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ética e serviço social

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Page 1: Tese Paula Bonfim (1)

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

PAULA BONFIM GUIMARÃES CABRAL

CONSERVADORISMO MORAL E SERVIÇO SOCIAL :

A particularidade da formação moral brasileira e a sua influência no cotidiano de

trabalho dos assistentes sociais.

Orientadora: Prof. Dra. Yolanda Guerra

RIO DE JANEIRO

2012

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II

Paula Bonfim Guimarães Cabral

CONSERVADORISMO MORAL E SERVIÇO SOCIAL :

A particularidade da formação moral brasileira e a sua influência no cotidiano de trabalho dos

assistentes sociais.

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Serviço Social, Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como exigência parcial para a obtenção do título de Doutora em Serviço Social.

Orientadora: Prof. Dra. Yolanda Guerra

RIO DE JANEIRO

2012

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III

Paula Bonfim Guimarães Cabral

CONSERVADORISMO MORAL E SERVIÇO SOCIAL:

A particularidade da formação moral brasileira e a sua influência no cotidiano de trabalho dos

assistentes sociais.

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Serviço Social, Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como exigência parcial para a obtenção do título de Doutora em Serviço Social.

Aprovada em: 20 de março de 2012

________________________________________

Prof. Yolanda Aparecida Demétrio Guerra, Dra. , UFRJ

_______________________________________________

Prof. Mauro Iasi, Dr., UFRJ

_______________________________________________

Prof. Valéria Forti, Dra., UERJ/Rio de Janeiro

_______________________________________________

Prof. Maurílio Castro de Matos, Dr., UERJ/Rio de Janeiro

_______________________________________________

Prof. Cristina Maria Brites, Dra., UFF/Rio das Ostras

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IV

À Ruy Gesteira (in memorian) por me incentivar neste processo de aprendizagem e por me ensinar que a vida só vale a pena com lutas – por um mundo melhor – e afeto.

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V

AGRADECIMENTOS

Ao finalizarmos esta tese conseguimos perceber, de maneira mais clara, que o

processo de conhecimento se dá a partir tanto de condições objetivas quanto subjetivas. Neste

processo estão presentes as nossas escolhas, nosso interesse pelo tema pesquisado, a nossa

dedicação à pesquisa, assim como as possibilidades concretas para o desenvolvimento da

mesma. Além disto, são fundamentais as relações que estabelecemos neste caminho e que nos

possibilitam uma troca permanente de conhecimento e afeto.

Neste sentido é necessário recuperamos um pouco deste processo para agradecermos

àqueles que foram fundamentais nesta empreitada.

2001 foi o ano que eu e Marcelo chegamos ao Rio de Janeiro como enorme desejo de

expandir nossos conhecimentos. E foi também neste mesmo ano que fui convidada pela

professora Yolanda Guerra a participar do Núcleo de Estudos e Pesquisa dos Fundamentos do

Serviço Social na Contemporaneidade (NEFSSC). A inserção neste núcleo de pesquisa foi

fundamental para despertar em mim o interesse pelos fundamentos do Serviço social e

determinante no meu aprendizado.

Os vínculos com este grupo foram produtivos e duradouros. Nestes onze anos, com

algumas idas e vindas, pude aprofundar os conhecimentos sobre a profissão e construir

relações afetivas fundamentais para o meu desenvolvimento pessoal.

Neste sentido, quero agradecer imensamente à minha orientadora professora Dra

Yolanda Guerra, pela oportunidade de participar deste grupo, mas também pelo carinho,

estímulo e incentivo constante, pelo compromisso e dedicação nas orientações e pela amizade

que construímos ao longo destes anos.

Aos professores da pós-graduação da Escola de Serviço/UFRJ pelos ensinamentos e

apoio sempre.

Às professoras Dra Cristina Maria Brites e Dra Valéria Forti e ao professor Dr. Mauro

Iasi pelas contribuições feitas nas qualificações realizadas durante o doutorado.

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VI

Aos colegas do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre os Fundamentos do Serviço

Social na Contemporaneidade (NEFSSC) pela oportunidade de realizar reflexões importantes

que tanto contribuíram na compreensão do meu objeto de estudo.

À atual gestão do CRESS 7ª Região, “Trabalho e Direitos: a luta não para"

(2011/2014), à Comissão Permanente de Ética e aos funcionários deste conselho, por todo o

apoio no desenvolvimento da pesquisa documental. O meu agradecimento especial à Charles

Toniolo de Sousa, Michele Pontes da Costa, Elizabeth Souza de Oliveira, Edenilza Silva

Cesário, Leandro Rocha da Silva, Josélia Ferreira dos Reis e Edilson Moreira dos Santos.

À Marcelo, por dividir comigo a dureza e as alegrias desta longa caminhada, pelo

amor, amizade, paciência e compreensão durante todo este período e em especial na fase final

deste trabalho.

À minha família “lado de cá”, meus pais, Carmelita e Raimundo e à Telô, por me

ensinarem o valor do conhecimento e pelo empenho para que eu trilhasse livremente o meu

caminho. Obrigada por respeitar as minhas escolhas, pelo amor, carinho e apoio sempre.

À minha família do “lado de lá”, Marta, Marcelo (pai) pelo carinho e apoio, em

especial, a Lúcia, Ruy (in memoriam) e Mário pela feliz presença nestes anos.

Às minhas irmãs (de coração) Elizângela e Janaína, amigas de todas às horas, pelo

amor, carinho e apoio mesmo à distância.

À minha grande família “carioca”, Flavio, Mirella, Gustavo e Bete, pelo afeto,

carinho, respeito e cuidado compartilhado todos esses anos.

Aos meus amigos amados Cíntia, Sheila, Liérge, Tom, Vel, Joana, Selma, Javier,

Mariela, Solange, Flavinha, Silvana e tantos outros, sujeitos importantíssimos neste processo

de amadurecimento profissional e pessoal. Obrigada pelos momentos de lazer, diversão,

estímulo e carinho.

À Capes, pela bolsa concedida durante o doutoramento.

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VII

Neguinho não lê, neguinho não vê, não crê, pra quê

Neguinho nem quer saber

O que afinal define a vida de neguinho

Neguinho compra o jornal, neguinho fura o sinal

Nem bem nem mal, prazer

Votou, chorou, gozou: o que importa, neguinho?

Rei, rei, neguinho rei

Sim, sei: neguinho

Rei, rei, neguinho é rei

Sei não, neguinho

Se o nego acha que é difícil, fácil, tocar bem esse país

Só pensa em se dar bem - neguinho também se acha

Neguinho compra 3 TVs de plasma, um carro, um GPS e acha que é feliz

Neguinho também só quer saber de filme em shopping

[...]

Neguinho vai pra Europa, States, Disney e volta cheio de si

Neguinho cata lixo no Jardim Gramacho

Neguinho quer justiça e harmonia para se possível todo mundo

Mas a neurose de neguinho vem e estraga tudo

Nego abre banco, igreja, sauna, escola

Nego abre os braços e a voz

Talvez seja sua vez:

Neguinho que eu falo é nós

Caetano Veloso

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VIII

RESUMO

CABRAL, Paula Bonfim Guimarães. Conservadorismo moral e Serviço Social: a

particularidade da formação moral brasileira e a sua influência no cotidiano de trabalho dos

assistentes sociais. Tese (Doutorado em Serviço Social) – Escola de Serviço Social,

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.

Estudo de natureza qualitativa e quantitativa sobre as tensões atuais em torno da

materialização do projeto ético-político dos assistentes sociais. Parte-se da análise sobre a

gênese e reprodução dos valores para compreender o processo de formação moral do Brasil –

a partir das determinações econômicas, políticas, sociais e culturais – e sua influência na

profissão. Além destes aspectos, aborda-se a discussão sobre os processos de reificação das

relações sociais e os impactos da atual conjuntura brasileira na dinâmica profissional.

Através de análises bibliográficas e de uma pesquisa documental junto aos processos

éticos analisados pelo CRESS 7ª região, procura-se desvelar os conflitos éticos presentes no

exercício profissional, considerando além dos valores dominantes na sociedade brasileira, as

demandas sócio-históricas e ídeo-políticas colocadas ao Serviço Social, o tipo de respostas

formuladas para atender a estas demandas, a estrutura sincrética da profissão, a imagem e a

auto-imagem profissional.

Palavras chaves: Ética, alienação, moral brasileira, Serviço Social.

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IX

ÍNDICE:

AGRADECIMENTOS .............................................................................................................. V

RESUMO .............................................................................................................................. VIII

LISTA DE FIGURAS ............................................................................................................... X

LISTA DE TABELAS ............................................................................................................. XI

INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 1

CAPÍTULO 1 – GÊNESE E DESENVOLVIMENTO DO SER SOCIAL ............................... 9

1.1 O PROCESSO DE REPRODUÇÃO SOCIAL E A CRIAÇÃO DE VALORES .... 16

1.2 OS VALORES NA SOCIEDADE DE CLASSES ................................................... 27

1.3 DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA E REIFICAÇÃO DAS RELAÇÕES

SOCIAIS ............................................................................................................................... 43

CAPÍTULO 2 – A CONSTITUIÇÃO DA MORAL BRASILEIRA ....................................... 53

2.1 A PARTICULARIDADE NO TRATO À “QUESTÃO SOCIAL” NO BRASIL ... 89

CAPÍTULO 3 – SERVIÇO SOCIAL e ETHOS PROFISSIONAL ......................................... 98

3.1 A ÉTICA COMO MEDIAÇÃO NO EXERCÍCIO PROFISSIONAL ..................... 99

3.2 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS, ÉTICOS E POLÍTICOS DO SERVIÇO SOCIAL ...

................................................................................................................................ 104

3.3 É POSSÍVEL AFIRMAR A EXISTÊNCIA DE UMA NOVA MORALIDADE

PROFISSIONAL? .............................................................................................................. 127

3.4 ÉTICA E MORALIDADE NO COTIDIANO PROFISSIONAL .......................... 133

3.4.1 OUTRAS CONSIDERAÇÕES SOBRE OS PROCESSOS ÉTICOS. ........... 169

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 179

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 186

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X

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Denúncias Éticas feitas ao CRESS 7ª Região no período de 1993 a 2011 ............ 137

Figura 2 - Área dos processos éticos (concluídos) do CRESS 7ª Região no período de 1993 a

2011 ........................................................................................................................................ 139

Figura 3 - Perfil dos denunciados nos processos éticos (concluídos) analisados no CRESS 7ª

Região no período de 1993 a 2011 ......................................................................................... 147

Figura 4 - Perfil dos denunciantes dos processos éticos (concluídos) analisados pelo CRESS

7ª Região no período de 1993 a 2011 ..................................................................................... 156

Figura 5 - Natureza das instituições dos processos éticos (concluídos) analisados pelo CRESS

7ª Região no período de 1993 a 2011 ..................................................................................... 167

Figura 6 - Resultado final do julgamento dos processos éticos analisados pelo CRESS 7ª

Região no período de 1993 a 2011 ......................................................................................... 170

Figura 7 - Penalidades aplicadas aos assistentes sociais condenados nos processos éticos

analisados pelo CRESS 7ª Região no período de 1993 a 2011 .............................................. 175

Figura 8 - Percentual de discordância entre as três esferas responsáveis pela apuração e

julgamento dos processos éticos (concluídos) analisados pelo CRESS 7ª Região no período de

1993 a 2011. ........................................................................................................................... 177

Figura 9 - Percentual de recursos apresentados ao CFESS referentes aos processos éticos

(concluídos) analisados pelo CRESS 7ª Região no período de 1993 a 2011. ........................ 178

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XI

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Artigos mais violados nos processos éticos (concluídos) analisados pelo CRESS 7ª

região no período de 1993 a 2011...........................................................................................146

Tabela 2 – Número de ocorrências dos artigos do Código de Ética Profissional apontados nos

processos como (possivelmente) violados e a ocorrências das violações procedentes. Em

destaque os artigos considerados graves pelo Código de Ética Profissional..........................170

Tabela 3 – Número de ocorrências referentes às relações com os usuários. Em destaque os

artigos considerados graves pelo Código de Ética Profissional..............................................174

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1

INTRODUÇÃO

O interesse em investigar as questões em torno da ética profissional se inicia a partir

da nossa experiência como docente. Embora os conflitos éticos possam ser evidenciados nos

mais diferentes espaços profissionais, foi no âmbito da formação que nos deparamos com eles

de forma mais explícita. As reflexões sobre os fundamentos da ética e a sua particularidade no

âmbito profissional, geravam discussões “quentes” em sala de aula, especialmente quando se

tratava de assuntos como aborto, violência, drogas, mas também quando se problematizava as

demandas e as relações institucionais.

Embora sempre muito fecundos, estes debates revelavam, ao mesmo tempo, o

interesse dos alunos pelo tema, mas, especialmente, os conflitos de valores que alguns

assuntos despertavam.

No entanto, duas situações vivenciadas no espaço de formação me estimularam a

aprofundar os estudos sobre valores e os conflitos presentes no cotidiano profissional. Na

primeira situação, uma aluna (da disciplina de ética) me fez a seguinte afirmação: “Professora,

a verdade é que o Código de Ética é como a Bíblia: todos sabem que deve seguir, mas

ninguém segue”.

Mesmo considerando o processo de aprendizagem da referida aluna, entendi que esta

afirmação expressava mais que falta de conhecimento. Naquele momento, percebi que esta

comparação poderia estar relacionada com as contradições em torno da defesa de valores

abstratos e com uma tendência histórica na profissão: o fatalismo. Além disto, expressa

também uma compreensão dogmática do Código de Ética, já que este é tratado como uma

normatização de caráter imperativo, desvinculada dos fundamentos da profissão e da

dinâmica da realidade social. Compreendi, no entanto, que não seria possível explicar

conflitos como este somente a partir destes elementos.

A outra situação que também me causou inquietude foi o fato de ter sido aconselhada

por uma colega de profissão (professora) para que eu não manifestasse em sala de aula minha

condição de atéia; segundo ela, isto poderia me “trazer problemas”. Neste caso, o ateísmo

aparecia como algo imoral.

Ambas as circunstâncias demonstravam tensões em torno da adesão aos valores

preconizados pelo Código de Ética dos Assistentes sociais. Estes exemplos, além de nos

instigarem a aprofundar as reflexões sobre os fundamentos ontológicos da moral e da ética,

Page 13: Tese Paula Bonfim (1)

2

colocava a necessidade de apreendermos os valores dominantes na sociedade brasileira, já que

é impossível refletirmos sobre as ações profissionais, sem estabelecermos tais mediações.

Mesmo constatando o crescente debate em torno da reflexão da ética, é fato que esta

ainda é uma discussão incipiente na profissão. Os primórdios deste debate no Serviço Social

podem ser verificados na década de 80.1 Esta discussão ganhou densidade nos anos 90,

podendo ser percebida tanto nas produções acadêmicas quanto nos encontros e debates da

categoria, possibilitando a revisão do Código de Ética de 1986 e a aprovação do Código de

Ética de 1993.

A ética profissional passou a ser discutida a partir da concepção marxista da ontologia

do ser social, o que levou à interpretação e distinção entre a ética e moral. Este referencial

teórico nos permite entender a formação moral de uma sociedade e as possibilidades de

realização da ética, a partir da dinâmica das relações sociais que se estabelece em torno da

produção da vida material dos homens, tendo o trabalho como elemento central. A moral

origina-se do movimento objetivo de satisfação das necessidades colocadas ao homem em

determinado contexto sócio-histórico; ao satisfazê-las, o homem cria novas necessidades e,

neste processo, vai atribuindo valor às coisas e estabelecendo princípios, regras, normas para

a convivência social.

Observa-se, portanto, no interior da profissão, o reconhecimento da moral enquanto

uma construção histórica, associada à dinâmica objetiva da vida dos homens, e, por isto, de

uma natureza mutável.

As reflexões profissionais também atribuíram um novo significado à ética. Esta passa

a ser entendida a partir da relação entre necessidade e liberdade, sendo esta última o princípio

fundamental do agir ético. A liberdade é entendida como capacidade de fazer escolhas

conscientes diante de alternativas socialmente construídas e historicamente determinadas.

1 Na década de 80 podemos observar avanços significativos no que tange aos referenciais marxistas no interior da profissão. A perspectiva teórica marxiana aparece, por exemplo, nas produções de José Paulo Netto e em algumas obras de cientistas sociais que tiveram uma interlocução importante com o Serviço Social, tais como: Carlos Nelson Coutinho, Sérgio Lessa, Ricardo Antunes e Ivo Tonet. Esta aproximação possibilitou uma reflexão sobre a moral e a ética à luz deste referencial, resultando na aprovação do Código de ética de 1986. Este Código é um marco na história do serviço social por ser a primeira normatização ética da categoria que rompe com a ética tradicional. Nele, podemos observar claramente alguns dos pressupostos teórico-metodológicos marxiano, por exemplo: a concepção materialista da história, o reconhecimento da luta de classes e a ausência de neutralidade profissional. No entanto, este código apresenta algumas fragilidades: uma concepção de ética mecanicista, pois vincula mecanicamente o compromisso profissional com a classe trabalhadora. Neste, também não se observa as bases ontológicas da ética (cf. Barroso, 2001).

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3

Estas escolhas, entretanto, não são aleatórias, mas estão amparadas pelo critério do valor;

valores que são escolhidos porque enriquecem e potencializam o homem enquanto ser

genérico. O conceito de liberdade, portanto, não é um conceito abstrato. É liberdade de algo e

para algo; objetivamente posta e em constante movimento de vir a ser (Barroco, 2001).

A ontologia marxiana além de possibilitar a distinção entre moral e ética, aponta para

a relação entre estas: a moral, juntamente com a arte e com a estética é uma forma de

objetivação da capacidade ética do ser social. “[…] quando o indivíduo, através da moral,

eleva-se ao humano-genérico e coloca-se como representante do gênero humano para si,

então ele está agindo como sujeito ético, como particularidade, individualidade livre” (p.64).

O Código de Ética de 1993 expressa os avanços desta reflexão no Serviço Social e o

compromisso profissional com um projeto societário amplamente democrático, empenhado

em combater todas as formas de exploração, de dominação, de autoritarismo, de

discriminação. Além destes princípios, destacamos a ênfase na defesa da cidadania, da

igualdade, da liberdade e da justiça social, mesmo compreendendo os limites destes no âmbito

da sociabilidade burguesa.

A conquista profissional obtida com este Código não deve ser, portanto,

superdimensionada. É só lembrarmos que a normatização, que se objetiva no Código de Ética

de uma profissão, é somente uma das dimensões da ética profissional.2

Não devemos esquecer as outras duas: a dimensão filosófica e o ethos profissional

(Barroco, 2001). No que se refere à dimensão filosófica podemos afirmar que os avanços no

interior da profissão são evidentes. A discussão sobre os fundamentos ontológicos da ética

ganhou um papel de destaque na Proposta de Diretrizes Gerais para o Curso de Serviço Social

de 1996, a partir da qual se considera que tal discussão deve ser transversal a toda formação

profissional dos assistentes sociais. As pesquisas e as publicações em torno do tema também

têm crescido e tido visibilidade dentro e fora da profissão.3 Além disto, a iniciativa do

2 Estamos entendendo que esta legislação não possui um conteúdo formal/idealista, mas reconhecemos o seu conteúdo dialético que contém uma noção do homem enquanto sujeito histórico, o reconhecimento de uma sociedade de classe que gera desigualdades e a defesa de um projeto societário que visa a emancipação humana. 3 Um exemplo disto é o resultado da pesquisa documental realizada por Maria Ozanira da Silva e Silva nos 99 números da revista Serviço Social & Sociedade que foram publicadas nas três décadas (1979 – 2009). No que se refere ao tema Ética/Ética profissional, no período de 1990 a 1999 foram publicados 10 artigos. Já no período 2000 a 2009 as publicações referentes a esta temática se deram da seguinte forma: Projeto profissional/Projeto ético-político Profissional: 13 artigos e Ética e Bioética 14 artigos A autora ressalta que houve uma mudança no que se refere à classificação por tema de uma década para outra (Silva, 2009).

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4

conjunto CFESS/CRESS ao promover, desde 2000, o curso Ética em Movimento tem

contribuído fundamentalmente para o aprofundamento desta discussão no interior da

categoria.

No entanto, no que se refere ao modo de ser profissional (ethos), as questões são mais

complexas. A nosso ver, é nesta dimensão que se encontram os maiores conflitos e

contradições da profissão. É necessário considerarmos, por exemplo, questões como: as

demandas sócio-históricas e ídeo-políticas colocadas para a emergência do Serviço Social; os

valores adquiridos pelos agentes profissionais durante a socialização primária e que estão, na

sua grande maioria, em sintonia com a moral dominante da sociedade brasileira; a atual

conjuntura econômica, política e social do Brasil e as novas demandas colocadas aos

profissionais e à formação profissional.

Neste sentido, coloca-se a necessidade de entendermos as mediações que constituem

tanto os indivíduos na sua particularidade como a formação social brasileira.4 A partir destes

fundamentos, entendemos a necessidade de buscarmos na formação social do Brasil as bases

do desenvolvimento e de permanência de determinados valores. Para isto foi fundamental nos

remetermos ao processo de colonização, das misturas das raças, da escravidão, do

desenvolvimento capitalista, dos processos de revoluções “pelo alto” (Coutinho, 2007) que

marcaram a história do nosso país para entendermos a existência de alguns valores que

atravessam a nossa cultura.

Ao recorrermos às análises sobre a formação econômica, política, social e cultural da

sociedade brasileira pudemos identificar a presença de uma moralidade conservadora que se

expressa, entre outras ações, através da predominância de relações autoritárias, tanto no que

se refere à relação entre Estado e sociedade, quanto nas nossas relações cotidianas, dentre

elas, as profissionais; na estreita relação entre o público e o privado e na naturalização,

criminalização e moralização da “questão social”.

Esta reflexão nos possibilitou entender como valores relacionados à escravidão, ao

autoritarismo das elites, ao nepotismo, ao clientelismo, fazem parte da nossa moral, mesmo,

como afirma Chaui (2006), que o povo brasileiro tenha outra ideia de si e da sociedade. Estes

valores atravessaram a história e permanecem no nosso cotidiano chocando-se, muitas vezes,

4 Nos momentos em que nos referimos à formação social brasileira estamos considerando às dimensões econômica, política, social e cultural do país.

Page 16: Tese Paula Bonfim (1)

5

com os princípios Constitucionais, da democracia e da cidadania, evidenciando de forma clara

a tensão entre valores particulares e valores genéricos.

Além disto, o assistente social não passa ileso aos processos de reificação das relações

sociais. A cultura dominante atual, onde se observa o predomínio da lógica individualista,

pragmáticas, consumistas, de valorização do Ter em relação ao Ser, do culto à eterna

juventude, etc, também influencia, em maior ou menor medida, os assistentes sociais,

tensionando, cada vez mais, as escolhas profissionais entre valores mais particulares ou mais

genéricos.

Além de refletirmos sobre os elementos da nossa formação e sobre os processos de

reificação das relações sociais, precisamos considerar, também, a conjuntura atual que

tensiona ainda mais a viabilização dos preceitos éticos profissionais. As demandas colocadas

ao exercício profissional dos assistentes sociais se tornam, cada vez mais, complexas,

principalmente na conjuntura atual, de acirramento da “questão social” que atinge duplamente

este profissional: através da precarização das condições e relações de vida e trabalho dos

usuários do Serviço Social e também a precarização das condições de vida do assistente social

como trabalhador. Esta conjuntura acaba limitando ainda mais a autonomia ética dos

assistentes sociais.

Esta reflexão é imprescindível para compreendermos as tensões em torno dos

princípios que orientam as ações dos assistentes sociais na atualidade. Embora reconheçamos

a importância dos avanços, no que se refere ao questionamento do conservadorismo no

interior da profissão, não podemos desconsiderar que, nem sempre, a formação universitária5

possibilita rever, nas raízes, os valores conservadores que adquirimos no processo de

socialização e que, muitas vezes, vão de encontro aos princípios defendidos no Código de

Ética de 1993.

Neste sentido, temos a tese de que a particularidade da nossa formação social, com sua

tendência ao conservadorismo moral, e o peso das relações sociais reificadas, reatualizam

práticas conservadoras no cotidiano de trabalho dos assistentes sociais, tensionado o projeto

ético-político da categoria. Os profissionais de Serviço Social trazem consigo valores da nossa

formação sócio-histórica e que, muitas vezes, vão de encontro aos princípios éticos

5 Embora o novo projeto de formação tenha por objetivo a formação de um profissional crítico, não devemos esquecer que a universidade também se constitui num espaço contraditório, de disputa de interesses de classe.

Page 17: Tese Paula Bonfim (1)

6

norteadores da profissão. Além da peculiaridade da nossa formação, a sociabilidade do capital

repõe e aprofunda valores que se confrontam com o projeto profissional dos assistentes

sociais.

Esta reflexão se faz importante para não cairmos no equívoco de analisar a dimensão

ética da profissão de forma dicotomizada, e des-historicizada. É necessário entendermos que a

reflexão ética é o caminho para podermos avaliar constantemente nossas ações, nossos

preconceitos, nossos compromissos, nossas relações com usuários e profissionais.

Visando uma aproximação cada vez maior com o nosso objeto de estudo recorremos a

uma ampla produção bibliográfica que nos forneceu subsídios para discutirmos o processo de

emergência e de reprodução dos valores, numa perspectiva ontológica, e a particularidade

destes na sociedade brasileira. Outra fonte imprescindível foi a produção teórica do Serviço

Social, especialmente àquelas referentes aos fundamentos da profissão.

Embora reconhecendo a importância destas produções para o nosso estudo, tínhamos

decidido, no decorrer do processo de investigação, realizar uma pesquisa empírica junto aos

assistentes sociais da Secretaria Municipal de Assistência social do Rio de Janeiro com o

objetivo principal de analisar os valores presentes no cotidiano profissional. Esta proposta foi

apresentada no momento de qualificação do projeto, sendo avaliada positivamente pela

maioria da banca. No entanto, dois obstáculos, articulados entre si, nos fizeram desistir desta

proposta, formam eles: a dificuldade de acesso aos profissionais desta Secretaria e o pouco

tempo que nos restava para concluir a pesquisa (aproximadamente um ano).

Embora desistindo desta proposta inicial, continuávamos acreditando na importância

de investigarmos a dinâmica do cotidiano profissional “mais de perto”. Assim, optamos por

realizar uma pesquisa documental junto aos processos éticos6 instaurados no Conselho

Regional de Serviço Social/7ª Região, no período de 1993 a 20117, no intuito de

investigarmos tanto os valores quanto os conflitos éticos no âmbito profissional.

Percebemos que os Processos Éticos poderiam conter informações importantes sobre

os conflitos em torno das escolhas éticas, a opção dos assistentes sociais por diferentes

projetos profissionais e societários, assim como os valores dos diversos sujeitos envolvidos:

assistentes sociais denunciados, denunciantes, advogados das partes, testemunhas, inclusive

6 Somente aqueles que já foram concluídos. 7 Este recorte temporal está relacionado ao período entre a aprovação do atual código de ética, 1993, e a sua vigência até os dias atuais.

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7

dos membros do Conselho que são responsáveis pela apuração da denúncia, instauração do

processo ético, julgamento e aplicação de penalidade.

O projeto de pesquisa foi apresentado à direção deste Conselho, sendo negado num

primeiro momento em virtude do conteúdo sigiloso destes processos.

No entanto, após uma consulta ao CFESS, o CRESS/7ª Região autorizou o acesso aos

processos com a condição de nos comprometermos formalmente (com assinatura de um

documento) a cumprir algumas exigências, dentre elas: 1) os processos éticos só poderiam ser

analisados nas dependências do CRESS e na presença de pelo menos um dos membros da

Comissão Permanente de Ética; 2) a obrigação de guardar, em toda a sua extensão, o sigilo

das informações coletadas e 3) a apresentação prévia dos procedimentos efetuados e dos

resultados obtidos ao CRESS/7ª Região.

Após cumprir todas as exigências passamos a etapa de coleta de dados que, em virtude

dos procedimentos a serem cumpridos, foi realizada em aproximadamente três meses.

No decorrer do levantamento dos dados sentimos a necessidade de discutirmos com a

Comissão Permanente de Ética sobre questões pertinente à dinâmica dos processos e sobre os

dados parciais da pesquisa. Este encontro foi bastante produtivo, sendo que parte das

discussões realizadas neste, foram incorporadas à nossa análise.

Tanto na pesquisa quantitativa quanto na qualitativa procuramos saber em que medida

as infrações, possivelmente8 cometidas, estão relacionadas à influência dos valores

dominantes na sociedade brasileira, às demandas conservadoras e autoritárias colocadas à

profissão, às condições de trabalho do assistente social e ao processo de alienação a que este

trabalhador está submetido, ou mesmo a compreensão equivocada sobre as atribuições e

competências profissionais.

Após esclarecermos como foi o processo de investigação, passemos à apresentação da

estrutura da tese.

No primeiro capítulo, analisamos os processos de gênese e reprodução dos valores que

se dão a partir do processo de trabalho. Embora observemos o grande avanço na discussão das

bases ontológicas da ética e a importância desta para os novos referenciais éticos

profissionais, observamos que alguns elementos relacionados aos pressupostos ontológicos

8 A utilização do termo possivelmente decorre do fato de que instaurado o processo ético são apontados os artigos e princípios que podem ter sidos violados, isto porque, ao final do processo, pode-se chegar a conclusão que não houve infração.

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8

precisavam ser aprofundados para melhor compreendermos e enfrentarmos os desafios postos

à profissão na atualidade.

No segundo Capítulo, refletimos sobre o processo de gênese e a reprodução dos

valores na dinâmica social brasileira. Esta discussão, pouco explorada nas pesquisas, é, a

nosso ver, de extrema importância para entendermos os conflitos éticos presentes no cotidiano

profissional.

No terceiro Capítulo problematizamos, a partir das categorias apreendidas nos

capítulos anteriores, as contradições presente no cotidiano profissional e os obstáculos

existentes para a efetivação do projeto ético-político do Serviço Social. Neste momento,

apresentamos os resultados da pesquisa junto aos processos éticos e a análise dos resultados à

luz do referencial adotado.

Embora consideremos que a nossa investigação reflete elementos de uma realidade

particular – a dinâmica dos processos éticos analisados pelo CRESS/7ª Região num

determinado período, 1993 a 2011 – ela aponta também para aspectos mais gerais presentes

na emergência e no desenvolvimento do Serviço Social no Brasil. Compreendemos, no

entanto, que esta investigação nos possibilitou desvelar parte da realidade sobre os conflitos

éticos profissionais, já que o conhecimento da realidade social e profissional é dinâmico,

processual e permanente.

Page 20: Tese Paula Bonfim (1)

9

CAPÍTULO 1 – GÊNESE E DESENVOLVIMENTO DO SER SOCIAL

Sinalizamos na introdução que para discutirmos sobre as tensões em torno do atual

projeto ético-político dos assistentes sociais é necessário entendermos duas questões

essencialmente articuladas: 1) os processos alienantes próprios da sociabilidade burguesa, já

que estes se colocam como obstáculos ao livre desenvolvimento dos homens; e 2) a

particularidade da formação moral brasileira, resultado da dinâmica da gênese e do

desenvolvimento do Brasil, ou seja, um país com as marcas da colonização, da escravidão e

com uma transição ao capitalismo bem peculiar. Ambas as questões só podem ser desveladas,

no entanto, se recorrermos à análise do complexo processo de produção e reprodução da

existência material dos homens.

Neste sentido, é imprescindível recorrermos à perspectiva da ontologia marxiana para

compreender a constituição e o desenvolvimento do ser social. Um dos principais autores que

se propôs a aprofundar esta perspectiva foi György Lukács. Segundo Vaisman e Fortes (2010)

Lukács reconhece a fecunda inflexão da filosofia marxiana, já que esta se propunha “[...]

investigar o ente com a preocupação de entender o seu ser e encontrar os diversos graus e as

diversas conexões em seu interior” (Lukács apud Vaisman e Fortes, Id. p.21).

No seu processo investigativo, Lukács (1979) afirma que a centralidade da relação

homem/natureza, reflexão fundamental para a discussão do trabalho como categoria

ontológica do ser social, já aparece de forma clara, nos Manuscritos Econômicos-Filosóficos

de Marx.

No momento em que Marx faz da produção e da reprodução da vida humana o problema central, surge – tanto no próprio homem como em todos os seus objetos, relações, vínculos, etc. – a dupla determinação de uma insuperável base natural e de uma ininterrupta transformação social dessa base. [...] (Lukács, 1979, p. 15 e 16).

Na sua análise sobre os fundamentos ontológicos do ser social, Lukács (1981),

baseado em Marx, nos chama a atenção inicialmente para a imbricação entre as categorias que

constituem o ser social: o trabalho, a linguagem, a cooperação e a divisão do trabalho. Para

compreendê-las adequadamente nenhuma delas deve ser considerada isoladamente.

Segundo este autor o lugar privilegiado do trabalho na gênese do ser social se deve ao

fato de que as outras categorias – a linguagem, a cooperação e a divisão do trabalho – já

Page 21: Tese Paula Bonfim (1)

10

possuírem um caráter social, ou seja, elas só podem se desenvolver num ser social já

constituído.

[…] Somente o trabalho tem, como sua essência ontológica, um claro caráter intermediário: ele é, essencialmente, uma interrelação entre homem (sociedade) e natureza, tanto inorgânica (utensílios, matéria-prima, objeto do trabalho, etc.) como orgânica, interrelação que pode até estar situada em pontos determinados da série a que nos referimos, mas antes de mais nada assinala a passagem, no homem que trabalha, do ser meramente biológico ao ser social. […]. No trabalho estão gravadas in nuce todas as determinações que, como veremos, constituem a essência de tudo que é novo no ser social (Lukács, 1981, p.3 e 4).

Lukács (1981) reconhece o interesse de importantes filósofos – como Aristóteles e

Hegel – pelo ser social, no entanto, afirma que tais autores atribuem à teleologia um caráter

cosmológico universal: tanto a natureza como a história são teologicamente postas, ou seja,

consideram que a história da humanidade tem um fim, mas também que é conduzida por um

autor consciente. Esta análise leva a dois caminhos problemáticos: primeiro a uma concepção

idealista da história dos homens; segundo, à concepções religiosas do mundo, onde o processo

teleológico é dirigido por um Deus. Lukács (1981), a partir da ontologia marxiana, afirma que

a teleologia é exclusiva à práxis humana, ou melhor:

[…] fora do trabalho (da práxis humana) não há qualquer teleologia […]. No entanto, o fato de que Marx limite, com exatidão e rigor, a teleologia ao trabalho (à práxis humana), eliminando-a de todos os outros modos de ser, de modo nenhum restringe o seu significado; pelo contrário, a sua importância se torna tanto maior quanto mais se toma consciência de que o mais alto grau do ser que conhecemos, o social, se constitui como grau específico, se eleva a partir do grau em que está baseada a sua existência, o da vida orgânica, e se torna uma nova espécie autônoma de ser, somente porque há nele este operar real do ato teleológico. Só é lícito falar do ser social quando se compreende que a sua gênese, o seu distinguir-se da sua própria base, o processo de tornar-se algo autônomo, se baseiam no trabalho, isto é, na continuada realização de posições teleológicas (Lukács, 1981, p.10 e 11).

Para este autor, a essência do trabalho está na articulação entre teleologia e

causalidade. A capacidade teleológica é exclusiva aos homens. Assim, Lukács recusa a ideia

da teleologia como categoria universal, ou seja, não existe um pôr teleológico na história dos

homens, como, por exemplo, defendeu Hegel ao pensar o espírito absoluto (Lessa, 2002).

Page 22: Tese Paula Bonfim (1)

11

[…] Neste contexto, recusar toda concepção teleológica nada mais significa que a cabal reafirmação da absoluta e radical sociabilidade do mundo dos homens. Aos olhos de Lukács, a postulação marxiana segundo a qual “os homens fazem a sua história…” requer, com absoluta necessidade, a recusa da teleologia como categoria universal (Lessa, 2002, p.71).

A análise do trabalho enquanto categoria fundante do ser social, realizada por Marx e

posteriormente desenvolvida por Lukács, inaugura uma nova perspectiva filosófica9 onde os

homens, através do trabalho – enquanto momento decisivo –, da linguagem e da

sociabilidade, fazem a sua história. O gérmen da filosofia da práxis pode ser evidenciado nos

Manuscritos de 1844. Neste trabalho, podemos observar a crítica de Marx à dialética

hegeliana. Apesar de Marx concordar com a idéia da dialética da negatividade de Hegel, onde

o trabalho aparece como princípio motor do desenvolvimento humano, local onde este se

realiza, critica o aspecto unilateral desta concepção. Para ele, Hegel não consegue enxergar o

aspecto negativo do trabalho material, seu aspecto alienante. “O único trabalho que Hegel

conhece e reconhece é o trabalho abstrato do espírito” (Marx apud Ianni, 1988, p.11).

Para Konder (2000),

Essa concepção abstrata do trabalho levava Hegel a fixar sua atenção exclusivamente na criatividade do trabalho, ignorando o lado negativo dele, as deformações a que ele era submetido em sua realização material, social. Por isso Hegel não foi capaz de analisar seriamente os problemas ligados à alienação do trabalho nas sociedades divididas em classes sociais (especialmente na sociedade capitalista) (p.28).

A partir das observações de Marx, Lukács (apud Lessa, 1996) se propõe a analisar

com profundidade os três momentos decisivos da categoria trabalho: objetivação,

exteriorização e alienação. Esta primeira constatação nos permite entender que através do

trabalho o ser humano transforma a realidade possibilitando o desenvolvimento do mundo dos

homens. Entretanto, também por meio do trabalho se colocam obstáculos a este mesmo

desenvolvimento. Assim, segundo Lukács (apud Lessa, 2002), a alienação deve ser entendida

como obstáculos socialmente postos à plena explicitação da generalidade humana. 9 Refiro-me aqui ao materialismo histórico dialético. O nascimento desta perspectiva filosófica, evidenciado em A ideologia alemã, serviu de fio condutor para as conclusões posteriores de Marx em O capital. Nela, Marx e Engels compreendem a história como resultado das relações materiais de existência estabelecidas entre os homens. Marx conclui que as relações materiais de existência são a base de todas as outras relações sociais, sejam elas religiosas, políticas, culturais, jurídicas etc. A partir destas relações sociais concretas que o homem desenvolve a consciência (Marx e Engels, 1998, p. 36).

Page 23: Tese Paula Bonfim (1)

12

No processo de transformação da natureza, o homem passa do momento de prévia

ideação – teleologia – à causalidade posta, ou seja, objetiva-se; transforma a realidade a partir

de uma finalidade previamente construída na sua consciência. Embora a teleologia só exista

no ser social, isto não quer dizer que ela seja exclusivamente subjetiva. Esta tem também uma

materialidade, pois, na medida em que entra em ação desencadeia um processo real, ou seja,

funda uma “nova objetividade”.

Lukács (1981) sinaliza que para compreender o processo de trabalho é necessário

analisar a vinculação entre posição dos fins e busca dos meios. Segundo o autor, é exatamente

aí que se evidencia a inseparável relação entre causalidade e teleologia. A busca de meios

para realizar um fim acaba produzindo o conhecimento do sistema causal dos objetos e dos

processos que levam o fim teleologicamente posto. O pensamento científico e,

posteriormente, as ciências naturais se desenvolvem a partir desta tendência de

autonomização da busca dos meios. Neste sentido, podemos concluir, a partir as observações

de Lukács, que tanto o fim como as causalidades que o realizam são teleologicamentes postas.

[…] Nunca se deve perder de vista o fato simples de que a finalidade torna-se realidade ou não dependendo de que, na busca dos meios, se tenha conseguido transformar a causalidade natural em uma causalidade (ontologicamente) posta. A finalidade nasce de uma necessidade humano-social; mas, para que ela se torne uma verdadeira posição de um fim, é necessário que a busca dos meios, isto é, o conhecimento da natureza, tenha chegado a um certo nível adequado; quando tal nível ainda não foi alcançado, a finalidade permanece um mero projeto utópico, uma espécie de sonho, como por exemplo, o vôo foi um sonho desde Ícaro até Leonardo e até um bom tempo depois. […] (Lukács, 1981, p.15).

Neste sentido, Lukács (Id.) chama a atenção para a dinâmica do processo de

construção de alternativas no processo de trabalho. Esta construção é feita através de

tentativas, de experimentos que resultam numa finalidade posta. Este movimento ininterrupto

de criação de alternativas vai possibilitando a construção de novos caminhos e colocando ao

homem, individual e coletivamente, melhores condições na criação do novo. Este processo vai

se tornando mais e as ações habituais tornam-se reflexos condicionados e tendem a apresentar

uma aparência autônoma, desvinculada da consciência dos homens. Importante lembrar, no

entanto, que embora as alternativas tornem-se reflexos condicionados, isto não as desvincula

das ações teleologicamente postas.

[…] Esta estrutura ontológica do processo de trabalho, que o torna uma

Page 24: Tese Paula Bonfim (1)

13

cadeia de alternativas, não deve parecer menos correta pelo fato de que, ao longo do desenvolvimento e mesmo em fases relativamente iniciais, as alternativas singulares do processo de trabalho se tornem, através do exercício e do hábito, reflexos condicionados e, deste modo, possam ser enfrentados «inconscientemente» no plano da consciência. […] na sua origem, todo reflexo condicionado foi objeto de uma decisão alternativa, e isto é válido para o desenvolvimento da humanidade como de cada indivíduo, que só pode formar estes reflexos condicionados aprendendo, exercitando, etc. e no início de um tal processo estão precisamente as cadeias de alternativas (Lukács, 1981, p.29).

É importante salientarmos que a opção entre diferentes alternativas está vinculada às

circunstâncias concretas, ou seja, à existência de necessidades objetivas colocadas ao homem.

É a partir destas necessidades que se inicia o processo de trabalho. Embora seja correto

afirmar que a satisfação das necessidades concretas seja o momento predominante na escolha

das alternativas, não podemos esquecer que há aí o elemento teleológico, inerente à

capacidade racional dos homens, ou seja, é justamente a conjunção razão e teleologia que

possibilita ao homem satisfazer as necessidades postas em cada momento histórico, caso

contrário, não nos diferenciaríamos dos animais.

Na medida em que as experiências vão se tornando autônomas e se generalizando, vão

se distanciando da sua origem e, muitas vezes, são reproduzidas independentemente da

consciência dos homens. É a partir deste processo de autonomização e generalização do

trabalho que se colocam as condições de falseamento da realidade, pois o que se observa é o

distanciamento, no nível da consciência, entre alternativas construídas por atos

teleologicamente postos e estas mesmas alternativas já generalizadas.

No que se refere a esse processo de generalização do fruto do trabalho, Lukács (1981)

afirma:

[…] Nenhuma importância tem o fato de que os homens que os elaboraram e usaram tenham ou não compreendido a sua essência real. O obstinado imbricamento destes conceitos com ideias mágicas e míticas, que acontece ao longo da história, mostra como, na consciência dos homens, o agir finalisticamente necessário, sua correta preparação no pensamento e sua execução podem dar origem continuamente a formas superiores de práxis que se misturam com ideias falsas acerca das coisas que não existem e são tidas como verdadeiras e como fundamento último. Isto mostra que a consciência relativa às tarefas, ao mundo, ao próprio sujeito, brota da reprodução da própria existência (e, junto com essa, daquela do ser da espécie), como instrumento indispensável de uma tal reprodução. […] (p. 44).

Page 25: Tese Paula Bonfim (1)

14

Com isto o autor não está ignorando os problemas gerados pela mistificação da

realidade; este apenas nos mostra como o processo de generalização do conhecimento resulta

em processos cada vez mais complexos e distanciados da sua gênese, ou seja, do trabalho.

Neste processo de objetivação, exteriorização e generalização que se dá através do

trabalho, além de criar algo novo, o homem também se modifica, ou seja, o retorno das suas

ações sobre si mesmo possibilita-lhe alcançar níveis cada vez maiores da generalidade

humana. Assim, cada ato singular se generaliza, influencia a todos que estão a sua volta e, a

depender do momento histórico e das necessárias mediações, influencia a humanidade como

um todo. “O impulso à generalização inerente ao trabalho [...] dá origem a um complexo

social que sintetiza os atos dos indivíduos singulares em tendências genéricas que conferem

unidade e sentido ao desenvolvimento do gênero humano. [...]” (Lessa, 1996, p.16). É neste

processo que o homem se individualiza, se generaliza, mas também se aliena.

É através do trabalho que o homem transforma a sua própria natureza, ou seja, ao

buscar meios para objetivar uma finalidade projetada idealmente o homem necessita ter

domínio sobre si mesmo, sobre seus instintos. Neste sentido é que Lukács (1981) fala que o

salto ontológico que dá origem ao ser social possibilita ao homem sair da sua condição

puramente animalesca. “[…] Como ser biológico, ele é um produto do desenvolvimento

natural. Com a sua auto-realização, que também implica, obviamente, nele mesmo um

retrocesso das barreiras naturais, embora jamais um completo desaparecimento delas, ele

ingressa um novo ser, autofundado: o ser social” (p. 38).

Quando, neste contexto, atribuímos ao trabalho e às suas conseqüências – imediatas – uma prioridade com relação a outras formas de atividade, isso deve ser entendido num sentido puramente ontológico, ou seja, o trabalho é antes de mais nada, em termos genéticos, o ponto de partida da humanização do homem, do refinamento de suas faculdades, processo do qual não se deve esquecer o domínio sobre si mesmo (Lukács, 1979, p. 87).

As formas de alienação, de acordo com Lukács (apud Lessa, 2002)10 têm a sua gênese

no complexo de objetivação/exteriorização que se dá através do trabalho.Isto significa afirmar

10 Sobre os termos alienação e estranhamento é necessário alguns esclarecimentos: na Introdução de seu livro Mundo dos Homens: trabalho e ser social, Lessa (2002) faz uma observação importante acerca das palavras em alemão Entäusserung e Entfremdung. Ele afirma, neste texto, que na sua produção de mestrado – Sociabilidade e Individuação, Maceió, Edfal, 1996 – utilizou o termo alienação como uma forma positiva da autoconstrução humana. Isto, segundo ele, causou uma confusão para o entendimento da estrutura categorial da ontologia de

Page 26: Tese Paula Bonfim (1)

15

que toda forma de alienação tem a sua origem na objetivação. Entretanto, é falso concluir que

toda forma de objetivação resulta, necessariamente, em processos alienantes.11

[…] independentemente das transformações que os estranhamentos sofram ao longo da história humana, eles têm por solo genético a contradição entre o desenvolvimento social objetivo e os obstáculos socialmente construídos, por este mesmo desenvolvimento, para a explicitação humano-genérica […] (Lessa, 2002, p.173).

As formas de alienação devem ser entendidas como determinações objetivas do

mundo dos homens Elas se estabelecem para além das relações homem/natureza e vão se

explicitar plenamente na esfera da reprodução social. Portanto, embora o fenômeno da

alienação se expresse através dos valores presentes das ações dos indivíduos, não devemos

perder de vista que a sua gênese encontra-se nas relações materiais de produção da vida dos

homens (Lukács, apud Lessa, 2002).

É importante chamar atenção para o fato de que quando Marx refere-se a esta relação

necessária do homem com a natureza, ele não está fazendo menção somente aos produtos

materiais retirados dela, mas sim a toda uma estrutura que vai de bens materiais a obras de

arte (Mészáros, 2006, grifos nossos).

Neste sentido, Lukács (1981) afirma que o trabalho se constitui como modelo de toda

a práxis social. O autor observa que o trabalho se caracteriza pela relação homem/natureza, ou

seja, a transformação desta última em valores de uso. No entanto, na medida em que as

relações entre os homens vão se tornando mais complexas já podemos observar formas mais

evoluídas de práxis social, onde o objeto essencial de transformação encontra-se na relação

homem/homem. É importante sinalizarmos, porém, que o fundamento deste tipo de práxis é o

mesmo do trabalho, ou seja, as posições teleológicas e as séries causais que a põe em

movimento.12

Lukács. No trabalho de 2002, ele reconheceu a importância de fazer uma modificação no que se refere a esta questão. Seguindo as reflexões de Leandro Konder e Nicolas Tertulian adota Entäusserung como o processo de exteriorização e Entfremdung como estranhamento ou alienação para expressar as desumanidades socialmente postas no processo de desenvolvimento do mundo dos homens. 11 Veremos, mais adiante, esta questão de forma mais aprofundada. 12 Sem desconsiderarmos a polêmica em torno do debate se o Serviço Social é ou não trabalho, entendemos a importância desta discussão para pensarmos o Serviço Social, já que, ao nosso ver, a atividade profissional dos assistentes sociais deve ser pensada como uma dimensão da práxis social. Isto significa afirmar que há um pôr teleológico nas ações profissionais, que implica razão e vontade, valores e escolhas, conforme nos sinaliza Guerra (2005b): “[...] o exercício profissional deve ser visto como uma atividade racional transformadora da

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16

O fim teleológico (dever-ser) se estabelece tanto na relação homem/natureza como na

relação homem/homem. Embora, como verificaremos mais adiante, isto aconteça com

diferenças significativas. Na relação homem/homem, o processo da práxis social é mais

complexo e qualitativamente diferente daquele evidenciado na relação do homem com a

natureza; o dever-ser do primeiro se encontra na autotransformação do sujeito, como afirma

Lukács,

[…] É claro que estas posições são diferentes daquelas que encontramos no processo de trabalho, não apenas por serem mais complexas, mas, e exatamente por isto, pela diversidade da qualidade. […] Em qualquer caso, essas inegáveis diferenças qualitativas não nos deve fazer esquecer o fato fundamental comum, isto é, que todas são relações do dever-ser, atos nos quais não é o passado, na sua espontânea causalidade que determina o presente, mas ao contrário, é o objetivo futuro, teleologicamente posto o princípio determinante da práxis (1979, p. 36, grifos nossos).

É neste processo histórico que o homem desenvolve as capacidades essenciais para a

sua constituição, são elas a sociabilidade, a consciência, a linguagem, a universalidade e a

liberdade. Para entendê-las é necessário recorrermos à categoria da reprodução social, tanto

no que diz respeito à reprodução dos indivíduos como a reprodução da totalidade social. É o

que vermos a seguir.

1.1 O PROCESSO DE REPRODUÇÃO SOCIAL E A CRIAÇÃO DE VALORES

Refletimos até o momento sobre a relação entre as bases naturais e sociais do homem;

vimos que ao mesmo tempo em que o homem é um ser natural e necessita da natureza para se

desenvolver, ele se torna social e domina cada vez mais os determinantes naturais. Este

processo, ressalta Lukács (1981), é um processo dialético, pois inicia com um salto ontológico

que se dá através do trabalho, mas jamais se separa por completo das bases naturais.

realidade, que incide sobre condições objetivas encontradas pelos sujeitos assistentes sociais, mas que estes as modificam buscando criar as possibilidades de alcançarem seus fins. [...]. Nesta prática imperam dois elementos: teleologia [...] e causalidade [...]. Aqui, a vontade é racionalmente orientada a um fim, o que exige um conhecimento, ainda que aproximado, da realidade dada. Mas exige também valores, habilidades e atitudes” (p.149). Não aprofundaremos esta discussão, por não se tratar do objeto desta tese.

Page 28: Tese Paula Bonfim (1)

17

O desenvolvimento sócio-global é um processo histórico necessariamente

contraditório e desigual.13 Este desenvolvimento pressupõe a criação constante do novo e a

elevação da humanidade a patamares de sociabilidade cada vez mais altos.

Na sua acepção geral é a partir do trabalho que o homem se diferencia de outros seres

da natureza; é na interação homem/natureza, a partir da sua capacidade teleológica, que este

vai satisfazendo suas necessidades e criando outras necessidades. É neste processo que o

homem vai atribuindo valor as coisas e criando formas de interação como a linguagem, os

costumes, constituindo, assim, a cultura.

Para compreendermos, portanto, a substância concreta, particular, tanto de cada

individualidade quanto de cada formação social, é necessário recorrermos às mediações

próprias à categoria da reprodução social. Segundo Lessa (1995), “[…] a categoria da

reprodução é a processualidade concreta, o campo real de mediações, sempre particular, que

faz de cada momento da história humana um momento único, inigualável” (p.7).

Portanto, é no âmbito da reprodução social que se estabelecem as mediações que

constituem tanto o indivíduo na sua particularidade quanto as formações sociais. Neste

sentido, para desvendarmos o processo de constituição dos valores em uma determinada

sociedade faz-se necessário entendermos como se constitui o processo de reprodução social

na perspectiva da ontologia marxiana.

Para Lukács (apud Lessa, 1995), o elemento fundante e constitutivo da reprodução

social, tanto enquanto totalidade social como enquanto individualidades, são as ações dos

indivíduos concretos em situações sociais concretas. No entanto, afirma que embora a

categoria da reprodução dos indivíduos e a reprodução da totalidade sejam ontologicamente

indissociáveis, cada uma delas possuem especificidades e, além disto, podem existir entre elas

desigualdades e contradições.

Assim, de acordo com Lukács (apud Lessa, 1995)14 podemos afirmar que entre a

categoria trabalho e a categoria reprodução se estabelece uma nítida diferença e uma

insuperável conexão. Embora o trabalho seja a base de todo o desenvolvimento do homem,

somente no contexto da reprodução social o trabalho pode se realizar. A razão disto se

13 Importante esclarecer que o caráter desigual do desenvolvimento sócio-global a que se refere Lukács não está relacionado à desigualdade, fruto das sociedades de classes, mas diz respeito ao caráter dialético do processo de trabalho que envolve os momentos de objetivação, exteriorização e generalização. 14 É importante esclarecermos que por não existir uma versão em português da parte da Ontologia sobre a Reprodução Social, recorremos a esta discussão através do livro de Lessa, Individuação e Sociabilidade, 1995.

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18

encontra no fato de que “[…] tanto o complexo categorial da reprodução, como o complexo

categorial do trabalho têm o mesmo fundamento: as decisões alternativas de indivíduos

concretos em situações historicamente determinadas” (Lessa, 1995, p. 8).

O mundo dos homens é essencialmente social, ou seja, sua legalidade interna não está

vinculada às leis naturais, mas às respostas dadas pelo homem às necessidades impostas a

este. No entanto, só é possível entender esta essência se considerarmos a infindável troca

orgânica com a natureza (Lukács apud Lessa, 1995).

[…] o fato do ser social existir apenas em conexão incindível com a natureza, da gênese de categorias sociais puras não exibir "qualquer espiritualismo social" e consistir sempre de um recuo da barreira natural, não de um desaparecimento da natureza”, não podem velar que a reprodução social seja o processo de explicitação de uma nova substância, ontologicamente irredutível à processualidade natural; nem esta irredutibilidade do ser social ao natural deve mascarar os nexos reais que se interpõem entre o mundo dos homens e a natureza (Lessa, 1995, p.27).

Embora a reprodução seja uma categoria evidenciada na esfera biológica, é na esfera

social que esta se constitui como um processo que possibilita a elevação crescente da

sociabilidade humana.

Lukács (apud Lessa, 1995), porém, chama a atenção para algo importante: tanto na

reprodução natural quanto na reprodução social as categorias ontológicas inferiores não são

anuladas, mas transformadas, elevadas a patamares superiores.

Umas das diferenças qualitativas observadas no processo de reprodução biológica e

social é a criação de valores. Na natureza não se observam processos onde operam valores. É

somente no âmbito da reprodução social, que o homem, através de escolhas teleologicamente

postas, atribui valor às coisas.

Outra diferença fundamental é que a reprodução social implica em mudanças externas

e internas. Enquanto a reprodução biológica reitera o já existente, na reprodução social há a

criação constante do novo; ao satisfazer as necessidades sociais impostas pela realidade

objetiva, o homem cria novas necessidades e novas maneiras de satisfazê-las, ou seja, ele

produz sempre para além do necessário à sua sobrevivência.

Não é possível, portanto, negar as interações profundas entre formas sociais e

biológicas. No entanto, o que se evidencia no processo de reprodução social é o predomínio

cada vez maior do elemento social na vida dos homens. A isto Lukács (apud Lessa, 1995)

chamou de tendência ao afastamento das barreiras naturais.

Page 30: Tese Paula Bonfim (1)

19

O autor nos chama a atenção para a diferença entre posições teleológicas primárias, ou

seja, aquelas que têm por objetivo a transformação da natureza e as posições teleológicas

secundárias. Estas últimas se constituem em ações que visam influir nas consciências de

outros homens no intuito de estes executarem determinadas atividades. O autor nos mostra,

ainda, que com o crescente processo de socialização, as posições teleológicas secundárias vão

tendo um peso social cada vez maior diante das primeiras, tendendo a se tornarem

relativamente autônomas.

As possibilidades abertas pelas ações dos homens dependem das condições objetivas

de cada momento histórico. No entanto, é necessário compreender a importância do elemento

subjetivo neste processo, ou seja, as respostas dadas às necessidades impostas ao homem só se

generalizam na medida em que estas são elevadas à consciência. “[…] Sem a transposição

para a consciência dos resultados concretos, objetivos dos atos individuais, esses atos não

poderiam se constituir em elos do processo de elevação do gênero ao seu ser-para-si, ou seja,

não poderiam se realizar enquanto aquilo que são em essência” (Lessa, 1995, p.40).

