Tese Paula Bonfim (1)

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ética e serviço social

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

    PAULA BONFIM GUIMARES CABRAL

    CONSERVADORISMO MORAL E SERVIO SOCIAL: A particularidade da formao moral brasileira e a sua influncia no cotidiano de

    trabalho dos assistentes sociais.

    Orientadora: Prof. Dra. Yolanda Guerra

    RIO DE JANEIRO

    2012

  • II

    Paula Bonfim Guimares Cabral

    CONSERVADORISMO MORAL E SERVIO SOCIAL: A particularidade da formao moral brasileira e a sua influncia no cotidiano de trabalho dos

    assistentes sociais.

    Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-graduao em Servio Social, Escola de Servio Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como exigncia parcial para a obteno do ttulo de Doutora em Servio Social.

    Orientadora: Prof. Dra. Yolanda Guerra

    RIO DE JANEIRO

    2012

  • III

    Paula Bonfim Guimares Cabral

    CONSERVADORISMO MORAL E SERVIO SOCIAL: A particularidade da formao moral brasileira e a sua influncia no cotidiano de trabalho dos

    assistentes sociais.

    Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-graduao em Servio Social, Escola de Servio Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como exigncia parcial para a obteno do ttulo de Doutora em Servio Social.

    Aprovada em: 20 de maro de 2012

    ________________________________________

    Prof. Yolanda Aparecida Demtrio Guerra, Dra. , UFRJ

    _______________________________________________

    Prof. Mauro Iasi, Dr., UFRJ

    _______________________________________________

    Prof. Valria Forti, Dra., UERJ/Rio de Janeiro

    _______________________________________________

    Prof. Maurlio Castro de Matos, Dr., UERJ/Rio de Janeiro

    _______________________________________________

    Prof. Cristina Maria Brites, Dra., UFF/Rio das Ostras

  • IV

    Ruy Gesteira (in memorian) por me incentivar neste processo de aprendizagem e por me ensinar que a vida s vale a pena com lutas por um mundo melhor e afeto.

  • V

    AGRADECIMENTOS

    Ao finalizarmos esta tese conseguimos perceber, de maneira mais clara, que o processo de conhecimento se d a partir tanto de condies objetivas quanto subjetivas. Neste processo esto presentes as nossas escolhas, nosso interesse pelo tema pesquisado, a nossa dedicao pesquisa, assim como as possibilidades concretas para o desenvolvimento da mesma. Alm disto, so fundamentais as relaes que estabelecemos neste caminho e que nos possibilitam uma troca permanente de conhecimento e afeto.

    Neste sentido necessrio recuperamos um pouco deste processo para agradecermos queles que foram fundamentais nesta empreitada.

    2001 foi o ano que eu e Marcelo chegamos ao Rio de Janeiro como enorme desejo de expandir nossos conhecimentos. E foi tambm neste mesmo ano que fui convidada pela professora Yolanda Guerra a participar do Ncleo de Estudos e Pesquisa dos Fundamentos do Servio Social na Contemporaneidade (NEFSSC). A insero neste ncleo de pesquisa foi fundamental para despertar em mim o interesse pelos fundamentos do Servio social e determinante no meu aprendizado.

    Os vnculos com este grupo foram produtivos e duradouros. Nestes onze anos, com algumas idas e vindas, pude aprofundar os conhecimentos sobre a profisso e construir relaes afetivas fundamentais para o meu desenvolvimento pessoal.

    Neste sentido, quero agradecer imensamente minha orientadora professora Dra Yolanda Guerra, pela oportunidade de participar deste grupo, mas tambm pelo carinho, estmulo e incentivo constante, pelo compromisso e dedicao nas orientaes e pela amizade que construmos ao longo destes anos.

    Aos professores da ps-graduao da Escola de Servio/UFRJ pelos ensinamentos e apoio sempre.

    s professoras Dra Cristina Maria Brites e Dra Valria Forti e ao professor Dr. Mauro Iasi pelas contribuies feitas nas qualificaes realizadas durante o doutorado.

  • VI

    Aos colegas do Ncleo de Estudos e Pesquisas sobre os Fundamentos do Servio Social na Contemporaneidade (NEFSSC) pela oportunidade de realizar reflexes importantes que tanto contriburam na compreenso do meu objeto de estudo.

    atual gesto do CRESS 7 Regio, Trabalho e Direitos: a luta no para" (2011/2014), Comisso Permanente de tica e aos funcionrios deste conselho, por todo o apoio no desenvolvimento da pesquisa documental. O meu agradecimento especial Charles Toniolo de Sousa, Michele Pontes da Costa, Elizabeth Souza de Oliveira, Edenilza Silva Cesrio, Leandro Rocha da Silva, Joslia Ferreira dos Reis e Edilson Moreira dos Santos.

    Marcelo, por dividir comigo a dureza e as alegrias desta longa caminhada, pelo amor, amizade, pacincia e compreenso durante todo este perodo e em especial na fase final deste trabalho.

    minha famlia lado de c, meus pais, Carmelita e Raimundo e Tel, por me ensinarem o valor do conhecimento e pelo empenho para que eu trilhasse livremente o meu caminho. Obrigada por respeitar as minhas escolhas, pelo amor, carinho e apoio sempre.

    minha famlia do lado de l, Marta, Marcelo (pai) pelo carinho e apoio, em especial, a Lcia, Ruy (in memoriam) e Mrio pela feliz presena nestes anos.

    s minhas irms (de corao) Elizngela e Janana, amigas de todas s horas, pelo amor, carinho e apoio mesmo distncia.

    minha grande famlia carioca, Flavio, Mirella, Gustavo e Bete, pelo afeto, carinho, respeito e cuidado compartilhado todos esses anos.

    Aos meus amigos amados Cntia, Sheila, Lirge, Tom, Vel, Joana, Selma, Javier, Mariela, Solange, Flavinha, Silvana e tantos outros, sujeitos importantssimos neste processo de amadurecimento profissional e pessoal. Obrigada pelos momentos de lazer, diverso, estmulo e carinho.

    Capes, pela bolsa concedida durante o doutoramento.

  • VII

    Neguinho no l, neguinho no v, no cr, pra qu

    Neguinho nem quer saber O que afinal define a vida de neguinho

    Neguinho compra o jornal, neguinho fura o sinal Nem bem nem mal, prazer Votou, chorou, gozou: o que importa, neguinho?

    Rei, rei, neguinho rei

    Sim, sei: neguinho Rei, rei, neguinho rei

    Sei no, neguinho

    Se o nego acha que difcil, fcil, tocar bem esse pas S pensa em se dar bem - neguinho tambm se acha Neguinho compra 3 TVs de plasma, um carro, um GPS e acha que feliz Neguinho tambm s quer saber de filme em shopping

    [...]

    Neguinho vai pra Europa, States, Disney e volta cheio de si Neguinho cata lixo no Jardim Gramacho Neguinho quer justia e harmonia para se possvel todo mundo Mas a neurose de neguinho vem e estraga tudo

    Nego abre banco, igreja, sauna, escola Nego abre os braos e a voz Talvez seja sua vez: Neguinho que eu falo ns

    Caetano Veloso

  • VIII

    RESUMO

    CABRAL, Paula Bonfim Guimares. Conservadorismo moral e Servio Social: a particularidade da formao moral brasileira e a sua influncia no cotidiano de trabalho dos assistentes sociais. Tese (Doutorado em Servio Social) Escola de Servio Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.

    Estudo de natureza qualitativa e quantitativa sobre as tenses atuais em torno da materializao do projeto tico-poltico dos assistentes sociais. Parte-se da anlise sobre a gnese e reproduo dos valores para compreender o processo de formao moral do Brasil a partir das determinaes econmicas, polticas, sociais e culturais e sua influncia na profisso. Alm destes aspectos, aborda-se a discusso sobre os processos de reificao das relaes sociais e os impactos da atual conjuntura brasileira na dinmica profissional.

    Atravs de anlises bibliogrficas e de uma pesquisa documental junto aos processos ticos analisados pelo CRESS 7 regio, procura-se desvelar os conflitos ticos presentes no exerccio profissional, considerando alm dos valores dominantes na sociedade brasileira, as demandas scio-histricas e deo-polticas colocadas ao Servio Social, o tipo de respostas formuladas para atender a estas demandas, a estrutura sincrtica da profisso, a imagem e a auto-imagem profissional.

    Palavras chaves: tica, alienao, moral brasileira, Servio Social.

  • IX

    NDICE:

    AGRADECIMENTOS .............................................................................................................. V

    RESUMO .............................................................................................................................. VIII

    LISTA DE FIGURAS ............................................................................................................... X

    LISTA DE TABELAS ............................................................................................................. XI

    INTRODUO .......................................................................................................................... 1

    CAPTULO 1 GNESE E DESENVOLVIMENTO DO SER SOCIAL ............................... 9

    1.1 O PROCESSO DE REPRODUO SOCIAL E A CRIAO DE VALORES .... 16

    1.2 OS VALORES NA SOCIEDADE DE CLASSES ................................................... 27

    1.3 DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA E REIFICAO DAS RELAES

    SOCIAIS ............................................................................................................................... 43

    CAPTULO 2 A CONSTITUIO DA MORAL BRASILEIRA ....................................... 53

    2.1 A PARTICULARIDADE NO TRATO QUESTO SOCIAL NO BRASIL ... 89

    CAPTULO 3 SERVIO SOCIAL e ETHOS PROFISSIONAL ......................................... 98

    3.1 A TICA COMO MEDIAO NO EXERCCIO PROFISSIONAL ..................... 99

    3.2 PRESSUPOSTOS TERICOS, TICOS E POLTICOS DO SERVIO SOCIAL ...

    ................................................................................................................................ 104

    3.3 POSSVEL AFIRMAR A EXISTNCIA DE UMA NOVA MORALIDADE

    PROFISSIONAL? .............................................................................................................. 127

    3.4 TICA E MORALIDADE NO COTIDIANO PROFISSIONAL .......................... 133

    3.4.1 OUTRAS CONSIDERAES SOBRE OS PROCESSOS TICOS. ........... 169

    CONSIDERAES FINAIS ................................................................................................. 179

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ................................................................................... 186

  • X

    LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 - Denncias ticas feitas ao CRESS 7 Regio no perodo de 1993 a 2011 ............ 137

    Figura 2 - rea dos processos ticos (concludos) do CRESS 7 Regio no perodo de 1993 a

    2011 ........................................................................................................................................ 139

    Figura 3 - Perfil dos denunciados nos processos ticos (concludos) analisados no CRESS 7

    Regio no perodo de 1993 a 2011 ......................................................................................... 147

    Figura 4 - Perfil dos denunciantes dos processos ticos (concludos) analisados pelo CRESS

