Tese - Vanessa Brulon - Versão Final Após Defesa (1)
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(DES)ORGANIZANDO O ESPAÇO SOCIAL DE FAVELAS: O CAM PO
BUROCRÁTICO DO ESTADO EM AÇÃO NO CONTEXTO DA “PACIF ICAÇÃO”
VANESSA BRULON SOARES
Tese apresentada à Fundação Getulio Vargas-RJ – Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas, como requisito final à obtenção do título de Doutorado em Administração.
Orientadora: Prof. Dr. Alketa Peci
Rio de Janeiro Junho 2015
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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV
Soares, Vanessa Brulon (Des)organizando o espaço social de favelas: o campo burocrático do estado em ação no contexto da “pacificação” / Vanessa Brulon Soares. - 2015. 318 f.
Tese (doutorado) - Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas, Centro de Formação Acadêmica e Pesquisa.
Orientadora: Alketa Peci. Inclui bibliografia.
1. Favelas. 2. Políticas públicas. 3. Intervenção estatal. 4. Espaço urbano. I. Peci, Alketa. II. Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas. Centro de Formação Acadêmica e Pesquisa. III. Título. CDD – 351
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Esta tese é dedicada à Marcelo Milano Falcão Vieira, com quem
tudo começou, minha eterna fonte de inspiração.
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“(...)Afastando-o com a ajuda de um bom sanduíche de anchova e ovo
cozido, organizou o subgrupo dos dois capivaras, e se dispunha a inscrevê-lo
em seu caderno de trabalhos científicos quando um dos capivaras olhou para
um lado e o outro capivara olhou para o lado oposto, em consequência do
que a esperança e os demais candidatos puderam perceber que, enquanto o
primeiro capivara era evidentemente um nariz achatado braquicéfalo, o
outro possuía um crânio muito mais apropriado para pendurar um chapéu
do que para encaixá-lo. Assim foi que se dissolveu o subgrupo, e do resto
nem é bom falar porque os demais sujeitos haviam passado do mazagrán à
cachaça queimada, e a essa altura dos acontecimentos a única semelhança
entre eles era o firme propósito de continuarem bebendo à custa da
esperança”
(Histórias de cronópios e de famas – Julio Cortázar)
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AGRADECIMENTOS
Agradeço, primeiramente, à minha querida orientadora Alketa Peci, sem a qual esta
tese certamente não seria a mesma. Agradeço-a por assumir o verdadeiro papel de um
orientador e por me ensinar também a sê-lo. Agradeço-a por compartilhar comigo ao longo de
todo o trabalho a sua capacidade analítica ímpar, por me desafiar e me apoiar, sempre nas
medidas certas. Espero que, ao longo deste processo, tenha conseguido apreender pelo menos
um pouquinho da grande pesquisadora que me guiou por esse caminho.
Agradeço aos outros grandes pesquisadores com os quais tive oportunidade de
dialogar neste percurso. À Rafael Alcadipani, a quem muito admiro como pesquisador e como
pessoa, pelos bons conselhos a respeito de uma pesquisa etnográfica, ainda que eu não tenha
seguido a todos, agora com um pouco de arrependimento. À Mariana Cavalcanti, cujas
palavras escritas e faladas, de forma tão inspiradora, me abriram as portas para a antropologia,
me ajudaram a desconstruir as favelas, e tiveram tamanha influência em minha tese e em
minha vida. À Luiz Alex Saraiva, pelas constantes trocas nos congressos da vida, por insistir
em abrir meus olhos de pesquisadora para o que os meus dados tinham a me dizer. À Sueli
Goulart, por me guiar pelos caminhos da geografia, cruciais para os fins desta tese.
Aos queridos amigos do campo acadêmico Rafael Goldszmidt, Anna Katharina Lenz,
Mônica Pinhanez e Diego de Faveri pelas angústias e alegrias compartilhadas, pelas risadas
terapêuticas, por tanto desabafo... Aos queridos amigos dos estudos organizacionais, Amon de
Barros e Daniel Lacerda, pela constante troca e debate teórico, misturados com afetos, e ao
segundo, especialmente, por me conduzir às favelas. Aos queridos amigos não acadêmicos,
tantos que nem consigo sintetizá-los aqui, especialmente por me permitirem não falar da
minha tese!
