duas meninas, TS (7

anos) e WS ( 8 anos), em que citaram a Bíblia como a fonte da verdade. Então,

disseram elas, “a Bíblia, conta a história da vida. É tudo verdadeiro lá, mas não é

notícia, nós sabemos”. (TS e WS) Disse uma delas: “Porque notícia, eu sei, pode ser

quase toda de verdade, pode ser, mas a palavra de Deus sempre é, mas não é uma

notícia.” Tudo indicava que tivesse faltado coragem a essas meninas para equiparar

o teor de veracidade das notícias com o das palavras de Deus, ou de Jesus, e, assim,

elas relativizaram, dizendo: “Pode ser quase toda de verdade, pode ser, mas a

palavra de Deus sempre é”, mesmo reconhecendo que ela não fosse uma notícia,

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além de terem demonstrado compreensão sobre as diferenças entre os dois tipos de

textos e suas funções. A menina TA, de 7 anos, disse que “o pai gosta de ver

telejornal, todo dia, o da Record. O jornal é importante, mas eu não gosto: notícia de

morte, de acidente, tudo o que acabou de acontecer. Tudo já era, já aconteceu, só o

tempo diz se vai chover, se vai ter sol”, chamando a atenção para uma possibilidade

de a notícia poder ser prospectiva quando o tema é clima. Com exceção ainda do

Pan e do milésimo Gol do Romário, que demorou cinco jogos seguidos para

acontecer, nenhuma outra notícia poderia deixar de ter referência no passado

próximo.

O menino JH seguiu a menina TA no telejornal, ratificando o vínculo com o

passado e, também, com aspectos religiosos:

“No JN, dá notícias de coisas de verdade, que já aconteceram, sicrano morreu, beltrano caiu aqui, caiu ali. Tão matando policial direto, agora até na casa deles. Bala, bala, bala. Só Jesus.”

O uso de termos e de expressões que remetem a Deus e/ou a Jesus nem

sempre tinham como referência uma religião específica e nem queriam dizer que os

chamamentos utilizados fossem indicadores de escolhas ou vivências religiosas de

qualquer natureza, com exceção das meninas já citadas TS e WS. Assim, era comum

o uso de expressões pelas crianças, também pelos professores e funcionários da

escola, para pedir ajuda ou para agradecer às divindades representadas por Deus ou

por Jesus, indistintamente, sem vínculo expresso com uma cosmovisão, mas com

uma religiosidade difusa. Tanto ao tentar separar dois alunos que brigam no jogo de

futebol do pátio, quanto para reclamar de atrasos freqüentes podiam ser usados:

“Deus me livre”, “em nome de Jesus”, “em nome de Deus”, “só Jesus salva”, “Deus

lhe ouça” e similares.

Retomando os significados compartilhados nesse grupo relativos às

notícias, sempre elas se pautavam em assuntos relevantes/importantes, que

obedeciam aos critérios de atualidade (algo que tivesse acabado de acontecer), de

veracidade (não havia mentira nas notícias), mesmo que elas fossem sempre

estivessem voltadas para os crimes. No entanto, nem todas os episódios e sentimentos

relativos as suas vidas e ao mundo em que viviam podiam ser enquadrados nas

categorias aqui compreendidas e, assim, alguns casos não eram entendidos nem

explicados pelas crianças sem problemas.

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Torna-se necessário esclarecer que a recorrência com que emergiu do

campo uma interação entre ficção e imaginação como uma complexa equação o

fator responsável pela busca de uma sustentação teórica como a encontrada em Iser

(1996). As narrativas das crianças sobre as suas impressões, opiniões e

sentimentos, ao se referirem as notícias da televisão, demonstravam um elevado

teor de dúvida e de incerteza expressos pelo que elas acreditavam ser verdade e sua

discutível equivalência com o que fosse real, o que desde o início me parecia

restritivo e até mesmo equivocado.

Uma ressalva importante à busca de conceituar o que seja “real” consiste em

não aceitá-lo como algo que tenha sido ou que seja “dado” e, com isso, defender

toda e qualquer apreensão, total ou parcial, do “real” como um tipo de

representação. Há muitas acepções para o termo “representação”, como se sabe.

Emprego-o aqui no sentido de não se apreender o real, conforme escrevi acima, por

não ser possível subtrair dele seu reflexo, nem um espelho que capte e que reflita

seus dados referenciais.

Como representação, pretendo, portanto, tratar o que resulta do recorte ou

seleção de uma ou mais pessoas, auxiliadas por algum recurso técnico em que a

sua(s) subjetividade(s) e, com ela(s), o modo próprio de ver, de sentir e de registrar

tenham deixado suas marcas e que essas se expressem como linguagem, não apenas

como oralidade. Assim, uma fotografia (do real) corresponde da mesma forma ao

recorte do olhar de alguém, num espaço, tempo, ângulo e luz próprios de seu autor,

e vale como um tipo de representação do real. Nesse viés, a pintura, os desenhos, os

registros gráficos, a literatura, as artes plásticas e cênicas poderiam, da mesma

forma, valerem-se da prerrogativa de serem representações do real às quais não

caberiam as qualidades de estáticos, prontos, fechados nem reificados.

Desta forma, na busca por compreender a relação das crianças com as

notícias oriundas dos telejornais, que são textos jornalísticos do tipo informativo,

muitas perguntas surgiam. Uma delas se referia ao compromisso oficial da notícia

com a verdade e a atualidade dos fatos, aspectos dos quais ela não poderia escapar.

Nessas circunstâncias, de que modo as crianças identificavam e questionavam, ou

não, as variadas representações do real, já que por serem todas legítimas e

verdadeiras, não deveriam estar submetidas a qualquer juízo de valor que quanto a

sua maior ou menor correção, nem, tampouco, a sua maior ou menor proximidade

com o real? Ao tomar as representações do real como legítimas, diante da inexistência

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de um real pronto e acabado, a compreensão das crianças sobre as notícias permitiria

desvincular ou dicotomizar o real, o ficcional e o imaginário como instâncias

absolutamente distintas e desconectadas?

Vamos ao que disseram as crianças: “Não é bom ver cenas de violência

real” (LG, mo, 7 anos), aquelas que aparecem nos telejornais diários e em certos

programas “como Linha Direta, algumas novelas, Cidades dos Homens”. (YC, mo, 7

anos) As crianças parecem não gostar desse acesso permanente e direto que têm às

notícias porque elas representam apenas uma faceta da vida contemporânea, como se

fossem a violência e os crimes a única faceta de suas vidas, exposta e veiculada, o que

tornaria suas vidas ainda mais duras e assustadoras. As crianças têm noção de que

seja através dos telejornais que “sejam obrigados a ter contato com coisas ruins que

acontecem de verdade,” (TA, ma, 7 anos), mesmo entendendo e sentindo que seja

esse tipo de informação muito perturbadora para suas vidas. Ao mesmo tempo, nesse

mesmo grupo, há uma defesa igualmente forte da importância da televisão como a

fonte mais importante de informações e de conhecimentos, nos dias de hoje: “Ela é

boa e importante, também porque ela fala sobre os acidentes que acontecem nas

cidades.” (GV, ma, 7 anos) Ela “transmite notícias boas e ruins para nós. Quando

acontece alguma coisa em outros países bem longe, nós aqui no Brasil ficamos

sabendo através da televisão”, disse o menino LE, de 7 anos. E, habitualmente,

emergia um sentimento de rejeição comum, aqui representado pela opinião da

menina LG, de 7 anos: “O que eu menos gosto na TV é jornal, porque tem só notícias

desagradáveis.”

Há ainda muitos registros em que as crianças sinalizaram que “gostariam de

ver e de ouvir na televisão mais notícias e histórias de verdade, que, segundo elas,

só poderiam ser encontradas nas palavras da Bíblia, nos museus e nos livros

escolares”. (VS, mo, 6 anos)

Neste viés, vale atentar para o fato de a mediação favorecida pela televisão

refletir o próprio meio como um produto pronto, mas que se transforma, que

mistura ficção e realidade, formatos variados de programas, tempos e espaços reais

e virtuais em periodicidade inconstante, que cria diferentes formas de as pessoas se

comunicarem, se divertirem, aprenderem, não se sentirem sozinhas, mas,

diferentemente, conectadas umas às outras. E tal dimensão da televisão, como um

processo implica, também, razões de cunho econômico, político e, sobretudo,

ideológico. É inegável o cunho comercial das televisões e, particularmente, no caso

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dos canais abertos brasileiros, que se pautam estritamente em índices monitorados

de audiência e que buscam impor certos comportamentos, valores, hábitos,

consumos de certos produtos materiais e ideológicos, a tentativa de pautar as

agendas e os sonhos, tentando manter viva uma forma de relação sustentada nos

valores de consumo, expressos como uma semiótica dominante.

4.3.7 “O ficcional e o imaginário”

Para lidar com o que é verdade, ao que soa mentiroso e ao que é identificado

pelas crianças como tendo sido inventado, desenhado, recortado por alguém ou

“criado no computador”, é indispensável definir ficção e imaginação.

Há muitos estudiosos de várias áreas que definiram ficção. Um deles

foi Searle, que, em seu artigo The logical state of fictional discourse (1986),

defendeu a instauração de um “pacto” ficcional entre o leitor e o texto, no contato

que se trava com o discurso ficcional da literatura. Norteando-se pelas “regras da

sinceridade” da Pragmática, Searle distinguiu as ocorrências das relações

interpessoais daquelas que se dão entre leitor e discurso ficcional. Enquanto nas

situações interpessoais os sujeitos se orientam por normas compartilhadas em

sociedade, naquelas referentes à leitura tais normas são suspensas, orientando-se,

essa relação por uma espécie de contrato, no qual o sujeito lê o discurso da ficção,

sem dele exigir uma correspondência com os dados das referencialidades. Essa

definição tem o mérito de retirar da ficção o sentido de “mentira”. Searle analisa a

diferença entre “mentira” e “ficção”, através de alguns exemplos ilustrativos de sua

teoria. Para ele, se alguém tentar burlar a vigilância da Casa Branca, querendo se

passar por Nixon, estará mentindo, já que essa atitude contraria a regra pragmática

que diz que uma pessoa não deve tentar se passar por outra. Isso só seria aceitável

caso os sujeitos, numa brincadeira de adivinhação, por exemplo, concordassem

com essa possibilidade. Já no contato do leitor com o discurso ficcional, diz Searle,

há uma suspensão das “regras verticais” entre o que se declara no discurso e os

dados de realidade. Nesse sentido, o pacto ficcional faz com que o leitor deixe de

exigir do discurso ficcional um compromisso com a verdade. Mesmo que a

literatura contenha “referências reais” – uma rua do Rio de Janeiro em obra de

Machado de Assis, por exemplo – e “referências fictícias” – tudo o que, na ficção, é

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reconstruído da realidade –, permanece o pacto ficcional, deixando, portanto, de

fazer sentido algo que o leitor venha a exigir de verdadeiro do que, a priori, já se

anuncia como ficção.

Toda a discussão feita por Searle me é útil, na medida em que possibilita

discutir, mais amplamente, a separação entre o que parece real e o ficcional para as

percepções humanas, mais particularmente para as percepções das crianças.

Perguntaria, então, em primeiro lugar, até que ponto as proposições de Searle

permanecem garantidas em sua totalidade? Vários são os pesquisadores da

linguagem que dizem que na contemporaneidade, o “real” e o “ficcional” estão em

constante diálogo. Desse modo, não se encontra o “real” atravessado por

ficcionalidade? E a ficção, não constrói ela, também, a sua própria realidade? Nesse

caso, o leitor não suspende sua descrença inicial para nela se envolver, se

emocionar, se comover? Pergunto-me então, a princípio, até que ponto é possível

distinguir o verdadeiro do ficcional, quando se trata da relação com a produção

televisiva, ainda, de antemão, assistir a uma novela diga respeito a entrar em

contato com a ficção e assistir ao telejornal, uma relação com a “realidade”?

Esse diálogo entre ficcional e real pode ser útil para compreender a relação

das crianças com a notícia, principalmente quando nos deparamos com estudos

contemporâneos na área de linguagem e de literatura, por exemplo, que tomam o

discurso da História, como sendo ficcional, como defende Hayden White,

historiador contemporâneo norte-americano. Nessa perspectiva, também os diários,

os documentário do cinema, as biografias e tudo o que passar pela linguagem

estaria revestido de ficção, o que merece ser desdobrado e aprofundado em estudos

complementares posteriores. Por outro lado, estudos contemporâneos como o de

White, confirmam que as memórias literárias misturam realidade e ficção. A

ficção é vista como a sede (com “e” fechado) e a sede (com “e” aberto) da

alteridade. O espaço em que o sujeito se reinventa sob novas formas. Numa

perspectiva antropológica, o ser humano necessitaria, mesmo nesse caso, não

apenas as crianças, da ficção para suportar o que nele se ausenta.

Parece ter sido Wolfgang Iser (1978) quem melhor definiu ficção. Para ele,

o discurso ficcional da literatura coloca em embate diferentes perspectivas: a do

narrador, as dos diferentes personagens, a do enredo, etc. E, esse embate ou conflito

entre visões diferenciadas de mundo não é resolvido na literatura. Permanece como

tal, como conflito, criando o vazio (ou no-thing), que é justamente o que impulsiona

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o leitor a se comunicar com o texto. A palavra “comunicar”, para Iser, tem sentido

diferente quando se trata da comunicação entre leitor e textos pragmáticos ou não

ficcionais, como o jornalístico, por exemplo. Os textos pragmáticos não pretendem

deixar nenhum vazio, ainda que surjam interpretações diferentes a partir deles. Um

texto pragmático, como o jornalístico, em tese, teria como objetivo “preencher

tudo” e não deixar espaço para o no-thing ou vazio que caracteriza o texto literário.

Ainda segundo Iser (1996), o imaginário é um potencial da mente que, como

tal, precisaria ser ativado por algo externo: “instância que precisa ser mobilizada”,

seja pelo sujeito, seja pela consciência, ou ainda pela “psiquê e pelo que é

sócio-histórico (p. 259-265)”. Ainda assim, não se esgota a possibilidade de

ativação do imaginário. O imaginário não é o mesmo que aquilo que o mobilizou;

antes, constitui-se como “um jogo com suas instâncias ativadoras”. Como esse jogo

decorre das instâncias ativadoras, o imaginário tem sempre um caráter transitório.

Quando as finalidades são pragmáticas, as possibilidades do caráter transitório se

desenvolvem mais livremente. Passar do jogo (“um jogo com suas instâncias

ativadoras”) do imaginário para o jogo do fictício, exige uma espera. “O fictício

enquanto mobilização do imaginário no texto literário induz uma espera por outra

constelação do jogo.” (ISER: 1996, p. 277). Nessa linha, diz o autor que o fictício

exerce uma espécie de pressão sobre o imaginário para que ele assuma uma forma,

“sendo, ao mesmo tempo, o meio de sua manifestação”.

Partir dos pressupostos de Iser, pensados para a Literatura, depois de feitas

as devidas ressalvas, é enriquecedor neste tudo sobretudo pelo destaque dado pelo

autor quanto ao fato de os discursos ficcionais e os pragmáticos já questionarem

seus próprios limites, em situação de linguagem, tendo assim contribuído muito

para a compreensão do que se situa na interseção entre o que as crianças percebem

como “real” e “fictício” em suas relações com a tevê.

Para o mesmo Iser, o fictício e o imaginário são instrumentais para o jogo,

embora resida no jogo uma forma privilegiada de falar daquilo que distingue um do

outro, diante de uma inter-relação que desafia a própria conceituação, pela a

ausência de um sistema de referência determinante. Estimular esse jogo entre o

fictício e o imaginário constitui o impulso para superar as deficiências básicas que

caracterizam ambos. Aquilo que o fictício tem em mira corresponde ainda a um

vazio, requerendo, portanto, preenchimento. Aquilo que caracteriza o imaginário é

precisamente a sua ausência de características (featurelessness), necessitando então

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de forma para manifestar-se. Assim, o jogo possibilita a ambos realizar-se sob as

condições que um estabelece para o outro reciprocamente. (ISER, 1999, p. 109)

Quando se busca investigar e compreender pessoas em seus contextos,

segundo Iser, trata-se de uma interpretação acerca do jogo textual capaz de

propiciar diferentes tipos de interação entre o texto e o leitor, entre o fictício e o

imaginário. Para o autor (1999), a ficcionalização levaria os atos de fingir a

movimentos que os transcendem, mantendo em jogo o que foi transgredido para

que possa tornar-se algo diferente do que é no contexto referencial. Portanto, o jogo

emerge da coexistência entre o fictício e o imaginário, que se fundem para

desencadear o jogo ficcional. O jogo resulta, deste modo, de uma “interpenetração”

do fictício e do imaginário de modo que o fictício torna-se o meio para a

manifestação do imaginário, como uma espécie de contraposição da

referencialidade.

Admitir a existência de pactos instituídos entre ficção e imaginação, pode

facilitar o acesso ao que as crianças fazem com/por meio da televisão, como

também o que e de que modo elas expressam são afetadas pela tevê. Nesse campo

de interlocução, em que por meio de práticas discursivas as crianças questionam o

mundo no qual vivem, a televisão ocupa a centralidade de suas experiências e exige

um esforço de entendimento do que ela incita, já que hoje, inegavelmente, o que é

veiculado pela televisão parece ter espaço privilegiado como um novo tipo de

experiência, que tem na imagem em movimento, sonorizada, uma fonte inesgotável

de representações do mundo.

É necessário ressalvar que as experiências humanas só se tornam passíveis

de serem trabalhadas pelo pesquisador através do material relativo a práticas

propriamente discursivas e suas intrínsecas variáveis comportamentais, o que

explica em grande parte a contribuição significativa de Iser sobre linguagem, real,

ficcional e imaginário.

Ao refletirem nas possibilidades de saberem de notícias boas através do

telejornal, as crianças restringiam os temas dessas notícias a: futebol, show de

música, clima e quando aconteceu de a polícia vencer os bandidos, como ocorreu

no Morro do Alemão, segundo eles. Com muitos aplausos e vibração, diziam:

“Graças a Deus, a polícia conseguiu derrubar a barricada dos bandidos no Morro do

Alemão” (AG, ma, 6 anos; YC, mo, 7 anos; VS, mo, 6 anos), e puxavam assim mais

palmas, que punham as outras crianças de pé, para comemorar. Sobre os Jogos

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Pan-americanos que haviam sido muito aguardados e que foram vistos e apreciados

pela maioria (quesito esportes), já havia críticas, medos e um sentimento de alerta:

“Notícia boa é só meu time ganhado.” (LE, mo, 7 anos e VS, mo, 6 anos) TS, ma,

de 7 anos, avisou de bate-pronto: “Tia, viu só? O Pan é bom, mas acaba. A pena é

que saiu o Pan e já voltou só notícia de bandido, de violência e de crime. Eu queria

que o Pan ficasse direto” e, dando continuidade ao diálogo, VS (mo, 6 anos)

introduziu uma notícia identificada pelo grupo como sendo de crime, no Pan: “Tia

Inês, teve bandido no Pan, sabia? Os cubanos roubaram o dinheiro do Pan e

fugiram. Foram lá pra Araruama, onde eu já fui.” TS se meteu e disse que “não era

em Araruama, era um outro lugar, mas não era em Araruama. Eles são criminosos,

tudo bem, eles são bandidos, normal, mas eles fugiram com dólar da Alemanha”. A

menina JS, de 7 anos, se incluiu no assunto dizendo “saber tudo sobre isso” e

seguiu: “Eu sei, era muito dinheiro que eles roubaram da Alemanha, e o chefe deles

ameaçou eles. Com medo, eles voltaram. O país deles é Cuba.” Eu então perguntei a

eles: “Se as pessoas têm chefe, quem é o chefe deles?” Ela ficou pensando e

respondeu:

“Não sei, tia Inês, mas o chefe deles manda em todo o mundo, todo, todo o mundo, mas não é pai deles, é um chefe que pode até matar. A boca deles também tinha ouro, nos dentes, acho que era tudo roubado. Eles ficaram muito na notícia, aparecendo direto, porque tinham que voltar pro país deles. E, é isso, mas eles foram presos, eu acho e nem sei ... será que eles voltaram pra Cuba? Isso eu não sei.” (JS, ma, 7 anos)

4.3.8 “Perdido, notícias mais ou menos e notícias para trás” Emergiram, algumas categorias nativas, que são formadas de palavras ou de

expressões recorrentes nas práticas discursivas das crianças e que tinham um

significado compartilhado no grupo de referência e, por isso, precisariam ser

melhor compreendidas, tais como: “perdido”, “notícias mais ou menos” e “notícias

filmadas para trás”. O perdido, como categoria nativa, era um termo usado pelas

crianças para se referir a certos aspectos pragmáticos do texto jornalístico que não

atendiam às suas expectativas, dentro da abrangência da relação que estabeleciam

com o mundo, por meio das notícias; as notícias mais ou menos eram aquelas nas

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quais não havia dúvida sobre a sua veracidade e/ou seus critérios de importância,

mas que não podiam ser enquadradas por eles na abrangência do conceito por não

ser crime; estas apresentavam uma relevância duvidável para o grupo e, ainda, por

serem , muitas vezes, notícias filmadas pra trás, ou apenas notícias pra trás, como

eles também falavam, além de pesarem contra elas o fato de serem notícias com

imagens resgatadas ou produzidas depois do fato ocorrido. Isso aconteceu, por

exemplo, no acidente ocorrido com um avião da TAM no Aeroporto de Congonhas

e, também, no caso Sirley Dias, em que as imagens foram divulgadas depois porque

foram geradas nas câmeras de segurança do prédio onde a mesma trabalhava.