    7 Regio no perodo de 1993 a 2011 ..................................................................................... 156

    Figura 5 - Natureza das instituies dos processos ticos (concludos) analisados pelo CRESS

    7 Regio no perodo de 1993 a 2011 ..................................................................................... 167

    Figura 6 - Resultado final do julgamento dos processos ticos analisados pelo CRESS 7

    Regio no perodo de 1993 a 2011 ......................................................................................... 170

    Figura 7 - Penalidades aplicadas aos assistentes sociais condenados nos processos ticos

    analisados pelo CRESS 7 Regio no perodo de 1993 a 2011 .............................................. 175

    Figura 8 - Percentual de discordncia entre as trs esferas responsveis pela apurao e

    julgamento dos processos ticos (concludos) analisados pelo CRESS 7 Regio no perodo de

    1993 a 2011. ........................................................................................................................... 177

    Figura 9 - Percentual de recursos apresentados ao CFESS referentes aos processos ticos

    (concludos) analisados pelo CRESS 7 Regio no perodo de 1993 a 2011. ........................ 178

  • XI

    LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 Artigos mais violados nos processos ticos (concludos) analisados pelo CRESS 7

    regio no perodo de 1993 a 2011...........................................................................................146

    Tabela 2 Nmero de ocorrncias dos artigos do Cdigo de tica Profissional apontados nos

    processos como (possivelmente) violados e a ocorrncias das violaes procedentes. Em

    destaque os artigos considerados graves pelo Cdigo de tica Profissional..........................170

    Tabela 3 Nmero de ocorrncias referentes s relaes com os usurios. Em destaque os

    artigos considerados graves pelo Cdigo de tica Profissional..............................................174

  • 1

    INTRODUO

    O interesse em investigar as questes em torno da tica profissional se inicia a partir da nossa experincia como docente. Embora os conflitos ticos possam ser evidenciados nos mais diferentes espaos profissionais, foi no mbito da formao que nos deparamos com eles de forma mais explcita. As reflexes sobre os fundamentos da tica e a sua particularidade no mbito profissional, geravam discusses quentes em sala de aula, especialmente quando se tratava de assuntos como aborto, violncia, drogas, mas tambm quando se problematizava as demandas e as relaes institucionais.

    Embora sempre muito fecundos, estes debates revelavam, ao mesmo tempo, o interesse dos alunos pelo tema, mas, especialmente, os conflitos de valores que alguns assuntos despertavam.

    No entanto, duas situaes vivenciadas no espao de formao me estimularam a aprofundar os estudos sobre valores e os conflitos presentes no cotidiano profissional. Na primeira situao, uma aluna (da disciplina de tica) me fez a seguinte afirmao: Professora, a verdade que o Cdigo de tica como a Bblia: todos sabem que deve seguir, mas ningum segue.

    Mesmo considerando o processo de aprendizagem da referida aluna, entendi que esta afirmao expressava mais que falta de conhecimento. Naquele momento, percebi que esta comparao poderia estar relacionada com as contradies em torno da defesa de valores abstratos e com uma tendncia histrica na profisso: o fatalismo. Alm disto, expressa tambm uma compreenso dogmtica do Cdigo de tica, j que este tratado como uma normatizao de carter imperativo, desvinculada dos fundamentos da profisso e da dinmica da realidade social. Compreendi, no entanto, que no seria possvel explicar conflitos como este somente a partir destes elementos.

    A outra situao que tambm me causou inquietude foi o fato de ter sido aconselhada por uma colega de profisso (professora) para que eu no manifestasse em sala de aula minha condio de atia; segundo ela, isto poderia me trazer problemas. Neste caso, o atesmo aparecia como algo imoral.

    Ambas as circunstncias demonstravam tenses em torno da adeso aos valores preconizados pelo Cdigo de tica dos Assistentes sociais. Estes exemplos, alm de nos instigarem a aprofundar as reflexes sobre os fundamentos ontolgicos da moral e da tica,

  • 2

    colocava a necessidade de apreendermos os valores dominantes na sociedade brasileira, j que impossvel refletirmos sobre as aes profissionais, sem estabelecermos tais mediaes.

    Mesmo constatando o crescente debate em torno da reflexo da tica, fato que esta ainda uma discusso incipiente na profisso. Os primrdios deste debate no Servio Social podem ser verificados na dcada de 80.1 Esta discusso ganhou densidade nos anos 90, podendo ser percebida tanto nas produes acadmicas quanto nos encontros e debates da categoria, possibilitando a reviso do Cdigo de tica de 1986 e a aprovao do Cdigo de tica de 1993.

    A tica profissional passou a ser discutida a partir da concepo marxista da ontologia do ser social, o que levou interpretao e distino entre a tica e moral. Este referencial terico nos permite entender a formao moral de uma sociedade e as possibilidades de realizao da tica, a partir da dinmica das relaes sociais que se estabelece em torno da produo da vida material dos homens, tendo o trabalho como elemento central. A moral origina-se do movimento objetivo de satisfao das necessidades colocadas ao homem em determinado contexto scio-histrico; ao satisfaz-las, o homem cria novas necessidades e, neste processo, vai atribuindo valor s coisas e estabelecendo princpios, regras, normas para a convivncia social.

    Observa-se, portanto, no interior da profisso, o reconhecimento da moral enquanto uma construo histrica, associada dinmica objetiva da vida dos homens, e, por isto, de uma natureza mutvel.

    As reflexes profissionais tambm atriburam um novo significado tica. Esta passa a ser entendida a partir da relao entre necessidade e liberdade, sendo esta ltima o princpio fundamental do agir tico. A liberdade entendida como capacidade de fazer escolhas conscientes diante de alternativas socialmente construdas e historicamente determinadas.

    1 Na dcada de 80 podemos observar avanos significativos no que tange aos referenciais marxistas no interior

    da profisso. A perspectiva terica marxiana aparece, por exemplo, nas produes de Jos Paulo Netto e em algumas obras de cientistas sociais que tiveram uma interlocuo importante com o Servio Social, tais como: Carlos Nelson Coutinho, Srgio Lessa, Ricardo Antunes e Ivo Tonet. Esta aproximao possibilitou uma reflexo sobre a moral e a tica luz deste referencial, resultando na aprovao do Cdigo de tica de 1986. Este Cdigo um marco na histria do servio social por ser a primeira normatizao tica da categoria que rompe com a tica tradicional. Nele, podemos observar claramente alguns dos pressupostos terico-metodolgicos marxiano, por exemplo: a concepo materialista da histria, o reconhecimento da luta de classes e a ausncia de neutralidade profissional. No entanto, este cdigo apresenta algumas fragilidades: uma concepo de tica mecanicista, pois vincula mecanicamente o compromisso profissional com a classe trabalhadora. Neste, tambm no se observa as bases ontolgicas da tica (cf. Barroso, 2001).

  • 3

    Estas escolhas, entretanto, no so aleatrias, mas esto amparadas pelo critrio do valor; valores que so escolhidos porque enriquecem e potencializam o homem enquanto ser genrico. O conceito de liberdade, portanto, no um conceito abstrato. liberdade de algo e para algo; objetivamente posta e em constante movimento de vir a ser (Barroco, 2001).

    A ontologia marxiana alm de possibilitar a distino entre moral e tica, aponta para a relao entre estas: a moral, juntamente com a arte e com a esttica uma forma de objetivao da capacidade tica do ser social. [] quando o indivduo, atravs da moral, eleva-se ao humano-genrico e coloca-se como representante do gnero humano para si, ento ele est agindo como sujeito tico, como particularidade, individualidade livre (p.64).

    O Cdigo de tica de 1993 expressa os avanos desta reflexo no Servio Social e o compromisso profissional com um projeto societrio amplamente democrtico, empenhado em combater todas as formas de explorao, de dominao, de autoritarismo, de discriminao. Alm destes princpios, destacamos a nfase na defesa da cidadania, da igualdade, da liberdade e da justia social, mesmo compreendendo os limites destes no mbito da sociabilidade burguesa.

    A conquista profissional obtida com este Cdigo no deve ser, portanto, superdimensionada. s lembrarmos que a normatizao, que se objetiva no Cdigo de tica de uma profisso, somente uma das dimenses da tica profissional.2

    No devemos esquecer as outras duas: a dimenso filosfica e o ethos profissional (Barroco, 2001). No que se refere dimenso filosfica podemos afirmar que os avanos no interior da profisso so evidentes. A discusso sobre os fundamentos ontolgicos da tica ganhou um papel de destaque na Proposta de Diretrizes Gerais para o Curso de Servio Social de 1996, a partir da qual se considera que tal discusso deve ser transversal a toda formao profissional dos assistentes sociais. As pesquisas e as publicaes em torno do tema tambm tm crescido e tido visibilidade dentro e fora da profisso.3 Alm disto, a iniciativa do

    2 Estamos entendendo que esta legislao no possui um contedo formal/idealista, mas reconhecemos o seu

    contedo dialtico que contm uma noo do homem enquanto sujeito histrico, o reconhecimento de uma sociedade de classe que gera desigualdades e a defesa de um projeto societrio que visa a emancipao humana. 3 Um exemplo disto o resultado da pesquisa documental realizada por Maria Ozanira da Silva e Silva nos 99

    nmeros da revista Servio Social & Sociedade que foram publicadas nas trs dcadas (1979 2009). No que se refere ao tema tica/tica profissional, no perodo de 1990 a 1999 foram publicados 10 artigos. J no perodo 2000 a 2009 as publicaes referentes a esta temtica se deram da seguinte forma: Projeto profissional/Projeto tico-poltico Profissional: 13 artigos e tica e Biotica 14 artigos A autora ressalta que houve uma mudana no que se refere classificao por tema de uma dcada para outra (Silva, 2009).

  • 4

    conjunto CFESS/CRESS ao promover, desde 2000, o curso tica em Movimento tem contribudo fundamentalmente para o aprofundamento desta discusso no interior da categoria.

    No entanto, no que se refere ao modo de ser profissional (ethos), as questes so mais complexas. A nosso ver, nesta dimenso que se encontram os maiores conflitos e contradies da profisso. necessrio considerarmos, por exemplo, questes como: as demandas scio-histricas e deo-polticas colocadas para a emergncia do Servio Social; os valores adquiridos pelos agentes profissionais durante a socializao primria e que esto, na sua grande maioria, em sintonia com a moral dominante da sociedade brasileira; a atual conjuntura econmica, poltica e social do Brasil e as novas demandas colocadas aos profissionais e formao profissional.