Lukács (apud Lessa, 1995) nos indica a importância da consciência no processo de

continuidade social. No entanto, este autor sinaliza para duas questões importantes:

primeiramente, que é preciso entender a consciência como algo historicamente determinado,

ela representa uma etapa no desenvolvimento do ser. Sendo assim, é preciso entendê-la no seu

movimento: “[…] a consciência, por um lado, deve fixar o patamar de generalidade

efetivamente alcançado pela humanidade; todavia, por outro lado, este fixar não pode se

transformar num impedimento ontológico a todo desenvolvimento futuro. […]” (Lessa, 1995,

p.41). Em segundo lugar, que os momentos fixados pela consciência podem levar tanto a

níveis crescentes de sociabilidade quanto à obstáculos ao avanço da generalidade humana.15

A malha de mediações e determinações sociais que assim surge -- e cuja reprodução tem como médium ineliminável as decisões alternativas dos indivíduos a ela submetidos -- "aparece ao homem como uma espécie de segunda natureza, como um ser que existe completamente independente do seu pensamento, de sua vontade". O produto da totalidade da práxis humano-social num dado momento se converte, para a consciência do homem cotidiano, em uma potência a ele estranha, que o subjuga, que determina o seu ser. [...] (Lessa, 1995, p. 62).

15 Veremos isto de forma mais aprofundada quando discutirmos a questão da alienação.

Page 31: Tese Paula Bonfim (1)

20

A reprodução da vida humana implica na criação de mediações cada vez mais

complexas e numerosas que acabam possibilitando o ambiente social. Há neste processo uma

ação de retorno, ou seja, este ambiente acaba influenciando seus próprios criadores.

Neste processo de produção do novo, que se dá através do trabalho, e da generalidade

daí decorrente, está a processualidade que levou a divisão do trabalho e a sua intensificação.

Outra novidade importante é que na medida em que o homem produz mais do que precisa,

gera estruturas completamente novas: a divisão da sociedade em classes16 e tudo que resulta

disto.

Lukács (apud Lessa, 1995) indica, portanto, a atividade econômica17 como momento

predominante no processo de reprodução social, mas observa a necessidade de evitar posturas

niveladoras ideais. Segundo Lessa (1995), “[...] ainda que, para Lukács, a luta pela posse do

trabalho excedente não seja o único fator a determinar o desdobramento concreto da evolução

das sociedades, ela é certamente o seu momento predominante (p. 64).

Desta forma, este autor nos aponta para algumas questões importantes: primeiramente

que esta prioridade da economia não supõe nenhuma hierarquia de valor; segundo, que o peso

deste momento pode variar dependendo da sociedade em questão; e por último, que é falso

considerar a existência de uma determinação direta de todos os fenômenos sociais pela matriz

econômica.

Considerando tais observações podemos apreender melhor a dinâmica da reprodução

social. Lukács (Id.) sinaliza para um elemento importante deste processo: o seu caráter bipolar

(indivíduo/sociedade). Esta bipolaridade pode ser observada nas formas mais primitivas do

trabalho, mas só se explicita na gênese e desenvolvimento do capitalismo. A explicitação

desta bipolaridade “[…] se refletiu, "na nova estrutura da consciência dos homens", como

"dualismo entre citoyen e homme (bourgeois) presente em cada membro da nova sociedade",

num fracionamento do ser-indivíduo-humano entre uma existência pública e uma existência

privada” (Lessa, 1995, p. 76).

16 Considerando estes elementos, o autor afirma que é o desenvolvimento econômico que possibilita a luta de classes e o êxito destas lutas. Além disto, na medida em que avança o processo de sociabilidade cresce o poder de intervenção das classes sobre o desenvolvimento econômico. 17 A esfera econômica deve ser entendida "enquanto sistema dinâmico de todas as mediações que formam a base material para a reprodução dos indivíduos singulares e do gênero humano, é o elo real que conjuga a reprodução do gênero humano e dos seus exemplares singulares" (Lukács apud Lessa, 1995, p. 88).

Page 32: Tese Paula Bonfim (1)

21

Embora as ações dos indivíduos tenham sempre como finalidade o alvo da

particularidade, é através destas ações que se colocam as possibilidades de elevação do

indivíduo a patamares cada vez mais elevados de generalidade.

Desde o primeiro trabalho, enquanto gênese da humanização do homem, até às mais sutis decisões psicológicas e espirituais, o homem constrói o seu mundo externo, contribui para edificá-lo e para aperfeiçoá-lo e, ao mesmo tempo, com estas mesmas ações constrói a si mesmo, passando da mera singularidade natural à individualidade no interior de uma sociedade (Lukács apud Lessa, 1995, p.75).

Assim, a personalidade do indivíduo, ou seja, os traços mais íntimos da

individualidade, não é algo fixo e dado a priori. Segundo Mészáros (2006), esta idéia já se

apresenta de forma clara em Marx. Este se opõe à idéia de natureza humana fixa18. O ser

humano é um ser complexo que se desenvolve a partir do modo como ele produz e reproduz a

sua vida.

O “ser-por-si-mesmo da natureza e do homem” marxiano – o homem que não é a contrapartida animal de uma série de ideais morais abstratos – não é, por natureza, nem bom nem mau; nem benevolente, nem malevolente; nem altruísta nem egoísta; nem sublime nem bestial etc.; mas simplesmente um ser natural cujo atributo é: a “automediação”. Isto significa que ele pode fazer com que ele mesmo se torne o que é em qualquer momento dado – de acordo com as circunstâncias predominantes – seja isso egoísta ou o contrário (Mészáros, 2006, p.151).

Esta afirmação não nega a constituição biológica dos seres humanos e suas

necessidades naturais, mas afirma que sendo o homem um ser social estas necessidades são

transformadas, pelo próprio homem, em necessidades humanas. “[...] no ato

autotranscendente consciente de vir a ser” eles se transformam em apetites e propensões

humanas, modificando fundamentalmente o seu caráter, passando a ser algo inerentemente

histórico” (Mészáros, 2006, p.156).

O devir humano dos indivíduos é o resultado de um complexo de interações nas quais

e pelas quais se expressa a unidade contraditória das determinações psicofísicas e sociais.

18 Como, por exemplo, a concepção da economia política liberal que trata o egoísmo como elemento natural e fator decisivo nas interações humanas (Mészáros, 2006).

Page 33: Tese Paula Bonfim (1)

22

Neste sentido, Lukács (1981) refere-se a três momentos que impulsionam o indivíduo

a patamares cada vez mais elevados do gênero humano. Primeiramente se destaca a

generalização do processo e produto do trabalho que, por sua vez, possibilita o fluxo da práxis

social.

[…] Dessa maneira, segundo Lukács, a práxis social é o elo ontológico que articula de modo absolutamente necessário indivíduo e sociedade, que, por essa razão, articula a consciência do homem singular como pertencente ao gênero humano. O papel da práxis social é o "elemento novo, decisivo", que não perde sua força e importância porque, de início, ser membro de uma comunidade é determinado apenas pelo nascimento, ou seja, por um fato natural. Portanto, a generidade “[sic]” humana "é um processo espontâneo-elementar socialmente determinado", fundado pelo trabalho entendido enquanto protoforma da atividade humana. Em poucas palavras, como pertence à essência do trabalho impulsionar sempre para além de si mesmo, em toda ação humana a particularidade remete à generalidade. [...] (Lessa, 1995, p. 82).

O segundo momento refere-se ao processo de “crescente sociabilização da sociedade”.

Quanto mais mediadas forem as decisões, mais ricas, diversificadas e complexas devem ser as

individualidade. O terceiro momento da síntese é composto pelos conflitos entre a dimensão

genérica e a dimensão particular de todo o ato humano. Lukács (apud Lessa, 1995) afirma que

as escolhas entre alternativas possuem elementos de particularidade, de simples singularidade

e de generalidade. Tais escolhas, ao mesmo tempo em que são suscitadas pelas necessidades

sociais estão relacionadas ao eu e é neste processo que surgem, não raramente, os conflitos

entre as dimensões particulares e genéricas das escolhas humanas.19

Estes três momentos fundamentais de elevação do indivíduo ao seu ser-em-si (Lessa,

1995) nos leva a questionar sobre a gênese e a função dos valores neste processo.

Segundo Lukács (apud Lessa, 2002) os valores só são possíveis, só possuem uma

existência real, efetiva, quando incorporados às posições teleológicas que fazem parte do

processo de objetivação. Neste sentido, este autor se contrapõe às formulações idealistas no

que se refere à criação dos valores: é a práxis social o solo fértil para a emergência destes.

19 Esta análise de Lukács (Id.) sobre os conflitos entre a dimensão genérica e a dimensão particular ações humanas é fundamental para refletirmos sobre a questão da ética profissional dos assistentes sociais. Isto porque, como veremos mais adiante, mesmo sob a orientação de princípios éticos comprometidos com o desenvolvimento do ser humano, na sua acepção genérica, o assistente social, muitas vezes, faz escolhas no cotidiano profissional orientadas por valores privados.

Page 34: Tese Paula Bonfim (1)

23

Lukács (1981) afirma que dever-ser e valor estão intimidamente ligados. O dever-ser

só pode se objetivar se o que se pretende realizar tiver valor para o homem. Embora sejam

categorias bastante íntimas, parte de um único e mesmo complexo, elas devem ser entendidas

separadamente. Segundo este autor não é possível abstrair valor a partir das características

naturais de um objeto. O valor se manifesta, na sua forma primária, a partir da utilidade que

determinado objeto natural tem para a vida humana, ou seja, a partir do seu valor de uso.

[…] Deste modo, sem afastar-nos da verdade, podemos, numa consideração geral, entender os valores de uso, os bens, como produtos concretos do trabalho. Disto se segue que podemos considerar o valor de uso como uma forma objetiva de objetividade social. Sua socialidade está fundada no trabalho: a imensa maioria dos valores de uso surge a partir do trabalho, mediante a transformação dos objetos, das circunstâncias, do modo de agir, etc. naturais, e este processo, enquanto afastamento das barreiras naturais, com o desenvolvimento do trabalho, com a sua socialização, se amplia sempre mais, tanto em extensão como em profundidade. […]. Deste modo, o valor de uso não é um simples resultado de atos subjetivos, valorativos, mas, ao contrário, estes se limitam a tornar consciente a utilidade objetiva do valor de uso; é a natureza objetiva do valor de uso que demonstra a correção ou incorreção deles e não o contrário (Lukács, 1981, p. 37).

Embora o trabalho seja a categoria fundante do ser social é importante salientar,

segundo Lessa (2002), que isto não significa que as categorias sociais, incluindo aí os valores,

sejam “reduzidos” ou “deduzidos” do trabalho enquanto tal. Para entendermos a gênese dos

valores e os processos valorativos é imprescindível buscarmos as mediações próprias da

categoria da reprodução social.

[…] A construção social da particularidade de cada momento histórico é uma função que pertence à essência da categoria da reprodução, e não ao trabalho enquanto tal. Para elucidar a gênese dos valores em Lukács, o que agora nos interessa é o papel mediador fundamental entre a categoria do trabalho e a totalidade social realizada pela reprodução. Ele nos permite apontar que, se a função ontológica dos valores está no ineliminável caráter de alternativa do trabalho, não menos verdadeiro é que, na gênese de cada valor e processo valorativos, permeiam outras mediações que não são em si redutíveis ao trabalho (Lessa, 2002, p.158).

Esta reflexão de Lukács (apud Lessa, 2002) nos chama a atenção para a dinâmica do

surgimento dos valores. Ao mesmo tempo em que ele afirma que os valores têm a sua origem

na práxis social, ou seja, surgem a partir das relações teleologicamente postas que se

estabelecem entre homem/natureza e homem/homem, ele nos mostra que não é possível

Page 35: Tese Paula Bonfim (1)

24

desvendá-los, em toda a sua complexidade, se não considerarmos a contraditoriedade deste

processo.

As escolhas feitas pelos indivíduos, a partir das possibilidades que são colocadas em

cada momento histórico, vão consolidando os valores como positivos ou negativos. “Os

homens respondem — mais ou menos conscientemente, mais ou menos corretamente — às

alternativas concretas que lhes são apresentadas a cada momento pelas possibilidades do

desenvolvimento social. E aqui já está implícito o valor. [...]” (Lukács, 1981, p.77 ou 45).

Entretanto, na medida em que novas necessidades sociais vão sendo postas, estes valores

também sofrem mudanças. Lukács (1981) afirma que mesmo constatando a permanência de

alternativas sociais que atravessam muitas épocas, os valores atrelados a estas escolhas são

permanentemente reinterpretados. Assim, a realização dos valores está intimamente

relacionada às exigências histórico-sociais. É neste processo, que os indivíduos, através de

ações singulares, optam por objetivar valores mais genéricos ou mais particulares, os quais

elevam ou rebaixam os níveis de generidade humanas.

Neste sentido, os valores têm um papel fundamental no processo de desenvolvimento

social dos homens. Na medida em que estes se constituem como momentos sínteses entre

possibilidades e necessidades historicamente postas, podem ter um peso fundamental no

desdobramento de certas situações ou mesmo romper com determinações legais de uma dada

formação social (Lessa, 1995).

[…] Com efeito, a alternativa de uma determinada práxis, não está somente em dizer “sim” ou “não” a um determinado valor, mas também na escolha do valor que forma a base da alternativa concreta e nos motivos pelos quais se assume esta posição. Já sabemos: o desenvolvimento econômico é a espinha dorsal do progresso efetivo. Por isso, os valores determinantes, que se conservam ao longo do processo, são sempre — conscientemente ou não, de modo imediato ou com mediações às vezes bastante amplas — referidos a ele; no entanto, faz objetivamente muita diferença quais momentos deste processo em seu conjunto constituem o objeto da intenção e da ação daquela alternativa concreta. É deste modo que os valores se conservam no conjunto do processo social, renovando-se ininterruptamente, é deste modo que eles, a seu modo, se tornam partes reais integrantes do ser social no seu processo de reprodução, elementos do complexo chamado ser social. […] (Lukács, 1981, p. 47).

Assim como em outras categorias sociais, o processo de socialização dos valores se

apresenta de forma contraditória e desigual, manifestando a tensão entre valores genéricos e

valores particulares. “[...] Ou seja, os atos singulares podem adentrar o processo global de

Page 36: Tese Paula Bonfim (1)

25

reprodução social dirigindo-se “ao essencial ou ao fugaz, àquilo que o leva avante ou o freia

etc.”, de tal modo que as funções sociais dos atos singulares podem ser qualitativamente

bastante diversa entre si” (Lessa, 2002, p.162). Na medida em que as relações sociais vão se

tornando mais complexas, esta contraditoriedade tende a se intensificar.

É nesta tensão ineliminável entre elementos genéricos e individuais que se colocam as

bases para a consciência do caráter genérico do ser humano.

[…] Valores como justiça, igualdade, liberdade etc surgem como expressões concretas, historicamente determinadas, das necessidades genérico-coletivas postas pelo desenvolvimento da sociabilidade. Por serem expressões concretas, históricas, das necessidades humano-genéricas, o conteúdo destes valores se altera com o passar do tempo. Se tais mudanças introduzem novos problemas neste complexo, absolutamente não alteram o fato de tais valores influenciarem decididamente na identificação das necessidades genéricas e, deste modo, exercerem um papel central na elevação, em escala social, da contradição singular/universal, gênero/indivíduo (Lessa, 2002, p.172).

Se observarmos o processo de desenvolvimento social dos homens veremos que em

determinados momentos a dimensão coletiva dos valores se sobrepunha fortemente sobre a

dimensão individual. É o que pode ser observado nas sociedades primitivas. O limitado

desenvolvimento social destas comunidades requeria um tipo de moral coletivista, ou seja, os

valores, as normas, as regras e a cultura como um todo, estavam orientadas no sentido de

garantir a segurança e a sobrevivência desta. Todos os esforços dos indivíduos estavam

orientados para satisfazer as necessidades da coletividade, não havendo espaço, desta forma,

para o desenvolvimento das individualidades. A moral destas comunidades se colocava como

obstáculo ao livre desenvolvimento dos indivíduos na medida em que havia uma fusão entre

indivíduo e comunidade (Vázquez, 2004).

A contradição entre a dimensão singular e genérica dos valores pode ser observada,

em maior ou menor intensidade, em vários momentos da história dos homens.20

A respeito disto, Lukács (apud Lessa, 1995) nos chama a atenção para algo curioso: a

sociedade burguesa é a primeira formação social onde se observa o caráter puro das relações

sociais, ou seja, somente neste tipo de sociedade as diferenças – aparentemente naturais21 –

20 Não nos deteremos nesta questão por não fazer parte do objetivo deste trabalho. Para entender melhor o sentido dos valores e da moral nas sociedades escravistas e nos regimes feudais ver Vázquez (2004). 21 Como se dava na escravidão, ou no sistema de castas.

Page 37: Tese Paula Bonfim (1)

26

entre os homens deixam de existir e estes passam a ter consciência de que suas vidas são

resultado de determinações puramente sociais. Somente a partir da sociedade burguesa é que

se evidencia o caráter puramente social da ligação indivíduo/sociedade. Apesar disto, é

justamente com o desenvolvimento da sociabilidade burguesa que a contradição entre as

dimensões da generalidade e da particularidade humanas atinge níveis inéditos. “[…] Por um

lado, os interesses privados/particulares do bourgeois são tomados como interesses genéricos,

reduzidos à esfera etérea do citoyen, da “cidadania”, na maior parte das vezes assumem a

aparência de obstáculos ao desenvolvimento do indivíduo-mônada, do proprietário burguês”

(Lessa, 2002, p.163).

Neste sentido, a moral, os costumes, a tradição e o direito surgem justamente para

afirmar, frente às aspirações particulares dos indivíduos, o pertencimento destes ao gênero

humano. Assim, na medida em que as contradições próprias do desenvolvimento social

tensionam as individualidades – entre a particularidade e a generalidade humanas –, estes

complexos sociais – moral, costumes, tradição, direito e a ética – atuam como esferas

mediadoras no processo de elevação do gênero humano ao seu ser-em-si (Lessa, 1995).

No entanto, Lukács (apud Lessa, 1995) sinaliza para o fato de que somente na ética é

possível superar a dualidade indivíduo/sociedade.

[…] O que distingue, portanto, a ética do costume, da tradição, da moral e do direito é, segundo Lukács, a superação da individualidade que entende sua particularidade como antinômica à existência genérica. Ao se apoderar da individualidade, a "exigência ética" eleva à generalidade o horizonte das finalidades operantes nas decisões alternativas de cada indivíduo; isto é, faz do indivíduo uma individualidade autêntica, genérica; o torna consciente de ser membro do gênero humano. [...] (Lessa, 1995, p. 102-103).

Isto não significa afirmar que as ações pautadas na ética anulem a dimensão

individual; o que acontece é que os indivíduos se reconhecem enquanto seres humano-

genéricos e pautam suas ações a partir desta referência. “[...] ser indivíduo e ser membro do

gênero humano não formam mais dois pólos antinômicos, mas dois momentos de um mesmo

ser: a individualidade enquanto partícipe de um gênero elevado ao seu ser-para-si. [...]”

(Lessa, 1995, p. 11).

Neste sentido, é importante entendermos a constituição dos indivíduos no âmbito da

sociabilidade burguesa, isto porque, como nos lembra Lessa (2002) “os processos valorativos

adquirem uma nova qualidade com o surgimento das sociedades de classe e da política: o

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27

antagonismo entre as classes se reflete na gênese e desenvolvimento de valores também

antagônicos. [...]” (p.110).

A seguir, discutiremos como, a partir das relações sociais capitalistas, os valores

individuais se sobrepõem aos valores coletivos, ou seja, como as individualidades nesta

formação aparecem contrapostas e superiores ao gênero humano e como isto se constitui em

um obstáculo ao livre desenvolvimento dos homens.

1.2 OS VALORES NA SOCIEDADE DE CLASSES

Até o momento tentamos elucidar alguns elementos no que ser refere ao trabalho

enquanto categoria fundante do ser social e ao processo de reprodução social, lócus da gênese

e desenvolvimento dos valores. Vimos também como a formação social burguesa ao mesmo

tempo em que possui um caráter social puro (Lukács apud Lessa, 1995) coloca as condições

para o desenvolvimento de uma individualidade estreita e mesquinha, parte da constituição do

homem burguês.

No entanto, para entendermos a formação dos valores no âmbito da sociedade

burguesa é necessário recorrermos ao processo de transição do modo de produção feudal para

o modo de produção capitalista e às mudanças oriundas desta dinâmica.

É impossível dissociar a gênese e o desenvolvimento do capitalismo dos

acontecimentos que marcam a era moderna. A modernidade é marcada por uma diversidade

de acontecimentos nos mais variados âmbitos da vida social: grandes descobertas científicas;

industrialização da produção, a criação de estados nacionais, grandes movimentos sociais de

massas e tantos outros acontecimentos que modificaram radicalmente as relações materiais e

sociais entre os homens22 (Berman, 2007).

Este momento histórico expressa uma dinâmica absolutamente revolucionária em

todas as dimensões da vida social do homem, seja na relação homem/natureza seja na relação

com outros homens. É só lembrarmos que é no século XVI, especificamente na Europa, que o

homem passa a ser identificado como produtor e produto de sua própria e coletiva atividade; é

22 Berman (2007) divide a história da modernidade em três fases: a primeira delas refere-se ao período compreendido entre o século XVI até o final do século XVIII. A segunda fase é marcada pela onda revolucionária de 1790; e a terceira compreende o século XX.

Page 39: Tese Paula Bonfim (1)

28

o surgimento de uma nova visão de homem e de mundo, onde a centralidade da razão foi

determinante.

Observa-se uma ênfase na relação homem/natureza desviando o foco, até então

dominante, da relação Deus-Homem. Dois movimentos foram fundamentais para a construção

de uma nova visão de mundo: o Humanismo e o Renascimento. Ambos estavam presentes nas

Artes, Letras, Filosofia em toda a Europa, em especial na Itália23. Além disto, o século XVII,

foi marcado por inúmeras descobertas na área da Matemática, da Física, da Química,

Astronomia, Biologia que possibilitaram um progresso importante para a Ciências.

No entanto, este primeiro momento da época moderna – do século XVI ao século

XVIII – trouxe pouco impacto para a vida cotidiana da maioria dos homens. Estes, mal

sabiam que aquele era o início de novos tempos e que tais mudanças, a partir de então, seriam

revolucionárias para a humanidade. De acordo com Berman (2007, p. 25), os homens desta

época “[...] tateiam, desesperadamente mas em estado de semicegueira, no encalço de um

vocabulário adequado; têm pouco ou nenhum senso de um público ou comunidade moderna,

dentro da qual seus julgamentos e esperanças pudessem ser compartilhados. [...]”.

Embora a modernidade seja marcada pela centralidade da razão, no final do século

XVIII se observava que a maioria da população européia permanecia em estado de

ignorância.24 Esta mesma população vivia, majoritariamente, no campo e na maior parte da

Europa25 o que predominada eram relações de servidão. “[...] o camponês típico era o servo,

que dedicava uma enorme parte da semana ao trabalho forçado na terra do senhor ou o

23 Este movimento, entretanto, teve o seu declínio em virtude dos efeitos da Reforma, que provocou uma onda de irracionalidade na Europa. 24 É importante salientarmos que não existe nenhum paradoxo nesta afirmação. Além da necessidade de considerarmos a conjuntura econômica, política e social da época, é importante lembrarmos que a razão moderna, segundo Horkheimer (apud Netto, 1994) é sustentada pela objetividade e pela processualidade; ela é tanto objetiva, ou seja, está presente na realidade: nas relações entre os homens, entre as classes, etc. e também é subjetiva: é reconstruída idealmente na consciência dos homens. Estas duas características se constituem como uma unidade processual. 25 Segundo Hobsbawn (2007) “[...] Itália, ao sul da Toscana e da Úmbria, e o sul da Espanha [...] tinham trechos onde viviam camponeses tecnicamente livres: colonos alemães espalhados por toda a esta região, da Elosvênia ao Volga, clãs virtualmente independentes nos selvagens montes rochosos do interior da Ilíria, camponeses guerreiros quase tão selvagens como os panduros e os cossacos [...]” (p.32). Um outro país com características um pouco diferentes era a Inglaterra. “[...] Lá, a propriedade de terras era extremamente concentrada, mas o agricultor típico era o arrendatário com um empreendimento comercial médio, operado por mão de obra contratada. Uma grande quantidade de pequenos proprietários, aldeões etc., ainda obscurecia este fato. Mas quando tudo se tornou claro, aproximadamente entre 1760 e 1830, o que apareceu não foi uma agricultura camponesa, mas sim uma classe de empresários agrícolas, os fazendeiros e um enorme proletariado rural. [...]” (p. 36).

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29

equivalente em outras obrigações. Sua falta de liberdade era tão grande que mal se poderia

distingui-la da escravidão [...]” (Hobsbawn, 2007, p.33).

As relações de dominação econômica, política e social estavam relacionadas às

condições de nascimento do indivíduo e de proprietário de terras. O status de nobre, portanto,

estava relacionado a estas duas condições. Mesmo constatando que, já no século XVIII, a

situação econômica da nobreza se apresentasse frágil, a relação entre posse de terras e classe

dominante continuava mais forte do que nunca.

Embora grande parte do século XVIII tenha sido marcada pelas relações de dominação

citadas acima, este mesmo século foi fecundo de idéias revolucionárias: trata-se da

Ilustração26. Esta deve ser entendida como um momento histórico – da cultura Ocidental –

onde o objetivo maior era a realização da emancipação humana que, por sua vez, só poderia

se realizar através de três elementos fundamentais: da universalidade, da individualidade e da

autonomia (Rouanet, 2003). Estes conceitos são a base do projeto da Ilustração e, assim,

fundamentais para entendemos a proposta civilizatória da modernidade.

O desenvolvimento da ciência se adequava cada vez mais aos problemas no âmbito da

produção, às necessidades da indústria. O ano de 1780 é, portanto, decisivo na história da

humanidade. “Ponto de partida” da revolução industrial este é o marco histórico onde se

observa uma multiplicação rápida de mercadorias e serviços. Somente nesta década é que se

revoluciona a produção e, conseqüentemente, as relações entre os homens27 (Hobsbawm,

2007).

26 É importante ressaltarmos aqui a distinção entre Ilustração e Iluminismo. A Ilustração – processo que se inicia no século XVI e tem o seu auge no século XVIII – deve ser entendida como um momento histórico específico de realização do projeto Iluninista, sendo este último caracterizado pela importância do homem como ser racional, responsável pela reflexão sobre si e sobre seu meio. Estas idéias marcaram definitivamente a modernidade, pois foram responsáveis por impulsionar duas grandes revoluções: a Revolução Industrial, na Inglaterra; e a Revolução Francesa. 27 Não foi por acaso que a Grã-Bretanha assumiu o protagonismo deste processo. É importante lembrar que já no século XVII a Inglaterra não tinha mais servidão. Embora as propriedades de terras fossem concentradas nas mãos de poucos, o que predominava era o arrendatário comercial médio e a mão de obra contratada. A partir da década de 1760 o que se observa são os empresários agrícolas e um grande proletariado rural. Foi a combinações destes fatores que possibilitou à Grã-Bretanhã o protagonismo na revolução industrial. Segundo Hobsbawn (2007), não foi nem o seu potencial comercial, tampouco a sua superioridade científica que possibilitou tal façanha. No que se refere ao avanço comercial e industrial, vários países – de Portugal à Rússia – estavam empenhados neste sentido, impulsionados pelas idéias da Ilustração. No que diz respeito ao desenvolvimento científico, a França tinha um papel de destaque na Europa. Nas ciências naturais estavam a frente dos ingleses e isto veio a se acentuar no período pós-Revolução Francesa.

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30

Segundo Hobsbawn (id.) as idéias iluministas não se tratam apenas de

questionamentos no âmbito político e social, mas também se relacionam ao progresso da

ciência, à centralidade da razão e à interação homem/natureza.

É significativo que os dois principais centros dessa ideologia fossem também os da dupla revolução, a França e a Inglaterra; embora de fato as ideais iluministas ganhassem uma voz corrente internacional mais ampla em suas formulações francesas (até mesmo quando fossem simplesmente versões galicistas de formulações britânicas). Um individualismo secular, racionalista e progressista dominava o pensamento “esclarecido”. Libertar o indivíduo das algemas que o agrilhoavam era o seu principal objetivo: do tradicionalismo ignorante da Idade Média, que ainda lançava sua sombra pelo mundo da superstição das igrejas (distintas da religião “racional” ou “natural”), da irracionalidade que dividia os homens em uma hierarquia de patentes mais baixas e mais altas de acordo com o nascimento ou algum critério irrelevante. [...] (Hobsbawn, 2007, p.41-42).

Neste momento – século XVIII – são formulados princípios genéricos, sob a lógica da

razão, que colocava o homem em condição de igualdade diante dos outros homens,

independente da sua origem, raça, etnia etc. A unidade da espécie aparece como uma das

condições para a realização da emancipação humana (Rouanet, 2003).

A ilustração, entendida como programa sócio-cultural da modernidade, contém uma

determinada concepção de razão: “[…]. A promessa da modernidade era […] racionalizar o

metabolismo sociedade/natureza através do controle racional da natureza e racionalizar a

interação social promovendo a emancipação dos homens” (Netto, 2007)28.

Segundo Coutinho (apud Netto, 1994) a razão moderna se ergue a partir da articulação

de três de suas categorias nucleares: o humanismo, o historicismo concreto e a razão dialética.

A primeira refere-se à teoria onde o homem se constitui pela sua própria e coletiva atividade.

A segunda categoria revela a dimensão ontologicamente histórica do mundo dos homens. E a

razão dialética “[...] refere, simultaneamente, uma determinada racionalidade objetiva

imanente ao processo da realidade e um sistema categorial capaz de reconstruir (ideal e

subjetivamente) esta processualidade” (p. 27).

A constituição da razão moderna é um processo imbricado na profunda socialização da sociedade que é comportada pela ordem burguesa: é o

28 Trechos da aula da disciplina “Questões de teoria social, cidadania e Serviço Social”, módulo I, ministrada pelo Prof. José Paulo Netto no dia 23 de março de 2007.

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31

desenvolvimento do capitalismo que, engendrando os fenômenos característicos e da urbanização e reclamando saberes necessários a um crescente controle da natureza, instaura o patamar histórico social na qual é possível apreender a especificidade do ser social [...] (Netto, 1994, p.31).

Este racionalismo, portanto, colocava em questão os dogmas e a moral baseada nas

tradições e na religião, suscitando, assim, a possibilidade real de os homens serem iguais, não

mais somente perante a Deus. A felicidade não estava mais atrelada a passagem para outro

mundo; não dependia mais do sacrifício dos homens, nem da misericórdia de Deus, mas da

capacidade do homem, através da sua atividade racional, de aumentar as possibilidade de

realizações econômicas, políticas, sociais e culturais29.

Se até então o que predominava eram as diferenças culturais, raciais, etc. e estas

diferenças serviam para justificar a exploração/dominação entre os homens, a partir da

ilustração o que se coloca é a insignificância destas diferenças diante de uma natureza humana

igualmente universal. Neste momento estão postas as condições para o reconhecimento do

homem enquanto ser genérico. A igualdade surge como um valor necessário a este novo

homem.

Rouanet (2003) aponta para a importância desta novidade, principalmente se levarmos

em conta as conseqüências práticas disto: a partir de então se torna possível a condenação de

quaisquer formas de preconceitos, sejam elas raciais, étnicas, de gênero ou de nacionalidade.

Embora este novo elemento possibilite pensarmos na igualdade formal entre os

homens, princípio este que será uma das bandeiras do liberalismo e das revoluções burguesas,

é inegável a importância deste novo conceito, principalmente se pensarmos que ele atribui ao

homem, enquanto ser genérico, a responsabilidade pelas mudanças na história; o homem

enquanto sujeito da história, independente de cor, religião, sexo, cultura etc. como afirma

Rouanet (2003):

29 É importante salientar que estas ideias não foram aceitas sem resistências, sendo estas expressas nas suas mais variadas formas. Não por acaso, segundo Escorsim Netto (2011), é neste momento que se identifica o surgimento do pensamento conservador, ou seja, este encontra-se geneticamente relacionado à conquista da hegemonia econômica e política pela burguesia (em substituição ao Estado feudal). Ainda segundo esta autora (Id.) a obra fundante do conservadorismo (de autoria de Burke) se constitui numa resposta imediata aos acontecimentos oriundos da Revolução Francesa. A crítica de Burke não se refere ao desenvolvimento capitalista, mas à participação ativa das massas nos processos de mudança da ordem social e a substituição das instituições. Isto significa que o pensamento conservador surge com o objetivo de negar as implicações sócio-culturais advindas da modernidade. “[...] Burke quer a continuidade do desenvolvimento econômico capitalista sem a ruptura com as instituições sociais pré-capitalista (o privilégio da família, as corporações, o protagonismo público temporal da Igreja, a hierarquia social cristalizada etc.)” (p. 45).

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32

O universalismo tinha a ver com a extensão e a abrangência do projeto civilizatório. Ele partia de postulados universalistas sobre a natureza humana – ela era idêntica em toda a parte e em todos os tempos; dirigia-se a todos os homens independente de raça, cor, religião, sexo, nação ou classe; e combatia todos os preconceitos geradores de guerra e de violência, todos os obstáculos à plena integração de todos os homens, como o racismo e o nacionalismo. Emancipar equivalia a universalizar, a dissolver os particularismos locais, removendo assim as causas dos conflitos entre os homens (p.97).

Embora se reconheça a importância destas mudanças, este processo não se deu sem

contradições. É fato que com a consolidação da sociedade burguesa o projeto da modernidade

foi perdendo densidade e se distanciando do seu objetivo principal: a emancipação humana. É

importante perceber, portanto, como observa Horkheimer, (apud Netto, 1994) que existe uma

contraditoriedade entre a razão moderna e a conjuntura sócio-histórica que possibilitou a sua

construção: o processo global da revolução burguesa.

Observa-se assim a tendência – na sociabilidade burguesa – em se distanciar dos

conteúdos da modernidade que questionavam as contradições do desenvolvimento capitalista

e, ao mesmo tempo, enfatizar aqueles aspectos funcionais a este modo de produção. Este

processo pode ser evidenciado na ênfase à razão analítica, como afirma Netto (1994)

[...] o crescente controle da natureza – implicando uma prática (social) basicamente manipuladora e instrumental – revela-se funcional ao movimento do capital e aquela racionalidade se identifica com a razão tout court. Mas a racionalização do intercâmbio sociedade/natureza não conduziu (nem conduz) à liberação e à autonomia dos indivíduos. Mais ainda: parodoxalmente, a hipertofria da razão analítica implica a redução do espaço da racionalidade. Todos os níveis da realidade social que escapam à sua modalidade calculadora, ordenadora e controladora são remetidos à irratio . O que não pode ser coberto pelos procedimentos analíticos torna-se território da irracionalidade. [...] (p.40).

Não é por acaso que as duas categorias nucleares da razão moderna – o historicismo

concreto e a razão dialética – são ignoradas pelo capitalismo. Ambas apontam para o caráter

contraditório, e por isto transitório, desta forma de sociabilidade. Além disto, possibilitam um

quadro político de questionamento da ordem burguesa.

[...] A ordem burguesa, propiciadora da emersão da razão moderna, a partir de um dado patamar de desenvolvimento termina por incompatibilizar-se com a sua integralidade: por sua lógica imanente, deve prosseguir

Page 44: Tese Paula Bonfim (1)

33

estimulando o envolver da razão analítica (a intelecção), mas deve, igualmente, obstaculizar os desdobramentos da sua superação crítica (a dialética). [...] (Netto, 1994, p.32).

Na modernidade, além do princípio da racionalidade e da universalidade, inaugura-se

o princípio do Individualismo. Individualismo aqui entendido como reconhecimento e

valorização da dimensão individual do homem. Lembremos que na comunidade primitiva não

havia espaço para o desenvolvimento da personalidade, pois indivíduo e coletivo se

identificavam, ou seja, a individualidade se dissolvia na coletividade. Já na Grécia antiga, a

dimensão privada era claramente subordinada ao público, as escolhas individuais deveriam

corresponder ao estabelecido pelos cidadãos30 na polis. Surpreendentemente, embora a Grécia

seja considerada o berço da democracia, as diferenças individuais não eram toleradas31

(Vázquez, 2004).

Em função disto, só é possível falarmos em indivíduo com o advento da modernidade.

O homem passa a ser visto como um ser que, embora seja parte constitutiva da sua

comunidade32, independe dela. Ou seja, o homem pode direcionar sua vida independente dos

marcos geográficos, éticos, religiosos e sócio/culturais em que está inserido. Suas escolhas

podem satisfazer aos seus desejos e necessidades, diferentemente do estabelecido pela

coletividade. Este elemento, “[...] permite o desdobramento múltiplo e pluralista da

individualidade” (Rouanet, 2003, p. 35).

Isto nos leva a reconhecer o pluralismo como um fenômeno do mundo moderno, mais

especificamente, segundo Coutinho (1991), do mundo burguês. Pensadores como Hobbes,

Maquiavel e, sobretudo, Locke valorizam a noção de indivíduo, pois acreditam que este tem

direitos naturais inalienáveis em face da sociedade. A soma de interesses privados é o que

possibilita a vida em comunidade. Em virtude disto, o conflito é avaliado como algo positivo

e as diferentes opiniões devem ser valorizadas.

Assim, de acordo com Coutinho (1991), a partir do pensamento liberal podemos

identificar quatro valores pluralistas: a idéia da positividade do conflito; da tolerância: da

divisão de poderes e do direito das minorias.

30 Na Grécia antiga a cidadania era exercida pelos homens livres. Não eram cidadãos: mulheres, escravos e estrangeiros. 31 Coutinho (1991) nos lembra do clássico episódio grego onde Sócrates foi condenado à morte por discordar da religião estabelecida na cidade. 32 Pois sofre as influências das tradições, dos princípios, dos valores do seu povo.

Page 45: Tese Paula Bonfim (1)

34

O individualismo Iluminista não desconhece o coletivo, os interesses de grupos

específicos, mas, segundo Rouanet (2003) em última análise, quem são portadores de direitos

são os indivíduos não as coletividades.

Dizer que todo indivíduo é social é dizer que sua libertação passa por um processo social de individuação, pela qual os indivíduos saem de seus guetos privatistas e se comunicam com outros indivíduos, reconhecendo-os como indivíduos e sendo confirmados em sua individualidade. [...] Pois para o Iluminismo a dignidade mais alta do indivíduo está na sua capacidade de passar por descentramentos sucessivos, superando, se assim o desejar, vínculos que não foram escolhidos por sua razão – a família, o grupo, a cultura. [...] Atribuir valor moral ao episódio contigente da natalidade é um traço da ética feudal, contra a qual se insurgiu a Ilustração e se insere o Iluminismo (Rouanet, 2003, p. 35, 36).

É inegável a relação destes valores com o desenvolvimento e consolidação do

capitalismo e, conseqüentemente, do individualismo burguês. Entretanto, tais valores

contribuíram de forma significativa para a expansão da individualidade humana. É só

lembrarmos que é o reconhecimento deste princípio que possibilita ao homem as mais

diferentes formas de expressão, sejam elas artísticas, ideológicas, etc.

Todas estas mudanças, gestadas pelo advento da modernidade, foram fundamentais

para se construir uma nova cultura, com novas necessidades, novos valores33 e a possibilidade

de realização ética como nos indica Rouanet (Id.)

[...] A ilustração acaba de laicizar a vida, abrindo espaço para um humanismo sem Deus, liberto da hipoteca de uma natureza humana corrompida e dos pavores de incertezas da predestinação. Exorcizada a religião, as condições estão criadas para a autonomização das diferentes “esferas de valor”, que antes aderiam simbioticamente ao universo religioso: a ciência, a moral e a arte (Rouanet, 2003, p.132).

33 Esta breve análise sobre o advento da modernidade exemplifica bem como as condições objetivas de um determinado momento histórico possibilitam a gênese dos valores e o papel fundamental destes no processo de desenvolvimento social dos homens. Aqui podemos perceber como as condições objetivas deste momento histórico possibilitaram aos homens fazer escolhas na direção do humano-genérico. É importante recordarmos que este é um processo dialético, já que, os valores se constituem como momentos sínteses entre possibilidades e necessidades historicamente postas, podendo contribuir no desdobramento de mudanças significativas em determinadas formações sociais. Podemos observar no avanço da generalidade humana o surgimento de valores como, por exemplo, a igualdade, a autonomia, a universalidade, o pluralismo, a tolerância, dentre outros.

Page 46: Tese Paula Bonfim (1)

35

No entanto, como já sinalizamos, as conquistas oriundas da modernidade se deparam

com as contradições colocadas pelo desenvolvimento capitalista. Segundo Marx (apud

Berman, 2007), todas as possibilidades criadas pela dinâmica deste novo modo de produção,

sejam elas materiais ou espirituais, não poderão ser vivenciadas de forma efetiva pela grande

maioria dos membros da sociedade. Ou seja, as contradições inerentes ao modo de produção

capitalista e aquela mais fundamental – a produção socializada e a apropriação privada –

fará com que a sociedade burguesa restrinja cada vez mais as mais ricas possibilidades postas

pela modernidade. Pela primeira vez na historia da humanidade estão colocadas as condições

para acabar, por exemplo, com a pobreza. No entanto, o que se observa é um crescimento do

número de trabalhadores sem acesso aos bens e serviços produzidos coletivamente.

A idéia, em Marx, de que na modernidade “Tudo que é sólido desmancha no ar”

expressa a sua essência contraditória: a capacidade criadora e autodestruidora do modo de

produzir a vida é uma constante. Tudo que é produzido, de bens materiais à bens espirituais,

está condenado à destruição e será substituído por outras coisas que, da mesma forma,

desaparecerão no ar (Berman, 2007).

A modernidade tal como foi entendida por Marx (apud Berman, id.) é essencialmente

dinâmica, cheia de estímulos e potencialidades contraditórias. Ao mesmo tempo em que se

colocam as condições para revolucionar a produção e os meios de vida, se põe também a sua

radical negação. A modernidade é impulsionada pela pressão da vida econômica, pela

incansável busca pelo progresso, pela expansão dos desejos humanos, pela necessidade de

desenvolvimento das individualidades, causando concomitantemente um turbilhão de

emoções, angústias, medos e a sensação de um total niilismo.

Para Marx, diferentemente de Nietzsche e Dostoievski34, as causas do niilismo

moderno estão amparadas nas concretas relações econômicas do mundo burguês: um mundo

onde os valores humanos estão relacionados à capacidade dos indivíduos de possuir bens e de

gerar lucros. De acordo com Berman, “Marx se mostra chocado com a destrutiva banalidade

que o niilismo burguês imprime à vida, porém acredita que essa brutalidade possui uma

tendência recôndita a se autotranscender. A fonte dessa tendência é o paradoxal princípio

“sem princípios” da livre troca. [...]” (p.137).

Berman (id.), referenciando Marx, afirma: 34 Segundo Berman (2007), Nietzsche e Dostoievski atribuem as causas do niilismo moderno ao racionalismo, à ciência e a morte de Deus.

Page 47: Tese Paula Bonfim (1)

36

O problema do capitalismo é que, aqui como em qualquer outra parte, ele destrói as possibilidades humanas por eles criadas. Estimula, ou melhor, força o autodesenvolvimento de todos, mas as pessoas só podem desenvolver-se de maneira restrita e distorcida. As disponibilidades, impulsos e talentos que o mercado pode aproveitar são pressionados (quase sempre prematuramente) na direção do desenvolvimento e sugados até a exaustão: tudo o mais, em nós, tudo o mais que não é atraente para o mercado é reprimido de maneira drástica, ou se deteriora por falta de uso, ou nunca tem uma chance real de se manifestar (p. 119 e 120).

É analisando estas contradições, inerentes ao modo de produção capitalista, que Marx

aponta a inviabilidade da emancipação humana no âmbito da sociedade burguesa. Em sua

obra A Questão Judaica, ele nos faz refletir como os direitos conquistados com a derrubada

do Antigo Regime – igualdade, liberdade, segurança e propriedade – se restringem ao homem

na sua dimensão individual, expressos no individualismo burguês. A liberdade do homem se

apresenta como “uma mônada isolada, dobrada sobre si mesma” (Marx, 2010, p.35). Marx

(Id.) nos chama a atenção para o fato de que a emancipação política não implica em

emancipação humana. A revolução burguesa, ao colocar abaixo as estruturas da sociedade

feudal, possibilitou as condições ideais para a consolidação e desenvolvimento do modo de

produção capitalista. A liberdade aparece como sinônimo do direito à propriedade privada e é

neste sentido que se torna necessário o direito à segurança. Este último visa a conservação dos

direitos individuais, da propriedade privada e da sociedade burguesa.

Além da liberdade, outros princípios – postos pela Ilustração – encontraram obstáculos

para a sua realização. O princípio da autonomia é um deles. Se retomarmos a contradição

fundamental do modo de produção capitalista – a produção socializada e a apropriação

privada – veremos a inviabilidade de autonomia econômica por parte da massa de

trabalhadores assalariados. A dinâmica da produção capitalista produz as mais diversas

formas de desigualdades: de renda, de acesso à educação, à saúde, ao trabalho, à cultura, etc.35

Se pensarmos também na autonomia intelectual, ideal mais precioso do iluminismo,

esta não pode ser pensada independente das condições postas pela sociabilidade burguesa.

35 Netto (2004a) nos chama a atenção para o fato que “[...] tanto mais a sociedade se revelava capaz de progressivamente produzir bens e serviços, tanto mais aumentava o contingente de seus membros que, além de não ter acesso efetivo a tais bens e serviços, viam-se despossuídos de condições materiais de vida de que dispunham anteriormente” (p. 42).

Page 48: Tese Paula Bonfim (1)

37

Não podemos desconsiderar as condições econômicas e educacionais, além das ideologias

propagadas pela mídia e pelo Estado.

No que se refere à autonomia política, uma das maiores conquistas da ilustração, esta,

segundo Marx (2010) restringe-se a uma liberdade que possa garantir a inviolabilidade da

propriedade privada.

Estas tensões em torno dos principais valores da modernidade colocaram em questão a

capacidade/possibilidade do projeto burguês em realizar tais valores. Como objetivar a

igualdade, por exemplo, num tipo de sociedade que tem na sua base fundamental a exploração

que gera diversas formas de desigualdade? Como pensar em autonomia, seja ela de qual tipo,

se as relações sociais burguesas, a partir de um determinado momento histórico, só

conseguem se sustentar tendo como base a ideologia? (Lukács, 1992).

É justamente o acirramento das contradições próprias do capitalismo e, em decorrência

disto, a impossibilidade de realização plena destes valores, que faz a burguesia passar de

classe revolucionária a classe conservadora, utilizando-se de um aparato ideo-político para

garantir a sua hegemonia.

Assim, afirma Tonet (2002)

Este é exatamente o fundamento da decadência desta forma de sociabilidade. Uma ordem social que, tendo alcançado a possibilidade de criar riquezas capazes de satisfazer as necessidades de todos, vê-se impossibilitada de atender essa exigência. E que, para manter-se em funcionamento, precisa impedir, de maneira cada vez mais aberta e brutal, o acesso da maior parte da humanidade à riqueza social. Em vez de impulsionar a humanidade toda no sentido de uma elevação, cada vez mais ampla e profunda, do seu padrão de ser (ontológica e não apenas material e empiricamente entendido), o que se vê é uma imensa e crescente degradação da vida humana (p.15).

A história nos mostra que é justamente a partir de 1848 que a burguesia abandona o

projeto primordial da modernidade: a emancipação humana. Esta classe já não tem mais

como efetivar, no plano prático, os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, lemas da

Revolução Francesa36. A igualdade, desde então, já se coloca restrita ao plano jurídico, ou

36 O primeiro documento que expressou as exigências da Revolução Francesa – a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 – já aponta para a contradição fundamental do projeto burguês. Segundo Hobsbawn (2007) este documento se coloca claramente contra a estrutura da sociedade feudal e os privilégios da nobreza, mas de nenhuma forma a favor da democracia e da igualdade. Isto se evidencia na defesa da propriedade privada como um direito natural, sagrado e inalienável. “[...] Os homens eram iguais perante a lei e

Page 49: Tese Paula Bonfim (1)

38

seja, os homens, independente da nacionalidade, etnia, raça e sexo, nascem livres e iguais.

Esta idéia, central no jusnaturalismo moderno, veio contribui para encobrir o fato de que a

igualdade e a liberdade não são naturais aos homens, mas históricas, construídas por estes

através das suas relações sociais.

É neste momento histórico, onde as contradições do modo de produção capitalista

tornam-se evidentes, que a burguesia passa a construir estratégias que possam camuflar tais

contradições e manter sua hegemonia.

Lukács (1992, p.112) nos sinaliza para a “tendência geral da decadência ideológica da

burguesia”, ou seja, a recusa dos ideólogos burgueses no “sentido de compreender as

verdadeiras forças motrizes da sociedade, sem temor das contradições que pudessem ser

esclarecidas”. Esta fuga, para este autor, se manifesta através de uma “pseudo-história

construída a bel-prazer, interpretada superficialmente, deformada em sentido subjetivista e

místico” (id.).

Segundo este autor (Id.), a decadência ideológica da burguesia se inicia quando a luta

de classe se coloca no centro da história. O que passa a prevalecer a partir de 1848 não é o

compromisso com a verdade, mas a utilidade ou o prejuízo das descobertas ao capital.

É por esta razão que Lukács (1992) afirma que a evasão da realidade é uma

característica fundamental deste período. Outra tendência, apontada pelo autor, é a

especialização do conhecimento. A sociologia surge como a nova ciência da época da

decadência. Ela se coloca como uma disciplina autônoma e se propõe a estudar o

desenvolvimento social dissociado da economia.

Em seu livro, El asalto a la Razón, Lúkács (1968) analisa esta tendência geral da

decadência ideológica da burguesia e o desenvolvimento, na Inglaterra e França, da sociologia

como disciplina independente, onde a compreensão dos problemas sociais dispensa sua base

econômica. Nesta sociologia, ignora-se o caráter contraditório do ser social e a possibilidade

de criticar os fundamentos da sociedade capitalista. O autor também analisa o surgimento da

economia vulgar e o seu caráter subjetivo, o fim da economia burguesa no seu sentido

clássico.

Lukács (1992) afirma que no período clássico da ideologia burguesa, os intelectuais da

burguesia formulavam respostas honestas e científicas, embora muitas vezes incompletas e

as profissões estavam igualmente abertas; mas, se a corrida começasse sem handicaps, era igualmente entendido como fato consumado que os corredores não terminariam juntos. [...]” (p.91).

Page 50: Tese Paula Bonfim (1)

39

contraditórias. Enquanto que no período da decadência observa-se uma fuga “[…]

covardemente da expressão da realidade e mascara a fuga mediante o recurso ao “espírito

científico objetivo” ou a ornamentos românticos. Em ambos os casos, é essencialmente

acrítica, não vai além da superfície dos fenômenos, permanece na imediaticidade e toma ao

mesmo tempo migalhas contraditórias de pensamento, unidas pelo laço do ecletismo. […]”

(p.120).

Segundo Coutinho (1972), podemos observar duas etapas principais na história da

filosofia burguesa. A primeira caracteriza-se num “[...] movimento progressista, ascendente,

orientado no sentido da elaboração de uma racionalidade humanista e dialética. A segunda

[...] é assinalada por uma progressiva decadência, pelo abandono mais ou menos completo das

conquistas do período anterior, algumas definitivas para a humanidade: as categorias do

humanismo, do historicismo e da Razão dialética” (p.97).

Esta mudança é fundamental para entendermos o porquê, a partir de então, a

objetivação de uma ética humanista, com bases nos princípios emancipatórios, fica cada vez

mais distante. Segundo Coutinho (1972), o saber verdadeiro da filosofia da decadência,

limita-se às ciências particulares, como a lógica formal, distanciando-se cada vez mais de

disciplinas como a ética e a ontologia, sendo estas declaradas irracionais.

É fundamental sinalizarmos aqui para a relação direta entre este período da decadência

ideológica da burguesia e o pensamento conservador especialmente porque ele irá se esforçar

para a reprodução de alguns valores fundamentais à manutenção da ordem social burguesa.

Se o projeto conservador nas suas origens era antiburguês e objetivava a restauração37,

a partir de 1848 ele altera a sua funcionalidade, ou seja, diante da irreversibilidade das

mudanças geradas pelo capitalismo e com a impossibilidade da burguesia efetivar as

promessas da modernidade, o pensamento conservador passa a defender os interesses da nova

classe social hegemônica, tornando-se contrarevolucionário. A sua função passa a ser, a partir

de então, contribuir para a manutenção da ordem burguesa, contrapondo-se ao novo

protagonista revolucionário: a classe trabalhadora (Escorsim Netto, 2011).

O enfrentamento das crises do capitalismo e o combate à ameaça revolucionária

passam a ser as principais preocupações do pensamento conservador.

37 Conferir nota 29

Page 51: Tese Paula Bonfim (1)

40

A recusa às transformações desencadeadas pelas revoluções burguesas expressam,

portanto, a negação dos valores da modernidade, já que estes contribuem para por fim à “[...]

autoridade fundada na tradição, o poder legitimado pela religião institucional (Igreja), a

desigualdade jurídica dos homens, a administração personalizada da justiça, a lei assentada

na moralidade e a subordinação do indivíduo à sociedade” (Escorsim Netto, 2011, p.60,

grifos do autor).

Neste sentido, é possível segundo a autora (Id.) identificar alguns valores presentes na

argumentação conservadora: 1) só são legítimas a autoridade e a liberdade fundadas na

tradição; 2) a liberdade deve ser sempre uma liberdade restrita; 3) a democracia é perigosa e

destrutiva; 4) a laicização é deletéria; 5) a razão é destrutiva e inepta para organizar a vida

social; 6) a desigualdade é necessária e natural.38

Além destas características, Escorsim Netto (2011) afirma que a teoria da autoridade,

própria do pensamento conservador, contém em si a ideia de que

[...] o homem precisa ser tutelado, e não governado por uma autoridade e um poder racionais [...]. O pensamento conservador opera uma “fundamentação (teológico)-naturalista e personalista da autoridade” que deve proceder a esta tutela [...] (Escorsim Netto, 2011, p.65).

Para a reprodução destes valores é fundamental, portanto, a presença de uma das

principais instituições para os conservadores: a família. Base moral da sociedade ela é

responsável, juntamente com outras instituições, pela garantia da tradição, combate às

tendências questionadoras da ordem estabelecida, possibilitando assim a harmonia da

sociedade.

Não por acaso, Durkheim é um dos pensadores que melhor representa o pensamento

conservador do pós-48. A lógica conservadora durkheimiana não ignora as tensões causadas

pelas contradições da sociedade capitalista e é justamente para intervir nestas tensões que ele

sugere a saída na direção da coesão social. Neste sentido, a função da moral é determinante

para este autor, como afirma Netto (1996a)

38 Segundo Escorsim Netto (2011) é possível identificar estes traços em todo o período clássico do pensamento conservador, sendo o componente clerical o único elemento que perde importância no pós-48. Além disto, não se pode esquecer a mudança referente à funcionalidade deste: ele deixa de ser anti-burguês e passa a combater o novo sujeito revolucionário, a classe trabalhadora.

Page 52: Tese Paula Bonfim (1)

41

O nervo da reflexão durkheimiana pode corretamente ser localizado na questão do controle social – e é então que a sua modalidade de psicologização das relações sociais aparece inteira: a essência de um tal controle, efetivo e operante, encontra-se na esfera da moral. [...] Durkheim insere o seu moralismo [...] por um lado, com o mais direto apelo à naturalização da sociedade, considera eternos e a-históricos certos mecanismos básicos que determinam a estratificação social que tem sua culminação com a sociedade burguesa; [...]. A função [...] da moral, compulsoriamente constrangedora, é justamente garantir a vigência dos comportamentos “normais” e, universalizada, sancionar a classificação da sua variação como desvio sociopático (p. 44, grifos do autor).

A moral em Durkeim (1984), portanto, deve estar acima das vontades individuais. Contém a

ideia de dever, autoridade e disciplina e, por isto, este autor (Id.) destaca o papel da família e

da escola na garantia da harmonia social39.

[...] a moral é um sistema de regras de acção que predeterminam a conduta. Elas apontam a forma como devemos agir bem e obedecer bem” [...]. Aplicai a lei geral da moral às diferentes relações domésticas e terei a moral familiar, aplicai-a às diferentes relações políticas e terei a moral cívica [...]. Não existem deveres, mas sim um dever único, uma regra única que nos serveriria de directriz na vida. “[...] o papel da moral consiste, primeiramente, em determinar a conduta, em fixá-la, em subtraí-la ao arbítrio individual (Durkheim, 1984, p. 122 e 123).

Vimos, portanto, como o desenvolvimento da sociedade burguesa se vincula

inicialmente aos valores próprios da modernidade e, por não conseguir efetivá-los, passa a

afirmá-los de forma abstrata ou mesmo a realizá-los de forma limitada e distorcida.

Além disto, é necessário sinalizarmos para o fato de que a própria dinâmica do

desenvolvimento burguês, como o seu objetivo principal, a busca incessante pelo lucro e a

tendência à mercantilização de todos os âmbitos da vida social, gera valores necessários à

reprodução deste sistema: um individualismo exacerbado, o culto ao Ter, a ênfase na lógica

utilitarista e pragmática – inclusive nas relações entre os homens –, a naturalização das

desigualdades e com isto o preconceito de classe, de raça, de etnia e de gênero. Além disto,

para a manutenção desta sociabilidade é necessário valorizar as práticas autoritárias, a

disciplina, a harmonia social, a hierarquia e a coesão social. Esta é a estrutura valorativa da

39 Estes elementos, presentes na sociologia de Durkheim, nos ajuda a entender o porquê desta perspectiva ter sido uma referência teórica importante na gênese do Serviço Social. Aprofundaremos esta questão no próximo Capítulo.