Voltando às categorias nativas, vou contextualizar “o perdido” usando a

interlocução de parte das crianças dessa turma. Naquela época, o noticiário

televisivo que chegava à escola estava totalmente focado no milésimo gol do

jogador Romário, do time do Vasco, que estaria para acontecer. Num determinado

dia, o menino IS, de 7 anos chegou à escola feliz e comunicou ao grupo: “Até que

enfim! A verdade aconteceu, ele fez mesmo. Saiu o maldito gol pra calar a boca de

todo o mundo. Eu estou falando do Romário! Essa é a notícia!” GO, 8 anos, e LF, 7

anos, dois meninos, se incluíram no assunto: “Eu achava que ele ia fazer, entrou em

campo, fez. Eu sou Brasil (LF). Ele também não fez assim um GOOOL (encheu a

boca), um gol de passe, de driblinha, mas só bateu pênalti. É gol, eu sei, mas é fraco,

não faz com a emoção, nem dá uma corrida de ganhador (GO). Mas eu vi que ele

fez e eu estava com medo de ser uma confusão dessas, e, como ele já é velho, podia

nem fazer. Se demora muito, pode nem acontecer, mas ele já fez. Já vai começando

outro campeonato, depois outro e podia bem dar é um perdido (LF).” Eu perguntei

na mesma hora aos meninos que conversavam o que era “um perdido” e pude

perceber que o meu desconhecimento gerou um entreolhar de estranhamento entre

eles, indicando uma relativa surpresa. E logo responderam: “Perdido? Você não

sabe? É quando anunciam na televisão, deixam todo o mundo pensando, pensando e

nunca mais dão outra notícia pra resolver o perdido (IS, LF).” Pedi a eles que me

contassem algumas situações em que havia “perdido” nas notícias, e, aos poucos,

foram chegando os exemplos: “Claro, lembro... eu... vou lembrar... (ficou pensando

e disse), lembra da irmã do Vitor Belfort, que casou com a Tiazinha? (Aqui eles se

enganaram, pois a esposa do Victor Belfort não é a Tiazinha, e sim a Feiticeira).” E

seguiu LH, mo, 7 anos: “Pois é, anunciaram que ela tinha sumido, que tinham

matado, isso e aquilo. E aí? Deram perdido. Nunca mais deu notícia do corpo dela,

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onde que ela está, se matou ou se não, se ela tá no tráfico. Está morta, eu acho!”

Perguntei ao grupo e, mais especificamente, ao LH, que estava com a palavra, se

havia uma confirmação sobre a morte dessa moça, ao que ele disse: “Eu não sei ,

mas os repórteres sabem tudo, eles sabem de tudo. Eles ficam guardando as

notícias pra todo o mundo não saber. Notícia pode dar muito dinheiro. Tem gente

que fica só atrás dos artistas, pra dar notícia e ganha dinheiro. Sabe o Nelson

Rubens, da Rede TV!, ele está rico, todo arrumadinho. Ele não é pastor, é de notícia

mesmo que ele dá. É legal.”

Perguntei aos meninos se eles achavam ser possível os repórteres saberem

de certas informações, como o que aconteceu com a irmã do Victor Belfort, e não

divulgarem uma informação como essa à população, sob a forma de notícia. As

crianças responderam sem hesitar que “repórter e polícia andam juntos. Onde tem

merda eles estão todos juntos, na hora de dar a notícia ruim eles dão, mas depois

não resolvem, não dizem como que resolveu: se matou, se morreu. Isso é perdido!

Tem muita notícias no ‘perdido’. O João Kleber deu perdido. Cadê as pegadinhas

dele? Diz que ele foi castigado, mas cadê ele? E o Bin Laden? Cadê ele para ser

preso?”. Nessa hora, as meninas LG e ML (ambas com 7 anos) se incluíram na

conversa:

“Dizem que ele quebrou as torres com avião lá nos Estados Unidos, mas cadê ele? Cadê ele para confessar? Para ser preso? Está aí, perdido nas pessoas. Sabe se ele já fugiu, se já viajou? Meu irmão diz que tem um Bin Laden no Gardênia28. De noite, às vezes eu fico com muito medo, mas acho que isso é só sacanagem.”

Eu perguntei de quem. Ela (LG) respondeu: “Do meu irmão, ora.” Retruquei

dizendo que não havia lido nem ouvido nenhuma notícia sobre o João Kleber e

perguntei se eles sabiam alguma coisa. Mais uma vez, o mesmo LH respondeu,

agora com relativa indignação: “Você não acha que precisa dar uma notícia de que

ele sumiu? De que alguém, sumido, já apareceu? Você não acha isso? Ele é galã da

televisão, ainda por cima!” O amigo LE (7 anos) endossou: “Puxa, tia! Ele é

famoso. Gente famosa, da Globo, sempre tem que avisar. Pode ser também da

Record ou da Rede TV!.” Foi IS (mo, 7 anos) que chegou para dar um efeito

conclusivo ao caso: “Pode ser até do SBT, mas se é famoso tem que dar a notícia!”

28 As crianças se referem ao bairro Gardênia Azul, parte de Jacarepaguá, como o Gardênia.

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Há ainda uma outra questão polêmica nesse grupo quando alguém se referia

à vida de artistas famosos. Imediatamente se instalava uma discussão acalorada

sobre a pessoa em si (o/a artista), quem gosta e quem não gosta, em que os

elementos da vida profissional e da vida pública se mesclavam e, com isso, eles se

mostravam confusos em relação a cada uma das personalidades em pauta, sobre

cada um deles ter, ou não, relevância para ocupar os telejornais como uma notícia.

É possível que os gostos e as opiniões pessoais pesassem na avaliação da beleza dos

corpos dessas pessoas famosas, também na sua forma de se vestir e nos seus

comportamentos.

A figura do jogador Romário, ocupando as manchetes durante algum tempo,

foi bem esclarecedora para exemplificar essa polêmica habitual nesse grupo. Se,

por um lado, havia um acordo quanto a sua importância no país do futebol, o que

garantia, indiscutivelmente, seu espaço como alguém noticiável, por outro há

vários pontos que as crianças traziam à baila como capazes de abalar seu

reconhecido destaque. Dizem elas: “Ele é bom, é goleador, mas nem sempre que o

Vasco joga ele joga, só se o tio Eurico mandar. E, quando ele manda, tem que fazer,

até um Deus obedece. Ainda bem que o tio Eurico mandou ele entrar e mandou ele

fazer.” (LH) IS retrucou: “Goleador? Que goleador? Ele é fraco, boiola, fica sempre

obedecendo a esse homem, a esse Eurico que é um ladrão. É um ladrão, safado.

Romário quer ser igual a um Pelé, mas ele não é. A televisão disse que ele ia fazer,

foi todo o mundo pra lá: botafogos, vascaínos, flamenguistas, mas ele não fez.” KS,

mo, de 6 anos, completou: “O tio Eurico manda nele, e ele, é outro safado porque

mente pra família dele, até pra família. A mulher dele, Romarinho, Moniquinha, a

filha gorda, a doente... (pausa) estavam todos lá e ele não fez o gol. Safado,

mentiroso, mentiu pra família, isso é coisa de moleque”. Com esse discurso

inflamado contra o Romário, com exemplos práticos de comportamentos dele

indesejáveis, como mentir para a família, as meninas e a maioria dos meninos

concordaram, com exceção dos vascaínos carreados por LH, que se mostraram

divididos; não em relação ao amor ao time, mas devido à argumentação do grupo

sobre os procedimentos de Romário, dos cartolas do futebol e da trama obscura que

envolve o funcionamento dos times e dos campeonatos em geral.

Em casos como esse, e em alguns outros, foi ainda introduzida na discussão

do grupo a expressão notícia mais ou menos, sobre a qual busquei esclarecimento e

compreensão. E, para isso, perguntei ao grupo se essas notícias “mais ou menos”

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tinham a ver com o “perdido”, se eram notícias, mesmo, ou o que isso queria dizer.

Eles disseram que não tinha “nada a ver”com perdido. “Não, perdido, não. Isso é

notícia de fofoca que dá no rádio, nas revistas, nem sempre tudo assim, super de

verdade. Isso é ‘notícia mais ou menos’, da vida dos famosões, dos artistas.” (JS,

ma, 7 anos) LG, 7 anos, uma menina caladinha de fala muito baixa, disse assim:

“Tia, a notícia mais ou menos que eu gostei foi do Lula distribuindo o sol do Pan.

Mais nada.” E RS, menino de 7 anos, disse: “Tem sempre notícia de Giannechinni

com a Preta Gil que eu vejo no Leão Lobo, na televisão. Eu acho que ele está

pegando ela. Isso é assim mais ou menos notícia porque não é assim (ééééé

assiiiiiim) uma notícia (exagerou no verbo e abriu os braços). Mas é.”

A menina TS, de 7 anos, se introduziu na conversa e disse: “Olha, uma

notícia que eu fiquei muito triste foi com o tiro que a menina levou dentro do carro

com o pai , quando iam buscar a mãe no Barrashopping. Eu bem vi essa notícia. Isso

é, claro que é notícia. Tristíssima”, o que mostra com clareza que há circunstâncias

em que não há dúvida, nesse grupo, em relação a conceituação de notícia sem

ressalvas, em certos casos: “Isso é, claro que é”, ninguém retrucou.

Quando o nosso tempo de conversa nesse dia estava no final, de modo quase

didático o menino VS (6 anos) veio me ajudar na compreensão do que era uma

notícia mais ou menos, ele deu como exemplo: “Ah, Inês, não; me desculpa, tia,

teve uma coisa, um dia em que eu vi uma notícia mais ou menos boa, que é o papa

no Brasil. O papa veio, e isso traz paz, mas ele foi pra São Paulo direto. Sabe por

quê? Porque lá mata mais, mata muito, direto. O papa vir ao Brasil é bom, mas

matar muito só lá em São Paulo é muito triste. Não pode matar, em lugar nenhum.

Aqui mata muito. Esse papa veio, é verdade... mas não sei direito. Isso é mais ou

menos.”

Há, ainda, as notícias filmadas para trás, que nomeiam uma categoria de

mais fácil identificação e compreensão em função da própria expressão usada para

defini-la. Como as outras categorias, ela é usada com freqüência entre as crianças,

e, a forma como a compreendem associada ao modo como dela se utilizam

estabelece uma aproximação da mesma com o caráter de atualidade e de veracidade

das notícias. Essa categoria se configurou e emergiu sempre que uma determinada

notícia era veiculada sem sua imagem de referência, produzida no ato do

acontecimento, e a mesma expressão foi usada, também, nos casos em que as

imagens foram produzidas por repórteres amadores, quando eram imagens

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produzidas no computador ou por ilustradores e, ainda, as geradas em câmeras de

segurança. As crianças entendiam que nem sempre havia repórteres nos locais

onde os fatos aconteciam, e que, eventualmente, caberia à população avisar aos

repórteres os fatos para estes poderem ser veiculados no telejornal. E, sobre isso,

diziam as crianças: “O Bonner e a Fátima (referindo-se a Willian Bonner e Fátima

Bernardes, da emissora TV Globo) escolhem o que vai virar notícia na tevê. Acho

que os condomínios só mandam para a televisão quando tem crime. Aí, depois,

aparece na Record, em todos”, diz a menina WS, de 8 anos. A amiga LS (7 anos)

confirmou: “Mas é quase tudo crime. Se não é, é Pan, futebol, musica, van,

Engenhão, show assim... é tudo crime. É muito crime.”

“Notícia é coisa que já aconteceu, sempre de madrugada. De noite é que

fazem as notícias, porque que é quando as coisas ruins acontecem. E de manhã a

gente fica sabendo, aí repete, repete o dia todo, até cansar o ouvido. Chega, já sei!”

(YC, menino, 7 anos). “Tia, eu não fui ao Maracanã”, disse LF, “e então eu não vi o

gol do Romário, eu só vi os melhores momentos no Fantástico. Tia, quer saber? O

Faustão até parou o programa para dar a notícia, parou tudo para o Brasil ver o

pênalti, e o Romário fez o mil. Aí, eu fui ver Fantástico para ver todo o lance.

Depois deu de novo no jornal do rádio. Minha mãe dorme ouvindo a Rádio Globo

no ouvido e, depois, eu também vi na banca. Eu acordei e vi no jornal da banca,

muita foto, muita notícia. Só dava Romário, parecia até que ele é um Fábio

Assunção”. Ri discretamente, e o menino LF continuou: “Ele estava igual a um

artista famosão desses da novela, só que ele é preto. Ele já foi até pobre, mas hoje

ele tem muito dinheiro. Por isso, ele é famoso. Até se ele vai dançar na boate dá na

notícia. Diz que ele gosta de beber e de pegar muita mulherzinha, mas isso eu não

sei. Isso é dessas ‘notícias mais ou menos’ assim, que o povo fala. Eu nunca vi se é

verdade isso, na televisão.” “Isso” a que LF se referia era a imagem de Romário

“pegando mulherzinha, indo à boate dançar, beber, etc, coisas que o povo diz” e que

faz parte da categoria “notícias mais ou menos”, já que não há imagem para

confirmar o texto e a notícia.

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4.3.9 “Tem vezes que não, mas é muito raro, tem vezes!”

A experiência audiovisual diária, oportunizada pela televisão, pareceu

impactar a veracidade e a credibilidade da notícia pela possibilidade da sua

comprovação com os próprios olhos e ouvidos, e, quando não havia imagem para

“poder ver a notícia”, sua credibilidade era posta à prova pelas crianças. O que diz

IC, de 6 anos, sobre isso: “Eu vi essa notícia, eu vi a água invadindo as casas e

puxando as pessoas, eu sei que aconteceu de verdade.”

Há ainda notícias de um passado recente, como conta LH (mo, 7 anos),

referindo-se a Rio das Pedras: “Eu já vi muito acidente lá, que machucou gente e

saiu na tevê. Eu não vi bem o acidente, assim, né, eu vi o ônibus virado lá e os

feridos. Deu no repórter da Globo que pega no 5 e no 23. O canal Globo, na minha

televisão, pega no 5, que é de São Paulo, e no 23, que é do Rio. Esse ônibus saiu no

Rio e em SP porque foi um caso importante, para o país todo saber. Na hora, o

repórter não estava passando lá, mas ele foi depois, tirou fotos. Não, foto não,

filmou pra trás depois e levou pra passar na televisão. A televisão mostra muita

coisa porque é importante e também porque os câmaras ficam lá, filmando cada

cena. Cada coisa que acontece é uma cena.”

A professora perguntou a eles se havia sempre alguma câmera filmando. Ao

que a menina JS respondeu: “Tem vezes que não, mas é muito raro, tem vezes.” GB

(mo, 7 anos) diz: “Acho que eu lembro do avião da TAM. Foi uma notícia pra trás

porque só depois que eles filmaram, né? Depois... que o acidente já estava lá. É...

foi sim!”, confirmando assim a hipótese de que se o fato atual for verdadeiro,

segundo elas, pode até ser filmado depois. Nessa hora, a menina TS pediu um

minuto, “só um minutinho” para ela falar uma coisa, “uma coisa só. Eu lembrei aqui

uma coisa, que antes desse papa, também, um outro papa veio ao Brasil, aquele

Paulo Dom Pedro 6 (ela disse seis) e era em 1500, mas nem tinha televisão e aí

ninguém viu, só quem estava lá. Mas só que não tem foto, tudo bem, mas eu juro

que é verdade”. Como ela disse “lá”, eu pedia que ela me explicasse onde era esse

lugar. Ela teve dúvida e disse: “Tia... eu esqueci... mas não é mentira. É lá, no

Brasil, ora! Em São Paulo e Brasília.” Vendo a amiga aflita, em dúvida, IS (mo, 7

anos) chegou perto dela e ensinou: “O Brasil fica lá em Brasília, fala isso”, e ela

repetiu: “Sim, isso aconteceu no Brasil, lá em Brasília.” Foi quando a menina GV,

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entrou na conversa e questionou: ”Tia, isso é notícia, por acaso?”, dirigindo-se à

professora. “Eu acho que não”, respondeu ela mesma, antes da professora. “Nunca

tem notícia do outro ano, que já passou. É de hoje, de agora ou da madrugada,

quando acontecem os crimes. Todos os canais dão as mesmas notícias, sempre. No

rádio, dá notícia também de crime, de morte de trânsito e de se vai chover, se vai

fazer sol. Nem vem que notícia do imperador não é mais notícia, é velha demais!”,

disse GV sobre a fala de TS, que podia ser verdadeira, mas não foi reconhecida

como uma notícia.

Um dos jargões mais conhecidos no jornalismo se refere à valorização de

uma notícia “ser dada em primeira mão”, e essa expressão era amplamente

conhecida e usual nesse grupo de crianças. Assim, uns chamavam a atenção dos

outros quando percebiam que algo havia se dado dessa forma:

“É uma notícia da televisão, vocês não estão vendo a imagem? Foi o Faustão que deu essa notícia em primeira mão. Primeira mão? É dar antes de todo o mundo, ninguém sabia ainda, nem o Esporte Gol, nem o rádio, nada, nada, ninguém sabia. Só o Faustão estava ali, prestando atenção, aí alguém disse pra ele – pára tudo agora que ele vai fazer – ele parou o programa e o Baixinho fez.” (LF, mo, 7 anos)

Nesse grupo, em que o fator tempo já era bastante valorizado, as crianças

criaram uma brincadeira, assim que terminou a gravação do telejornal, que

funcionava como uma disputa para saber quem traria para a escola e daria, em

primeira mão, uma notícia que fosse do interesse de, pelo menos, boa parte do

grupo. E assim as crianças brincavam com a atualidade dos fatos: “Ontem teve jogo

do Brasil. O Brasil fez 2 gols. Muito obrigada!” Sem achar graça, por parecer ser

uma notícia já sabida por todos, o grupo respondeu para LG, 7 anos: “Sem graça!”

A devolução do grupo com o uso da expressão “sem graça” indicava que o grupo

não reconhecia a notícia como um furo de reportagem29 para aquele ambiente da

escola e da sala de aula. Em seguida, foi a vez do menino RS, de 7 anos, que disse:

“O Pan está chegando, chegando a sua hora! Boa noite!” E o grupo respondeu, mais

uma vez, da mesma maneira: “Sem graça!” Parece que as crianças desse grupo

gostavam de se mostrar antenadas com os fatos e com as notícias, o que, assim,

tornava cada vez mais difícil que alguém divulgasse entre eles algo que fosse

reconhecido como uma notícia, além de elas retirarem as noticias para a brincadeira

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da própria televisão. Ou seja, a televisão era a fonte de onde retiravam as notícias

que “requentavam”30 na escola.

4.3.10 A notícia é importante e por isso se repete? Ou se repete muito e, por isso, acaba se tornando importante?

As crianças conversam sobre o fato de às vezes acontecerem coisas que elas

achavam importantes e que não apareciam como notícias do telejornal. A

professora perguntou a eles se sabiam por que isso eventualmente acontecia. TA,

ma, 7 anos, explicou que, para sair no telejornal, tinha que ser “importante, muito

importante pra todo o mundo”, mostrando assim compreender que os critérios de

importância são referenciados (importantes, para quem?) para que fosse divulgado

o que fosse importante para muitas pessoas. Por isso, teria surgido a necessidade de

haver alguém em cada emissora que determinasse o que seria mais ou menos

importante, o que deveria ser veiculado, diante de tantas coisas importantes. E,

como lembrou a menina TA (7 anos), “tem que ter gente filmando, claro, para ter

notícia”.