Ao meu namorado, Eduardo Savino, por tanta coisa, que nem posso enumerá-las
todas... Especialmente, por me oferecer um espaço onde pudesse escrever a minha tese, por
me ajudar a dar um pouco de ordem à minha desordem (que gosto de chamar de criativa),
para que esta tese pudesse ser finalizada. Nenhum agradecimento lhe seria digno.
Aos meus pais, meu irmão e minha família, por todos os acertos e erros que me
conduziram até aqui. É preciso reconhecer que a minha infindável busca por reconhecimento
influenciou-me em traçar esse caminho tão desafiador.
Por fim, agradeço aos meus interlocutores, moradores de favelas e agentes do Estado,
por me doarem tempo, atenção, palavras, gestos, muito café e carinho. Por confiarem em
mim. Espero que esta tese faça jus ao tanto que vocês me ensinaram, e tento com ela retribui-
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los um pouco. Espero ter conseguido, com o meu olhar, mostrar pelo menos parte do que
vocês me mostraram. Obrigada por me receberem tão bem em suas casas e em suas vidas,
tornando a minha saída tão difícil.
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RESUMO Nesta tese tive por objetivo analisar a relação entre o campo burocrático do Estado em
ação e o espaço social de favelas, no contexto da “pacificação”. Para tal, me propus a
responder a três questões de pesquisa: Como os agentes do campo burocrático do Estado se
fazem presentes no espaço social de favelas? Qual é a relação entre o campo burocrático do
Estado em ação nas favelas e os processos de organizar dos agentes do campo? Qual é a
relação entre os processos de organizar dos agentes do campo burocrático do Estado em ação
nas favelas e o espaço social? Para o desenvolvimento da pesquisa, realizei um trabalho de
campo em duas favelas da cidade do Rio de Janeiro, durante 1 ano e 4 meses (de janeiro de
2013 a abril de 2014). Nesse sentido, a coleta de dados se deu por meio de observação
participante e 91 entrevistas com moradores e representantes do Estado. Os dados foram
analisados com base em teoria fundamentada, conforme proposta por Strauss e Corbin (2008),
bem como por meio de análise retórica. Com base nos conceitos de campo proposto por
Bourdieu, na literatura sobre processos de organizar, e na noção de espaço social cunhada por
Lefebvre (2007), busquei demonstrar como os agentes do campo burocrático do Estado
inserem-se nas favelas a partir de lógicas institucionais distintas, o que serve para incentivar
disputas e inibir a cooperações. Mostro como as estratégias retóricas de legitimação utilizadas
pelos agentes apontam para as posições de incumbentes e desafiadores do campo, o que é
reforçado pela análise da distribuição de capitais. Aponto como alguns agentes conseguem ter
acesso ao capital social e informacional, os quais se retroalimentam, enquanto outros possuem
uma concentração maior de capital econômico, espacial e simbólico, aproximando-se das
posições de incumbentes. Em seguida, busco mostrar como os processos de organizar,
imbricados ao campo, assumem, como consequência da dinâmica do campo, padrões de
lentidão, descontinuidades, dispersão e (des)materialização. Por fim, analiso a produção do
espaço social de favelas a partir de um choque entre o campo burocráticos do Estado e o
campo das favelas, o que se expressa em hibridismos e ambiguidades. Há a produção de
hibridismos no espaço, ambiguidades de leis nas favelas, e ambiguidades na própria noção de
organizar, aqui reinterpretada para processos de (des)organizar, tendo em vista que organizam
ou desorganizam para diferentes pontos de vistas. Chego, enfim, à noção de “maquiagem do
espaço”, com base em uma metáfora utilizada pelos moradores para descrever a favela
“pacificada” como uma favela que emite, por meio da dimensão simbólica da matéria,
significados de segurança e progresso, quando é, para seus habitantes, uma favela também
insegura, submetida a uma “administração da pobreza”.