Page 53: Tese Paula Bonfim (1)

42

sociedade burguesa; ela, ao mesmo tempo em que é imprescindível à reprodução deste modo

de produção, coloca os obstáculos ao desenvolvimento das ricas potencialidades do ser

humano.

A reprodução destes valores está essencialmente relacionada a um processo típico da

sociedade burguesa: a reificação das relações sociais. Neste sentido, é fundamental

indicarmos os aspectos que consideramos essenciais neste processo. É o que faremos no item

a seguir.

Page 54: Tese Paula Bonfim (1)

43

1.3 DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA E REIFICAÇÃO DAS RELAÇÕES

SOCIAIS

Neste momento, tentaremos compreender os obstáculos colocados ao desenvolvimento

do homem enquanto ser humano-genérico, a partir da ascensão e desenvolvimento do

capitalismo. Assim, é imprescindível entendermos a forma específica da alienação que se

desenvolve a partir das relações sociais burguesas.

É na análise da mercadoria, segundo Marx, “célula econômica da sociedade burguesa”

– que se colocam duas questões centrais: o trabalho enquanto categoria ontológica do ser

social e a particularidade econômico social da sociedade burguesa.

Netto (1981) nos chama atenção para o fato de que a alienação não é um fenômeno

exclusivo da sociedade burguesa. Esta é resultado da atividade prática do homem e está

presente em todas as sociedades onde se observa um estranhamento entre sujeito e objeto do

trabalho, ou seja,

No trabalho alienado, o trabalhador não se realiza e não se reconhece no seu produto; inversamente, o que ocorre é que a realização do trabalho, a produção, implica a sua perdição, a sua desposessão: o produto do trabalho se lhe aparece como algo alheio, autônomo. […] (Netto, 1981, p.57).

Neste sentido, é necessário situar historicamente as relações de produções de uma

sociedade para entender as formas de alienações existentes. Em função disto, Mészáros

(2006) nos mostra que nas sociedades feudais a propriedade da terra assume uma forma

particular de alienação. Senhores feudais e propriedade agrária eram considerados um corpo

único sob a justificativa de uma ascendência divina, estabelecendo assim uma legalidade

(transcendental) ao monopólio da terra. Nesta sociedade observa-se uma individuação e

personificação da propriedade agrária, assim como a relação entre senhor e servo aparece

como estritamente política.

É por esta razão que Netto (1981) afirma que nos Manuscritos Econômicos Filosóficos

de 1844 a análise de Marx sobre a alienação apresenta-se de forma muito ampla. As reflexões

Page 55: Tese Paula Bonfim (1)

44

presentes neste texto, por si mesmas, não fornecem elementos para analisar o capitalismo

maduro e tardio40.

[…] No gênero, alienação, há que distinguir espécies; o conceito de alienação, em si mesmo, cobre fenômenos variados em épocas histórico-sociais diferentes; há que especificá-los – ou, então, o preço da generalidade abstrata deve ser pago a qualquer custo. […]. O fetichismo implica a alienação, realiza uma alienação determinada e não opera compulsoriamente a evicção de formas alienadas mais arcaicas. O que instaura, entretanto, é uma forma nova e inédita que a alienação adquire na sociedade burguesa constituída, assim entendidas as formações econômico-sociais embasadas no modo de produção capitalista dominante, consolidado e desenvolvido (Netto, 1981, p. 74 e 75).

Na mesma direção que Netto (1981), Mészáros (2006) afirma que para entendermos a

problemática da alienação é necessário considerar os seguintes conceitos: “ atividade

produtiva”, “ divisão do trabalho” , “ intercâmbio” e “ propriedade privada” , sendo que a

única “mediação” deste complexo que deve ser considerada absoluta é a “atividade

produtiva”, pois sem esta não seria possível a existência do humano. As outras “mediações”,

chamadas pelo autor de mediações de segunda ordem – “divisão do trabalho” “intercâmbio”

e “propriedade privada” – são históricas e responsáveis pelo processo de estranhamento do

homem com relação ao produto do seu trabalho. “Tais mediações [...] se interpõe entre o

homem e sua atividade e o impedem de se realizar em seu trabalho, no exercício de suas

capacidades produtivas (criativas), e na apropriação humana dos produtos de sua atividade”

(Mézáros, 2006, p.78).

O que interessa neste momento é entender a forma específica de alienação na

sociedade burguesa: o fetichismo. A produção de mercadorias na sociedade capitalista ao

mesmo tempo em que evidencia o caráter social do trabalho torna o seu produto a-social. O

homem, nestas relações, não aparece como produtor de toda a riqueza material e espiritual,

mas aparece externo a este processo. As relações sociais entre pessoas se convertem em

relações sociais entre coisas.

40 Segundo Netto (1981) é correto afirmar que a temática da alienação, presente nos Manuscricos Econômicos Filosóficos de 1844, aparece como resultado do processo de objetivação/exteriorização que se dá através do trabalho. Entretanto, neste mesmo texto, também contém uma aproximação inicial à questão do fetichismo, ou seja, a forma específica de alienação na sociedade capitalista. Para ele, a concepção marxiana do fetichismo supõe uma teoria da alienação. Entretanto, é só a partir dos textos de 1857 e 1858 que se pode pensar, integralmente, a problemática do fetichismo e da reificação, ou seja, as formas particulares de alienação na sociedade capitalista.

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45

Afirma Netto (1981),

[…] para penetrar a factualidade que o fetichismo põe, a teoria deve recuperar a processualidade histórica real. Ou seja: é-lhe indispensável tomar as formas sociais estabelecidas como produtos históricos. Ora, é exatamente em sentido inverso que operam as manifestações sociais fetichizadas: coagulando na factualidade ds objetivações do ser social, coisificando-as, tendem a diluir as suas particularidades históricas numa eternização genérica. […] (p.43).

No sistema capitalista todos os âmbitos da vida social são atravessados por seu caráter

mercantil; desde a força de trabalho e o seu produto até as relações entre os homens. Segundo

Ianni (1988), as formas de consciência se expressam de maneira, muitas vezes, distorcida,

incompleta e ideologizada.

Estas relações impedem, portanto, o homem de ter consciência da sua genericidade, ou

seja, o fato de ele não reconhecer o produto de seu trabalho como parte de uma produção

coletiva que possibilita a engrenagem da vida material e espiritual, o impede de ter

consciência do “ser genérico” que é, ou melhor, um ser que tem consciência da espécie a que

pertence.

A atividade humana é alienada justamente quando se estabelece uma separação ou

mesmo uma oposição entre “meios” e “fim”, entre “vida pública” e “vida privada”, entre

“pensar” e “fazer”, entre “ter” e ser”. Observa-se portanto uma prevalência dos “interesses

privados”, do “ter” e do “pensar” em relação à “vida pública”, ao “ser” e ao “fazer”.

(Mészáros, Id.).

Com a reificação das relações sociais fica cada vez mais difícil o homem ter

consciência da sua natureza humana. Esta é confundida com o culto ao indivíduo, com a

satisfação das necessidades privadas, assim, como afirma Mészáros (2006), o homem tende a

ficar reduzido à sua natureza animal.

“A atividade produtiva na forma dominada pelo isolamento capitalista – em que “os homens produzem como átomos dispersos sem consciência de sua espécie”- não pode realizar adequadamente a função de mediação entre o homem e a natureza, porque “reifica” o homem e suas relações e o reduz ao estado de natureza animal. Em lugar da “consciência da espécie” do homem, encontramos o culto da privacidade e uma idealização do indivíduo abstrato. Assim, identificando a essência com a mera individualidade, a natureza biológica do homem é confundida com a sua própria natureza, especificamente humana. Pois a mera individualidade exige apenas meios para a sua subsistência, mas não formas especificamente humanas –

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46

humanamente naturais e naturalmente humanas – isto é sociais – de auto realização, as quais são ao mesmo tempo manifestações adequadas da atividade vital de [...] um ser genérico (Mézáros, 2006, p.80).

Isto significa que sob as leis da sociedade capitalista, considerando a “divisão do

trabalho”, o “intercâmbio” e “propriedade privada” o homem fica subordinado às

relações econômicas, à produção de mercadorias destinada à sustentação deste sistema. Aqui

o desenvolvimento das potencialidades humanas fica subordinado à lógica do lucro.

O trabalho enquanto atividade produtiva não possibilita a realização do homem, pois

as mediações que se colocam a partir da propriedade privada, divisão do trabalho e do

intercâmbio capitalista não permitem que isto aconteça. O trabalho assalariado aparece ao

homem como fardo, que lhe é imposto como forma de satisfazer suas necessidades de

sobrevivência. Neste sentido, trabalho não é vida, não é criação, não se coloca como base de

toda a riqueza produzida, seja para satisfazer as necessidades materiais ou espirituais do

homem. É assim que Marx (2008) explica a alienação da vida, através do estranhamento que

se estabelece pelo trabalho e do produto deste na relação homem/natureza e homem/homem.

Desta forma, só é possível superar a alienação rejeitando tais mediações.

Como já foi sinalizado, é na sociedade capitalista que a alienação encontra as bases

para se tornar universal. Mas é importante salientarmos que esta também pode ser

evidenciada, de forma parcial, nas sociedades feudais, pois a terra era estranhada pelo homem

em geral, ou seja, o domínio da terra por uns poucos senhores feudais era legitimada por

diferenças “naturais”, por uma ascendência divina e, neste sentido, a terra se apresentava

como um poder alheio à maioria dos homens.

Os críticos da sociedade feudal trouxeram a tona um novo conceito de homem e, a

partir disto, colocaram em discussão a necessidade da divisão da terra, baseados no princípio

da igualdade. Colocaram em questão o dogma da inalienabilidade da terra e da ascendência

divina, criando as condições para a superação do fetiche da sociedade feudal.

No entanto, a crítica da burguesia às relações sociais feudais não propõe acabar com a

alienação, pois o princípio da igualdade que se coloca com o liberalismo não se realiza na

sociedade burguesa. Nesta, a igualdade se coloca como direito de posse.

Desta forma, percebe-se que com a transição do modo de produção feudal para o

modo de produção capitalista supera-se o velho fetichismo e se coloca um novo: o fetiche da

mercadoria. E a alienação que era parcial (alienação da terra) se torna universal (alienação da

vida) como afirma Mészáros (2006)

Page 58: Tese Paula Bonfim (1)

47

Nesta evolução da parcialidade para a universalidade, da personificação para a impessoalização, das limitações e mediações políticas para a liberdade e imediação econômica, a economia política gradualmente supera o velho fetichismo e formula claramente as condições de uma alienação sem obstáculos. Assim, a evolução da parcialidade política para a universalidade econômica significa que a alienação particular, ou “específica”, é transformada em uma alienação universal (p.127).

Para os economistas políticos a propriedade privada, a divisão do trabalho e o

intercâmbio são condições inerentes à uma sociedade civilizada, naturais ao desenvolvimento

da humanidade. A questão que se apresenta aqui é uma identificação entre a sociabilidade do

trabalho – como condição ontológica para o desenvolvimento do ser genérico – e uma forma

histórica de produzir a vida: o modo de produção capitalista. Assim, Marx (apud Mészáros,

2006) desconstrói a idéia da impossibilidade de acabar com a alienação, demonstrando que

esta é produto histórico, próprio de uma sociedade onde as relações sociais se apresentam

como relações entre coisas, onde o trabalhador não é visto como ser humano, mas visto como

portador da força de trabalho, uma mercadoria como outra qualquer41.

Assim, na sociedade capitalista, a alienação se estabelece através do trabalho

assalariado, e, desta forma, submete o desenvolvimento do homem a tais condições. Como já

foi sinalizado, a personalidade do indivíduo, ou seja, os traços mais íntimos da

individualidade, não é algo fixo e dado a priori. O homem para Marx (apud Meszáros, 2006)

não é bom nem mau por natureza, ou seja, as complexas relações estabelecidas a partir da

produção da vida material criam as condições para o desenvolvimento das potencialidades

humanas ou não. Isto significa negar a afirmação dos economistas políticos de que o interesse

privado, o egoísmo, fazem parte da natureza humana e que isto permite - através da troca e a

propriedade privada – o desenvolvimento da civilização.

Esta reflexão nos possibilita entender como o trabalho alienado se coloca como um

obstáculo à realização do homem tanto no que se refere ao reino da necessidade quanto ao

reino da liberdade. Esta é aqui entendida não como algo absoluto, transcendental, mas como

capacidade humana de criar alternativas, de possibilitar ao homem, cada vez mais, escolhas

conscientes que leve ao enriquecimento do ser humano enquanto ser genérico.

41 Embora a força de trabalho, na sociedade capitalista, seja tratada como uma mercadoria qualquer, é necessário lembrarmos que a força de trabalho é a única mercadoria que produz valor.

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48

Isto significa afirmar que, segundo Marx (apud Mészáros, 2006), a liberdade só pode

se realizar na relação homem/natureza e homem/homem, e não como se estabelece na

perspectiva teológica onde o homem deve se libertar da sua “natureza animal”. A natureza

nesta perspectiva aparece como um obstáculo e não como condição fundamental para a

realização da liberdade.

[…] Com efeito, é nessa alternativa que aparece, pela primeira vez, de forma claramente delineada, o fenômeno da liberdade, que é completamente estranho à natureza: no momento em que a consciência decide, em termos alternativos, que finalidade quer estabelecer e de que maneira quer transformar as séries causais correntes em séries causais postas, como meios de sua realização, surge um complexo dinâmico que não encontra paralelo na natureza. Só neste momento, portanto, é que se pode examinar o problema da liberdade em sua gênese ontológica. Numa primeira aproximação, a liberdade é aquele ato de consciência que dá origem a um novo ser posto por ele. […] (Lukács, 1981, p. 53 e 54).

Assim, se considerarmos o homem inserido em relações sociais concretas veremos que

a liberdade não poderá existir independente de determinações objetivas. A possibilidade de

ações livres está amparada nas alternativas criadas a partir do trabalho. Na medida em que o

homem vai transformando as causalidades em causalidades postas, este vai aumentando o rol

de possibilidade de ações e, desta forma, as condições para o exercício da liberdade. A

liberdade, então, deve também ser analisada nesta dinâmica, considerando as múltiplas

mediações que surgem no interior deste processo. Afirma Lukács (1981): “[…] quanto maior

for o conhecimento das cadeias causais que operam em cada caso, tanto mais facilmente

podem ser transformadas em cadeias causais postas, tanto mais seguro é o domínio do sujeito

sobre elas, ou seja, a liberdade que ele pode ter” (p. 55).

Esta autoconsciência, entretanto, só pode ser pensada a partir das relações sociais nas

quais os indivíduos estão envolvidos, assim não temos liberdade para determinar o tipo de

consciência que desejamos, podendo esta ser uma autoconsciência alienada.

Segundo Mészáros, (2006) a satisfação das necessidades humanas ocorre de forma

alienada quando estiver sujeita aos apetites naturais brutos, ou ao culto do eu, ou quando é

atribuído ao homem uma natureza egoísta.

Mészáros (2006), citando Marx, demonstra bem como as necessidades humanas

tornam-se subordinadas às necessidades animais: “[...] “o homem (o trabalhador) só se sente

como livre e ativo em suas funções animais [...] e em suas funções humanas só se sente como

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49

animal. O animal se torna humano e o humano animal” [...]” (Marx apud Mészáros, 2006, p.

162).

Este autor afirma, portanto, que a alienação não afeta somente o trabalhador, mas

também ao dono do capital. “[...] há dois lados da mesma alienação. O trabalho é o “sujeito

sem objeto”, ao passo que o capital é o “objeto sem sujeito”” (p.162).

Isto significa afirmar que, com o aprofundamento das relações capitalistas, a alienação

atinge as suas formas mais perversas. Esta atravessa todas as relações sociais, desde àquelas

referentes ao trabalho, às de cunho essencialmente pessoal, subjetivas, como afirma Netto

(1981):

Na idade avançada do monopólio, a organização capitalista da vida social preenche todos os espaços e permeia todos os interstícios da existência individual: a manipulação desborda a esfera da produção, domina a circulação e o consumo e articula uma indução comportamental que penetra a totalidade da existência dos agentes sociais particulares – é o inteiro cotidiano dos indivíduos que se torna administrado, um difuso terrorismo psico-social se destila de todos os poros da vida e se instila em todas as manifestações anímicas e todas as instâncias que outrora o indivíduo podia reservar-se como áreas de autonomia (a constelação familiar, a organização doméstica, a fruição estética, o erotismo, a criação dos imaginários, a gratuidade do ócio etc.) convertem-se em limbos programáveis (p. 81).

Neste sentido, Berman (2007) é bastante feliz quando – citando Marx – afirma que

somos – mesmo para aqueles que se propõe a entender esta sociedade - atingidos de forma

intensa pela dinâmica capitalista. Na medida em que esta sociedade se torna mais complexa

tendemos a nos tornar cada vez menos livres, ou seja, estamos cada vez mais subordinados a

esta dinâmica e as nossas escolhas ficam condicionadas às necessidades da sociedade42.

A intenção de Marx, ao arrancar os halos de suas cabeças, é mostrar que ninguém na sociedade burguesa pode ser tão puro, tão seguro ou tão livre. As teias e ambigüidades do mercado são de tal ordem que a todos capturam e emaranham. Os intelectuais precisam reconhecer a intensidade de sua dependência – também espiritual, não só econômica – em relação à sociedade burguesa que desprezam. Nunca será possível sobrepujar essas

42 Neste momento, já é possível pensarmos sobre o significado dos processos alienantes no âmbito do Serviço Social. Os assistentes sociais, enquanto profissionais assalariados, inseridos na dinâmica das relações capitalista, vivenciam as contradições próprias desta sociedade também de forma intensa. As formas de alienação se expressam tanto no fato deste não se reconhecer como trabalhador, com uma funcionalidade específica na divisão social e técnica do trabalho, quanto na reprodução de valores próprios desta sociabilidade. No próximo item veremos melhor como esta alienação se expressa no cotidiano profissional.

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50

contradições se não a enfrentarmos direta e abertamente. Eis o que quer dizer despir os halos (Berman, 2007, p.145).

As reflexões feitas até o momento podem levar a idéia de que não há saída para além

da alienação. O fato de vivermos numa sociedade que mercantiliza todos os âmbitos da vida

social, causando com isto uma alienação universal nos deixa num beco sem saída?

Entendo que não é nesta direção que as reflexões marxistas sobre a alienação nos

levam. Devemos conceber a alienação como algo dinâmico e não como algo estático e

definitivo. Conforme sugere Mészáros (2006) a atividade alienada não produz somente a

alienação, mas também a “consciência de ser alienado”.

Mesmo fazendo parte de uma sociedade alienante é possível negá-la. Segundo

Mészáros (2006) a única forma de acabar com a alienação é através da própria atividade

humana autoconsciente. Embora esta seja uma afirmação aparentemente contraditória, já que

é através da objetivação que surge a alienação, uma análise dialética nos dá elementos para

concluir que não. Segundo este autor esta aparente contradição existe se tivermos uma

concepção mecanicista entre “meios e fins” ou se considerarmos a causalidade como mera

sucessão.

Esta problemática pode ser evidenciada quando Marx (apud Mészáros, 2006), nas

teses sobre Feuerbach, discute a questão de como educar o educador. Se os homens de uma

sociedade alienada precisam ser educados e esta educação deve ser garantida por aqueles que

estão fora da sociedade alienada, chega-se a um beco sem saída: estes educadores não estão

em parte alguma.

Este tipo de reflexão se estabelece em função da forma como se entende a realidade.

Não devemos encarar a alienação como algo estático, inerte, mas como uma totalidade

dinâmica, como afirma Mészáros (2006):

A atividade alienada não só produz a “consciência alienada”, mas também a “consciência de ser alienado”. Esta consciência da alienação, qualquer que seja a forma alienada que possa assumir [...] não somente contradiz a idéia de uma totalidade alienada inerte, como também indica o aparecimento de uma necessidade de superação da alienação (p.166).

A partir desta análise podemos entender, portanto, como o educador, mesmo fazendo

parte de uma sociedade alienada pode obter a “consciência de ser alienado”. Isto é possível se

entendermos o ser humano na sua totalidade complexa e dinâmica; o homem é ao mesmo

Page 62: Tese Paula Bonfim (1)

51

tempo produto de uma sociedade alienada e negador dela, como o foi Hegel, Marx e outros

filósofos. “É por isto que Marx, sendo uma parte específica da complexa teia de uma

sociedade alienada, deve definir-se como um ser prático em oposição prática às tendências

efetivas da alienação na sociedade existente” (Mészáros, 2006, p.167).

Para Mészaros (2006) vislumbrar uma sociedade totalmente não-alienada como

objetivo final é, no mínimo, problemático. Isto porque só é possível entender o

desenvolvimento humano considerando a relação dialética entre continuidade e

descontinuidade ou como afirma ele a “descontinuidade na continuidade” e a “continuidade

na descontinuidade” (p.167).

Lukács (apud Lessa, 2002), afirma que enquanto fenômeno social a alienação só pode

ser superada coletivamente, embora seja através das ações cotidianas dos homens singulares

que se pode operar sua superação definitiva. Isto significa que este processo implica dois

planos articulados entre si: o plano singular e o plano social geral.

A supressão da atividade alienada por intermédio da prática humana autoconsciente não é uma relação estática de um meio com relação a um fim, sem nenhuma possibilidade de influência mútua. [...]. do mesmo modo que a alienação não é um ato único [...], seu oposto, a superação da atividade alienada por meio da iniciativa autoconsciente, só pode ser concebido como um processo complexo de interação, que produz mudanças estruturais em todas as partes da totalidade humana (Mészáros, 2006, p.167).

Embora a superação da alienação deva ser pensada de forma dinâmica, num processo

de mudanças estruturais na totalidade da vida social, onde a “autoconsciência humana” possa

atingir o nível de verdadeira “consciência genérica”, esta só se realiza através da atividade do

indivíduo singular, ou seja, da consciência prática do homem, da sua capacidade criativa que

constrói as condições para a realização da liberdade. (Mészáros, 2006).

[...] Somente o indivíduo humano real é capaz de realizar a unidade dos opostos (vida pública e vida privada; produção e consumo; fazer e pensar; meios e fins), sem a qual não tem sentido falar em superação da alienação. Esta unidade significa não só que a vida privada tem de adquirir a consciência prática de seu embasamento social, mas também que a vida pública tem de ser personalizada, isto é, tem de tornar-se o modo natural de existência do indivíduo real; não somente o consumo passivo deve transforma-se em consumo criativo (produtivo, enriquecedor do homem), mas também a produção deve tornar-se gozo; não só o “ter” abstrato sem sujeito deve adquirir um ser concreto, mas também o ser ou o “sujeito físico” não se pode transformar num ser humano real sem “ter”, sem adquirir a “capacidade não-alienada da humanidade”; não só o pensar a partir da

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52

abstração deve tornar-se pensamento prático, relacionado diretamente com as necessidades reais – e não-imaginárias ou alienadas – do homem, mas também o “fazer” deve perder seu caráter coercitivo inconsciente e tornar-se atividade livre autoconsciente (Mészáros, 2006, p. 169).

No próximo Capítulo discutiremos a particularidade da formação econômica, política,

social e cultural brasileira com o objetivo de compreendermos a constituição da moral dos

brasileiros. Procuraremos entender quais os valores dominantes nesta sociedade e como eles

se reproduzem na atualidade.

Page 64: Tese Paula Bonfim (1)

53

CAPÍTULO 2 – A CONSTITUIÇÃO DA MORAL BRASILEIRA

A compreensão sobre a reprodução social em Marx e em Lukács e a especificidade

desta na sociedade burguesa é fundamental para entendermos a complexidade das relações

sociais na atualidade, especialmente no campo dos valores. Ela ainda nos fornece os

elementos imprescindíveis para desvelarmos os valores dominantes na sociedade brasileira e

compreendermos como estes valores se desenvolveram e se consolidaram no nosso país, além

de sua incidência na atualidade.

Ter consciência crítica destes valores é, portanto, condição para escolhas mais livres,

sejam elas profissionais43 ou não. No entanto, como bem nos lembra Berman (2007) esta

consciência, por si só, não é suficiente para acabar com as relações sociais reificadas.

Compreender o solo histórico para o surgimento e consolidação de valores na

sociedade brasileira nos possibilita, entretanto, desmistificar as ideias geralmente presentes

entre cidadãos comuns e alguns intelectuais de que os nossos valores, sejam eles positivos ou

negativos, fazem parte da natureza do brasileiro, resultado das misturas das raças ou mesmo

das determinações climáticas.

Ao contrário, a reflexão realizada até o momento permite pensar a realidade social

brasileira a partir de uma dinâmica historicamente determinada pelo tipo de relações sociais

estabelecidas no país. É a partir destas relações, considerando as necessidades e

possibilidades de cada momento histórico, que vão se formando os valores, as tradições e

cultura brasileira e se constituindo a nossa moralidade44. Isto significa afirmar que, mesmo

considerando a historicidade da moral, é possível identificarmos os valores que permanecem

ao longo dos tempos numa mesma sociedade.

[...] Quando se acompanha a elaboração ideológica do “caráter nacional” brasileiro, observa-se que este é sempre algo pleno e completo, seja essa plenitude positiva (como no caso de Afonso Celso, Gilberto Freyre ou Cassiano Ricardo) ou negativa (como no caso de Sylvio Romero, Manoel Bonfim ou Paulo Prado, por exemplo). Em outras palavras, quer para louvá-

43 A apreensão destes valores é fundamental para discutirmos as tensões em torno do atual projeto ético-político dos assistentes sociais. 44 A partir do referencial teórico abordado no Capítulo I, moralidade é entendida aqui como senso moral, ou seja, é a medida que expressa se os indivíduos estão socializados, se eles se comportam de acordo com as normas e valores determinados socialmente.

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54

lo quer para depreciá-lo, o “caráter nacional” é uma totalidade de traços coerente, fechada e sem lacunas porque constitui uma “natureza humana” determinada (Chauí, 2006, p.21).

Para desvendarmos tais valores é necessário, de acordo com as observações de Lukács

(1981), buscarmos as mediações estabelecidas no âmbito da reprodução social. Assim, para

identificarmos os valores predominantes na sociedade brasileira e compreendermos a nossa

moral na sua complexidade, considerando os movimentos de ruptura e continuidade com

elementos do passado, é necessário recorrermos às determinações da nossa formação

econômico-social.

Segundo Chaui (2006) se atentarmos para a dinâmica da sociedade brasileira na

atualidade perceberemos facilmente que existe uma tensão real entre a ideia que o povo tem

de si e do Brasil – a ideia que somos um povo pacífico, generoso, solidário, um país sem

preconceitos (em virtude da “democracia racial”), trabalhador etc. – e a concretização destes

valores através de suas ações.

Esta tensão pode ser evidenciada quando, por exemplo, observamos alguém afirmar

que:

[...] os índios são ignorantes, os negros são indolentes, os nordestinos são atrasados, os portugueses são burros, as mulheres são naturalmente inferiores, mas simultaneamente, declarar que se orgulha de ser brasileiro porque somos um povo sem preconceitos e uma nação nascida da mistura de raças. Alguém pode dizer-se indignado com a existência de crianças de rua, com chacinas dessas crianças ou com o desperdício de terras não cultivadas e os massacres dos sem-terra, mas ao mesmo tempo, afirmar que se orgulha de ser brasileiro porque somos um povo pacífico, ordeiro e inimigo da violência. Em suma, essa representação permite que uma sociedade que tolera a existência de milhões de crianças sem infância e que, desde seu surgimento, pratica o apartheid social possa ter de si mesma a imagem positiva de sua unidade fraterna (Chaui, 2006, p.8).

Podemos evidenciar esta contradição no nosso cotidiano, nos meios de comunicação,

nas nossas relações familiares, profissionais, enfim, nos diversos espaços da sociedade

brasileira.

Portanto, para entendermos esta tensão é necessário buscarmos suas raízes no processo

de colonização, nas relações fundadas a partir da escravidão, na particularidade da nossa

Page 66: Tese Paula Bonfim (1)

55

transição ao capitalismo, dos processos de revoluções “pelo alto”45 que atravessam a história

do nosso país e, desta forma, da conservação de elementos na nossa cultura.

Assim, o nosso objetivo neste item não é escrever sobre a história do Brasil, mas

recorrer à contribuição de importantes estudiosos da área no intuito de captar a dinâmica da

emergência de valores na sociedade brasileira e que permaneceram ao longo da nossa história.

Recorreremos, por exemplo, às reflexões de Florestan Fernandes (2004 e 2006) já que

suas análises sobre a colonização, escravatura e revolução burguesa, inauguram uma nova

interpretação do Brasil. É fato que a compreensão do Brasil não se esgota nestas categorias,

mas é correto afirmar que esses são momentos excepcionais, em termos lógicos e históricos,

para desvendar as dimensões da formação social do Brasil e, neste sentido, as particularidades

da nossa moral (Ianni, 2004).

É fundamental, assim, considerarmos alguns elementos decisivos na formação deste

país: 1) uma característica constante da nossa economia – que se apresenta desde o período

colonial –, é a prioridade das atividades básicas direcionadas para o mercado externo; 2) o

fato de o Brasil não ter rompido com o estatuto colonial (nos termos de Florestan Fernandes,

2006, p.34). Articulado a estes dois elementos está o fato de este país possuir uma estrutura de

classe onde a burguesia não se mobilizou para romper com o monopólio da terra, assim como

não assumiu suas tarefas “clássicas” nacionais; e, por último, o caráter precoce no que se

refere à entrada na fase monopólica do capitalismo e o aspecto tardio no que se refere à

industrialização (Netto, 2001).

De acordo com Netto (Id.) a junção destas características atribui uma particularidade

no processo de formação do Brasil moderno e tal particularidade se expressa através de três

fenômenos diferentes, porém, essencialmente articulados. Inicialmente, o capitalismo no

Brasil se desenvolveu sem realizar as transformações estruturais que foram pré-condições

noutras formações, ou seja, não foram superadas as formas arcaicas de organização política e

social que existia no período pré-capitalista, mas estas foram refuncionalizadas e reintegradas.

Outro fenômeno particular da nossa história é a exclusão das camadas populares no

processo decisório da vida política e social. “[...] A socialização da política, na vida brasileira,

sempre foi um processo inconcluso – e quando, nos seus momentos mais quentes, colocava a

45 cf.Coutinho (1990).

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56

possibilidade de um grau mínimo de socialização do poder político, os setores de ponta das

classes dominantes lograram neutralizá-lo. [...]” (Netto, 2001, p.18 e 19).

O terceiro elemento marcante na formação do país é aquele referente ao papel do

Estado na sua relação com a sociedade civil. Segundo Netto (2001), o Estado brasileiro, desde

a década de 1930, embora não tenha se colocado como um obstáculo ao desenvolvimento

desta, tem sido um eficiente instrumento conta o surgimento, na sociedade civil, de “agências

portadoras de vontades coletivas e projetos societários alternativos” (p.19).

Para compreendermos, portanto, a “questão cultural” no Brasil e a dinâmica para o

surgimento de determinados valores é necessário analisarmos o desenvolvimento sócio-

econômico do país a partir da sua articulação com o desenvolvimento capitalista em nível

mundial.

Segundo Coutinho (1990), é quase um consenso entre os estudiosos da formação

sócio-histórica brasileira que a gênese e o desenvolvimento do nosso país estão vinculados à

emergência do capital mercantil e à criação de um mercado mundial.

A colonização, portanto, tinha por objetivo extrair valores de uso produzidos nas

colônias e transformá-los em valores de troca no mercado internacional. Assim, a

subordinação dos países colonizados à economia da metrópole se dava por meio da

circulação. Para este autor (Id.), isto não significa que o Brasil colonial se constituísse num

modo de produção capitalista “imperfeito” ou “incompleto”. A condição para o

desenvolvimento capitalista, com base na lei do valor-trabalho, é a existência do trabalho

livre, trabalho assalariado, algo que não existiu em todo o período colonial. O que determinou

a nossa formação econômico-social do período colonial foi uma estrutura escravista, com

sentido claramente mercantil.

Outro autor fundamental para compreendermos a dinâmica da nossa formação é Caio

Prado Júnior. O seu esforço é justamente compreender o presente a partir de elementos do

passado. Assim, de acordo com este autor (1965), para entendermos o Brasil contemporâneo é

fundamental buscarmos as particularidades da nossa constituição: é necessário analisarmos,

em toda a sua dinâmica, o processo de colonização e as transformações que se iniciam com a

Independência e se desenrolam até o final do século XIX, tendo a abolição dos escravos e a

proclamação da República como acontecimentos centrais. É a partir deste passado que se

encontram os fundamentos da nossa nacionalidade.

Se destacarmos as características mais evidentes deste período, perceberemos quão

complexo foi o nosso processo de formação: inicialmente tem-se o desafio de desbravar e

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57

povoar um território de extensões continentais e semideserto. Além da questão da estrutura

territorial, observa-se a formação de uma população com diferentes etnias, raças e culturas; e,

tais elementos se constituíram tendo por base uma organização econômica bastante particular:

um modo de produção escravista de caráter mercantil46.

É a partir da articulação destes e de outros elementos que se configura a organização

da vida social, a constituição da nossa cultura, dos nossos costumes, tradições e da nossa

moralidade. Segundo Prado Júnior (1965)

[...] criou-se no plano das realizações humanas algo de novo. Este “algo de novo” não é uma expressão abstrata; concretiza-se em todos os elementos que constituem um organismo social completo e distinto: uma população bem diferenciada e caracterizada, até etnicamente e habitando um determinado território; uma estrutura material particular, constituída na base de elementos próprios; uma organização definida por relações específicas; finalmente, até uma consciência, mais precisamente, uma certa “atitude” mental coletiva particular (p.6).

Segundo este autor (Id.) para entendemos o Brasil atual é fundamental considerarmos

três processos “de envergadura histórica”, são eles: o sentido da colonização, o peso do

regime de trabalho escravo e a peculiaridade do desenvolvimento desigual e combinado.

Ao propor investigar o sentido da colonização, Prado Júnior (1965) faz inicialmente

uma observação que alude ao tipo de ocupação realizada nas colônias da América. Para ele

existe uma diferença significativa no que se refere à ocupação do novo mundo. A exploração

das colônias nos trópicos se estabelece de forma bem distinta das zonas temperadas: o

Europeu só se predispôs a migrar para as colônias dos trópicos na medida em que eram

oferecidas grandes vantagens para o processo de exploração, ou seja, na medida em que

podiam se apropriar de grandes unidades produtoras e ter, sob o seu domínio, uma mão de

obra escrava (de indígenas ou de africanos).

46 Coutinho (1990) aponta para certa ambigüidade no pensamento de Caio Prado Júnior no que se refere a natureza do sistema de produção da época colonial. Caio Prado Júnior afirmaria, em algumas de suas produções que o sistema da época colonial já era capitalista, isto em função do “descobrimento” do Brasil estar relacionado à expansão do capital mercantil mundial. Segundo Coutinho (Id.) esta afirmação é um equívoco já que não havia capitalismo nem na Europa: o capitalismo vivia sua etapa de acumulação primitiva, portanto o predomínio do capital mercantil. Ainda segundo este autor, tal equívoco se explica pelo fato de Caio Prado não possuir, na época, um estoque rico de categorias marxistas. No entanto, isto não chegou a comprometer a essência de suas análises.

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58

Ao contrário das colônias temperadas, onde a ocupação se dava via um processo de

povoamento47 – os europeus migravam no intuito de reconstruírem, no novo mundo, uma

sociedade semelhante à sua – nas colônias tropicais o objetivo da ocupação estava

essencialmente vinculado aos objetivos mercantis que marcam o início da expansão

ultramarina na Europa.

A transplantação de núcleos imigrantes portugueses (e por vezes de elementos de outra nacionalidade) não se prendia ao fato de engendrar, aqui, uma extensão demográfica, econômica e sociocultural e política da sociedade metropolitana. [...]. O “povoamento” resultava da necessidade de produzir o butim. [...] (Fernandes, 2004, p.371).

É justamente esta característica que determina, em grande medida, o processo de

colonização no Brasil, deixando marcas profundas na vida do país. Este tipo de colonização

esteve vinculado a (des) valores que expressam a ideia de que se deve “tirar proveito” ao

máximo das “terras de ninguém”. Esta dinâmica do saque, do butim se perpetuará mesmo

após a Independência e a proclamação da República, se reatualizando nas mais diferentes

formas de corrupção. Esta lógica, portanto, dificultou, ao longo da nossa história, o

surgimento de valores voltados para a construção do público enquanto espaço pertencente à

coletividade, expressão de uma vontade voltada para o humano-genérico48.

Desta forma é que Prado Júnior (1965) faz referência ao sentido da colonização:

[...] no seu conjunto, e vista no plano mundial e internacional, a colonização dos trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial, [...], destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio Europeu. É este o verdadeiro sentido da colonização tropical, de que o Brasil é uma das resultantes; e ele explicará os elementos fundamentais, tanto o econômico como o social, da formação e evolução dos trópicos americanos (p. 25).

O elemento da colonização marca o Brasil Colônia, mas também o Império e a

República. Se, no primeiro momento, isto se dá via colonialismo, a partir da Independência

47 Esta definição sobre colônia de povoamento ficou conhecida através do trabalho clássico de Leroy-Beaulieu, De La colonisation chez lês peuples modernes (Prado Júnior, 1965). 48 É importante salientarmos aqui que ao falarmos de interesses coletivos não estamos nos referimos à uma vontade de uma maioria, ou seja, à soma de interesses privados, como freqüentemente o liberalismo entende a democracia. Ao contrário: estamos colocando a possibilidade de os indivíduos, ao se reconhecerem enquanto seres humanos genéricos, pautarem suas ações a partir deste referencial.

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59

predominam as relações imperialistas, ou seja, o capitalismo no Brasil surge e se desenvolve

sob as “regras” do modo de produção mundial (Prado Júnior, 1966).

O marco no processo de colonização no Brasil é o fato como foram distribuídas as

terras. No entanto, a simples propriedade da terra nada significava se não houvesse os meios

de se explorar. Isto significa que no período do Brasil-Colônia é impossível a produção a

partir da pequena lavoura, isto em virtude dos enormes custos da produção, incluindo

investimentos e mão de obra.49 É justamente a partir da exploração da grande propriedade

rural que se funda toda a economia agrária da colônia.

Isto significa que a base material do desenvolvimento do Brasil, no período colonial,

era constituída pela economia agrária, baseada no latifúndio e no escravismo. Neste sentido,

toda a organização da sociedade colonial se dava a partir destas relações de produção. O

senhor de engenho representava, portanto, poder e prestígio, o que havia de mais importante

na estrutura social da colônia. A massa popular era formada por uma população de negros,

índios e mestiços, mão de obra fundamental da estrutura colonial escravista.

As condições pelas quais se deram o processo de colonização possibilitaram o

desenvolvimento de traços muito particulares na sociedade brasileira. Um dos elementos

centrais neste processo foi a junção, neste território, de três raças completamente distintas –

na língua, nas tradições, na religião, na moral, etc. – sendo que duas delas (negros e índios)

encontravam-se submetidas ao trabalho forçado e à todo tipo de violência contra seus

costumes e tradições. O principal vínculo entre elas, portanto, eram aqueles determinados

pelas relações de produção. É correto afirmar que estas relações permaneceram, durante todo

o período colonial, fundadas essencialmente no constrangimento do esforço físico, na

opressão, na submissão do negro e do índio ao branco europeu, e, portanto, nada ou quase

nada acrescentaram ao universo das relações humanas. Podemos afirmar, assim, que os

valores que emergiram a partir desta organização social (com a ênfase nos interesses privados

da Coroa e dos senhores proprietários) contribuíram para rebaixar os níveis de generalidade

humana desta sociedade.

49 “[...] A instalação, por exemplo, de um engenho de açúcar – a principal riqueza da colônia – mesmo dos mais modestos, exigia mais de trezentos mil cruzeiros em moeda atual. Para o seu funcionamento requeriam-se ainda de cento e cinqüenta a duzentos trabalhadores” (Prado Júnior, 1966, p.17).

Page 71: Tese Paula Bonfim (1)

60

É neste sentido que Prado Júnior (1965) observa a ausência de um “nexo moral” no

período colonial, ou seja, a carência de um conjunto de elementos, um complexo de relações

que mantêm ligados e unidos os indivíduos de uma sociedade.

Uma das instituições que se predispôs50 a estabelecer este “nexo moral” foi a Igreja

Católica. Não podemos desconsiderar a presença desta desde o início da colonização no Brasil

e seu protagonismo na constituição da moralidade brasileira. Chegaram, juntamente com o

primeiro governador geral (1549), os primeiros jesuítas e tinham como principal objetivo

catequizar os índios, transformando-os em “bons cristãos”. Embora algumas ordens religiosas

fossem contra a escravidão indígena, isto não significava que estas tivessem algum respeito

pela cultura e tradições das mais variadas tribos. Os índios eram considerados raças inferiores

e, muitas vezes, equiparados a animais, como nos recorda Fausto (2007): “Padre Manuel da

Nóbrega, por exemplo, dizia que “índios são cães em se comerem e matarem, e são porcos

nos vícios e na maneira de se tratarem”” (p.50).

Assim, é importante salientarmos a presença marcante da Igreja, seus valores e

princípios na formação do Brasil. Estado e Igreja compunham um todo orgânico, sendo que o

papel desta instituição não se limitava em transformar negros e índios em “bons cristãos”.

Além do “controle das almas” no cotidiano da vida na colônia, esta tinha sob sua

responsabilidade a educação das pessoas. Estes dois braços da Igreja possibilitavam a

disseminação dos valores cristãos e, ao mesmo tempo, a necessidade de obediência a Deus e

ao Estado.

A intenção da Igreja em transformar o Brasil numa colônia que seguisse os preceitos

cristãos não se realizou sem obstáculos. Isto se deu, em grande medida, em virtude da

diversidade cultural e, especialmente, religiosa da maioria da população – constituída por

negros e índios. Os ritos religiosos destes eram considerados profanos e tidos como feitiçaria.

Em função disto, foram sistematicamente combatidos pela Igreja e, não por acaso, até hoje

são vistos com preconceito.

Além da violência contra os costumes e tradições, se destacavam as brutais condições

de vida e trabalho de grande parte da população. Mesmo aqueles que eram livres, os mestiços,

50 É importante chamarmos atenção para o fato de que a reprodução da vida social e a construção de valores, tal como vimos em Lukács, não se dá via ações de uma única instituição. O desenvolvimento dos valores e, conseqüentemente, da moral, têm a sua origem na práxis social. No entanto, estamos sinalizando para o significado do papel da Igreja na constituição da nossa moralidade.

Page 72: Tese Paula Bonfim (1)

61

não dispunham de condições de sobrevivência longe do domínio dos grandes proprietários e,

assim, eram submetidos aos trabalhos mais aviltantes na colônia, não se diferenciando muito

do trabalho escravo. Além disso, o pequeno proprietário – uma minoria na colônia – vivia

numa situação muito parecida ao servo da gleba, ou seja, completamente dependente do

proprietário da terra. Ao lado deste, e também sob o domínio do senhor, encontravam-se os

agregados: geralmente escravos libertos e mestiços que viviam prestando os mais diversos

serviços nos domínios dos senhores. Isto significava que, mesmo entre os não escravos, a

liberdade na colônia era muito restrita.

Esta era a estrutura de classe da colônia até aproximadamente um século e meio do

início da colonização. Uma organização social bastante simplificada: de um lado, uma parcela

pequena de proprietários de terra, uma classe abastada: senhores de engenhos que mantinham

sob seu domínio e poder, além da sua família; de outro, o restante da população: os escravos,

mestiços e pequenos proprietários

Além deste domínio no que se refere ao universo privado, ou seja, o poder de mando

dos senhores nas fronteiras de suas propriedades, a sua influência não se restringia a tais

limites. Até meados do século XVII a autoridade da Coroa se limitava à sede do governo

geral. Tal administração se apresentava de forma bastante rudimentar, o estritamente

necessário para não se perder o vínculo com Portugal. Isto significava que os senhores

proprietários de terras também detinham o poder político na colônia: agiam de acordo com

seus interesses, usando, na maioria das vezes, de autoritarismo e de violência. Não havia,

portanto, até este momento, choque de interesses entre a metrópole e a classe dominante na

colônia. Enquanto esta última se aventurava ao desbravar e explorar o amplo território,

dominar os índios e combater os invasores de outras nações, à Coroa cabia providenciar uma

mínima estrutura administrativa e receber os proventos fruto do processo de exploração da

colônia51.

51 As câmaras municipais se constituíam na mais importante administração da colônia, sendo ocupadas na sua totalidade pelos proprietários de terras. As atribuições das câmeras eram amplas e diversificadas – podendo estar ou não de acordo com o previsto em lei. Afirma Prado Júnior (1966) “[...] vemos as câmaras fixarem salários e o preço das mercadorias; regularem o curso e valor das moedas; proporem e recusarem tributos reais, organizarem expedições contra o gentio, e com ele celebrarem pazes; tratarem da ereção de arraiais e povoações; proverem sobre o comércio, a indústria e a administração pública em geral; chegam a suspender governadores e capitães, nomeando-lhes substitutos, e prender e pôr a ferro funcionários e delegados régios. [...]” (p.27).

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62

Neste sentido, é possível afirmar que as relações autoritárias52 fazem parte da

constituição do nosso país. Isto se evidencia mais claramente no período da colonização,

especialmente com a escravidão, mas permanecerá, como veremos mais adiante, ao longo da

nossa história.

Isto se expressa claramente no que se refere ao cumprimento às leis durante todo o

período colonial. Com a distância do Rei, as regras eram estabelecidas pelos proprietários de

terra já que estes tinham sob seu poder tudo que possibilitava a produção da vida material da

Colônia: terras, mão de obra escrava e o engenho. Afirma Cerqueira Filho (1982):

O comportamento político da classe dominante no período colonial registra que a vida política era regida pela máxima “respeitado o Rei, que estava longe, tudo o mais se podia fazer”. Ora, tal comportamento implicava uma composição entre normas jurídicas da Metrópole e o direito consuetudinário que se forjava à sombra da classe dos proprietários de terra. [...] Este espírito de transigência e conciliação não se chocava em absoluto com a violência que sempre reinou na esfera da produção e das relações de trabalho. Ao contrário, quase sempre procurou esconder uma tal violência, fazendo-nos crer no caráter pacífico e conciliador do ‘homem brasileiro [...]” (p. 97).

Estas características do processo de colonização do Brasil – dominantes até meados do

século XVII – nos revelam um elemento fundante das relações sociais brasileiras: a intrínseca

relação entre o público e o privado. Quase não há limites entre a vida pública e a vida privada

na colônia, sendo o grande proprietário aquele que estabelece as regras – respeitando as

principais exigências da Metrópole – e que regem a dinâmica econômica, política e social da

colônia.

No que se refere à colonização e à escravidão é possível afirmar que esta última se

funda a partir da primeira. Neste sentido, coloca-se a necessidade de uma análise crítica sobre

as condições e as implicações do escravismo.

Um regime de trabalho que fundamentou toda a vida social, econômica, política e cultural ao longo de praticamente quatro séculos. Um regime de

52 No período colonial este autoritarismo se expressava de diversas formas: tanto na relação entre metrópole e colônia, como nas relações internas do Brasil, ou seja, na relação entre senhor proprietário e escravo através da violência física e psicológica; e na relação do primeiro com os demais homens livres não-proprietários através da ideologia do favor (Cf. Schwarz, 1988). Veremos que esta é uma característica que permanece até hoje nas nossas relações, inclusive nos espaços de trabalho dos assistentes sociais. No próximo capítulo, trataremos de exemplificar como isto se expressa no cotidiano profissional.

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63

trabalho que implica a incorporação forçada e predatória de populações indígenas e africanas, sacrificando modos de vida e trabalho, culturas, línguas, religiões, visões de mundo (Ianni, 2004, p. 42).

Esta forma de produção no Brasil colônia (a partir do trabalho escravo) funda,

portanto, uma forma particular de vida e relações sociais.

Não há dúvida que a contribuição do negro e do índio para formação brasileira vai

muito além do fornecimento de mão de obra durante um longo período da nossa colonização.

Mas não podemos ignorar o fato de que a riqueza de suas culturas, tradições e valores foram,

em grande medida, corrompidos pelas condições impostas a estes no processo de constituição

da sociedade brasileira, ou seja, a população escrava negra e indígena prestava a um único

objetivo: servir como mão de obra no processo de exploração da colônia, o máximo e mais

simples esforço físico.

Neste sentido, desde o início da nossa formação, negros e índios são tidos como raças

inferiores, pertencentes aos mais baixos níveis da escala social. Assim, os elementos da

cultura negra e indígena no Brasil foram submetidos, durante séculos, ao domínio do homem

branco, à religião cristã e à cultura européia. Assim, todas as características relacionadas ao

negro e ao índio – costumes, tradições, ritos, valores, religião, etc. – eram vistos de forma

depreciativa e se perpetuarão por longos períodos da nossa história – e, considerando a

centralidade desta questão na constituição deste país, não seria absurdo concluir que muitos

destes preconceitos se preservam até os dias atuais.

O resultado desta longa e brutal história é a invenção do negro pelo branco. A metamorfose do negro em escravo é acompanhada da metamorfose do negro em subalterno, inferior, dominado, discriminado, diferente, outro. As relações, processos e estruturas sociais que constituíam a ordem social escravocrata estavam amplamente permeadas pelas mais diversas formas de discriminação racial [...]. Neste sentido negro e escravo confundem-se. [...] Está em marcha o fetichismo da cor (Ianni, 2004, p. 44).

Isto significava que havia uma equivalência entre ser negro e ser um indivíduo privado

de liberdade e autonomia, ou seja, o escravo correspondia a indivíduo de “cor”. É justamente

a partir desta metamorfose que se encontram as raízes da discriminação racial no Brasil.

(Ianni, 2004).

O regime de escravidão, com todas as suas determinações, constituiu a sociabilidade

brasileira, servindo de referência tanto para as relações econômicas e políticas, como para o

âmbito da moralidade, da cultura e da ideologia.

Page 75: Tese Paula Bonfim (1)

64

Com relação à construção desta sociabilidade, Ianni (2004) chama a atenção para algo

importante: durante todo o período colonial e do Império, o trabalho braçal estava relacionado

a valores depreciativos. “Toda uma cultura se produziu durante a Colônia e o Império

valorizando o senhor branco, administrador, proprietário, político, intelectual, bispo, general,

em detrimento do escravo, negro, trabalhador no eito e no ofício, engenho e fazenda, cafezal e

moenda” (Ianni, 2004, p.105). Além de o trabalho braçal estar relacionado à algo de baixo

valor, o escravo era tido como raça inferior, considerado indolente, preguiçoso, ligado às

práticas da feitiçaria e da luxúria.

Boa parte da cultura, em seus valores, padrões, idéias, doutrinas, explicações, ideologias, ficou vincada por esta determinação essencial. As relações e estruturas fortemente marcadas pelas linhas de casta influenciam também o pensamento, o imaginário de senhores, fazendeiros, comerciantes, governantes, militares, bispos, populares, escritores. Acontece que há sempre alguma contemporaneidade entre as formas de pensamento e as de ser, os modos de vida e trabalho e os de pensar, sentir e agir (Ianni, 2004, p.59).

Neste sentido, não é difícil entender porque a escravidão deixou marcas tão profundas

na nossa sociedade.

Isto significa que a gênese da nossa formação tem no trabalho escravo e servil, na

subjugação do negro e do índio à cultura branca européia e na exploração econômica das

riquezas naturais, as bases para a constituição da sociedade brasileira no período colonial.

Estes elementos, portanto, fundam a organização social da vida brasileira

possibilitando a emersão de um fenômeno marcante na nossa estrutura social: o

patriacarlismo. Segundo Prado Júnior (1965) mesmo sendo possível buscar suas raízes na

estrutura social portuguesa e, portanto, nas relações que constituem uma monarquia, o que

possibilitou a emergência do patriarcalismo no Brasil foram as circunstâncias próprias da

estrutura colonial.

[...]. O clã patriarcal, na forma em que se apresenta, é algo específico da nossa organização. É do regime econômico que ele brota, deste grande domínio que absorve a maior parcela da produção e da riqueza coloniais. Em torno daqueles que a possuem e senhoreiam, o proprietário e sua família, vem agrupar-se a população: uma parte por destino natural e inelutável, os escravos; a outra, pela atração que exerce o único centro existente, real e efetivo, de poder e riqueza. [...] (p. 285).

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65

Estas relações, embora atravessadas por violência e opressão, vão moldando-se ao

longo do tempo, manifestando uma aparência natural (não por acaso a referência à figura do

pai). Isto se explica, em parte, pelo fato de que tanto escravos quanto agregados, embora

sujeitos às condições de trabalho determinadas pelo senhor proprietário, dele dependiam para

a satisfação de suas necessidades básicas de sobrevivência e de proteção, especialmente em se

tratando dos trabalhadores livres e agregados.

Neste sentido, contraditoriamente, vão se estabelecendo vínculos que vão além das

relações de trabalho (escravo e servil), sendo que em alguns casos, chegava-se a se

estabelecer relações afetivas53. “Há mesmo um rito católico que se aproveitará para sancionar

a situação e as novas relações: o testemunho nas cerimônias religiosas do batismo e do

casamento, que criarão títulos oficiais para elas: padrinho, afilhado, compadre” (Prado

Júnior, 1965, p.287).

É a partir destas condições – riqueza, poder, autoridade, tradição, orgulho de sangue e

de família – que o grande proprietário se aristocratizou, formando uma classe à parte e

privilegiada54. Isto ficava evidente, especialmente se considerarmos a diferença entre estes e

os comerciantes. Embora o comércio tivesse, na vida da colônia, uma posição importante, o

trato com os negócios não era visto com “bons olhos” e os indivíduos envolvidos em tais

atividades eram tratados com descrédito55.

É a partir desta distinção e dos privilégios políticos e sociais que possuíam os

proprietários rurais que se inicia e, com o tempo se acirra, a hostilidade entre estes e

comerciantes, o que acabou resultando em grandes embates políticos.

A partir da segunda metade do século XVII as condições políticas e sociais começam a

mudar. Portugal passa a exercer um controle rigoroso do comércio externo atuando de forma

opressora na vida da colônia. Segundo Prado Júnior (1966) na medida em que a economia se

estrutura e se desenvolve se observa um verdadeiro saque organizado ao Brasil.

53 Isto, por sua vez, não eliminava as tensões e o caráter opressor e desumano que caracteriza uma sociedade escravista. 54 Podemos afirmar que é a partir destas relações que surgem e se naturalizam as práticas clientelistas no Brasil, especialmente no âmbito das políticas sociais. A área da assistência social, por exemplo, foi historicamente o campo mais vulnerável para estas práticas. Veremos, no próximo capítulo, que embora a assistência social tenha se constituído como política social, possuindo na atualidade um novo marco regulatório, ainda se observa este tipo de relações neste campo 55 Este setor se constituía na classe credora da colônia, ou seja, financiava a grande lavoura fornecendo, muitas vezes, ajuda financeira em momentos de crise.

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66

Atrelado a esta nova dinâmica comercial se observa a formação de dois novos setores

na economia brasileira que, por sua vez, começam a questionar o domínio dos proprietários

rurais: estamos nos referindo ao desenvolvimento do comércio e do crédito. Tais atividades

eram realizadas majoritariamente por Portugueses, recém vindos da Metrópole. Esta nova

dinâmica da economia colonial introduz tensões até então inexistentes entre os setores

dominantes56. Os comerciantes, que passam a prosperar com a nova postura comercial de

Portugal, colocam em questão o poder exclusivo dos grandes proprietários de terra. Isto

resultará numa mudança significativa do poder político na colônia: observa-se um

deslocamento do poder político da antiga classe dominante – os proprietários rurais – para a

da Coroa portuguesa, representada pelos governadores.

As contradições que tencionavam o sistema colonial se apresentavam tanto na

estrutura econômica e política, como também na dinâmica social. Esta apresentava um abismo

social entre as camadas populares – constituídas pela grande população de escravos e

mestiços – e os setores dominantes. Além das condições subumanas nas quais vivia a maioria

da população, outro elemento se coloca como fundamental na sociedade colonial: as questões

de natureza étnica. Estas condições se apresentam como obstáculo à organização política das

massas. Segundo Prado Júnior (1966) mesmo com as contradições acirradas e a agitação de

que observa de 1821 em diante, é possível afirmar que a organização política das camadas

populares ainda era débil e, até aquele momento, não existia condições econômicas e sociais

objetivas para uma real emancipação política do Brasil.

Isto significou a ausência de mudanças na estrutura de dominação brasileira. Esta

realidade pode ser observada no que se refere à estrutura produtiva, incluindo aí a situação da

mão de obra escrava. O liberalismo econômico, portanto, não entrou em choque com o

escravismo. A constituição viria garantir direitos entre cidadãos livres e iguais e os escravos,

portanto, estavam na categoria de coisas. No que se refere à dinâmica política, as vantagens

fruto da Independência, ficaram reservadas aos proprietários rurais.