Quando as notícias eram muito importantes, ainda, elas poderiam sair no

plantão da TV Globo, disse a mesma TA: “Eu vi na tevê um pobre dormindo, e o

barraco caiu em cima dele. E, aí, tocou a música do plantão. Quando toca a música,

todo o mundo corre para olhar a televisão. Não tem jeito, é sempre coisa horrível,

de morte, de seqüestro, de bala perdida. Às vezes, é notícia de barraco que cai com

a chuva. Mas sempre tem uma câmera filmando o repórter em cima dali, do barraco

que caiu.”

YC, 7 anos, disse que saber que existem notícias que ficam se repetindo na

televisão, muitas vezes, mas como os motivos nem sempre são evidentes para ele,

elas se tornam muito aborrecedoras: “Elas ficam aparecendo um monte de vezes

na televisão. Eu vi aquela batida sem parar, até vi também aquele homem que caiu

de moto e ficou puto, aí chutou a moto. Isso é notícia, mas a da moto não passou

repetido direto, só um pouco. Acho que repete muito pra todo o mundo ver.” A

menina LS concordou: “Eu acho que repete para todo o mundo querer ver que a

29 Termo usado por mim, não pelas crianças. 30 Termo usado por mim, também, para nomear um rearranjo da notícia já dada, por isso “velha e fria”, que após uma reciclagem da pauta, volta à mídia reaquecida, requentada.

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notícia é importante, por isso repete, repete, repete. O cara que caiu da moto rodou

duas vezes, mas isso é só um pouco importante. É importante, mas não é muito

assim... o Bonner mandou repetir, aí repete, repete, repete.”

“No incêndio de Rio das Pedras foi bombeiro, foi até helicóptero, aí foi uma

notícia, apareceu muitas vezes. Eu fiquei até rouco de tanto chorar, com medo de

pegar fogo no bar do meu tio, mas nem pegou. Essa notícia é muito importante,

muito. Tia, muita gente ficou sem casa, sem comida, isso é importante, é triste. Por

isso que fica passando o dia inteiro na tevê, deu plantão até”, disse LH, com muita

emoção. Esse menino dorme durante a semana no emprego da mãe e só nos fins de

semana ele vai para sua casa, lá no Rio das Pedras, onde encontra o pai e os irmãos.

4.3.11 A produção das notícias

Certo dia, percebi que as crianças conversavam sobre um determinado

buraco que havia numa avenida movimentada, próxima à Vila dos Atletas, no

caminho do Riocentro e também do Parque Aquático Maria Lenk, que integram o

Complexo Esportivo Cidade dos Esportes e que sediariam as competições

desportivas durante os Jogos Pan-americanos de 2007. Esses pontos faziam parte

do caminho de passagem entre a escola e a residência de muitas das crianças e

estavam na pauta da grande imprensa, à época, devido ao início dos Jogos, que se

aproximava. Este era o contexto da discussão que estava polarizada entre um

menino (VS, 6 anos) e uma menina (GV, 6 anos) e o foco da discussão era o enorme

buraco aberto numa pista de acesso muito movimentada e que, assim, já estava

prejudicando o trânsito com obras e que ameaçava o fluir dos carros para as pessoas

poderem alcançar os estádios, durante os jogos do Pan. O tal buraco, que ficou

conhecido como “o buraco do Pan”, tanto preocupava as crianças excessivamente,

quanto lhes colocava diante de uma equação difícil de ser solucionada. Uns

achavam ser possível “um homem ir lá, tem que ser um profissional bom de

fotografia, com uma câmera que dá pra se ver na hora (máquinas digitais), tirar a

foto do buraco e passar essa imagem da foto para a televisão”, opinião de algumas

meninas lideradas por GV. Os meninos do grupo achavam só ser possível ver uma

imagem na televisão se ela fosse feita com câmera de televisão no local e na hora do

fato, “na cena”, como diziam. TS, menina, reagiu com muita firmeza, mesmo

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apresentando alguma dúvida sobre o processo de geração de imagens para a

televisão: “Diz aí, então, quem leva o buraco do Pan para a televisão? Lá para o

'pondek’ (Projac), quem é? Fala aí quem tira o buraco do chão? É o carro da polícia?

É o homem da televisão que filma e que leva a fotografia (referindo-se à imagem),

leva dentro da câmera, a imagem ... você que vê com seu olho, lá na imagem que sai

da televisão acho que é, sei lá.”

4.3.12 As fontes se alimentam delas mesmas

Neste percurso, em que procurei conhecer também como essas crianças

pensavam que se desse a produção das notícias, pude identificar no grupo o fato de

eles reconhecerem alguns elementos que eram parte do escopo de certas notícias e

que geravam desconfiança quanto ao modo de produção da notícia e suas fontes.

Isso, em última análise, punha em dúvida a credibilidade de algumas notícias,

como, por exemplo, as situações em que as câmeras de segurança filmavam sem

que as pessoas soubessem. Eles identificavam, como já foi dito, os critérios de

importância e de urgência usados para classificar as notícias. No entanto, também

ficavam em dúvida sobre os critérios usados por quem determinava a dimensão da

importância da notícia, já que, com relativa freqüência, os mesmos não se

coadunavam com critérios de importância válidos para eles, para a vida deles em

suas comunidades.

Também havia um outro aspecto que incomodava muito essas crianças que

se referia, à sua falta de compreensão quanto aos critérios de importância que

determinavam a repetição excessiva de certas notícias, em vários horários, em

emissoras diferentes, muitas vezes identificadas por eles como concorrentes, o que

sugeria que os telejornais e os plantões de notícias se alimentassem de si mesmos,

que tomassem a si mesmos como suas fontes. Este aspecto, indiscutivelmente, tanto

demonstrava a importância de certas notícias, quanto alimentava uma desconfiança

nas crianças sobre quem, como e segundo que critérios “umas coisas viram notícias,

mas não é tudo”. (IC, mo, 7 anos)

O menino, KS, de 6 anos, disse:

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“De manhã, de tarde e de noite a mesma coisa, o homem que roubou o prêmio da mega-sena do amigo, que coisa chata! Acham que eu sou surdo, que eu sou burro?”

4.3.13 Quando as fontes e os repórteres se confundem

O caso da irmã de Victor Belfort foi exemplar para indicar a mistura de

papéis entre a polícia e os profissionais das notícias. As crianças entendiam e assim

verbalizavam, que os repórteres e os policiais “andem juntos” e que, onde exista

coisa ruim – significando coisa errada (merda) –, eles estejam unidos. Essa mistura

de papéis pode não ser benéfica para os jornalistas, para os policiais e muito menos

para as crianças.

Essa diferenciação é desejada não só pelas suas funções sociais serem

bastante diferentes, como, também, pela importância de cada um desses

profissionais, em suas devidas funções para a vida social. As crianças diziam,

reafirmando essa junção indesejável, que “na hora de dar a notícia ruim eles dão,

mas depois não resolvem, não dizem como que resolveu: se matou, se morreu. Isso

é perdido!”. Deste modo, estabelecem uma relação muito estreita dos jornalistas

com o crime, que é uma das representações de perigo e de ameaça à vida.

Muitas são as hipóteses que podem ajudar na compreensão dessa relação

estabelecida pelas crianças. Uma delas se refere a um padrão ou a uma ordem

comum na grande imprensa, que vale para os jornais diários que têm editoria de

polícia, segundo a qual os jornalistas não devem chegar ao local de crimes sem que

estejam acompanhados de policiais. É possível que essas crianças tenham visto,

diretamente ou por meio da televisão, em muitas situações, a chegada de jornalistas

e de policiais juntos. Uma outra circunstância, mais ou menos comum, é o

estabelecimento de laços de amizade entre jornalistas e policiais, devido ao contato

direto, usual, para a produção das notícias. È comum, portanto, a polícia ser a fonte

do jornalista, que, inclusive, dispõe de uma sala de rádio-escuta na redação, em que,

estando na freqüência o rádio da polícia ou do Corpo de Bombeiros, o anúncio de

algum crime é transmitido ao mesmo tempo para os policiais e para os jornalistas,

que, assim, mais uma vez, costumam chegar praticamente juntos ao local indicado.

Além disso, a convivência estreita entre alguns jornalistas e certos policiais faz com

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que aprendam uns com os outros certos modos e hábitos típicos de uma ou de outra

função. É comum os jornalistas precisarem decifrar as mensagens dos policiais que

são repassadas pelo rádio, em que se incluem códigos numéricos, em sua maioria

extraídos do código penal, que determinam o tipo do crime: homicídio, apreensão

de drogas, etc. Assim popularizam-se números carregados de significação

compartilhada, como 171 (leia-se um sete um), referindo-se a estelionato, ou 121

(leia-se um dois um) para homicídio e, além desse linguajar peculiar, é comum que

certos jornalistas passem a se vestir como se fossem policiais e, eventualmente, ao

performatizarem os policiais, comportam-se e agem como se o fossem, num jogo

ficcional que lhes permite recriação e não reprodução simples, já que há elementos

que não se perdem completamente, até porque não é possível apagar o seu papel,

seu dever e sua função social como jornalista. Ë possível que em alguns casos, o

mesmo venha a acontecer com alguns policias mas não há registro, significativo

nem divulgado, em que policiais tenham buscado agir como se fossem jornalistas,

sem que se configurasse como uma ação ilícita, talvez pelo uso obrigatório do

uniforme que caracteriza a corporação, em serviço.

4.3.14 Na televisão, a beleza também é fundamental

Eu perguntei à menina TS, de 7 anos, sobre o que ela gostava de ver na tevê.

Ela respondeu: “Nada. Só acho o Willian Bonner um filé31, eu e minha mãe

achamos o Bonner um filé, mais nada. Minha mãe ADOOOOOORA ver as

notícias. Eu não”, evidenciando assim o aspecto estético referente à beleza dos que

trabalham na televisão.

No primeiro dia de filmagem do telejornal, essa mesma menina (TS, 7

anos), que não havia sido autorizada pela mãe para a gravação, curiosamente foi

para escola usando maquiagem e os cabelos escovados e, por isso, os amigos logo

começaram a falar: “Aí, metida, cheia de novidades, está toda bonitona.” Ela

respondeu: “New look, style, nos trinques. Fiz relaxamento no cabelo, no salão! E,

hoje cedo, a minha tia pintou meu rosto com batom e lápis para a filmagem da tevê

Globo.” Ela sabia que só poderia participar da atividade desde que não fosse

filmada, porém, diante da chegada em grande estilo, com maquiagem e o cabelo

31 Filé é uma gíria usada para se referir a alguém considerado muito bonito, lindo, maravilhoso.

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arrumado, os meninos se divertiram e deixaram-na muito irritada. VS, 6 anos, disse:

“Que relaxamento, TS? Relaxamento é maluquice! Que relaxamento é esse? É o

nome do produto?” E, muito aborrecida, raivosa mesmo, ela respondeu: “Não, seu

burro. Relaxamento no cabelo não é henné, é ‘nuluque’ (new look), aquilo que a

gente diz quando a pessoa pinta o cabelo, compra roupa nova, assim é como se fala,

até na televisão fala.” Chega à sala o menino GO, de 8 anos, atrasado e ainda com a

mochila nas costas, se surpreendeu com as mudanças no cabelo e rosto da amiga e

disse: “Está lisa? Isso é henné! Minha mãe disse que pobre usa henné e fala que

relaxa. Relaxar é ficar deitado assim (colocou as mãos atrás dos ombros, dobradas),

só tomando chopinho. Você alisou, está ALISADO o cabelo, não tem nada de

assunto de relaxar. E você nem vai sair na filmagem, vai ficar quieta.” Os dois

brigaram, a menina chorou muito, e a confusão só acabou com a intervenção da

professora.

A beleza dos profissionais que atuam na televisão pareceu exigir do grupo

algumas mudanças nos cabelos e no uso de batom. No grupo de meninas, só JS não

veio de modo diferente do que costuma ir à escola; as demais meninas vieram mais

bem penteadas, com batom, e uma delas chegou a se apresentar com as unhas

pintadas.

Eu quis saber se elas percebiam alguma produção feita nas pessoas que

trabalham e que aparecem na televisão. GB, de 7 anos, disse “que sim. Eles devem

ter uma van. Acho que eu vi lá em São Paulo. Estava andando de carro, voltando de

lá. Apareceu uma van igual a um caça-furacão. Acho que era um negócio de

televisão, estava com uma antena virada pra lá e dentro tinha repórter, gravador,

câmera. Assim, né, eu acho”. JS completou: “Tia, eu acho que eles vão com a van,

deixam algumas pessoas que vão trabalhar e voltam com a van, porque quando eu

vi num programa, eles levaram a moça para fazer o cabelo, a moça que pinta a

maquiagem, tem lanche, água, ar-condicionado até. Eu acho que tem tudo na van,

até pilha. Homem e mulher usam maquiagem na televisão.” A menina AG

reafirmou as opiniões anteriores com muita segurança: “Claro, tia, na televisão

levam as pessoas pra fazer cabelo, botam pó-de-arroz. Até homem usa, sabia?” E

fez uma referência imediata ao telejornal que tinham acabado de filmar na escola:

“Aqui na escola não tinha ninguém para maquiar a gente, nem pra ajeitar nosso cabelo. Sabe quem se lembrou disso aqui na gravação?

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Eu aqui, euzinha, eu mais ela (apontou para amiga TA), que cuidamos dos cabelos e das maquiagens, mas a gente não tinha os produtos!”

Conversamos, ainda, sobre como os repórteres ficam sabendo tudo o que

acontece de modo a ser possível veicular as notícias na televisão. Parte do grupo

entende como função dos repórteres “ficar pela rua, rodando de carro perguntando

as notícias e quando tem, eles têm que levar tudo para a televisão na câmara deles”.

E, para não esquecerem as notícias ali, diante do público ouvinte, “os repórteres

fazem assim (movimenta a cabeça para cima e para baixo), para olhar para o papel e

para a câmera, naquela mesa. Eles vão lendo, eu vejo eles fazendo isso”. (JS, ma, 7

anos)

Segundo o menino LH , “tem muitas coisas que a gente vê, lá perto da nossa

casa, que são importantes, mas que não aparecem no jornal, porque eles não estão

filmando”. GB justifica dizendo que “nem sempre, também, os repórteres sabem o

que aconteceu e aí não tem gente filmando lá”. LG também compartilha a defesa

dos repórteres, dizendo:

“Se ninguém avisar ao repórter, ele não sabe, aí não grava nada. Eu já vi um cavalo morto, atropelado bem na pista. Isso dava notícia. Eu também vi uma árvore que caiu e fechou toda a rua. Mas não saiu a notícia na televisão, acho que ninguém avisou para os repórteres. É claro que tinha uma câmara filmando, dessas que ficam escondidas, tinha, tinha, claro que tinha. Todo lugar tem, na rua, nas pistas, tinha sim.” (LG, ma, 7 anos)

TS me perguntou se eu vejo o programa do Wagner Montes. “Não”, eu

respondo, e ela segue: “Corpo que erra, que bate em inocente na rua, não tá puro, aí

eles falam sai, sai, corta o vídeo e volta na dança do capiroto.” TS explica que

“quando alguém fala corta, corta, saem os homens da produção e apaga tudo.

Wagner Montes também sai, e entram aquelas letrinhas do programa. Também não

vai agora me perguntar o que está escrito naquelas letrinhas, porque eu não sei, nem

adianta. Está pensando que eu sou repórter?”. Eu e as duas outras crianças rimos

muito, e a própria TS acabou rindo também. VS disse a ela : “Você não é repórter,

claro, mas fala muito mais que os repórteres.”

Voltei ao grupo para devolver uma questão pendente, sobre como fazer para

avisar aos repórteres fatos importantes, já que “eles não sabem tudo”, como

disseram antes. A menina LG ficou na dúvida e, mesmo com a mão na boca, disse:

“Como avisa? Sei lá! Liga pro celular deles ou então para o 0800, Disque Denúncia.

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Ah! Pode ligar para a polícia, que aí eles ligam para a Record, para o SBT. Eu

acho.” E, em seguida, os três meninos (KS, IS e YC) que estavam próximos dela,

junto com outra menina (WS, de 8 anos), puxaram o coro: “Polícia! Polícia!

Polícia!” O menino VS, 6 anos, diz que vê, todo dia, “os repórteres falando

na televisão, dando as notícias. Mas a da Sirley Dias só deu a notícia

porque tinha um taxista lá que viu tudo e denunciou para a polícia.

Para dar na televisão tem uma câmara ajudando que fica escondida na

parede, e esse filme vai para a televisão. Os repórteres têm que buscar

as filmagens para pegar os crimes e as notícias de morte, de

espancamento e de violência”.

4.3.15 As câmeras de segurança como fontes: medo e desejo

As crianças acreditavam que os shoppings, os bancos e até mesmo as

escolas mandassem suas filmagens para a televisão e, assim, “chega tudo na

televisão” (TS, ma , 7 anos, ML, etc). VS diz que “o Bonner e a Fátima escolhem o

que vai virar notícia na tevê”. Segundo ele, os condomínios só mandam “as notícias

e os filmes para a televisão quando tem crime. Aí, depois, aparece na Record, em

todos”. A menina TS chama atenção para uma questão já acordada no grupo: “Mas

é quase tudo crime. Se não é, é Pan, é futebol, é van, essas coisas, mas é muito

crime.”

Foi o caso da empregada doméstica Sirley Dias que fez emergir na escola a

discussão sobre as câmeras de segurança como fontes. Diz a mesma TS: “Tia Inês,

tem câmara escondida para gravar tudo, em todos os lugares, até aqui na escola.”

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A citação da câmera da escola gerou certo mal-estar na menina TS, 7 anos.

Ela me perguntou se pode falar só mais uma coisa, um segredo, eu respondi “sim, é

claro que sim”. E, em tom baixinho, ela disse:

“Eu e a ML (7 anos) dançamos na frente da câmara, um dia, não foi hoje, foi quando a gente descobriu que tinha câmara e que filmava de verdade. Sabe o que a gente fez? A gente se divertiu muito, muito, muito, muito. Uma ficava dançando na frente da câmara, e a outra ficava vendo, dentro da secretaria. Depois, trocava. Foi muito legal, mas depois descobriram e mandaram a gente parar de entrar na secretaria.”

LS, ma, 7 anos, disse “que a câmara filma tudo, mas a diretora da escola tem

que chamar a televisão, os repórteres têm que vir aqui na escola para o filme

aparecer na televisão. Eles vêm com microfone, fita pra gravar e câmera que grava a

pessoa e a fala dela também. Os repórteres têm câmera para filmar com voz! Você

viu notícia sem voz, só com corpo?”.

Segundo ela (LS), “a cidade toda tem câmera, no banco, e fica lá gravando

tudo”. O menino VS chegou para estabelecer a diferença entre as câmeras de rua e

as de shopping: “A câmara de TV eu vejo no Faustão. Ela é grandona, a da cidade,

que fica tudo escondida, é bem pequenininha, vai lá ver no pátio daqui, bem em

frente à secretaria.” Em tom de ameaça, LS voltou a dizer que “eles filmam tudo,

aluno que sai da escola sozinho, está tudo lá, muita coisa, porque fica filmando

direto”.

Alguns dias antes, as crianças chegaram à escola muito assustadas com o

caso da Sirley Dias, de que todos tomaram conhecimento pela televisão e em

programas diferentes. GV, de 6 anos, relatou com surpresa e com dúvida o fato de

ela mesma não ter visto/ouvido a noticia no plantão, “bem podia ser, mas de noite

está todo o mundo dormindo e nem vêem plantão. Deve até ter dado plantão, mas eu

vi na Record”. Outros, na Band, na Globo e no SBT, “até no Wagner Montes”,

disse TS, que completou a informação: “Ela (Sirley Dias) voltou lá depois de

espancada e roubada. As câmeras filmaram tudo, e nessas câmeras deu pra ver

quem eram os bandidos. A polícia foi atrás e prendeu.”

A notícia ficou em discussão por alguns dias, e nesse período várias

hipóteses foram levantadas sobre uma possível fuga dos bandidos, quem eram eles,

além de um detalhe hediondo que jamais foi perdoado pelas crianças, que revela um

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desrespeito imenso em relação à moça: “Pior, tia, muito pior é que eles riram,

bateram e riram da coitada. Tudo aconteceu de madrugada, como sempre, né?”