    Neste sentido, coloca-se a necessidade de entendermos as mediaes que constituem tanto os indivduos na sua particularidade como a formao social brasileira.4 A partir destes fundamentos, entendemos a necessidade de buscarmos na formao social do Brasil as bases do desenvolvimento e de permanncia de determinados valores. Para isto foi fundamental nos remetermos ao processo de colonizao, das misturas das raas, da escravido, do desenvolvimento capitalista, dos processos de revolues pelo alto (Coutinho, 2007) que marcaram a histria do nosso pas para entendermos a existncia de alguns valores que atravessam a nossa cultura.

    Ao recorrermos s anlises sobre a formao econmica, poltica, social e cultural da sociedade brasileira pudemos identificar a presena de uma moralidade conservadora que se expressa, entre outras aes, atravs da predominncia de relaes autoritrias, tanto no que se refere relao entre Estado e sociedade, quanto nas nossas relaes cotidianas, dentre elas, as profissionais; na estreita relao entre o pblico e o privado e na naturalizao, criminalizao e moralizao da questo social.

    Esta reflexo nos possibilitou entender como valores relacionados escravido, ao autoritarismo das elites, ao nepotismo, ao clientelismo, fazem parte da nossa moral, mesmo, como afirma Chaui (2006), que o povo brasileiro tenha outra ideia de si e da sociedade. Estes valores atravessaram a histria e permanecem no nosso cotidiano chocando-se, muitas vezes,

    4 Nos momentos em que nos referimos formao social brasileira estamos considerando s dimenses

    econmica, poltica, social e cultural do pas.

  • 5

    com os princpios Constitucionais, da democracia e da cidadania, evidenciando de forma clara a tenso entre valores particulares e valores genricos.

    Alm disto, o assistente social no passa ileso aos processos de reificao das relaes sociais. A cultura dominante atual, onde se observa o predomnio da lgica individualista, pragmticas, consumistas, de valorizao do Ter em relao ao Ser, do culto eterna juventude, etc, tambm influencia, em maior ou menor medida, os assistentes sociais, tensionando, cada vez mais, as escolhas profissionais entre valores mais particulares ou mais genricos.

    Alm de refletirmos sobre os elementos da nossa formao e sobre os processos de reificao das relaes sociais, precisamos considerar, tambm, a conjuntura atual que tensiona ainda mais a viabilizao dos preceitos ticos profissionais. As demandas colocadas ao exerccio profissional dos assistentes sociais se tornam, cada vez mais, complexas, principalmente na conjuntura atual, de acirramento da questo social que atinge duplamente este profissional: atravs da precarizao das condies e relaes de vida e trabalho dos usurios do Servio Social e tambm a precarizao das condies de vida do assistente social como trabalhador. Esta conjuntura acaba limitando ainda mais a autonomia tica dos assistentes sociais.

    Esta reflexo imprescindvel para compreendermos as tenses em torno dos princpios que orientam as aes dos assistentes sociais na atualidade. Embora reconheamos a importncia dos avanos, no que se refere ao questionamento do conservadorismo no interior da profisso, no podemos desconsiderar que, nem sempre, a formao universitria5 possibilita rever, nas razes, os valores conservadores que adquirimos no processo de socializao e que, muitas vezes, vo de encontro aos princpios defendidos no Cdigo de tica de 1993.

    Neste sentido, temos a tese de que a particularidade da nossa formao social, com sua tendncia ao conservadorismo moral, e o peso das relaes sociais reificadas, reatualizam prticas conservadoras no cotidiano de trabalho dos assistentes sociais, tensionado o projeto tico-poltico da categoria. Os profissionais de Servio Social trazem consigo valores da nossa formao scio-histrica e que, muitas vezes, vo de encontro aos princpios ticos

    5 Embora o novo projeto de formao tenha por objetivo a formao de um profissional crtico, no devemos

    esquecer que a universidade tambm se constitui num espao contraditrio, de disputa de interesses de classe.

  • 6

    norteadores da profisso. Alm da peculiaridade da nossa formao, a sociabilidade do capital repe e aprofunda valores que se confrontam com o projeto profissional dos assistentes sociais.

    Esta reflexo se faz importante para no cairmos no equvoco de analisar a dimenso tica da profisso de forma dicotomizada, e des-historicizada. necessrio entendermos que a reflexo tica o caminho para podermos avaliar constantemente nossas aes, nossos preconceitos, nossos compromissos, nossas relaes com usurios e profissionais.

    Visando uma aproximao cada vez maior com o nosso objeto de estudo recorremos a uma ampla produo bibliogrfica que nos forneceu subsdios para discutirmos o processo de emergncia e de reproduo dos valores, numa perspectiva ontolgica, e a particularidade destes na sociedade brasileira. Outra fonte imprescindvel foi a produo terica do Servio Social, especialmente quelas referentes aos fundamentos da profisso.

    Embora reconhecendo a importncia destas produes para o nosso estudo, tnhamos decidido, no decorrer do processo de investigao, realizar uma pesquisa emprica junto aos assistentes sociais da Secretaria Municipal de Assistncia social do Rio de Janeiro com o objetivo principal de analisar os valores presentes no cotidiano profissional. Esta proposta foi apresentada no momento de qualificao do projeto, sendo avaliada positivamente pela maioria da banca. No entanto, dois obstculos, articulados entre si, nos fizeram desistir desta proposta, formam eles: a dificuldade de acesso aos profissionais desta Secretaria e o pouco tempo que nos restava para concluir a pesquisa (aproximadamente um ano).

    Embora desistindo desta proposta inicial, continuvamos acreditando na importncia de investigarmos a dinmica do cotidiano profissional mais de perto. Assim, optamos por realizar uma pesquisa documental junto aos processos ticos6 instaurados no Conselho Regional de Servio Social/7 Regio, no perodo de 1993 a 20117, no intuito de investigarmos tanto os valores quanto os conflitos ticos no mbito profissional.

    Percebemos que os Processos ticos poderiam conter informaes importantes sobre os conflitos em torno das escolhas ticas, a opo dos assistentes sociais por diferentes projetos profissionais e societrios, assim como os valores dos diversos sujeitos envolvidos: assistentes sociais denunciados, denunciantes, advogados das partes, testemunhas, inclusive

    6 Somente aqueles que j foram concludos.

    7 Este recorte temporal est relacionado ao perodo entre a aprovao do atual cdigo de tica, 1993, e a sua

    vigncia at os dias atuais.

  • 7

    dos membros do Conselho que so responsveis pela apurao da denncia, instaurao do processo tico, julgamento e aplicao de penalidade.

    O projeto de pesquisa foi apresentado direo deste Conselho, sendo negado num primeiro momento em virtude do contedo sigiloso destes processos.

    No entanto, aps uma consulta ao CFESS, o CRESS/7 Regio autorizou o acesso aos processos com a condio de nos comprometermos formalmente (com assinatura de um documento) a cumprir algumas exigncias, dentre elas: 1) os processos ticos s poderiam ser analisados nas dependncias do CRESS e na presena de pelo menos um dos membros da Comisso Permanente de tica; 2) a obrigao de guardar, em toda a sua extenso, o sigilo das informaes coletadas e 3) a apresentao prvia dos procedimentos efetuados e dos resultados obtidos ao CRESS/7 Regio.

    Aps cumprir todas as exigncias passamos a etapa de coleta de dados que, em virtude dos procedimentos a serem cumpridos, foi realizada em aproximadamente trs meses.

    No decorrer do levantamento dos dados sentimos a necessidade de discutirmos com a Comisso Permanente de tica sobre questes pertinente dinmica dos processos e sobre os dados parciais da pesquisa. Este encontro foi bastante produtivo, sendo que parte das discusses realizadas neste, foram incorporadas nossa anlise.

    Tanto na pesquisa quantitativa quanto na qualitativa procuramos saber em que medida as infraes, possivelmente8 cometidas, esto relacionadas influncia dos valores dominantes na sociedade brasileira, s demandas conservadoras e autoritrias colocadas profisso, s condies de trabalho do assistente social e ao processo de alienao a que este trabalhador est submetido, ou mesmo a compreenso equivocada sobre as atribuies e competncias profissionais.

    Aps esclarecermos como foi o processo de investigao, passemos apresentao da estrutura da tese.

    No primeiro captulo, analisamos os processos de gnese e reproduo dos valores que se do a partir do processo de trabalho. Embora observemos o grande avano na discusso das bases ontolgicas da tica e a importncia desta para os novos referenciais ticos profissionais, observamos que alguns elementos relacionados aos pressupostos ontolgicos

    8 A utilizao do termo possivelmente decorre do fato de que instaurado o processo tico so apontados os

    artigos e princpios que podem ter sidos violados, isto porque, ao final do processo, pode-se chegar a concluso que no houve infrao.

  • 8

    precisavam ser aprofundados para melhor compreendermos e enfrentarmos os desafios postos profisso na atualidade.

    No segundo Captulo, refletimos sobre o processo de gnese e a reproduo dos valores na dinmica social brasileira. Esta discusso, pouco explorada nas pesquisas, , a nosso ver, de extrema importncia para entendermos os conflitos ticos presentes no cotidiano profissional.

    No terceiro Captulo problematizamos, a partir das categorias apreendidas nos captulos anteriores, as contradies presente no cotidiano profissional e os obstculos existentes para a efetivao do projeto tico-poltico do Servio Social. Neste momento, apresentamos os resultados da pesquisa junto aos processos ticos e a anlise dos resultados luz do referencial adotado.

    Embora consideremos que a nossa investigao reflete elementos de uma realidade particular a dinmica dos processos ticos analisados pelo CRESS/7 Regio num determinado perodo, 1993 a 2011 ela aponta tambm para aspectos mais gerais presentes na emergncia e no desenvolvimento do Servio Social no Brasil. Compreendemos, no entanto, que esta investigao nos possibilitou desvelar parte da realidade sobre os conflitos ticos profissionais, j que o conhecimento da realidade social e profissional dinmico, processual e permanente.

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    CAPTULO 1 GNESE E DESENVOLVIMENTO DO SER SOCIAL

    Sinalizamos na introduo que para discutirmos sobre as tenses em torno do atual projeto tico-poltico dos assistentes sociais necessrio entendermos duas questes essencialmente articuladas: 1) os processos alienantes prprios da sociabilidade burguesa, j que estes se colocam como obstculos ao livre desenvolvimento dos homens; e 2) a particularidade da formao moral brasileira, resultado da dinmica da gnese e do desenvolvimento do Brasil, ou seja, um pas com as marcas da colonizao, da escravido e com uma transio ao capitalismo bem peculiar. Ambas as questes s podem ser desveladas, no entanto, se recorrermos anlise do complexo processo de produo e reproduo da existncia material dos homens.