56 Há uma diferença entre este dois segmentos da estrutura social da colônia: enquanto os comerciantes eram nativos do Reino (os chamados Reinóis), os proprietários rurais eram descendentes dos primeiros ocupantes e desbravadores da terra. Embora, a princípio, esta diferença se apresentasse como secundária, com o tempo ela se tornou central na vida política do Brasil colônia como afirma Prado Júnior (1965) “a luta de proprietários e comerciantes, reforçada assim com fundamento na naturalidade dos oponentes, se manifesta na colônia, [...] de longa data; e sai mesmo para o terreno da violência em agitações que se tornaram notáveis, a revolta de Bekmann, no Maranhão, e a guerra dos Mascates em Pernambuco. [...]. Será nas agitações da Independência e no período que a segue, prolongando-se aliás ainda por muito tempo, que tal situação se definirá claramente, degenerando não raro em lutas armadas de grande intensidade” (Prado Júnior, 1965, p.295).

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67

Vemos assim, como o projeto de 1823 traduzia bem as condições políticas dominantes. Afastando o perigo da recolonização; excluindo dos direitos políticos as classes inferiores e praticamente reservando os cargos da representação nacional aos proprietários rurais; concentrando a autoridade política no Parlamento e proclamando a mais ampla liberdade econômica, o projeto consagra todas as aspirações da classe dominantes dos proprietários rurais, oprimidos pelo regime de colônia, e que a nova ordem política vinha justamente liberar (Prado Júnior, 1966, p.48 e 49).

Tanto a Independência quanto a Assembléia Constituinte não representaram a

construção de um Estado verdadeiramente Nacional e isto não se deu unicamente pelo fato da

permanência da organização monárquica no Brasil – aliás, o Imperador pertencia a mesma

dinastia de Portugal – mas também pela perpetuação da situação política e social brasileira,

especialmente no que se refere às condições dos escravos.57 Além destes fatores, também se

observa, durante todo o primeiro reinado, um embate entre o poder absoluto do Imperador e

os nativistas. A necessidade de destituir o poder do Imperador tornou possível uma “aliança”

– que dura o tempo da tomada de poder – entre a classe dominante nacional e as camadas

populares, como afirma Prado Júnior (Id.):

[...]. De um lado estão as classes abastadas, principalmente os grandes proprietários rurais, que conduzem a oposição a D. Pedro e encaminha a revolta de abril; de outro as classes populares, de que as primeiras se servem para a realização de seus fins, e que – são elas principalmente que o fazem – saem à rua a 7 de abril para deporem o imperador (p.55).

Isto significa que, mais uma vez, permanece inalterável a situação da grande maioria

da população, o que provoca a eclosão de sucessivas revoltas em todo o país. No entanto,

podemos afirmar que os movimentos populares deste período apresentavam características

que os deixavam longe de um movimento unificado com uma direção política e ideológica

claramente definida58. Além da falta de unidade dos movimentos sociais que surgem nas

57 Esta situação difere das experiências de independência das colônias inglesas da América do Norte que conseguiram construir um sistema político novo. 58 “O radicalismo popular na época da Independência reivindicava no meio urbano, sobretudo, o livre acesso aos cargos existentes. Eles pensavam na impossibilidade que tinham de trabalhar no comércio, que era o único tipo de trabalho que se oferecia nas cidades do litoral e que estava monopolizado pelo caixeiro português. [...]. Os homens livres em geral se manifestavam em motins contra os preços, as deficiências de abastecimento, contra os

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68

várias partes do país, estes nunca iam além da conquista do poder local. Além disto, outro

elemento que dificultava o poder de luta das massas populares59 era a difícil adesão dos

escravos60 a estes movimentos.

Assim,

[..] privados de todos os direitos, isolados nos grandes domínios rurais, onde viviam submetidos a uma disciplina cujo rigor não conhecia limites, e cercados de um meio que lhe era estranho, faltavam aos escravos brasileiros todos os elementos para constituírem, apesar de seu considerável número, fatores de vulto no equilíbrio político nacional (Prado Júnior, 1966, p.57).

A Independência do Brasil foi resultado de um processo de conflitos de interesses

entre classes dominantes nacionais e os objetivos da metrópole, onde permaneceu a essência

das relações sociais no Brasil.

Neste sentido, a Independência do Brasil foi o resultado de um “arranjo político”,

resultado de uma manobra de bastidores, onde o poder foi transferido pacificamente de

Portugal ao novo governo brasileiro. E na ausência de uma participação popular significativa,

o poder permanece nas mãos de pouco: a classes dirigente da ex- colônia. “[...] Fez-se a

Independência praticamente à revelia do povo; e se isto lhe poupou sacrifícios, também

afastou por completo sua participação na nova ordem política. A Independência brasileira é

fruto mais de uma classe do que a nação tomada em conjunto” (Prado Júnior, 1966, p.45).

O projeto constitucional elaborado pela Assembléia Constituinte de 1823, inspirado

nas mais modernas constituições da época – a Inglesa e a Francesa61 – não representava, como

nestes países, ideais de liberdade62, ou mesmo a necessidade de rompimento definitivo com as

estruturas de dominação anteriores (no caso da Europa, as estruturas feudais). No entanto, os

preços da farinha, contra o preço da carne, e eles pedem o direito de acesso aos cargos de comércio” (Dias, 1990, p.307). 59 Os escravos, neste período, constituíam aproximadamente cinqüenta por cento da população brasileira (Prado Júnior, 1966). 60 Isto não significa que os escravos não resistiram à organização social vigente no Brasil, especialmente no que se refere à escravidão. As formas de resistências eram as mais diversas, se expressavam tanto nas agressões contra os senhores, boicote ao trabalho quanto nas fugas e formação dos quilombos. No entanto, a condição de escravo impossibilitava a adesão aos movimentos populares da época. 61 A constituição de 1824, seguindo os preceitos liberais, estendia o direito ao voto a forros e ex-escravos, caso estes tivessem dentro da base censitária (equivalente a cem mil réis). De acordo com Dias (1990), embora este valor possibilitasse um aumento dos votantes pobre (o pequeno sitiante e o liberto para provar a sua renda precisavam da aprovação do potentado local), serviu, neste momento, como um instrumento de cooptação e arregimentação deste eleitorado na dinâmica política brasileira, especialmente a local 62 Sobre o significado da liberdade na sociedade burguesa conferir item 1.2.

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69

legisladores brasileiros trataram de adequar os princípios e normas constitucionais aos

interesses políticos daquele momento histórico. O que deveria ser garantido

constitucionalmente eram, essencialmente, duas questões: a liberdade econômica e a

soberania nacional, e nisto, nada havia de inadequado à dinâmica, econômica, política e social

brasileira da época.

Neste sentido, Coutinho (1990) sinaliza para algo importante na constituição da nossa

cultura. A nossa condição de país subordinado ao desenvolvimento econômico mundial, nos

levou a buscar as expressões ideológicas e culturais da Europa. Isto não significa que a cultura

indígena e a cultura negra não tiveram uma participação importante na constituição da cultura

brasileira. No entanto, ambas estavam, na maioria das vezes, mescladas às referências

européias. “[…]. A história da cultura brasileira, portanto, pode ser esquematicamente

definida como sendo a história dessa assimilação – mecânica ou crítica, passiva ou

transformadora – da cultura universal […] pelas várias classes e camadas sociais brasileiras.

[…]” (Coutinho, 1990, p. 39).

Na medida em que se observa uma mudança nas relações de dependência entre a

economia brasileira e a mundial criam-se as condições para o surgimento de novos elementos

no âmbito cultural. (Id.). Até o final do século XIX, o que se observa no Brasil é uma

inadequação do ideário cultural europeu à realidade brasileira, o que Schwarz (1988) chamou

de “idéias fora do lugar”. Segundo este autor as idéias liberais que chegavam da Europa ao

Brasil não se adequavam à realidade brasileira, ou seja, os ideais de liberdade, igualdade e

universalidade estavam vinculados a processos históricos concretos pelos quais passavam

vários países europeus desde XVIII63. Já no Brasil, a realidade era bem distinta; se por um

lado os princípios liberais se adequavam à lógica de um país cuja produção agrária visava o

mercado mundial, por outro lado, tais ideias eram estranhas num país que tinha como pilares o

regime de escravidão e a prática do favor64.

Cerqueira Filho (1982) também sinaliza para a particularidade do desenvolvimento do

liberalismo no Brasil; a tendência em ocultar os conflitos de classe, própria do liberalismo

clássico, vem combinada com práticas autoritárias, com a ideologia do favor e com o discurso

63 Sobre as transformações ocorridas na Europa neste período, conferir Capítulo I. 64 Segundo Dias (1990) é possível verificar ecos da primeira Declaração dos Direitos do Homem de 1879 – expressão do primeiro momento da Revolução Francesa – em várias partes do Brasil do século XIX, como, por exemplo, na Bahia – poucos anos depois de sua promulgação – e em Recife, em 1924, onde Frei Caneca reescrevia, publicava e divulgada esta Declaração.

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70

paternalista. Afirma ele,

[...] No Brasil essa característica do discurso burguês, de ocultação do conflito de classe e mascaramento da desigualdade social “pela igualdade perante a lei” é temperada pelo sistema do favor que nega na prática a igualdade perante a lei, que continua a defender em tese. Daí o dito “para os amigos tudo; para os inimigos a lei”. Como o sistema do favor vem combinado com o autoritarismo, ele se transforma no paternalismo que ajusta/desajusta, ao mesmo tempo, o discurso burguês na sua vertente liberal (hegemônico na Europa) à formação brasileira. O conteúdo paternalista vai conferir ao discurso burguês um caráter especial de pensamento autoritário bonachão e benevolente, paternal. [...] (Cerqueira Filho, 1982, p. 85).

A ênfase da análise de Schwarz (1988) recai no tipo de relações estabelecidas entre

senhores proprietários e homens livres não-proprietários, isto porque, entre os primeiros e os

escravos as relações eram bem claras: pautavam-se nas mais variadas formas de violência. No

caso dos homens livres, mas sem propriedades, o fundamento das relações era outro. Como

foi sinalizado anteriormente, a garantia das suas condições vida e de trabalho dependia,

essencialmente, do favor de um grande proprietário. Isto podia ser observado entre as mais

variadas profissões, desde o pequeno comerciante, funcionários da administração pública, até

profissionais liberais. Neste sentido, é que Schwarz (Id.) afirma ser o favor a nossa mediação

quase universal. Afirma o autor:

O escravismo desmente as idéias liberais; mais insidiosamente o favor, tão incompatível com elas quanto o primeiro, as absorve e desloca, originando um padrão particular. O elemento de arbítrio, o jogo fluido de estima a que o favor submete o interesse material, não podem ser integralmente racionalizados. Na Europa, ao atacá-los, o universalismo visara o privilégio feudal. No processo de sua afirmação histórica, a civilização burguesa postulara a autonomia da pessoa, a universalidade da lei, a cultura interessada, a remuneração objetiva, a ética do trabalho etc. – contra as prerrogativas do Ancien Regime. O favor, ponto por ponto, pratica a dependência da pessoa, a exceção à regra, a cultura interessada, remuneração e serviços pessoais. [...] (Schwarz, 1988, p. 16).

A ideologia do favor contribuiu decisivamente para dar sustentação às relações de

dominação no Brasil. Numa sociedade escravista, aquele indivíduo favorecido pela tutela de

um grande proprietário afirmava a sua condição de homem livre, se colocava numa condição

de “igualdade” perante os demais e numa posição superior àqueles que, de uma forma ou de

outra, estavam vinculados à escravidão. Neste sentido é que este autor faz referência a esta

dinâmica como “cerimônia de superioridade social” (Schwarz, 1988).

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71

Ianni (2004) também aponta para o desencontro entre os sistemas de pensamento

vindos da Europa e a realidade brasileira do século XIX e isto pode ser observado através de

três características principais: ecletismo, anacronismo e exotismo.

Isto significa que enquanto os principais países da Europa entravam numa nova etapa

do capitalismo mundial – do capitalismo concorrencial para o monopolista – o Brasil

encontrava-se vinculado a uma estrutura social com traços do colonialismo.

[...] ao fim do século XIX o Brasil ainda parecia viver no século XVIII. As estruturas jurídico-políticas e sociais tornaram-se cada vez mais pesadas. Revelaram-se heranças carregadas de anacronismo. Eram evidentes os sinais de uma mentalidade formada nos tempos do colonialismo português. A relação dos setores dominantes e do próprio governo com a sociedade guardava os traços do colonialismo (Ianni, 2004, p.19).

A tentativa de modernizar o país não se expressava somente através da incorporação

enviesada do ideário liberal. Observava-se uma necessidade de introduzir no Brasil costumes

europeus que se evidenciavam nas mais variadas formas: na arquitetura, nas vestimentas, na

aquisição de refinadas louças, porcelanas, cristais, etc. Os hábitos também deveriam se

“civilizar”, ou seja, tornarem-se o mais próximo possível dos europeus, ainda mais em se

tratando de uma sociedade já bastante miscigenada, sendo que duas das raças em questão

eram consideradas bárbaras. Afirma Schwarz (1988),

[...] nas revistas, nos costumes, nas casas, nos símbolos nacionais, nos pronunciamentos de revolução, na teoria e onde mais for, sempre a mesma composição “arlequinal”, para falar com Mario de Andrade: o desacordo entre a representação e o que, pensando bem, sabemos ser o seu contexto. – Consolidada por seu grande papel no mercado internacional, e mais tarde na política interna, a combinação do latifúndio e trabalho compulsório atravessou impávida a Colônia, Reinados e Regências, Abolição, a Primeira República, e hoje mesmo é matéria de controvérsias e tiros. O ritmo da nossa vida ideológica, no entanto, foi outro, também ele determinado pela dependência do país: à distância acompanhava os passos da Europa. [...] (p. 21).

Esta tentativa de modernização pode ser evidenciada também nos estudos que

intencionavam explicar o Brasil. Desde o final do século XIX e durante todo o século XX

podemos observar uma vasta produção intelectual brasileira empenhada em entender as

Page 83: Tese Paula Bonfim (1)

72

particularidades da nossa formação econômica, política, social e cultural. Uma produção

intelectual, segundo Ianni (2004), bastante diversificada e, muitas vezes, contraditória65. Para

este autor, são muitas as interpretações do Brasil moderno, desde aquelas de cunho liberal,

passando pelas análises liberal-democrática, coorporativas, facistas, socialistas e outras. O que

é comum a todas elas é o fascínio pela modernidade nacional. Os estudos sobre a nossa

formação tinham influências de pensamentos vindos da Europa e dos Estados Unidos e isto,

muitas vezes, não se fazia sem problemas. A necessidade de o Brasil acompanhar o “bonde da

história” tornavam algumas análises caricatas, ou seja,

[...] a idéia de Brasil Moderno frequentemente tem algo de caricatura. Primeiro, caricatura resultante da imitação apressada de outras realidades ou configurações históricas, freqüentemente implicadas em idéias, conceitos, explicações, teorias. Segundo, caricatura tornada ainda mais grotesca porque superpõe conceitos e temas a realidades nacionais múltiplas, antigas e recentes, nas quais se mesclam os “ciclos” e as épocas da história brasileira, como em um insólito caleidoscópio de realidade e imitações (Ianni, 2004, p.46).

Isto significa afirmar que mesmo tendo diferentes perspectivas, os estudos sobre a

nossa formação visavam o entendimento para impulsionar a modernização do país: uns

buscavam a modernização democrática, outros conservadores ou autoritários; uns acreditavam

que as reformas eram suficientes, outros viam na revolução a única alternativa para que o país

alcançasse o patamar civilizatório.

É importante destacarmos, portanto, que a especificidade da formação econômico-

social, política e cultural brasileira se expressa justamente nesta dinâmica de inadequação e,

ao mesmo tempo, adequação ao ideário moderno. Isto se justifica porque, embora fôssemos

um país com as marcas da colonização, da escravidão e com forte presença da ideologia do

65 Diversos pensadores brasileiros como Tavares Bastos, Joaquim Nabuco, Sílvio Romero, José Veríssimo e outros, influenciados por idéias liberais, positivistas, darwinistas se propuseram a explicar o Brasil do século XIX, apontando seu atraso se comparado aos países capitalistas europeus. Alguns autores desenvolveram estilos de pensamentos que fizeram deles clássicos do pensamento social, são eles: Oliveira Viana, Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda, Roberto C. Simonsen, Caio Prado Júnior e outros. Tais autores, com perspectivas teóricas e ideológicas bem diferenciadas, tiveram bastante influência em setores empresariais, jornalísticos, universitários, militares etc., disseminando ideias sobre a constituição da sociedade brasileira e, a partir destas, apontando saídas para o futuro. Influenciados por diferentes linhas de pensamentos vindos da Europa e dos Estados Unidos, estes clássicos brasileiros procuraram entender o Brasil sob diferentes perspectivas (cf. Ianni, 2004).

Page 84: Tese Paula Bonfim (1)

73

favor, estávamos vinculados à lógica do capitalismo internacional. Neste sentido é que

Schwarz (1988) observa que

[...] as idéias liberais não se podiam praticar, sendo ao mesmo tempo indescartáveis. Foram postas numa constelação especial, uma constelação prática, a qual formou sistema e não deixaria de afetá-las. Por isso, pouco ajuda insistir na sua clara falsidade. Mais interessante é acompanhar-lhes o movimento, de que ela, a falsidade, é parte verdadeira. Vimos o Brasil, bastião da escravatura, envergonhado diante delas – as idéias mais adiantadas do planeta [...] e rancoroso, pois não serviam para nada. Mas eram dotadas também com orgulho, de forma ornamental, como forma de modernidade e distinção. E naturalmente foram revolucionárias quando pesaram no Abolicionismo. [...] (Schwarz,1988, p.22).

Segundo Coutinho (1990), Schwarz consegue expressar bem uma dialética de

inadequação e adequação, principalmente no que se refere à penetração das ideias liberais no

Brasil. Se, por um lado, este ideário contribuía para o fortalecimento das classes dominantes –

livre negociação internacional, garantia da igualdade jurídico- formal entre oligarquia rural e

comercial etc. – por outro, chocava-se com a lógica da escravidão, ou seja, com o trabalho

baseado na coerção extra-econômica e todo o caldo cultural proveniente deste tipo de relação

especialmente com a lógica do “favor” que marca a relação entre senhores proprietários e

homens livres não-proprietários. “[...]. O “favor”, que marca tal relacionamento, consagra

vínculos de dependência pessoal, de tipo pré-capitalista; é, por conseguinte, um modo de

relacionamento autoritário (mesmo quando paternalista) e antiliberal” (Coutinho, 1990, p. 41).

Dias (1990) nos chama a atenção para a dinâmica deste período de transição: este é

marcado por uma forte insegurança social na medida em que as elites se deparavam com a

proximidade da abolição, com a constituição do mercado de trabalho livre e como início dos

movimentos operários66. Não por acaso, observa-se neste momento uma tendência à repressão

e ao controle social e uma retração, por exemplo, dos direitos políticos67.

É justamente a partir desta dinâmica que se dá a transição de um modo de produção

escravista de caráter mercantil para um modo de produção propriamente capitalista. A

66 Segundo Dias (1990) no Rio de Janeiro, em 1870/1890 já se observa uma dinâmica de conflito social urbano, desencadeada por algumas associações operárias, organizações portuárias, conflitos e confrontos entre lideranças mulatas e portuguesas. 67 O início da República é marcado pelo aumento da base censitária (passou de 100 para 400 réis), pela proibição ao direito de votar de ex-escravos, forros e analfabetos. Os votantes passam de 15% para 1,5%.

Page 85: Tese Paula Bonfim (1)

74

particularidade da revolução burguesa brasileira, segundo Florestan Fernandes (2004), está no

fato de que ela se realiza a partir da herança deixada pela escravatura.

[...] Desde o princípio, essa revolução excluiu o trabalhador “livre”, negro mulato, índio, caboclo, imigrante, “nacional”, do acesso aos meios do poder político, às conquistas democráticas. [...]. O liberalismo econômico predomina nas relações externas e em alguns círculos principais da vida econômica nacional. Mas praticamente nada de liberalismo político, em termos de liberdades democráticas, no âmbito da sociedade civil, dos grupos e classes compreendidos pelos trabalhadores da cidade e do campo. São muito difíceis as condições sob as quais se desenvolvem as atividades sindicais, político-partidárias e culturais da maioria do povo. A repressão está à solta e brutal em todos os lugares: em Canudos, durante a campanha da vacina obrigatória, no Contestado, nas fazendas, nos engenhos, fábricas, ruas, praças (Ianni, 2004, p. 47).

Não por acaso é emblemático o lema “ordem e progresso” para caracterizar a dinâmica

do desenvolvimento do capitalismo no Brasil, ou seja, a transição para um novo modo de

produção deveria se dá sem se romper com as estruturas de poder do regime anterior

(escravismo) e, neste sentido, era necessário se combater todas as formas de manifestações

populares.

As renovações institucionais que se estabelecem com a República foram essenciais

para a consolidação da revolução burguesa no país, especialmente no que se refere à

adaptação da “grande empresa agrária” ao trabalho livre e à circulação das mercadorias. No

entanto, no que se refere às relações sociais mais amplas a dinâmica permanece a mesma. Não

se observam mudanças significativas nos valores, nos ideais de vida, nos hábitos de

dominação patrimonialista, nas tradições que vigoravam anteriormente na sociedade

escravista. “A República é um negócio de brancos” (Ianni, 2004, p. 48).

A transição do modo de produção escravista para o modo de produção capitalista

possui, portanto, uma dinâmica muito particular, sendo necessário uma análise cuidadosa para

desvendar a dialética deste processo. Segundo Fernandes (2004), os movimentos que

buscavam a manutenção da estrutura social escravocrata e as formas de dominação

patrimonialista não eram pura e simplesmente contrários à modernização e ao

desenvolvimento capitalista. O que se verifica, segundo este autor (Id.) é que “[...] eles

constituíam uma precondição para que tudo isto fosse possível, dadas as vinculações

existentes entre a grande lavoura, a continuidade da incorporação direta ao mercado mundial e

o desenvolvimento capitalista no “setor novo”, urbano comercial [...]” (p.249).

Page 86: Tese Paula Bonfim (1)

75

Se analisarmos o outro protagonista deste processo – os setores interessados na

expansão de um mercado capitalista – veremos que estes, por sua vez, não tinham por

objetivo a superação completa do tipo de relações econômicas, políticas e sócio-culturais

construídas a partir da ordem colonial. Isto ocorre em virtude da importância da economia

agroexportadora para o financiamento do novo setor.

[...] Por isso não só as relações de produção coloniais podiam subsistir: elas se convertiam, de imediato, em fonte de excedente econômico que iria financiar tanto a incorporação direta ao mercado mundial, com seus desdobramentos econômicos e culturais, quanto a eclosão de um mercado capitalista moderno e a subseqüente revolução urbano-comercial. [...] (Fernandes, 2004, p.249 e 250).

Neste sentido, é correto afirmar que o processo de desenvolvimento do capitalismo no

Brasil se deu sem a realização de mudanças radicais na estrutura de poder. No entanto, foi

preciso realizar mudanças institucionais e ações de infra-estrutura econômica, de transporte e

de serviços com o objetivo de atender interesses privados imediatos. É importante salientar

que esta dinâmica não foi exclusiva ao Brasil e aos países de capitalismo dependente.

Entretanto, segundo Fernandes (2004), no Brasil isto apresenta uma característica bem

peculiar: aqui os interesses da nação são confundidos com os interesses de uma minoria

privilegiada. Esta última

[...] encara a si própria e a seus interesses como se a nação real começasse e terminasse nela. Por isto seus interesses particularistas são confundidos com os “interesses da nação” e resolvidos deste modo. Enquanto que os interesses da grande massa excluída são simplesmente esquecidos, ignorados ou subestimados. Os assuntos de mudança social entram, assim, na esfera do controle social e da dominação de classe, com uma ótica enviesada, que identifica a nação com os “donos do poder” (Fernandes, 2004, p. 256).

Isto nos leva a concluir que, se ao longo da nossa história em todos os momentos em

que a sociedade demandava transformações na sua estrutura econômica, política e social,

estas foram feitas pelo “alto”, pela via da conciliação, ou seja, sempre de cima para baixo,

prevalecendo majoritariamente os interesses dos setores dominantes68. Para Coutinho (1990)

68 Mesmo que estes tivessem que ceder à algumas demandas das classes populares (Coutinho, 1990).

Page 87: Tese Paula Bonfim (1)

76

esta é uma determinação histórico-genética da nossa formação cultural e, neste sentido,

também da moralidade brasileira69.

E isto pode ser observado tanto na Independência quanto na abolição, na proclamação

da república e com as mudanças no bloco do poder em 1930, 1937 e 1964.

[...] Portanto, a transição do Brasil para o capitalismo (e de cada fase do capitalismo para a fase subseqüente) não se deu apenas no quadro da reprodução ampliada da dependência, ou seja, com a passagem da subordinação formal à subordinação real em face do capital mundial; em estreita relação com isto (já que uma solução não prussiana da questão agrária asseguraria o quadro para o desenvolvimento de um capitalismo nacional não dependente), essa transição se processou também segundo o modelo da “modernização conservadora” prussiana (Coutinho, 1990, p.44, grifos do autor).

Segundo Ianni (2004) a independência do Brasil em 1822 significou a primeira grande

conciliação pelo alto na história política do país e com ela a derrota dos ideais comprometidos

com o abolicionismo, com a proclamação da República e com a democracia. Não se observam

mudanças significativas no âmbito econômico, político, social e cultural. As estruturas de

poder permancem as mesmas.

O “cidadão” da nova sociedade era aquele que já desfrutava do poder político do

“antigo regime” ou agora o “burguês” com condição senhorial. Assim, a nova ordem social se

inicia excluindo tanto os brancos pobres quanto os remanescentes da escravidão.

[...] a consciência conservadora prevaleceu, porque ela reunia os principais trunfos das estruturas de poder: a “velha” e a “nova” oligarquias coincidem, em seus propósitos de “desenvolvimento com segurança”, com setores ascendentes das classes médias e os “parceiros estrangeiros. [...]”. (Fernandes, 2004, p.254).

Na análise de Caio Prado Júnior, a conciliação “pelo alto”70 ocorre em grande medida

pelo fato de os movimentos populares brasileiros do século XIX se caracterizarem por um

69 Isto pode ser evidenciado, como afirmou Coutinho (Id.) em vários momentos históricos: “[...] o primeiro imperador do Brasil era filho de D. João VI, herdeiro do trono português. E a coisa é tão curiosa que ele foi D. Pedro no Brasil e, quando foi obrigado a abdicar, voltou para Portuga e se tornou regente da filha, D. Pedro IV. O primeiro presidente do Brasil, depois da ditadura militar, o bravo José Sarney, era presidente da Arena, partido de sustentação da ditadura. [...] Deodoro da Fonseca, pouco antes de proclamar a República, escreve para seu sobrinho que estava em Paris e era republicano: “meu filho, não podemos absolutamente conspurcar [..] o nome do nosso querido Imperador”. Ou seja, virou republicano do dia para a noite” Anotações de aula ministrada por Carlos Nelson Coutinho em 26.03.08 na pós-graduação em Serviço Social/UFRJ).

Page 88: Tese Paula Bonfim (1)

77

“subversivismo esporádico e elementar” nos termos gramscianos. Ou seja, além da violência

estatal aos movimentos populares, havia uma fragilidade na auto-organização destes grupos.

“[...] A economia nacional, e com ela nossa organização social, assente como estava numa

larga base escravista, não comportava naturalmente uma estrutura política democrática e

popular” (Prado Júnior apud Coutinho, 1990, p.177).

A abolição da escravatura em 1888 e a proclamação da República em 1889 trouxeram

mudanças importantes, entretanto, mais uma vez, não alteraram a essência das relações de

poder. Mesmo levando em conta os movimentos populares que lutavam pelo fim da

escravidão, pela república e por conquistas democráticas, o que prevalece são os interesses de

setores da burguesia emergente combinados com os remanescentes. Isto significa que

“predominaram a economia primário exportadora, a política de governadores manejados pelo

governo federal e o patrimonialismo em assuntos privados e públicos [...]” (Ianni, 2004, p.22).

As relações sociais da República recém proclamada eram regidas simultaneamente

pelo liberalismo e patrimonialismo. Este último se apresentava tanto no âmbito privado,

expresso no patriarcalismo da casa-grande e do sobrado, como no âmbito público através da

repressão aos movimentos sociais no campo e na cidade.

Estava em marcha uma singular revolução pelo alto. Remanejavam-se pessoas, interesses, associações de grupos, diretrizes no âmbito do poder estatal. Mas aos poucos se alterava a própria sociedade, em suas relações com o poder estatal. Os diferentes setores populares, as reivindicações dos trabalhadores da cidade e do campo, as demandas dos negros, mulatos, índios e caboclos não encontravam lugar nas esferas do poder. Modificavam-se um pouco os arranjos dos poder, das relações dos setores dominantes com os populares, do poder estatal com a sociedade, para que nada se transformasse substancialmente (Ianni, 2004, p. 23).

A partir destes elementos, amplamente analisados por Caio Prado Júnior e Florestan

Fernandes, Coutinho (1990), também afirma que a transição ao capitalismo no Brasil se deu

pela via não-clássica (ou “prussiana”)71. Diferente da análise de Lênin, o que se mantêm no

70 De acordo com Coutinho (1990) é possível fazermos uma analogia entre o conceito de “revolução passiva” elaborado por Gramsci e as reflexões de Caio Prado sobre a “questão nacional” no Brasil. Tal conceito possui semelhanças com a “via prussiana”, mas dá destaque para a questão agrária e a constituição do Estado Nacional. 71 Coutinho (1990) afirma que, a partir dos estudos de Lênin, podemos identificar duas principais vias na transição ao capitalismo. A primeira seria a forma “clássica” (chamada por ele de “americana”), onde se observa uma transformação radical da estrutura agrária pré-capitalistas, ou seja, a grande propriedade agrária é destruída

Page 89: Tese Paula Bonfim (1)

78

Brasil não é uma estrutura rural feudal, mas um modelo determinado de latifúndio do tipo

colonial e fundado em relações escravistas.

“[...]. Cabe registrar que esta modalidade de “via prussiana”, além de conservar o poder político do grande proprietário rural, permitiu ao capitalismo brasileiro exercer uma superexploração da força de trabalho, tanto rural quanto urbana, com que se manteve um traço marcante da era colonial: o baixíssimo padrão de vida do produtor direto” (Coutinho, 1990, p. 172).

Nesta mesma direção encontram-se as reflexões de Oliveira (2003). Este autor nega o

dualismo presente na idéia de que o desenvolvimento do capitalismo no Brasil se dá a partir

da oposição entre os setores “atrasados” e “modernos”. Para ele, por trás desta aparente

dualidade – o distanciamento, em termos de produtividade, da agricultura e da indústria –

existe uma integração dialética.

Assim como Coutinho (Id.), Oliveira (2003) afirma que a questão fundamental para a

reprodução das condições para expansão capitalista no Brasil foi a solução encontrada para o

“problema agrário”, ou seja, foi a combinação de três fatores essenciais neste processo: a

grande quantidade de mão de obra, a oferta elástica de terras e a intermediação do Estado

para viabilizar o encontro destes dois fatores. Assim, segundo este autor, é possível observar

no Brasil um processo particular de “acumulação primitiva”72: o trabalhador rural ou morador

ocupa e prepara a terra para a lavoura de “subsistência” e, ao mesmo tempo, para as lavouras

permanentes ou para a formação de pastagens; estas últimas, por sua vez, pertencem

exclusivamente ao proprietário. Aqui, não se expropriou a propriedade, mas sim o excedente

que se forma pela posse transitória da terra.

dando lugar à exploração camponesa; além disto, desaparecem as relações de trabalho baseadas na coação extra-econômica sobre o trabalhador. Já na via “prusiana” ou “não clássica” a grande propriedade rural permanece, só que agora serve de base para o desenvolvimento da empresa agrária capitalista. Além do latifúndio, evidencia-se a manutenção das relações de trabalho baseadas na dependência, subordinação ou mesmo violência. Coutinho (Id.) chama a atenção para o fato de que não se deve confundir via clássica com via normal e via prussiana como caminho excepcional 72 Uma das condições prévias, segundo Marx, para o desenvolvimento capitalista é a acumulação primitiva ou originária. Ela é resultado de um processo histórico que se operou do final do século XV até meados do século XVIII. Esta acumulação foi possível através da expulsão violenta de camponeses de suas terras e a apropriação destas por proprietários fundiários; pela junção de grandes grupos comerciais, antigos mestres-artesãos que enriqueceram e também através do saque de ouro e prata nas Américas, escravidão e a conquista e pilhagem das Índias Ocidentais. No entanto, segundo Oliveira (2003) é correto afirmar que a acumulação primitiva não se encontra apenas na gênese do capitalismo, mas, “[...] em certas condições específicas, principalmente quando esse capitalismo cresce por elaboração de periferias, a acumulação primitiva é estrutural e não apenas genética. [...]” (p.42).

Page 90: Tese Paula Bonfim (1)

79

Esta dinâmica foi fundamental para a redefinição das relações ente agricultura e a

indústria e entre as próprias atividades agrícolas, ou seja: na medida em que os custos da

produção agrícola permaneciam baixos, permitia uma redução no que se refere à reprodução

da força de trabalho urbana. Além disto, tal modelo ainda possibilitou que a questão da

distribuição da terra fosse ignorada e, ao mesmo tempo, não fossem estendidos os direitos

trabalhistas aos trabalhadores rurais.

Esta é a natureza da conciliação existente entre o crescimento industrial e o crescimento agrícola; se é verdade que a criação do “novo mercado urbano-industrial” exigiu um tratamento discriminatório e até confiscatório sobre a agricultura, de outro lado é também verdade que isto foi compensado até certo ponto pelo fato de que este crescimento industrial às atividades agropecuárias manterem seu padrão “primitivo” baseado numa alta taxa de exploração da força de trabalho (Oliveira, 2003, p.47).

Neste sentido, as condições de produção no campo foram de suma importância para os

setores urbanos, de um lado, fornecendo uma enorme população que viria a se constituir o

“exército de reserva” e, de outro, fornecendo, a baixos custos, os gêneros alimentícios

necessários ao trabalhador urbano. Segundo Oliveira (2003) este é o fundamento da tendência

à concentração de renda, de propriedade e de poder no Brasil.

Estes são alguns dos elementos que marcaram o processo de desenvolvimento do

capitalismo no país pós-1930. Não se deve concluir, portanto, que as desigualdades,

resultantes deste processo, sejam resultado do descompasso dos setores “atrasados” e

“modernos”, como afirma Oliveira (2003):

[...] a expansão do capitalismo no Brasil se dá introduzindo relações novas no arcaico e reproduzindo relações arcaicas no novo, um modo de compatibilizar a acumulação global, em que a introdução das relações novas no arcaico libera forças de trabalho que suporta a acumulação industrial-urbana e em que a reprodução de relações arcaicas no novo preserva o potencial de acumulação liberado exclusivamente para os fins de expansão do próprio novo. [...] (p.60).

A economia brasileira após os anos 30 possui, portanto, uma particularidade: além da

conhecida mudança no que se refere ao fim da hegemonia agrário-exportadora73, observa-se a

73 Embora se observe o fim desta hegemonia, a predominância do setor industrial na renda interna só se dá a partir de 1956 (Oliveira, 2003).

Page 91: Tese Paula Bonfim (1)

80

expansão do capitalismo, sem reproduzir, no entanto, o percurso “clássico” do

desenvolvimento dos países capitalistas centrais. Ou seja, nas revoluções burguesas

“clássicas” observa-se uma ruptura total do sistema e uma substituição das classes

proprietárias rurais pela nova classe burguesa. A dinâmica do pós-1930 não possibilitou

mudanças estruturais no que se refere aos proprietários e não proprietários dos meios de

produção (Oliveira, 2003).

Isto significa que no caso brasileiro ocorreu uma reestruturação econômica em função

da crise nas relações externas, enquanto que no modelo “clássico” a crise se dá na totalidade

das relações de produção e da sociedade. Assim, a expansão capitalista no Brasil foi

determinada por “[...] mudanças no modo de acumulação, na estrutura do poder e no estilo de

dominação [...]” (p.63).

Isto significa que com o “novo” Estado que nasceu pós-1930 não se observa grandes

rupturas políticas, mas uma troca de elites no poder. Embora se observe, a partir de então,

uma centralização das decisões econômico/financeiras e políticas nas mãos do Estado –

diminuindo o poder das oligarquias tradicionais – isto não significou um desaparecimento do

poder oligárquico, tampouco o padrão de relações sociopolíticas baseados na ideologia do

favor. Estes elementos – que como vimos fazem parte da nossa gênese – repõe-se neste

momento sob novas circunstâncias.

A especificidade do desenvolvimento capitalista no Brasil estaria, segundo Oliveira

(2003)

[...] em reproduzir e criar uma larga “periferia” onde predominam padrões não-capitalísticos de relações de produção, como forma e meio de sustentação e alimentação do crescimento dos setores estratégicos nitidamente capitalistas, que são a longo prazo a garantia das estruturas de dominação e reprodução do sistema (Oliveira, 2003, p.69).

Neste sentido, Oliveira (Id.) chama a atenção para um elemento fundamental neste

processo: o fenômeno do populismo. Este foi responsável pela adequação destas novas

relações, mas, sobretudo, pela junção do “arcaico” e do “novo” e das novas formas de

relacionamento entre capital e trabalho (aqui a legislação trabalhista teve um papel

fundamental).

Isto significa que mesmo ocorrendo uma mudança de hegemonia – passando esta para

a burguesia industrial – a classe proprietária rural não foi excluída totalmente da estrutura de

poder, nem dos resultados da expansão do sistema. Um exemplo claro desta nova dinâmica é

Page 92: Tese Paula Bonfim (1)

81

o fato da legislação trabalhista não ter se estendido ao campo, preservando, como já

sinalizamos uma forma de “acumulação primitiva” bastante adequada ao desenvolvimento do

sistema como um todo74.

Assim, é possível afirmar que algumas características se destacam a partir de 1930.

Além da centralização e maior autonomia do governo ao administrar os interesses políticos

em jogo, Fausto (2007) chama a atenção para três elementos que se destacaram no governo

Vargas:

[...] 1. a atuação econômica, voltada gradativamente para os objetivos de promover a industrialização; 2. a atuação social, tendente a dar algum tipo de proteção aos trabalhadores urbanos, incorporando-os, a seguir, a uma aliança de classe promovida pelo poder estatal; 3. o papel central atribuído às Forças Armadas – em especial o Exército – como suporte da criação de uma indústria de base e sobretudo como fator de garantia da ordem interna (p. 327).

Para Oliveira (2003), portanto, a “especificidade particular” do capitalismo no Brasil

estaria justamente na complementaridade entre os setores da economia: perpetuar as relações

não-capitalistas na agricultura e criar um padrão de apropriação do excedente num setor como

o de serviços.

Neste sentido, o processo de industrialização no país não deve ser visto como

resultado do acaso, mas ao contrário, para alcançá-lo foram estabelecidos objetivos coerentes

entre si e criadas condições para tal: prioridade para indústrias consideradas estratégicas –

siderurgia, naval e automobilística –, reforma da legislação tarifária, negociações nos custos

para importações de equipamentos, foram algumas delas.

Outra estratégia importante que marcou profundamente o governo Vargas foi a criação

das políticas trabalhistas. Estas tinham por objetivo principal coibir a organização da classe

trabalhadora – que tinha se intensificado nos anos 20 – e obter o apoio desta classe ao

governo. Ao lado desta estratégia permaneceu o recurso da violência, a repressão aos partidos

e organizações de esquerda.

Como já observou Oliveira (2003) o “novo” e o “arcaico” também se misturam neste

campo. Ao lado da legislação trabalhista que estabeleceu uma melhoria das condições de vida

74 Neste sentido é que Oliveira (2003) faz a crítica ao modelo cepalino onde se defende a tese de que o subdesenvolvimento da sociedade brasileira está geneticamente associado à coexistência no âmbito econômico de dois setores antagônicos: um “atrasado” e um “moderno”.

Page 93: Tese Paula Bonfim (1)

82

do trabalhador urbano– regulamentação do trabalho de mulheres e crianças, o limite de oito

horas da jornada de trabalho, a concessão de férias – permaneceu a política autoritária

podendo ser evidenciada, por exemplo, no enquadramento dos sindicatos75. A postura

autoritária do governo também se expressava na área da educação. A organização do sistema

educacional se deu de cima para baixo, desprezando as contribuições da sociedade como um

todo. Assim, a educação passou a ser moldada por valores hierárquicos e pelo conservantismo

oriundo da Igreja Católica.

A eleição de Dutra em 1945, após a queda de Getúlio, não expressa uma ruptura

radical com o período da ditadura Varguista. Dutra elegeu-se em função da combinação de

dois principais elementos: a utilização da máquina eleitoral montada pelo PSD e através do

apoio público de Getúlio Vargas. Isto demonstra que a mesma estrutura política que

possibilitou a manutenção da ditadura Varguista favoreceu a abertura democrática com a

eleição de Dutra. Segundo Fausto (2007)

A votação mostrou claramente como a máquina política montada pelo Estado Novo, com o objetivo de apoiar a ditadura, podia ser também muito eficiente para captar votos, sob regime democrático. Esse fato é indicativo de que para uma parcela significativa do eleitorado importavam mais as relações pessoais clientelistas do que a opção entre partidários do Estado Novo e liberais. A opção não tinha significado na vida cotidiana dos eleitores e era abstrata demais para ser apreendida por um eleitorado de educação rudimentar. O PSD garantiu a maioria absoluta dos lugares, tanto na Câmara como no Senado, seguido pela UDN (p. 399).

A constituição de 1946 também expressa esta relação de continuidade com a dinâmica

política anterior: se por um lado a nova Constituição apresenta elementos liberais-

democráticos, por outro, permaneciam características do modelo coorporativo da ditadura

Varguista, especialmente no que se refere à organização dos trabalhadores. O princípio da

unidade sindical ficou mantido, assim como o papel do Estado junto aos sindicatos. Mesmo

reconhecendo o direito de greve, este estava sujeito à regulamentação legal76.

75 “[...] O sindicato foi definido como órgão consultivo e de colaboração com o poder público. Adotou-se o princípio da unidade sindical, ou seja, do reconhecimento pelo Estado de um único sindicato por categoria profissional. [...]. O governo se atribuiu um papel de controle da vida sindical, determinando que funcionários do ministério assistiriam às assembléias dos sindicatos. A legalidade de um sindicato dependia do reconhecimento ministerial, e este poderia ser cassado quando se verificasse o não-cumprimento de uma série de normas”(Fausto, 2007, p. 335). 76 Segundo Fausto (2007) “enquanto a Constituinte se reunia, Dutra baixou o Decreto-lei 9 070, de março de

Page 94: Tese Paula Bonfim (1)

83

Uma das conquistas observadas na nova Constituição é o reconhecimento do direito de

votar das mulheres, garantindo assim igualdade, no plano dos direitos políticos, entre homens

e mulheres. No entanto permanecia o impedimento dos analfabetos na participação da vida

política do país.

Percebe-se, assim, que a abertura democrática ocorre atravessada de restrições,

demonstrando a posição dos conservadores no que se refere à democracia: esta é considerada

perigosa e destrutiva (Escorsin Netto, 2011).

O período democrático que vai de 1945 a 1964 é marcado, entre outras coisas, pelo

investimento pesado na industrialização e na modernização do país – fundamentalmente no

governo Juscelino Kubitschek – pelo endividamento externo e aumento da inflação.

Embora com os limites colocados pela nova Constituição, a abertura democrática

possibilitou também a liberalização do movimento sindical e o seu fortalecimento. Isto pode

ser verificado nas sucessivas greves realizadas em São Paulo no ano de 1953, sendo a “greve

dos 300 mil77” a mais significativa delas. Além das greves nos grandes centros, alguns

movimentos sociais deste período merecem destaque. No que se refere ao campo é

imprescindível destacarmos o movimento rural mais importante do período, as Ligas

Camponesas. Estas começam a surgir no final de 1955 e tinham por objetivo defender os

trabalhadores rurais da expulsão das terras, da elevação dos preços dos arrendamentos e da

prática do “cambão”78. As Ligas espalharam-se pelo país, sobretudo no Nordeste.

O movimento operário, como já sinalizamos, tinham se revigorado e, articulado com o

governo de Jango, manifestavam seu apoio às reformas de base. Estas abrangiam uma série de

medidas, entre elas destacavam-se a reforma agrária, a reforma urbana, a ampliação do direito

ao voto aos analfabetos e aos inferiores das Forças Armadas, no caso do exército. Além disto,

as reformas pretendiam uma ampliação da intervenção do Estado na vida econômica (Fausto,

2007).

1946, que regulamentava o direito de greve. A definição do que eram “atividades essenciais”, onde as paralisações não seriam permitidas, abrangia quase todos os ramos. O professor de Direito do trabalho Cesarino Júnior observou que, se o decreto fosse obedecido, só seriam legais greves nas perfumarias” (p.401). 77 Esta greve se iniciou no setor têxtil ganhando adesão de marceneiros, carpinteiros, operários em calçados, gráficos e vidreiros. A principal reivindicação era um reajuste de 60% nos salários, já que estes se encontravam bastante defasados em virtude do alto custo de vida. 78 Prática comum no campo onde o proprietário rural cedia uma parte pequena de suas terras para os trabalhadores rurais morarem e produzirem para subsistência e em troca, os proprietários das terras exigiam dos camponeses dois, três e até quatro dias de trabalho gratuito.

Page 95: Tese Paula Bonfim (1)

84

Na entrada dos anos 60, a dinâmica endógena do capitalismo colocava a necessidade

de mudanças no padrão de acumulação. A saída para a crise, que se apresentava iminente, foi

o rearranjo nas relações entre Estado, burguesia nacional e empresas transnacionais, sendo

fornecida a esta última um conjunto de privilégios.

Este rearranjo, no entanto, começa a sofrer erosão entre 1961 – 1964, possibilitando,

neste mesmo período, a articulação de forças democráticas. Com Goulart liderando o

executivo foi possível a ocupação de espaços significativos do Estado por protagonistas

comprometidos com a classe subalterna. Esta nova dinâmica política colocava em questão

alguns dos elementos presentes ao longo da nossa formação: o desenvolvimento capitalista

sem reformas estruturais e a exclusão das massas nos processos de decisões políticas. Mesmo

não tendo por objetivo romper com o capitalismo, esta nova dinâmica possibilitava o

questionamento da exploração imperialista e latifundiária e, ao mesmo tempo, criava as

condições para a construção de uma nova hegemonia com mudanças significativas no plano

econômico e social.

Neste sentido é que Netto (2001) afirma que este é um momento histórico de

fundamental importância pela tentativa de se romper com aquele traço particular da nossa

formação: o estatuto colonial e a ausência da participação popular nos processos decisórios.

A dinâmica política brasileira da década de 1960 expressa, portanto, uma crise da

forma de dominação burguesa no Brasil (Netto, 2001,p.26), crise esta gestada pela

contradição entre o tipo de desenvolvimento econômico brasileiro e as requisições

democráticas populares a que nos referimos. As tensões se acirraram no Governo de Goulart

(1961) fragilizando as forças do campo democrático e possibilitando uma reação

conservadora e contra-revolucionária. O desfecho deste cenário foi o golpe militar de Abril de

1964. Segundo Netto (2001)

[...] Seu significado imediatamente político e econômico foi óbvio: expressou a derrota das forças democráticas, nacionais e populares; todavia, o seu significado histórico-social era de maior fôlego: o que o golpe derrotou foi uma alternativa de desenvolvimento econômico-social e político que era virtualmente a reversão do já mencionado fio condutor da formação social brasileira. [...]. Neste sentido, o movimento cívico-militar de abril foi inequivocadamente reacionário – resgatou precisamente as piores tradições da sociedade brasileira. Mas, ao mesmo tempo em que recapturava o que parecia escapar (e, de fato, estava escapando mesmo) ao controle das classes dominantes, deflagrava uma dinâmica nova que, a médio prazo, forçaria a ultrapassagem dos seus marcos (2001, p. 25).

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85

Segundo Netto (2001) os acontecimentos de abril de 1964 desencadearam um

processo de continuidade e ruptura em relação ao passado recente da formação do Brasil. A

continuidade se expressa, segundo este autor, no resgate das nossas piores tradições – da

heteronomia às saídas pelo “alto”. No que se refere à ruptura, Netto aponta para algumas

mudanças que alude ao papel do Estado. Segundo este autor o Estado do pós-64 passa a ser

funcional ao capital monopolista internacional, ou melhor, “[...] tem por funcionalidade

assegurar a reprodução do desenvolvimento dependente e associado, [...] assumindo o papel

de repassador de renda para os monopólios, e politicamente mediando os conflitos setoriais e

intersetoriais em benefício estratégico das corporações transnacionais [...]” (p. 28 e 29).

O que se observa no período da ditadura no Brasil é um processo caracterizado por

uma modernização conservadora. De um lado, se evidencia o favorecimento do capital

estrangeiro e dos grandes grupos nativos, uma concentração da propriedade e da renda

produzindo, assim, uma oligarquia financeira e um tipo de industrialização com defasagem

tecnológica. De outro, observa-se uma complexa estrutura de classes, fortemente polarizada, a

concentração das riquezas social e o aprofundamento das desigualdades regionais.

Além destas características, a partir de 1968 a ditadura inicia a criação das suas

estruturas estatais no intuito de ajustar o Estado aos seus objetivos econômicos e políticos.

Com isto a repressão à oposição torna-se sistemática e oficial. De acordo com Netto (2001)

“[...] o terrorismo de Estado é a contraface política da “racionalização”, da “modernização

conservadora” conduzida ao clímax na economia e visível na consolidação do “modelo””

(p.39 e 40).

Para consolidar os objetivos econômicos e políticos da ditadura era necessário mais do

que terrorismo de Estado. Neste sentido, ao longo da vigência do ciclo autocrático foi

necessário o desenvolvimento de ações que tinham por objetivo controlar a vida cultural79 do

país.

Segundo Netto, (2001) a ditadura no Brasil procurou aprofundar as características

culturais80 já presente na nossa formação social e que foram acertadamente sintetizadas na

79 Segundo Netto (2001) “a expressão “mundo da cultura”, [...] denota [...] o contraditório, rico e diversificado complexo de manifestações, representações e criações ideais que se constitui nas sociedades capitalistas contemporâneas, envolvendo a elaboração estética, a pesquisa científica, a reflexão sobre o ser social e a construção de concepções de mundo” (p. 44). 80 É importante lembrar que a dinâmica cultural de uma sociedade está essencialmente vinculada aos fenômenos e os processos de reprodução da vida social. Netto (Id.) afirma que “[...] na definição de uma política cultural

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86

idéia de Cordeiro (apud Netto, id.) como tara elitista. Esta marca se expressará na identidade

cultural brasileira e não se reduz às problemáticas de transplantação cultural (Sodré) ou das

ideais fora do lugar (Schwarz). Para este autor estas características estão essencialmente

vinculadas à estrutura de classe que se consolidou no Brasil moderno. A estrutura cultural da

sociedade brasileira, constituída a partir da dinâmica da nossa formação, colocou inúmeros

obstáculos à movimentação e o surgimento de tendências culturais de cunho crítico e aquelas

que representam o nacional-popular.

Neste sentido é que Netto (2001) chama a atenção para o fato de que a ditadura, no

que se refere à sua política cultural, tinha por objetivo: de um lado, reforçar a marca elitista da

cultura brasileira, reprimindo as vertentes que trabalhavam na contramão desta; e por outro,

incentivar e promover tendências que fossem funcionais ao seu projeto “modernizador”. Isto

não significa, portanto, que o Estado ditatorial tenha conseguido realizar estes objetivos na

sua plenitude e sem resistências.

As tensões no “mundo da cultura” vão existir durante todo o período ditatorial,

expressando, portanto, os conflitos entre a sua própria dinâmica, as demandas da ditadura e os

movimentos populares democráticos que persistiam em se manifestar. É importante salientar

também que a atuação da ditadura neste âmbito não se restringiu à repressão. Segundo Netto

(2001),

[...] Cônscio da impossibilidade de extirpar os vetores críticos, o Estado autocrático burguês tratou de assegurar o seu isolamento em face do processo social: não podendo impedir a sua existência, tratou de assegurá-la apenas como oposição legal de caráter puramente intelectual. Fez mais, todavia: não hesitou em tolerar tendências culturais “radicais” e “contestadoras”, desde que restritas ao estreito universo da subjetividade reificada ou ao plano abstrato das construções lógico-formais, buscando (e alguns casos conseguindo) esvaziar o alcance e a incidência da oposição intelectual que não tinham condições de eliminar (p. 53).

qualquer [...] comparecem necessariamente problemas que dizem respeito à reprodução social como processo macroscópico e abrangente. É somente com o simultâneo equacionamento destes problemas (alfabetização, escolarização, garantia de alimentação e moradia, direito ao trabalho, assistência médico-hospitalar, participação social etc.) que se podem encaminhar as questões culturais específicas” (p. 44). Não se trata, segundo o autor de tomar a cultura como um subproduto do desenvolvimento social, mas ao contrário: de colocá-la como uma dinâmica que faz parte do tecido social e político vivo. A cultura é gestada, portanto, através de protagonistas no interior da sociedade civil, isto significa afirmar que o Estado não produz cultura, mas pode criar condições para a difusão dos produtos culturais. Assim, a política cultural de um determinado governo tem (potencialmente) como função criar as condições materiais para suscitar, socializar e estimular as mais diversas expressões culturais, possibilitando também ampliação no acesso à cultura.

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87

A interferência no “mundo da cultura” também se deu via sistema educacional.

Podemos afirmar que é consenso entre os estudiosos da ditadura que há uma inflexão no que

se refere à educação. Este processo pode ser verificado em dois momentos: entre 1964 – 1968

e 1968 – 1969. O primeiro momento percebe-se um esforço da autocracia burguesa em acabar

com as experiências democráticas que vinham se desenvolvendo na área educacional. Já no

segundo momento, a estratégia passa a ser a formulação de uma política educacional moldada

para atender às necessidades do projeto “modernizador” da ditadura, ou seja, é possível

observar uma conciliação funcional-operativa entre o sistema educacional81 e a política social

mais ampla do regime militar82 (Netto, 2001).

A preocupação da ditadura com a política educacional também se justifica pela

necessidade de legitimação social. É só lembrarmos que o campo educacional é um dos

principais espaços de reprodução de valores. Um dos clássicos exemplos deste empenho é a

existência da disciplina obrigatória Educação Moral e Cívica83 ministrada em todos os níveis.

Esta adequação do sistema educacional possibilitou, por um lado, a oferta de mão de obra

qualificada e semiqualificada necessária (e excedente) ao processo de “modernização” do país

e, por outro, pode neutralizar amplamente os espaços onde se fomentava uma dinâmica crítica

e criativa na sociedade. Além disto, foram cortados os vínculos, “vivos, tensos e

contraditórios”. entre a universidade e os movimentos sociais de classes. A formação

universitária passou a se estruturar com o objetivo de produzir quadros qualificados

adequados à racionalidade formal-burocrática. Neste sentido é que se observa um

esvaziamento da universidade. (Netto, 2001, p.65).

Isto, por sua vez, não aniquilou as resistências democráticas no campo educacional. Significa

que não foi possível o controle e a manipulação plena do sistema educacional brasileiro.

Segundo Netto (2001) “[...] as contradições – mesmo asfixiadas – não foram superadas; logo

que a resistência democrática e o movimento popular retomaram a ofensiva [...], a dinâmica

81 Tal política incidiu inicialmente no ensino superior e, posteriormente, no ensino elementar e básico. Na formação universitária, por exemplo, introduz-se a “lógica empresarial”. Além disto, um dos resultados desta política educacional foi uma crescente degradação do ensino público e um amplo processo de privatização da educação, dificultando, portanto, o acesso e permanência de muitos estudantes oriundos da classe trabalhadora. 82 Veremos mais à diante que o projeto “modernizador” do Estado ditatorial também colocou novas demandas ao Serviço Social, tanto em nível da formação quanto da intervenção. É neste momento que se observa na profissão uma ênfase na sua dimensão técnico-operativa e no perfil profissional tecnocrático. 83 No nível superior, esta aparecia como Estudo dos Problemas Brasileiros (Netto, 2001).

Page 99: Tese Paula Bonfim (1)

88

represada no/do sistema educacional ressurgiu abertamente. [...]” (p.64).

Após recorrer a estes autores que se preocuparam em desvendar as determinações da nossa

formação é possível afirmar que as revoluções “pelo alto” são uma constante no país. Embora

seja possível perceber mudanças ao longo da história, isto não significa que se não se rompeu

completamente com o passado colonial; este continua imperando, agora sob novos formas, ou

seja, através das desigualdades sociais, raciais, regionais, pelo autoritarismo das elites e pelo

patriarcalismo.

Os prenúncios do Brasil moderno esbarravam em pesadas heranças de escravismo, autoritarismo, coronelismo, clientelismo. As linhas de castas, demarcando relações sociais e de trabalho, modos de ser e de pensar, subsistiam por dentro e por fora das linhas de classes em formação. O povo, enquanto coletividade de cidadãos, continuava a ser uma ficção política. Ao mesmo tempo, setores do pensamento brasileiro vacilavam em face de inclinações um tanto exóticas e demoravam para encontrar-se com a realidade social brasileira (Ianni, 2004, p. 33).