(GT, LG, TA, meninas de 7 anos)

As crianças acompanharam esse caso como se fossem investigadores ou

detetives de polícia. Discutiam sobre a fuga, sobre o plano em si, sobre as possíveis

causas e conseqüências do crime. Nesse processo, elas começaram a ter dúvidas

sobre os bandidos, se estavam mesmo todos presos e se eles eram mesmo os vilões

da história, devido ao tipo físico e às vestimentas, que escapavam muito do perfil

habitual dos delinqüentes jovens, conhecidos por essas mesmas crianças.

Assim, GB (mo, 7 anos) e GT (ma, 7anos) conversavam sobre o

estranhamento que esses bandidos lhes causaram: “Eles eram bandidos ricos, não

eram pobres nem todos feios.” TS (ma) não gostou do que ouviu e perguntou a GV

(ma) “como ela sabia que eles são ricos? Quem disse isso?”. GT disse que era “por

causa do casaco com capuz. Ninguém que é pobre, pobre assim como a gente, tem

aquele casaco de capuz”. E a menina TS reagiu fazendo uma retrospectiva do que

ela sabia do crime e, aqui cabe informar, ela é negra, enquanto AG é branca. Disse

TS (ma): “Tia Inês, foi uma coisa horrível, ela levou tapa na cara, chute, foi

roubada, levaram a bolsa com celular dentro, de madrugada, na praia da Barra.” GB

(mo) disse: “Acharam que ela era prostituta! Eles é que eram bandidos e eram

adolescentes! A polícia os pegou e porque já estava tudo filmado, tudo na câmera,

mas agora é outra, a do prédio fica lá, presa, aquela do SORRIA (fazendo referência

à placa ‘Sorria, você está sendo filmado’). A câmera da televisão segue o bandido

no carro e vai filmando, se tem tiroteio, se tem bala perdida, se tem barraco que

despenca, o buraco do Pan, é assim.” “E aí”, segue a menina TS, “eles levam para a

televisão a câmera e passa no telão pra nós e sai na nossa casa, na nossa televisão.

GB retrucou a informação: “Tá maluca? Vai tudo pro Projac! A polícia leva os

caras lá e filma no estúdio para a gente ver em casa. A gente vê uma imagem.” JS,

ma, 7 anos, ficou em dúvida e perguntou: “Mas da Record também vai tudo fazer

no Projac? Todos os repórteres?” GB respondeu com segurança: “Aqui no Brasil,

sim, é tudo no Projac”. TS não aceitou, mas não sem um argumento forte, disse:

“Eu não sou burra. Eu não sei isso de Projac assim, eu não acho. E quando é

buraco?” LS disse que via “na internet um buraco do Pan que abriu bem ali, eu vi

com a minha mãe”. LS disse: “Você vai ver, vai cair mais chão, porque ali tudo é

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brejo, você vai ver, quando a gente entrar de férias vai ter essa notícia, eu sei que

vai.” GB retruca: “O quê? É brejo? É nada, é lagoa.”

4.3.16 Bandidos são negros, pobres, sem família, sem casa e sem escola

GT, menina, 7 anos, insistia que os bandidos eram ricos e, assim, não

poderiam ser “gente igual a gente, eu já falei. Eles têm carro, têm casaco com capuz

e são brancos!”. GB (mo, 7 anos) se dirigiu à amiga GT (7 anos): “Você tem a

carne branca e não é ladrona. Os bandidos moram todos na praia, naqueles prédios

em que moram os médicos.” Nessa hora, quatro crianças (GB, mo; TS, ma; LF, mo;

JS, ma) reagiram bravamente contra GT, chamando-a de burra, dizendo “não ter

nada a ver. Aqueles sem camisa são os da denúncia, mas quem bateu, os bandidos,

são outros, bem pobres e pretos”. TS, ma, 7 anos disse: “Aqueles caras que a gente

viu, todo o mundo viu na televisão, eles são fortões, bonitos e sei lá, eles estão

envolvidos no crime, mas eles não são os bandidos, porque bandido é pobre, é quem

não tem pai, nem mãe e nem casa pra morar. Nem comida pra comer, nem escola...

Eu acho que os bandidos não são aqueles, são os pais deles que bateram. Aqueles

filhos são drogados, eu acho, mas nem sei.” LF (mo, 7 anos) diz: “Os da denúncia

são os olheiros. Eles ficam participando do crime para dar proteção aos bandidos,

por isso eles são fortes. Mas se a polícia pega eles, eles abrem o bico, contam tudo e

os bandidos são presos. Os bandidos da Sirley tinham carro e arma pesada, aqueles

ali nem tinham arma, eram só olheiros.”

Assim, o caso Sirley Dias que já estava há muitos dias na pauta de conversa

das crianças, serviu também para demonstrar que as crianças haviam se identificado

demais com a figura dela: uma mulher batalhadora, “pobre, honesta que trabalha

em casa de família que fica em prédio de ricos”. (LH) No entanto, apesar da ampla

cobertura jornalística dada ao caso, todas as crianças desse grupo reconheceram, a

Sirley Dias como sendo a vítima de um crime bárbaro, enquanto, nesse processo os

bandidos forma perdendo a sua identidade devido à resistência apresentada pelas

crianças para aceitar que aqueles garotos de pele branca, usando casacos com capuz

e ricos fossem os responsáveis pelo crime. “Os bandidos são outros, bem pobres e

pretos.” (LH) “É quem não tem pai, nem mãe e nem casa pra morar. Nem comida

pra comer, nem escola”, disse TS, ma, 7 anos, repetidas vezes.

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Ao refletir sobre o olhar alteritário das crianças a partir da imagem de um

outro, os jovens que apareceram na televisão como bandidos, criminosos e

violentos, as crianças se mostram muito resistentes e confusas. Como elas são

majoritariamente negras, instalou-se um impasse em relação à aceitação delas

quanto ao fato de os bandidos serem brancos. Essa imagem fixada do crime como

sendo sempre cometido por pessoas negras, pobres, etc., é altamente preocupante,

além de muito questionável, tanto pelo preconceito que carrega, quanto pelo seu

aspecto generalizante que corrobora a manutenção dessa imagem.

Um aspecto interessante refere às características étnicas do grupo, formado

por crianças negras, mulatas e brancas, em que, entre eles, pelo menos nas horas em

que passam na escola, não apareça preconceito nem segregação quanto a isso. No

máximo, entre eles, se dividem por times de futebol, por gênero, por área de

moradia, mas não pela etnia. Talvez, seja um fator de união o fato de se

auto-reconhecerem como pobres, de baixa renda, sem que isso, mais uma vez, gere

preconceito. Assim, não gerou incômodo dentro do grupo, nem mesmo nas crianças

negras, essa visão do bandido como sendo sempre um negro pobre, em que a

recíproca não vale, ou seja, todos sabem e defendem o fato de que nem todos os

negros pobres necessariamente sejam bandidos. Ainda assim, o fato de essas

crianças pensarem desta forma, sem qualquer intervenção ou deslocamento

provocado pelos adultos da família e da escola, parece, de algum modo, ratificar

também a visão dos adultos com quem convivem. Pareceu, mais uma vez, que os

adultos se protegem de medos e incertezas que são seus e assim, não se deixam se

questionar pelas suas crianças, sejam elas alunos ou filhos.

Isso implica dizer que essa imagem de criança deva atender a certa visão de

criança e de aluno em que, para além do fato e da circunstância (caso Sirley) ,

torne-se mais seguro para os adultos não reconhecer nem enfrentar preconceitos e

construção de valores, junto a suas crianças, que poderão vir a lhes provocar

vertigens, surpresas, além do risco de terem que lidar com contradições, incertezas

e medos.

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4.3.17 (In)visibilidade

“Mas notícias da televisão são tudo verdade. Eu VEJO lá que a chuva ficou aqui [mostra com a mão, na altura do joelho]. Eu sei que é verdade, porque dá pra ver. Na novela, tem coisa da vida real, mas é tudo mentira, tudo inventado. No desenho animado, é tudo mentira. No Laptop das Princesas não passa nada da tevê.” (GT, ma, 7 anos) A professora perguntou: “Não tem notícia nenhuma? Notícia do passado, na televisão?” TS diz que tem “no Fantástico, dinossauros. Eles existiram, de verdade, e lá conta a história deles, que é de verdade, mas aqueles são todos de mentira. Tudo fabricado na televisão, de mentira.”

Um elemento que merece destaque nesta tese se refere ao caráter de

invisibilidade que, aqui, será tratado levando-se em conta diferentes dimensões.

Não pretendo usar o conceito de invisibilidade como sinônimo de exclusão e, por

correspondência, crer que visibilidade naturalmente implique inclusão. No entanto,

creio ser possível afirmar que, para haver inclusão, seja indispensável que exista

visibilidade, o que, no caso da infância, significa entender o direito de cada criança

a ter participação na vida social, tanto como um segmento geracional, no sentido de

ser uma fase pela qual todos os seres humanos passam, quanto ao levar em conta os

inúmeros fatores de heterogeneidade, como etnia e gênero, que marcam a vivência

de cada criança em seu tempo, lugar e cultura.

Nesse viés, pode-se dizer ainda que, nas diferentes formações sociais, em

tempos e em histórias distintos, existam muitos modos de se conceber as crianças,

sua relação com os adultos e com o mundo em que vivem. E, ainda hoje, várias

circunstâncias comprovam se manter viva uma caracterização de infância

referenciada numa negatividade que a submete ao que lhe falta, segundo uma visão

adultocêntrica. Assim, como não-adultos, estão na idade da não-razão, em que lhes

falta, ainda, a linguagem, daí in- fans, o que não fala. (Sarmento, 2006)

É importante salientar também que, da mesma forma que as crianças foram

e, em muitas situações, ainda são incluídas no mercado de trabalho quase sempre

informal, de onde retiram parte da renda familiar, hoje, no Brasil. Pode-se dizer que

muitas crianças vivam a tensão de ter que contribuir com sua mão-de-obra, ainda

sabendo que deveriam estar apenas estudando, brincando sob a garantia de adultos

responsáveis e de leis que lhes garantissem, ainda: moradia, direito a uma família,

ainda que substituta, direito aos serviços de saúde, entre outras coisas. Deste modo,

mesmo aqueles que desempenham funções para seus responsáveis que podem ser

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claramente definidas como sendo um trabalho, não são assim compreendidos, ou o

são, mas não são explicitados como tal. Grande parte dos pais e professores, para

não dizer todos, sabem que as crianças não devem trabalhar, a televisão também

divulga esse e outros direitos delas, mas, em muitos casos, em países com

condições semelhantes ao nosso, e mesmo nas grandes cidades, como o Rio de

Janeiro, crianças com menos de 12, e até mesmo com menos de 7 anos, trabalham.

Duas delas, integrantes do grupo, me disseram que trabalham no horário alternativo

à escola e ambas me contaram o fato como quem faz uma confissão de um segredo

que precisa ser muito bem guardado. Uma das crianças disse que a mãe não deseja

que na escola ninguém saiba que a mesma cuida de crianças, dois bebês, à tarde, e a

outra falou: “que não trabalha, só ajuda no mercadinho, onde consegue mais de dez

reais por dia, de um em um. O problema é o padrasto, que não pode saber se não ele

toma a grana que eu trago para casa, para ajudar a minha mãe”32 . Quando perguntei

a essa criança se alguém na escola sabia, ela respondeu: “Não, claro que não,

criança não pode trabalhar, mas eu tenho que trazer um trocado pra casa, pra dar pra

minha mãe. A escola não dá. Dá? Não dá (referindo-se a um trocado ou dinheiro),

você sabe que não dá, tia Inês.” Desta forma, mais uma negação, desta vez, de

participação e quanto à sua capacidade produtiva, fica submetida a uma imagem da

infância segundo a qual às crianças não cabe trabalhar, o que é legítimo, mas que

precisa ser registrado como mais um tipo de exclusão que gera invisibilidade, como

a fase do não-trabalho, afastando-as da vida econômica, como diz Sarmento, ao

afastá-las da produção e do consumo. Assim, ao reafirmar a infância como uma

categoria que compreende seres completos, não se supõe que sejam iguais entre si e

que assim sejam respeitados, como sujeitos sociais diferenciados, sujeitos de

direitos que não podem ser reconhecidos pelo que lhes falta, mas pelo que são, em

que até mesmo a aprendizagem escolar, a ajuda familiar e algumas atividades

informais e/ou em ritmo irregular valem como trabalho e acabam sendo

escamoteadas pelas crianças e pelos adultos com quem vivem, diz Sarmento

(2006), reafirmando o senso comum que alimenta a ilusão de que elas não

trabalhem.

Finalmente, cabe destacar ainda a não presença dessas crianças que

compõem o universo desta pesquisa nos telejornais da televisão. Assim, apesar de

32 Neste caso, para resguardar ainda mais as crianças, optei por excluir até mesmo as iniciais de seus nomes, o gênero e a idade.

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compartilharem a tensão permanente de viverem em áreas variadas de conflito

devido à miséria, à baixa renda, ao baixo índice de escolaridade, entre outras coisas,

em regra as regiões onde moram se tornam destaques nas notícias dos telejornais

com freqüência. Os espaços destinados as suas comunidades, no entanto, por um

lado iluminam em cadeia nacional o que lhes falta para ter uma vida digna e, por

outro, faz com que o que as crianças vêem nos telejornais lhes gere medo e pavor,

além de precisarem estabelecer os contornos possíveis para ser possível viver.

Vários outros aspectos de visibilidade indesejável ou mesmo de

invisibilidade social precisam ser sinalizados e acontecem dentro da casa em que

moram até na mídia, na televisão. O primeiro argumento é o fato de haver uma falta

de reconhecimento de cada uma das crianças como sujeitos ativos e participativos

dentro de suas famílias e também na escola. Como pessoas que já são e que, assim,

não precisariam de um devir para serem reconhecidas como parte do mundo em que

vivem. Parece que, teimosamente, elas tanto insistam em conhecer, participar,

acompanhar, entender e questionar os fatos mais marcantes do mundo em que

vivem, quanto sejam capazes de apresentar um olhar alteritário sobre esse mesmo

mundo, sobre as ordenações que lhes são impostas pelos adultos próximos e pela

televisão. Deste modo, as crianças demonstraram não sucumbir às semióticas

dominantes sem crítica, garantindo seu espaço como ativos interlocutores com o

que os programas televisivos lhes ofereciam, nos quais identificaram os telejornais

e as notícias. Assim, também o que era veiculado na televisão foi compreendido

pelas crianças sob seu olhar alteritário, pelo qual elas questionaram o que viram não

só individualmente, mas junto com os amigos, na escola e possivelmente fora dela

também, conversando e questionando os modos de representação da infância e da

vida tal como são veiculados.

Deste modo, se concordamos que pensamento e linguagem sejam

elementos constitutivos um do outro, pode-se dizer que, apesar de a televisão

ocupar a centralidade das experiências que as crianças têm fora da escola, pouco ou

nada do que assistem, nunca passivamente, se transforma em elemento de diálogo

com os adultos com quem convivem. Com exceção de duas crianças (VS e GB,

meninos), todas as demais reconhecem a hora do telejornal e os elementos que

recortam relativos às notícias como um não-assunto em casa, também na escola.

Assim, não há participação nem espaço de representação de suas vidas nas

diferentes emissoras de televisão, nos diferentes programas e horários, confirmando

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que a participação e a representação delas lhes sejam negadas. Na escola,

entretanto, a situação se resolve em parte, na medida em que a interação entre as

crianças acontecia cotidianamente, a despeito da organização escolar, e, deste

modo, elas comentavam, interagiam e discutiam os assuntos da televisão que lhes

afetaram, como comprova esta pesquisa.

A não-participação que gerou invisibilidade, neste caso, se deu pela

não-escuta do que as crianças tinham a dizer, por não serem reconhecidas como

sujeitos ativos que interpretavam e agiam no mundo, mostrando-se, portanto, aptos

a fazer proposições e apresentar alternativas, desde que os adultos que com elas

conviviam, na escola ou em casa, se dispusessem a ouvi-las e com elas conversar.

Parece-me que a garantia à voz das crianças deveria ser ampliada com a

disponibilização dos olhos e ouvidos acolhedores dos adultos, com sua atenção

amistosa para permitir e favorecer uma aproximação em que ambos pudessem se

afetar mutuamente.

Uma outra dimensão da invisibilidade das crianças se justificou pela sua

não- representação na mídia, em especial, na televisão e também nos telejornais.

Suas narrativas indicaram, de um certo modo, que a televisão não apresentava as

questões afetas às suas vidas, questões do seu entorno familiar e social, mesmo

quando as tragédias e os crimes de que se ocupavam as notícias tinham uma

proximidade declarada delas. O fato de serem majoritariamente negros, pobres e de

baixa renda já fazia com que se sentissem excluídos, como se esse fosse um

processo do qual não podiam escapar. LS, ma, de 7 anos, disse assim:

“Eu tenho uma notícia importante, é importante, mas não é muuuito assim... eu já vi três casas pegando fogo, foi uma coisa muito importante, muito triste, mas a minha casa não saiu na televisão. Sabe por quê? Porque o helicóptero não estava filmando de cima, do alto, lá naquele lugar.”

GS, mo, de 8 anos, disse:

“Na televisão, eu gosto de ver Xuxa, Chaves, funk e desenho, de dia e de noite. O que eu não gosto? Jornal, claro. Só tem desgraça, morte. Tudo é verdade, coisa que acontece mesmo, direto. Nós tinha três casas no Gardênia. Meu pai vendeu as três e está lá no norte escondido. Eu tenho medo de ver isso (unindo o pai ausente à idéia de morte) no jornal. Uma notícia dessa, meu Deus do céu, eu vou chorar muito e vou cair na revolta. Porque se tem notícia dele, é porque eu não tenho mais meu pai, que é um

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homem bom. Aí, é melhor nem ter (notícia). Notícia para ser boa no jornal é só quando a polícia vence e os ladrões morrem, mas isso é bem difícil.”

Além de eles não identificarem elementos de suas vidas, retratados na

televisão de um modo favorável, que é como gostariam de ser representados e

vistos, eles demonstravam ter medo de serem uma notícia diante da convicção de

que esta só poderia ser relacionada à morte, ao crime e à violência. Assim, havia um

misto de desejo e de medo. Ao mesmo tempo em que alimentavam o sonho de

aparecerem na televisão como atores, músicos, desportistas de destaque e, até

mesmo, profissionais da televisão, uma angústia permanente costurava o cotidiano

dessas crianças, já que existia um medo sempre presente de que eles, ou alguém a

quem amam, viessem a ser notícia, como disse o menino GS, mais uma vez:

“Tia Inês, você não pode falar pra ninguém, é um segredo. A Márcia é madrasta do meu pai. Ela é bem bonitona, toda loura. Mas tem um outro segredo. Posso lhe contar? Quando eu crescer, eu vou ser cantor e vou aparecer na televisão.”

Eu fiquei muito feliz de, pela primeira vez, o menino GS ter falado de sua

vida como um sonho realizável, uma possibilidade de reconhecimento e de sucesso.

Minha reação foi de alegria pelo tom propositivo da conversa e, como se quisesse

apoiá-lo, supondo que seria independente e feliz, então eu lhe disse: “Que bacana, eu

não sabia que você gosta de cantar. No dia em que eu vir você no noticiário

anunciando seu show, eu vou ficar muito orgulhosa.” Ao ouvir a palavra noticiário,

ele rebateu:

“O quê? Eu na notícia? Você está louca? Não, eu nunca vou sair na notícia. Eu não quero ser matador nem morrer. Eu só vou fazer sucesso e ser rico. Deus me livre.” (GS, mo, 8 anos)

O menino LH, de 7 anos, certo dia, disse:

“As notícias são importantes quando elas já aconteceram, lá perto da nossa casa, aí é que a notícia é importante. Sabe por que, tia Inês? Porque aí o povo todo fica acompanhando a tristeza da gente. No incêndio de Rio das Pedras, eu já tinha visto, porque eu moro lá, e foi muito triste mesmo. O que eu vi na televisão eu vi com meu olho a mesma coisa ali, na rua. É uma tristeza de duas vezes que não dá pra esquecer. Nunca mais.”

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Neste caso, apesar de o fato ter sido muito triste e a notícia, por conseguinte,

igualmente triste, ao ter sido amplamente veiculada, fez com que todos tomassem

conhecimento do lugar onde algumas crianças do grupo vivem e do risco que correram.