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ABSTRACT
My aim in this thesis was to analyze the relationship between the bureaucratic field of
State in action and the social space of favelas, in the context of “pacification”. To this end, I
propose to answer to three research questions: How are agents of the bureaucratic field of
State present in the social space of favelas? What is the relationship between the bureaucratic
field of State in action in favelas and the organizing of the field agents? What is the
relationship between the organizing of the agents of the bureaucratic field of State in action in
favelas and the social space? For the development of this research, I carried out fieldwork in
two different favelas in the city of Rio de Janeiro for 1 year and 4 months (from January 2013
to April 2014). Accordingly, the data collection was carried out through participant
observation and 91 interviews with residents and State representatives. Data were analyzed
based on grounded theory, as proposed by Strauss and Corbin (2008), as well as through
rhetorical analysis. Based on the concepts of field as proposed by Bourdieu, on the literature
about organizing, and on the notion of social space as coined by Lefebvre (2007), I sought to
demonstrate how agents of the bureaucratic field of State fit into favelas based on distinct
institutional logics, which serves to encourage disputes and inhibit cooperation. I showed how
the rhetorical strategies of legitimation used by agents point to the positions of incumbents
and challengers in the field, which is reinforced by the analysis of capital distribution. I
pointed out how some agents can have access to social and informational capital, which feed
of each other, while others have a higher concentration of economic, spatial and symbolic
capital, getting closer to the incumbent positions. Following, I tried to show how organizing,
enacted to the field, assume, as a result of the dynamic of the field, patterns of slowness,
discontinuities, dispersion and (dis)materialisation. Finally, I analyze the production of the
social space of favelas, from a clash of the bureaucratic field of State and the field of favelas,
which is expressed in hybridisms and ambiguities. There is a production of hybridisms in
space, ambiguity of laws in favelas, and ambiguities in the very notion of organizing, here
reinterpreted for (dis)organizing processes, since to organize or to disorganize varies for
different points of view. I arrive, finally, to the notion of “makeup of Space”, based on a
metaphor used by the locals to describe a “pacified” favela as a favela that sends, through the
symbolic dimension of matter, meanings of security and progress, when it is to its inhabitants,
also an insecure favela submitted to a “administration of poverty”.
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Sumário
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 13 1.1 Objetivo Geral ............................................................................................................ 17 1.2 Objetivos Específicos ................................................................................................ 17 1.3 Relevância .................................................................................................................. 17
2 CONTEXTUALIZANDO ESTADO E FAVELAS ......................................................... 20 2.1 As Representações Sociais em torno das Favelas ...................................................... 21 2.2 As Intervenções Estatais em Favelas ......................................................................... 27 2.3 A Política de “Pacificação” ........................................................................................ 32 2.4 Conclusão ................................................................................................................... 37
3 MÉTODO DE PESQUISA ............................................................................................... 38 3.1 Coleta de Dados ......................................................................................................... 41 3.2 Análise dos Dados ..................................................................................................... 47 3.3 Do Asfalto para o Morro: Desaprendendo o que são as Favelas ............................... 50
3.3.1 As Favelas e os Agentes do Campo Burocrático do Estado ............................... 52 3.3.2 A Inserção no Campo ......................................................................................... 61
4 SOBRE CAMPOS DE PODER: REINTERPRETANDO ESTADO E FAVELAS ........ 64 4.1 Desconstruindo o Estado enquanto “Entidade”: Disputas e Cooperações entre Burocratas do Estado em Ação nas Favelas ......................................................................... 65 4.2 Sobre o Estado enquanto Campo de Poder ................................................................ 70 4.3 O Campo Burocrático do Estado e o Campo Político: Relações e Interdependências 82 4.4 Sobre Favelas enquanto Campos de Poder ................................................................ 99 4.5 Conclusão ................................................................................................................. 111
5 O CAMPO BUROCRÁTICO DO ESTADO EM AÇÃO NAS FAVELAS: AS LÓGICAS EM DISPUTA E O CAPITAL ESPACIAL ......................................................... 113
5.1 Da “Época dos Meninos” a “Depois das UPPs” ...................................................... 115 5.2 Entre Consensos e Discordâncias: as Lógicas por trás das Disputas no Campo Burocrático do Estado ........................................................................................................ 125 5.3 A Dinâmica dos Capitais: Marcando Posições ........................................................ 161
5.3.1 O Capital da Força Física ................................................................................. 162 5.3.2 O Capital Social ................................................................................................ 166 5.3.3 O Capital Informacional ................................................................................... 177 5.3.4 O Capital Econômico ....................................................................................... 184 5.3.5 O Capital Espacial ............................................................................................ 191
5.4 Conclusão ................................................................................................................. 207 6 DISPERSÕES, LENTIDÃO, DESCONTINUIDADES E (DES)MATERIALIZAÇÃO: A RELAÇÃO ENTRE O CAMPO BUROCRÁTICO DO ESTADO E OS PROCESSOS DE ORGANIZAR ......................................................................................................................... 210