Não são poucas as conseqüências desses processos nos quais prevalece a “via

prussiana”; tais conseqüências podem ser evidenciadas em várias dimensões da vida em

sociedade, dentre elas estão: o fortalecimento da “sociedade política” em detrimento à

“sociedade civil”84; e a cooptação das camadas médias mediante a ideologia do favor. Neste

sentido, podemos afirmar que a partir destas relações são reiterados valores elitistas ligados ao

autoritarismo, à ideologia do “favor”, a “cerimônia da superioridade social`” e a prática da

tutela.

A tendência objetiva de transformação social no Brasil a se realizar por meio da “conciliação pelo alto” marca de vários modos o conteúdo da cultura brasileira. Antes de mais nada, surgem entre nós manifestações explícitas da

84 Segundo Coutinho (1999), na perspectiva gramsciana a “sociedade civil” deve ser entendida como “[...] conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e/ou difusão das ideologias, compreendendo o sistema escolar, as Igrejas, os partido políticos, os sindicatos, as organizações profissionais, a organização material da cultura [...] etc.” (p. 127). Atrelada a sociedade civil, encontra-se a sociedade política que Gramsci entende por aparelhos coercitivos do Estado (no sentido “estrito”). Estas duas esferas, sociedade civil + a sociedade política, constituem assim o Estado no seu sentido “ampliado”. Segundo análise deste auto (Id.) enquanto a sociedade política é caracterizada por coerção, dominação e ditadura – aparelhos repressivos e executivos – a sociedade civil é caracterizada por consenso, direção e hegemonia, isto é, aparelhos “privados” de hegemonia – ambas momentos do Estado. É importante salientar que, embora Gramsci estabeleça as diferenças entre a sociedade civil e a sociedade política, ele destaca a unidade entre esta duas esferas. Esta análise dialética do Estado, lhe permite concluir que, para que haja hegemonia de uma das classes na disputa pelo poder, é preciso, antes de tudo, que uma delas obtenha a direção política-ideológica dos aparelhos “privados” de hegemonia.

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89

ideologia “prussiana”, que – em nome de uma visão abertamente elitista e autoritária – defendem a exclusão das massas populares de qualquer participação ativa nas grandes decisões nacionais. [...] (Coutinho, 1990, p. 47).

Podemos afirmar, portanto, que tais valores – o autoritarismo da classe dominante, a

ideologia do “favor”, a “tara elitista” e a prática da tutela – constituem a base na qual se

organizam as formas de enfrentamento da “questão social” no Brasil. Neste sentido é

imprescindível aprofundarmos estes elementos, já que a “questão social” se constitui

historicamente o objeto da intervenção profissional.

2.1 A PARTICULARIDADE NO TRATO À “QUESTÃO SOCIAL” NO BRASIL

A especificidade da formação econômica, política, social e cultural do Brasil,

considerando os elementos apontados até o momento, fez com que o trato à “questão social”85

tenha tido características bem particulares.

Discutimos como os processos de mudanças “pelo alto” possibilitaram a permanência

de valores ligados à sociedade escravista. Neste sentido é que Cerqueira Filho (1982) afirma

que ideologia do favor e o paternalismo aparecem como elementos importantes no trato à

“questão social” no Brasil.

Para o pensamento político burguês, segundo Cerqueira Filho (Id.), seja na sua versão

liberal ou totalitária, “a questão social” é sempre tratada numa perspectiva da teoria da

integração social. Em ambos os casos a “questão social é tida como “natural” às relações

sociais e o objetivo da intervenção nas suas manifestações é o de neutralizar a luta de

classes86.

85 “Questão social” entendida como expressão das contradições da sociedade capitalista, manifestando-se através de conjunto de desigualdades no âmbito econômico, político, social e cultural. A “questão social” só se constitui como tal no momento em que a classe trabalhadora se apresenta como sujeito político na sociedade. Cf. Cerqueira Filho (1982) e Iamamoto (in Iamamoto e Carvalho, 2001). 86 É importante lembrarmos que a teoria positivista defende esta lógica no enfrentamento do que ela trata por “problemas sociais”. Durkheim (1984) aponta para a necessidade de desenvolver e/ou reforçar certos valores fundamentais (reforma moral) para uma convivência pacífica entre as classes, ou como diria este autor, necessários à coesão social. Assim, o papel da educação é fundamental neste processo. Para ele, “[...] a sociedade somente poderá viver se entre os seus membros existir uma suficiente homogeneidade: a educação perpetua e reforça essa homogeneidade, fixando antecipadamente na alma da criança as similitudes essenciais que a vida coletiva exige [...]” (p.16).

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90

No que se refere a este aspecto, Ianni (2004) observa que ao longo da nossa história a

“questão social” foi explicada através de distintas perspectivas. É possível verificar entre

vários autores brasileiros a influência de teorias como o evolucionismo, darwinismo social,

arianismo, positivismo, catolocismo, liberalismo, entre outras. Os indivíduos recém saídos da

escravidão ou aqueles miscigenados eram tratados como raças inferiores responsáveis por

uma patologia social. Ianni (Id.) nos aponta alguns autores representativos destas idéias: Nina

Rodrigues, por exemplo, referia-se aos lavradores de Canudos como coletividades anormais;

Oliveira Viana considerava a sociedade civil como incapaz e, por isto, vislumbrava

alternativas autoritárias a serem desfechadas pelo Estado. A estas alternativas também se

apresentavam sugestões como o arianismo e a europeização da população pelo incentivo às

imigrações. Estas ações tinham por objetivo criar condições para “civilizar” a população

brasileira87.

Muito tempo depois, praticamente um século após a Abolição da Escravatura, ainda ressoa no pensamento social brasileiro a suspeita de que a vítima é culpada. Há estudos em que a “miséria”, a “pobreza” e a ignorância” parecem estados de natureza, ou da responsabilidade do miserável, pobre, analfabeto. Não há empenho visível em revelar a trama das relações que produzem e reproduzem as desigualdades sociais (Ianni, 2004, p. 97).

Como afirma Ianni (Id.) o que estas teses não revelam são os fundamentos e as

particularidades das nossas desigualdades. No Brasil, por exemplo, a concentração de renda

na área rural, onde predominou o latifúndio, se apresenta maior ou igual àquela verificada no

setor urbano-industrial88. Neste sentido, Oliveira (2003) afirma que o que se verifica no Brasil

87 Não é difícil perceber o eco destas ideias na atualidade, mesmo que, às vezes, sob novos discursos. O governador Sérgio Cabral Filho, em outubro de 2007 propôs a legalização do aborto como forma de conter a violência no Rio de Janeiro. Afirmou ele: "Tem tudo a ver com violência. Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica de produzir marginal” (Cabral, 2007). Ele baseou-se nas teses dos autores de "Freakonomics", livro dos norte-americanos Steven Levitt e Stephen J. Dubner, que estabelece relação entre a legalização do aborto e a redução da violência nos EUA. 88 De acordo com pesquisa realizada por Hoffmann (apud Oliveira, 2003) o índice de concentração de terra no Brasil, entre os anos de 1920 e 1967, tem-se mantido e não há, portanto, tendência à sua redução sem que se realize uma reforma agrária. Além disto, este autor afirma que o grau de concentração de renda nos setores urbano e rural são similares.

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91

é a constituição de um padrão global de distribuição de renda onde a desigualdade seria mais

acentuada do que nos países capitalistas centrais89.

Isto significa afirmar que com o desenvolvimento capitalista no Brasil, a transição do

trabalho escravo para o trabalho livre/assalariado se deu permeada de contradições. As

mudanças não se referiam somente à produção da vida material, às novas relações de trabalho,

mas também à necessidade de mudanças de valores, ou seja, o trabalho, independente qual

fosse o seu tipo, era agora indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, do “progresso”

da nação. Era necessário a apologia ao trabalho, associá-lo à valores dignificantes. O que se

observa, segundo Ianni, (2004) é “[...] um processo de beatificação” do trabalho, para que ele

ganhe dignidade, a sociedade progrida e o capital se multiplique. Daí o combate sem trégua à

preguiça. [...]” (p. 106).

Se, por um lado, este contexto coloca a necessidade de valorização do trabalho, por

outro, não se afirmam princípios em torno do direito ao trabalho. Veremos que as lutas por

condições dignas de trabalho foram tratadas, ao longo da história do Brasil, como desordem e,

por isto, deviam ser consideradas como caso de polícia. Esta lógica também colocará

obstáculos na afirmação de determinadas políticas públicas, especialmente as políticas de

assistência social.

Sim, a história da questão social no Brasil pode ser vista como a história das formas de trabalho. Com uma reiterada apologia do trabalho. Essa é uma pedagogia antiga, contínua e presente. Em todos os lugares, de modo explícito e difuso, no meio do entretenimento e de forma subliminar, sempre está em curso a pedagogia do trabalho90 (Ianni, 2004, p. 108).

89 Os estudos de Kuznets (apud Oliveira, 2003) mostram que os primeiros estágios da industrialização e urbanização nos países centrais são marcados pelo aumento da desigualdade. Isto se deu, segundo este autor, pela diminuição da participação do setor rural no produto total, já que se verificava uma menor desigualdade no campo. Outro fator que, segundo Oliveira (2003), contribuiu para o aumento da desigualdade foi a ampliação do “exército industrial de reserva” e, portanto, o aumento da exploração do trabalho. A concentração de renda é, portanto, uma tendência intrínseca ao desenvolvimento capitalista e sua reversão, em alguns momentos históricos, só foi possível em virtude da organização da classe trabalhadora e com a conquista de uma legislação social que possibilitou uma melhoria de suas condições de vida e trabalho. No entanto, é importante salientar que a elevação dos salários reais e, conseqüentemente, o aumento do poder de consumo possibilitou, durante um período, um melhor desempenho da economia capitalista. 90 Não por acaso esta tendência encontra-se presente em muitas ações dos assistentes sociais.

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92

Este autor (Id.) ainda chama atenção para o fato de que a valorização do trabalho se

deu, em grande medida, pela chegada do imigrante europeu, pois este trazia consigo

mudanças de valores no que se refere ao trabalho braçal.

O arianismo vem por dentro da revolução burguesa em marcha, por dentro desse processo fundamental de redefinição do trabalho e trabalhador, ou seja, força de trabalho. Tanto assim que um ingrediente desse mesmo arianismo é a tese de que o índio, o negro, e até mesmo o trabalhador branco se entregavam à luxúria e à preguiça. Tristeza, luxúria, cobiça e preguiça eram os pecados do índio, caboclo, negro e mulato, enquanto não se ajustassem às exigências do mercado de força de trabalho, do trabalho submetido ao capital, na fazenda, engenho, usina, estância, seringal, oficina, fábrica. Tratava-se de redefinir o trabalhador para redefinir a força de trabalho. [...] (Ianni, 2004, p. 29).

Como já sinalizamos anteriormente, a constituição do capitalismo no Brasil é marcada

por uma forte herança sócio-cultural escravista. Neste sentido é que a “questão social” no

Brasil, antes de 1930, era tratada como caso de polícia. Isto não significa dizer que ela não

existisse antes desta data, no entanto não tinha peso como questão inscrita no pensamento

dominante. A “questão social” era considerada como questão ilegal e, por isto, devia ser

tratada como caso de polícia (Cerqueira Filho, 1982).

[...] As classes dominantes (oligarquias agrárias), na medida em que detinham o monopólio do poder político, detinham simultaneamente o monopólio das questões políticas legítimas; das questões que, em última instância, organizam a percepção do funcionamento da sociedade. Neste contexto, “questão social” por ser ilegítima, não era uma questão “legal”, mas ilegal, subversiva e que, portanto, deveria ser tratada no interior dos aparelhos repressivos de Estado. [...] (Id. p. 59).

No caso do Brasil, o enfrentamento à “questão social” também se dá numa perspectiva

da coesão social, embora, como veremos, as estratégias variem entre alternativas repressoras e

ideológicas. Nas conjunturas de crise de hegemonia, de tensões colocadas pelo acirramento da

luta de classes, a “questão social” é tida como “questão de polícia” e enfrentada com base na

violência. Já nos momentos onde a luta de classe não põe em risco a classe hegemônica, a

“questão social” é tratada como “caso de política”, e as ações em torno dela se dão na base da

conciliação, seja através do favor, da barganha e de políticas públicas (Cerqueira Filho, 1982).

Isto não significa dizer que tais alternativas apareçam necessariamente separadas; em muitos

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93

momentos da história do nosso país elas aparecem combinadas e, dependendo da correlação

de forças, uma predomina mais que outra.

Cerqueira Filho (1982), fazendo uma referência à ideologia do favor em Schwarz,

chama a atenção para a articulação existente na sociedade brasileira entre favor e violência.

Segundo ele é possível observar a presença do autoritarismo – essência da produção escravista

– nas demais relações sociais, ou seja, a lógica do favor91 é perpassada por violência, mesmo

que se apresente de forma simbólica.

[...] a reprodução das relações de força numa dada sociedade garante em última análise a reprodução do modo de produção aí predominante. E a ideologia dominante visa a manutenção da ordem vigente, constituindo-se pois, em violência simbólica, já que, pela inculcação da cultura e dos valores dominantes, implica uma imposição e desenvolve uma relação de dependência, quase sempre imperceptível, dissimulada, que reforça a relação dominação/subordinação entre as classes sociais (Cerqueira Filho e Neder apud Cerqueira Filho, 1982).

Este autor (Id.) ainda se referindo ao tratamento dado à “questão social” no Brasil,

afirma que, aliadas à lógica do favor encontram-se as práticas paternalistas. “O paternalismo

presente no discurso político é lapidarmente definido por Oliveira Viana quando este diz que

a legislação trabalhista foi conseqüência da “outorga generosa realizada pelos dirigentes

políticos e não uma conquista da classe trabalhadora” (p. 31).

Neste sentido podemos afirmar que a sociabilidade brasileira é perpassada por valores

autoritários, paternalistas, onde a lógica do favor e da tutela se fazem presentes. Tais valores,

como vimos, atravessaram a nossa história e permaneceram como referencial para as nossas

ações, mesmo que, como afirmou Chaui (2006) não as reconheçamos como parte da nossa

cultura.

Como bem nos recorda esta autora (Id.) a sociedade brasileira é marcada por uma

“cultura senhorial” onde as relações são sempre verticalizadas: existe um superior que manda

e um inferior que obedece. A essência destas relações é que,

[...] o outro jamais é reconhecido como sujeito nem como sujeito de direitos, jamais é reconhecido como subjetividade nem como alteridade. As relações entre os que se julgam iguais são de “parentesco”, isto é, de cumplicidade ou

91 Estabelecida entre homens livres proprietários e homens livres não proprietários.

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de compadrio; e entre os que são vistos como desiguais o relacionamento assume a forma do favor, da clientela, da tutela ou da cooptação. [...]. A divisão social das classes é naturalizada por um conjunto de práticas que ocultam a determinação histórica ou material da exploração, da discriminação e da dominação, e que, imaginariamente, estruturam a sociedade sob o signo da nação una e indivisa, sobreposta como um manto protetor que recobre as divisões reais que a constituem (p. 89 e 90).

Esta breve reflexão sobre a nossa formação econômica, política, social e cultural nos

possibilita apreender a dinâmica do processo de formação dos valores dominantes na

sociedade brasileira. Pudemos observar como as respostas dadas às demandas sócio-históricas

no processo de desenvolvimento do Brasil geraram valores adequados à manutenção das

estruturas de poder no país, dando à moralidade brasileira uma essência conservadora92.

É necessário salientar, no entanto, que o pensamento conservado não deve ser

entendido como algo a-histórico e intemporal, presente em qualquer sociedade e em qualquer

momento histórico. Conforme nos sinaliza Escorsin Netto (2011), este deve ser compreendido

como uma “[...] expressão cultural particular de um tempo e um espaço muito precisos: o

tempo e o espaço da configuração da sociedade burguesa [...]” (p. 40 e 41).

Neste mesmo sentido é que compreendemos o “conservadorismo à brasileira”, ou seja,

ele deve ser entendido a partir das particularidades da nossa formação, considerando,

especialmente, a dinâmica da passagem de uma sociedade escravista, de caráter mercantil, à

outra de natureza capitalista. O que estamos afirmando é que, se no processo de colonização

os valores dominantes na sociedade advinham da dinâmica da exploração, do saque e do

butim da colônia, na transição ao capitalismo o que se observa é refuncionalização destes

valores com o objetivo de garantir os interesses da burguesia nacional.

Assim, o desenvolvimento do capitalismo no Brasil não possibilitou o rompimento

com as estruturas da ordem social anterior; ao contrário, utilizando-se de práticas

historicamente presentes na dinâmica social brasileira, a burguesia se estruturou no país

mesclando valores de um Brasil escravista, e com forte “cultura senhorial”, com valores

referentes ao pensamento liberal, gestando uma cultura bastante particular.

92 Isto não significa que este processo se deu sem questionamento, lutas e tentativas de se romper com esta estrutura e, com isto, se alterar o conjunto dos valores.

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95

Podemos afirmar, portanto, que o conservadorismo no Brasil apresenta características

presentes no pensamento conservador clássico, conforme analisado por Escorsin Netto (Id.),

expressando, ao mesmo tempo, particularidades significativas. Vejamos.

No que se refere aos dois dos principais valores da argumentação conservadora – a

legitimidade da tradição e a desigualdade necessária e natural – podemos afirmar que ambos

estão fortemente presentes nas relações sociais do nosso país, podendo ser verificados

especialmente nas relações entre os detentores de poder – proprietários de terra e dos meios de

produção, na sua maioria “brancos” e descendentes da antiga aristocracia – e a grande parte

da população – trabalhadores mestiços, fruto das “antigas” relações de exploração:

escravidão negra índia e o trabalho imigrante.

Aqui se observa a ênfase nas diferenças, raciais, étnicas e de classe, que legitimam as

desigualdades sociais, as variadas formas de violência (incluindo o preconceito), a prática do

favor e da tutela, manifestando aquilo que Schwarz (1988), denominou de “cerimônia da

superioridade social”.

Esta naturalização das desigualdades e das relações de poder pode ser identificada

tanto em expressões do tipo “você sabe com quem está falando?”, “ponha-se no seu lugar”,

etc. quanto em dados estatísticos. As informações do último censo do IBGE (2010), mostram

que as desigualdades de classe, de etnia e de raça aparecem articuladas entre si: por exemplo,

se observarmos os rendimentos médios mensais dos brancos (R$ 1.538) e amarelos (R$

1.574) estes se aproximam do dobro do valor relativo aos grupos de pretos (R$ 834), pardos

(R$ 845) ou indígenas (R$ 735)93. Além disto, no que se refere à expectativa de vida, os

brancos têm maior proporção de idosos – maiores de 65 anos e, principalmente, maiores de 80

anos de idade. No que se refere à violência contra jovens, a Secretaria de Direitos Humanos

da Presidência da República mostra que a probabilidade de um jovem, do sexo masculino, ser

vítima de homicídio é quase quatro vezes mais alta para os negros em comparação com os

brancos94.

93 A classificação utilizada pelo IBGE para traçar o perfil da população no que se refere à cor é a seguinte: branco, preto, amarelo, pardo e indígena, sendo que esta última foi incorporada em 1991. 94 Dados obtidos a partir do Índice de Homicídios na Adolescência, Julho/2009, ferramenta desenvolvida pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/PR), Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e Observatório de Favelas, em parceria com o Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LAV-Uerj) dentro do Programa de Redução da Violência Letal Contra Adolescentes e Jovens (PRVL).

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96

Estes dados refletem, portanto, como a dominação de classe no Brasil está atravessada

por elementos de raça, de etnia e de gênero, demonstrando o argumento conservador de que a

desigualdade é necessária e natural.

Outra característica do conservadorismo clássico que se apresenta de forma acentuada

na nossa cultura é aquela referente aos perigos da democracia. Vimos como as tentativas de

participar dos processos decisórios neste país têm sido permanentemente combatidas com

repressão.

Como já analisamos anteriormente, os períodos de vigência das liberdades

democráticas formais no Brasil são poucos. Não é possível considerar, por exemplo, a

República Velha (1889 – 1930) como um período verdadeiramente democrático, já que,

somente cidadãos do sexo masculino e com renda tinham o direito de participar da vida

política do país, equivalendo 1,5% da população (Dias, 1990). Além disto, tivemos dois

longos períodos ditatoriais, o Estado Novo (1937 – 1945) e a Ditadura Militar (1964 – 1985).

Além desta limitada participação (direta) nos processos políticos, observamos também

uma constante criminalização dos movimentos sociais. A liberdade de manifestação, elemento

fundamental na democracia, é, no Brasil, constantemente restringida e reprimida,

possibilitando, assim, a garantia da ordem (social) e o progresso (de poucos).

Outro valor questionado pelo pensamento conservador é a autonomia dos sujeitos.

Aqui aparece a ideia de que os homens precisam ser tutelados, devendo suas vontades ser

subordinadas àqueles que conduzem a sociedade (teoria da autoridade). No Brasil, este tipo de

dependência pode ser verificado especialmente nas práticas clientelistas e paternalistas.

No que se refere à laicização do Estado95, nem mesmo este princípio conseguiu se

consolidar no Brasil. Isto pode ser verificado tanto no peso dos valores cristãos na sociedade

brasileira quanto na atual presença, no Congresso Nacional96, de partidos políticos ligados a

religiões.

95 Conforme vimos para o pensamento conservador a laicização é um valor deletério para as relações sociais. 96 Embora o Estado brasileiro seja laico, garantia estabelecida pela Constituição Federal de 1988, as religiões cristãs continuam tendo um peso nas decisões tomadas pelo poder público. Nas eleições de 2010 a bancada Evangélica cresceu de 46 deputados (9% do total da Casa) para 68 deputados (13,2% do total), um crescimento de mais de 50%. Esta bancada tem feito o monitoramento de diversos projetos da Câmara e do Senado, a maioria referente a questões de direitos individuais. Os posicionamentos destes parlamentares estão submetidos aos valores e crenças que professam, como pode ser evidenciado no Projeto de Lei nº 1.763/2007, de autoria da bancada, que prevê o pagamento de um salário mínimo durante 18 anos para mulheres vítimas de estupro, para que mantenham a gravidez e criem seus filhos. Outro exemplo disto tem sido o posicionamento deles no que se refere às liberdades sexuais, como pode ser evidenciado nas últimas polêmicas suscitadas especialmente no que

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97

Por todas estas características é que afirmamos que a moral brasileira se constitui

predominantemente por valores conservadores. Estes podem ser evidenciados nas mais

diferentes ações: na naturalização, moralização e criminalização da “questão social”, nas mais

diferentes formas de desigualdades – racial, econômica, social e de gênero –; na dificuldade

em garantir a realização da dimensão pública, especialmente no que se refere às políticas

sociais; na persistência da lógica do favor e na sua expressão mais cotidiana: “o jeitinho

brasileiro”.

No próximo item tentaremos compreender o peso desta moralidade no âmbito do

trabalho dos assistentes sociais, tanto na gênese da profissão, como na atualidade.

e refere aos direitos LGBTT e sobre a temática da educação sexual nas escolas. Dados obtidos através de SEVERO (2011).

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98

CAPÍTULO 3 – SERVIÇO SOCIAL e ETHOS PROFISSIONAL

As questões discutidas até o momento97 nos fornecem elementos importantes para

pensarmos as tensões que perpassam o Serviço Social, em especial no âmbito da ética

profissional. A partir destes pressupostos, tentamos apreender os elementos constitutivos da

formação social, econômica, política e cultural brasileira no intuito de desvendarmos os

valores fundamentais que constituem a nossa moralidade e que vão se expressar no cotidiano

do trabalho do assistente social.

Assim, para pensarmos as tensões que envolvem esta profissão – estando esta inserida

na divisão social e técnica do trabalho – é necessário partimos da compreensão de que:

primeiro, o trabalho no âmbito da sociedade burguesa não possibilita a realização plena do

homem, pois as mediações que se colocam a partir da propriedade privada, divisão do

trabalho, do intercâmbio capitalista e da compra e venda da força de trabalho não permitem

que isto aconteça. O trabalho para o homem se apresenta, predominantemente, como algo

necessário para garantir a sua sobrevivência e não como atividade livre e criadora.

Segundo, na sociedade capitalista a alienação se universaliza e se particulariza, ou

seja, se converte em um processo de reificação e domina todos os âmbitos da vida dos

homens. Todos os espaços da vida social passam a ser mercantilizados, ou seja, as relações

entre os homens se apresentam como relações entre coisas acirrando, como vimos

anteriormente, a contradição entre interesses privados e interesses coletivos, entre indivíduo e

sociedade.

Terceiro, o capitalismo no Brasil se desenvolve a partir de processos de rupturas e

continuidades com elementos do nosso passado colonial e escravista, assim a nossa

sociabilidade contém elementos próprios da moral burguesa98, mas também características da

nossa formação social anterior que não foram completamente superadas, tais como: o

97 O trabalho enquanto base ontológica da constituição da humanidade, a sua forma alienada no modo de produção capitalista, a gênese dos valores e sua particularidade no âmbito da sociabilidade burguesa. 98 A moral burguesa se constitui a partir do ethos burguês, ou seja, a partir das condições sócio-históricas que possibilitaram a constituição e desenvolvimento do capitalismo. A essência do liberalismo, expressa parte dos valores que constituem esta moral: a propriedade privada como um valor central, a liberdade como algo individual, especialmente no que se refere à liberdade de escolhas e igualdade de oportunidades; a valorização do interesse privado, da posse e da lógica competitiva.

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autoritarismo das elites, a lógica do favor que perpassa a relação público/privado99; e a

tendência à naturalização, moralização e criminalização da “questão social”.

A partir destes três elementos podemos refletir sobre a particularidade do Serviço

Social e, especialmente, sobre a dimensão ética do exercício profissional.

3.1 A ÉTICA COMO MEDIAÇÃO NO EXERCÍCIO PROFISSIONAL

A partir da discussão realizada no Capítulo I sobre as esferas que atuam como

mediações no processo de desenvolvimento humano, devemos compreender a ética

profissional como um modo particular de objetivação da capacidade ética do ser social.

Segundo Barroco (2001), esta só pode ser entendida a partir da dinâmica histórica que coloca

a necessidade de uma determinada profissão e as respostas específicas dadas pelos

profissionais. “Neste sentido, o ethos profissional é um modo de ser constituído na relação

complexa entre as necessidades sócio-econômicas e ídeo-culturais e as possibilidades de

escolhas inseridas nas ações ético-morais, o que aponta para a sua diversidade, mutabilidade e

contraditoriedade” (Idem, p.68).

É importante lembrar que os processos valorativos, segundo Lukács (apud Lessa 2002)

devem ser buscados na dinâmica da produção e da reprodução social. No entanto, é a partir

desta última que se constroem as mediações que determinam tanto as formações sociais

quanto o indivíduo na sua particularidade.

Assim, um elemento essencial para pensarmos o ethos profissional, e que se converte

em uma das preocupações centrais desta tese é a construção da moralidade brasileira e

influência desta na formação dos indivíduos. Neste sentido, é fundamental considerarmos o

processo de socialização primária na reprodução de valores próprios da moral dominante de

uma sociedade.

Esta observação é importante porque, antes mesmo de fazerem escolhas profissionais,

os indivíduos estão vinculados à valores que os remetem diretamente à diversos aspectos: à

dinâmica econômica, política e cultural de uma cidade, de uma região, de um país; às seus

99 Uma das conseqüências disto é a prática da tutela e do clientelismo que, não por acaso, vão aparecer no âmbito das políticas públicas e privadas.

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100

descendentes e suas culturas, ao tipo de religiosidade (ou a falta de) a que se vincula sua

família; ao tipo de educação que lhe é proporcionada no decorrer na sua vida.

Não por acaso, discutimos no Capítulo II o processo de construção da moralidade

brasileira. Vimos que esta se forma a partir de relações sociais bastante particular: um país

que tem a sua gênese vinculada à emergência do capital mercantil e à criação de um mercado

mundial, com um forte traço autoritário, uma relação estreita entre interesses públicos e

privados, com a manutenção, ao longo da história, das estruturas de dominação do tipo

colonial.

Isto significa afirmar que além de se incorporar valores atrelados à sociabilidade

burguesa – valores que reforçam o individualismo, o utilitarismo, a competição, a

mercantilização das relações sociais – a moral dominante brasileira agrega elementos bem

peculiares. Como vimos, alguns valores se repõe ao longo da nossa formação: o autoritarismo

das elites, a prática do “favor” e da tutela, a “cerimônia da superioridade social”, além da

desvalorização dos bens públicos, ou seja, a ideia de que se deve tirar o máximo proveito”

daquilo que não é de “ninguém”.

Embora possamos afirmar que a moralidade brasileira possui traços conservadores,

isto não significa afirmar que tais valores não sejam questionados pelos indivíduos. Se

considerarmos que a moral de uma sociedade é histórica e que atende às necessidades postas

pela vida material dos homens, entendemos que esta pode ser questionada, transgredida e

superada no âmbito destas relações.

O questionamento ou a reafirmação dos valores morais dominantes dependerá dos

caminhos e vivências que os indivíduos terão no percurso de suas vidas, suas experiências

individuais e coletivas, suas “escolhas” e inserções profissionais, seu acesso ou não à

educação, à cultura, à vida política – inserção em instâncias de formação política e

movimentos sociais – etc. É importante salientar, portanto, que os sujeitos, ao longo de suas

vidas, vivenciam conflitos morais e/ou nem sempre tem consciência de seus valores.

Assim como vimos em Mészáros (2006), Iasi (2011), nos chama a atenção para o fato

de que o fenômeno da consciência100 deve ser entendido como um processo – e não como algo

100 Importante esclarecer o que o autor entende por consciência: “Partindo de uma compreensão marxista, o processo de consciência é visto, de forma preliminar e introdutória como um desenvolvimento dialético, em que cada momento traz em si os elementos de sua superação, em que as formas já incluem contradições que, ao amadurecerem, remetem à consciência para novas formas e contradições, de maneira que o movimento se expressa num processo que contém saltos e recuos” (Iasi, 2011, p. 12).

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101

dado, ou seja, a consciência dos indivíduos é formada a partir das relações estabelecida com a

sociedade em que vivem. Neste sentido, ela é mutável, vai se transformando, não de forma

linear, mas de forma dialética, com avanços e recuos.

Longe de qualquer linearidade, a consciência se movimenta trazendo consigo elementos de fases superadas, retomando, aparentemente, as formas que abandonou. Este processo é ao mesmo tempo múltiplo e uno. Cada indivíduo vive sua própria superação particular, transita de certas concepções de mundo até outras, vive subjetivamente a trama de relações que compõe a base material de sua concepção de mundo. [...] (p.13).

A consciência é, portanto, gerada a partir das relações que o indivíduo estabelece com

outros homens, e desses com a natureza, possibilitando a interiorização de valores, costumes,

regras, etc, construídas socialmente.

Neste sentido, vale destacar a importância da família, já que esta é a primeira

instituição na qual o indivíduo se insere. Os valores interiorizados na convivência familiar se

apresentam como naturais, especialmente porque são, na maioria das vezes, reforçados em

outros espaços como a escola, as instituições religiosas, a comunidade, etc. Em razão desta

naturalização nem sempre é possível entendê-los como algo histórico, resultado da dinâmica

objetiva das relações sociais.

Assim formada esta primeira manifestação de consciência, o indivíduo passa a compreender o mundo a partir de seu vínculo imediato e particularizado, generalizando-o. Tomando a parte pelo todo, a consciência expressa-se como alienação. [...] Esta forma será a base, o terreno fértil, onde será plantada a ideologia como forma de dominação (p.20).

Segundo Iasi (Id), esta primeira forma de consciência se apresenta como alienação,

não por estar desvinculada da realidade, mas por naturalizar os valores da visão de mundo

dominante, tornando-a a-histórica.

No entanto, é necessário lembrarmos que o homem é ao mesmo tempo produto de uma

sociedade alienada e negador dela, podendo este atingir níveis de consciência que supere,

mesmo que parcialmente, a alienação.

Neste sentido é que Iasi (2011) destaca a importância do grupo para a superação desta

primeira forma de consciência. Quando os indivíduos vivenciam conflitos que os levam a

questionar os valores adquiridos na socialização primária, e, neste processo, se identificam

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102

com outros sujeitos, isto coloca a possibilidade de questionamento coletivo das relações

sociais naturalizadas e, ao mesmo tempo, viabiliza as mobilizações e lutas mais amplas.

É a chamada consciência em si, ou a consciência da reinvidicação. A forma mais clássica de manifestação desta forma de consciência é a luta sindical, sua forma de organização mais típica é o sindicato, mas podemos incluir, nesta forma, as lutas populares, os movimentos culturais, o movimento de mulheres e outras manifestações de lutas coletivas de setores, grupos e categorias sociais das mais diversas. O que há de comum nestes casos particulares é a percepção dos vínculos e da identidade do grupo e seus interesses próprios, que conflitam com os grupos que lhe são opostos (Iasi, 2011, p. 30).

No entanto, esta forma de consciência não expressa, ainda, segundo Iasi (Id.) a

consciência de classe, ou seja, o indivíduo é “consciente” de parte da contradição do sistema,

o que significa que as lutas coletivas se limitam à esfera da “cidadania”, ou seja, implicam em

mudanças dentro da ordem capitalista.

Importante destacar que adquirir uma consciência revolucionária é um processo

complexo, especialmente porque estamos permanentemente subordinados à dinâmica das

relações sociais burguesas e, com isto, inseridos em processos alienantes. O resultado disto é a

reprodução de valores que contribuem para a manutenção destas relações. Além disto, mesmo

que o indivíduo vivencie e compreenda, em parte, as contradições desta sociedade, ele

permanece sob a influência de valores adquiridos na primeira forma de consciência, conforme

afirma Iasi (2011),

O processo de negação de uma parte da ideologia pela vivência particular das contradições do modo de produção, que pese toda sua importância, não vai destruir as relações anteriormente interiorizadas e seus valores correspondentes de uma só vez. Isto significa que, apesar de “consciente” de parte da contradição do sistema (por exemplo, dos baixos salários, da opressão da mulher, de sua identidade étnica etc.), a pessoa ainda trabalha, age, pensa sob a influência dos valores anteriormente assumidos, que, apesar de serem parte da mesma contradição, continuam sendo vistos pela pessoa como naturais e verdadeiros (p.30).

Adquirir a consciência revolucionária implica, segundo este autor (Id.), uma dupla

negação: primeiro é imprescindível compreender e questionar as contradições da sociedade

capitalista, posicionando-se enquanto classe trabalhadora (consciência em si); e, segundo,

negar-se a si próprio, afirmando a necessidade de superação destas relações, ou seja, como

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103

nos lembra Marx ( 2010) a emancipação política é indispensável, mas insuficiente para se

alcançar a emancipação humana.

Estas considerações sobre o processo de consciência são fundamentais para refletirmos

sobre a adesão (ou não) dos assistentes sociais aos valores defendidos pelo projeto ético-

político da profissão e a possibilidade de realização da ética profissional.

Além dos aspectos já mencionados, é necessário compreendermos outros dois

elementos fundamentais para desvelarmos as questões em torno da ética profissional: a

natureza e o significado social das profissões (em particular aqui o Serviço Social),

considerando as suas atribuições e funcionalidade social; e as bases da formação profissional,

as referências teórico-metodológicas que orientam a formação, já que nem sempre estas

possibilitam uma leitura crítica da realidade e da profissão.

Desta forma é que Barroco (2001) afirma que

[...] a ética profissional é permeada por conflitos e contradições e suas determinações fundantes extrapolam a profissão, remetendo às condições mais gerais da vida social. Neste sentido, a natureza da ética profissional não é algo estático; suas transformações, porém, só podem ser avaliadas nesta dinâmica, ou seja, em sua relativa autonomia em face das condições objetivas que constituem as referências ético-morais da sociedade e rebatem na profissão de modos específicos (p. 69).

Assim, a ética profissional, segundo Barroco (id.) deve ser apreendida em suas

diferentes dimensões: por um lado contém uma dimensão filosófica que fornece as bases

teóricas que possibilitam uma determinada concepção de homem, de sociedade, de profissão,

uma direção social e, a partir disto, fornece os fundamentos para se refletir moral e

eticamente. A segunda dimensão refere-se ao modo de ser da profissão, ou melhor, ao Ethos

profissional. Nesta dimensão podemos identificar os valores que constituem a moralidade

profissional, objetivados no cotidiano profissional a partir das respostas dadas pelos

assistentes sociais às demandas que lhe são postas. Nesta dimensão expressam-se os valores

referentes à função social da profissão e, também, é a partir daí que se constrói a imagem

social desta. A terceira dimensão refere-se à normatização expressa no Código de Ética

Profissional.

Estas considerações sobre a ética profissional nos remetem ao fato de que as escolhas,

sejam elas profissionais ou não, possuem elementos de particularidade, de simples

singularidade e de generalidade (Lukács apud Lessa, 1995). Neste sentido, embora as

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104

escolhas dos indivíduos estejam vinculadas às necessidades sociais, estas também estão

relacionadas às características de suas personalidades.101 E é justamente, neste processo, que

surgem os conflitos entre a dimensão particular e genérica das escolhas humanas. É

fundamental lembrarmos aqui que é no âmbito da sociabilidade burguesa que tais conflitos

atingem níveis inéditos, ou seja, com o desenvolvimento do capitalismo observamos uma

fratura entre vida pública e vida privada, entre interesses individuais e interesses genéricos.

É por esta razão que localizamos, no Ethos profissional (modo de ser da profissão) a

dimensão onde os conflitos aparecem de forma mais acirrada.

Neste sentido, tentaremos, no próximo item, compreender o ethos profissional desde a

origem da profissão, buscando identificar seus elementos constitutivos e as mudanças

ocorridas com o desenvolvimento desta.

3.2 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS, ÉTICOS E POLÍTICOS DO SERVIÇO SOCIAL

Para entendermos a particularidade desta profissão, inclusive os valores que a

constituíram e a constituem, é necessário partimos, inicialmente, da compreensão de que o

Serviço Social surge e se desenvolve a partir de demandas sócio-históricas relacionadas ao

desenvolvimento do capitalismo monopolista. Esta determinação fundante já nos permite

pensar o universo de valores a que esta profissão esteve associada na sua emergência.

De acordo com a produção crítica do Serviço Social é um equívoco acharmos que o

Serviço Social nasce a partir da “evolução da ajuda” e da “filantropia” ou da “organização da

caridade”. São as novas configurações do Estado burguês no tratamento às expressões da

“questão social” na ordem monopólica que colocam a necessidade de uma profissão para

atuar neste enfrentamento.

Dentre as muitas funções assumidas pelo Estado nesta fase do capitalismo102

destacamos aquela referente à garantia da reprodução e controle da força de trabalho.

Enquanto 101 Lembrando que entendemos por personalidade os traços mais íntimos da individualidade do homem, ou como mesmo afirma Lukács, “A substância de um indivíduo é, portanto, aquilo que no curso da sua vida se compõe como continuidade, direção, qualidade da ininterrupta cadeia destas decisões” (apud Costa, 2007, p. 60). 102 Por exemplo, inserção nos setores não rentáveis (fornecimento de energia, matérias-primas fundamentais etc.), ajuda às empresas capitalistas em dificuldades, entrega aos monopólios de complexos construídos com fundos públicos, investimentos em infra-estrutura etc. (Netto, 1996a).

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[...] no capitalismo concorrencial, a intervenção estatal sobre as seqüelas da exploração da força de trabalho respondia básica e coercitivamente às lutas das massas exploradas ou à necessidade de preservar o conjunto de relações pertinentes à propriedade privada burguesa como um todo – ou, ainda, à combinação desses vetores; no capitalismo monopolista, a preservação e o controle contínuos da força de trabalho, ocupada e excedente, é uma função estatal de primeira ordem: não está condicionada apenas àqueles dois vetores, mas às enormes dificuldades103 que a reprodução capitalista encontra na malha de óbices à valorização do capital no marco do monopólio (Id. p. 22, grifos do autor).

É por causa desta dinâmica, própria da ordem monopólica104 que as expressões da

“questão social” tornaram-se objeto da ação estatal. As esferas do público e do privado

imbricam-se de tal forma neste momento que possibilitam a responsabilização do Estado pelo

que se convencionou chamar de “problemas sociais”.

Com a organização monopólica observa-se então uma inflexão no que se refere ao

enfrentamento das seqüelas da “questão social”, ou seja, atribuiu-se, neste momento, um

caráter público à tais refrações. (Netto, 1996a).

Neste sentido, é que são colocadas as condições para a emergência do Serviço Social.

[...] É somente na ordem societária comandada pelo monopólio que se gestam as condições histórico-sociais para que, na divisão social (e técnica) do trabalho, constitua-se um espaço em que se possam mover práticas profissionais como as do assistente social. [...] (Netto, 1996a, p.69).

Embora Netto (Id.) negue a tese de que o Serviço Social se constituiu como evolução

da “caridade”, este autor não ignora a relação existente entre o Serviço Social e as práticas

103 Tais dificuldades se apresentam em virtude da própria dinâmica do desenvolvimento capitalista. Além daquelas relativas à dinâmica monopólica, como a necessidade de socialização dos custos, outras dificuldades se apresentam como tendência própria do movimento do capital, são elas: a contradição entre a progressiva racionalidade que organiza a produção e a irracionalidade do conjunto da produção capitalista; a propensão à queda da taxa de lucro; o crescimento da produção de mercadorias sem um correspondente crescimento do consumo (Netto, 1996a). 104 Enquanto no capitalismo concorrencial a intervenção do Estado sobre as seqüelas da “questão social” se dava de forma esporádica ou de forma repressora, no capitalismo monopolista – em função do acirramento das contradições – o Estado opta por ceder à algumas demandas da classe trabalhadora e, desta forma, administrar as manifestações da “questão social” através de políticas sociais. Neste momento evidencia-se o protagonismo da classe operária na luta por melhores condições de vida e trabalho. Nesta fase específica do desenvolvimento capitalista as intervenções privadas, baseadas na solidariedade cristã e no dever cívico, passam a ter um espaço cada vez mais reduzido no que diz respeito ao enfrentamento das seqüelas da “questão social”. “[...] o que ocorre é a crescente e efetiva subordinação das políticas sociais privadas às públicas (o que não se passa sem conflitos e colisões)” (Netto, 1996a, p.26, grifos do autor).

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106

assistenciais desenvolvidas desde a emergência da sociedade burguesa. Segundo este autor, há

uma relação de continuidade. Entretanto não é isto que nos fornece a chave para elucidarmos

a profissão e sim a relação de ruptura, ou seja, com enfrentamento da “questão social” pelo

Estado coloca-se a necessidade de um profissional para exercer a função de executor terminal

das políticas sociais. É a condição deste novo agente e o significado social da sua ação, isto é,

a condição de assalariamento e a sua função no âmbito da reprodução das relações sociais que

marca esta ruptura.

Referindo-se à relação de continuidade afirma o autor:

Esta relação é inegável e, em realidade, muito complexa; de um lado, compreende um universo ídeo-político e teórico-cultural, que se apresenta no pensamento conservador; de outro, envolve modalidades de intervenção características do caritativismo – ambos os veios cobrindo igualmente a “assistência” organizada e o Serviço Social. Sobretudo, a relação de continuidade adquire uma visibilidade muito grande porque há uma instituição que desempenha papel crucial nos dois âmbitos – a Igreja católica. [...] (Netto, 1996a, p.67).

O surgimento do Serviço Social, portanto, está organicamente ligado a dois

movimentos articulados: de um lado o redimensionamento do Estado no período monopólico

e, de outro, o fortalecimento no Brasil da Ação Católica105.

É justamente a necessidade de enfrentamento das expressões da “questão social” que

possibilita a junção de interesses do Estado, da Igreja e dos setores da burguesia dominante

em torno do projeto reformista-conservador. Este projeto tinha entre os seus objetivos

modernizar o Brasil, ou seja, inseri-lo na dinâmica capitalista mundial e, ao mesmo tempo,

esvaziar as lutas e a organização da classe trabalhadora.

Esta particularidade na emergência da profissão fará com que esta se estruture a partir

de um arranjo teórico-doutrinário que permitirá, ao mesmo tempo, a sua inserção na divisão

social e técnica do trabalho e a permanência de ações voltadas para o bem comum.

105 “[...] A Ação Católica representa a reação contra a apostasia de amplas massas, impotentes, isto é, contra a superação de massas da concepção religiosa do mundo. Não é mais a Igreja que determina o terreno e os meios de luta; ao contrário, ela deve aceitar o terreno que lhe impõem os adversários ou a indiferença e servir-se de armas tomadas de empréstimo de seus adversários [a organização política de massas]. A Igreja, portanto, está na defensiva, perdeu a autonomia de movimentos e de iniciativas, não é mais uma força ideológica mundial, mas uma força subalterna. [...]” (Gramsci apud Iamamoto, 2000, p.20).

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Neste sentido é que Carlos (apud Ortiz, 2010) afirma que a relação do Serviço Social

com a Igreja Católica nos primórdios da profissão é mais do que uma vinculação à valores ou

a uma perspectiva teórica (neotomismo), mas se constitui organicamente na constituição do

ethos profissional.

Ortiz (2010), por sua vez, afirma que o modo ser profissional nas suas origens

expressa uma ambigüidade entre ser uma profissão inscrita na divisão social e técnica do

trabalho, e, ao mesmo, apresentar-se como uma atividade a “serviço do homem”, ou seja,

marcada por elementos como: a prioridade da vocação como requisito para a escolha

profissional e a forte presença do militantismo católico.

Netto (2004), em sua análise sobre as formas de enfrentamento à “questão social”

afirma haver uma complementaridade político-prático entre o pensamento conservador laico

(o exemplo mais significativo é o pensamento de Durkheim e sua escola sociológica) e o

pensamento conservador confessional. Em ambos os casos a “questão social” é entendida

como natural à dinâmica de qualquer sociedade e a proposta para o seu enfrentamento deve

ser via uma reforma moral do homem e da sociedade. Esta observação de Netto (Id.) nos leva

a concluir que a ambigüidade a que se refere Ortiz (Id.) é só aparente, pois a relação entre os

objetivos iniciais da profissão e a influência do pensamento confessional são perfeitamente

compatíveis no que se refere ao enfrentamento das expressões da “questão social”.

Neste sentido, não é difícil compreender a influência da Igreja Católica no processo de

profissionalização, especialmente no que tange à direção ideológica da formação profissional.

A novidade aqui refere-se, especialmente, ao caráter público no trato à “questão social”. O

Serviço Social surge para intervir nas seqüelas da “questão social” com o principal objetivo

de conter, através de políticas públicas (predominantemente), as tensões específicas da relação

entre capital e trabalho. Além disto, segundo Iamamoto (in Iamamoto e Carvalho, 2001), o

assistente social passa a interferir no processo de reprodução da força de trabalho através da

viabilização de serviços sociais.

É importante lembrarmos também que embora se observe um caráter público nas

estratégias de enfrentamento do Estado às refrações da “questão social” na ordem

monopólica, permanece o ethos individualista do ideário liberal. Ou seja,

[...] nas condições da idade do monopólio, o caráter público do enfrentamento das refrações da “questão social” incorpora o substrato individualista da tradição liberal, ressituando-o como elemento subsidiário no trato das seqüelas da vida social burguesa. [...]. Eis por que o

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108

redimensionamento do Estado burguês no capitalismo monopolista em face da “questão social” simultaneamente corta e recupera o ideário liberal – corta-o, intervindo através de políticas sociais; recupera-o, debitando a continuidade das suas seqüelas aos indivíduos por elas afetados (Netto, 1996a, p.31-32, grifos do autor).

Esse processo Netto (1996a) interpreta como um dispositivo de psicologização da vida

social e afirma que ele não se constitui somente quando é imputado ao indivíduo a

responsabilidade por seus problemas, mas também quando, através do atendimento

institucional “personalizado” (através de técnicas de ajustamento), o indivíduo obtém a

sensação de inserção social.

Se assim é, o potencial legitimador da ordem monopólica contido na psicologização ultrapassa de longe a imputação ao indivíduo da responsabilidade do seu destino social; bem mais que este efeito, por si só relevante, implica um tipo novo de relacionamento “personalizado” entre ele e instituições próprias da ordem monopólica que, se não se mostram aptas para solucionar as refrações da “questão social” que o afetam, são suficientemente lábeis para entrelaçar, nos “serviços” que oferecem e executam, desde a indução comportamental até os conteúdos econômicos-sociais mais salientes da ordem monopólica – num exercício que se constitui em verdadeira “pedagogia” psicossocial, voltada para sincronizar as impulsões individuais e os papéis sociais propiciados aos protagonistas (Netto, 1996a, p.38).

As questões referentes às condições sócio-históricas para a emergência do Serviço

Social nos fornecem elementos para elucidarmos o conteúdo teórico, político e moral na

origem da profissão, assim como nos possibilita apreender as tensões atuais no campo

profissional. Se analisarmos, por exemplo, as formas de enfrentamento à “questão social” pelo

Estado brasileiro identificaremos duas tendências conservadoras106 fundamentais: a primeira

refere-se à naturalização da “questão social” e a segunda refere-se ao seu enfrentamento na

direção da integração social, seja através da repressão ou do consenso107, ou mesmo a

combinação de ambos.

106 Conferir nota 38. 107 Uma das formas mais expressivas deste tipo de tratamento dado à “questão social” é através de ações moralizadoras. Não por acaso valores como a solidariedade, o altruísmo, a compaixão, a generosidade são tidos como fundamentais no trato a tais expressões. Um exemplo claro disto encontra-se no estímulo à solidariedade cristã, já que esta serviu, ao longo do desenvolvimento capitalista como elemento importante para justificar as relações desiguais da sociedade burguesa. Princípio fundamental da caridade e da fraternidade, a solidariedade cristã se constituiu, especialmente durante o período capitalista concorrencial, na base das ações aos

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109

Isto significa afirmar que as demandas postas ao assistente social desde a sua origem

estão essencialmente relacionadas à necessidade da coesão social, de “ajuste” e, não por

acaso, o positivismo108 e o neotomismo109 foram duas referências teóricas importantes durante

um longo período da trajetória histórica do Serviço Social110.

Além deste referencial teórico-metodológico e político-ideológico da formação

profissional é necessário observar outro elemento imprescindível na composição deste caldo

cultural conservador no qual se formou a profissão: a cultura brasileira. Discutimos

anteriormente como esta cultura foi construída a partir de valores autoritários, paternalistas e

com base na ideologia do favor.

Assim, Barroco (2001) afirma que

A presença do conservadorismo moral, no contexto de origem do Serviço Social, é evidenciada: na formação profissional, no projeto social da Igreja Católica e na cultura brasileira, através das idéias positivistas. A vivência cotidiana, orientada por seus pressupostos valorativos, tende a reproduzir a alienação moral, em seus aspectos já assinalados: a repetição a-crítica dos valores, a assimilação rígida dos preceitos e modos de comportamentos, o pensamento ultrageneralizador, o preconceito, o conformismo, a discriminação, tendo em vista a não aceitação do que não se adequa aos padrões de comportamento estereotipados como “corretos” (p.74).

Segundo Ortiz (2010) o ethos profissional nas origens da profissão é marcado por

alguns elementos: o primeiro deles é a prioridade da vocação como requisito para a escolha da

profissão; aqui se expressa o caráter vocacional e missionário desta. Este elemento vem

“necessitados”, isto porque, as expressões da “questão social” até então, eram tratadas de forma repressiva pelo Estado ou deixadas a mercê das iniciativas religiosas. Na atualidade, outro tipo de solidariedade fundamenta as “novas” formas de enfrentamento da “questão social”: uma solidariedade interclasses. Embora as ações de solidariedade ainda estejam, em grande medida, motivadas por razões de cunho religioso, Segundo Bonfim (2010) as produções teóricas atuais sobre o tema tentam distinguir-se desta perspectiva, que tem como pressuposto uma ética do dever (cristão), e analisá-las do ponto de vista da eficácia social, fundamentada agora por uma ética pragmática. Para aprofundar esta discussão cf. Bonfim (Id). 108 Conferir nota 86. 109 A Doutrina Social da Igreja utilizava como referencial teórico o pensamento de São Tomás de Aquino (século XII). O tomismo e o neotomismo (retomada do pensamento de São Tomás por Jacques Maritain na França e pelo Cardeal Mercier na Bélgica) tinham por preocupação a dignidade da pessoa humana. O ser humano é entendido como uma unidade entre corpo e alma e a sociedade é o espaço onde os homens podem realizar o bem comum. (Yazbek, 2009). 110 Embora a formação do assistente social na atualidade possua um referencial teórico-metodológico distinto – a teoria social marxista –, que possibilita uma crítica radical ao positivismo e o neotomismo, isto não altera o tipo de demandas colocadas à profissão, ou seja, a necessidade do trabalho do assistente social permanece vinculada à administração de conflitos, à integração social. O que pode ser modificado – a partir do novo referencial teórico metodológico e ético-político – é o tipo de respostas dadas a estas demandas. Esta é uma das questões que será problematizada no próximo item.

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110

acompanhado da dificuldade que o assistente social tem de apreender a importância da teoria

para o exercício profissional. “[...] Logo, uma profissão, cujo critério de ingresso se baseava

nos valores morais e pessoais, não podia priorizar a produção ou a necessidade de

conhecimento [...]” (Ortiz, 2010, p.20).

Outro elemento destacado por Ortiz (Id.) é o corte de gênero existente na profissão, ou

seja, trata-se de uma profissão essencialmente feminina. Nos primórdios da profissão este

elemento se explica, em grande medida, porque era atribuída à mulher uma vocação natural

para as tarefas educativas e caridosas (Iamamoto, 2001).

Além destes dois elementos, Ortiz (2010) retoma duas características discutidas por

Netto (1986) e que são essenciais para compreendermos o modo de ser desta profissão: a

tendência à subalternidade e o sincretismo.

No que se refere à subalternidade, esta só pode ser entendida a partir das condições

sócio-históricas nas quais emerge a profissão. A atribuição ao Serviço Social de uma suposta

“cientificidade” se constituiu, na trajetória profissional, como uma das estratégias para

combatê-la. Esta tendência, segundo este autor, pode ser explicada porque os assistentes

sociais queriam construir uma auto-imagem que diferenciasse seu exercício sócio-profissional

das suas protoformas, ou seja, das ações assistencialistas, assistemáticas e filantrópicas.

(Netto, Id.).

Este autor é enfático ao afirmar que o surgimento de uma profissão não depende do

sistema de saber em que se baseia, mas das respostas que dá às demandas histórico-sociais

determinadas. O sistema de saber é imprescindível, mas só se recorre a ele quando a profissão

já responde às demandas que lhe são colocadas.

Assim,

[...] a afirmação e o desenvolvimento de um estatuto profissional (e dos papéis a ele vinculados) se opera mediante a intercorrência de um duplo dinamismo: de uma parte, aquele que é deflagrado pelas demandas que lhe são socialmente colocadas; de outra, aquele que é viabilizado pelas suas reservas (teóricas e prático-sociais), aptas ou não para responder às requisições extrínsecas – e este é o campo em que incide o seu sistema de saber. O espaço de toda e cada profissão no espectro da divisão social (e técnica) do trabalho na sociedade burguesa consolidada e madura é função da resultante destes dois vetores. [...] (Netto, 1996a, p.85).

No que se refere ao sincretismo, este autor afirma que este se constitui numa

determinação histórico-genética da profissão. Segundo Netto (1996a), são três os

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111

fundamentos objetivos da estrutura sincrética do Serviço Social: 1. as demandas sócio-

históricas, ou seja, a “questão social”, como objeto polifacético e polimórfico da intervenção

profissional; 2. o horizonte de seu exercício profissional (cotidiano). O fato de a “questão

social” assumir uma natureza difusa, apresentando uma multiplicidade de problemas,

necessitará de uma variedade de intervenções profissionais para respondê-la; 3. sua

modalidade específica de intervenção.

No que se refere à “questão social” não é difícil compreender sua estrutura sincrética.

Com o desenvolvimento da sociedade burguesa e o acirramento da sua contradição mais

fundamental, a produção cada vez mais social e a apropriação cada vez mais privada, a

“questão social” vai se apresentando nas suas mais diferentes expressões – pobreza, violência,

falta de acesso à saúde, à educação, à moradia, ao trabalho, etc. – demandando, assim, uma

variedade nas formas de intervenção.

Isto significa que as estratégias de enfrentamento destas expressões também se

constituem de forma sincrética, ou seja, serão formuladas respostas fragmentadas, focalizadas

e emergenciais que conseguem, no máximo, a reorganização da vida cotidiana de indivíduos

sociais111. Segundo Netto (Id.), neste tipo de intervenção deixa-se à sombra a perspectiva de

totalidade, categoria central da própria realidade.112

A reflexão feita até o momento expressa os elementos constitutivos do ethos

profissional nas origens da profissão, mas também características que permanecem – como

veremos mais adiante – até os dias atuais. Isto se explica pelo fato de alguns elementos serem

histórico-genéticos no Serviço Social, como, por exemplo, o sincretismo e a função social

desta profissão.