Ainda assim, os que lá viviam tiveram um diferenciador sobre os demais telespectadores,

porque tomaram contato com a “tristeza de duas vezes”, com os olhos ali, na rua, e com

os mesmos olhos, diante da televisão.

Uma outra dimensão da mesma invisibilidade se referia suposto poder

econômico da audiência para acompanhar e poder ter acesso, ainda que parcial, ao

que era veiculado pela televisão, que exigiria uma capacidade de compra muito

diferente do que as crianças efetivamente tinham. IS foi quem buscou apaziguar o

desejo de consumo de carros (Ferrari, Kia, Furgão, Astra, Ford Ka), de roupas e de

sapatos “de marca”, de casa “na praia nos prédios onde moram só os médicos”(LE,

mo, 7 anos). Diz IS: “Vocês só falam em ter, ter, ter, ter. Ter dinheiro e carro? Eu

não tenho carro, não tenho dinheiro, só tenho notícia de não tenho. Mas eu tenho

notícias pra Tia Inês. E ela é Flamengo! Num é? Num é?” Todos riram.

A consciência explícita de IS diante do grupo ao assumir que não adianta

falar em ter bens materiais diante de uma capacidade de compra muito pequena

desse grupo faz com que ele busque uma possibilidade de pertencimento de outra

ordem, pelo nosso (meu e dele) time de coração ser o Flamengo e, ainda, pelo meu

interesse declarado por notícias.

Houve ainda uma outra situação em que duas crianças conversavam, e uma

delas nem sequer se identificou como sendo parte do povo.

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4.3.18 O medo de ser notícia

VS, mo de 6 anos, disse:

“Boa noite! Eu sou da Rede Globo! Eu sou VS. O ônibus pegou fogo, eu estava dentro. Aí, o ônibus pegou fogo. A gente fugiu no carro. A polícia estava vendo ali pertinho. Nós estávamos dentro do ônibus que pegou fogo na serra (na Estrada Grajaú-Jacarepaguá).”

As crianças do grupo estavam ouvindo com muita atenção. E ele seguiu:

“Mataram o menino na serra, ele estava jogando bola de noite. Os bandidos desceram do morro e botaram fogo nos ônibus na serra. Eu estava lá no ônibus, e fugimos. Eu, meu pai, minha mãe e meu irmão. Uma mulher deu carona de um Scort branco, parou, deu carona para nós. No dia seguinte, só dava notícia disso, eu vi os ônibus incendiados, mas eu não estava mais lá. Ainda bem.”

Essa notícia ficou muitos dias nos telejornais e na mídia impressa porque a

Estrada Grajaú – Jacarepaguá é uma via de muito movimento e havia sido ocupada

pela comunidade local como vingança pela morte de um rapaz, supostamente morto

pela polícia, na noite anterior. VS estava muito assustado porque ele e sua família

estavam dentro de um dos ônibus que foram incendiados, mas não só por isso.

Havia muito mais apreensão e medo para além de serem salvos do incêndio. Eu

disse a ele, depois que ele relatou o fato, que havia lido muitas notícias sobre esse

problema na serra, sobre o fogo nos ônibus, mas a angústia dele não permitiu que eu

terminasse de falar. Ele me interrompeu e perguntou: “Mas, tia Inês, espera aí, você

me viu na notícia?”, com expressão de espanto e medo. Eu respondi imediatamente

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que não, claro que não, que só havia visto na televisão e lido no jornal isso tudo que

ele estava me contando. O menino VS retomou a palavra:

“Meu pai não queria que ninguém nos visse na notícia, nós saímos rápido com a moça do Scort branco pra não aparecer. Deus me livre de verem a gente. A gente tem família lá na serra, que mora lá. Mas nós não somos de lá, meu pai é trabalhador, e minha mãe fica em casa com meu irmão e eu.”

Nessa hora, a professora disse, olhando para mim: “É verdade. VS, o pai,

mãe e irmã estavam dentro do ônibus.” Ao ouvir isso, o menino continuou sua fala:

“O medo dos meus pais era que a televisão nos filmasse e que pudessem achar que nós éramos daquela comunidade. Meu pai dizia: ‘Vamos, vamos rápido que nós não moramos aqui; nós não somos daqui.’ Aí parou a moça do carro branco e viu minha mãe com meu pai correndo com criança no colo, aí ela parou, botou a gente dentro e fugiu com a gente dentro. Assim que nós se salvou de tudo.”

Essa notícia, que já havia sido contada na sala de aula, foi uma das notícias

que gerou muito impacto ao ser anunciada no telejornal da escola. O menino narrou

sua história de modo pausado e com todos os detalhes, também com bastante

dramaticidade. Como ele ficou nitidamente emocionado, ao final ele ficou

paradinho, olhando para o público, para as demais crianças que, talvez pelo teor

dramático do depoimento, começaram a rir de VS.

As crianças não paravam de rir da notícia contada por VS sobre a situação

difícil que ele e sua família viveram. Por isso, VS ficou muito bravo, bastante sério,

até que uma criança gritou: “Ele está com vergonha!” Ele ficou ainda mais irritado e

disse: “Isso (a notícia) não tem graça! Boa noite.”

Neste caso, ao rir, pareceu que o grupo estava se mostrando insensível à dor,

ao medo e aos riscos vividos pelo menino junto com sua família, pois o incêndio e o

risco de ser filmado naquele cenário deixavam no ar a ameaça de poderem vir a

sofrer algum tipo de retaliação na comunidade onde moram, em outro bairro. Deste

modo, ter espaço na mídia e no telejornal, para eles, era ruim e altamente perigoso,

principalmente por se tratar de uma família cujos pais são trabalhadores e honestos

(valor-notícia de injustiça). Isso exige compreender a complexidade cruel que

obriga as crianças a rivalizarem entre si, ameaçarem-se umas às outras apenas pelo

fato de morarem em comunidades diferentes. Há implicações graves para quem

mora em cidades onde reinam as desigualdades, o tráfico de drogas e o crime

organizado, sobretudo quando estas cidades têm uma geografia tão

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privilegiadamente linda, quanto desnivelada, entre o mar e as montanhas, entre a

riqueza de poucos e a miséria de muitos, como acontece no Rio de Janeiro. Não

basta conviver com os confrontos altamente agressivos entre polícia e bandidos,

mas também com conflitos internos dentro da polícia e entre os bandidos que

dividem e se apropriam de modo estratégico da cidade. A cada dia e com mais

agilidade, todos tentam ampliar seus limites de poder. Ao mesmo tempo, aumentam

o medo e a insegurança da sociedade civil, que precisa ter em quem confiar, não só

pessoal como institucionalmente. As crianças, é verdade que não só elas, não têm

do que e nem de quem se orgulhar, não têm clareza sobre quem tem obrigações de

cuidados, educação e proteção em relação a elas e se mostram muito confusas

quando não conseguem identificar os limites e os poderes da polícia e dos bandidos,

que, com igual força, lhes ameaçam.

Um outro elemento de exclusão que marca suas histórias, é a questão étnica

relacionada à pobreza, como disse a menina AG, que parece lutar também por

visibilidade ao relatar o segredo de sua vida: “Tia Inês, eu tenho uma notícia da

minha vida”, em tom de segredo. “É verdade, quer saber? Eu nasci branquinha e

depois fiquei pretinha. É notícia e é verdade. Quer ver?”

Nessa hora, ela veio para perto de mim com o lápis no lugar do microfone.

Também em tom de notícia, e disse:

“Nasceu no Ceará um bebê branquinho que ficou preto.” Fechou o tom de notícia, mas continuou a falar: “Mas só escureceu assim aqui no Rio, quando eu ainda era pobre e sem casa para morar. Eu morava na marcenaria que meu primo era o dono e deixava a gente morar.”

O depoimento da menina AG, ainda que ela não tenha consciência disso,

estabelece a aproximação de dois aspectos que, com freqüência, se apresentam

juntos: a pobreza e a etnia negra. Segundo ela, apesar de ter nascido branquinha no

Ceará, ao vir para o Rio de Janeiro, quando ainda era pobre e dormia “de favor” na

marcenaria do tio, ela teria escurecido. Esta menina é a mesma que diz ter muitos

brinquedos (computador, Laptop das Princesas, etc.), sendo seu pai catador de lixo.

O trabalho com as notícias, de uma certa forma, acabou ajudando as

crianças a resgatarem certas histórias de suas vidas e narrarem as mesmas em

formato de notícias (por iniciativa das próprias crianças), que, assim, se tornaram

conhecidas por todo o grupo. Embora não atendessem aos critérios que eles

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mesmos estabeleceram para definir notícias como: sendo sempre verdadeiras, sobre

crimes que acabaram de acontecer e que teriam que ser importantes para muita

gente, o grupo demonstrou confiança e vontade de se aproximar de mim para contar

alguns de seus segredos.

TS e ML, que não puderam ser filmadas no telejornal, ficaram sentadas perto

de mim, e uma delas, TS, precisou se controlar muito para não participar da

filmagem. Foi a mesma TS quem se lembrou das propagandas que ocupam os

intervalos do telejornal, só que ambas foram impedidas de participar da filmagem

porque as duas são evangélicas, e, segundo suas mães, “a elas não interessam outras

notícias além das que o missionário fala, ele explica direito tudo o que aconteceu. Ele

sabe as palavras da Bíblia”. A menina TS diz: “Nossa mãe não quer a gente nas

notícias, com coisa de morte, de tiro, nem nua, sem roupa.” A professora perguntou se

elas e suas mães não confiavam nela (na professora), ao que TS respondeu: “Minha

mãe disse que sim, que ela confia em você. Ela não confia na televisão e nem nessas

máquinas (referindo-se às câmeras). Depois que elas apanham a nossa imagem, já

era. As máquinas vão passando de uma para outra, e aí a gente pode ir parar no fim do

mundo.” Terminou sua fala, virou para o grupo de amigos da sala de aula e, rindo sem

parar, ela pediu aplausos, com os braços abertos. A turma começou a rir. Em seguida,

TS flexionou os joelhos como quem agradece aos aplausos, abaixou os braços e,

depois, os levantou. Reverenciou assim seu público, riu e pareceu descrer, ela mesma,

talvez, até duvidar do fim do mundo.

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4.3.19 Quando eles foram os seus outros

Como já foi dito nesta tese, a tarefa de fazer um telejornal tal como foi

concebida pela professora inegavelmente ajudou demais ao meu objeto de estudo,

mas é preciso deixar claro que ela foi orquestrada pela professora regente, pela

coordenadora pedagógica e pela professora da sala de leitura, que participaram em

todas as etapas do processo. O fato de eu estar no grupo também ajudou na criação da

demanda, no entanto, minha participação maior se deu na oferta de recursos para que

eles pudessem ser filmados com duas câmeras, com microfones que permitissem

gravar suas falas e, ainda, com a possibilidade de se verem, de participarem de uma

edição e de saber como entendiam a produção das noticias e de um telejornal.

Deste modo, antes de iniciar a filmagem, me comprometi a deixar gravada

um depoimento curto e rápido, feito na frente das crianças, dizendo por que aquele

telejornal estava sendo filmado, com auxílio dos recursos da prefeitura, em uma

escola pública municipal, no sentido de garantir a todos sua veiculação sem fins

lucrativos, apenas para estudos entre professores ou profissionais afins. Também

prometi e entreguei uma cópia em DVD para cada uma das crianças e para a sala de

leitura da escola.

O compromisso com a edição partilhada com as crianças era uma condição

indispensável para a minha pesquisa e já havia sido elemento de conversa e de acordo

com a professora da série, com os pais, com a direção da escola e, sobretudo, com as

próprias crianças. De início, me pareceu que elas iam gostar muito de se verem na tela

da televisão e, ao mesmo tempo, que elas não tinham a menor noção de que

dispúnhamos de mais de duas horas ininterruptas de gravação, sem qualquer tipo de

acabamento, de corte ou de seleção prévia feita por mim. Como a filmagem havia

sido feita simultaneamente por duas câmeras diferentes, uma Super VHS da escola e

uma Betacam da MultiRio, foi necessário transpor as duas fitas para um DVD para

todos poderem se ver na televisão, sem problemas.

Primeiro visionamento:

Na sala de leitura, as crianças começaram a ver a gravação, todas sentadas,

como se estivessem numa sessão de cinema. Eu pedia a elas que fossem indicando em

que ponto desejavam que eu parasse a fita, quando fosse interessante voltar o filme,

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etc. Alguns meninos se desinteressaram logo no início e começaram a conversar entre

si. Duas meninas se mostraram muito frustradas quando viram que a filmagem estava

“toda desarrumada” (GT, ma, 7 anos). Parei a filmagem para ouvi-las: “Ai, tia Inês,

foi filmado com tudo faltando! Você deixou fazer tudo feio, assim? Você não sabe

que tem que ter intervalo e música?” LS diz: “Puxa, eu já fiz até a música toda e vou

fazer uma propaganda. Mas a música tinha que tocar inteira no início e no final. No

meio, toca só pouco, antes da propaganda. Depois também, mas pedaço. Música toda,

só quando começa e termina tudo.” (JS e GT, ma, 7 anos)

E assim elas foram sugerindo que a música, também já gravada inteira e em

pequenos pedaços, devesse entrar no início, às vezes em partes e inteira no final.

Com isso, não só as duas meninas, mas todo o grupo ficou fascinado ao perceber ser

possível, usando apenas um computador médio, portátil, “cortar tempo, botar pra

frente, botar pra trás e arrumar no lugar certo” (LE, VS, TA), além de a inserção da

vinheta nos lugares que eles determinaram ter funcionado como um passe de mágica.

LS roía as unhas, e os demais foram vendo que os elementos poderiam ter a ordem

que eles quisessem. Eles não sabiam bem como era possível ver a mesma imagem,

tanto no monitor do computador quanto na televisão, dependendo do comando do

adulto que nos ajudava na edição. No entanto, o monitor do computador

equiparava-se à tela da televisão, e acho que eles não entenderam bem as diferentes

possibilidades do computador em relação à televisão, para ser possível editar imagens

e incluir sonorização, além dos créditos escritos (lettering). Eles buscavam entender

como um programa de televisão podia aparecer “igualzinho no computador” e

diziam: “É igual, tia Inês, é cópia de DVD, claro que é.” (TA, ma, 7 anos). As

propagandas que já estavam gravadas precisariam ser inseridas, também, nos lugares

que indicavam. E diziam, quase gritando de tanta excitação: “Tia Inês, não pode ficar

tudo junto, assim como está, porque depois do jornal emenda logo na novela, nem

tem anúncio desses assim, um atrás do outro. Está errado, tem que mexer.” No final

de cada etapa, em que podiam comprovar ser possível “ajeitar toda a filmagem”com

cortes, inserções, etc., eles não se continham – alguém do grupo começava a bater

palmas, muitas palmas, e as crianças vinham direto para cima de mim,

carinhosamente, disputar espaço para abraços e beijos.

As crianças o tempo todo explicitavam, de várias maneiras, o prazer que

sentiam ao agir como se fossem jornalistas, ao descobrirem certos recursos simples

que embelezam, ampliam e encurtam os tempos do que vêem na televisão; ao

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entenderem ser possível trabalhar tal como se fossem profissionais da televisão; ao

inserirem músicas, vinhetas e propagandas. Ao mesmo tempo em que deixavam

claros o prazer e o encanto de trabalhar na televisão e, com igual força,

expressavam o pavor contínuo de virem a aparecer como uma notícia na televisão.

O tempo passava, e tudo o que as crianças desejavam fazer não poderia ser

concluído numa única tarde. E, assim, combinamos de fazer vários acertos

posteriores, que ficaram estabelecidos e anotados como um dever de casa.

“Tem que ter intervalo e música”, dizia LS, informando já “ter feito até a

música toda e algumas propagandas”. Segundo ela, a música deveria tocar no início

e no final do telejornal, porque “no meio toca só pouco, antes da propaganda.

Depois também, mas só pedaço. Música toda só quando começa e termina tudo”.

TS perguntou mais uma vez: “Quem fez anúncio? Pode ser propaganda de Omo,

pode ser também produto de beleza.”

As quatro propagandas criadas por elas e já gravadas deveriam ser

entremeadas com as notícias, obedecendo aos intervalos determinados por elas.

Também decidiram, sem muitos problemas, que manteriam a imagem do menino

IS, que ligou e desligou a televisão após cada notícia. As propagandas propostas

foram da Loja Marisa e do Supermercado Guanabara, com preços de alimentos na

promoção, com direito a vinheta do supermercado. A menina GT, de 7 anos, canta a

vinheta do Supermercado Guanabara ao final do anúncio, e a turma bate palmas.

Também criaram anúncio da Loja Leader. Assim, todos os estabelecimentos e

produtos anunciados pelas crianças têm como foco as populações de baixa renda,

além de terem filiais em comunidades majoritariamente de mesmo perfil

socioeconômico.

Ao final da edição, o menino GB, de 7 anos, me perguntou: “Tia Inês, sabia

que dá pra cortar imagem e mostrar só uma parte? Dá para esconder do público

algumas coisas!”

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4.3.20 Editar, ver, editar de novo, ver de novo

Eu fui à escola passar o telejornal para as crianças verem, depois de a

primeira parte da edição estar feita. Nesse dia, a professora regente estava doente e

ficaria de licença até o final de outubro e, por isso, a turma estava dividida em

outras duas salas. A coordenadora pedagógica remontou a turma 1103, na sala de

leitura, junto com a professora responsável pelo espaço multimídia da escola, que,

por sua vez, era muito amiga das crianças, para poderem trabalhar comigo ainda

sobre o vídeo que precisava ter a edição concluída. As crianças pediram para que

fossem incluídas as imagens de desenhos que haviam feito em sala sobre as logos

das suas emissoras de televisão preferidas, e, para isso, precisamos filmar o

trabalho gráfico que haviam feito. O menino RS, que tinha perdido a sua

autorização, se mostrava muito triste. Ao nos ver com as câmeras na mão, pediu

uma nova autorização, levou para casa e trouxe assinada no dia seguinte e, assim,

conseguiu gravar sua notícia.

A filmagem incluía a “discussão preparatória” da professora com os alunos

e, agora, depois da primeira edição, estava ainda com 55 minutos de filme. IS

reclamou que muita coisa parada poderia ser cortada para diminuir o tempo do

filme. Fizemos mais um visionamento juntos, durante o qual eles sugeriram alguns

outros cortes pelo que eles se esforçavam para que “uma notícia emendasse na

outra, diretão, para falar muita coisa rápido”. (ML, ma, 7 anos) Foi quando a

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menina TO se viu chorando, na gravação, no DVD, no fundo da sala, porque não

tinha sido a Fátima Bernardes. Imediatamente, ela gritou “corta, corta, eu não quero

ninguém me vendo chorando na Globo e nem na Record”. Eu fui direto abraçá-la,

dizendo que sim, que poderíamos tirar aquela cena, para ela vir para perto de nós

ver como seria feito, tentei acalmá-la.

Nessa hora, devido à situação, TS (ma) ordenou a TO: “Pare de chorar,

agora! Não tem problema chorar, se o seu coração quer chorar. A Sirley Dias, a que

foi salva pelo taxista, também chorou. Ela se emocionou muito na frente das

câmeras porque ele salvou a vida dela sem pedir nem um dinheiro para ela. Salvou e

pronto. Todo o mundo chora com isso, não, tia Inês? Fica calma, TO, pronto,

acabou o choro.”

Os dias que se seguiram foram de apreensão e muita ansiedade. Fui à escola

concluir a etapa no campo, e as crianças me cobravam, diariamente, o telejornal,

para que eles recebessem a cópia deles e mostrarem em casa, ou para se verem na

escola. Eu explicava, detalhadamente, os motivos da demora, lembrava a eles que

havíamos combinado um prazo de 15 dias para inserir os nomes (créditos),

completar a edição e fazer as cópias. Mesmo assim, eles não agüentavam esperar,

tinham medo de que eu não trouxesse as cópias, a ponto de dizerem “tia Inês, nós

todos aqui confiamos em você, nós acreditamos muito em você, mas é uma coisa

chata pra falar. Quinze dias é muito, a gente prometeu esperar, eu sei, nós tomos

sabemos, a gente sabe (desejando reafirmar que eles não queriam mais cumprir o

acordo em relação ao tempo de espera, não eu), mas demora muuuuuito tempo, a

gente tem medo até de seu carro quebrar, vamos lá, se o seu Palio quebra, a gente

demora ainda mais para se ver na televisão?”. Expliquei para eles de um outro jeito,

que em 15 dias eu ainda iria quatro vezes lá, sendo que duas delas já tinham se

passado, além de reafirmar que eu dependia de um horário comum para trabalhar

com o meu amigo que estava me ajudando e que eles poderiam confiar que, mesmo

que meu carro enguiçasse, eu viria de ônibus, mas que eu não deixaria de vir com os

vídeos.