    Neste sentido, imprescindvel recorrermos perspectiva da ontologia marxiana para compreender a constituio e o desenvolvimento do ser social. Um dos principais autores que se props a aprofundar esta perspectiva foi Gyrgy Lukcs. Segundo Vaisman e Fortes (2010) Lukcs reconhece a fecunda inflexo da filosofia marxiana, j que esta se propunha [...] investigar o ente com a preocupao de entender o seu ser e encontrar os diversos graus e as diversas conexes em seu interior (Lukcs apud Vaisman e Fortes, Id. p.21).

    No seu processo investigativo, Lukcs (1979) afirma que a centralidade da relao homem/natureza, reflexo fundamental para a discusso do trabalho como categoria ontolgica do ser social, j aparece de forma clara, nos Manuscritos Econmicos-Filosficos de Marx.

    No momento em que Marx faz da produo e da reproduo da vida humana o problema central, surge tanto no prprio homem como em todos os seus objetos, relaes, vnculos, etc. a dupla determinao de uma insupervel base natural e de uma ininterrupta transformao social dessa base. [...] (Lukcs, 1979, p. 15 e 16).

    Na sua anlise sobre os fundamentos ontolgicos do ser social, Lukcs (1981), baseado em Marx, nos chama a ateno inicialmente para a imbricao entre as categorias que constituem o ser social: o trabalho, a linguagem, a cooperao e a diviso do trabalho. Para compreend-las adequadamente nenhuma delas deve ser considerada isoladamente.

    Segundo este autor o lugar privilegiado do trabalho na gnese do ser social se deve ao fato de que as outras categorias a linguagem, a cooperao e a diviso do trabalho j

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    possurem um carter social, ou seja, elas s podem se desenvolver num ser social j constitudo.

    [] Somente o trabalho tem, como sua essncia ontolgica, um claro carter intermedirio: ele , essencialmente, uma interrelao entre homem (sociedade) e natureza, tanto inorgnica (utenslios, matria-prima, objeto do trabalho, etc.) como orgnica, interrelao que pode at estar situada em pontos determinados da srie a que nos referimos, mas antes de mais nada assinala a passagem, no homem que trabalha, do ser meramente biolgico ao ser social. []. No trabalho esto gravadas in nuce todas as determinaes que, como veremos, constituem a essncia de tudo que novo no ser social (Lukcs, 1981, p.3 e 4).

    Lukcs (1981) reconhece o interesse de importantes filsofos como Aristteles e Hegel pelo ser social, no entanto, afirma que tais autores atribuem teleologia um carter cosmolgico universal: tanto a natureza como a histria so teologicamente postas, ou seja, consideram que a histria da humanidade tem um fim, mas tambm que conduzida por um autor consciente. Esta anlise leva a dois caminhos problemticos: primeiro a uma concepo idealista da histria dos homens; segundo, concepes religiosas do mundo, onde o processo teleolgico dirigido por um Deus. Lukcs (1981), a partir da ontologia marxiana, afirma que a teleologia exclusiva prxis humana, ou melhor:

    [] fora do trabalho (da prxis humana) no h qualquer teleologia []. No entanto, o fato de que Marx limite, com exatido e rigor, a teleologia ao trabalho ( prxis humana), eliminando-a de todos os outros modos de ser, de modo nenhum restringe o seu significado; pelo contrrio, a sua importncia se torna tanto maior quanto mais se toma conscincia de que o mais alto grau do ser que conhecemos, o social, se constitui como grau especfico, se eleva a partir do grau em que est baseada a sua existncia, o da vida orgnica, e se torna uma nova espcie autnoma de ser, somente porque h nele este operar real do ato teleolgico. S lcito falar do ser social quando se compreende que a sua gnese, o seu distinguir-se da sua prpria base, o processo de tornar-se algo autnomo, se baseiam no trabalho, isto , na continuada realizao de posies teleolgicas (Lukcs, 1981, p.10 e 11).

    Para este autor, a essncia do trabalho est na articulao entre teleologia e causalidade. A capacidade teleolgica exclusiva aos homens. Assim, Lukcs recusa a ideia da teleologia como categoria universal, ou seja, no existe um pr teleolgico na histria dos homens, como, por exemplo, defendeu Hegel ao pensar o esprito absoluto (Lessa, 2002).

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    [] Neste contexto, recusar toda concepo teleolgica nada mais significa que a cabal reafirmao da absoluta e radical sociabilidade do mundo dos homens. Aos olhos de Lukcs, a postulao marxiana segundo a qual os homens fazem a sua histria requer, com absoluta necessidade, a recusa da teleologia como categoria universal (Lessa, 2002, p.71).

    A anlise do trabalho enquanto categoria fundante do ser social, realizada por Marx e posteriormente desenvolvida por Lukcs, inaugura uma nova perspectiva filosfica9 onde os homens, atravs do trabalho enquanto momento decisivo , da linguagem e da sociabilidade, fazem a sua histria. O grmen da filosofia da prxis pode ser evidenciado nos Manuscritos de 1844. Neste trabalho, podemos observar a crtica de Marx dialtica hegeliana. Apesar de Marx concordar com a idia da dialtica da negatividade de Hegel, onde o trabalho aparece como princpio motor do desenvolvimento humano, local onde este se realiza, critica o aspecto unilateral desta concepo. Para ele, Hegel no consegue enxergar o aspecto negativo do trabalho material, seu aspecto alienante. O nico trabalho que Hegel conhece e reconhece o trabalho abstrato do esprito (Marx apud Ianni, 1988, p.11). Para Konder (2000),

    Essa concepo abstrata do trabalho levava Hegel a fixar sua ateno exclusivamente na criatividade do trabalho, ignorando o lado negativo dele, as deformaes a que ele era submetido em sua realizao material, social. Por isso Hegel no foi capaz de analisar seriamente os problemas ligados alienao do trabalho nas sociedades divididas em classes sociais (especialmente na sociedade capitalista) (p.28).

    A partir das observaes de Marx, Lukcs (apud Lessa, 1996) se prope a analisar com profundidade os trs momentos decisivos da categoria trabalho: objetivao, exteriorizao e alienao. Esta primeira constatao nos permite entender que atravs do trabalho o ser humano transforma a realidade possibilitando o desenvolvimento do mundo dos homens. Entretanto, tambm por meio do trabalho se colocam obstculos a este mesmo desenvolvimento. Assim, segundo Lukcs (apud Lessa, 2002), a alienao deve ser entendida como obstculos socialmente postos plena explicitao da generalidade humana.

    9 Refiro-me aqui ao materialismo histrico dialtico. O nascimento desta perspectiva filosfica, evidenciado em A ideologia alem, serviu de fio condutor para as concluses posteriores de Marx em O capital. Nela, Marx e Engels compreendem a histria como resultado das relaes materiais de existncia estabelecidas entre os homens. Marx conclui que as relaes materiais de existncia so a base de todas as outras relaes sociais, sejam elas religiosas, polticas, culturais, jurdicas etc. A partir destas relaes sociais concretas que o homem desenvolve a conscincia (Marx e Engels, 1998, p. 36).

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    No processo de transformao da natureza, o homem passa do momento de prvia ideao teleologia causalidade posta, ou seja, objetiva-se; transforma a realidade a partir de uma finalidade previamente construda na sua conscincia. Embora a teleologia s exista no ser social, isto no quer dizer que ela seja exclusivamente subjetiva. Esta tem tambm uma materialidade, pois, na medida em que entra em ao desencadeia um processo real, ou seja, funda uma nova objetividade.

    Lukcs (1981) sinaliza que para compreender o processo de trabalho necessrio analisar a vinculao entre posio dos fins e busca dos meios. Segundo o autor, exatamente a que se evidencia a inseparvel relao entre causalidade e teleologia. A busca de meios para realizar um fim acaba produzindo o conhecimento do sistema causal dos objetos e dos processos que levam o fim teleologicamente posto. O pensamento cientfico e, posteriormente, as cincias naturais se desenvolvem a partir desta tendncia de autonomizao da busca dos meios. Neste sentido, podemos concluir, a partir as observaes de Lukcs, que tanto o fim como as causalidades que o realizam so teleologicamentes postas.

    [] Nunca se deve perder de vista o fato simples de que a finalidade torna-se realidade ou no dependendo de que, na busca dos meios, se tenha conseguido transformar a causalidade natural em uma causalidade (ontologicamente) posta. A finalidade nasce de uma necessidade humano-social; mas, para que ela se torne uma verdadeira posio de um fim, necessrio que a busca dos meios, isto , o conhecimento da natureza, tenha chegado a um certo nvel adequado; quando tal nvel ainda no foi alcanado, a finalidade permanece um mero projeto utpico, uma espcie de sonho, como por exemplo, o vo foi um sonho desde caro at Leonardo e at um bom tempo depois. [] (Lukcs, 1981, p.15).

    Neste sentido, Lukcs (Id.) chama a ateno para a dinmica do processo de construo de alternativas no processo de trabalho. Esta construo feita atravs de tentativas, de experimentos que resultam numa finalidade posta. Este movimento ininterrupto de criao de alternativas vai possibilitando a construo de novos caminhos e colocando ao homem, individual e coletivamente, melhores condies na criao do novo. Este processo vai se tornando mais e as aes habituais tornam-se reflexos condicionados e tendem a apresentar uma aparncia autnoma, desvinculada da conscincia dos homens. Importante lembrar, no entanto, que embora as alternativas tornem-se reflexos condicionados, isto no as desvincula das aes teleologicamente postas.

    [] Esta estrutura ontolgica do processo de trabalho, que o torna uma

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    cadeia de alternativas, no deve parecer menos correta pelo fato de que, ao longo do desenvolvimento e mesmo em fases relativamente iniciais, as alternativas singulares do processo de trabalho se tornem, atravs do exerccio e do hbito, reflexos condicionados e, deste modo, possam ser enfrentados inconscientemente no plano da conscincia. [] na sua origem, todo reflexo condicionado foi objeto de uma deciso alternativa, e isto vlido para o desenvolvimento da humanidade como de cada indivduo, que s pode formar estes reflexos condicionados aprendendo, exercitando, etc. e no incio de um tal processo esto precisamente as cadeias de alternativas (Lukcs, 1981, p.29).

    importante salientarmos que a opo entre diferentes alternativas est vinculada s circunstncias concretas, ou seja, existncia de necessidades objetivas colocadas ao homem. a partir destas necessidades que se inicia o processo de trabalho. Embora seja correto afirmar que a satisfao das necessidades concretas seja o momento predominante na escolha das alternativas, no podemos esquecer que h a o elemento teleolgico, inerente capacidade racional dos homens, ou seja, justamente a conjuno razo e teleologia que possibilita ao homem satisfazer as necessidades postas em cada momento histrico, caso contrrio, no nos diferenciaramos dos animais.