O ethos profissional nas origens da profissão revelava-se através de ações pautadas na

moralização da realidade social, expressando assim a vinculação desta profissão ao projeto

reformista-conservador. Isto explica a valorização dos atributos morais na formação das

primeiras assistentes sociais.113

111 O que Netto (1996a) chama de manipulação das variáveis empíricas. 112 Não devemos esquecer que, no capitalismo, o enfrentamento das expressões da “questão social” via políticas sociais não tem por objetivo (e não pode ter) a sua resolução. 113 Isto significa que os requisitos necessários à formação dos primeiros assistentes sociais estão essencialmente relacionados a valores cristãos: íntegra formação moral, altruísmo, devotamento, simplicidade, generosidade etc. Não por acaso, segundo Carvalho (in: Iamamoto e Carvalho, 2001), para ingressar na Escola de Serviço Social de São Paulo além dos requisitos básicos “[...] ter 18 anos completos e menos de 40; comprovação do curso secundário; apresentação de referências de 3 pessoas idôneas; submeter-se a exame médico” (p.221), era

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112

No que se refere à tendência moralizadora da ação profissional na gênese da profissão

Barroco (2001) afirma que

[...] este aspecto adquire uma importância significativa, tendo em vista que a educação moral internalizada no processo de socialização dos indivíduos é formadora de um referencial de valor que a formação e a prática profissional podem romper ou consolidar. [...] (p. 76).

Podemos afirmar, assim, que no início da profissão e até meados dos anos 60 existia

uma convergência entre os objetivos reformistas-conservadores do Estado, da burguesia

dominante e da Igreja no trato às expressões da “questão social” e a formação profissional.

Isto significa uma coesão em torno de valores tradicionais referentes à família, a valorização

da ordem, da autoridade e da propriedade privada e a ideia da garantia do sucesso pelo

trabalho.

Aqui observa-se uma complementação prático-política do conservadorismo laico e o

confessional: em ambos os casos pretende-se uma reforma moral do homem e da sociedade.

“[...] De fato, no âmbito do pensamento conservador – a questão social, numa operação

simultânea à sua naturalização, é convertida em objeto de ação moralizadora. [...]” (Netto,

2004, p.44).

Assim, é fácil entender a função e importância da moral nas intervenções

profissionais. Tanto as demandas do passado quanto às da atualidade requerem intervenções

neste sentido.

Estes elementos analisados até aqui nos possibilitam compreender as configurações

teóricas, políticas e ideológicas do Serviço Social, assim como os aspectos da ética

profissional. Segundo Barroco (2010) a dimensão da ética profissional, nos primórdios da

profissão, era abordada nas disciplinas de Filosofia e Ética, onde eram trabalhados os

princípios éticos da filosofia tomista, do positivismo e do pensamento conservador. Esta

autora afirma ainda que não havia um debate crítico referente à ética, tampouco uma produção

necessário que o candidato não tivesse defeito físico e sua família não apresentasse comportamento considerado imoral. Estas condicionalidades expressam o caráter moralista e preconceituoso presente na formação dos assistentes sociais na gênese da profissão. Além disto, é atribuído um caráter missionário à ação profissional, negando aos assistentes sociais, por sua vez, a sua condição de trabalhador assalariado e a funcionalidade da profissão na reprodução das relações de dominação. Veremos, no próximo item, que ainda permanecem resquícios deste caráter missionário na profissão.

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113

teórica sistemática. Assim, é possível identificar estes princípios nos Códigos de Ética de

1947, 1965 e 1975.

O questionamento destes pressupostos teóricos e ético-políticos do Serviço Social se

inicia na década de 60 e está relacionado como movimento mais amplo da sociedade. As

transformações econômicas e políticas no mundo a partir da década de 60 colocaram a

possibilidade de revisão de valores e costumes tradicionais e isto acabou rebatendo no Serviço

Social. A década de 60 é uma época considerada revolucionária. A Europa vinha passando

por uma sucessão de guerras de “descolonização”, sendo a revolução da Argélia, em 1962, o

exemplo mais expressivo. Além disso, esta década é marcada pela guerra do Vietnam e o

questionamento desta por parte significativa da juventude norte-americana; o maoísmo e a

experiência da revolução cultural; a eclosão de diversas lutas populares na América Latina e

pelas revoluções comportamentais: a luta das mulheres pela igualdade de direitos em todo o

mundo, o questionamento dos papéis sociais do homem e da mulher na sociedade, e o

questionamentos da juventude em Maio de 68 na França (Hobsbawn, 1995).

Isto significa afirmar que o processo de questionamento do Serviço Social tradicional,

incluindo aí os valores ligados a este, não se constituiu de forma endógena. Lembremos da

reflexão de Lukács (apud Lessa 2002) quando este afirma que a gênese e a reprodução dos

valores estão ontologicamente ligadas à dinâmica da produção da vida material pelos homens.

Assim,

[...] a ruptura com costumes e valores de ordem moral é sempre relativa a condições históricas favorecedoras de questionamentos que remetem à vida cotidiana, explicitando conflitos e contradições e possibilitando novas alternativas e escolhas. Dada a dinâmica da sociedade, tais possibilidades estão potencialmente presentes na vida social; no entanto, determinados momentos históricos são particularmente propiciadores de sua expressão. [...] (Barroco, 2001, p. 100).

Outro elemento importante que contribuiu no questionamento das ações conservadoras

no âmbito profissional foi a aproximação do Serviço Social com o referencial marxista que

teve início com o Movimento de Reconceituação, na década de 60, no Brasil e na América

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114

Latina. 114 Este movimento – que se estende até 1975 – questionava a suposta neutralidade

profissional e o caráter conservador da ação profissional.

Esta primeira aproximação com o marxismo – embora de forma enviesada e cheia de

interpretações equivocadas – possibilitou a alguns profissionais o interesse e o

aprofundamento da teoria marxista e uma análise da sociedade e da profissão à luz deste

referencial.

Do período que se estende da segunda metade dos anos sessenta ao final dos anos

noventa a profissão passou por alterações significativas: desde mudanças nas demandas

colocadas ao Serviço Social quanto no que diz respeito à inserção dos assistentes sociais em

novas estruturas organizacionais-institucionais. Isto significa afirmar que durante este período

observa-se um giro sensível na formação profissional e nos referenciais teórico-políticos e

ídeo-culturais. Estas mudanças expressam o que Netto (2001) denomina de renovação do

Serviço Social no Brasil115. Segundo este autor (Id.) esta dinâmica esteve essencialmente

demarcada pelas mudanças ocasionadas pela implantação da ditadura no país.

Isto não significa que a ditadura tivesse a intenção de questionar as práticas

profissionais até então dominantes no Serviço Social. Segundo Netto (2001) até o final da

década de sessenta e no início da década de setenta podemos observar uma compatibilidade

entre parte dos objetivos da ditadura e os objetivos profissionais, ou seja, por um lado a

ditadura reafirmava o traço subalterno da profissão, reforçando a execução de políticas sociais

localizadas, de caráter controlador, e, por outro, opunha-se às práticas profissionais

potencialmente conflituosas.

No entanto, a ditadura põe em desenvolvimento uma proposta de reorganização do

Estado e de alterações profundas na sociedade, requisitando do Serviço Social novas

demandas, alterando assim, a prática e a formação dos assistentes sociais.116

114 Este movimento, entretanto, não foi homogêneo. Dele faziam parte desde profissionais que tinham por objetivo modernizar a profissão se afastando de suas bases confessionais até militantes radicais de esquerda que pregavam a revolução como única alternativa para a América Latina (Netto, 2005). 115 Vale citar o que Netto (Id.) entende por este processo: “Entendemos por renovação o conjunto de características novas que, no marco das constrições da autocracia burguesa, o Serviço Social articulou, à base do rearranjo de suas tradições e da assunção do contributo de tendência do pensamento social contemporâneo, procurando investir-se como instituição de natureza profissional dotada de legitimação prática, através de respostas a demandas sociais e da sua sistematização, e de validação teórica, mediante a remissão às teorias e disciplinas sociais” (p 131). 116 Ao assistente social será demandado ações orientadas por um tipo específico de racionalidade: a burocrático-administrativa, própria da “modernização conservadora”. Esta realidade possibilitou uma mudança no perfil do profissional demandado pelo mercado Passa-se a requisitar um profissional “moderno”, onde os procedimentos

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115

O processo de “modernização conservadora” engendrado pela ditadura colocou como

uma das suas prioridades a implementação de políticas sociais e isto pode ser explicado por

duas principais razões: de um lado, evidencia-se uma hipertrofia da “questão social” –

resultado da política econômica ditatorial; de outro, o fato de que as políticas sociais

representam, em ambiente de restrição de direitos políticos e civis, a busca de legitimidade

das classes dominantes.117

Atrelado à esta dinâmica identificamos um elemento fundamental no processo de

renovação profissional: a laicização do Serviço Social. É certo que este processo já vinha se

desenvolvendo desde a década de cinqüenta, mas só chegou ao seu auge a partir demandas

colocadas pela ditadura (Netto, 2001).

Este é um aspecto central das mudanças ocorridas no interior da profissão. No entanto,

é preciso entender o real significado da laicização profissional e os seus rebatimentos no

cotidiano profissional. Mesmo concordando com Netto (2001) sobre a importância da

desvinculação do Serviço Social dos pressupostos filosóficos e ideo-políticos católicos, isto

não significa afirmar que houve uma alteração significativa de valores no interior da

categoria. A adesão aos valores cristãos permanece e isto, sem dúvida, é um elemento de

continuidade na dinâmica profissional, elemento este indispensável na análise do Serviço

Social. Esta consideração é importante para entendermos a complexidade dos processos que

se estabelecem no interior da profissão a partir de então e o impacto disto no que se refere ao

ethos profissional.

Este processo – de laicização de um lado, e permanência de valores cristãos, de outro

– nos revela que não há incompatibilidade entre o tipo de racionalidade exigida pela dinâmica

ditadura – burocrático-administrativa – e a adesão a um conjunto de valores historicamente

dominantes tanto na profissão quanto na sociedade brasileira.

Marx (2010), em seu texto Sobre a Questão Judaica, nos fornece alguns elementos

para entendermos esta questão. No seu embate com Bauer sobre a emancipação política dos

Judeus, este autor demonstra que a garantia dos direitos do homem e do cidadão, nos marcos

da sociedade burguesa, são perfeitamente conciliáveis com a liberdade religiosa.

“racionais” passam a ser priorizados (cf. Netto, 2001, p.164). 117 Não por acaso podemos observar a expansão das políticas sociais no Brasil nos períodos de ditadura (1937 -1945 e 1964 – 84).

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116

Isto significa que é possível o Estado (ou mesmo uma profissão) tornar-se laico e

continuar sob a influência de valores religiosos. Afirma Marx (Id.)

O Estado pode, portanto, já ter se emancipado da religião, mesmo que a maioria esmagadora continue religiosa. E a maioria esmagadora não deixa de ser religiosa pelo fato de ser religiosa em privado. Porém, o comportamento do Estado, principalmente do Estado livre, para com a religião nada mais é do que o comportamento das pessoas que compõe o Estado para com a religião. Disso decorre que o homem se liberta de uma limitação, valendo-se do meio chamado Estado, ou seja, ele se liberta politicamente, colocando-se em contradição consigo mesmo, alteando-se acima desta limitação de maneira abstrata e limitada, ou seja, de maneira parcial (p.39, grifos do autor).118

Esta reflexão de Marx (Id.), embora particularizada, nos possibilita pensar o processo

de laicização do Serviço Social, ou seja, ele foi absolutamente importante na dinâmica da

renovação profissional, especialmente no que se refere aos novos pressupostos teórico-

metodológicos que passam, a partir de então, a fundamentar a profissão, mas insuficiente para

alterações significativas no que se refere à influência dos valores cristãos na vida dos

assistentes sociais. 119

A importância do processo de renovação encontra-se fundamentalmente no

deslocamento de uma profissão pautada em bases ético-morais, na intencionalidade do agente

e sem validação teórica, para se estabelecer como uma instituição com uma legitimação tanto

prática quanto teórica.

O que estamos tentando demonstrar é que há uma dinâmica de ruptura e continuidade

com valores cristãos na profissão. É imprescindível não desconsiderarmos o vínculo genético

do Serviço Social com os referenciais católicos, e o peso dos valores humanistas-cristãos na

formação da sociedade brasileira.

118 Conferir nota 96 119 A pesquisa sobre o perfil dos assistentes sociais no Brasil, realizada pela Abepss em 2004, demonstra bem a adesão destes profissionais à este tipo de valores. Os dados da pesquisa demonstram uma variedade de religiões apontadas pelas (os) assistentes sociais, ainda que a religião católica seja majoritária (com 67,65%), seguida pela protestante (com 12,69%). Importante salientar que estes dados não demonstram somente o vínculo formal a um tipo de religião, mas principalmente à vivência destes pressupostos, ou seja, quando interrogados acerca da condição religiosa, 76% responderam que são praticantes de alguma religião e apenas 24% disseram não. O número de praticantes sobe para 86,21% no Centro Oeste e desce para 69,57% no Sul. Não estamos questionando aqui a opção religiosa destes profissionais, até porque a liberdade religiosa faz parte das conquistas democráticas. A nossa preocupação refere-se aos limites estabelecidos (ou não) pelos mesmos entre valores pessoais e valores profissionais na intervenção profissional.

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117

O processo de renovação da profissão, portanto, enfatiza o esforço da vanguarda da

categoria em promover mudanças no âmbito da sua legitimidade teórica.120 Isto pode ser

verificado através de uma interlocução com as ciências sociais, interando-se de suas

polêmicas e confrontos contemporâneos. Segundo Netto (2001) mesmo reconhecendo

equívocos e ambigüidades fruto desta interlocução, é verdade que ela permite ao Serviço

Social três processos decisivos: primeiro, porque abre aos assistentes sociais o fluxo da

modernidade; segundo, porque contribui, no plano intelectual, para mudanças na histórica

condição de subalternidade profissional que caracteriza o Serviço Social e, por último, porque

permitiu que a profissão passasse a ser objeto de análise e de crítica nos seus fundamentos.

[...] A dialética entre Serviço Social no país antes e durante/depois do ciclo autocrático não é nem uma ruptura íntegra, nem a mesmice pleonástica: é um processo muito complexo em que rompimentos se entrecruzam e se sobrepõe a continuidades e reiterações; é uma tensão entre vetores de transformação e permanência – e todos comparecem, em medida desigual e metamorfoseados, na resultante em que, indubitavelmente, predomina o novo. [...] (Netto, 2001, p. 136).

A conjuntura gerada a partir do golpe militar de 1964 no Brasil acabou criando as

possibilidades para a erosão do Serviço Social “tradicional”. No entanto, o conservadorismo

sócio-político inerentes as formas “tradicionais”, encontrou espaço para se reatualizar em

algumas das tendências teóricas que se desenvolveram a partir daí.

A pesquisa de Netto (2001) sobre os elementos da renovação profissional demonstra a

complexidade deste processo, revelando, por exemplo, um movimento processual com

períodos de dominância teórico-cultural e ídeo-políticos distintos (expressos nas diferentes

vertentes).

Neste sentido este autor (Id.) identifica três tendências principais deste processo. A

primeira delas, denominada por ele de perspectiva modernizadora esteve essencialmente

vinculada às demandas postas pela dinâmica econômica e política do período pós-64. O

Serviço Social passa a exercer uma função integradora, baseada agora em novos referenciais

teórico-metodológicos: aqui se destaca os aportes extraídos do estrutural-funcionalismo norte-

americano. Observa-se uma ênfase na dimensão técnico-operativa da profissão no intuito de

120 Segundo Netto (2006) isto não acontece por razões aleatórias, mas pelo fato deste aspecto, mais do que qualquer outro, que se apresentam as principais mudanças na profissão.

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118

responder às demandas desenvolvimentistas colocadas pela ditadura. Os espaços de trabalho

dos assistentes sociais se ampliam com a inserção destes nas instituições estatais e paraestatais

reestruturadas pelo estado ditatorial.

Vale destacar, nesta perspectiva, a tendência à naturalização dos processos sociais – a

exemplo da sua adesão, sem questionamentos, às demandas ditatoriais – a burocratização da

intervenção profissional e a permanência dos valores121 mais conservadores da profissão. “[...]

sai-se aqui do campo ético do neotomismo para o terreno teórico do estrutural-funcionalismo

– a “globalidade” é a perspectiva das relações sistêmico-integrativas de indivíduos e

sociedade” (Netto, 2001, p.170).

A perspectiva modernizadora,122 hegemônica até meados da década de setenta, foi

questionada de duas formas distintas: de um lado, encontrou resistência de um conjunto de

profissionais contrários à laicização da profissão e às inovações decorrentes do processo de

“modernização” profissional. De outro lado, tal perspectiva foi alvo de críticas de um grupo

de assistentes sociais comprometido com a resistência democrática e que já vinha

desenvolvendo questionamentos sobre as práticas profissionais tradicionais.

Ambas as críticas, segundo Netto (Id.), deram conteúdo à outras duas direções do

processo de renovação da profissão: a perspectiva de reatualização do conservadorismo e a

perspectiva intenção de ruptura. A primeira, aquela mais resistente às mudanças, recuperou

os elementos mais tradicionais da profissão articulando-os a uma nova base teórico-

metodológica: a fenomenologia. Esta aparece como uma “terceira via” na dinâmica das

transformações no âmbito profissional na medida em que ela se contrapõe tanto ao viés

positivista da tendência modernizadora, como ao pensamento marxista123 presente nas

correntes críticas.124

121 Esta adesão ao projeto ditatorial e aos valores tradicionais pode ser facilmente observado no Código de Ética dos assistentes sociais de 1975. Na sua Introdução, a necessidade de se estabelecer o bem comum legitima a ação disciplinadora do Estado, sendo a organização profissional um instrumento valioso de defesa social. Nele observa-se também a ausência de princípios referente à democracia e o pluralismo presentes no Código anterior (1965). 122 A formulação desta perspectiva encontra-se presente nos Documentos de Araxá e Teresópolis, resultado dos Seminários de Teorização do Serviço Social promovido pelo CBCISS em 1967 e 1970 nas cidades de Araxá/MG e Teresópolis/RJ (Netto, 2001). 123 Ainda que se tratasse, neste momento, de um “marxismo sem Marx” nos termos de Quiroga (1991). Segundo esta autora (Id.) as referência teóricas marxistas recorrentes no Serviço Social deste período eram aquelas de viés estruturalista. 124 O conteúdo teórico-metodológico e ídeo-político desta tendência está presente no Documento de Sumaré.

Page 130: Tese Paula Bonfim (1)

119

A perspectiva chamada por Netto (2001) de reatualização do conservadorismo

enfatizava, portanto, as micro-relações, destacando a dimensão da subjetividade,

privilegiando, assim, as ações no âmbito da ajuda psicossocial. Este autor (Id.) afirma que

este tipo de tendência ressurge freqüentemente nos momentos de desenvolvimento capitalista,

ou seja,

[...] a retórica irracionalista da “humanização” (cristã tradicional ou de fundo existencialista) adquire saliência especial em contextos capitalistas de rápido desenvolvimento das forças produtivas: à crescente burocratização “massificadora” da vida social, ela opõe a valorização “profunda” da “personalidade”, das “realidades psíquicas”, das “situações existenciais” etc. [...] (p. 158).

A terceira direção do processo de renovação profissional é a perspectiva intenção de

ruptura.125 Esta faz uma crítica sistemática aos aportes teórico-metodológicos e ideológicos do

Serviço Social “tradicional”, numa tentativa de romper com o histórico conservadorismo na

profissão. Herdeira do pensamento reconceptualizado latino-americano, recorre

progressivamente à tradição marxista fomentando, a partir da década de 1980, a polêmica no

interior da categoria.

Desde então, se observa um amadurecimento teórico e político na profissão,

possibilitando uma renovação crítica no seu interior. Segundo Netto (2001) uma das

produções mais expressivas da perspectiva Intenção de ruptura é a obra de Marilda

Iamamoto.

Iamamoto (2001) inaugura a reflexão sobre o Serviço Social como profissão inserida

na divisão social e técnica do trabalho no bojo das relações sociais capitalistas. É nesta obra

que esta autora desvela as contradições próprias desta profissão: ao mesmo tempo em que o

trabalho do assistente social atende aos interesses do capital, não se resume a isto. O assistente

social pode limitar-se a estas demandas ou pode, a partir de sua relativa autonomia, atender

aos interesses da classe trabalhadora. Segundo Iamamoto (2001) a dimensão política da

profissão abre as possibilidades para reorientar o trabalho profissional a favor dos interesses

da população.

125 Segundo Netto (2001) o marco inicial desta tendência pode ser evidenciado no “Método BH”. Resultado da reflexão de docentes da Universidade Católica de Minas Gerais, entre os anos de 1972 e 1975, é considerado a primeira tentativa de formular um projeto profissional crítico.

Page 131: Tese Paula Bonfim (1)

120

[...] Embora constituída para servir aos interesses do capital, a profissão não reproduz, monoliticamente, necessidades que lhe são exclusivas: participa também, ao lado de outras instituições sociais, das respostas às necessidades legítimas de sobrevivência da classe trabalhadora, em face das suas condições de vida, dadas historicamente. [...] (Iamamoto, 2001, p.94).

“[...] o Assistente Social, dependendo de sua opção política, pode configurar-se como mediador dos interesses do capital e do trabalho, ambos presentes, em confronto, nas condições em que se efetiva a prática profissional. [...]”(Iamamoto, 2001, p.95).

Iamamoto (2001) nos chama a atenção para dois aspectos importantes do trabalho

profissional: a primeira é a dimensão política; a segunda, intrinsecamente relacionada à

primeira, é a existência de uma relativa autonomia no seu fazer profissional, ou seja, mesmo

não sendo uma típica profissão liberal, esta possui elementos que a permitem agir com certa

liberdade. O fato de o assistente social possuir um Código de Ética, uma Lei de

regulamentação profissional e trabalhar diretamente com os usuários, num espaço

resguardado pelo sigilo profissional, dá a ele a possibilidade de ir além das demandas

institucionais.

Mesmo compreendendo a natureza conservadora da profissão, ou seja, reconhecendo

que esta surge para atuar nas seqüelas da “questão social” no intuito de amenizar as tensões e

conflitos sociais, entendemos que, contraditoriamente, pela mesma atividade, a atuação

profissional pode – dependendo das condições para o exercício de sua autonomia – trabalhar

numa outra direção: uma ação que responda às reais necessidades dos usuários.

Esta constatação nem sempre esteve clara para os sujeitos profissionais. É somente na

década de 80126 que as contradições inerentes à profissão começam a ser desveladas e

discutidas no âmbito profissional. A apropriação do referencial marxista possibilitou aos

assistentes sociais desvendar os processos sociais na sociedade capitalista, a natureza da

“questão social” e as formas de enfrentamento desta na sociedade burguesa.

126 Segundo Barroco (2001) é somente na segunda metade dos anos 70 que é possível uma avaliação da incorporação do marxismo pelo Serviço Social. É com a crítica superadora do movimento de reconceituação que “[...] são apontados seu ecletismo teórico-metodológico, sua ideologização em detrimento da compreensão teórico-metodológica, sua remissão a manuais simplificadores do marxismo, sua reprodução do economicismo e do determinismo histórico. Em termos políticos, questiona-se o basismo, o voluntarismo,o messianismo, o militantismo, o revolucionarismo” (p.167).

Page 132: Tese Paula Bonfim (1)

121

É importante salientar que a renovação crítica do Serviço Social esteve essencialmente

vinculada aos movimentos e lutas dos trabalhadores na década de 80.

Este amadurecimento teórico-político possibilitou ao Serviço Social compartilhar das

ideias e das propostas do pensamento de esquerda que mobilizava o país desde a década de

70. Podemos afirmar, portanto, que o processo de redemocratização do país foi decisivo no

processo de renovação profissional. Não por acaso, Netto (2006) afirma ser esta a primeira

condição para a construção do que, na década de 90, irá se constituir no novo projeto ético-

político do Serviço Social. Segundo este autor (Id.) é justamente esta nova conjuntura que

possibilitou a emergência das condições para a ruptura, no plano ídeo-político, com a

tendência conservadora no interior da profissão.

É possível observar a presença de parte da categoria no processo de transição

democrática, principalmente através de suas entidades representativas. Uma das ações mais

expressivas dos segmentos de vanguarda da profissão que manifestou a oposição à ditadura

foi destituição da mesa de honra na abertura do III CBAS, em 1979, que ficou conhecido por

“Congresso da Virada”.

Segundo Barroco (2001),

[...] a militância político-profissional alcança sua maturidade evidenciada na organização sindical nacional dos assistentes sociais, na articulação com as lutas gerais dos trabalhadores e na inserção junto às demais entidades representativas da profissão; os eventos nacionais, gradativamente, revelam um contorno crítico e politizado. [...]. A formação profissional recebe novos direcionamentos, passando a contar com um currículo explicitamente orientado para uma formação crítica e comprometido com as classes subalternas. [...] (p.168).

Este processo possibilitou mudanças significativas no interior da profissão nas últimas

décadas: um forte embate contra o tradicionalismo e seu lastro conservador; uma evidente

qualificação teórica resultado do crescimento dos cursos de pós-graduação lato e stricto senso

que promoveu, por sua vez, uma renovação crítica tanto no que diz respeito à formação dos

assistentes sociais – expresso no currículo que passa a vigorar a partir de 1982 – quanto no

que se refere à normatização profissional: formulação do Código de Ética de 1986 e,

posteriormente, a aprovação do atual código, de 1993; e na reformulação da Lei de

Regulamentação da profissão – Lei 8.662/93.

É importante ressaltarmos os avanços significativos no que se refere aos fundamentos

da Ética, resultado da apreensão, cada vez mais madura, da teoria social marxiana: a primeira

Page 133: Tese Paula Bonfim (1)

122

delas, que já pode ser evidenciada no Código de 1986, é a compreensão da historicidade da

moral e a sua relação com a dinâmica da vida social. Isto pode ser verificado na Introdução do

referido Código: “As idéias, a moral e as práticas de uma sociedade se modificam no decorrer

do processo histórico. De acordo com a forma em que esta se organiza para produzir, cria seu

governo, suas instituições e sua moral” (Resolução CFAS No 195/86, p.129, 2001). Assim,

este código se contrapõe a ideia da existência de valores a-históricos e acima dos interesses de

classes.

Outro elemento importante que aparece em destaque no Código de 1986 é dimensão

educativa da profissão, mas agora sob novas bases. Aqui, a influência de Gramsci é observada

especialmente no que se refere ao papel do intelectual orgânico junto às classes dominadas.

Esta apropriação, no entanto, aparece sem as necessárias mediações. Uma das limitações deste

código encontra-se juntamente na identificação mecânica entre interesses profissionais e

interesses de classes. Além disto, a moral aparece como o resultado direto e imediato da

produção econômica. Neste sentido, não é possível observar até 1986 uma reflexão

sistemática da ética que proporcionasse as mediações que captassem as peculiaridades e a

dinâmica da mesma (Barroco, 2001).

Estas limitações colocaram a necessidade de um aprofundamento sobre os

fundamentos da ética levando a revisão do Código de 1986. É importante salientar que a

crítica ao Código de 1986 e sua posterior revisão foi o resultado da aproximação com a

discussão da ontologia marxiana, com o recurso às obras de Marx e, especialmente, a

interlocução com a produção do filósofo húngaro György Lukács. A discussão da ontologia

do ser social em Marx127 possibilitou aos assistentes sociais a aproximação com o debate sobre

a complexa relação entre necessidade e liberdade, assim como o compromisso com valores

emancipatórios.

Neste sentido, o princípio da liberdade tem uma centralidade no Código de 1993. Esta

se constitui como elemento fundamental para a realização da Ética. A liberdade entendida não

como algo natural, dado à priori, mas como possibilidade criada pela práxis humana em seu

conjunto. Entender a liberdade na sua relação intrínseca e contraditória com o “reino da

necessidade” (Lukács, 1978) nos possibilita desconstruir a ideia da liberdade como algo

127 Conforme abordamos no Cap.I.

Page 134: Tese Paula Bonfim (1)

123

absoluto, assim como nos dá os elementos para romper com a pretensa autonomia do homem

diante da realidade, sustentada pela filosofia burguesa128.

Afirma Lukács (1978)

[...] A liberdade, bem como sua possibilidade, não é algo dado por natureza, não é um dom do "alto" e nem sequer uma parte integrante - de origem misteriosa - do ser humano. É o produto da própria atividade humana, que decerto sempre atinge concretamente alguma coisa diferente daquilo que se propusera, mas que nas suas conseqüências dilata - objetivamente e de modo contínuo - o espaço no qual a liberdade se torna possível; e tal dilatação ocorre, precisamente, de modo direto, no processo de desenvolvimento econômico, no qual, por um lado, acresce-se o número, o alcance etc., das decisões humanas entre alternativas, e, por outro, eleva-se ao mesmo tempo a capacidade dos homens, na medida em que se elevam as tarefas a eles colocadas por sua própria atividade. [...] ( p.17).

Isto significa afirmar que esta liberdade individual está intrinsecamente vinculada à

dinâmica social e, por isto, a liberdade de uns não pode se constituir em limite à liberdade de

outros. Neste sentido, “[...] o homem só pode ser verdadeiramente livre numa sociedade livre

[...]” (Lukács, 2007, p.74).

Atrelado à esta concepção de liberdade encontram-se outros princípios fundamentais

do Código de Ética de 1993: defesa intransigente dos direitos humanos e recusa do arbítrio e

do autoritarismo; ampliação e consolidação da cidadania; defesa do aprofundamento da

democracia; posicionamento em favor da eqüidade e justiça social e a garantia do

pluralismo.

É importante entender a relação de complementaridade entre estes princípios. A noção

de cidadania contida no Código de 1993 consiste na possibilidade dos indivíduos de se

apropriarem coletivamente dos bens socialmente produzidos, sejam bens materiais e/ou

culturais. É um processo – histórico – onde os homens podem desenvolver as potencialidades

128 Um dos filósofos que tem uma preocupação com o tema da autonomia é Kant. Segundo este autor (1974), o homem é um ser racional, consciente e livre e deve agir segundo o preceito da boa vontade. “A boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão somente pelo querer, isto é, em si mesma, e, considerada em si mesma, deve ser avaliada em grau muito mais alto do que tudo o que por seu intermédio possa ser alcançado em proveito de qualquer inclinação, ou mesmo, se quiser, da soma de todas as inclinações. [...]” (Kant, 1974, p.204). Esta noção de boa vontade refere-se a uma ação que se pauta não somente por dever, mas pelo dever. Kant (Id.) não considera nenhuma determinação externa ou mesmo interna na ação dos homens, a única coisa importante no agir moral é a razão e a consciência. Não importa se o homem que age é um filósofo ou o homem vulgar. Ambos são seres racionais, e por isto, capazes de discernir o que é bom do que é mau, o que é dever e o que é contrário a este.

Page 135: Tese Paula Bonfim (1)

124

humanas abertas pela vida social. (Coutinho, 2000). Aqui se encontra presente tanto a ideia de

equidade como de justiça social.

Este processo, no entanto, tem na democracia um requisito fundamental. Esta não deve

limitar-se aos direitos políticos (direito ao voto, a ser votado, direito de associação, de

manifestação e direito de greve), mas deve expressar a participação consciente dos cidadãos

na gestão e controle da esfera pública, ou seja, deve garantir a prevalência da vontade geral,

tal como defendido por Rousseau.129 Assim,

[...] Democracia é sinônimo de soberania popular. Ou seja: podemos defini-la como presença efetiva das condições sociais e institucionais que possibilitam ao conjunto dos cidadãos a participação ativa na formação do governo e, em conseqüência, no controle da vida social (Coutinho, 2000, p.50).

O reconhecimento do pluralismo e os valores a ele inerentes – a positividade do

conflito, da tolerância e da divisão dos poderes (Coutinho, 1991) – também são indispensáveis

no processo de democratização. A defesa deste princípio, portanto, possibilita tanto o

reconhecimento e o respeito às diversas manifestações democráticas na sociedade, como as

correntes teóricas/ideo-políticas no Serviço Social. A garantia do pluralismo é condição

fundamental para a eliminação das práticas autoritárias, possibilitando o respeito às

diferenças, à liberdade de expressão, de associação e manifestação. No entanto, isto não

significa a eliminação das divergências e as disputas pela direção social. O desafio encontra-

se justamente em assegurar o predomínio da vontade geral e a conservação da diversidade, a

valorização da multiplicidade de idéias.

Esta valorização da diversidade de pensamento se depara, entretanto, com limites

éticos, ou seja, ideias que defendem o preconceito, o racismo, a violência e todas as práticas

que oprimem os homens nas suas individualidades, devem ser combatidas. Isto explica a

existência, no Código de 1993, de dois princípios que se contrapõe à todas as práticas

discriminatórias e excludentes: 6º – Empenho na eliminação de todas as formas de

preconceito, incentivando o respeito à diversidade, à participação de grupos socialmente

129 Segundo Rousseau (apud Coutinho, 1996), a vontade geral visa o bem comum; deve ser o resultado das “ações virtuosas” dos indivíduos, onde cada um, deixando seus interesses particulares de lado, decide, ouvindo a “voz da própria consciência”. A vontade geral não é o mesmo que vontade de todos, pois esta última nada mais é que a soma dos interesses particulares.

Page 136: Tese Paula Bonfim (1)

125

discriminados e à discussão das diferenças; e 11º – Exercício do Serviço Social sem ser

discriminado, nem discriminar, por questões de inserção de classe social, gênero, etnia,

religião, nacionalidade, orientação sexual, idade e condição física.

Além destes princípios e da sua complementaridade, o atual Código de Ética

estabelece um compromisso com os movimentos de outras categorias profissionais que

partilhem dos princípios deste Código e com a luta geral dos trabalhadores, além da

prioridade na qualidade dos serviços prestados à população e do aprimoramento intelectual,

na perspectiva da competência profissional. Aqui fica evidente a necessidade do

estabelecimento de lutas coletivas para a viabilização de grande parte dos princípios

defendidos pelo Serviço Social.

É importante salientar que ao formular o Código de Ética de 1993 e estabelecer o

compromisso com determinados princípios segmentos da categoria de assistentes sociais

levaram em consideração tanto os limites e contradições da profissão quanto os limites postos

pela sociedade burguesa para a realização da emancipação humana.

Isto significa reconhecer que a luta pela garantia dos direitos do cidadão é necessária,

mas insuficiente para o ser humano se emancipar na sua plenitude. Podemos evidenciar tal

consideração na medida em que o Código de 1993, ao mesmo tempo se compromete, por

exemplo, com os direitos humanos, com a eqüidade e justiça social, que assegure

universalidade de acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais, faz a

opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção de uma nova ordem

societária, sem dominação-exploração de classe, etnia e gênero.

Os avanços obtidos com o processo de renovação crítica da profissão – que resultaram

na revisão da Lei de Regulamentação e na aprovação do Código de Ética profissional, ambos

em 1993 – exigiram também mudanças no processo de formação profissional.

Assim, a reforma curricular de 1996 teve por objetivo enfrentar armadilhas ou

impasses que se tornaram tendências na profissão: 1º - privilégio do conhecimento teórico-

metodológico sem a apreensão das mediações históricas necessárias à compreensão das

problemáticas cotidianas com as quais trabalha o Serviço Social; 2º- a crença de que a

dimensão política, através da militância, era suficiente para derivar uma consciência política e

uma competência profissional e 3º - a defesa do investimento técnico-operativo como

suficiente para uma resposta qualificada para os desafios profissionais. (Abess/Cedepss,

1996).

Page 137: Tese Paula Bonfim (1)

126

Neste sentido, a nova proposta de formação profissional, além de considerar as novas

demandas do mercado de trabalho estabelece como objetivo a formação de um tipo específico

de profissional: crítico, criativo, propositivo, investigativo e comprometido com os valores

defendidos pelo Código de Ética de 1993. Isto significa que esta nova proposta, expressa nas

Diretrizes Curriculares para o curso de Serviço Social/1996, propõe criar as condições para a

formação de um profissional crítico e competente nas suas dimensões teórico-metodológicas,

técnico-operativa e ético-política, contribuindo, neste sentido, para a revisão de ações

profissionais de cunho conservador e, com isto, possibilitar à adesão dos assistentes sociais a

valores emancipatórios.

O Currículo aprovado em 1996 apresenta, portanto, avanços importantes como, por

exemplo, uma nova concepção de ensino. Esta vai além da mera transmissão de

conhecimento, ou seja, a educação deve capacitar para o exercício de uma ação consciente.

Não por acaso, a discussão da ética deve perpassar todo o currículo.

Além destes avanços, rompe-se com a visão positiva entre ciência pura e aplicada,

entre os que pensam e os que fazem, os que investigam e os que intervêm. Assim, o novo

currículo se estrutura a partir de uma lógica que não permite a fragmentação e a segmentação

das disciplinas, nem mesmo a abstração e autonomização dos conteúdos concretos,

considerando a formação como uma unidade entre as três dimensões: teórico-metodológica,

ético-política e técnico-operativa (Guerra, 2005a).

É justamente o resultado deste processo – que se evidencia mais claramente na

profissão em meados da década de 80 – que possibilitou transformações profissionais

substantivas, resultando no que se convencionou chamar projeto-ético político do Serviço

Social.

Desde então a profissão tem passado por um significativo amadurecimento teórico e

político, como afirma Iamamoto (2007):

O Serviço Social brasileiro, nas últimas décadas, redimensionou-se num forte embate contra o tradicionalismo profissional e seu lastro conservador, adequando criticamente a profissão às exigências do seu tempo, qualificando-a teoricamente, como o atesta a produção acumulada nas últimas duas décadas e o crescimento da pós-graduação. Também, nesse processo, a profissão fez um radical giro na sua dimensão ética e no debate nesse plano. Constituiu democraticamente a sua normatização, expressa no Código de Ética de 1993, que dispõe de um caráter de obrigatoriedade ao estabelecer os direitos e deveres do assistente social, segundo princípios e valores radicalmente humanistas, na contracorrente do clima cultural prevalecente, que são guias para o exercício cotidiano. […] (p.225).

Page 138: Tese Paula Bonfim (1)

127

3.3 É POSSÍVEL AFIRMAR A EXISTÊNCIA DE UMA NOVA MORALIDADE

PROFISSIONAL?

É importante ressaltar que as conquistas profissionais são produtos históricos, foram

protagonizadas por sujeitos políticos e estão relacionadas aos processos de mudanças

econômicas, políticas e culturais pelas quais passou o país nas últimas décadas – considerando

a sua relação com os países da América Latina e o restante do mundo. Entretanto, não

podemos perder de vista os desafios para a efetivação, no cotidiano profissional, dos

princípios e valores garantidos no projeto profissional. Necessário observar que “[…] não há

uma identidade imediata entre a intencionalidade do projeto profissional e os resultados

derivados de sua efetivação. Para decifrar esse processo, é necessário entender as mediações

sociais que atravessam o campo de trabalho do assistente social” (Iamamoto, 2007, p.231).

Este panorama do processo de renovação do Serviço Social nos fornece elementos

para concluir que as mudanças no interior da profissão foram significativas. No entanto,

podemos afirmar que houve uma mudança no âmbito da moralidade profissional? É possível

falar em uma moralidade de ruptura?130

Para responder esta questão é necessário retomarmos algumas análises que, a nosso

ver, nos fornecem pistas importantes.

Primeiro, é preciso considerar o legado da ditadura para o Brasil – assim como para o

Serviço Social – e o significado do processo de redemocratização.

Segundo Chauí e Nogueira (2007), só se pode considerar o fim de uma ditadura

quando se consegue erguer um regime comprometido com a democracia, legitimado

socialmente e sustentado por uma cultura pública revigorada. Segundo estes autores, o

processo político desencadeado por diversos setores sociais na década de 80 teve potência

para derrotar a ditadura, mas não teve igual potência para democratizar o país. Neste sentido,

não podemos afirmar, ainda, que conseguimos construir uma cultura verdadeiramente

democrática.

130 Cf. Barroco (2001).

Page 139: Tese Paula Bonfim (1)

128

Assim como Chauí e Nogueira (Id.), Netto (2001) não considera que o fim do ciclo

autocrático burguês tenha desarticulado o Estado por ele criado, ou seja, o fim da ditadura não

corresponde à emergência de uma dinâmica política democrática.

Tanto Coutinho (2000), como Chauí e Nogueira (2007) nos chamam a atenção para

um processo decisivo que vem criando obstáculos ao processo de democratização no Brasil.

Segundo estes autores o que se observa ao longo da nossa história – e a saída da ditadura é um

deles – é o fato de que em todos os momentos em que a sociedade demandava transformações

na sua estrutura econômica, política, social e cultural, estas foram feitas pelo “alto”, pela via

da conciliação, ou seja, sempre de cima para baixo, prevalecendo majoritariamente os

interesses dos setores dominantes, mesmo que estes tivessem que ceder à algumas demandas

das classes populares.

Além deste obstáculo histórico, outro grande desafio se colocou no processo de

redemocratização do país. A saída da ditadura coincide com um momento em que novos

ventos começavam a soprar no mundo (globalização, mudanças no padrão de acumulação,

“crise da modernidade” etc).

Chauí e Nogueira (Id.) afirmam que o Brasil, nos 40 anos após o golpe, capitalizou-se,

ou seja, tornou-se inteiramente capitalista, tanto no que se refere à produção quanto no que se

refere à política, à cultura, impregnando todas as dimensões da vida social. O Brasil

globalizou-se, mesmo que de forma subordinada ao mercado mundial. O país

Passou a compartilhar dos principais traços da época: mundialização das relações sociais, econômicas e políticas, interconexão global, a frenética mobilidade dos capitais, a finacierização e a trnasnacionalização da economia, a segmentação e a expansão da oferta de produtos, a perda da soberania por parte dos Estados, a irresponsabilidade dos mercados, a crise da regulação e dos mecanismos de financiamento do setor público, e assim por diante (Chauí e Nogueira, 2007, p.209).

Isto não significou um novo padrão de sociabilidade. Com estas mudanças outros

sujeitos passaram a atuar no cenário político, no entanto não conseguiram entrar de fato no

jogo político e redirecioná-lo. O que se observou foi uma fragmentação coorporativista da

representação política com efeitos perversos sobre os processos políticos: partidos e governos

passaram a ser mais influenciados por interesses particulares.

Page 140: Tese Paula Bonfim (1)

129

Ao mesmo tempo em que se observou uma modernização no Brasil, permaneceu uma

profunda desigualdade social incluindo a permanência de latifúndios improdutivos e formas

primitivas de exploração de mão de obra.

Os próprios processos de democratização política ficaram limitados e condicionados por este quadro geral. No caso brasileiro a democracia conquistada pelas lutas contra a ditadura não chegou a institucionalizar-se plenamente nem a converter-se em cultura, e isso, tanto porque se expandiu em termos prevalentemente sem um correspondente adensamento ético-político, quanto porque cresceu por fora do Estado, sem envolvê-lo e “responsabilizá-lo (Chauí e Nogueira, 2007, p.215).

Esta ausência de cultura pública pode ser evidenciada também no que se refere aos

direitos sociais. Embora reconheçamos o avanço substancial neste campo, expresso na nova

concepção de Seguridade Social131 e na promulgação da Lei Orgânica da Assistência Social

(LOAS) em 1993, identificamos os obstáculos em torná-los de fato parte da cultura pública

deste país.

Observa-se, a partir da década de 90, que as garantias Constitucionais não conseguem

romper com uma tendência que já vinha se configurando na sociedade brasileira e que é

própria da fase avançada do capitalismo tardio: a predominância de uma lógica privatista no

que se refere aos direitos sociais. Desta forma, veremos que a nova concepção de Seguridade

Social vai encontrar inúmeras dificuldades na sua efetivação; desde a superação das práticas

clientelistas e autoritárias, ainda fortemente presentes na sociedade brasileira, até a nova

configuração capitalista mundial132.

Outra dificuldade tão significativa quanto aquela referente ao cenário internacional, ou

talvez de maior relevância, foi a resistência da burguesia brasileira às novas configurações

constitucionais. Segundo Netto (1999), “[...] para estes segmentos dominantes, levar à prática

o pacto social plasmado na Constituição de 1988 equivalia, no plano econômico, à redução

das taxas de exploração e, no plano político, à construção de mecanismos democráticos de

controle social capazes de contrarrestar as práticas de manipulação política mais grosseiras”

(p.78). 131 As maiores conquistas desse período dizem respeito ao privilegiamento do status de cidadania, a defesa do princípio universalizador, a incorporação da Assistência Social ao campo da Seguridade – e assim a elevação desta ao status de políticas social –, e a ampliação do controle social através dos conselhos. 132 Uma destas dificuldades diz respeito ao panorama internacional que se apresentava neste momento inserido numa crise de grandes proporções e adotando saídas que iam de encontro ao Estado interventor.

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130

É nesse momento que se inicia no Brasil um movimento político/ideológico para

garantir a continuidade da hegemonia burguesa – só que agora sob a direção da burguesia

financeira e não mais da burguesia industrial – e barrar o avanço das conquistas democráticas

que vinham acontecendo após o período ditatorial133. O caminho a ser seguido pelo Brasil

tinha como características principais: a redução do Estado no que se refere à regulação

econômica e gastos sociais e a abertura da economia134.

Para efeito de interpretar nosso objeto , é necessário retomarmos alguns elementos, já

discutidos – referente ao ethos profissional – e, desta forma, nos aproximarmos da moralidade

dominante no Serviço Social.

A partir da análise realizada por Netto (1996a) vimos que o sincretismo e o

conservadorismo são elementos constitutivos desta profissão. Isto significa afirmar que,

embora se reconheça a ruptura ideo-política com o conservadorismo, é importante ressaltar

que isto não altera as demandas conservadoras colocadas ao Serviço Social, ou seja, essa é

uma tendência constitutiva da profissão, mas isto não significa afirmar que seja a única.

Além disto, segundo Netto (1996b), embora sejam inegáveis os avanços no Serviço

Social, isto não significa afirmar que o conservadorismo foi superado no interior da categoria,

mas que posicionamentos de natureza crítica ganharam legitimidade para se expressar

abertamente. Este autor chega a afirmar que esta ruptura chegou mesmo a ser

hiperdimensionada. Segundo ele o conservadorismo nos meios profissionais tem raízes

profundas e está longe de ser residual. Afirma, porém, que um ponto é consenso: a década de

80 assinala a maioridade do Serviço Social no que se refere à elaboração teórica e, neste

campo, a produção influenciada pela tradição marxista – nas suas mais diversas vertentes – foi

dominante.

Outra questão importante para entendermos o ethos profissional na atualidade e os

valores profissionais é a compreensão sobre o significado da imagem profissional. Em recente

pesquisa sobre o tema, Ortiz (2010) afirma que o voluntarismo e o messianismo, a questão de

133 É importante observar que esse movimento irá seguir as orientações traçadas pelos organismos internacionais, como parte do novo projeto que já se configurava desde a década de 70 nos países capitalistas centrais e que tinha como base os princípios neoliberais. No Brasil, somente na década de 90 que se inicia a implementação das políticas neoliberais. 134 O compromisso social firmado com a nova Constituição começa a minguar antes mesmo de se concretizar. Todo o esforço feito pela classe trabalhadora e pelos movimentos sociais organizados comprometidos com os direitos sociais passa de se direcionar numa luta contra esse processo político/ideológico e prático de negação destes direitos.

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131

gênero, a tendência à subalternidade e o sincretismo continuam sendo fundamentais para

compreendermos a imagem social do assistente social. Segundo esta autora

A imagem socialmente construída acerca deste profissional é a de que uma vez voltado para a intervenção cotidiana, próximo do usuário e profundo conhecedor da sua situação pessoal, será o assistente social um dos principais agentes profissionais responsáveis pela efetivação da mudança de comportamento do usuário pela via de um processo de ajustamento. [...] (Ortiz, 2010, p.135).

No entanto, esta autora afirma que existe na atualidade uma tensão no que se refere à

imagem do Serviço Social, ou seja, ao mesmo tempo em que se nega tais aspectos que

circunscrevem a profissão, tende-se, em certas situações, a produzi-los. Ou melhor, a imagem

profissional ligada à prática da ajuda – com a conseqüente valorização dos requisitos morais

em detrimento a uma competência teórico-prático e ético-política – convive com uma

autoimagem profissional, aquela do profissional que defende e luta por direitos.

Nesta mesma pesquisa a autora afirma que as motivações dos estudantes na escolha do

curso de Serviço Social continuam vinculadas à imagem social da profissão, ou seja, “[...] à

“profissão da ajuda”, do “trabalho religioso”, da “militância”, “da defesa de direitos”. [...]”

(Ortiz, 2010, p.205). Além disso, quando perguntados sobre o significado da formação, tanto

os alunos iniciante quanto os concluintes referem-se mais à realização pessoal do que com a

preocupação com o mercado de trabalho.

Estes elementos nos permitem afirmar que muitos dos valores profissionais do passado

se repõem num novo contexto. Mudanças significativas no âmbito da moral só são possíveis

na medida em que se observam transformações na estrutura da sociedade. Neste sentido, a

nosso ver, não é possível falar em uma nova moralidade profissional. Isto não significa negar

o projeto profissional atual, amparado nos princípios da igualdade, da justiça, da cidadania, da

democracia, a favor de uma sociedade sem exploração de classe, raça, etnia, gênero e contra

qualquer tipo de discriminação. Mas é necessário identificar os elementos que tensionam este

projeto e, assim, compreender suas possibilidades de realização.

Neste sentido, Iamamoto (2007) aponta para o perigo de não conseguirmos elucidar as

bases concretas de objetivação do projeto profissional. Segundo a autora, a profissão corre o

risco de cair numa dupla armadilha persistente na história do Serviço Social: a separação entre

valores e conhecimento; e o estabelecimento de objetivos profissionais dissociados da

conjuntura sócio-histórica.

Page 143: Tese Paula Bonfim (1)

132

Neste sentido, só é possível entender a profissão considerando as tensões entre

capacidade teleológica do profissional e os constrangimentos do trabalho alienado. “[...] a

análise do trabalho profissional supõe considerar as tensões entre projeto profissional e a

alienação do trabalho social no marco da luta da coletividade dos trabalhadores enquanto

classe” (Iamamoto, 2007, p.214).

Foi dito anteriormente que o capitalismo na sua fase desenvolvida e madura coloca as

bases para a reificação das relações sociais. Nenhum espaço da vida social passa ileso aos

processos de alienação. Isto significa afirmar que os espaços onde existia certa autonomia

estão cada vez mais administrados, controlados e com menos possibilidade de exercício da

liberdade.

Os processos alienantes e alienados não envolvem apenas os produtores diretos de

mercadorias, mas

[…] penetram e conformam a totalidade das relações de produção social e das relações de produção que viabilizam a sua reprodução. Sob o salariato não se encontra mais apenas a classe operária, mas a esmagadora maioria dos homens; a rígida e extrema divisão social do trabalho subordina todas as atividades, “produtivas” e “improdutivas”; a disciplina burocrática transcende o domínio do trabalho para regular a vida inteira de quase todos os homens, do útero à cova. […] (Netto, 1981, p.82).

Se pensarmos, por exemplo, a atuação do assistente social nos mais diferentes espaços

de trabalho, veremos que a condição de assalariado, as novas exigências impostas pela divisão

social do trabalho, colocam obstáculos a sua autonomia. Se analisarmos também a população

usuária dos serviços sociais veremos que a vida destes indivíduos também está atravessada

por processos alienantes. Enquanto trabalhadores, além de estarem em permanente luta pela

sobrevivência, o que os reduz cada vez mais à sua natureza animal (Mészáros, 2006), as

formas de consciência destes tendem a ser ideologizadas, incompletas e distorcidas.

O culto ao Eu, ao Ter, à satisfação dos interesses privados, à submissão aos padrões

estéticos influenciam, em maior ou menor medida, a vida de todos, incluindo aí assistentes

sociais e usuários. Estas condições de existência, sem dúvida, colocam obstáculos à

autonomia profissional, a efetivação de trabalho comprometido com os princípios da

democracia, da igualdade, da justiça social; enfim, com os valores defendidos pelo atual

projeto profissional dos assistentes sociais.

Page 144: Tese Paula Bonfim (1)

133

Se analisarmos o exercício profissional na atualidade perceberemos que as tensões

entre o projeto profissional e as demandas colocadas a ele se tornam cada vez maiores.

Considerar a alienação do trabalho e como esta invade todos os âmbitos da vida social

na atualidade nos possibilita entender as dificuldades de se implementar o projeto

profissional. Um projeto que tem a liberdade como princípio ético central se depara com um

cotidiano profissional que nega a liberdade, pois como afirma Mészáros (2006) o trabalho

alienado se coloca como um obstáculo à realização da liberdade humana.

Reconhecer tais obstáculos não significa afirmar a inviabilidade de ações

comprometidas com valores defendidos pelo projeto profissional. Conforme nos sinaliza

Brittes (2011) “[...] os valores defendidos pelo projeto ético-político profissional dos

Assistentes Sociais expressam a apreensão crítica e valorativa que a categoria profissional

elabora sobre a realidade social e profissional e as possibilidades efetivas de sua realização, na

medida em que representam conquistas históricas” (p.54).

Compreender as tensões que permeiam o trabalho profissional é condição para

pensarmos na viabilização deste projeto. Conforme já mencionamos a atividade humana não

produz somente a alienação, mas também a “consciência de ser alienado” (Mészáros, 2006).

O fato de termos uma relativa autonomia no exercício profissional nos possibilita criar

as condições de luta constante na defesa dos princípios profissionais. Ao se apropriar destes

processos o assistente social pode criar as possibilidades de construção de um projeto

coletivo.

Neste sentido, afirma Iamamoto (2006)

É a referida dimensão política presente no exercício profissional que abre a possibilidade de se neutralizar a alienação da atividade para o sujeito que a realiza, embora não elimine a existência de processos de alienação que envolvem o trabalho assalariado. [...]. Apropriar-se da dimensão criadora do trabalho e da condição de sujeito, que interfere na direção social do seu trabalho, é uma luta a ser travada quotidianamente (p.99).

3.4 ÉTICA E MORALIDADE NO COTIDIANO PROFISSIONAL

Refletimos até aqui sobre os avanços no interior do Serviço Social evidenciados na

apropriação de um referencial teórico-metodológico crítico que tem possibilitado, entre outras

coisas, o aprofundamento sobre os fundamentos da ética e uma reflexão sobre os limites e as

possibilidades de sua realização no cotidiano profissional.

Page 145: Tese Paula Bonfim (1)

134

Ao mesmo tempo apontamos os obstáculos, colocados pelo desenvolvimento da

sociabilidade burguesa para a realização de uma ética emancipadora – seja no âmbito da

sociedade, seja no âmbito profissional. Somam-se a isto os elementos próprios da formação

do Brasil e os impactos de vinte anos de ditadura militar. Estes elementos têm contribuído

decisivamente para o predomínio de uma moralidade conservadora no país.

Se considerarmos ainda a conjuntura brasileira na atualidade, veremos que estas

determinações são decisivas para a reatualização de valores conservadores na profissão. Isto

significa afirmar que, embora se reconheça a importância de um referencial teórico-

metodológico crítico para o questionamento dos valores dominantes na sociedade e na

profissão, isto não é suficiente para o rompimento com tais valores.

As tensões em torno da concretização dos princípios defendidos por segmentos

representativos da categoria135 podem ser evidenciadas nos mais variados espaços, seja na

dinâmica do cotidiano profissional, nos debates da categoria, nas pesquisas sobre a

intervenção profissional e no trabalho de fiscalização e orientação do exercício profissional,

desenvolvidos pelos Conselhos Regionais de Serviço Social (CRESSs) e pelo Conselho

Federal de Serviço Social (CFESS).

No entanto, as pesquisas em torno desta temática ainda são incipientes. Embora alguns

importantes autores tenham problematizado sobre as questões em tordo dos desafios para a

materialização do atual projeto profissional, como Iamamoto (2007), Barroco (2001, 2011),

Netto (2004b e 2007), Braz (2004 e 2007), Brittes (2010), Ramos (2009) a particularidade da

questão ética no cotidiano profissional ainda requer maiores investigações.

Dentre as pesquisas que demonstram esta preocupação encontram-se os estudos de

Matos (2009) e Forti (2010), ambos com ênfase na área da saúde.

Dentre os questionamentos levantados por Matos (2001) está aquele referente à adesão

consciente dos assistentes sociais aos valores defendidos pelo projeto ético-político

profissional. Até que nível, pergunta o autor, os assistentes sociais concordam mesmo como o

conteúdo deste projeto?

Uma das suas constatações é que, embora os assistentes sociais verbalizem um

compromisso com os princípios defendidos pela reforma sanitária e pelo projeto ético-político

profissional, “[...] apresentam imensa dificuldade de possuir de fato os valores destes projetos.

135 Expressos no projeto ético-político do Serviço Social.

Page 146: Tese Paula Bonfim (1)

135

Valores não são apenas escolhas para um ou outro local de trabalho e nem dissociados da vida

privada, pois para serem realizados necessitam ser internalizados” [...]. (Matos, 2009, p. 194).

Além disto, este autor (id.) afirma que a questão da ética profissional é, dentre todos os

aspectos abordados nas entrevistas, aquele que mais suscitou análises diferentes. Segundo ele,

talvez isto indique mais que uma adesão formal a estes princípios, mas demonstre uma

incorporação destes valores em diferentes níveis ou ainda a presença de divergências sobre a

adoção de tais valores.

Forti (2010) em sua pesquisa sobre a dimensão ética do trabalho profissional, tendo

como objeto o exercício profissional dos assistentes sociais nos Hospitais de Custódia do Rio

de Janeiro, apresenta algumas reflexões que vão na mesma direção de Matos (2009). Uma das

questões constatadas pela autora (Id.) é aquela referente à adesão consciente dos assistentes

sociais aos princípios defendidos no projeto ético-político do Serviço Social. Segundo ela, não

se observa no cotidiano dos profissionais entrevistados uma discussão sobre tal projeto e os

valores inerentes a este. Forti (Id) aponta para o fato de que é preciso ter clareza da direção

social dos projetos para viabilizá-los, de modo que, “[...] não há como estabelecer relação

entre projetos, ou seja, identificar valores, direções sociais entre projetos societários,

profissionais e individuais, sem que consigamos decifrar suas finalidades e as conexões entre

elas. [...]” (p.217).