Até que chegou o dia e a hora de eles verem a edição final do telejornal.

Nesse dia, eu coloquei o DVD num ponto tal em que eu omitiria a minha fala de

abertura, feita junto com eles apenas para a identificação do vídeo como sendo parte

de uma pesquisa de doutorado. Não foi possível efetivar essa economia de tempo.

Eles ficaram aborrecidos porque também queriam me ver no “nosso vídeo, a gente

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quer ver se você está liiiiiiiinda nas notícias”. (TS e VS) Tudo certo, reiniciamos o

visionamento. As emoções deles foram muito variadas, e eu não fui capaz de registar

e sequer de captar todas. Algumas imagens foram feitas também nesse dia em que se

viram na televisão, mas, em geral, creio que foi uma experiência vertiginosa para

eles, foi fascinante eles poderem se ver num monitor de televisão apresentando as

notícias, além de ter sido gratificante receber tantos agradecimentos apenas por

termos sido honestos (eu e quem ajudou na edição) e termos cumprido tudo o que

havíamos prometido. A música toda e em partes, as propagandas, o corte dos “tempos

parados” e tudo o mais que foi feito, sem que isso implicasse nenhum favor ou ato de

generosidade. Eles ficaram extremamente surpresos e, ao mesmo tempo, verificaram

item por item se tudo havia sido feito como eles pediram. Ao mesmo tempo, pairou

no ar um misto de vergonha com algo próximo de uma decepção em relação às suas

imagens e performances no vídeo. Uns tampavam os olhos quando se viam na tela,

outros riam de si e dos amigos e, ainda, as meninas reclamaram muito em relação à

imagem que fizeram de si mesmas e o que elas ali viam. As observações ficaram

limitadas mais aos efeitos estéticos e à negação como representação da falta, ou de

muitas faltas: de maquiagem, de pessoas para ajeitar o cabelo delas e até mesmo de

roupas mais bonitas. GV reivindicou: “Tia Inês, mas eu não queria ir para a televisão

com uniforme. Por que você deixou eu assim?” As outras meninas me ajudaram,

apesar de usarem uma rispidez desnecessária, para lembrar a ela: “Como, sua burra?

A televisão veio aqui, ninguém foi para a televisão. Tudo bem, agora a gente está tudo

lá, mas ninguém foi”, disse AG. Ela continuou até chorar, discretamente, enquanto

dizia: “Eu não queria ir para a televisão feia assim. Tia Inês, você tinha que ter trazido

a van dos artistas para deixar nós bonitas.” Aos poucos, ela foi ficando tranqüila e

compartilhou com os amigos o telejornal, que eles viram quatro vezes seguidas e, ao

final, se aplaudiam sem parar. Como se fora uma história de encantamento, eles

pediam: “Bota de novo.”

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Para concluir, a menina TS chegou para a amiga GV, que antes havia

chorado, e disse: “Pior fui eu. Minha mãe me maquiou, relaxou meu cabelo, me

mandou para a escola nos trinques, toda bonitona, mas não deixou eu gravar. Vai

saber... é só Jesus, vai saber...”

4.3.21 O caso Isabella Nardoni ou Pais matam filhos?

Na rua, fora do campo e terminado o tempo de pesquisa na escola, fui

surpreendida bem ali, em frente ao supermercado que oferece “o menor preço total”,

na Estrada dos Bandeirantes. Era uma manhã de sábado, em maio de 2008, e eu

andava a pé na calçada do supermercado, que fica no caminho para a Favela de Rio

das Pedras, numa área próxima à escola. De repente, ouço vozes muito familiares,

gritando alto o meu nome. Um táxi se aproxima. Lá estavam cinco crianças voltando

de uma feira (de ciências?) na escola. A menina TS, sabida, mais uma vez gritava do

banco da frente, antes mesmo de o carro frear direito: “Olha, pára agora, Genilson,

pára que é a Tia Inês! Ei, tia Inês, espera aí, fala com a gente. Só um minutinho, nós

estávamos querendo falar uma coisa com você. Uma coisa tristíssima!” E, nesse

momento, quase que simultaneamente, todos falavam seus medos, impressões,

possíveis explicações para tudo o que ocorreu com Isabella Nardoni. Nós não nos

encontrávamos desde o final de novembro de 2007, e seis meses depois nosso contato

ainda se mantinha tão intenso, altamente afetivo, carregado de emoção.

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Esse depoimento coletivo espontâneo e inesperado nos envolveu de uma

emoção muito forte, que tomou a mim e a elas, e, mais uma vez, o fator tempo estava

ali, pressionando, no comando do nosso encontro. O menino LH e a menina TS

seguravam a minha roupa, pela janela do táxi, para eu não sair dali. Eu queria falar

para cada um deles o tamanho da saudade que eu sentia, mas não havia tempo. Eles

estavam abafados e sem ar, assim me parecia. E gritavam sem parar, “você viu no

jornal, tia, você viu? Tia, pais podem matar! A gente viu isso!”.

LF diz que já tinha sabido de outra morte de criança, antes da Isabella

Nardoni. GT (ma) dizia: “Não! Na televisão não! Mentira dele! Jogada de cabeça?

Do prédio? Mentira!”

LF e TS gritam: “A menina já morreu! Não adianta.” LF dizia: “Eu não vou

esquecer isso. Jesus sabe quem matou.” GT não deixou por menos: “Lá vem você

com Jesus. Deus é pai dele!” Sr. Genilson, o motorista, diz: “Deus, Jesus é tudo a

mesma coisa. Vamos embora, eu tenho hora.” “Não! Não!”, gritam eles. LF afirma:

“Tia, Deus, Jesus sabe quem matou. Por que eles não dão um jeito? Não sei....

(pausa) tem que ajudar logo, tem que resolver isso.” VS, até então calado, disse: “A

gente reza todo dia. Eu rezo porque a Isabella, ela mesma sabe quem foi o

criminoso. Morto não fala, normal, mas o Deus pode fazer ele, o morto, dar a

mensagem.” Parei o assunto, me apresentei ao motorista na tentativa de fazê-lo

esperar só mais um pouco. TS, de novo: “Tia, tia, como que é pai pode matar filha?

Mãe matar filha. Como a gente fica pensando? Eu acho que a Isabella xingou muito

o pai. Não sei se ela cuspiu na madrasta. Isso é horrível. Os pais foram lá, bateram

muito, até matar a bichinha (com dó) e... (pausa) jogaram pela tela (janela).” LF

lembra também do irmão da Isabella N.: “Ele era amigão dela.” VS retruca: “Era

nada! Amigão? Amigão teria protegido ela, não deixava ela morrer. Nem abriu o

bico, nem contou nada pra polícia.” VS diz ainda: “Agora ele deve chorar, chorar

todo dia. E também tem outro irmão bem pequenininho.” LF diz: “Tia, olha pra

mim, a gente sabe que não foi a madrasta. O covarde que matou foi o pai mesmo.”

VS grita, logo em cima: “Foram os dois juntos. Estava tudo combinado.”

TS acha, no entanto, “que o pai da menina é mais safado, porque ele é homem, é

mais forte que a madrasta e é mentiroso. Ele está mentindo tudo. Sempre esses

advogados mentem na frente das câmeras da tevê”.

Nessa hora, houve uma primeira oportunidade para eu falar, e eu decidi ali,

sob intensa emoção, fazer uma única pergunta: “Vocês repararam se a família da

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Isabella Nardoni é formada de pessoas brancas ou negras?” Perguntei isso ao

lembrar do que um dia me disseram e que era impossível esquecer – “que

criminosos eram negros, pobres, sem casa e sem escola” –, mas nada eu disse além

da pergunta.

Eles se mostraram indignados com a minha dúvida e, de imediato,

responderam: “Brancos! Claro! Vai dizer que você agora não vê mais repórter e

telejornal?”, perguntou LF. TS, com um certo ar de deboche, disse: “Ah, tia, nem

vem, é claro que você viu, você sabe bem a cara deles! É tudo branco e covarde.”

Assim, tal como aconteceu, terminou. O encontro chegou ao fim com uma

duração máxima de dez minutos, nem isso talvez. O Sr. Genilson acelerava o carro

parado, como se pedisse agilidade e pressa e, deste modo, nossa conversa foi

terminada. Beijei cada um deles, nos abraçamos, e eles seguiram no táxi. Sentei

ainda alguns minutos numa mesa do bar em frente e acabei de anotar tudo o que

podia no meu talão bancário, que continha três cheques em branco. Eu não

conseguia parar de chorar.

Ainda que possa soar piegas e/ou romântico, um filme sobre todo o ano que

passamos juntos, na escola, veio à minha memória. Lembrei-me de cada um deles

conversando comigo, das vozes, dos jeitos de cada um olhar, do movimento das

mãos e, tomada de emoção, ainda sob o impacto do encontro, pensei com muita

nostalgia sobre o tempo em que eu era professora de crianças, pensei sinceramente

sobre tudo o que eu devo a elas e a essas, sem que todas saibam disso, pelo quanto

que me fizeram ver, viver, pensar, aprender e sentir.

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5 Encaminhando conclusões

Como esta pesquisa aconteceu numa escola, com uma determinada turma de

crianças, acho importante contextualizar o ambiente, mais do que isso, a ambiência,

para fazer uma referência às condições do espaço para além dos aspectos físicos.

Buscava identificar como e se os saberes infantis circulavam e, com eles, as dúvidas,

os questionamentos, as fantasias, as expectativas e os medos. Nesse bojo,

incluíam-se as experiências vividas e imaginadas, as relações com suas famílias,

com o entorno social e, principalmente, com a televisão, como algo que os ocupou

por quase 5h/dia, no ano da pesquisa, em 2007, segundo divulgação do IBOPE/PNT

nos primeiros meses de 2008.

Assim, deixo aqui encaminhada uma reflexão que merece ser melhor

desdobrada futuramente em outros estudos, utilizando-se de pesquisas como a do

IBOPE, analisando os dados qualitativamente, em vários níveis, focando

determinados grupos em suas territorialidades e especificidades. Os dados do

IBOPE precisam ser aproximados criticamente de campos menores, delimitados,

como o meu universo de pesquisa, composto por essas crianças de 7 anos, em média,

que acompanhei por um ano letivo. Lembro, para isso, mais uma vez, que este

estudo não se justifica como uma balança de equilíbrio entre os supostos benefícios

da televisão, de um lado, contra seus supostos malefícios, de outro. De modo

diferente, gostaria de realocar as crianças no foco do meu estudo em relação à

televisão, em relação aos recortes que nela e dela fazem quando o assunto é notícia.

Ainda assim, vou tentar situar a televisão que as crianças vêem, que chega às suas

casas e famílias e que também vai à escola ciente de certos riscos indicados por

Barbero & Rey (2001), sem, contudo, acreditar que esse mecanismo se dê

exatamente assim, chegando a “uma homogeneização do gosto e das opiniões” (p.9),

de modo simples e linear, apesar dos esforços empenhados pelas emissoras

comerciais abertas para tal. Embora, ao mesmo tempo, acredite como eles na

hipótese de que a mídia, sobretudo por meio da televisão, venha instituindo um

processo de banalização de quase tudo, como da política, da guerra, das religiões, da

morte, da violência, da dor humana.

É na televisão como experiência comunicativa e cultural do nosso tempo que

a batalha cultural efetivamente se trava, e esta impacta os processos de

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(des)construção e de (re)construção das identidades coletivas, sem qualquer dúvida.

E o que torna esse dado preocupante é o fato de em espaços institucionais como a

escola, em que as tensões culturais contemporâneas deveriam ser mais valorizadas,

com tanta força se busque não enfrentar essas mesmas tensões. Como pode a escola

se desincumbir de seu compromisso com a(s) cultura(s) diante de transformações

tão intensas e cada vez mais rápidas pelas quais todos passam? (2001, p. 11)

Volto ao grupo de crianças e ao IBOPE, indicando terem elas ficado,

durante o ano de 2007, diariamente por quase 5h/dia diante da televisão. No

ambiente escolar que freqüentam, não houve qualquer valorização das diferenças

existentes entre elas, nem preocupação em identificar a vida de cada uma como

sendo diferente das demais. Não se sabe como suas famílias enfrentam esse

fenômeno, mas se pode dizer que, também em casa, não exista qualquer proposta de

ouvir as crianças, diretamente, conversando com elas sobre suas experiências com

os audiovisuais e a televisão, e, assim, parece não ser importante saber como

pensam, sentem e entendem. Se, às emissoras televisivas interessa homogeneizar,

pasteurizar, vender desejos, comportamentos e certos produtos a eles relacionados,

em casa não é diferente. Os adultos não assumem seu lugar, seus deveres e suas

responsabilidades em relação às suas crianças, que, entre si, pelo menos na escola,

trocam e compartilham medos, sustos, prazeres, hipóteses e alegrias que lhes

marcam como experiências oriundas da televisão.

Aqui vale uma outra reflexão. Escolas boas, sedimentadas e reconhecidas

pela comunidade, como essa é, eventualmente fazem certas mobilizações entre as

crianças com o objetivo de que elas capilarizem certas experiências em suas

famílias e no entorno de onde moram. Assim, com sucesso, as crianças interferem

no mundo dos adultos de suas famílias a ponto de conseguir implementar certas

mudanças de hábitos arraigados, como fazer com que passem a beber apenas água

filtrada, escovar os dentes pelo menos duas vezes por dia e fazer coleta seletiva com

reaproveitamento de lixo, para citar apenas três. O sucesso desse tipo de

mobilização que parte da escola tendo as crianças como agente de mudanças é

muito expressivo, ainda mais quando essas questões perpassam o conceito de

proteção ao meio ambiente, além do de vida saudável. A repercussão expressiva de

iniciativas como as citadas se deve a convicção de que seja possível provocar

mudanças a partir da escola que devem chegar às famílias, às comunidades,

conduzidas pelas crianças. No entanto, sem que acreditem e saibam de sua

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importância, como os professores podem propor às crianças que convidem, por

exemplo, seus familiares diretos para assistir a um determinado programa de

televisão de que elas gostam ou que rejeitem? Como fazer com que esta passe a ser

uma preocupação compartilhada com as famílias?

Que adultos conhecem e conversam com as crianças sobre o que elas

gostam ou não? Diante disso, quem sabe dizer por que as crianças não desligam a

televisão ao se defrontarem com imagens, falas e assuntos que rejeitam? O que, em

cada um desses casos, é expresso pelas crianças? Como? A certeza que temos é que

há uma audiência infantil fiel mesmo que não exista espaço para manifestar as

marcas que essas experiências deixam em suas vidas. Daí a preocupação deste

estudo. Como são feitos os recortes das crianças diante de tudo o que vêem? Esse

grupo deixou bem claro nas oportunidades apresentadas que detesta jornal, que

gosta mesmo de desenhos e de novelas, além de Zorra Total e Big Brother.

Sabe-se que a experiência audiovisual e a ida à escola são experiências

muito diferentes entre si, quanto à sua natureza, aos objetivos, até mesmo porque

espera-se que a televisão divirta, entretenha, informe e alegre a vida das crianças.

No caso dos telejornais e das notícias da televisão, parece não haver diversão. No

horário noturno, acompanhadas de adultos, elas já não têm mais direito de escolha,

e, assim, permanecer perto ou diante da televisão é a alternativa de encontro de que

dispõem, ainda que pouco ou nada interativa. Talvez nessa circunstância esteja a

origem e uma possível explicação para “o ouvir sem ver” de que as crianças tanto

falam. Elas dizem que ficam ouvindo enquanto brincam com bonecas, com jogos

ou fazendo desenhos e que, apenas quando o assunto lhes interessa, elas correm

“para ver a notícia”.

Foi necessário buscar encontrar um caminho possível de compreensão do

fato de as crianças terem apresentado tanta rejeição aos telejornais e às notícias e,

paralelamente, terem assistido com tanta freqüência a esses programas. Esse grupo

de crianças expressou reiteradamente o que tratamos como imagem do outro sobre

elas projetadas, neste caso, pelos adultos–responsáveis por elas. Essas imagens

projetadas nelas estabeleciam certos padrões de comportamentos e expectativas das

quais não poderiam fugir. Refiro-me assim à busca de acesso e do poder oriundo

das informações, que faz com que os pais estimulem e incentivem suas crianças

“para que sejam espertos, para estarem ligados” e, até mesmo, para saberem certas

coisas que os pais desconheciam quando eram da idade delas. Estar a par e em dia

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com as informações e notícias do mundo e, ainda, ter algo pronto para dizer que

sirva como uma resposta pronta, imediata passa a ser um modelo “de pessoa bem

informada” que todos devem seguir, sob o risco de se sentirem excluídos da

sociedade da informação. Esse é um caminho para a compreensão do valor que elas

mesmas, as crianças, dão ao fato de serem sabidas, de acompanharem o noticiário,

ainda que com medo e repulsa. Em situações que ocorreram na escola, quando

alguma criança do grupo mostrou não poder participar ativamente da conversa por

não ter ficado sabendo de determinada notícia, evento ou acontecimento, esta foi

alvo de crítica dura e de resistência entre as próprias crianças, chamando-a de “por

fora, viajante e de autista”. Ao serem questionados sobre o que significava ser

autista, foi dito que era a mesma coisa que “ser burro, estar por fora ou viajandão”.

Na escola e na sala de aula, pode-se dizer que a televisão, quando foi

lembrada e/ou usada, em geral, serviu para legitimar mais o seu sentido

instrumental, ainda que, na verdade, ela extrapole muito esse sentido como uma

tecnologia, porque, mais que uma técnica, ela incita a novas formas de perceber, de

ler, de ver e ouvir, de aprender novas linguagens, de estruturar conhecimento e

vida. Barbero & Rey, por exemplo, entendem a televisão como uma tecnicidade

com visualidade, que retoma a separação entre “ver e saber”, além de tornar

possível representar o mundo como imagem. (idem, p.12) O verbo “representar”,

aqui, se justifica para afastar o caráter equivocado e reducionista de cópia e de

reprodução; ao mesmo tempo, para introduzir a noção de que o mundo real seria

inapreensível como tal, ainda que esta fosse a intenção, visto que seja apenas

passível de ser transmutado em linguagem(ns) que são formas de representação.

Assim, voltando à vida das crianças, caso concordemos com os mesmos

dois autores sobre sua conceituação de cultura “menos como a paisagem que vemos

e mais pelo o olhar com que a vemos” (idem, p.24 ), é importante desenvolver

também uma reflexão sobre a vida das pessoas de classes socioeconômicas mais

baixas que não têm espaços de ócio, de silêncio planejado e nem de uma solidão

conquistada, opcional; ao contrário, na maioria das vezes, essas famílias moram e

vivem amontoados em pequenos espaços com muita gente, além de parecerem

buscar cada vez mais movimento, mais luzes e cores e, ainda, barulho e confusão

sonora de outra ordem como a combinação que a televisão proporciona.

Parece ser verdade que todos gostam da televisão! Todos vêem muita

televisão! As crianças amam a televisão e, por isso, ficam quase 5h/dia diante dela!

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Todos ficam embevecidos e fascinados por ela! Essas são expressões comuns,

cotidianas que refletem o pensamento que circula no senso comum e estão sendo

ratificadas pelos dados apresentados pelo IBOPE.

Assim, se as crianças com idade entre 4 e 11 anos vêem quase 5h/dia de

televisão, pode-se afirmar que todas elas gostam muito do que vêem? Do que

gostam mais ou menos? O que as assusta? É verdade que ela fascina e deixa a todos

embevecidos a despeito do que lhes é disponibilizado? Que alternativas essas

crianças de classes populares têm para se ocupar quando não estão na escola? Com

quem estão, quando não estão na escola? Quem são os “todos” a que nos referimos?

Com isso, conduzo essa reflexão para uma circunstância diferenciada,

olhando para a vida de crianças menos favorecidas economicamente em relação à

televisão. É dispensável dizer que todos têm o direito a uma vida segura,

confortável e feliz, apesar da desigualdade de oportunidades e de acesso. Nesse

viés, supõe-se que a crianças de classes sociais mais favorecidas, ao se verem

indignadas, aborrecidas, entediadas com o que vêem na televisão, seja dado o

direito de simplesmente desligá-la, negando-se assim a ver o que não gostam.