    Na medida em que as experincias vo se tornando autnomas e se generalizando, vo se distanciando da sua origem e, muitas vezes, so reproduzidas independentemente da conscincia dos homens. a partir deste processo de autonomizao e generalizao do trabalho que se colocam as condies de falseamento da realidade, pois o que se observa o distanciamento, no nvel da conscincia, entre alternativas construdas por atos teleologicamente postos e estas mesmas alternativas j generalizadas.

    No que se refere a esse processo de generalizao do fruto do trabalho, Lukcs (1981) afirma:

    [] Nenhuma importncia tem o fato de que os homens que os elaboraram e usaram tenham ou no compreendido a sua essncia real. O obstinado imbricamento destes conceitos com ideias mgicas e mticas, que acontece ao longo da histria, mostra como, na conscincia dos homens, o agir finalisticamente necessrio, sua correta preparao no pensamento e sua execuo podem dar origem continuamente a formas superiores de prxis que se misturam com ideias falsas acerca das coisas que no existem e so tidas como verdadeiras e como fundamento ltimo. Isto mostra que a conscincia relativa s tarefas, ao mundo, ao prprio sujeito, brota da reproduo da prpria existncia (e, junto com essa, daquela do ser da espcie), como instrumento indispensvel de uma tal reproduo. [] (p. 44).

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    Com isto o autor no est ignorando os problemas gerados pela mistificao da realidade; este apenas nos mostra como o processo de generalizao do conhecimento resulta em processos cada vez mais complexos e distanciados da sua gnese, ou seja, do trabalho.

    Neste processo de objetivao, exteriorizao e generalizao que se d atravs do trabalho, alm de criar algo novo, o homem tambm se modifica, ou seja, o retorno das suas aes sobre si mesmo possibilita-lhe alcanar nveis cada vez maiores da generalidade humana. Assim, cada ato singular se generaliza, influencia a todos que esto a sua volta e, a depender do momento histrico e das necessrias mediaes, influencia a humanidade como um todo. O impulso generalizao inerente ao trabalho [...] d origem a um complexo social que sintetiza os atos dos indivduos singulares em tendncias genricas que conferem unidade e sentido ao desenvolvimento do gnero humano. [...] (Lessa, 1996, p.16). neste processo que o homem se individualiza, se generaliza, mas tambm se aliena.

    atravs do trabalho que o homem transforma a sua prpria natureza, ou seja, ao buscar meios para objetivar uma finalidade projetada idealmente o homem necessita ter domnio sobre si mesmo, sobre seus instintos. Neste sentido que Lukcs (1981) fala que o salto ontolgico que d origem ao ser social possibilita ao homem sair da sua condio puramente animalesca. [] Como ser biolgico, ele um produto do desenvolvimento natural. Com a sua auto-realizao, que tambm implica, obviamente, nele mesmo um retrocesso das barreiras naturais, embora jamais um completo desaparecimento delas, ele ingressa um novo ser, autofundado: o ser social (p. 38).

    Quando, neste contexto, atribumos ao trabalho e s suas conseqncias imediatas uma prioridade com relao a outras formas de atividade, isso deve ser entendido num sentido puramente ontolgico, ou seja, o trabalho antes de mais nada, em termos genticos, o ponto de partida da humanizao do homem, do refinamento de suas faculdades, processo do qual no se deve esquecer o domnio sobre si mesmo (Lukcs, 1979, p. 87).

    As formas de alienao, de acordo com Lukcs (apud Lessa, 2002)10 tm a sua gnese no complexo de objetivao/exteriorizao que se d atravs do trabalho.Isto significa afirmar

    10 Sobre os termos alienao e estranhamento necessrio alguns esclarecimentos: na Introduo de seu livro

    Mundo dos Homens: trabalho e ser social, Lessa (2002) faz uma observao importante acerca das palavras em alemo Entusserung e Entfremdung. Ele afirma, neste texto, que na sua produo de mestrado Sociabilidade e Individuao, Macei, Edfal, 1996 utilizou o termo alienao como uma forma positiva da autoconstruo humana. Isto, segundo ele, causou uma confuso para o entendimento da estrutura categorial da ontologia de

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    que toda forma de alienao tem a sua origem na objetivao. Entretanto, falso concluir que toda forma de objetivao resulta, necessariamente, em processos alienantes.11

    [] independentemente das transformaes que os estranhamentos sofram ao longo da histria humana, eles tm por solo gentico a contradio entre o desenvolvimento social objetivo e os obstculos socialmente construdos, por este mesmo desenvolvimento, para a explicitao humano-genrica [] (Lessa, 2002, p.173).

    As formas de alienao devem ser entendidas como determinaes objetivas do mundo dos homens Elas se estabelecem para alm das relaes homem/natureza e vo se explicitar plenamente na esfera da reproduo social. Portanto, embora o fenmeno da alienao se expresse atravs dos valores presentes das aes dos indivduos, no devemos perder de vista que a sua gnese encontra-se nas relaes materiais de produo da vida dos homens (Lukcs, apud Lessa, 2002).

    importante chamar ateno para o fato de que quando Marx refere-se a esta relao necessria do homem com a natureza, ele no est fazendo meno somente aos produtos materiais retirados dela, mas sim a toda uma estrutura que vai de bens materiais a obras de arte (Mszros, 2006, grifos nossos).

    Neste sentido, Lukcs (1981) afirma que o trabalho se constitui como modelo de toda a prxis social. O autor observa que o trabalho se caracteriza pela relao homem/natureza, ou seja, a transformao desta ltima em valores de uso. No entanto, na medida em que as relaes entre os homens vo se tornando mais complexas j podemos observar formas mais evoludas de prxis social, onde o objeto essencial de transformao encontra-se na relao homem/homem. importante sinalizarmos, porm, que o fundamento deste tipo de prxis o mesmo do trabalho, ou seja, as posies teleolgicas e as sries causais que a pe em movimento.12

    Lukcs. No trabalho de 2002, ele reconheceu a importncia de fazer uma modificao no que se refere a esta questo. Seguindo as reflexes de Leandro Konder e Nicolas Tertulian adota Entusserung como o processo de exteriorizao e Entfremdung como estranhamento ou alienao para expressar as desumanidades socialmente postas no processo de desenvolvimento do mundo dos homens. 11

    Veremos, mais adiante, esta questo de forma mais aprofundada. 12

    Sem desconsiderarmos a polmica em torno do debate se o Servio Social ou no trabalho, entendemos a importncia desta discusso para pensarmos o Servio Social, j que, ao nosso ver, a atividade profissional dos assistentes sociais deve ser pensada como uma dimenso da prxis social. Isto significa afirmar que h um pr teleolgico nas aes profissionais, que implica razo e vontade, valores e escolhas, conforme nos sinaliza Guerra (2005b): [...] o exerccio profissional deve ser visto como uma atividade racional transformadora da

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    O fim teleolgico (dever-ser) se estabelece tanto na relao homem/natureza como na relao homem/homem. Embora, como verificaremos mais adiante, isto acontea com diferenas significativas. Na relao homem/homem, o processo da prxis social mais complexo e qualitativamente diferente daquele evidenciado na relao do homem com a natureza; o dever-ser do primeiro se encontra na autotransformao do sujeito, como afirma Lukcs,

    [] claro que estas posies so diferentes daquelas que encontramos no processo de trabalho, no apenas por serem mais complexas, mas, e exatamente por isto, pela diversidade da qualidade. [] Em qualquer caso, essas inegveis diferenas qualitativas no nos deve fazer esquecer o fato fundamental comum, isto , que todas so relaes do dever-ser, atos nos quais no o passado, na sua espontnea causalidade que determina o presente, mas ao contrrio, o objetivo futuro, teleologicamente posto o princpio determinante da prxis (1979, p. 36, grifos nossos).

    neste processo histrico que o homem desenvolve as capacidades essenciais para a sua constituio, so elas a sociabilidade, a conscincia, a linguagem, a universalidade e a liberdade. Para entend-las necessrio recorrermos categoria da reproduo social, tanto no que diz respeito reproduo dos indivduos como a reproduo da totalidade social. o que vermos a seguir.

    1.1 O PROCESSO DE REPRODUO SOCIAL E A CRIAO DE VALORES

    Refletimos at o momento sobre a relao entre as bases naturais e sociais do homem; vimos que ao mesmo tempo em que o homem um ser natural e necessita da natureza para se desenvolver, ele se torna social e domina cada vez mais os determinantes naturais. Este processo, ressalta Lukcs (1981), um processo dialtico, pois inicia com um salto ontolgico que se d atravs do trabalho, mas jamais se separa por completo das bases naturais.

    realidade, que incide sobre condies objetivas encontradas pelos sujeitos assistentes sociais, mas que estes as modificam buscando criar as possibilidades de alcanarem seus fins. [...]. Nesta prtica imperam dois elementos: teleologia [...] e causalidade [...]. Aqui, a vontade racionalmente orientada a um fim, o que exige um conhecimento, ainda que aproximado, da realidade dada. Mas exige tambm valores, habilidades e atitudes (p.149). No aprofundaremos esta discusso, por no se tratar do objeto desta tese.

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    O desenvolvimento scio-global um processo histrico necessariamente contraditrio e desigual.13 Este desenvolvimento pressupe a criao constante do novo e a elevao da humanidade a patamares de sociabilidade cada vez mais altos.

    Na sua acepo geral a partir do trabalho que o homem se diferencia de outros seres da natureza; na interao homem/natureza, a partir da sua capacidade teleolgica, que este vai satisfazendo suas necessidades e criando outras necessidades. neste processo que o homem vai atribuindo valor as coisas e criando formas de interao como a linguagem, os costumes, constituindo, assim, a cultura.

    Para compreendermos, portanto, a substncia concreta, particular, tanto de cada individualidade quanto de cada formao social, necessrio recorrermos s mediaes prprias categoria da reproduo social. Segundo Lessa (1995), [] a categoria da reproduo a processualidade concreta, o campo real de mediaes, sempre particular, que faz de cada momento da histria humana um momento nico, inigualvel (p.7).

    Portanto, no mbito da reproduo social que se estabelecem as mediaes que constituem tanto o indivduo na sua particularidade quanto as formaes sociais. Neste sentido, para desvendarmos o processo de constituio dos valores em uma determinada sociedade faz-se necessrio entendermos como se constitui o processo de reproduo social na perspectiva da ontologia marxiana.

    Para Lukcs (apud Lessa, 1995), o elemento fundante e constitutivo da reproduo social, tanto enquanto totalidade social como enquanto individualidades, so as aes dos indivduos concretos em situaes sociais concretas. No entanto, afirma que embora a categoria da reproduo dos indivduos e a reproduo da totalidade sejam ontologicamente indissociveis, cada uma delas possuem especificidades e, alm disto, podem existir entre elas desigualdades e contradies.