Outro aspecto levantado nesta pesquisa refere-se aos significados dos princípios do

Código de Ética Profissional. Segundo Forti (2010), embora os entrevistados sinalizem para

alguns princípios deste – dentre os citados, o mais recorrente foi a liberdade – e para a

possibilidade de materializá-los no cotidiano profissional, a compreensão destes princípios

pode não estar em consonância com o significado dos mesmos no Código de Ética.

Além disto, no que se refere à materialização dos princípios do Código de Ética no

cotidiano de trabalho dos assistentes sociais entrevistados, a autora (Id.) observou uma

presença apenas residual de elementos que vão nesta direção. Aponta ainda que chegou a esta

conclusão na medida em que considerou “[...] as ingerências da atual conjuntura social, as

condições de trabalho (observadas e descritas) da Instituição investigada, os argumentos dos

entrevistados e a qualidade dos serviços prestados aos seus usuários [...]” (p.231).

Além das pesquisas sobre o cotidiano profissional nos fornecerem elementos para

pensarmos as questões em torno das possibilidades objetivas e subjetivas para a realização de

Page 147: Tese Paula Bonfim (1)

136

uma ética profissional comprometida com a emancipação humana, identificamos outro

espaço, pouco pesquisado136, que apresenta uma riqueza de informações e que nos possibilita

discutir, no âmbito profissional, os conflitos em torno das escolhas éticas. Estamos nos

referindo às denúncias de violações do Código de Ética dos Assistentes Sociais que são feitas

junto aos Conselhos Regionais de Serviço Social.

Entendemos que o Processo Ético expressa, por exemplo, os conflitos em torno das

escolhas éticas, a opção por diferentes projetos profissionais e societários, assim como os

valores dos diversos sujeitos envolvidos: assistentes sociais denunciados, denunciantes,

advogados das partes, testemunhas, inclusive dos membros do Conselho que são responsáveis

pela apuração da denúncia, instauração do processo ético, julgamento e aplicação de

penalidade.

Neste sentido, optamos por realizar uma pesquisa documental junto aos processos

éticos137 instaurados no Conselho Regional de Serviço Social/7ª Região, no período de 1993 a

2011138, no intuito de investigarmos, como já sinalizamos, os elementos em torno dos

conflitos éticos no âmbito profissional. Procuramos saber em que medida as infrações,

possivelmente139 cometidas, estão relacionadas à influência dos valores dominantes na

sociedade brasileira, às demandas conservadoras e autoritárias colocadas à profissão, às

condições de trabalho do assistente social e ao processo de alienação a que este trabalhador

está submetido, ou mesmo a compreensão equivocada sobre as atribuições e competências

profissionais.

De 1993 a 2011 foram feitas 125 denúncias de infração ética140. Destas denúncias, 56

(45%) constituíram-se em processos éticos, sendo que destes, 35 (28%) já foram concluídos, 4

(3,20%) foram desaforados141 e 17 (14%) estão em andamento. No que se refere ao restante

136 Identificamos apenas duas pesquisas com este objeto: um Trabalho de Conclusão de Curso de autoria de Santos e Pimentel, Rio de Janeiro, 2002; e uma dissertação de mestrado de Fernandes, São Paulo, 2004. 137 Conferir nota 6 138.Conferir nota 7 139 Conferir nota 8 140 Importante esclarecer que existe uma diferença entre Processo Ético e Desagravo Público. Este último constitui-se num direito do assistente social, quando ocorrem situações onde a honra profissional é atingida. Na nossa pesquisa priorizamos a análise dos processos éticos. 141 As denúncias/processos são desaforados quando o CRESS recebe denúncia, queixa, representação de natureza disciplinar ética, contra ou envolvendo membros de sua Diretoria, do Conselho Fiscal, da Comissão de Fiscalização ou das Seccionais ou quando uma das partes envolvidas na denúncia seja conhecida pela maioria da diretoria Estes são direcionados ao CFESS que escolhe e os encaminha para serem analisados e julgados por outro CRESS.

Page 148: Tese Paula Bonfim (1)

137

das denúncias, 49 (39,20%) foram arquivadas (por não se enquadrarem em questões de cunho

ético ou por não estarem de acordo com o Código Processual de Ética), 1 (0,80%) encontra-se

em recurso junto ao CFESS e 19 (15,20%) estão sendo analisadas pela Comissão Permanente

de Ética, conforme ilustrado na Figura 1

Figura 1 - Denúncias Éticas feitas ao CRESS 7ª Região no período de 1993 a 2011

Concluídos28,00%

Desaforados3,20%Em andamento

13,60%

Arquivadas39,20%

Em recurso junto ao CFESS0,80%

Estão sendo analisadas pela Comissão

Permanente de Ética15,20%

Fonte: Dados levantados junto ao CRESS 7ª Região no 2º semestre de 2011

Optamos por realizar uma pesquisa quantitativa e qualitativa dos processos éticos

concluídos. Na primeira fase desta foram analisados 33 dos 35142 processos concluídos, onde

foi possível identificar dados que nos revelam um panorama dos mesmos. Foram levantados

dados relativos à: 1) área de atuação do assistente social onde foi feita a denúncia; 2) a

natureza da instituição; 3) o perfil do denunciado e do denunciante; 4) os artigos apontados

como possivelmente violados; 5) os artigos violados; 6) as penalidades aplicadas; e 7) os

recursos;

Num segundo momento da pesquisa fizemos uma análise qualitativa dos processos.

Foram selecionados, através de uma amostragem intencional, 18 processos onde se observou

a recorrência de, pelo menos, um dos dois primeiros artigos mais indicados como

142 Não foi possível ter acesso a dois destes processos. Um deles estava incompleto, o último volume encontra-se desaparecido; e o outro, que estava em recurso no CFESS, não havia retornado ao CRESS com a sentença final.

Page 149: Tese Paula Bonfim (1)

138

possivelmente violados143. Na nossa pesquisa estes artigos foram: art. 11° alínea b - é vedado

ao assistente social prevalecer-se de cargo de chefia para atos discriminatórios e de abuso de

autoridade; e art. 4°, alíena c - é vedado ao assistente social acatar determinação institucional

que fira os princípios e diretrizes deste Código; dados que serão analisados a seguir.

Além destes dois momentos, fizemos um convite à atual Comissão Permanente de

Ética do CRESS/7ª Região144 para realizarmos um encontro onde apresentaríamos dados

parciais da pesquisa. Esta exposição possibilitou a reflexão e o debate sobre questões

referentes à dinâmica dos processos e as impressões dos membros desta comissão sobre estes

resultados.

A fase inicial do levantamento dos dados quantitativos nos revela alguns aspectos

interessantes da pesquisa. Neste primeiro momento identificamos a área de atuação dos

profissionais que responderam aos processos éticos, possibilitando-nos uma reflexão sobre os

prováveis motivos destas ocorrências. A pesquisa nos revela que a área de maior recorrência

de processos éticos é setor da saúde, com 57,58%, seguida pelas áreas da assistência social,

15,15%, e do sócio-jurídico, 15, 15%, como podemos evidenciar na Figura 2

143 Recebida a denúncia, o (a) Presidente do CRESS a remete à Comissão Permanente de Ética para os esclarecimentos que julgar necessários. Caso esta comissão opine em instaurar o processo ético deverá elaborar parecer que contenha: a indicação do fato infringido pelo(a) assistente social e o enquadramento do Artigo do Código de Ética Profissional. Assim, esta comissão, após uma primeira análise da situação, indica quais artigos podem ter sido violados. 144 O motivo de recorrermos a esta comissão justifica-se pelo fato da experiência da mesma no que se refere a análise de tais situações, possibilitando-nos esclarecer questões mais complexas e que tivemos dificuldades em analisar durante a pesquisa. É importante esclarecermos aqui que todos os processos verificados na nossa pesquisa foram analisados e julgados por outras Gestões. No entanto, dos membros da Comissão Permanente de Ética, somente o Presidente deve ser membro do Conselho; já a Comissão de Instrução é composta por 3 (três) assistentes sociais, em pleno gozo de seus direitos. Isto significa que alguns membros destas comissões já analisaram processos éticos referentes a outras gestões. Estavam presentes na reunião: a Presidente da Comissão Permanente de Ética, três assistentes sociais que integram a atual gestão e a assessora jurídica do CRESS/7ª Região.

Page 150: Tese Paula Bonfim (1)

139

Figura 2 - Área dos processos éticos (concluídos) do CRESS 7ª Região no período de 1993 a 2011

Sócio-Jurídico; 15.15%

Educação; 3.03%

Empresa; 9.09%

Saúde; 57.58%Assistência; 15.15%

Fonte: Dados levantados junto ao CRESS 7ª Região no 2º semestre de 2011

Algumas explicações nos parecem procedentes para estes resultados: inicialmente não

podemos desconsiderar o fato de que a área da saúde é, historicamente, o maior e um dos mais

antigos espaços de trabalho dos assistentes sociais. No entanto isto, por si só, não explica o

alto percentual de processos éticos nesta área.

Algumas pesquisas no campo da saúde nos fornecem alguns elementos que, em parte,

esclarecem estes dados. Inicialmente, é importante sinalizarmos para o impacto das políticas

neoliberais neste campo. O que se evidencia, a partir da década de 90, é uma hegemonia do

projeto privatista na saúde, expresso, especialmente, no crescimento dos seguros privados.

Além disso, observa-se também a tendência à focalização das ações, precarização e

terceirização dos recursos humanos, redução dos investimentos no setor e o distanciamento

dos princípios defendidos pela Reforma Sanitária. Esta conjuntura leva ao direcionamento da

saúde pública aos setores mais pauperizados da população, como nos bem ilustra Vasconcelos

(2003): “[...] aos pobres uma saúde pobre ou uma saúde pobre para os pobres [...]” (p.85).

Outra tendência atual nesta área é a transferência da gestão de algumas unidades de

saúde para Organizações Sociais. Segundo Matos (2009) esta estratégia faz parte da contra-

reforma do Estado. Segundo este autor (Id.) esta reforma

[...] propunha que as atuais instituições públicas fossem transformadas em OS/OPNES, entidades de direito privado. Tais entidades seriam geridas por instituições sem fins lucrativos, com repasse de financiamento do governo para tal. Ao mesmo tempo, a reforma abria precedente para que estas OS/OPNES buscarem recursos próprios. Sobre as esferas de controle social, a dita reforma apenas aponta para a criação de conselhos curadores que não seriam nem paritários na sua composição nem teriam poderes deliberativos

Page 151: Tese Paula Bonfim (1)

140

(p. 53).

Podemos afirmar, portanto, que esta conjuntura interfere diretamente nas ações dos

profissionais da saúde, colocando obstáculos à realização de um serviço comprometido com

os princípios estabelecidos pela Reforma Sanitária e com os preceitos éticos de cada

profissão. No entanto, isto não significa que esta realidade inviabilize as possibilidades de

ações éticas no cotidiano profissional.

Este é um dos aspectos abordados por Vasconcelos (2003)145 em sua pesquisa realizada

com 74 assistentes sociais vinculados à Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro.

Embora esta autora (Id.) sinalize para o impacto da atual conjuntura – privatização,

focalização das ações, redução dos investimentos e precarização das relações de trabalho – na

área da saúde e no cotidiano de trabalho dos assistentes sociais, a mesma indica que este não

aparece como o aspecto mais decisivo na dinâmica profissional.

Vasconcelos (2003) afirma que embora os assistentes sociais declarem um

compromisso com os princípios da Reforma Sanitária e do projeto ético-político profissional,

não conseguem, na prática, efetivá-los. Ou melhor, segundo ela, a ausência da apropriação de

um referencial crítico tem impossibilitado a realização de um trabalho que rompa com

práticas conservadoras no interior da profissão.

Outros dados importantes apresentados pela autora (Id.) são aqueles referentes à ética

profissional: dentre eles chamamos a atenção para aquele referente à relação dos assistentes

sociais com a instituição em que trabalham. Perguntados sobre os direitos e deveres (presentes

no Código) na relação com as Instituições empregadoras, 18,9% mostram-se não só

preocupados com os objetivos da instituição, mas também subservientes às normas

institucionais. No entanto, 13,5% dos assistentes sociais fazem uma crítica às instituições

apontando para a falta de recursos, autoritarismo das chefias, desvalorização do Serviço

Social, baixos salários e péssimas condições de trabalho.

Ainda no que se refere à ética profissional “[...] 20,3% dos assistentes sociais

entrevistados fazem a defesa de uma ética pessoal, particular, justificando suas escolhas a

partir de valores pessoais. [...]” (p.372). Isto significa que a atuação profissional destes

profissionais é referenciada por valores que podem ou não estar de acordo com os valores

145 A pesquisa em questão é resultado da tese de doutorado da autora, defendida em dezembro de 1999. Os dados foram coletados entre os anos de 1997-1998.

Page 152: Tese Paula Bonfim (1)

141

defendidos pelo Código de Ética de 1993. Caso não estejam, estão postas as condições para as

infrações éticas.

Vasconcelos (2003) chega à conclusão que 56%146 dos assistentes sociais entrevistados

não conhecem o Código de Ética de 1993, demonstrando uma grave lacuna num dos aspectos

centrais da intervenção: a ética profissional.

Outras duas áreas que aparecem em destaque, cada uma com 15,15% são: o campo da

assistência social e o sócio-jurídico. Embora estas duas áreas também sejam antigos espaços

de trabalho dos assistentes sociais, é fato que ambos sofreram modificações significativas nos

últimos anos.

Os diversos estudos sobre o tema demonstram que a assistência social no Brasil foi,

historicamente, permeada por práticas clientelistas e assistencialistas. Isto, em grande medida,

é resultado da estreita relação entre o público e o privado presente nas relações sociais

brasileiras. Além disto, observa-se também a dificuldade desta área em consolidar-se como

política pública, ou seja, ser reconhecida como direito do cidadão e responsabilidade do

Estado.

É importante salientar aqui que este reconhecimento contém um significado essencial

para a classe trabalhadora, ou seja, é imperativa a intervenção do Estado junto às expressões

da “questão social”, em especial nos momentos onde as possibilidades de sobrevivência do

trabalhador e de sua família estão seriamente comprometidas pelo acirramento destas:

desemprego, precárias condições de moradia, de saúde, de educação/capacitação para o

trabalho, etc.

Este reconhecimento pelo Estado das necessidades da classe trabalhadora, por conter

um caráter anti-liberal147, provoca uma enorme resistência em incorporar as políticas sociais,

em especial a assistência social, à cultura pública do direito. Observa-se assim um processo

onde se construiu uma subjetividade antipública (Yazbek, 2004), especialmente no campo da

assistência social. Do ponto de vista de uma consciência social coletiva, esta política não foi

146 Vasconcelos (2003) chega à este dado somando os percentuais daqueles profissionais “[...] que declararam explicitamente não conhecer o código (9,5%), os que indicam princípios e/ou valores de códigos anteriores a de 1986 como se fossem do código atual (respeito à dignidade: 23%; e não indução à valores: 6,8%), e os profissionais que solicitaram consulta ao Código: (17,6%)[...]” (p.379). 147 É necessário sinalizarmos para o caráter contraditório das políticas sociais: ao mesmo tempo em que elas são funcionais à dinâmica do capitalismo, especialmente por possibilitar a reprodução material e ideológica da força de trabalho, as políticas sociais também possuem um caráter anti-liberal já que ferem a lógica privatista do capitalismo, onde o mercado deve ser o local privilegiado de satisfação das necessidades individuais.

Page 153: Tese Paula Bonfim (1)

142

assumida enquanto direito, ou seja, para sociedade brasileira a assistência social ainda está

ligada à ações morais, religiosas e humanitárias.

Isto pode ser constatado nas diversas opiniões emitidas pela população em geral, por

jornalistas e até mesmo por assistentes sociais. São famosas as afirmações: “em vez de dar o

peixe é preciso ensinar a pescar”; que “as famílias acabam ficando “dependentes” dos

programas de transferências de renda e que isto acaba causando um desestímulo ao trabalho”.

A “pedagogia do trabalho”, conforme observa Ianni (2004), é bem presente no discurso da

maioria da população brasileira, negando por sua vez o sentido da política de assistência

social148. Estes aspectos atribuíram à este campo, ao longo dos anos, um caráter de prática

circunstancial, secundária e imediatista.

Embora a assistência social tenha se deparado historicamente com estes obstáculos,

dificultando a construção de uma política verdadeiramente pública nesta área, não podemos

desconsiderar os avanços conquistados nos últimos anos.

O primeiro avanço é evidenciado na Constituição de 1988. Nesta, assistência social

passa a fazer parte do tripé da Seguridade Social – ao lado da Saúde e Previdência Social –

tendo como referência, a partir de então, os princípios da universalidade, igualdade de direitos

e gratuidade. Posteriormente temos a aprovação da Lei Orgânica de Assistência Social

(LOAS)/1993, da Política Nacional de Assistência social (PNAS) em 2004 e a Norma

Operacional Básica/Sistema Único de Assistência Social (NOB/SUAS) em 2005. Além das

mudanças no que se refere ao reconhecimento da assistência como política pública, esse novo

marco regulatório introduziu mudanças significativas no modo de organização,

processamento, produção e gestão do trabalho nesta área. Assim, segundo Raichelis (2010),

A existência dos Cras e dos Creas como unidades públicas estatais cria oportunidade inédita de qualificação e articulação dos serviços, programas, projetos e benefícios voltados para o atendimento das necessidades sociais e direitos da população nos seus territórios de abrangência. É a presença do Estado nos territórios de moradia da população com direito de acesso a serviços e programas sociais públicos e de qualidade. [...] (p. 768).

148 É curioso observar que estas opiniões, muitas vezes, são facilmente encontradas em meios de comunicação de grande alcance e, arriscaria dizer, na grande maioria da população brasileira. É muito difundida a ideia de que existe desemprego no país ou por falta de capacitação, falta de espírito empreendedor ou mesmo pelo desestímulo de algumas políticas sociais. Além disso, a “pedagogia do trabalho” é tão presente na nossa sociedade que valoriza-se mais o trabalho, mesmo o mais degradante, do que a política de assistência social. Ver por exemplo o artigo de Reinaldo Azevedo na Revista Veja intitulado “Bolsa Família inibe a expansão do emprego do interior do país, 2009.

Page 154: Tese Paula Bonfim (1)

143

No entanto, mesmo reconhecendo os avanços estabelecidos com esta nova política,

esta área continua enfrentando velhos obstáculos, além daqueles colocados pela conjuntura

atual brasileira. Segundo Raichelis (Id.) um dos principais desafios a ser enfrentado na

consolidação de uma política de assistência que atenda aos interesses da população usuária é a

questão do trabalho e dos trabalhadores no SUAS. Isto se explica pelo histórico de

desprofissionalização neste campo, de ações improvisadas e descontínuas.

Na atualidade, a política de assistência social se depara com problemas referentes às

frágeis estruturas institucionais de gestão, recursos humanos reduzidos e pouco qualificados e

a (re) atualização de práticas clientelistas e do primeiro-damismo149.

Isto pode ser constatado pelos dados da pesquisa do IBGE, 2010, Perfil dos

municípios brasileiros – suplemento assistência social –, conforme nos apresenta Raichelis

(2010),

[...] Dentre os municípios que declararam ter órgão gestor da assistência social, 1.352 responderam que a política de assistência social naqueles municípios era conduzida pela primeira-dama, num total de 24,3% dos municípios brasileiros. Chama a atenção ainda o movimento das primeiras-damas em busca de qualificação universitária: 47,4% das gestoras possuíam o ensino superior completo e/ou pós-graduação, com maior incidência nas seguintes formações: 45 assistentes sociais, 194 pedagogas, 42 advogadas, 43 administradoras e 235 com formações variadas não discriminadas no questionário (p.760).

Outro desafio que se coloca é a precarização dos vínculos trabalhistas e das condições

de trabalho. Se por um lado se amplia o mercado de trabalho no âmbito da assistência social,

especialmente para os assistentes sociais, por outro, se observa a fragilidade dos vínculos

empregatícios neste campo. De acordo com os dados apresentados pela Munic-IBGE 2010

(apud Raichelis, id.) os trabalhadores sem vínculo permanente no SUAS totalizavam, em

2010 ( 60.514) 73% a mais que em 2005 (34.057).

No que se refere às condições de trabalho, observa-se uma tendência, própria da lógica

gerencial do capitalismo, a um produtivismo quantitativo, medido pelo número de cadastros

nos programas sociais, na quantidade de visitas domiciliares realizadas, no número de

149 É importante sinalizar que a maioria dos municípios brasileiros é de pequeno porte.

Page 155: Tese Paula Bonfim (1)

144

atendimentos efetuados; sem, no entanto, considerar o conteúdo deste trabalho e o impacto na

vida da população atendida.

Além disto, é necessário destacar que muitas das ações na área da assistência ainda são

executadas por organizações filantrópicas que resistem em se adequar às exigências do novo

marco regulatório, especialmente no que se refere ao quadro de profissionais, condições de

trabalho e controle social (Raichelis, 2010).

Estas relações de trabalho dificultam também o aprimoramento profissional, condição

fundamental para enfrentar as pressões políticas que vão na direção contrária à

democratização dos espaços e serviços públicos, da cidadania, da defesa dos direitos humanos

e à recusa de todas as formas de preconceito.

Os aspectos mencionados acima dificultam a superação de práticas tuteladoras,

autoritárias, clientelistas e preconceituosas no âmbito da assistência social. Pelas razões

apontadas, é possível afirmar que este é um dos campos mais permeável às práticas

conservadoras e, neste sentido, é que se coloca enormes desafios à concretização dos

princípios defendidos pelo projeto ético-político dos assistentes sociais.

O campo sócio-jurídico150, segunda área que apresenta maior número de infrações

éticas (15,15%) – juntamente com a assistência social – embora com características bem

particulares, também é um espaço de trabalho bastante complexo, especialmente porque

expressa uma dinâmica onde se destaca o binômio, garantia de direitos versus violação de

direitos (Pequeno, 2004).

Esta é uma área onde as formas de disciplinamento, repressão e controle da vida

privada dos indivíduos e das relações sociais fazem parte do cotidiano das instituições, ou

seja, tais práticas são referendadas pelo Estado, tendo os profissionais que atuam neste campo

– incluindo aí os assistentes sociais – o poder de decidir sobre a vida dos usuários. Assim, o

autoritarismo é uma marca deste espaço, expressando-se nas mais variadas ações profissionais

– do assistente social ao juiz.

No âmbito de atuação do Serviço Social este autoritarismo pode se expressar de duas

formas principais: 1º) na relação com o usuário, evidenciada na relação de tutela estabelecida

com este, na moralização/psicologização da “questão social” e nas práticas investigatórias e

150 O campo sócio-jurídico é composto por instituições do Judiciário, sistema de proteção e acolhimento (como abrigos, internatos, conselhos de direitos, dentre outros), Ministério Público, instituições para o cumprimento de medidas sócio-educativas e o sistema penitenciário.

Page 156: Tese Paula Bonfim (1)

145

policialescas demandadas ao Serviço Social; 2º) nas relações com outros profissionais; aqui

destacamos a relação de subalternidade presente na profissão. No campo sócio-jurídico, isto

se expressa especialmente quando o assistente social está subordinado administrativamente ao

Juiz.

Não por acaso, o Serviço Social se inseriu neste espaço sócio-ocupacional desde a sua

gênese151. Sinalizamos anteriormente como o chamado Serviço Social “tradicional” era

voltado para ações moralizadoras e psicologizantes que visavam a integração e harmonia

social. Neste sentido, o campo sócio-jurídico, por atuar junto à indivíduos qualificados como

desajustados e sem condições de conviver em sociedade, era (e ainda é) um campo que muito

demanda a atuação de profissionais de Serviço Social.

Pelas características mencionadas acima, este é um campo onde as práticas autoritárias

tendem a ser naturalizadas, dificultando ações democráticas, autônomas e que estejam

comprometidas com o reconhecimento e garantia dos direitos daqueles, que por alguma razão,

dependem da decisão da Justiça sobre suas vidas.

Vimos que, embora a profissão tenha passado por uma renovação crítica,

especialmente no que se refere à dimensão teórica e política, as demandas colocadas ao

Serviço Social continuam tendo um caráter disciplinador e de controle social. Na conjuntura

atual de crise do capitalismo e acirramento das expressões da “questão social”, tais demandas

se apresentam nas mais variadas formas, como por exemplo, na criminalização,

judicialização, assistencialização e moralização das refrações da “questão social”. Esta

conjuntura, portanto, tem colocado aos assistentes sociais o desafio de garantir direitos num

contexto de constantes violações.

Já podemos perceber que os elementos que se destacam – autoritarismo ,

clientelismo, fisiologismo, subalternidade profissional – nas três primeiras áreas de maior

incidência de processos éticos no CRESS/7ª Região estão essencialmente relacionados aos

valores dominantes nas relações sociais brasileiras.

151 Segundo Carvalho (in Iamamoto e Carvalho, 2001) uma das primeiras instituições públicas que absorveram os recém formados da primeira escola de Serviço Social (PUC – SP) foi o Sistema Judiciário Paulista, no Juízo de Menores de São Paulo. Esta inserção teve como conseqüência a produção teórica na área. Um dos exemplos disto é o livro de Maria Esolina Pinheiro, de 1939, intitulado Infância e Juventude desvalidas.

Page 157: Tese Paula Bonfim (1)

146

Na nossa pesquisa o aspecto que mais se sobressai é o autoritarismo. Entre os cinco

artigos mais violados, três deles – 4c, 11b e 6a – estão diretamente relacionados às práticas

autoritárias, como podemos evidenciar na tabela abaixo:

Tabela 1 – Artigos mais violados nos processos éticos (concluídos) analisados pelo CRESS 7ª

região no período de 1993 a 2011

Artigo/Alínea Conteúdo Ocorrências Percentual de

processos com esta ocorrência

4-c acatar determinação institucional que fira os princípios e diretrizes deste Código

4 21,05%

4-b

praticar e ser conivente com condutas anti- éticas, crimes ou contravenções penais na prestação de serviços profissionais, com base nos princípios deste Código, mesmo que estes sejam praticados por outros profissionais

4 21,05%

3-a Desempenhar suas atividades profissionais, com eficiência e responsabilidade, observando a legislação em vigor

4 21,05%

11-b prevalecer-se de cargo de chefia para atos discriminatórios e de abuso de autoridade

4 21,05%

6-a

exercer sua autoridade de maneira a limitar ou cercear o direito do usuário de participar e decidir livremente sobre seus interesses

4 21,05%

Fonte: Dados levantados junto ao CRESS 7ª Região no 2º semestre de 2011

Estes dados nos revelam quanto o autoritarismo, tão presente nas relações sociais

brasileiras, se reproduz no cotidiano profissional. Ele se expressa de duas formas diferentes,

porém complementares. Na primeira delas, as práticas autoritárias se manifestam através dos

cargos de chefias do Serviço Social, ou seja, quando os Assistentes Sociais que ocupam este

cargo desenvolvem ações onde: a participação da equipe nas decisões é bastante reduzida (ou

nula); na imposição de atividades à equipe que não se constituem em atribuição nem em

competência dos assistentes sociais; na perseguição à profissionais que questionam a lógica

institucional e na interrupção de projetos/programas à revelia, colocando, assim, os interesses

da instituição ou pessoais) acima dos interesse dos usuários;

A outra forma que o autoritarismo se manifesta é na relação das Coordenações do

Serviço Social com suas chefias imediatas. Aqui aparece a lógica da obediência irrestrita às

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147

decisões institucionais e, ao mesmo tempo, o elemento da subalternidade profissional. Isto

explica o alto percentual de denúncias éticas contras chefias (39,39%), como podemos

observar na Figura 3

Figura 3 - Perfil dos denunciados nos processos éticos (concluídos) analisados no CRESS 7ª

Região no período de 1993 a 2011

Assistente Social; 60,61%

Assitente Social Chefia; 39,39%

Fonte: Dados levantados junto ao CRESS 7ª Região no 2º semestre de 2011

Na análise qualitativa dos processos observamos que uma das situações que mais

motiva os denunciantes (sejam eles assistentes sociais ou outros profissionais) a fazerem as

denúncias contra suas chefias é o remanejamento destes profissionais sem prévia

discussão/comunicação sobre o assunto e independente do impacto disso na qualidade dos

serviços junto aos usuários.

Os denunciantes questionam principalmente: 1) a motivação das transferências e ou

perda de cargo comissionado; 2) a conivência das chefias de Serviço Social com as práticas

autoritárias dos diretores das instituições; 3) a forma de comunicar a transferência –

geralmente feita pelo diretor ou pelo Recursos Humanos; e 4) a falta de solidariedade das

respectivas chefias com os profissionais remanejados.

Dos 18 processos analisados qualitativamente, 8 (44,44%) têm como motivação a

transferências de assistentes sociais, geralmente lotados nas unidades há muito tempo, como

podemos evidenciar nas situações descritas a seguir:

Processo A:

Page 159: Tese Paula Bonfim (1)

148

Neste processo a denunciante – assistente social lotada na unidade há 14 anos –

contesta a sua transferência e a postura da chefia do Serviço Social. Argumenta que a

transferência foi motivada por sua adesão a um movimento – com assinatura de uma moção

de repúdio – que questionava as atitudes autoritárias do diretor da instituição em questão.

Critica também a conivência da chefia do Serviço Social com as atitudes da direção.

A denúncia é confirmada por outras assistentes sociais da equipe, que em depoimento,

declararam que a chefia:

[...] não discutia com o grupo sobre as ordens que vinham da direção; ao ser questionada, mandava “cumprir ordens e pronto. [...] não se manifestou na reunião onde foi comunicado a transferência da colega e que as razões da transferência estavam relacionadas à participação da colega no processo de greve [...]

Convocada pela Comissão Permanente de Ética, a assistente social denunciada (chefe do

Serviço Social) afirmou que:

[...] não participou da decisão de relotação da assistente social; – que esta foi uma decisão do diretor da unidade – que, segundo ele, tinha motivações particulares que justificavam tal decisão [...] [...] não reconhece falta de solidariedade, pois entende que, em razão do cargo de chefia que ocupava, não havia outro procedimento a ser adotado [...]

O que se observa nas afirmações da chefia do Serviço Social é uma evidente

naturalização das relações autoritárias, e com isto, a ideia de um determinismo que não a

possibilitaria outra alternativa de escolha. Além disto, observamos uma total falta de

autonomia profissional, já que chefia sequer procurou entender os motivos da transferência –

afinal, tratava-se de um membro da sua equipe –, aceitando o argumento do diretor de que a

motivação desta foi por razões particulares. Em se tratando de uma instituição pública, os

interesse coletivos deveriam se sobrepor aos interesses particulares, evidenciando o

compromisso com a qualidade dos serviços prestados à população.

O questionamento das formas arbitrárias nos processos de transferências também pode

ser observado no Processo B:

As três assistentes sociais da equipe, afirmam na denúncia que: “a equipe de

assistentes sociais não está questionando o ato administrativo da transferência, mas a forma

Page 160: Tese Paula Bonfim (1)

149

arbitrária, desrespeitosa como os profissionais foram tratados e como os adolescentes

sofreram um corte abrupto na sua relação cliente/profissional, sentindo-se perdidos com a

saída imediata de quase todos os técnicos que os acompanhavam”

Assim como no Processo A, as transferências acorreram provavelmente em retaliação

a um grupo de profissionais que assinaram um documento enviado para a direção geral da

unidade – com cópias ao CRESS e ao CRP – onde se repudiava, entre outras coisas, as

práticas hediondas de espancamento, isolamento, encarceramento aos adolescentes e exigia-se

a investigação e punição nos casos de comprovação. O documento questionava ainda as

precárias condições do local de trabalho, situação esta que comprometia o atendimento aos

adolescentes e suas famílias.

Além disto, as denunciantes (três assistentes sociais) destacaram outros elementos

presentes na dinâmica institucional que, a nosso ver, merecem ser analisados.

[...] Identificaram uma tensão inicial na equipe quando os profissionais concursados assumiram seus postos na instituição, substituindo os antigos profissionais vinculados a uma ONG. Segundo elas, esta tensão foi gradativamente atenuada [...] [...] Esclareceram que alguns profissionais manifestaram interesse em serem transferidos para unidades abertas, sendo os pedidos negados [...] [...] Confirmam que todos os profissionais que assinaram os documentos foram transferidos compulsoriamente, sem prévia comunicação, nem discussão à respeito [...] [...] A justificativa para as transferências, apresentada pelo diretor, foi de que estas foram feitas para “beneficiar os adolescentes e acabar com os vícios [...] [...] Os trabalhos foram abruptamente interrompidos, não havendo tempo de repassar os trabalhos para os novos profissionais nem de comunicar aos adolescentes e familiares das mudanças. Uma delas afirma que “a comunicação da transferência foi feita na frente da família que ela estava atendendo [...]

Em depoimento à Comissão Permanente de Ética as duas assistentes sociais

denunciadas152 esclareceram que:

152 Uma delas era diretora da unidade e a outra, que não era concursada, tinha o cargo de coordenadora.

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150

[...] Desde que uma delas assumiu a direção da instituição, o diretor (geral) manifestava desejo em modificar a equipe [...] [...] O diretor ficou muito aborrecido com o documento que apresentava as possíveis irregularidades da instituição [...] [...] Foram surpreendidas com as transferências, mas como ninguém se manifestou acharam que estas seriam aceitas [...] [...] A competência de realizar reuniões com a equipe do Serviço Social não eram delas, mas da diretora técnica (uma das transferidas) [...] Não participaram de reuniões com as chefias superiores onde foi tratada as transferências [...] [...] A diretora afirma que não houve mudanças bruscas no trabalho da equipe e que tanto os adolescentes quando seus familiares foram avisados das mudanças. [...] [...] afirma ter ficado preocupada com as mudanças bruscas e que interferiu junto ao diretor para a permanência de duas assistentes sociais que solicitaram o cancelamento das transferências. [...] (Assistente social coordenadora) [...] A direção da unidade não tem autonomia para a escolha da equipe [...]

Além dos elementos já apontados, como a naturalização das práticas autoritárias, no

Processo B também aparece a questão da falta de autonomia profissional, da perseguição

política e da burocratização do fazer profissional. Podemos evidenciar que as demandas

colocadas à direção e à coordenação da unidade são fundamentalmente

burocráticas/administrativas, sendo cumpridas sem nenhuma crítica pelas profissionais em

questão. O trabalho burocrático aparece como supostamente neutro, isento de conteúdo ético e

político.

Ao mesmo tempo, os profissionais que questionavam as condições de trabalho na

instituição, as práticas autoritárias e o trato com os adolescentes foram consideradas

profissionais que não atendiam às demandas institucionais. Isto pode ser evidenciado na fala

do diretor geral da instituição (na época do processo):

[...] O remanejamento não foi feito por castigo, mas para melhorar o trabalho. As assistentes sociais (denunciadas) não fizeram nenhuma objeção às transferências, entretanto comunicaram a ele a reclamação dos técnicos. Mesmo assim foram mantidas as transferências. Não concorda que as transferências foram feitas de forma autoritária e desrespeitosa. [...] As assistentes sociais (denunciadas) não tiveram nenhum grau de responsabilidade pelas transferências, [...] até porque as atribuições das

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151

assistentes sociais eram assessorar o diretor tecnicamente na elaboração dos relatórios de toda a instituição, formular política de assistência aos usuários [...] As assistentes sociais (denunciadas) são muito dedicadas, abraçaram a causa da instituição, doando quase o dobro da suas cargas horárias. As referidas profissionais (denunciantes) tinham uma postura muito politizada, o que no seu entender não cabe num trabalho ligado ao adolescente infrator, devendo agir com isenção (grifos nossos).

Observamos que o voluntarismo e a obediência irrestrita às determinações superiores

são tidos como valores positivos e indispensáveis à dinâmica institucional e que o trabalho

dos assistentes sociais deve se restringir à questão administrativa ou referente à política de

assistência, ambos com isenção. A imparcialidade é tida como um valor ético.

Neste sentido, as práticas profissionais questionadoras desta dinâmica são

caracterizadas como “vícios”, politizadas, inadequadas, especialmente, para uma instituição

onde o objetivo principal é o disciplinamento de adolescentes em cumprimento de medidas

sócio-educativas.

Não é por acaso que as atitudes que contestam a ordem institucional sejam vistas como

perigosas. Vimos no Capítulo II que o questionamento do status quo foi, na história do Brasil,

duramente reprimido pelas classes dominantes, sendo grande parte da população excluída dos

processos decisórios. Valoriza-se a ideia, própria do pensamento conservador, de que o

homem precisa ser tutelado. Isto explica, em alguma medida, o fato de a tutela ser uma prática

tão presente na história do Serviço Social.

Nos dois processos citados acima observamos que quando se tenta alargar os

mecanismos de participação no espaço institucional, tais ações são rapidamente reprimidas.

Outro ponto importante e que merece análise da nossa parte são as justificativas para

as atitudes das assistentes sociais (denunciadas). Vejamos os argumentos do advogado e de

uma das testemunhas destas.

As denunciadas não questionaram o ato por este ter sido determinado por orgão controlador responsável. [...]. [Estas] estão sendo colocadas como bodes expiatórios, já que a culpa daquela instituição são políticos e que estas estão trabalhando sob péssimas condições de trabalho. [Elas] questionaram dentro do limite permitido. [...]. O arbítrio e o autoritarismo não podem ser creditados às denunciadas (Documento de defesa das denunciadas elaborado pelo advogado das mesmas). [...] o modelo imposto à sociedade pelos órgãos governamentais alija a participação popular das decisões importantes, incluindo os profissionais de

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152

todas as áreas [...]. Ocorre que, até por uma questão filosófica, em um país de miseráveis, o trabalhador tem que conviver com a dura realidade da imposição, que não deixa de ser uma forma arbitrária e autoritária daqueles que exercem o poder, mantendo a sua postura digna e defendendo, no limite de sua capacidade, os direitos e princípios de sua profissão em prol dos que lhe são dependentes (Documento de defesa das denunciadas elaborado pelo advogado das mesmas).

Já a testemunha da denunciada, também assistente social da instituição, afirma que:

No momento em que foi comunicado a transferência a posição dos subordinados foi acatar a determinação institucional. [...]. No momento da reunião não cabia solidariedade, pois tem um artigo no Estatuto, em que diz que se deve obedecer ordens superiores. As denunciadas se reuniram com o diretor para discutir o assunto. Questionaram a transferência de uma das assistentes sociais por conta da idade.

Os argumentos utilizados na defesa das denunciadas expressam a ideia de um

determinismo absoluto, ou seja, não havia nada a ser feito diante da conjuntura sócio-política

e institucional: péssimas condições de trabalho, atrocidades cometidas aos adolescentes e, por

fim, as transferências de alguns membros da equipe. Assim, chega-se a conclusão que se não

existia alternativa, não era possível atribuir responsabilidade ética às denunciadas. Este

argumento pode ser verificado em diversos processos: A, B, E e Q.

Embora saibamos dos limites colocados ao assistente sociais no cotidiano de trabalho,

especialmente no que se refere à sua autonomia, é necessário lembrarmos que as ações dos

homens se dão a partir da dialética da necessidade e da liberdade. Esta última, princípio ético

central do Código de Ética de 1993, significa, ao mesmo tempo, a capacidade dos homens em

compreender os limites colocados pelas determinações hitórico-sociais e, construir – através

da sua potencialidade criadora – alternativas a estas limitações.

Além disto, o argumento da necessidade de cumprimento do Estatuto do Servidor é

frágil, especialmente porque, neste caso, a obediência às ordens superiores viola os princípios

éticos profissionais da defesa intransigente dos direitos humanos, recusa do arbítrio e do

autoritarismo e do compromisso com a qualidade dos serviços prestados à população. A este

respeito, afirma Maria Lúcia Barroco:

O estatuto dos funcionários e o Código de Ética são instrumentos normativos de natureza diferente: o primeiro constitui-se num conjunto de normas administrativas; o segundo em deveres e direitos profissionais pautados em princípios e valores éticos. O Código de Ética do assistente social não considera que a ética profissional deva ser subordinada

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153

incondicionalmente às normas administrativas: se assim fosse ela não teria sentido prático (Trecho de um parecer elaborado em resposta a um recurso junto ao CFESS). A ética profissional supõe o respeito às normas institucionais, desde que elas não firam os princípios do Código de Ética Profissional, prevendo, portanto a autonomia profissional e a denúncia de quaisquer normas e situações que possam ser contrárias à ética profissional (Trecho de um parecer elaborado em resposta a um recurso junto ao CFESS).

No processo em questão (B), o fato de as assistentes sociais (denunciadas) ocuparem o

cargo de chefia, lhes colocava numa posição privilegiada para refletir, junto à direção geral da

unidade, sobre as conseqüências das transferências para o trabalho da equipe e, especialmente,

no que se refere à qualidade dos serviços prestados aos usuários. Assim, existiam outras

alternativas de escolhas, além da omissão e conivência.

Além dos valores identificados na dinâmica institucional – o autoritarismo e a prática

da tutela, o voluntarismo, a suposta imparcialidade e a obediência irrestrita às ordens

superiores – é importante sinalizarmos para outra prática bastante naturalizada na sociedade

brasileira e que também aparece nas relações profissionais: a prática do favor. Em alguns

processos isto aparece no depoimento das denunciantes, mas também das denunciadas,

vejamos:

[...] A chefe (denunciada) já tentou transferi-la da instituição e que usa tráfico de influência para tal. [...] (Depoimento de uma das assistentes sociais denunciantes do Processo J). [...] alega a depoente que, naquele momento, recebeu críticas das colegas porque a gratificação havia sido suspensa. Alude a depoente ter recorrido à Câmara dos vereadores para “tentar resolver a situação”, pois segundo ela, os vereadores comumente solicitavam “favores” ao hospital, mencionando, por exemplo, atendimento a seus eleitores (Assistente social denunciada em depoimento ao CRESS. Processo J). [...] Quando o diretor colocou a denunciante em disposição a denunciada falou para ela correr atrás do prejuízo, que ela que ela ligasse para pessoas conhecidas ou mesmo procurasse o diretor. [...] (Assistente social denunciada em depoimento ao CRESS. Processo J). [...] A assistente social (denunciada) fez questão de frisar que era amiga de Dr. W, irmão do Presidente da República (na época), oferecendo até transferência para quem quisesse e, especificamente, ofereceu para um agente administrativo uma permuta com outro hospital Z, uma vez que tinha força de conhecimento com o Coordenador Regional do Instituto (Assistente social denunciante em depoimento ao CRESS. Processo P).

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154

Durante a reunião a assistente social (denunciada) deixou transparecer que tinha ligações políticas, dizendo algumas vezes que era amiga do Coordenador Regional do Instituto (Assistente social denunciante em depoimento ao CRESS. Processo P).

Estes depoimentos demonstram como a prática do favor aparece naturalizada, ou seja,

mesmo que ela apareça sendo questionada pelos que fazem as denúncias, somente em dois

deles ela é identificada como possível violação ética, expressa no artigo 9 b e 9 c do Código

de Ética Profissional que diz que : É vedado ao assistente social: 9 b) “usar ou permitir o

tráfico de influência para obtenção de emprego, desrespeitando concurso ou processos

seletivos” e 9 c) utilizar recursos institucionais (pessoal e/ou financeiro) para fins partidários,

eleitorais e clientelistas.

Além disto, observamos a dificuldade da Comissão de Instrução em comprovar este

tipo de infração ética. Chama-nos a atenção ainda o fato da assistente social (denunciada) do

processo J, se utilizar deste argumento em sua defesa: “Alude a depoente ter recorrido à

Câmara dos Vereadores para “tentar resolver a situação”, pois segundo ela, os vereadores

comumente solicitavam “favores” ao hospital” ou “falou para ela (a assistente social

transferida) correr atrás do prejuízo, que ela ligasse para pessoas conhecidas”. Ou seja, não há

o menor discernimento no que se refere ao caráter anti-ético destas ações, o que a leva a

utilizá-las em sua defesa junto à Comissão de Instrução. Aqui podemos observar a estreita

relação entre público e privado, característica tão presente na sociedade.

Após problematizarmos sobre os valores que aparecem nos processos éticos e que

expressam, em alguma medida, a hegemonia dos valores dominantes na sociedade brasileira,

é importante também destacarmos para o tipo de valores que os assistentes sociais e outros

profissionais relacionam ao Serviço Social, demonstrando assim a autoimagem e a imagem

construída sobre a profissão. Vejamos algumas passagens dos processos onde tais valores

aparecem:

Senhores, a tocha tipifica a luz que se impõe para que o abnegado profissional dissemine àqueles que lhe chegam em busca de socorro; [...]. Como profissionais e, não só como profissionais, devemos ser como APÓSTOLOS, ou seja, “o sal da terra e a luz do mundo”, se o sal for insípido como iremos salgar e se não tivermos luz, como iremos iluminar (Trecho de um documento com os argumentos finais da equipe de assistentes sociais que fizeram a denúncia). Em 34 anos de serviço público e 28 de Serviço Social nunca tive qualquer situação que maculasse minha vida profissional, nem junto a usuários ou

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155

mesmo profissionais, pois tenho como princípio primordial o AMOR E REPEITO AO PRÓXIMO , independente de sexo, opção sexual, religião ou raça (Trecho de um documento escrito por uma assistente social – denunciada – em sua defesa). A assistente social, Chefe do Serviço Social, convocou a equipe a ir – num domingo – a um chá de caridade organizado por ela juntamente com a associação de amigos da instituição. Por não terem comparecido, a chefia discutiu arduamente e de forma ríspida com os componentes da equipe (Trecho do depoimento de uma das assistentes sociais da equipe que fez a denúncia contra a chefia). Chegamos jovens a esta Instituição, recém formadas, e aqui colocamos em prática tudo aquilo que aprendemos no banco da Escola, aqui crescemos e a cada dia apreendemos o exercício de tão espinhosa profissão que abraçamos, não sei se posso falar em profissão, talvez o certo seja Missão; pois no país em que vivemos a categoria Assistente Social não significa infelizmente muita coisa para as autoridades [...] (Trecho de um documento escrito por uma assistente social – denunciada – em sua defesa).

Estas passagens demonstram a persistência de determinados valores ligados ao Serviço

Social “tradicional”. A ideia da profissão como algo “espinhoso”, que exige sacrifícios que só

podem ser feitos por profissionais abnegados, dispostos a cumprir a sua “missão” a todo o

custo. Ao mesmo tempo, o assistente social é comparado a um apóstolo, com a função de

“iluminar” àqueles que deles necessitam. Isto nos faz lembrar os mártires das religiões cristãs,

especialmente a Católica. Não por acaso, num dos depoimentos, o amor ao próximo aparece

como princípio primordial na atuação profissional.

Além disto, não observamos reflexões significativas referentes às tensões colocadas à

profissão pela nova dinâmica do mundo do trabalho, pelas novas formas como se apresentam

as expressões da “questão social” – e como isto impacta o cotidiano profissional – e pela

tendência atual na formulação e execução das políticas sociais. Neste sentido, nem de longe

passa a ideia de que os assistentes sociais, enquanto trabalhadores estão inseridos em

processos alienantes; ao contrário, vimos numa das passagens acima, que o assistente social

deve ser como a “luz do mundo”.

Além desta auto-imagem profissional, é importante destacarmos como a profissão é

vista por outros profissionais. Indicamos anteriormente o que, na dinâmica institucional,

alguns profissionais esperam dos assistentes sociais: imparcialidade nas ações, obediência

irrestrita às ordens superiores e que abracem a causa institucional e dedicação ao trabalho para

além dos vínculos trabalhistas (aqui aparece o elemento voluntarista).

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156

Apesar da permanência da imagem do Serviço Social ligada ao altruísmo, à ajuda, e à

ações voluntaristas, é possível perceber uma outra concepção de profissão, mais próxima dos

valores e princípios defendidos pelo atual Projeto ético político da categoria. Se analisarmos o

perfil dos denunciantes, veremos que, na sua maioria, são os próprios assistentes sociais que

identificam as possíveis violações e fazem a denúncia ao CRESS, como podemos verificar na

Figura 4

Figura 4 - Perfil dos denunciantes dos processos éticos (concluídos) analisados pelo CRESS 7ª

Região no período de 1993 a 2011

Assistente Social; 39,39%

Usuário; 21,21%

Outros profissionais; 21,21%

Outros; 6,06%

Equipe de Assistentes Sociais; 6,06%

Chefia S.S; 3,03%Estagiário; 3,03%

Fonte: Dados levantados junto ao CRESS 7ª Região no 2º semestre de 2011

O gráfico acima demonstra que se somarmos o percentual de assistentes sociais

(individualmente), chefia do Serviço Social e equipe de assistentes sociais, teremos um

percentual de 48,48% de processos onde a denúncia foi feita pela própria categoria. Isto

significa que os conflitos éticos não estão sendo ignorados por alguns assistentes sociais.

Como já sinalizamos, os principais questionamentos referem-se às relações autoritárias

no âmbito institucional. Isto significa que estes profissionais preocupam-se com a ausência de

espaços de participação nas discussões e decisões, especialmente no que se refere ao Serviço

Social. Além disto, questionam as perseguições políticas que, em grande medida, resultam em

transferências de profissionais. Isto significa um compromisso com a democratização dos

espaços institucionais, além da recusa do arbítrio e autoritarismo. No entanto este não é o

único aspecto apontado nas denúncias.

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157

Na análise qualitativa dos processos, também aparece a preocupação e a crítica dos

assistentes sociais (denunciantes) à qualidade dos serviços prestados à população, às

péssimas condições de trabalho, à violência praticada contra usuários, à falta de clareza no

que se refere às competências profissionais e à presença da prática do favor. Podemos

evidenciar tais questionamentos nos depoimentos de algumas assistentes sociais

(denunciantes):

[...] a equipe enviou um documento para a direção pedindo melhores condições de trabalho. [...] (Processo B). [...] Destaca as péssimas condições de trabalho [...]. Questiona a forma como foi feita a transferência; não recebeu nenhum tipo de solidariedade de ambas as chefias (Processo B). [...] os usuários sentem-se ameaçados com a presença da chefia, caso não cumpram ordens disciplinares [...] (Processo F). [...] Questionam as atribuições do Serviço Social: este é responsável pela organização da rotina do uso do crachá, pelos acompanhantes dos pacientes internados, do isolante e controle de lavagem e secagem de roupas na lavanderia (Processo F). A chefe do Serviço Social formou um bazar para que as assistentes sociais vendessem coisas (roupas, brinquedos etc.) [...]. Critica a questão voluntarista (ter que trabalhar no domingo) num chá beneficente (Processo F). [...] questiona as atribuições do assistente social no que se refere à triagem do idoso (a equipe interdisciplinar da instituição Y, com a concordância da chefia do Serviço Social, demandava dos assistentes sociais a aferição de pressão arterial, mensuração da massa corporal, a aplicação de questionários que visam avaliar o comprometimento auditivo e a existência de intercursos de depressão) (Processo G). [...] Partilhamos da opinião de que precisamos recorrer constantemente aos fundamentos da nossa profissão para que não nos afastemos de nossa identidade profissional (Processo G). [...] utilizando-se de seus conhecimentos pessoais com membros da Coordenação Regional do Instituto X, a chefia solicitou minha transferência, sem meu conhecimento, comunicando-me somente quando o fato estava consumado, para que tomasse ciência. [...] (Processo P).

Isto significa que estes profissionais se mostram, através das denúncias e de seus

depoimentos, comprometidos com a efetivação de princípios fundamentais do Código de

Ética Profissional, tais como:

Page 169: Tese Paula Bonfim (1)

158

1º Reconhecimento da liberdade como valor ético central e das demandas políticas a ela inerentes - autonomia, emancipação e plena expansão dos indivíduos sociais;2º Defesa intransigente dos direitos humanos e recusa do arbítrio e do autoritarismo;4º Defesa do aprofundamento da democracia 5º Posicionamento em favor da eqüidade e justiça social, que assegure universalidade de acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais, bem como sua gestão democrática;10º Compromisso com a qualidade dos serviços prestados à população e com o aprimoramento intelectual, na perspectiva da competência profissional; (Código de Ética Profissional/1993).

Embora reconheçamos – nos discursos dos assistentes sociais (denunciantes) – a

valorização de gestões democráticas, da competência profissional, do respeito aos usuários,

não podemos afirmar em que medida a adesão aos Princípios defendidos pelo Código de Ética

Profissional servem como parâmetros – decisivos – para as ações profissionais como um todo.

Esta afirmação significa que os assistentes sociais, mesmo aqueles mais politizados, convivem

com conflitos de valor, ou seja, convivem com valores introjetados na sua socialização

primária e aqueles incorporados a partir da inserção em novas relações, aqui especificamente,

àquelas resultantes dos vínculos profissionais – da formação em Serviço Social, da militância

nas entidades da categoria e nos ramos de atividades e no exercício profissional.

Este tipo conflito pode ser percebido num dos processos analisados. No Processo F, as

assistentes sociais (denunciantes) questionam as práticas autoritárias das chefias, as

atribuições dos assistentes sociais ligadas à filantropia, fazem uma crítica à subalternidade

profissional e, ao mesmo tempo, afirmam – no documento que consta as alegações finais das

mesmas – que os assistentes sociais devem ser como os apóstolos, ou seja, “o sal da terra e a

luz do mundo”. Assim, mesmo identificando-se com alguns valores defendidos pelo Código

de Ética Profissional, reconhecendo-os como fundamentais para as relações institucionais, as

assistentes sociais associam a profissão à uma função evangelizadora, ou seja, importante por

transmitir valores cristãos e com isto iluminar a vida daqueles que lhe pedem ajuda (conteúdo

moralizador). Aqui fica explícito o fato de ignorarem o caráter contraditório desta profissão

na sociedade de classe, a sua dimensão política, além de não se reconhecerem como

trabalhadoras e sim “como apóstolos”. Ou seja, nem mesmo a consciência de classe elas

manifestam.

Embora percebamos uma crítica das assistentes sociais referente à alguns valores

naturalizados na dinâmica institucional, as mesmas permanecem sob a influência de valores

Page 170: Tese Paula Bonfim (1)

159

completamente contrários – nos seus fundamentos – àqueles defendidos pelo projeto ético-

político profissional.

A concepção de Ética evidenciada nos processos também reflete as contradições em

torno da adesão consciente aos princípios éticos profissionais. No que se refere à esta questão,

observamos, na análise qualitativa dos processos, que somente na defesa dos assistentes

sociais denunciados é que se recorre a tal definição, sendo que estas divergem completamente

da perspectiva Ética profissional. Vejamos alguns exemplos:

O conceito de ética é muito amplo, o que para uns é antiético e imoral, para outros povos não são (Argumento do advogado de defesa da denunciada no Processo B). [...] este processo é muito complexo e de natureza subjetiva. [...] (Argumento do advogado de defesa da denunciada no Processo B, onde a questão da violação refere-se aos artigos 4C e 5 A)153. [...] confirma que não comunicou a equipe sobre a transferência da AS e não julga anti-ético esse procedimento. [...] (Assistente social denunciada, processo F). [...] O Serviço Social configura-se como uma “práxis”, em oposição a uma teoria, e a teoria para o Serviço Social deve ser entendida em relação a esta “práxis”, seja como uma reflexão sobre a prática já realizada, seja como uma reflexão para a prática que venha a ser realizada (instrução, aconselhamento) ou como algo que possa ser transformado em prática (método). Na própria teoria do Serviço Social estes métodos ou normas configuram uma ética pragmática, sem um definido respaldo filosófico, e se apresentam soltas, postuladas dogmaticamente. Aparecem como mandamentos, seja na formação profissional, seja nos textos teóricos, sem nenhuma discussão metafísica, em alternativa de opção. Quando surgem debates ou contestações, busca-se em outras áreas um referencial de esclarecimento. E fica o vazio, a falta de origem e inconsistência. A própria história do Serviço Social não permite uma compreensão da questão dos valores do Serviço Social. Vinculam-se os valores à prática profissional, sob a alegação de que eles configuram um componente de qualquer disciplina ou profissão, sem tematizá-los. [...] Na atitude ética interroga-se sobre o valor do mundo, colocando-o em questão. Na prática, agir eticamente significa questionar o valor ilimitado do mundo, e pondo-o à distância, agir com uma responsabilidade renovada em relação ao mundo. [...]. A ética está ligada à legalidade e à moralidade (Argumento da advogada de defesa da denunciada no Processo Q).

153 4 C - acatar determinação institucional que fira os princípios e diretrizes deste Código; e 5 A - contribuir para a viabilização da participação efetiva da população usuária nas decisões institucionais

Page 171: Tese Paula Bonfim (1)

160

Podemos observar, nos argumentos utilizados pelos advogados das denunciadas (e,

presume-se, com a concordância destas), uma tentativa de se definir o que é (ou não) uma

ação ética. Nestas passagens observamos que em alguns momentos a ética aparece como

sinônimo de moral; noutros ela é relativizada, subjetivizada, ou mesmo vinculada ao que é

legal do ponto de vista jurídico. Além disto, aparece uma concepção de profissão

completamente desvinculada dos fundamentos sócio-históricos do Serviço Social154.