Enquanto isso, os menos favorecidos a cada dia vêem mais e mais televisão, que

hoje representa a diversão dos mais pobres, como se esse comportamento fizesse

parte da sua identidade como classe popular, representando o lazer daqueles que

vivem em situação de pobreza, que passam a ter/ver negadas, com isso, todas as

suas experiências e matrizes culturais. (idem, p.24)

As crianças desta pesquisa, de classes mais pobres, dizem gostar de muitas

coisas que passam na televisão, apesar de ter sido comprovado nesse grupo que,

mesmo que sejam os adultos que escolham e determinem o que será visto por todos,

elas jamais pensam em desligar a televisão. Vale lembrar que muito ou quase tudo

do que essas crianças vêem à noite, compartilhando o espaço com os adultos, são

programas destinados aos mais velhos. Mesmo assim, elas afirmam

categoricamente que detestam certos programas, como é o caso dos telejornais.

Ainda que cada um tenha seu jeito próprio e nem sempre uma mesma lógica para

expressar os porquês do que gostam ou não, todos apresentam uma aversão

explícita aos telejornais, mas os vêem. O IBOPE nos indica que eles ocupam o

oitavo lugar na lista dos programas mais vistos por crianças de 4 a 11 anos. Isso nos

faz crer que seja na televisão, ainda segundo os dois autores, onde se produz “o

espetáculo do poder e do simulacro da democracia sua densa trama de farsa e de

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raiva, onde adquirem alguma visibilidade dimensões-chave do viver e do sentir

cotidiano” (idem, p.24) de pessoas comuns que não têm lugar, visibilidade nem

legitimidade na escola nem nos chamados discursos culturais.

É possível que o desejo de escapar da imagem da pobreza, que associa a

televisão à diversão dos desfavorecidos, justifique a negação de visionamento por

parte dos adultos da escola a determinados programas que passam na televisão.

Assumir, tal como fazem as crianças, que vêem certos programas parece ameaçar

em algum nível a sua minguada e questionável autoridade intelectual. E, deste

modo, num processo semelhante ao que vimos acontecer com as crianças, eles se

escondem e se aproveitam dos interstícios das ordenações escolares que eles

mesmos criam para poder falar do que gostam na televisão. Não foram raras as

vezes em que o assunto na sala de professores, na secretaria e no balcão do

cafezinho (um semicírculo no pátio) foi o capítulo anterior da novela, ou o Zorra

Total do último sábado, ou, ainda, expectativas em relação ao mesmo casal do Big

Brother a que se referiam as crianças, além das grandes tragédias que ocupavam as

manchetes da mídia em geral. Sem os adultos perceberem, algumas vezes as

crianças testemunharam os adultos falando pelas fendas e pelas fissuras dos

espaços sempre muito planejados e organizados rigorosamente por eles, para se

fazerem de impermeáveis às novidades, aos imprevistos e ao que pudesse escapar

de seus frágeis controles.

A farsa e a mentira dos adultos, no entanto, não passaram despercebidas

pelas crianças quando esses deixavam escapar seu controle e os comentários

acabavam sendo feitos na frente delas. Um dia, duas delas riram muito ao descobrir

que sua professora também tinha ficado triste com o afastamento da Siri e do

Alemão e, por isso, ensaiaram um coro com a palavra tristeza, para falar alto

quando a professora entrasse em sala. Não era um sentimento qualquer, e por isso

elas planejaram cantarolar uma tristeza arrastada, em sílabas longas marcadas pelas

palmas que bateriam: tris-te-za. Elas, as sílabas, foram ditas sem as palmas, bem

baixinho, por falta de coragem da dupla de meninas, diante da expressão de

surpresa e de falta de entendimento da mestra em relação à brincadeira que

planejaram. Por que isso é importante aqui? Para deixar marcado que as crianças

estavam muito interessadas e desejosas por estabelecer relações menos formais,

mais humanas, em que sua identificação com certos sentimentos da professora

sugeria pertencimento, aproximação e encontro. Uma possibilidade de encontro das

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crianças com um adulto importante para elas. Por isso, elas deram as pistas do

caminho, iluminaram as trilhas para esse novo formato de encontro, mas a

professora não aderiu. Ela lá esteve, diante da televisão, torcendo pela manutenção

da união do mesmo casal do Big Brother, mas, estando, fingiu não estar.

Aqui está a lista dos 20 programas mais vistos pelas crianças brasileiras,

com idade entre 4 e 11 anos, segundo o mesmo IBOPE Media Workstation PNT

(dados contabilizados até 13 de julho de 2008)33. Esses programas mais vistos por

elas, ainda que em grande parte não sejam a elas destinados, são: 1º lugar - A

Favorita; 2º- A Turma do Pica Pau; 3º- A Grande Família; 4º - Malhação;

5º-Temperatura Máxima; 6º- Os Mutantes, Caminhos do Coração; 7º Zorra Total;

8º- Jornal Nacional; 9º- Futebol, quarta-feira na Globo; 10º- Beleza Pura; 11º-

Casseta e Planeta; 12º - Sessão da Tarde; 13º - Domingo Legal; 14º- Tela Quente;

15º- Ciranda de Pedra; 16º- Chamas da Vida; 17º- Sábado Animado; 18º- Tela

Máxima; 19º- A Praça é Nossa; 20º- Por toda a Minha Vida.

Com isso, o IBOPE nos permite supor, por exemplo, que o programa Zorra

Total, veiculado nas noites de sábado, seja responsável por um encontro das

crianças diante da televisão neste dia e horário. Ou seja, supõe-se que as crianças

brasileiras se encontrem com os adultos que vivem com elas, com a professora e os

outros profissionais que atuam na escola. Já que as crianças sabem que eles vêem

esse mesmo programa, mais uma vez, retomo a questão que considero central –

onde estão os adultos? Diante dessa nova proposta de encontro, com quem essas

crianças se encontram, efetivamente? Deste modo, considerando o espaço que

ocupa a televisão na vida de todos, parece que, diante dela, o país comparece e se

encontra; supõe-se que estejam todos lá vivenciando um tipo de encontro que pode

prescindir do toque, dos olhares e cheiros, aceitando-se a possibilidade potencial de

que isso ocorra. No entanto, a meu ver, esses encontros são muito perversos e

cruéis, em especial quando nosso foco é a infância. Os adultos que cercam as

crianças em casa e na escola lá estão diante do Zorra Total, tomado como um

exemplo, mas eles se escondem das crianças e fingem acompanhá-las em algo do

qual se envergonham de reconhecer como experiência. Pior do que estarem

sozinhas diante da televisão é o sentimento que elas desenvolvem, de que a vida

33 Ver anexo 3, no qual a pesquisa do IBOPE foi organizada pelo colunista Daniel Castro, da Folha de S. Paulo.

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com a televisão contenha elementos capazes de envergonhar sua família e a

professora. As crianças só se encontram, portanto, com elas mesmas, e isso aparece

com nitidez no cotidiano escolar.

Não me cabe julgar valorativamente a relação de cada família com suas

crianças nem a da professora como se fossem casos pessoais e isolados. Remeto-me

apenas à solidão e à participação que é negada às crianças em situações que

supostamente elas poderiam estar próximas e inteiras, exercendo seu direito e sua

imensa vontade de expressar opiniões, medos, escolhas e preferências.

Assim, pode-se dizer que, se para alguns a televisão pode ser tomada,

eventualmente, como fonte de frustração, por exemplo, diante da derrota do time de

futebol do coração, para as classes menos favorecidas de que essas crianças são

parte, ali, diante e com a televisão, concretizam-se cenários muito próximos, como

os da violência, do “vazio moral, das perversões do social e também da constituição

de imaginários coletivos”. (idem, p. 26)

A experiência audiovisual televisiva pode ser extremamente rica e

produtiva, precisando apenas ser legitimada como uma prática cultural. Se é

verdade que a televisão venha apresentando ao mundo novos modos de “estar

junto”, muito mais há para se refletir. Se, por um lado, ela desagrega a experiência

coletiva, na medida em que impede os encontros, dissolvendo assim o indivíduo no

mundo obscuro do anonimato, por outro, ela sugere que todos possam se encontrar

diante dela, cada um no seu espaço próprio, além de acabar segmentando o povo em

públicos construídos pelo mercado. (idem, p. 36)

As questões relativas à programação televisiva em diferentes emissoras e

suas respectivas destinações a certas fatias de mercado também formaram um

aspecto presente e relativamente fácil de ser identificado neste estudo. Foram

retratadas e analisadas certas brincadeiras infantis em que as crianças levantaram

hipóteses para a resolução de certos desafios, em que a resposta correta para o quiz

exigia delas que vissem um determinado programa, no caso, o mesmo Zorra Total.

Além da programação, as crianças fizeram referência a anúncios e a publicidade de

linhas de produtos e de lojas que se destinam às classes populares. As propagandas

sugeridas por elas foram as das Lojas Marisa, da Líder Magazine, do Supermercado

Guanabara e da Fininvest, como uma empresa que disponibiliza empréstimos

financeiros.

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As crianças abordaram aspectos que se referiam diretamente à lógica

mercantil avassaladora das emissoras de televisão. Elas identificaram e cobraram a

inserção de propagandas antes, durante e depois dos telejornais, apesar de não

terem elementos suficientes para entender o funcionamento da dinâmica financeira

que explicaria como a televisão ganha dinheiro com a programação que veicula.

Em alguns casos, elas citaram certos apresentadores de televisão os quais julgam

estar enriquecendo pelo trabalho que desenvolvem na televisão, mas não sabem

explicar como isso acontece. Em compensação, é muito clara a compreensão deles

em relação à vida de um cantor de sucesso, por exemplo, que passaria a vender mais

CDs depois de ter aparecido na televisão.

A relação entre o público infantil e as questões relativas aos aspectos

comerciais das emissoras de canal aberto, a meu ver, é uma das questões que

merece ser mais bem compreendida sob o viés das culturas infantis, em estudos

posteriores.

Retomando as crianças e a televisão, parece ser oportuno destacar o que se

deseja entender como diversão e entretenimento, caso seja verdade que a televisão

divirta e entretenha, além de informar. Quem e o que lhes diverte, ou seja, diversão

e entretenimento sob a ótica de quem? Crianças e/ou adultos? Crianças rurais ou

urbanas, de que gênero, etnia, classe social e capital cultural?

E, no bojo dessa discussão, é preciso ainda verificar se é verdade que as

classes mais favorecidas vêm se afastando da programação televisiva. Caso essa

hipótese venha a se confirmar, é importante conhecer os impactos disso nos

investidores e nos produtores de emissoras, que vivem de audiência e dos produtos,

comportamentos e hábitos que precisam vender a cada dia para mais pessoas. E,

nesse caso, volta a ser desejado saber onde estão expressas as imagens da

diversidade e da heterogeneidade da sociedade em que as crianças vivem?

Já se sabe que pais e professores não costumam conversar com as crianças

sobre o que vêem na televisão. Talvez pelo fato de a televisão, para ser vista, não

exigir nenhum tipo de aprendizado, essa prática cultural acabe desconsiderada na

escola. E, nessa turma de crianças, não se pode dizer quais são os adultos que se

sentem comprometidos em ajudá-las a distinguir, minimamente, o que seja

“informação independente de informação subordinada ao poder econômico e

político” (idem, p.27), por exemplo, como também a distinguir as cópias baratas de

produtos expatriados, desterritorializados que são vendidos para os países mais

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pobres, que cada vez menos investem, divulgam ou legitimam sua produção

audiovisual. Deste modo, insistem os dois autores (p.34), a cada dia mais

desprendida do espaço local- nacional, a cultura perde seu laço orgânico com “as

bases do seu próprio tecido: o território e a língua”. (idem, p.34)

Quando se toma o seu povo como público, acentua-se o caráter abstrato e

desencarnado da relação com as audiências (idem, p.32), além de segmentar esse

público pela lógica do mercado que sustenta as emissoras e, vale dizer, os gêneros

em que os investimentos publicitários recaem são especialmente as novelas e os

telejornais.

A relação com as mídias em geral, na escola, e também com a televisão,

portanto, permanece servindo para auxiliar as aulas, para acabar com o tédio das

mesmas, para tornar possível aos alunos ver bactérias e micróbios “em tamanhos

observáveis” (idem, p.60), ou seja, é feita uma opção por trabalhar com as novas

linguagens e possibilidades comunicacionais sem enfrentamento da tensão cultural,

que está diretamente relacionado à vida escolar e à Educação.

Deste modo, os sentimentos infantis circulam sem que sejam identificados,

ouvidos e, portanto, valorizados na escola. Esta pesquisa não visa tratar exatamente

dessa questão, é verdade, mas não há como desenvolver pesquisas com crianças nas

escolas sem viver com elas sob o jugo da configuração estabelecida para o espaço,

suas estruturação, rotinas e ordenações.

No caso desta pesquisa, a dinâmica escolar funcionou a partir de trabalhos

mimeografados a serem preenchidos pelos alunos pelo meio dos quais a escola

poderia, supostamente conhecer suas crianças, o que sabiam ou não sob a ótica do

desempenho escolar esperado para o período. Os produtos dos trabalhos delas eram

avaliados de modo desvinculado dos seus processos de produção, descolados das

condições em que foram propostos e não levavam em conta as dinâmicas de

interação estabelecidas entre as crianças, nem e com o mundo em que vivem. Esses

trabalhos entregues à professora se diluíram na vida escolar das crianças como

material de análise sobre seus desempenhos, e deles advinham as informações

necessárias para seguirem a escolaridade, no sistema de ciclos e não de séries.

Nessas escola e sala de aula, fez-se valer o antigo paradigma de que o livro e

a linearidade que lhe caracteriza fossem a única fonte de saber da mídia. Quando as

crianças foram questionadas sobre a possibilidade de poder vir a olhar e conversar

sobre os trabalhos já feitos e/ou entregues, houve um desejo manifesto de quase

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todas em relação a poder mexer, alterar e “fazer um outro, do meu jeito, muito mais

legal”, mas seguiram-se as falas sobre “não dar mais tempo, esse já era, já acabou”,

como acontece com o material em geral apresentado pelo livro didático, que

equivale a uma única verdade, reificada e inquestionável.

Se a televisão também trouxe para a vida de todos uma reordenação de

tempos e de espaços, na escola essa nova ordem não se apresentava nem como uma

alternativa. Enquanto na experiência com a televisão as crianças viviam sob um

fluxo contínuo de imagens com valorização da simultaneidade, do instantâneo e do

efêmero, na escola era mantida a linearidade do tempo de estudar e de aprender

segundo a linearidade do texto escrito, como também o desenvolvimento escolar,

que corresponderia a cada fase e idade das crianças. Deste modo, os conhecimentos

escolares se mantiveram pautados e identificados como o resultado de um processo

de transmissão de saberes totalmente controlado, sucessivo e linear que assegurava

ao professor a manutenção da crença de que existiria uma leitura unívoca, ou seja,

que equivalesse àquela leitura como seu puro eco. (p.56) Aí talvez se justifique a

insegurança da Educação e de grande parte de seus profissionais para com a

emergência da imagem, pela sua polissemia descontrolável. Assim, enquanto for

possível, os professores continuam crendo que a imagem tenha a função de ilustrar

o texto escrito e este de lhe servir como legenda para, assim, garantir o que se deseja

que as crianças leiam nas imagens.

Quando nos remetemos às notícias da televisão e aos sentimentos infantis,

surge a necessidade de tratar de uma imagem, de outra natureza, que se refere a um

sentimento que se concretiza e ronda a vida das crianças continuadamente – a

imagem do medo. Falar do medo, em princípio, poderia exigir uma

contextualização na área da Psicologia, no entanto, desejo enfrentar o medo nessa

pesquisa como sentimento que também é um produto sócio-histórico e que

caracteriza a vida de pessoas de todas as idades e culturas, principalmente daqueles

que vivem nos grandes centros urbanos, como é o caso da cidade do Rio de Janeiro.

Deste modo, refiro-me às imagens do medo na vida das crianças ainda que saiba

que ele é parte da vida de todos.

As imagens do medo ocupam pessoas, fatos e experimentações de fatos

reais e imaginados, e esse grupo de crianças demonstrou ter na televisão e nos

noticiários uma fonte diária de alimentação desses medos, por muitas razões. Uma

delas tem relação direta com a vida dos pequenos como sendo crianças de classes

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populares, que vivem numa comunidade que passa a ser sua referência e, com muita

freqüência, é cenário e fonte de notícias que envolvem violência, poder, drogas,

milícias e mortes.

Esse aspecto, que passa a ser habitual em suas vidas, ainda que todas

habitem diferentes comunidades da mesma Zona Oeste da cidade, faz pesar sobre

as crianças ameaças muito semelhantes, que, praticamente, mudam apenas de

endereço. Aqui me refiro à imagem do medo que tem como referência a polícia e

todos os recursos a ela associados e por ela utilizados, como: armas pesadas,

máscaras, roupas, os sons que tipicamente produz, além do caveirão.

Diante da falta absoluta de clareza do que seja a função da polícia, as

crianças oscilam entre sua suposta função como a responsável pela manutenção da

ordem na cidade e uma outra, que faz com que identifiquem a polícia como a

instaladora de uma desordem muito assustadora onde elas moram, por onde

passam, e isso lhes causa pavor. A imagem mais comum dos medos infantis na

relação com as notícias da televisão é dirigida à polícia. As crianças têm medo de

qualquer anúncio, boato ou acontecimento que justifique a entrada da polícia na

comunidade onde moram. Acho relevante retomar, nesse caso, um outro

sentimento já citado, que é a invisibilidade na mídia, relacionando-o à imagem do

medo, porque o lugar ocupado por suas comunidades na mídia não destaca nem

remete à vida da maioria dos que lá vivem, como eles e seus núcleos familiares,

mas, em geral, ilumina os problemas gerados por uma minoria que tem poder e que

também lhes ameaça.

Não se pode negar que a convivência continuada com o medo acabe fazendo

com que as crianças busquem alternativas individuais e coletivas de enfrentamento

que não têm força para acabar com o medo, mas que, ao menos, não lhes deixam

paralisadas. Para ir, vir e freqüentar a escola, para ficar sozinho em casa, para ajudar

a compor a renda familiar e tantas outras tarefas que lhes cabem, as crianças

precisam fazer negociações permanentes: internas, entre as responsabilidades que

lhes são atribuídas, os sonhos, as necessidades e os desejos; externas, entre crianças

e delas com adultos. Assim, como seres humanos inteiros, únicos e participativos,

as crianças desenvolvem, em interação social, certas estruturas cognitivas,

socioafetivas e emocionais que lhes ajudam a viver, mas que não são capazes de

explicar, reduzir, nem de encapsular sentimentos como o medo. Então, mesmo

havendo uma unanimidade em relação ao mal-estar e aos sentimentos ruins que o

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telejornal e as notícias lhes causam, as crianças permanecem acompanhando os

noticiários, diariamente, junto com os adultos de sua casa, até mesmo porque

reconhecem a importância de se manterem informados, sempre. Mesmo não

gostando de saber das notícias veiculadas diante do medo que sentem, nesse

processo cotidiano os seus medos assumem contornos e dimensões muito distintos.

Leticia Cantarela Matheus, do Programa de Pós-graduação em

Comunicação Social da UFF-RJ, analisou certas reportagens policiais cariocas e

produziu um artigo no qual tratou das diferentes formas como o medo pode ser

apresentado e veiculado pela mídia. Segundo a autora, um medo bastante comum se

refere à relação que os moradores estabelecem com as áreas de moradia que se

conflitam em muitos aspectos, como, por exemplo, devido ao tráfico de drogas. E,

segundo ela, as pessoas de baixa renda que moram nessas comunidades, além de

não aceitarem a imagem de pessoas pobres, vêem as suas comunidades tratadas

pela mídia em geral em condições inferiorizantes. Assim, além de serem pobres e

de serem retratados como inferiores, com destaque mais para o que lhes falta do que

para o que são, eles rejeitam qualquer relação com os grupos criminosos de suas

comunidades, e, segundo ela, essas especificidades não são respeitadas no texto

jornalístico. Quem representa a comunidade é o grupo minoritário, porém com

dinheiro e poder, que a domina, e, deste modo, a visibilidade da mídia evidencia o

crime, a pobreza e a miséria como se todos fossem iguais na televisão, ainda que

suas vidas sejam muito diferentes, divididas entre uma maioria de trabalhadores

pobres e honestos e, de outro lado, uma minoria com carro, bens, dinheiro, jóias,

armas e poder.