    Assim, de acordo com Lukcs (apud Lessa, 1995)14 podemos afirmar que entre a categoria trabalho e a categoria reproduo se estabelece uma ntida diferena e uma insupervel conexo. Embora o trabalho seja a base de todo o desenvolvimento do homem, somente no contexto da reproduo social o trabalho pode se realizar. A razo disto se

    13 Importante esclarecer que o carter desigual do desenvolvimento scio-global a que se refere Lukcs no est

    relacionado desigualdade, fruto das sociedades de classes, mas diz respeito ao carter dialtico do processo de trabalho que envolve os momentos de objetivao, exteriorizao e generalizao. 14

    importante esclarecermos que por no existir uma verso em portugus da parte da Ontologia sobre a Reproduo Social, recorremos a esta discusso atravs do livro de Lessa, Individuao e Sociabilidade, 1995.

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    encontra no fato de que [] tanto o complexo categorial da reproduo, como o complexo categorial do trabalho tm o mesmo fundamento: as decises alternativas de indivduos concretos em situaes historicamente determinadas (Lessa, 1995, p. 8).

    O mundo dos homens essencialmente social, ou seja, sua legalidade interna no est vinculada s leis naturais, mas s respostas dadas pelo homem s necessidades impostas a este. No entanto, s possvel entender esta essncia se considerarmos a infindvel troca orgnica com a natureza (Lukcs apud Lessa, 1995).

    [] o fato do ser social existir apenas em conexo incindvel com a natureza, da gnese de categorias sociais puras no exibir "qualquer espiritualismo social" e consistir sempre de um recuo da barreira natural, no de um desaparecimento da natureza, no podem velar que a reproduo social seja o processo de explicitao de uma nova substncia, ontologicamente irredutvel processualidade natural; nem esta irredutibilidade do ser social ao natural deve mascarar os nexos reais que se interpem entre o mundo dos homens e a natureza (Lessa, 1995, p.27).

    Embora a reproduo seja uma categoria evidenciada na esfera biolgica, na esfera social que esta se constitui como um processo que possibilita a elevao crescente da sociabilidade humana.

    Lukcs (apud Lessa, 1995), porm, chama a ateno para algo importante: tanto na reproduo natural quanto na reproduo social as categorias ontolgicas inferiores no so anuladas, mas transformadas, elevadas a patamares superiores.

    Umas das diferenas qualitativas observadas no processo de reproduo biolgica e social a criao de valores. Na natureza no se observam processos onde operam valores. somente no mbito da reproduo social, que o homem, atravs de escolhas teleologicamente postas, atribui valor s coisas.

    Outra diferena fundamental que a reproduo social implica em mudanas externas e internas. Enquanto a reproduo biolgica reitera o j existente, na reproduo social h a criao constante do novo; ao satisfazer as necessidades sociais impostas pela realidade objetiva, o homem cria novas necessidades e novas maneiras de satisfaz-las, ou seja, ele produz sempre para alm do necessrio sua sobrevivncia.

    No possvel, portanto, negar as interaes profundas entre formas sociais e biolgicas. No entanto, o que se evidencia no processo de reproduo social o predomnio cada vez maior do elemento social na vida dos homens. A isto Lukcs (apud Lessa, 1995) chamou de tendncia ao afastamento das barreiras naturais.

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    O autor nos chama a ateno para a diferena entre posies teleolgicas primrias, ou seja, aquelas que tm por objetivo a transformao da natureza e as posies teleolgicas secundrias. Estas ltimas se constituem em aes que visam influir nas conscincias de outros homens no intuito de estes executarem determinadas atividades. O autor nos mostra, ainda, que com o crescente processo de socializao, as posies teleolgicas secundrias vo tendo um peso social cada vez maior diante das primeiras, tendendo a se tornarem relativamente autnomas.

    As possibilidades abertas pelas aes dos homens dependem das condies objetivas de cada momento histrico. No entanto, necessrio compreender a importncia do elemento subjetivo neste processo, ou seja, as respostas dadas s necessidades impostas ao homem s se generalizam na medida em que estas so elevadas conscincia. [] Sem a transposio para a conscincia dos resultados concretos, objetivos dos atos individuais, esses atos no poderiam se constituir em elos do processo de elevao do gnero ao seu ser-para-si, ou seja, no poderiam se realizar enquanto aquilo que so em essncia (Lessa, 1995, p.40).

    Lukcs (apud Lessa, 1995) nos indica a importncia da conscincia no processo de continuidade social. No entanto, este autor sinaliza para duas questes importantes: primeiramente, que preciso entender a conscincia como algo historicamente determinado, ela representa uma etapa no desenvolvimento do ser. Sendo assim, preciso entend-la no seu movimento: [] a conscincia, por um lado, deve fixar o patamar de generalidade efetivamente alcanado pela humanidade; todavia, por outro lado, este fixar no pode se transformar num impedimento ontolgico a todo desenvolvimento futuro. [] (Lessa, 1995, p.41). Em segundo lugar, que os momentos fixados pela conscincia podem levar tanto a nveis crescentes de sociabilidade quanto obstculos ao avano da generalidade humana.15

    A malha de mediaes e determinaes sociais que assim surge -- e cuja reproduo tem como mdium ineliminvel as decises alternativas dos indivduos a ela submetidos -- "aparece ao homem como uma espcie de segunda natureza, como um ser que existe completamente independente do seu pensamento, de sua vontade". O produto da totalidade da prxis humano-social num dado momento se converte, para a conscincia do homem cotidiano, em uma potncia a ele estranha, que o subjuga, que determina o seu ser. [...] (Lessa, 1995, p. 62).

    15 Veremos isto de forma mais aprofundada quando discutirmos a questo da alienao.

  • 20

    A reproduo da vida humana implica na criao de mediaes cada vez mais complexas e numerosas que acabam possibilitando o ambiente social. H neste processo uma ao de retorno, ou seja, este ambiente acaba influenciando seus prprios criadores.

    Neste processo de produo do novo, que se d atravs do trabalho, e da generalidade da decorrente, est a processualidade que levou a diviso do trabalho e a sua intensificao. Outra novidade importante que na medida em que o homem produz mais do que precisa, gera estruturas completamente novas: a diviso da sociedade em classes16 e tudo que resulta disto.

    Lukcs (apud Lessa, 1995) indica, portanto, a atividade econmica17 como momento predominante no processo de reproduo social, mas observa a necessidade de evitar posturas niveladoras ideais. Segundo Lessa (1995), [...] ainda que, para Lukcs, a luta pela posse do trabalho excedente no seja o nico fator a determinar o desdobramento concreto da evoluo das sociedades, ela certamente o seu momento predominante (p. 64).

    Desta forma, este autor nos aponta para algumas questes importantes: primeiramente

    que esta prioridade da economia no supe nenhuma hierarquia de valor; segundo, que o peso deste momento pode variar dependendo da sociedade em questo; e por ltimo, que falso considerar a existncia de uma determinao direta de todos os fenmenos sociais pela matriz econmica.

    Considerando tais observaes podemos apreender melhor a dinmica da reproduo social. Lukcs (Id.) sinaliza para um elemento importante deste processo: o seu carter bipolar (indivduo/sociedade). Esta bipolaridade pode ser observada nas formas mais primitivas do trabalho, mas s se explicita na gnese e desenvolvimento do capitalismo. A explicitao desta bipolaridade [] se refletiu, "na nova estrutura da conscincia dos homens", como "dualismo entre citoyen e homme (bourgeois) presente em cada membro da nova sociedade", num fracionamento do ser-indivduo-humano entre uma existncia pblica e uma existncia privada (Lessa, 1995, p. 76).

    16 Considerando estes elementos, o autor afirma que o desenvolvimento econmico que possibilita a luta de

    classes e o xito destas lutas. Alm disto, na medida em que avana o processo de sociabilidade cresce o poder de interveno das classes sobre o desenvolvimento econmico. 17 A esfera econmica deve ser entendida "enquanto sistema dinmico de todas as mediaes que formam a base material para a reproduo dos indivduos singulares e do gnero humano, o elo real que conjuga a reproduo do gnero humano e dos seus exemplares singulares" (Lukcs apud Lessa, 1995, p. 88).

  • 21

    Embora as aes dos indivduos tenham sempre como finalidade o alvo da particularidade, atravs destas aes que se colocam as possibilidades de elevao do indivduo a patamares cada vez mais elevados de generalidade.

    Desde o primeiro trabalho, enquanto gnese da humanizao do homem, at s mais sutis decises psicolgicas e espirituais, o homem constri o seu mundo externo, contribui para edific-lo e para aperfeio-lo e, ao mesmo tempo, com estas mesmas aes constri a si mesmo, passando da mera singularidade natural individualidade no interior de uma sociedade (Lukcs apud Lessa, 1995, p.75).

    Assim, a personalidade do indivduo, ou seja, os traos mais ntimos da individualidade, no algo fixo e dado a priori. Segundo Mszros (2006), esta idia j se apresenta de forma clara em Marx. Este se ope idia de natureza humana fixa18. O ser humano um ser complexo que se desenvolve a partir do modo como ele produz e reproduz a sua vida.

    O ser-por-si-mesmo da natureza e do homem marxiano o homem que no a contrapartida animal de uma srie de ideais morais abstratos no , por natureza, nem bom nem mau; nem benevolente, nem malevolente; nem altrusta nem egosta; nem sublime nem bestial etc.; mas simplesmente um ser natural cujo atributo : a automediao. Isto significa que ele pode fazer com que ele mesmo se torne o que em qualquer momento dado de acordo com as circunstncias predominantes seja isso egosta ou o contrrio (Mszros, 2006, p.151).

    Esta afirmao no nega a constituio biolgica dos seres humanos e suas necessidades naturais, mas afirma que sendo o homem um ser social estas necessidades so transformadas, pelo prprio homem, em necessidades humanas. [...] no ato autotranscendente consciente de vir a ser eles se transformam em apetites e propenses humanas, modificando fundamentalmente o seu carter, passando a ser algo inerentemente histrico (Mszros, 2006, p.156).

    O devir humano dos indivduos o resultado de um complexo de interaes nas quais e pelas quais se expressa a unidade contraditria das determinaes psicofsicas e sociais.

    18 Como, por exemplo, a concepo da economia poltica liberal que trata o egosmo como elemento natural e

    fator decisivo nas interaes humanas (Mszros, 2006).

  • 22

    Neste sentido, Lukcs (1981) refere-se a trs momentos que impulsionam o indivduo a patamares cada vez mais elevados do gnero humano. Primeiramente se destaca a generalizao do processo e produto do trabalho que, por sua vez, possibilita o fluxo da prxis social.