Vejamos que estas definições não coincidem com a compreensão de ética referenciada

no Código de Ética Profissional. Como vimos no Capítulo I, a ética, na perspectiva ontológica

marxista, é a esfera mediadora no processo de elevação do homem da sua vivência individual

à sua existência genérica, ou melhor, é quando os seres humanos passam a pautar suas ações a

partir da referência do humano genérico, possibilitando-os o desenvolvimento contínuo de

suas potencialidades.

É importante lembrarmos que esta concepção de ética não é abstrata, mas está

relacionada às possibilidades concretas dos homens em cada momento histórico. Neste

sentido, a ação ética só pode se realizar quando existem possibilidades de escolhas

conscientes. Aqui se expressa a relação dialética entre necessidade e liberdade.

Estes exemplos nos possibilitam refletir sobre duas questões fundamentais e

implicadas entre si, no que se refere às escolhas dos assistentes sociais: primeiro, é a

concepção de ética destes profissionais; e segundo, é sobre a adesão consciente dos assistentes

sociais aos valores preconizados no Código de Ética Profissional. Assim, nos perguntamos: os

assistentes sociais têm clareza do significado da ética tal como referenciado nos fundamentos

teórico-metodológico e éticos da profissão? Se a resposta for negativa, é necessário fazermos

um questionamento sobre a formação e atualização destes profissionais. No entanto, a

ignorância, não exime o assistente social da sua responsabilidade ética, já que este passou por

um processo de formação que, supostamente, o preparou em diversos aspectos a agir de

acordo com tais requisitos.

Embora a compreensão sobre os fundamentos da ética e o conhecimento do Código de

Ética Profissional, na sua estrutura formal, sejam imprescindíveis, não suficientes para uma

adesão consciente aos princípios defendidos neste e nem mesmo a sua efetivação no cotidiano

profissional. Vejamos melhor o que isto significa. 154 Não encontramos nos depoimentos dos assistentes sociais (denunciados e denunciantes) argumentos nos quais aparece o entendimento destes sobre a Ética ou mesmo a Ética profissional.

Page 172: Tese Paula Bonfim (1)

161

Discutimos anteriormente que é necessário pensarmos o fenômeno da consciência

como um processo, não linear, dinâmico, com possibilidades de avanços e retrocessos. (Iasi,

2011). Este movimento é contraditório e, na medida em que a sociedade capitalista se torna

mais complexa, observa-se uma tendência a se acirrar os processos alienantes e com isto se

afirmarem os valores próprios desta sociabilidade. Nesta sociedade há uma inversão de

valores e os indivíduos que questionam conscientemente a dinâmica da sociabilidade

burguesa, colocando a necessidade de sua superação, são considerados inadequados

desajustados ou mesmo perigosos e/ou nocivos às relações sociais. “[...] Enquanto isto, o

alienado recebe o rótulo de “normal” (Iasi, 2011, p. 37).

Isto significa que superar a consciência alienada e com isto firmar o compromisso com

valores emancipatórios não é um processo simples, pelo contrário, é algo complexo que

desafia a todos constantemente. Além disto, adquirir uma consciência revolucionária coloca o

indivíduo diante de um permanente conflito, já que nem sempre as condições objetivas

possibilitam as transformações que esta consciência reconhece como necessárias. Esta

situação de conflitos coloca o indivíduo diante de diferentes caminhos, conforme afirma Iasi

(2011) “[...] pode buscar mediações políticas que construam junto à classe os elementos que

Lênin denominava de “condições subjetivas”, ou diante de insucessos nestas tentativas,

caminhar para a ansiedade e depressão” (p.37).

Isto significa que a adesão consciente dos assistentes sociais aos valores e princípios

do Código de Ética não são suficientes para efetivá-los no cotidiano profissional. Esta

contradição tem levado alguns profissionais não somente à busca de mediações políticas, à

ansiedade e a depressão, mas também ao fatalismo, tendência histórica na profissão.

Ainda no que se refere ao processo de consciência, identificamos, nos processos

analisados, outra questão fundamental na profissão: a compreensão sobre as atribuições

privativas e competências profissionais. Atrelado a isto destacamos a tendência histórica do

Serviço Social à subalternidade técnica e social junto à outras profissões.

As tensões em torno das atribuições e competências profissionais se expressam em

diversas situações: 1) em atividades desenvolvidas pelos assistentes sociais que ultrapassam o

âmbito de sua competência; 2) no fato de alguns profissionais, ao assumirem o cargo de

chefia, gestão ou trabalharem em funções referentes aos Recursos Humanos, negarem o

vínculo destas com o Serviço Social; 3) no desenvolvimento de atividades ligadas às

protoformas da profissão e no tipo de supervisão realizada junto ao estagiário de Serviço

Social.

Page 173: Tese Paula Bonfim (1)

162

Por exemplo, nos Processos C, E e G, todos na área da saúde, as denúncias referem-se

às funções desenvolvidas por alguns assistentes sociais e a falta de competência destas para o

tais atividade.

No Processo C, a denúncia refere-se às ações de uma assistente social lotada numa

unidade básica de saúde que, segundo a médica da mesma instituição, teria orientado um

usuário a informar ao seu médico que existem medicações mais modernas cobertas pelos SUS

para tratá-lo. Além disto, sugeriu que o paciente estava sendo muito transfundido e que

poderia evitar isto utilizando outra medicação.

Em depoimento à Comissão Permanente de Ética a médica (denunciante) afirmou

também que:

[...] Estava claro no discurso do paciente e de sua filha a angústia e a insegurança, uma vez que a mesma (médica) não teria os orientado a obter este outro medicamento [...] [...] Avalia que a intenção da assistente social não foi de prejudicar o tratamento do paciente, contudo a intervenção não deve ultrapassar o âmbito da sua competência profissional [...]

Ao ser ouvida pelos membros da Comissão de Ética, a assistente social (denunciada)

esclarece que:

[...] Dentre as suas atribuições na unidade de saúde, está àquela referente à atuação junto ao programa de medicação extraordinária: desenvolvia a abertura dos processos para a obtenção de medicamentos através da avaliação sócio-econômica dos usuários [...] [...] Ressalta que não tinha pretensão de prescrever o medicamento, mas orientar o paciente para facilitar e garantir o seu acesso à medicação [...]

A denunciada apresentou um documento em sua defesa elaborado por um médico da

unidade. É importante destacar algumas passagens deste texto:

[...] Por minha orientação expressa, devem as assistentes sociais que fazem os estudos sócio-econômicos dos usuários orientá-los sobre medicamentos que se encontram em estoques na farmácia (da unidade) a fim de agilizar e desburocratizar a aquisição destes medicamentos. [...] [...] Trata-se, portanto, de “excesso de zelo” da competente profissional

Page 174: Tese Paula Bonfim (1)

163

(médica que fez a denúncia) que ao formular esta queixa contra a referida assistente social, observou apenas o fato, sem talvez, procurar entender o objetivo principal da minha assistente social, que no presente caso, só fez cumprir determinações por mim previamente autorizadas e padronizadas [...] (grifos nossos).

Outra situação que reflete a falta de clareza no que diz respeito às atribuições e

competências dos assistentes sociais e o tipo de relação estabelecida entre estes e outros

profissionais pode ser verificada também no Processo E.

Neste, a assistente social, diretora de uma unidade básica de saúde, é denunciada pela

equipe médica por transcrever receitas à pacientes.

A assistente social (denunciada), em depoimento, afirma que:

[...] Dadas às pressões por conta da ausência de médicos, expediu receitas, sendo que estas eram somente cópias das prescritas pelo médico responsável [...] [...] Explicou que a Secretaria de Saúde encaminha mensalmente uma relação individualizada dos usuários e a medicação a que cada um tem direito. Não seria justo deixar o paciente sem o remédio porque o médico não foi trabalhar [...] [...] Afirma que a denúncia está atrelada à insatisfação do corpo médico por a diretora da unidade de saúde ser uma assistente social e também pela insatisfação de alguns profissionais descontentes com a resolução normativa da coordenação da área [...] [...] Ao questionar a coordenação da área sobre qual procedimento deveria adotar no caso de ausência de infectologista, este a orientou (por telefone) a liberar a medicação [...] [...] Recebia reclamações dos pacientes pela ausência dos médicos [...]

Estes dois exemplos expressam aquilo que Netto (1996a) aponta como constitutivo do

Serviço Social: a sua estrutura sincrética. Esta estrutura, como já sinalizamos, se expressa

tanto nas demandas sócio-históricas colocadas à profissão quanto na modalidade específica da

intervenção profissional. Segundo este autor (Id.) o fato de os assistentes sociais serem

convocados para atuar junto às mais variadas expressões da “questão social”, tendo por

objetivo a manipulação das variáveis empíricas, torna a especificidade profissional uma

Page 175: Tese Paula Bonfim (1)

164

incógnita para os mesmos155. A conseqüência disto é uma aparente polivalência profissional.

Netto (1996a) esclarece ainda:

É próprio da prática que se toma sincreticamente não somente a sua translação e aplicação a todo e qualquer campo e/ou âmbito, reiterando procedimentos formalizados abstratamente e revelando a sua indiferenciação operatória. Combinando senso comum, bom senso e conhecimentos extraídos de contextos teóricos; manipulando variáveis empíricas segundo prioridades estabelecidas por via de interferência teórica e de vontade burocrático-administrativas; legitimando a intervenção com um discurso que mescla valorações das mais diferentes espécies, objetivos políticos e conceitos teóricos; recorrendo a procedimentos técnicos e a operações ditadas por experiências conjunturais e a reservas emergenciais e episódicas – realizada e pensada a partir desta estrutura heteróclita, a prática sincrética põe a aparente polivalência. Esta não resulta senão do sincretismo prático-profissional: nutre-se dele e o expressa em todas as suas manifestações (p. 102 e 103).

Esta citação expressa o que identificamos nos processos analisados, ou seja, tanto o

sincretismo das demandas quanto das formas de intervenção, ou seja, os assistentes sociais

diante das tensões colocadas pelas mais variadas expressões da “questão social” assume

diversas funções, muitas vezes requisitadas e delimitadas por outros profissionais. Isto pode

ser evidenciado nas passagens: “Por minha orientação expressa, devem as assistentes sociais

[...]” ou ainda “[...] o objetivo principal da minha assistente social que [...] só fez cumprir

determinações por mim previamente autorizadas e padronizadas”.

Em situações específicas, o cumprimento de funções delimitadas por outros

profissionais pode comprometer a qualidade do serviço prestado à população, trazer prejuízos

à mesma e reforçar a condição subalterna da profissão. Um exemplo disto é o Processo Ético

(G) onde dentre as atribuições dos assistentes sociais na instituição Y estava a triagem de

idosos, incluindo procedimentos de: aferição de pressão arterial, mensuração da massa

corporal, aplicação de questionários com o objetivo de avaliar o comprometimento auditivo e

a existência de intercursos de depressão156.

Chama-nos também atenção neste processo o fato de uma das assistentes sociais (a

mais antiga na instituição e contra quem é feita a denúncia) defender este tipo de intervenção;

155 Segundo o autor esta é uma das razões para as constantes crises de “identidade” profissional. 156 Importante esclarecer que os assistentes sociais recebiam treinamentos – teórico e práticos – pelos médicos para realizar a triagem.

Page 176: Tese Paula Bonfim (1)

165

aqui percebemos que ela se utiliza do argumento da (aparente) polivalência, na qual nos fala

Netto (1996a). Vejamos o que afirma esta assistente social:

“[...] A questão da identidade do Serviço Social é uma questão difícil. Muitas proposições, atribuições e competências definidas contemporaneamente têm um nível amplo ou genérico demais. É necessário interagir com os conhecimentos da área, ter claro objetivos comuns (transdisciplinares) e específicos (da profissão) para AMPLIAR POSSIBILIDADES DE AÇÃO. Intra e extra institucionalmente, na direção dos objetivos maiores da profissão” (Trecho de um documento do Processo G, elaborado pela assistente social (denunciada) em sua defesa. Grifos da autora).

Vimos, portanto, que a questão da inespecificidade profissional, resultado da estrutura

sincrética da profissão, pode levar o desenvolvimento das mais variadas formas de

intervenção, indo, como vimos nos processos, do controle do crachá à medição de pressão.

Isto significa que esta aparente polivalência pode levar o assistente social a assumir funções

não compatíveis com sua formação, violando assim a ética profissional.

Associado a isto destacamos o elemento da subalternidade profissional. Alguns

autores que discutem os fundamentos do Serviço Social, como Iamamoto (2001), Netto

(1996) e Montaño (2009) sinalizam para um dos aspectos que contribuem para esta

subalternidade: a dimensão de gênero que caracteriza a profissão.

Segundo Montaño (2009) o Serviço Social é uma profissão marcada pela ideia da

assistência, da ajuda, do auxílio e isto pode ser visto em dois sentidos: na assistência à

população que demanda por serviços sociais e no auxílio ao trabalho de outros profissionais,

como por exemplo, médicos, Juízes etc. Raramente o assistente social é identificado como

profissional apropriado para formular e gerir políticas sociais.

[...] Pelo contrário, o Serviço Social é em geral identificado em concordância com o papel que as sociedades “patriarcais” atribuem à mulher, como uma profissão que executa as decisões dos outros (os “políticos”), que conhece a realidade social por meio dos olhares dos outros (os “cientistas sociais”) e que assiste às populações carentes, mas como auxiliar de outros profissionais (médicos, advogados etc.) (Montaño, 2009, p.101).

Além disto, este autor (Id.) afirma que o perfil do profissional de Serviço Social que o

empregador deseja não é aquele que se utiliza de um referencial crítico para a sua intervenção.

Como já sinalizamos, as demandas que chegam ao Serviço Social são aquelas que exigem

ações imediatas e que dê respostas aos “problemas” apresentados pelos usuários dos serviços

Page 177: Tese Paula Bonfim (1)

166

institucionais. Não por acaso, a atuação do assistente social se dá, majoritariamente, no

âmbito da execução terminal das políticas sociais (Netto, Id.).

Estes elementos também contribuem para reforçar a subalternidade dos assistentes

sociais na relação com outros profissionais. Aqueles assistentes sociais que se utilizam de um

referencial teórico-metodológico crítico no trato para com as demandas colocadas ao Serviço

Social, que questionam as funções impostas aos assistentes sociais e que fogem à suas

competências, que demandam participação nos espaços onde se define a política institucional,

são, geralmente, vistos como profissionais “problemáticos”, inadequados para a função que

ocupam.

No processo G, por exemplo, percebemos como os questionamentos sobre a as

funções do Serviço Social são vistos pela a equipe multidisciplinar da instituição. Vejamos o

depoimento da assistente social (denunciante), onde constam os detalhes da reunião157 que

motivou a denúncia.

A staff antiga (assistente social denunciada) referiu-se ao treinamento da hipertensão informando que as residentes (assistentes sociais) não querem fazer o treinamento prático, mas (somente) o teórico. Os presentes riram e começaram a falar que as residentes faziam o que queriam conosco, que éramos bobas demais. O cardiologista respondeu que não se disporia a treiná-las, sem o aspecto prático, pois não via sentido. Seria uma perda de tempo. Retomando a fala, a denunciada pediu-me para me pronunciar sobre a questão: iniciei a primeira e única frase “a questão não é apenas a verificação da pressão arterial, mas todo o instrumento e a triagem em si”. Neste momento, a denunciada levantou-se, começou a falar alto, simultaneamente a coordenadora do ambulatório fez o mesmo, os demais componentes riam e diziam “não é bem assim”, “é só vocês escreverem uma carta para o conselho (CRESS) explicando porque vocês medem pressão, eles vão entender. Você quer que eu te ajude?”. O Cardiologista perguntou-nos aonde tínhamos nos formado (incluindo as residentes). Eu na UFJF, elas na UERJ, sendo que a denunciada fez o seguinte adendo: “Há muito tempo atrás”. Iniciou-se a retórica de que os formados na UERJ são xiitas e o riso era solto. Deboche total. Ficou clara a divisão entre o assistente social “gerontólogo” e o xiita (eu)

Este depoimento demonstra claramente a relação subalterna do Serviço Social para

com outras profissões. Este é visto como um setor completamente desprovido de autonomia,

sem discernimento ou mesmo capacidade para delimitar suas funções na instituição, devendo,

157 Nesta reunião estavam presentes: uma nutricionista, um fisioterapeuta, três médicos, uma fonodióloga, uma enfermeira, duas psicólogas e as duas assistentes sociais (denunciante e denunciada).

Page 178: Tese Paula Bonfim (1)

167

portanto, atender às demandas da equipe, mesmo que estas não estejam de acordo com as

atribuições privativas e competências dos assistentes sociais, regulamentadas pela Lei

8.662/1993. À formação na UERJ é atribuído um valor depreciativo, já que esta não prepara

os assistentes sociais a se conformarem com esta subalternidade.

Outro aspecto importante é que nem mesmo o fato de os assistentes sociais estarem,

majoritariamente, vinculados ao serviço público, faz com que esta condição se altere

significativamente. Mesmo considerando os aspectos, já mencionados, que contribuem para

esta subalternidade, não podemos desconsiderar que o espaço público coloca condições

diferenciadas na intervenção profissional, como por exemplo, a estabilidade no emprego, a

possibilidade de valorização e defesa dos interesses da coletividade, e com isto um espaço de

maior autonomia.

No entanto, na nossa pesquisa, observamos que o setor público é aquele onde ocorre o

maior número de infrações éticas como podemos evidenciar na Figura 5

Figura 5 - Natureza das instituições dos processos éticos (concluídos) analisados pelo CRESS 7ª

Região no período de 1993 a 2011

Pública 91%

Privada6%

Terceito Setor3%

Fonte: Dados levantados junto ao CRESS 7ª Região no 2º semestre de 2011

Page 179: Tese Paula Bonfim (1)

168

Com relação a isto, Faleiros (1985) afirma que embora historicamente o assistente

social tenha sido um funcionário público158, este ainda não está devidamente classificado na

função pública, como outros profissionais de nível superior159. Isto acaba comprometendo a

autonomia deste profissional, tanto no que se refere ao planejamento e gestão das políticas

sociais quanto na prestação de serviços diretamente à população. Aqui novamente aparece a

questão inespecificidade profissional.

Discutimos até o momento sobre o conteúdo valorativo identificado nos processos

éticos pesquisados, analisando essencialmente o discurso dos assistentes sociais envolvidos

(denunciados e denunciantes), de seus advogados e das testemunhas, na sua maioria,

assistentes sociais. No entanto, é importante também esclarecer as questões em torno do

processo de verificação das violações éticas, já que aqueles que têm a função de apurar e

julgar as denúncias também são assistentes sociais, ou seja, são indivíduos que, embora

vinculados a um órgão de defesa do exercício e da ética profissional, também vivenciam

processos alienantes e estão sob a influência, em maior ou menor medida, de valores

dominantes na sociedade brasileira.

O que estamos querendo sinalizar é que a apuração e o julgamento de uma ação ética é

um processo complexo, já que muitos elementos da situação em questão precisam ser

158 Na pesquisa sobre o perfil do assistente social no Brasil, realizada pelo CFESS em 2004, fica evidente esta tendência histórica do serviço social em se inserir majoritariamente me instituições públicas: 78,16% em intuições públicas estatais. Assim, o assistente social é majoritariamente funcionário público, que atua predominantemente na formulação, planejamento e execução de políticas sociais com destaque para as políticas de saúde, assistência social, educação, habitação entre outras. O segundo maior empregador são empresas privadas com 13,19%, seguido do “Terceiro setor” com 13,19%. 159 Mesmo com os avanços evidenciados na profissão, ainda podemos observar a diversidade de funções atribuídas aos assistentes sociais nos editais de concursos públicos, sendo que em muitos deles não há compatibilidade destas funções com o previsto na Lei de Regulamentação da profissão. Vejamos um exemplo disto no edital para o concurso da Secretaria de Estado de Saúde, elaborado pela FESP: Funções do assistente social - “ Prestar serviços sociais orientando indivíduos, famílias, comunidade e instituições sobre direitos e deveres (normas, códigos e legislação), serviços e recursos sociais e programas de educação; planejar, coordenar e avaliar planos, programas e projetos sociais em diferentes áreas de atuação profissional, especialmente a área da saúde; orientar e monitorar ações em desenvolvimento, em assuntos referentes à economia doméstica, nas áreas de habitação, vestuário e têxteis, desenvolvimento humano, economia familiar, educação do consumidor, alimentação e saúde; desempenharas seguintes tarefas administrativas entre outras inerentes ao cargo: prestar atendimento aos pacientes e a seus familiares, a fim de orientá-los para enfrentamento dos problemas sociais, classificando-os segundo o seu perfil social, mantendo atualizado o cadastro social da FUNDAÇÃO SAÚDE; comunicar o óbito à família do paciente e orientar quanto aos procedimentos funerários e benefícios previdenciários; providenciar a documentação necessária para identificação do usuário e encaminhamento à assistência; desenvolver trabalho educativo, onde as informações possam ser utilizadas de modo a instrumentalizar os usuários em busca de seus direitos de cidadão) e articular recursos financeiros disponíveis” (grifos nossos). Este Edital foi, no entanto, retificado após o questionamento do CRESS/7ª Região.

Page 180: Tese Paula Bonfim (1)

169

analisados e refletidos à luz dos fundamentos teóricos, éticos e políticos da profissão. No

próximo item veremos algumas questões que se destacam neste processo.

3.4.1 OUTRAS CONSIDERAÇÕES SOBRE OS PROCESSOS ÉTICOS.

Um das questões que nos chamaram atenção logo que iniciamos a pesquisa foi o

número de denúncias que chegaram neste Conselho no período 1993 a 2011 (125) e a

quantidade reduzida de denúncias que viram processos éticos (56), conforme vimos na Figura

1.

Na reunião realizada com alguns membros da atual Comissão Permanente de Ética160

do CRESS/7ª Região questionamos sobre o fato de mais da metade das denúncias (55%) não

se converterem em processos éticos. Como não analisamos todas as denúncias – somente

aquelas que resultaram em processos – recorremos a esta Comissão para discutirmos algumas

possíveis razões para isto. Já sinalizamos que estas denúncias são arquivadas pelo fato de não

se enquadrarem em questões de cunho ético ou não estarem de acordo com o Código

Processual de Ética. No entanto, isto pode significar algo mais, ou seja, pode expressar a falta

de compreensão dos assistentes sociais sobre significado da ética profissional e a não

introjeção dos valores e princípios vinculados a esta. Mas uma vez a questão do conhecimento

e da consciência dos processos sociais (ou a falta de ambos) aparecem presentes no cotidiano

profissional.

Os componentes da Comissão Permanente de Ética, embora concordem com a

hipótese acima, afirmam, no entanto, que o fato das denúncias chegarem ao CRESS/ 7ª

Região pode ser visto como algo positivo, ou seja, significa que os assistentes sociais

identificam conflitos no espaço profissional e recorrem ao CRESS para buscar orientações.

Destacam também o crescente número de denúncias realizadas pelos usuários e o significado

disto: uma maior visibilidade do Conselho junto à população.

Além disto, afirmam que mesmo que esta comissão conclua a improcedência da

denúncia, eles têm a oportunidade de esclarecer/discutir com assistentes sociais e usuários

sobre questões referentes à função do Conselho e sobre à ética profissional.

160 Conferir nota 144

Page 181: Tese Paula Bonfim (1)

170

Outra questão importante identificada na pesquisa é o percentual significativo de

procedência das denúncias éticas. Vejamos na Figura 6

Figura 6 - Resultado final do julgamento dos processos éticos analisados pelo CRESS 7ª Região

no período de 1993 a 2011

Procedente; 57,58%

Improcedente; 42,42%

Fonte: Dados levantados junto ao CRESS 7ª Região no 2º semestre de 2011

O gráfico acima nos revela que, na maioria dos processos, as violações éticas são

comprovadas, lembrando que num mesmo processo o assistente social pode ser declarado

culpado na infração de um artigo e absolvido em outros. Vejamos na Tabela 2

Tabela 2 – Número de ocorrências dos artigos do Código de Ética Profissional apontados nos

processos como (possivelmente) violados e a ocorrências das violações procedentes.

Em destaque os artigos considerados graves pelo Código de Ética Profissional.

Artigo-

Alínea Conteúdo

Ocorrências

dos artigos

apontados

como

violados

% de

processos

analisados

com esta

ocorrência

Ocorrências

procedentes

% de

processos

procedentes

com esta

ocorrência

11-b prevalecer-se de cargo de chefia para atos discriminatórios e de abuso de autoridade

12 36,36% 4 21,05%

4-c acatar determinação institucional que fira os princípios e diretrizes deste Código

8 24,24% 4 21,05%

11-d prejudicar deliberadamente o trabalho e a reputação de outro profissional;

6 18,18% 3 15,79%

4-b

praticar e ser conivente com condutas anti- éticas, crimes ou contravenções penais na prestação de serviços profissionais, com base nos princípios deste Código, mesmo que estes sejam praticados por outros profissionais

6 18,18% 4 21,05%

Page 182: Tese Paula Bonfim (1)

171

3-a desempenhar suas atividades profissionais, com eficiência e responsabilidade, observando a legislação em vigor

5 15,15% 4 21,05%

6-a exercer sua autoridade de maneira a limitar ou cercear o direito do usuário de participar e decidir livremente sobre seus interesses

5 15,15% 4 21,05%

4-a transgredir qualquer preceito deste Código, bem como da Lei de Regulamentação da Profissão

4 12,12% 1 5,26%

10-a

ser solidário com outros profissionais, sem, todavia, eximir-se de denunciar atos que contrariem os postulados éticos contidos neste Código

3 9,09% 3 15,79%

4-f assumir responsabilidade por atividade para as quais não esteja capacitado pessoal e tecnicamente

3 9,09% 3 15,79%

5-b

garantir a plena informação e discussão sobre as possibilidades e consequências das situações apresentadas, respeitando democraticamente as decisões dos usuários, mesmo que sejam contrárias aos valores e às crenças individuais dos profissionais resguardados os princípios deste Código

3 9,09% 3 15,79%

11-a

intervir na prestação de serviços que estejam sendo efetuados por outro profissional, salvo a pedido desse profissional; em caso de urgência, seguido da imediata comunicação ao profissional; ou quando se tratar de trabalho multiprofissional e a intervenção fizer parte da metodologia adotada

2 6,06% 1 5,26%

4-d

compactuar com o exercício ilegal da Profissão, inclusive nos casos de estagiários que exerçam atribuições específicas, em substituição aos profissionais

2 6,06% 2 10,53%

3-c

abster-se, no exercício da Profissão, de práticas que caracterizem a censura, o cerceamento da liberdade, o policiamento dos comportamentos, denunciando sua ocorrência aos órgãos competentes

2 6,06% 0 0,00%

5-a contribuir para a viabilização da participação efetiva da população usuária nas decisões institucionais

2 6,06% 1 5,26%

5-h esclarecer aos usuários, ao iniciar o trabalho, sobre os objetivos e a amplitude de sua atuação profissional

2 6,06% 0 0,00%

6-b aproveitar-se de situações decorrentes da relação assistente social - usuário, para obter vantagens pessoais ou para terceiros

2 6,06% 1 5,26%

6-c

bloquear o acesso dos usuários aos serviços oferecidos pelas instituições, através de atitudes que venham coagir e/ou desrespeitar aqueles que buscam o atendimento de seus direitos

2 6,06% 2 10,53%

4-i adulterar resultados e fazer declarações falaciosas sobre situações ou estudos de que tome conhecimento

2 6,06% 1 5,26%

8-d empenhar-se na viabilização dos direitos sociais dos usuários, através dos programas e políticas sociais

2 6,06% 1 5,26%

5-c

democratizar as informações e o acesso aos programas disponíveis no espaço institucional, como um dos mecanismos indispensáveis à participação dos usuários

1 3,03% 0 0,00%

10-f

ao realizar crítica pública a colega e outros profissionais, fazê-lo sempre de maneira objetiva, construtiva e comprovável, assumindo sua inteira responsabilidade.

1 3,03% 0 0,00%

Page 183: Tese Paula Bonfim (1)

172

5-g

contribuir para a criação de mecanismos que venham desburocratizar a relação com os usuários, no sentido de agilizar e melhorar os serviços prestados

1 3,03% 0 0,00%

22-b

não cumprir, no prazo estabelecido, determinação emanada do órgão ou autoridade dos Conselhos, em matéria destes, depois de regularmente notificado

1 3,03% 0 0,00%

16-

parágrafo

único

Em trabalho multidisciplinar só poderão ser prestadas informações dentro dos limites do estritamente necessário.

1 3,03% 0 0,00%

22-c deixar de pagar, regularmente, as anuidades e contribuições devidas ao Conselho Regional de Serviço Social a que esteja obrigado

1 3,03% 0 0,00%

9-c utilizar recursos institucionais (pessoal e/ou financeiro) para fins partidários, eleitorais e clientelistas

1 3,03% 0 0,00%

2-f aprimoramento profissional de forma contínua, colocando-o a serviço dos princípios deste Código

1 3,03% 0 0,00%

8-b

denunciar falhas nos regulamentos, normas e programas da instituição em que trabalha, quando os mesmos estiverem ferindo os princípios e diretrizes desse Código, mobilizando, inclusive, o Conselho Regional, caso se faça necessário

1 3,03% 0 0,00%

21-c informar, esclarecer e orientar os estudantes, na docência ou supervisão, quanto aos princípios e normas contidas neste Código

1 3,03% 0 0,00%

5-f

fornecer à população usuária, quando solicitado, informações concernentes ao trabalho desenvolvido pelo Serviço Social e as suas conclusões, resguardado o sigilo profissional

1 3,03% 0 0,00%

4-h pleitear para si ou para outrem emprego, cargo ou função que estejam sendo exercidos por colega

1 3,03% 1 5,26%

9-b usar ou permitir o tráfico de influência para obtenção de emprego, desrespeitando concurso ou processos seletivos

1 3,03 % 0 0,00 %

Fonte: Dados levantados junto ao CRESS 7ª Região no 2º semestre de 2011

Se observamos os dois artigos mais apontados como possivelmente violados – 11 b e 4

c – veremos que, nos dois casos, a procedência da denúncia equivale a menos da metade no

caso do artigo 11b (das 12 ocorrências apenas 4 foram procedentes) e metade no caso do

artigo 4 c (das 8 ocorrências, apenas 4 foram procedentes). Isto evidencia, em alguns casos, a

dificuldade de se provar as violações161.

Na análise qualitativa dos processos pudemos evidenciar, além de aspectos

considerados relevantes na verificação das denúncias, algumas dificuldades na condução do

processo ético e mesmo discordâncias de opinião entre os membros das três esferas

(Comissão Permanente de Ética, Comissão de Instrução e Conselho Pleno) responsáveis pela

161 Na análise qualitativa, podemos verificar tal situação nos processos D, J, e O.

Page 184: Tese Paula Bonfim (1)

173

apuração e julgamento das situações apresentadas162. Destacaremos algumas passagens que

indicam tais aspetos com o objetivo principal de demonstrar a complexidade deste processo.

Uma dos aspectos que aparece na análise das denúncias é o questionamento sobre as

conseqüências da ação profissional junto aos usuários, ou seja, o prejuízo causado aos

mesmos – em virtude da ação de um (a) assistente social – é considerado algo grave na

avaliação dos Conselheiros do CRESS, tendo como respaldo o Código de Ética que considera

violação grave os artigos 5º alíneas B e F e 6º A, B e C, todos referentes à relação dos

assistentes sociais com os usuários. Isto reflete o valor atribuído à qualidade dos serviços

prestados à população.

Vejamos algumas passagens onde isto pode ser verificado:

[...] A situação da transferência teve como agravante o fato de que a população atendida foi prejudicada. Concordam com a sugestão da Comissão de Instrução aplicando a pena de suspensão do exercício profissional por trinta dias. [...] (Trecho da Ata de Julgamento do Processo (A) pelo Conselho Pleno ao deliberar sobre as infrações dos artigos 4c, 10 a e 11b) [...] A mudança de penalidade no (que se refere ao) artigo 5 b tem como justificativa que o corpo de conselheiros entende que a assistente social denunciada viola a democracia e a decisão da usuária de que o referido documento iria prejudicá-la. [...]” (Trecho da Ata de Julgamento do Processo (K) pelo Conselho Pleno, onde o mesmo não acata a sugestão de penalidade da Comissão de Instrução, advertência reservada, aplicando a pena de advertência pública). [...] O fato se agrava na medida em que os trabalhos desenvolvidos foram prejudicados, atingindo a população atendida. (suspensão do exercício profissional por 60 dias). (Trecho da Ata de Julgamento do Processo (P) pelo Conselho Pleno, em justificativa à aplicação da penalidade de suspensão do exercício profissional em violação ao artigo 11b).

Este compromisso com o atendimento ao usuário pode ser verificado através do alto

número de ações procedentes onde constam situações que comprometem o atendimento

prestado à população, sendo que cinco delas referem-se à artigos considerados graves.

162 É importante esclarecer que é da competência do Conselho Pleno do CRESS o julgamento e a aplicação da pena. A Comissão de Instrução emite sua opinião sobre a situação em questão e sugere uma penalidade no caso de procedência da ação, podendo ser acatada (ou não) pelo Conselho Pleno.

Page 185: Tese Paula Bonfim (1)

174

Tabela 3 – Número de ocorrências referentes às relações com os usuários. Em destaque os

artigos considerados graves pelo Código de Ética Profissional

Artigo-

Alínea Conteúdo

Ocorrências

dos artigos

apontados

como

violados

% de

processos

analisados

com esta

ocorrência

Ocorrências

procedentes

% de

processos

procedentes

com esta

ocorrência

6-a exercer sua autoridade de maneira a limitar ou cercear o direito do usuário de participar e decidir livremente sobre seus interesses

5 15,15% 4 21,05%

4-f assumir responsabilidade por atividade para as quais não esteja capacitado pessoal e tecnicamente

3 9,09% 3 15,79%

5-b

garantir a plena informação e discussão sobre as possibilidades e consequências das situações apresentadas, respeitando democraticamente as decisões dos usuários, mesmo que sejam contrárias aos valores e às crenças individuais dos profissionais resguardados os princípios deste Código

3 9,09% 3 15,79%

5-a contribuir para a viabilização da participação efetiva da população usuária nas decisões institucionais

2 6,06% 1 5,26%

5-h esclarecer aos usuários, ao iniciar o trabalho, sobre os objetivos e a amplitude de sua atuação profissional

2 6,06% 0 0,00%

6-b aproveitar-se de situações decorrentes da relação assistente social - usuário, para obter vantagens pessoais ou para terceiros

2 6,06% 1 5,26%

6-c

bloquear o acesso dos usuários aos serviços oferecidos pelas instituições, através de atitudes que venham coagir e/ou desrespeitar aqueles que buscam o atendimento de seus direitos

2 6,06% 2 10,53%

8-d empenhar-se na viabilização dos direitos sociais dos usuários, através dos programas e políticas sociais

2 6,06% 1 5,26%

5-c

democratizar as informações e o acesso aos programas disponíveis no espaço institucional, como um dos mecanismos indispensáveis à participação dos usuários

1 3,03% 0 0,00%

5-g

contribuir para a criação de mecanismos que venham desburocratizar a relação com os usuários, no sentido de agilizar e melhorar os serviços prestados

1 3,03% 0 0,00%

5-f

fornecer à população usuária, quando solicitado, informações concernentes ao trabalho desenvolvido pelo Serviço Social e as suas conclusões, resguardado o sigilo profissional

1 3,03% 0 0,00%

Fonte: Dados levantados junto ao CRESS 7ª Região no 2º semestre de 2011

Outro elemento que também nos chamou à atenção foi a relação entre artigos

violados e penalidades aplicadas. Na Tabela 2 verificamos que os artigos mais violados são

Page 186: Tese Paula Bonfim (1)

175

justamente aqueles onde a infração ética é considerada grave163. No entanto, dentre as

penalidades aplicadas pelo Conselho, o maior percentual delas (47, 83%) é o da advertência

reservada, justamente aquela com potencial mais brando dentre todas as penas, conforme

artigo 24º do Código de Ética Profissional: a) multa; b) advertência reservada; c) advertência

pública; d) suspensão do exercício profissional; e) cassação do registro profissional. Vejamos

na Figura 7

Figura 7 - Penalidades aplicadas aos assistentes sociais condenados nos processos éticos

analisados pelo CRESS 7ª Região no período de 1993 a 2011

multa; 8,70%

advertência reservada; 47,83%

advertência pública; 21,74%

suspensão do exercício profissional; 21,74%

Fonte: Dados levantados junto ao CRESS 7ª Região no 2º semestre de 2011

Esta questão também foi abordada na reunião com a atual Comissão de Ética do

CRESS/7ª Região. Questionamos se não seria incoerente esta relação entre gravidade da

infração e a aplicação de penas brandas.

163 Art. 28° - Para efeito da fixação da pena, serão consideradas especialmente graves as violações que digam respeito às seguintes disposições: Art. 3 - alínea c/ Art. 4 - alíneas a, b, c, g, i, j / Art. 5 - alíneas b, f /Art. 6 - alíneas a, b, c /Art. 8 - alíneas b, e / Art. 9 - alíneas a, b, c /Art. 11 - alíneas b, c, d /Art. 13 - alíneas b / Art. 14 / Art. 16 /Art. 17 / Parágrafo Único do Art. 18 / Art. 19 - alínea b /Art. 20 - alíneas a, b /Parágrafo Único - As demais violações não previstas no caput, uma vez consideradas graves, autorizarão aplicação de penalidades mais severas, em conformidade com o Art. 26. (Código de Ética Profissional dos Assistentes Sociais/1993) (Código de Ética Profissional dos Assistentes Sociais/1993).

Page 187: Tese Paula Bonfim (1)

176

Esta questão também foi abordada na reunião com a atual Comissão de Ética do

CRESS/7ª Região. Questionamos se não seria incoerente esta relação entre gravidade da

infração e a aplicação de penas brandas.

As explicações dos membros desta Comissão, no que se refere à este dado, são de duas

ordens: primeiro, que as Gestões do CRESS/7ª Região têm levado em consideração aquilo

sugerido no art. 26 – “Serão considerados na aplicação das penas os antecedentes

profissionais do infrator e as circunstâncias em que ocorreu a infração” e, segundo, que as

mesmas têm tido uma preocupação maior com o caráter educativo das penas do que com o

aspecto punitivo das mesmas.

A partir do que sugere o artigo 26, afirmam que são avaliadas as tensões vividas pelos

assistentes sociais a partir da inserção dos mesmos na dinâmica institucional, nas relações de

poder e das características das políticas sociais. Assim, embora tais situações sejam

consideradas nas análises dos processos, isto não os leva a ignorar os casos onde se constatam

infrações éticas.

Nos processos analisados, podemos verificar as afirmações da Comissão Permanente

de Ética:

[...] decide-se atenuar a pena para advertência reservada com fundamento na proposta da conselheira afirmando que o código admite gradação de pena e que embora considere grave a violação praticada pelas recorrentes, acredita que o caráter educativo desta deve prevalecer nesta situação em face a inexistência de qualquer antecedente constatado em relação à conduta das recorrentes. [...] (Trecho da Ata de Julgamento do Processo (B)). [...] A Comissão de Instrução entende que a assistente social (denunciada) infringiu o art. 10 a (sendo sugerida a pena de suspensão do exercício profissional). Considerando seus antecedentes decidem por suspensão da pena (Trecho do Parecer da Comissão de Instrução no Processo Q164).

Outro dado da pesquisa é o fato de não se observar consenso, entre as três esferas que

analisam as denúncias, na opinião sobre os processos éticos. Na Figura 8 podemos constatar

isto:

164 Importante esclarecer que esta sugestão não foi acatada pelo Conselho Pleno no Julgamento.

Page 188: Tese Paula Bonfim (1)

177

Figura 8 - Percentual de discordância entre as três esferas responsáveis pela apuração e

julgamento dos processos éticos (concluídos) analisados pelo CRESS 7ª Região no período de

1993 a 2011.

Não houve discordância entre as três esferas

79%

Discordância referente a penalidade

12%

Discordância referente à violação

3%

Discordância referente à penalidade e à violação

6%

Fonte: Dados levantados junto ao CRESS 7ª Região no 2º semestre de 2011

No processo Q, por exemplo, no parecer da Comissão de Instrução já aparece uma

divergência de opiniões referente à procedência da infração de um dos artigos.

Não houve consenso sobre as ações da assistente social denunciada (que ocupava o cargo de chefia). Um membro da Comissão de Instrução entendeu que não houve infração do artigo 10A e nem do artigo 11B, pois [...] suas atitudes forma respaldadas em normas internas da Instituição [...]. A assistente social (denunciada), ao acatar a determinação da Presidência de instauração da sindicância, aderiu à causa da colega, no momento em que propiciou a oportunidade de serem esclarecidos os fatos, na busca da verdade. [...] Outros dois membros concordam que a denunciada não infringiu o artigo 11B. No entanto, faltou com solidariedade, por não tomar nenhuma iniciativa de cunho reservado para esclarecer a denunciante suas providências e as normas as quais estava atrelada. [...]

A falta de consenso entre as três esferas não é considerado aqui um problema. Este

dado nos sinaliza, sobretudo, a complexidade dos processos e a dificuldade, em alguns casos,

em comprovar as violações.

Page 189: Tese Paula Bonfim (1)

178

No que se refere aos Recursos apresentados aos CFESS, (12,12%), todos foram

negados, não havendo discordância deste Conselho com relação às decisões do CRESS 7ª

Região, demonstrando assim o compromisso deste último na apuração das denúncias éticas

Figura 9 - Percentual de recursos apresentados ao CFESS referentes aos processos éticos

(concluídos) analisados pelo CRESS 7ª Região no período de 1993 a 2011.

Sim ; 12,12%

Não; 87,88%

Fonte: Dados levantados junto ao CRESS 7ª Região no 2º semestre de 2011

A análise destes dados nos possibilitou desvelar alguns dos elementos que se colocam

como obstáculos para a efetivação do projeto ético-político profissional, são eles: a fragilidade

de conhecimentos teóricos, éticos, técnicos e políticos; a ausência de consciência crítica dos

processos sociais que possibilite uma revisão dos valores historicamente dominantes na

sociedade e, por fim, as condições objetivas da realidade social.

No entanto, é importante sinalizarmos que o reconhecimento destes obstáculos não

significa que os princípios defendidos pelo projeto profissional tenham um conteúdo abstrato,

ou melhor, não possam se realizar objetivamente. Se chegássemos a esta conclusão cairíamos

num determinismo absoluto, onde as escolhas livres não seriam possíveis.

No item a seguir, apontaremos para a importância de se construir as mediações

necessárias para compreender a relação contraditória entre necessidades e possibilidades, já

que é aí que se colocam as condições objetivas e subjetivas para a realização da ética.

Page 190: Tese Paula Bonfim (1)

179

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme nos ensina Marx, a investigação da realidade social é um processo dialético;

implica uma dinâmica de aproximação permanente e sucessiva ao objeto pesquisado. Este

movimento deve, portanto, possibilitar a apreensão da lógica constitutiva do objeto analisado

bem como dos nexos existentes entre as dimensões da singularidade, da particularidade e da

universalidade, dimensões próprias da dinâmica social.

A perspectiva da ontologia social marxiana, além de nos fornecer as categorias chaves

para desvelarmos os valores dominantes na profissão, os conflitos éticos presentes no

cotidiano profissional e refletirmos sobre a adesão consciente (ou não) dos assistentes sociais

aos valores e princípios expressos no Código de Ética Profissional, nos possibilitou

compreender que os conflitos de valor fazem parte do processo de desenvolvimento dos

homens, ou seja, mesmo considerando que este é um processo contraditório e desigual,

especialmente numa sociedade de classe, eles colocam as condições para uma avaliação e

questionamento permanente dos valores que obstaculizam o desenvolvimento das

potencialidades humanas.

Isto significa que na medida em que os homens vivenciam conscientemente estes

conflitos eles podem questionar e rever valores funcionais à sociabilidade burguesa.

Neste sentido, entendemos que chegou o momento de recuperarmos aquela fala

descrita na introdução – “O Código de Ética Profissional é como a Bíblia: todo mundo sabe

que deve seguir, mas ninguém segue” – e, ao mesmo tempo, os questionamentos gerados a

partir dela.

Qual o significado de se igualar o Código de Ética Profissional – um instrumento

normativo que expressa os valores e a direção social atribuída à profissão pelos assistentes

sociais – à Bíblia – documento considerado sagrado pelas religiões cristãs onde se encontram

valores e princípios necessários para o homem se tornar a imagem e semelhança de Deus – e

concluir que ambos são inviáveis diante da realidade atual?

Esta afirmação expressa uma confusão no que se refere à natureza dos valores e da

ética. Enquanto nas religiões as ações dos homens devem ser orientadas por valores

determinados por um ser superior, na ética profissional – fundamentada por uma perspectiva

ontológica – os valores e princípios são eleitos a partir das necessidades e possibilidades

Page 191: Tese Paula Bonfim (1)

180

colocadas pela dinâmica da realidade social. Nesta última perspectiva, o homem é

potencialmente autônomo e livre para fazer suas escolhas.

Assim, na medida em que o conjunto de assistentes sociais, através das suas entidades

representativas, elegem valores que visam a igualdade, a justiça, a democracia, o combate a

todas as formas de preconceito, a recusa do arbítrio e do autoritarismo e outros, estão

reconhecendo a relação existente entre necessidades sociais e possibilidades históricas para a

realização destes princípios. Ao mesmo tempo em que reconhece o potencial criador dos

homens, reconhece os limites colocados pela dinâmica capitalista, para a emancipação

humana.

Além de ser uma posição fatalista diante da realidade social, ela também apresenta um

entendimento dogmático do Código de Ética Profissional, como se as normas estabelecidas

nesta legislação não fossem resultado de questionamentos e escolhas dos próprios assistentes

sociais. Esta concepção dogmática do Código de Ética impede de entendê-lo como uma

construção histórica, passível de questionamentos e alterações.

Como bem sinaliza Netto (2006), o projeto profissional de uma categoria requer um

pacto entre seus membros na definição de seus componentes imperativos e indicativos.

Enquanto os primeiros referem-se a aspectos obrigatórios para todos os membros da

profissão, fruto de um consenso mínimo na categoria, os indicativos não apresentam este

consenso e, em função disto, continuam sendo discutidos na profissão, sem que seja

obrigatória a sua presença no cotidiano profissional.

No entanto, se analisarmos mais atentamente a afirmação acima, veremos que ela

expressa, em parte, as contradições da dinâmica social na qual estamos inseridos: ou seja, ao

mesmo tempo em que se observa o constante apelo a valores ligados à democracia, a

cidadania, à justiça social, à paz, à preservação do meio ambiente, ao respeito às diferenças, à

honestidade, etc, objetivamente o que predomina nas relações sociais brasileiras é a

desigualdade, o racismo, a destruição dos recursos naturais, a corrupção, entre outros.

A nossa investigação evidencia, no entanto, que os conflitos apontados acima não são

restritos à sala de aula. A pesquisa, além de nos permitir a identificação dos conflitos éticos e

valores presente no cotidiano profissional, possibilitou também compreender sua gênese e as

condições nas quais eles se reproduzem.

Embora reconheçamos todas as conquistas profissionais obtidas nestas três últimas

décadas, nos questionamos se estas possibilitaram a construção uma nova moralidade

profissional. A nossa investigação nos leva concluir que não.

Page 192: Tese Paula Bonfim (1)

181

Chegamos a esta constatação levando em conta tanto a dinâmica da sociedade

brasileira quanto os elementos que caracterizam a profissão. Considerando que os valores são

resultado da práxis social e, portanto, estão relacionados à dinâmica econômica, política,

social e cultural de uma determinada sociedade, as mudanças no universo valorativo estão

essencialmente relacionadas às transformações destas relações. Vimos, por exemplo, como as

condições objetivas colocadas pelo advento da modernidade possibilitam uma revolução tanto

na vida dos homens como no campo da moral.

No entanto, este é um processo dialético: sendo os valores momentos sínteses entre

possibilidades e necessidades históricas, podem estes ter um peso fundamental no

desdobramento de mudanças significativas de uma dada formação social.

Ao analisarmos o processo de formação moral do Brasil, expressão da dinâmica

econômica, política, social e cultural da gênese e desenvolvimento do país, constatamos que

os valores dominantes na atualidade foram gestados a partir das estruturas do período

colonial. Como as nossas revoluções foram feitas sempre “pelo alto” (nos termos de

Coutinho, 1990), ou melhor, não tivemos nenhum processo de mudança radical na história do

Brasil, os valores foram se reatualizando e tornando-se funcionais à nova dinâmica colocada

pelo capitalismo.

No Brasil, os valores gestados a partir das relações sociais escravistas foram sendo

mesclados aos princípios liberais, possibilitando uma transição ao capitalismo com a

permanência das estruturas de poder. Desta forma, esta conjunção de velhos e novos valores

possibilitou a legitimação de novas relações sociais.

Estas relações estão atravessadas de processos alienantes. Vimos que a alienação se

manifesta quando o trabalhador não se reconhece como parte da engrenagem que produz a

riqueza material e espiritual de uma sociedade. O homem também se aliena (estranha) em

relação ao produto de seu trabalho, em relação ao outro e em relação ao gênero. Isto pode ser

evidenciado na mercantilização de todos os espaços da vida social. Como bem afirmou Netto

(1981) a dinâmica do modo de produção capitalista subordina todas as atividades dos homens,

“produtivas” e “improdutivas” à sua lógica, sendo que a disciplina burocrática ultrapassa o

espaço da produção para regular a vida inteira de quase todos os homens, “do útero à cova”

(Netto, 1981, p. 82).

Estes processos contribuem para aprofundar valores necessários à reprodução deste

sistema – o individualismo exacerbado, a competitividade, o consumismo, a etc. – tornando o

homem cada vez menos autônomo, ou seja, cada vez menos livre.

Page 193: Tese Paula Bonfim (1)

182

Isto significa afirmar que não podemos dissociar a construção de uma nova moralidade

profissional das mudanças radicais na nossa sociedade, que permitam rever os valores até

então dominantes na cultura brasileira. Ou seja, o rompimento com o predomínio de valores e

ações conservadores no Serviço Social não se dá via um processo endógeno, mas depende

fundamentalmente de mudanças significativas no âmbito das relações sociais mais amplas.

Além de os assistentes sociais estarem submetidos a estes processos, ainda é preciso

considerar as particularidades de uma profissão como esta: as demandas sócio-históricas e

ídeo-políticas colocadas para a sua emergência, o tipo de respostas formuladas para atender a

estas demandas, a sua estrutura sincrética, o tipo de relações estabelecidas com a sociedade,

usuários e outros profissionais e por fim a imagem e a auto-imagem profissional.

Embora seja fato que o conservadorismo vem sendo fortemente combatido teórica e

politicamente, através de segmentos de vanguarda da categoria, não podemos esquecer que as

demandas profissionais possuem, cada vez mais, um caráter conservador, desafiando

cotidianamente os assistentes sociais à sua reconstrução crítica. Em tempo de acirramento da

“questão social”, do caráter seletivo e emergencial das políticas sociais, das precárias

condições e relações de trabalho, o que se evidencia é a tendência a intensificar as

contradições no âmbito institucional.

Na pesquisa que realizamos constatamos a presença de valores e práticas

conservadoras no cotidiano de trabalho dos assistentes sociais, sendo que, na maioria das

vezes, tais valores encontram-se naturalizados. O autoritarismo, por exemplo, aparece em

evidência nas relações profissionais, seja no trato com usuários, no relacionamento com

colegas de profissão ou mesmo na relação de subalternidade estabelecida com outros

profissionais.

Além disto, observamos a persistência tanto de elementos de uma moral cristã – como

orientação de valor para as ações profissionais – como uma imagem da profissão relacionada

à ajuda, ao cuidado, ao sacrifício, evidenciando, assim, a ausência de consciência das

contradições inerentes a esta profissão numa sociedade de classe (e da própria condição de

classe do assistente social).

Os conflitos profissionais, no entanto, são mais amplos. Constatamos o impacto da

subalternidade técnica e social dos assistentes sociais na relação com outros profissionais, ou

seja, esta falta de autonomia contribui, em grande medida, para as infrações éticas.

Outro elemento que se destaca na pesquisa é o frágil conhecimento dos assistentes

sociais sobre as atribuições e competências profissionais. Isto traz duas conseqüências para a

Page 194: Tese Paula Bonfim (1)

183

profissão: ao Serviço Social são atribuídas as mais variadas funções, desde atividades

desprofissionalizadas, até aquelas que fogem às competências profissionais. Este fato reforça

a subalternidade profissional, restringindo, cada vez mais, aos assistentes sociais a

participação nos espaços de planejamento, gestão e avaliação das políticas institucionais.

Também evidenciamos que na medida em que os assistentes não têm clara e total

consciência (em razão de todas as determinações já apontadas no decorrer da tese) dos

pressupostos teóricos, éticos e políticos do Serviço Social, estes não percebem as implicações

de seu fazer profissional.

Na medida em que os indivíduos adquirem consciência crítica, os conflitos valorativos

se intensificam, especialmente porque se percebe o conteúdo dos valores e a sua

funcionalidade nas relações de dominação. Ao mesmo tempo, as contradições postas pelas

relações sociais burguesas nem sempre possibilitam a realização dos valores, fruto desta nova

consciência.

Embora o processo de desenvolvimento de uma consciência crítica seja fundamental

para o questionamento das relações de dominação, este não é suficiente para a transformação

radical da realidade.

Isto significa que superar a consciência alienada, e com isto firmar o compromisso

com valores emancipatórios (ainda que referente à emancipação política), é um processo

complexo e permanente, especialmente porque estamos subordinados à dinâmica das relações

sociais burguesas e, com isto, inseridos em processos alienantes. O resultado disto é a

reprodução de valores que contribuem para a manutenção destas relações.

Esta superação depende, fundamentalmente, das formas como os indivíduos se

defrontam com os conflitos gerados pelas relações sociais burguesas e das estratégias

adotadas no enfrentamento destes. As alternativas podem apontar para as lutas coletivas ou

para as saídas individualistas, burocráticas ou de conformismo com as situações apresentadas.

Embora o conhecimento dos fundamentos teóricos, políticos, técnicos e éticos da

profissão e a adesão consciente aos valores defendidos no projeto ético-político sejam

imprescindíveis para uma intervenção crítica, esta depende também das condições objetivas

apresentadas pela realidade social.

A partir destas reflexões reafirmamos a tese de que a introjeção dos valores

dominantes da moral brasileira, o peso das relações sociais reificadas e as demandas

colocadas à profissão, reatualizam valores e práticas conservadoras no cotidiano do trabalho

dos assistentes sociais, tensionado o projeto ético-político da categoria.

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184

Importante salientar, no entanto, que estas constatações não negam a possibilidade de

materialização dos princípios presentes no projeto profissional, ou seja, embora estejam

inseridos numa dinâmica contraditória e processual, são reais as condições para a sua

realização. Neste sentido, afirma Brittes (2011) “[...] podemos considerar que as orientações

de valor do projeto ético-político do Serviço Social possuem uma efetividade real – histórica

– e sua realização depende, ao mesmo tempo, do modo como os agentes profissionais se

apropriam de tais valores [...] e da processualidade histórica que favorece a sua realização”

(p.54).

Esta reflexão é necessária para lembrarmos que as escolhas éticas só são possíveis a

partir da relação dialética entre necessidade e liberdade. Se não entendermos esta relação,

corremos risco de cair nas armadilhas do fatalismo, do messianismo ou mesmo no moralismo

abstrato.

Mesmo compreendendo que não existe uma nova moralidade profissional, é possível

afirmar que existem novos valores na profissão, mesmo que estes não sejam dominantes.

Além destas reflexões, a pesquisa nos possibilitou observar a importância de se

identificar os conflitos éticos no cotidiano profissional, seja pelos próprios assistentes sociais,

através de outros profissionais, mas, especialmente, pelos usuários dos serviços sociais. Isto

significa que esta população, em alguma medida, vem tomando conhecimento sobre a

profissão, assim como tem observado as implicações éticas deste fazer profissional. Isto

significa que observa-se um movimento no sentido de desnaturalizar práticas autoritárias,

preconceituosas, opressoras, desrespeitosas, etc. Assim, entendemos que este é um aspecto

que merece atenção para futuras pesquisas.

Observamos também a existência de um número reduzido de pesquisas que tem como

objeto o exercício profissional, incluindo aí a dimensão ética. Na área da assistência social,

por exemplo, um dos maiores campos de atuação dos assistentes sociais na atualidade, não

encontramos publicações que discutissem a particularidade do exercício profissional nesta

área.

No que se refere os processos éticos, enquanto fonte documental de pesquisa,

constatamos que estes contém uma riqueza de informações que nos ajuda a refletir tanto sobre

os conflitos éticos presente no cotidiano profissional, quanto os aspectos da dinâmica

institucional, as demandas colocadas à profissão, as relações estabelecidas entre assistentes

sociais e usuários e outros profissionais, as atividades atribuídas e/ou desenvolvidas pelos

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assistentes sociais, o papel do Serviço Social na instituição, assim como a auto-imagem e a

imagem atribuída à profissão.

Neste sentido, coloca-se a necessidade de se ampliar o acesso a estes dados, no intuito

de aprofundamos o conhecimento sobre as questões pertinentes ao Serviço Social.

Esperamos que as considerações realizadas a partir deste estudo sirvam como fonte

para novas investigações, possibilitando o aprofundamento cada vez maior do estudo da ética

e da profissão.

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