Uma outra imagem do medo que os noticiários alimentam nas crianças se

refere a fatos imprevisíveis, incontroláveis que, pelas suas características, abarcam

inclusive elementos de naturezas bem diferentes. Proponho que, neste segundo

caso, a imagem do medo seja entendida como o medo do fantástico. A explicação

para essa expressão diferenciada do medo se deve ao temor de ver e ouvir notícias

de aparição de objetos não identificados, como discos voadores e visitantes de

outros planetas, por exemplo. Ao mesmo tempo, os tornados ou ciclones que

aconteceram no Sul do Brasil, por exemplo, as ventanias que destroem casas ou o

mar revolto, como aconteceu na Ásia com os tsunamis (2004), parecem estar

reunidos num mesmo conjunto de medos, se é que se pode assim dizer, diante da

falta de causas objetivas para que essas coisas aconteçam e/ou pela dificuldade que

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encontram para explicá-las. Na imaginação dessas crianças, por exemplo, uma

mesma ventania forte que pode abalar suas moradias, deixar seus efeitos no mar,

que se torna “raivoso, bravo, pode vir raspando tudo, posto de gasolina, casa, carro

e com ele vêm ossos de mortos (pessoas), esqueletos até de bichos que não existem

mais, como tatu”. As crianças desse grupo eram muito pequenas quando

aconteceram os tsunamis. No entanto, todas elas fazem referência ao que há de

fantástico e trágico nesse fato e, assim, mostram ter uma imagem de medo do

fantástico, de virem a saber por meio do noticiário televisivo de algo improvável,

porém ameaçador, que possa abalar trágica e inesperadamente suas vidas, perder as

referências de casa, família e vida. O que chamei de medo do fantástico pode se

remeter tanto ao medo de saber que extraterrestres se aproximam quanto à notícia

de morte trágica de pessoas numa cachoeira, devido a uma cabeça d’água na

nascente do rio, como aconteceu no estado do Rio de Janeiro. O imponderável, o

efeito surpresa e a dificuldade de estabelecer relações de causas e efeitos formam

um tipo de amálgama que explica o chamado medo do fantástico.

Foi também identificada nesse grupo uma outra imagem do medo oriunda

dos telejornais que se refere a episódios que acontecem no trânsito e em

determinadas vias da cidade. Esses casos serão tratados aqui como uma imagem do

medo de crime-trânsito.

Certas regiões e determinados bairros tipificam a imagem do medo de

crime-trânsito por parte das crianças por haver áreas onde certos crimes têm relação

direta com o trânsito. As crianças expressam uma dúvida sempre presente nesses

casos sobre a origem do fato que gera a notícia, nessa relação do crime organizado

com o trânsito. Algumas avenidas e auto-estradas, tais como a Linha Amarela, a

Linha Vermelha, a auto-estrada Lagoa-Barra, a Avenida Brasil, a Avenida das

Américas e a rodovia Presidente Dutra (que liga o Rio de Janeiro a São Paulo) –

esta última foi citada uma única vez –, são identificadas como cenário de notícias de

roubos, mortes e crimes que envolvem questões com o trânsito local. Uma hipótese

sobre a relação de crimes com questões de trânsito é levantada por eles quando

dizem ter visto/ouvido na televisão um arrastão com assalto que teria sido causado

por uma paralisação no trânsito devido a um atropelamento, um acidente com

motos ou batida entre veículos. Assim, algum tipo de acidente pararia o trânsito e

facilitaria a ação dos bandidos. Eventualmente, uma ou algumas crianças

contrariam a informação anterior ao dizerem que os ladrões começaram a agir e, em

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conseqüência da ação deles, o trânsito parou, houve batida de carros,

atropelamentos e, com freqüência, se referem ao envolvimento de motocicletas.

Muitas crianças desse grupo já viram outras crianças e animais atropelados e

mortos em acidentes de trânsito, sem que tenha existido uma relação explícita com

o crime organizado. Nesses casos, eles concluíram as discussões sem consenso,

mas atribuindo ao trânsito dessas determinadas vias de muito movimento a

globalidade dos problemas. E, assim, eles têm uma imagem do trânsito que aparece

no telejornalismo sob a forma de notícias como algo muito ameaçador, em especial

para as crianças, como se elas sofressem mais ou fossem mais diretamente

ameaçadas por isso que os adultos.

Depois de apresentados os sentimentos mais intensos e mais freqüentes

expressos pelas crianças em relação a certos tipos e grupos de notícias da televisão,

encaminho agora outras questões à guisa de conclusão.

As atividades de preparação propostas pela professora a partir da mídia

impressa como sendo indispensáveis à produção de um telejornal não alcançaram

seus objetivos com as crianças. Elas participaram das duas atividades como sendo

estanques e isoladas uma da outra, confirmando dessa forma a hipótese de que, na

escola, a relação com o livro e com a imprensa seja imperiosa sobre todas as

demais. As crianças mostraram que o planejamento feito a partir do jornal impresso

não serviu para a linguagem audiovisual, nem para o telejornal. As crianças não

relacionaram o jornal impresso nem como fonte do telejornal, na medida em que a

televisão informa com muito mais agilidade, atualidade e credibilidade, a ponto de

lhes permitir ver e ouvir as notícias. A complexa dinâmica de produção de um

telejornal é muito diferenciada da que exige um jornal diário impresso, bem como

tudo o que se refere à linguagem audiovisual, além dos modos próprios usados por

cada mídia para fidelizar e ampliar a audiência. O telejornal tem especificidades

que não fazem parte da produção de um jornal impresso, além de as duas mídias

não serem excludentes. Sabe-se que a cada dia menos pessoas compram e lêem

jornais impressos diários. No entanto, os que o fazem costumam ver os telejornais

da televisão e, também, consultar os portais de notícias da internet.

Essa exigência da professora não alcançou seu objetivo previsto também

porque as crianças descumpriram o planejamento prévio, não por desobediência a

ela. Elas mudaram os planos na hora do telejornal porque as notícias escolhidas não

atendiam mais aos critérios identificados por eles como sendo definidores das

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notícias, como veracidade, atualidade, confiabilidade, num fluxo contínuo de

informações que precisam ser sempre renovadas.

Na verdade, o rigor do planejamento escolar mais uma vez esteve a serviço

de uma suposta proteção do adulto-professor, para que as crianças não fizessem

“bobagens” numa circunstância em que nada do que fizessem seria uma bobagem, e

vou explicar o porquê. As crianças pediram e foram ouvidas, movidas por um

desejo que se aproximava de um sonho, qual seja o de fazer uma gravação em que

elas seriam os protagonistas, os narradores agindo como se (conceito de

performance, de Iser, 1996) fossem jornalistas, funcionários de emissoras de

televisão. Deste modo, a experiência que elas tinham acumulado e renovado,

diariamente, enquanto viam televisão e, agora, ao se idealizarem como jornalistas,

fortaleceu-as muito para serem os repórteres, além de, pelo menos por alguns

minutos, elas poderem se ver na mídia tal como são.

A produção desse telejornal na escola proporcionou uma desordem muito

produtiva, em que grande parte do que as crianças sonhavam e passaram a

compartilhar podia, desta feita, ser vivenciado, podia ser nomeado, apresentado

com sua autoria, resultado de um protagonismo infantil que proporcionou a elas

orgulho e vaidade. Isso sem destacar o fato de a ação ter sido toda gravada, com

microfone e duas câmeras, além de o vídeo ter sido visionado e editado segundo os

critérios estabelecidos pelo grupo.

Nesse período no campo, porém, o aspecto mais complexo e até mesmo

vertiginoso para mim foi a busca de compreensão e entendimento da relação

estabelecida pelas crianças com aspectos ficcionais, que abarcam o real, e

imaginários na sua relação com as notícias de televisão. Esse aspecto exigiu um

esforço grande de compreensão, em especial por não ter sido possível tratá-lo sob o

viés da verdade e da mentira, como se poderia supor. Também não consegui

entender esse complexo processo a partir de estudos e teorias que mais se

aproximam da Educação e que buscam explicar a origem e natureza do pensamento

simbólico, da fantasia e da imaginação, ainda que reconhecendo os limites do meu

conhecimento até então.

A relação entre vida cotidiana dessas crianças com os aspectos ficcionais e

imaginários quando a televisão e suas notícias passaram a ser o foco da ação escolar

me indicou a necessidade de buscar novas formas de entendimento e análise, que

foram encontradas no ideário de Iser (1996), como já mencionei. As pistas dessa

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questão foram percebidas por mim assim que as crianças começaram a demonstrar

muita expectativa em relação ao milésimo gol do Romário, que demorou um pouco

para acontecer. Naquela época, entendi que essas crianças se mostravam muito

preparadas para descobrir, a qualquer momento, que o noticiário poderia

enganá-las, mesmo a televisão, até mesmo as notícias da televisão. Assim, fui

buscando sempre conhecer mais e entender melhor o que me parecia simples num

primeiro olhar. Será que eles estão se referindo à possibilidade de a televisão dar

uma notícia mentirosa? Mas não era bem isso. E, nesse percurso, eles me

explicavam que os repórteres da televisão sabiam de tudo, tudo o que acontece, mas

que nem sempre diziam, ou porque eles esperavam um momento melhor (para

quem?) para dizer, ou eles sugeriam algo como uma possibilidade de se guardar

uma notícia para ganhar dinheiro com ela, como se o fluxo do mundo pudesse ser

retido pelos profissionais que são os jornalistas-repórteres da televisão.

Assim, vários depoimentos e situações vividas iam e vinham comigo à

busca de um caminho para entendê-los. Por exemplo, a possibilidade aventada por

alguns meninos de o jogador Romário acabar não fazendo o milésimo gol que o

público tanto esperava, dando “um perdido”. Junto com isso, havia outras

hipóteses, como até mesmo o fato de o gol já ter sido feito e os repórteres não

divulgarem essa notícia para ganhar mais dinheiro aqui em São Januário (campo do

Vasco, no Rio de Janeiro) ou no estádio do Maracanã. Todas as vezes eu perguntava

a eles se o time teria jogado sem ninguém ver ou saber, sem fotógrafos, sem a

televisão. As explicações poderiam variar, mas restava uma crença comum de que

entre os fatos e sua divulgação algo era manipulado, e de fato é. Eles explicavam a

seu modo, mas, no caso dos gols, eles insistiam que “quem estava no estádio ou no

campo viu, mas que ninguém ficou sabendo porque os repórteres ainda não tinham

dado a notícia, que eles ainda iriam dar tal notícia”. Assim, algo me indicava a

existência de acontecimentos que não valiam para todos como um fato acontecido,

um acontecimento, e por isso deveria ser uma notícia de interesse geral. As crianças

me chamavam sempre a atenção para o fato de que sempre algo pudesse vir a ser

omitido, escondido ou dissimulado, na produção e veiculação das notícias da

televisão.

O ano letivo seguia, e as crianças pareciam duvidar muitas vezes de certas

notícias, enquanto, com igual força, insistiam que a notícia sempre se referia a um

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fato ou evento verdadeiro, que já teria acontecido e que, em geral, teria no mundo

dos crimes sua principal fonte.

Vez por outra, eles me perguntavam se eu sabia que o jornal poderia mentir

e assim relatavam o que chamei de “efeito photoshop”, indicando que fotos

impressas poderiam ser cortadas, que fotos antigas poderiam ser coladas em

notícias atuais para enganar o público, como diziam, para esconder certos

elementos, total ou parcialmente. Por exemplo, notícias com ilustração, sem uma

imagem muito próxima do que supunham ver, do que elas tinham como referência,

acabavam sendo questionadas por eles como podendo não ser verdadeiras. Nesses

casos, as crianças me explicavam que ao “desenhista” da televisão e do jornal,

mesmo fazendo uso do computador, seja permitido fazer qualquer coisa, que pode

até ser “mentirada”, porque “ele é o dono do desenho dele”, diferenciando-o do

repórter fotográfico e do jornalista. O jornalista-repórter, aquele que escreve no

jornal, às vezes também mentia, segundo eles, porque anunciava um determinado

final para a novela, e eventualmente terminava de um outro jeito.

Nos telejornais, o mesmo poderia acontecer, segundo as mesmas crianças,

por vários motivos combinados. Tanto porque nem tudo o que acontece é filmado e

valorizado pelas emissoras quanto, também, pelo poder de decisão de certas

pessoas da televisão que indicariam quais são os acontecimentos que devem ser

noticiados. Raras vezes o papel de quem determina o que sai, ou não, veiculado

como notícia em todos os canais comerciais abertos, não apenas na Rede Globo,

deixou de recair sobre a figura de William Bonner, chamado pelas crianças como “o

Bonner”.

Assim, mesmo quando elas viram com os próprios olhos, assim diziam, um

caso como o espancamento da empregada doméstica Sirley Dias, nem sempre elas

acreditavam cegamente no que viam. O conflito interno demonstrado pelas crianças

à busca de compreensão não era simples nem pequeno. Esse caso foi muito

traumático para as crianças, por vários aspectos. Um deles é o fato de Sirley Dias ter

trabalhado em casa de família, como algumas das mães, tias ou amigos de muitas

crianças do grupo. Deste modo, elas ficaram muito sensibilizadas e ameaçadas com

o risco de vir a sofrer algo semelhante com pessoas próximas e queridas. Ao mesmo

tempo, a imagem que elas tinham formada sobre crimes e ações violentas sugeria

que os bandidos fossem sempre negros e pobres. Assim, ainda que elas tivessem

visto com seus olhos a imagem dos bandidos na televisão, o grupo não aceitou que

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aqueles rapazes fortes, brancos e com casacos de capuz eram bandidos

espancadores, e, diante da tensão posta, acabaram concluindo que aqueles não eram

os verdadeiros bandidos, provavelmente “eram os da denúncia” (referindo-se ao

disque-denúncia) ou os mandantes, o que vem a ser um aspecto extremamente

preocupante.

Deste modo, parece que a televisão não só trouxe novas ordenações de

tempos, espaços e valores para a vida de todos, em muitos sentidos, mas o que deixa

marcas na vida das crianças seja praticamente desconhecido ou desconsiderado

pelos adultos responsáveis por elas, também pela escola. Quem poderá propor

deslocamentos a essas mesmas crianças, por exemplo, no que se refere a

“pré-conceitos” étnicos, para tentar intervir nessa relação que estabelecem entre os

bandidos e a etnia? Um detalhe importante consiste na informação de que essa

turma é composta majoritariamente de crianças negras.

Talvez resida aí tanto a vontade imensa que as crianças expressaram de

vivenciar o fazer dos repórteres da televisão, mas não de ser objeto do noticiário

televisivo. Se eles são negros e pobres, como pensam que sejam todos os bandidos,

é natural que generalizem essa compreensão de modo a temerem ser notícia, e,

assim, torna-se muito mais seguro, interessante e confortável noticiar, anunciar

como se fossem jornalistas da televisão.

Quanto ao fato de as crianças detestarem os telejornais, creio que uma

justificativa plausível tenha sido levantada por Barbero & Rey quando disseram

que na televisão seja produzido “o espetáculo do poder e do simulacro da

democracia, sua densa trama de farsa e de raiva, onde adquirem alguma visibilidade

dimensões-chave do viver e do sentir cotidiano” (2001, p.24) de pessoas comuns

que não têm lugar, visibilidade nem legitimidade na escola nem nos chamados

discursos culturais.

Questões relativas à falta de visibilidade dessas crianças na mídia ou sua

invisibilidade pelo fato de serem pobres, negras e honestas, de simplesmente

viverem como crianças e estudantes, que têm uma casa para morar e escola para

estudar, características que não lhes oportunizam lugar na mídia com destaque,

brilho, nem razões para se orgulhar. A vida dessas crianças não lhes permite se

verem com brilho, com destaque pelo que são, porque o que são em si, segundo

elas, é pouco para que sejam admiradas.

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A violência, os crimes e as mortes que os telejornais anunciam são casos

sem solução, na compreensão delas. A única alternativa que emergiu no grupo se

remete a uma solução por meio de adesão a um tipo de religiosidade ou de

cosmovisão, como a que apresentam as igrejas evangélicas. As crianças que não

têm uma religiosidade expressa não apresentam alternativas, mas afirmam que,

para mudar o noticiário, tinha que mudar o mundo. Com isso, resta-nos saber as

condições que precisamos conquistar para mudar o mundo quando, mesmo na

escola, as crianças não têm lugar para falar, nem para serem ouvidas, e, assim, a

escola como fonte privilegiada de proposição de mudanças não se nutre, senão se

omite e se isenta. As crianças afirmam seu diferencial de pobre e negro por

acreditarem que o mal está naqueles que não têm Jesus no coração, logo, para elas,

os que matam são os que desconhecem as palavras da Bíblia. Deste modo, segundo

as mesmas crianças, não adiantaria só prender e soltar os bandidos, mas “obrigar a

ter uma vida em Jesus, para mudar toda essa guerra”.

Penso ainda que o cotidiano dessas crianças seja muito inseguro no sentido

de lhes faltarem pessoas que lhes dêem proteção e segurança. Não que lhes faltem

adultos, mas a figura de quem protege, de quem as defende e cuida, pessoas com

autoridade que lhes façam sentir-se protegidas, ainda mais diante do medo que as

populações mais pobres passaram a ter da polícia. Assim, se para as crianças da

classe média e média-alta chamar a polícia pode ser uma alternativa em casos de

emergência, para essas outras que vivem em comunidades pobres estar com a

polícia perto ou dentro de suas comunidades é uma ameaça imensa. A polícia entra

com o caveirão, dizem eles, porque isso só quem tem é a polícia, e aí é bala para

todo lado, para inocente e para bandido. E, assim, como eles dizem, “quem vai para

a notícia é a nossa casa, a nossa comunidade e volta a guerra”. Ao mesmo tempo, as

crianças sonham e desejam ver situações em que a polícia vença os bandidos, como

se fora um resgate de uma instituição forte na qual precisam se apoiar. E, nesses

casos, sim, valeria a pena haver “muita notícia”, já que a polícia derrubou a

barricada dos bandidos, no Morro do Alemão, como aconteceu em 2007.

Nessa relação difusa e assustadora entre suas vidas em comunidades, o

medo da polícia e a imagem que as crianças têm de que jornalistas e policiais andem

sempre juntos, que problemas graves unam esses dois profissionais em torno da

notícia, o telejornalismo que invade suas casas se torna ameaçador para o grupo.

Eles acham que os repórteres sabem tudo e que eles “ficariam guardando as notícias

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pra todo o mundo não saber”, o que merece também ser mais bem estudado

posteriormente.

As câmeras de segurança que cuidam dos supermercados, dos shoppings e

até mesmo das escolas, hoje em dia, têm alimentado a polícia e os telejornais, ao

ajudar no esclarecimento de roubos e outros crimes e, nessa vertente, as câmeras

passam a ser um elemento ameaçador para as crianças, já que elas estão espalhadas

por todos os lugares. Elas não demonstram medo de serem filmadas pelo que

fazem, mas pelo que os adultos podem fazer com a imagem filmada delas. Assim,

sempre que possível, elas passaram a evitar serem filmadas, porque suas famílias,

principalmente, têm medo de serem filmadas e, por engano, azar e até mesmo por

um mau uso intencional, se tornarem objeto de alguma notícia da televisão.

Para concluir esta tese, gostaria de dizer que o título a ela dado – Domingo é

dia de felicidade – seria o nome que eu daria ao telejornal feito pelas crianças, caso

fosse considerado um curta-metragem, parafraseando a menina JS, de 7 anos, que

assim conseguiu expressar tanto o seu desgosto para com as notícias tristes, que são

muitas, quanto ao fato de domingo ser o único dia em que a televisão brasileira não

apresenta um jornal nos moldes do que faz em todos os demais dias da semana. Eu

perguntei a ela, em seguida a essa frase, por que ela achava que notícias estavam

relacionadas à tristeza e se sempre era assim. Ela respondeu: “Se forem boas, dá

alegria! Só ruins? Tristeza! É bom nem ouvir.”

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7 Anexos Anexo 1 Autorização da Secretaria Municipal de Educação para entrada no campo. Anexo 2 Autorização de uso de imagem e voz de crianças e funcionários da escola. Anexo 3 Pesquisa do IBOPE Media Workstation organizada pelo colunista Daniel Castro, da Folha de São Paulo.

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Anexo 1

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Anexo 2

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Anexo 3

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