    [] Dessa maneira, segundo Lukcs, a prxis social o elo ontolgico que articula de modo absolutamente necessrio indivduo e sociedade, que, por essa razo, articula a conscincia do homem singular como pertencente ao gnero humano. O papel da prxis social o "elemento novo, decisivo", que no perde sua fora e importncia porque, de incio, ser membro de uma comunidade determinado apenas pelo nascimento, ou seja, por um fato natural. Portanto, a generidade [sic] humana " um processo espontneo-elementar socialmente determinado", fundado pelo trabalho entendido enquanto protoforma da atividade humana. Em poucas palavras, como pertence essncia do trabalho impulsionar sempre para alm de si mesmo, em toda ao humana a particularidade remete generalidade. [...] (Lessa, 1995, p. 82).

    O segundo momento refere-se ao processo de crescente sociabilizao da sociedade. Quanto mais mediadas forem as decises, mais ricas, diversificadas e complexas devem ser as individualidade. O terceiro momento da sntese composto pelos conflitos entre a dimenso genrica e a dimenso particular de todo o ato humano. Lukcs (apud Lessa, 1995) afirma que as escolhas entre alternativas possuem elementos de particularidade, de simples singularidade e de generalidade. Tais escolhas, ao mesmo tempo em que so suscitadas pelas necessidades sociais esto relacionadas ao eu e neste processo que surgem, no raramente, os conflitos entre as dimenses particulares e genricas das escolhas humanas.19

    Estes trs momentos fundamentais de elevao do indivduo ao seu ser-em-si (Lessa, 1995) nos leva a questionar sobre a gnese e a funo dos valores neste processo.

    Segundo Lukcs (apud Lessa, 2002) os valores s so possveis, s possuem uma existncia real, efetiva, quando incorporados s posies teleolgicas que fazem parte do processo de objetivao. Neste sentido, este autor se contrape s formulaes idealistas no que se refere criao dos valores: a prxis social o solo frtil para a emergncia destes.

    19 Esta anlise de Lukcs (Id.) sobre os conflitos entre a dimenso genrica e a dimenso particular aes

    humanas fundamental para refletirmos sobre a questo da tica profissional dos assistentes sociais. Isto porque, como veremos mais adiante, mesmo sob a orientao de princpios ticos comprometidos com o desenvolvimento do ser humano, na sua acepo genrica, o assistente social, muitas vezes, faz escolhas no cotidiano profissional orientadas por valores privados.

  • 23

    Lukcs (1981) afirma que dever-ser e valor esto intimidamente ligados. O dever-ser s pode se objetivar se o que se pretende realizar tiver valor para o homem. Embora sejam categorias bastante ntimas, parte de um nico e mesmo complexo, elas devem ser entendidas separadamente. Segundo este autor no possvel abstrair valor a partir das caractersticas naturais de um objeto. O valor se manifesta, na sua forma primria, a partir da utilidade que determinado objeto natural tem para a vida humana, ou seja, a partir do seu valor de uso.

    [] Deste modo, sem afastar-nos da verdade, podemos, numa considerao geral, entender os valores de uso, os bens, como produtos concretos do trabalho. Disto se segue que podemos considerar o valor de uso como uma forma objetiva de objetividade social. Sua socialidade est fundada no trabalho: a imensa maioria dos valores de uso surge a partir do trabalho, mediante a transformao dos objetos, das circunstncias, do modo de agir, etc. naturais, e este processo, enquanto afastamento das barreiras naturais, com o desenvolvimento do trabalho, com a sua socializao, se amplia sempre mais, tanto em extenso como em profundidade. []. Deste modo, o valor de uso no um simples resultado de atos subjetivos, valorativos, mas, ao contrrio, estes se limitam a tornar consciente a utilidade objetiva do valor de uso; a natureza objetiva do valor de uso que demonstra a correo ou incorreo deles e no o contrrio (Lukcs, 1981, p. 37).

    Embora o trabalho seja a categoria fundante do ser social importante salientar, segundo Lessa (2002), que isto no significa que as categorias sociais, incluindo a os valores, sejam reduzidos ou deduzidos do trabalho enquanto tal. Para entendermos a gnese dos valores e os processos valorativos imprescindvel buscarmos as mediaes prprias da categoria da reproduo social.

    [] A construo social da particularidade de cada momento histrico uma funo que pertence essncia da categoria da reproduo, e no ao trabalho enquanto tal. Para elucidar a gnese dos valores em Lukcs, o que agora nos interessa o papel mediador fundamental entre a categoria do trabalho e a totalidade social realizada pela reproduo. Ele nos permite apontar que, se a funo ontolgica dos valores est no ineliminvel carter de alternativa do trabalho, no menos verdadeiro que, na gnese de cada valor e processo valorativos, permeiam outras mediaes que no so em si redutveis ao trabalho (Lessa, 2002, p.158).

    Esta reflexo de Lukcs (apud Lessa, 2002) nos chama a ateno para a dinmica do surgimento dos valores. Ao mesmo tempo em que ele afirma que os valores tm a sua origem na prxis social, ou seja, surgem a partir das relaes teleologicamente postas que se estabelecem entre homem/natureza e homem/homem, ele nos mostra que no possvel

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    desvend-los, em toda a sua complexidade, se no considerarmos a contraditoriedade deste processo.

    As escolhas feitas pelos indivduos, a partir das possibilidades que so colocadas em cada momento histrico, vo consolidando os valores como positivos ou negativos. Os homens respondem mais ou menos conscientemente, mais ou menos corretamente s alternativas concretas que lhes so apresentadas a cada momento pelas possibilidades do desenvolvimento social. E aqui j est implcito o valor. [...] (Lukcs, 1981, p.77 ou 45). Entretanto, na medida em que novas necessidades sociais vo sendo postas, estes valores tambm sofrem mudanas. Lukcs (1981) afirma que mesmo constatando a permanncia de alternativas sociais que atravessam muitas pocas, os valores atrelados a estas escolhas so permanentemente reinterpretados. Assim, a realizao dos valores est intimamente relacionada s exigncias histrico-sociais. neste processo, que os indivduos, atravs de aes singulares, optam por objetivar valores mais genricos ou mais particulares, os quais elevam ou rebaixam os nveis de generidade humanas.

    Neste sentido, os valores tm um papel fundamental no processo de desenvolvimento social dos homens. Na medida em que estes se constituem como momentos snteses entre possibilidades e necessidades historicamente postas, podem ter um peso fundamental no desdobramento de certas situaes ou mesmo romper com determinaes legais de uma dada formao social (Lessa, 1995).

    [] Com efeito, a alternativa de uma determinada prxis, no est somente em dizer sim ou no a um determinado valor, mas tambm na escolha do valor que forma a base da alternativa concreta e nos motivos pelos quais se assume esta posio. J sabemos: o desenvolvimento econmico a espinha dorsal do progresso efetivo. Por isso, os valores determinantes, que se conservam ao longo do processo, so sempre conscientemente ou no, de modo imediato ou com mediaes s vezes bastante amplas referidos a ele; no entanto, faz objetivamente muita diferena quais momentos deste processo em seu conjunto constituem o objeto da inteno e da ao daquela alternativa concreta. deste modo que os valores se conservam no conjunto do processo social, renovando-se ininterruptamente, deste modo que eles, a seu modo, se tornam partes reais integrantes do ser social no seu processo de reproduo, elementos do complexo chamado ser social. [] (Lukcs, 1981, p. 47).

    Assim como em outras categorias sociais, o processo de socializao dos valores se apresenta de forma contraditria e desigual, manifestando a tenso entre valores genricos e valores particulares. [...] Ou seja, os atos singulares podem adentrar o processo global de

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    reproduo social dirigindo-se ao essencial ou ao fugaz, quilo que o leva avante ou o freia etc., de tal modo que as funes sociais dos atos singulares podem ser qualitativamente bastante diversa entre si (Lessa, 2002, p.162). Na medida em que as relaes sociais vo se tornando mais complexas, esta contraditoriedade tende a se intensificar.

    nesta tenso ineliminvel entre elementos genricos e individuais que se colocam as bases para a conscincia do carter genrico do ser humano.

    [] Valores como justia, igualdade, liberdade etc surgem como expresses concretas, historicamente determinadas, das necessidades genrico-coletivas postas pelo desenvolvimento da sociabilidade. Por serem expresses concretas, histricas, das necessidades humano-genricas, o contedo destes valores se altera com o passar do tempo. Se tais mudanas introduzem novos problemas neste complexo, absolutamente no alteram o fato de tais valores influenciarem decididamente na identificao das necessidades genricas e, deste modo, exercerem um papel central na elevao, em escala social, da contradio singular/universal, gnero/indivduo (Lessa, 2002, p.172).

    Se observarmos o processo de desenvolvimento social dos homens veremos que em determinados momentos a dimenso coletiva dos valores se sobrepunha fortemente sobre a dimenso individual. o que pode ser observado nas sociedades primitivas. O limitado desenvolvimento social destas comunidades requeria um tipo de moral coletivista, ou seja, os valores, as normas, as regras e a cultura como um todo, estavam orientadas no sentido de garantir a segurana e a sobrevivncia desta. Todos os esforos dos indivduos estavam orientados para satisfazer as necessidades da coletividade, no havendo espao, desta forma, para o desenvolvimento das individualidades. A moral destas comunidades se colocava como obstculo ao livre desenvolvimento dos indivduos na medida em que havia uma fuso entre indivduo e comunidade (Vzquez, 2004).

    A contradio entre a dimenso singular e genrica dos valores pode ser observada, em maior ou menor intensidade, em vrios momentos da histria dos homens.20

    A respeito disto, Lukcs (apud Lessa, 1995) nos chama a ateno para algo curioso: a sociedade burguesa a primeira formao social onde se observa o carter puro das relaes sociais, ou seja, somente neste tipo de sociedade as diferenas aparentemente naturais21

    20 No nos deteremos nesta questo por no fazer parte do objetivo deste trabalho. Para entender melhor o

    sentido dos valores e da moral nas sociedades escravistas e nos regimes feudais ver Vzquez (2004). 21

    Como se dava na escravido, ou no sistema de castas.

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    entre os homens deixam de existir e estes passam a ter conscincia de que suas vidas so resultado de determinaes puramente sociais. Somente a partir da sociedade burguesa que se evidencia o carter puramente social da ligao indivduo/sociedade. Apesar disto, justamente com o desenvolvimento da sociabilidade burguesa que a contradio entre as dimenses da generalidade e da particularidade humanas atinge nveis inditos. [] Por um lado, os interesses privados/particulares do bourgeois so tomados como interesses genricos, reduzidos esfera etrea do citoyen, da cidadania, na maior parte das vezes assumem a aparncia de obstculos ao desenvolvimento do indivduo-mnada, do proprietrio burgus (Lessa, 2002, p.163).

    Neste sentido, a moral, os costumes, a tradio e o direito surgem justamente para afirmar, frente s aspiraes particulares dos indivduos, o pertencimento destes ao gnero humano. Assim, na medida em que as contradies prprias do desenvolvimento social tensionam as individualidades entre a particularidade e a generalidade humanas , estes complexos sociais moral, costumes, tradio, direito e a tica atuam como esferas mediadoras no processo de elevao do gnero humano ao seu ser-em-si (Lessa, 1995).

    No entanto, Lukcs (apud Lessa, 1995) sinaliza para o fato de que somente na tica possvel superar a dualidade indivduo/sociedade.

    [] O que distingue, portanto, a tica do costume, da tradio, da moral e do direito , segundo Lukcs, a superao da individualidade que entende sua particularidade como antinmica existncia genrica. Ao se apoderar da individualidade, a "exigncia tica" eleva generalidade o horizonte das finalidades operantes nas decises alternativas de cada indivduo; isto , faz do indivduo uma individualidade autntica, genrica; o torna consciente de ser membro do gnero humano. [...] (Lessa, 1995, p. 102-103).

    Isto no significa afirmar que as aes pautadas na tica anulem a dimenso individual; o que acontece que os indivduos se reconhecem enquanto seres humano-genricos e pautam suas aes a partir desta referncia. [...] ser indivduo e ser membro do gnero humano no formam mais dois plos antinmicos, mas dois momentos de um mesmo ser: a individualidade enquanto partcipe de um gnero elevado ao seu ser-para-si. [...] (Lessa, 1995, p. 11).

    Neste sentido, importante entendermos a constituio dos indivduos no mbito da sociabilidade burguesa, isto porque, como nos lembra Lessa (2002) os processos valorativos adquirem uma nova qualidade com o surgimento das sociedades de classe e da poltica: o

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    antagonismo entre as classes se reflete na gnese e desenvolvimento de valores tambm antagnicos. [...] (p.110).

    A seguir, discutiremos como, a partir das relaes sociais capitalistas, os valores individuais se sobrepem aos valores coletivos, ou seja, como as individualidades nesta formao aparecem contrapostas e superiores ao gnero humano e como isto se constitui em

    um obstculo ao livre desenvolvimento dos homens.

    1.2 OS VALORES NA SOCIEDADE DE CLASSES

    At o momento tentamos elucidar alguns elementos no que ser refere ao trabalho enquanto categoria fundante do ser social e ao processo de reproduo social, lcus da gnese e desenvolvimento dos valores. Vimos tambm como a formao social burguesa ao mesmo tempo em que possui um carter social puro (Lukcs apud Lessa, 1995) coloca as condies para o desenvolvimento de uma individualidade estreita e mesquinha, parte da constituio do homem burgus.

    No entanto, para entendermos a formao dos valores no mbito da sociedade burguesa necessrio recorrermos ao processo de transio do modo de produo feudal para o modo de produo capitalista e s mudanas oriundas desta dinmica.

    impossvel dissociar a gnese e o desenvolvimento do capitalismo dos acontecimentos que marcam a era moderna. A modernidade marcada por uma diversidade de acontecimentos nos mais variados mbitos da vida social: grandes descobertas cientficas; industrializao da produo, a criao de estados nacionais, grandes movimentos sociais de massas e tantos outros acontecimentos que modificaram radicalmente as relaes materiais e sociais entre os homens22 (Berman, 2007).

    Este momento histrico expressa uma dinmica absolutamente revolucionria em todas as dimenses da vida social do homem, seja na relao homem/natureza seja na relao com outros homens. s lembrarmos que no sculo XVI, especificamente na Europa, que o homem passa a ser identificado como produtor e produto de sua prpria e coletiva atividade;

    22 Berman (2007) divide a histria da modernidade em trs fases: a primeira delas refere-se ao perodo

    compreendido entre o sculo XVI at o final do sculo XVIII. A segunda fase marcada pela onda revolucionria de 1790; e a terceira compreende o sculo XX.

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    o surgimento de uma nova viso de homem e de mundo, onde a centralidade da razo foi determinante.

    Observa-se uma nfase na relao homem/natureza desviando o foco, at ento dominante, da relao Deus-Homem. Dois movimentos foram fundamentais para a construo de uma nova viso de mundo: o Humanismo e o Renascimento. Ambos estavam presentes nas Artes, Letras, Filosofia em toda a Europa, em especial na Itlia23. Alm disto, o sculo XVII, foi marcado por inmeras descobertas na rea da Matemtica, da Fsica, da Qumica, Astronomia, Biologia que possibilitaram um progresso importante para a Cincias.

    No entanto, este primeiro momento da poca moderna do sculo XVI ao sculo XVIII trouxe pouco impacto para a vida cotidiana da maioria dos homens. Estes, mal sabiam que aquele era o incio de novos tempos e que tais mudanas, a partir de ento, seriam revolucionrias para a humanidade. De acordo com Berman (2007, p. 25), os homens desta poca [...] tateiam, desesperadamente mas em estado de semicegueira, no encalo de um vocabulrio adequado; tm pouco ou nenhum senso de um pblico ou comunidade moderna, dentro da qual seus julgamentos e esperanas pudessem ser compartilhados. [...].

    Embora a modernidade seja marcada pela centralidade da razo, no final do sculo XVIII se observava que a maioria da populao europia permanecia em estado de ignorncia.24 Esta mesma populao vivia, majoritariamente, no campo e na maior parte da Europa25 o que predominada eram relaes de servido. [...] o campons tpico era o servo, que dedicava uma enorme parte da semana ao trabalho forado na terra do senhor ou o

    23 Este movimento, entretanto, teve o seu declnio em virtude dos efeitos da Reforma, que provocou uma onda de

    irracionalidade na Europa. 24

    importante salientarmos que no existe nenhum paradoxo nesta afirmao. Alm da necessidade de considerarmos a conjuntura econmica, poltica e social da poca, importante lembrarmos que a razo moderna, segundo Horkheimer (apud Netto, 1994) sustentada pela objetividade e pela processualidade; ela tanto objetiva, ou seja, est presente na realidade: nas relaes entre os homens, entre as classes, etc. e tambm subjetiva: reconstruda idealmente na conscincia dos homens. Estas duas caractersticas se constituem como uma unidade processual. 25

    Segundo Hobsbawn (2007) [...] Itlia, ao sul da Toscana e da mbria, e o sul da Espanha [...] tinham trechos onde viviam camponeses tecnicamente livres: colonos alemes espalhados por toda a esta regio, da Elosvnia ao Volga, cls virtualmente independentes nos selvagens montes rochosos do interior da Ilria, camponeses guerreiros quase to selvagens como os panduros e os cossacos [...] (p.32). Um outro pas com caractersticas um pouco diferentes era a Inglaterra. [...] L, a propriedade de terras era extremamente concentrada, mas o agricultor tpico era o arrendatrio com um empreendimento comercial mdio, operado por mo de obra contratada. Uma grande quantidade de pequenos proprietrios, aldees etc., ainda obscurecia este fato. Mas quando tudo se tornou claro, aproximadamente entre 1760 e 1830, o que apareceu no foi uma agricultura camponesa, mas sim uma classe de empresrios agrcolas, os fazendeiros e um enorme proletariado rural. [...] (p. 36).

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    equivalente em outras obrigaes. Sua falta de liberdade era to grande que mal se poderia distingui-la da escravido [...] (Hobsbawn, 2007, p.33).

    As relaes de dominao econmica, poltica e social estavam relacionadas s condies de nascimento do indivduo e de proprietrio de terras. O status de nobre, portanto, estava relacionado a estas duas condies. Mesmo constatando que, j no sculo XVIII, a situao econmica da nobreza se apresentasse frgil, a relao entre posse de terras e classe dominante continuava mais forte do que nunca.

    Embora grande parte do sculo XVIII tenha sido marcada pelas relaes de dominao citadas acima, este mesmo sculo foi fecundo de idias revolucionrias: trata-se da Ilustrao26. Esta deve ser entendida como um momento histrico da cultura Ocidental onde o objetivo maior era a realizao da emancipao humana que, por sua vez, s poderia se realizar atravs de trs elementos fundamentais: da universalidade, da individualidade e da autonomia (Rouanet, 2003). Estes conceitos so a base do projeto da Ilustrao e, assim, fundamentais para entendemos a proposta civilizatria da modernidade.

    O desenvolvimento da cincia se adequava cada vez mais aos problemas no mbito da produo, s necessidades da indstria. O ano de 1780 , portanto, decisivo na histria da humanidade. Ponto de partida da revoluo industrial este o marco histrico onde se observa uma multiplicao rpida de mercadorias e servios. Somente nesta dcada que se revoluciona a produo e, conseqentemente, as relaes entre os homens27 (Hobsbawm, 2007).

    26 importante ressaltarmos aqui a distino entre Ilustrao e Iluminismo. A Ilustrao processo que se inicia

    no sculo XVI e tem o seu auge no sculo XVIII deve ser entendida como um momento histrico especfico de realizao do projeto Iluninista, sendo este ltimo caracterizado pela importncia do homem como ser racional, responsvel pela reflexo sobre si e sobre seu meio. Estas idias marcaram definitivamente a modernidade, pois foram responsveis por impulsionar duas grandes revolues: a Revoluo Industrial, na Inglaterra; e a Revoluo Francesa. 27

    No foi por acaso que a Gr-Bretanha assumiu o protagonismo deste processo. importante lembrar que j no sculo XVII a Inglaterra no tinha mais servido. Embora as propriedades de terras fossem concentradas nas mos de poucos, o que predominava era o arrendatrio comercial mdio e a mo de obra contratada. A partir da dcada de 1760 o que se observa so os empresrios agrcolas e um grande proletariado rural. Foi a combinaes destes fatores que possibilitou Gr-Bretanh o protagonismo na revoluo industrial. Segundo Hobsbawn (2007), no foi nem o seu potencial comercial, tampouco a sua superioridade cientfica que possibilitou tal faanha. No que se refere ao avano comercial e industrial, vrios pases de Portugal Rssia estavam empenhados neste sentido, impulsionados pelas idias da Ilustrao. No que diz respeito ao desenvolvimento cientfico, a Frana tinha um papel de destaque na Europa. Nas cincias naturais estavam a frente dos ingleses e isto veio a se acentuar no perodo ps-Revoluo Francesa.

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    Segundo Hobsbawn (id.) as idias iluministas no se tratam apenas de questionamentos no mbito poltico e social, mas tambm se relacionam ao progresso da cincia, centralidade da razo e interao homem/natureza.

    significativo que os dois principais centros dessa ideologia fossem tambm os da dupla revoluo, a Frana e a Inglaterra; embora de fato as ideais iluministas ganhassem uma voz corrente internacional mais ampla em suas formulaes francesas (at mesmo quando fossem simplesmente v