6.1 Onde estão as Organizações? Assumindo o Conceito de Processos de Organizar .. 211 6.2 Descontinuidades e Lentidão em Processos de Organizar ....................................... 220 6.3 Dispersões e Sobreposições em Processos de Organizar ......................................... 229 6.4 Organizando para o Acúmulo de Capital: A (Des)Materialização dos Processos de Organizar ............................................................................................................................ 236 6.5 Conclusão ................................................................................................................. 245
7 (DES)ORGANIZANDO O ESPAÇO SOCIAL: HIBRIDISMOS, AMBIGUIDADES E A FAVELA MAQUIADA ..................................................................................................... 247
7.1 As Favelas enquanto Espaços Sociais ..................................................................... 248
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7.2 Quando Campos se Chocam: Hibridismos e Ambiguidades no Espaço Social ...... 254 7.2.1 Hibridismos ...................................................................................................... 258 7.2.2 Que Lei Seguir? A Ambiguidade entre Leis do Tráfico e das UPPs na Favela “Pacificada” .................................................................................................................... 261 7.2.3 A Materialidade Social e os Processos de (Des)organizar ............................... 266
7.3 A Maquiagem do Espaço ......................................................................................... 290 7.4 Conclusão ................................................................................................................. 296
8 CONCLUSÃO: SOBRE A RELAÇÃO ENTRE CAMPOS, PROCESSOS DE ORGANIZAR E ESPAÇO SOCIAL ..................................................................................... 298 9 REREFÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................... 303 10 ANEXOS ........................................................................................................................ 313
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Índice de Figuras
Figura 1. Vista da janela do apartamento onde morava no período da minha pesquisa de campo ....................................................................................................................................... 13 Figura 2. Lógica Burocrática .................................................................................................... 88 Figura 3. Campo das favelas................................................................................................... 111 Figura 4. Capital da força física.............................................................................................. 166 Figura 5. Capital Social .......................................................................................................... 177 Figura 6. Capital Informacional.............................................................................................. 183 Figura 7. Relação entre capital social e capital informacional ............................................... 184 Figura 8. Capital econômico ................................................................................................... 190 Figura 9. Capital Espacial ....................................................................................................... 198 Figura 10. Relação entre capital econômico, capital espacial e capital simbólico ................. 205 Figura 11. Posição aproximada dos agentes no campo burocrático do Estado ...................... 206 Figura 12. Processos de Organizar Descontínuos .................................................................. 225 Figura 13. Processos de Organizar Lentos ............................................................................. 228 Figura 14. Processos de Organizar Dispersos ........................................................................ 234 Figura 15. Processos de organizar sobrepostos ...................................................................... 236 Figura 16. (Des)materialização de processos de organizar .................................................... 242 Figura 17. Acúmulo de processos de organizar ...................................................................... 244 Figura 18. Hibridismos ........................................................................................................... 261 Figura 19. Ambiguidades ....................................................................................................... 290
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Índice de Tabelas
Tabela 1. Entrevistados Favela da zona Sul ............................................................................. 45 Tabela 2. Entrevistados Favela da zona Norte ......................................................................... 45 Tabela 3. Entrevistados Gerais ................................................................................................. 46 Tabela 4. Características dos principais agentes do campo burocrático do estado em ação nas favelas ....................................................................................................................................... 58 Tabela 5. Estratégias de Legitimação – UPP – Logos: Argumentos Racionais com Base em índices de Criminalidade ........................................................................................................ 131 Tabela 6. Estratégias de Legitimação – UPP - Presença ........................................................ 133 Tabela 7. Estratégias de Legitimação – UPP – Argumentos Baseados em Valores .............. 134 Tabela 8. Estratégias de Legitimação – UPP – Argumentos Baseados na Superioridade...... 135 Tabela 9. Estratégias de Legitimação – PAC - Presença ........................................................ 140 Tabela 10. Estratégias de Legitimação – PAC – Ethos – Argumentos Baseados em Valores ................................................................................................................................................ 141 Tabela 11. Estratégias de Legitimação – PAC - Pathos ......................................................... 142 Tabela 12. Estratégias de Legitimação – UPP Social - Logos ............................................... 146 Tabela 13. Estratégias de Legitimação – UPP Social - Presença ........................................... 147 Tabela 14. Estratégias de Legitimação – UPP Social - Pathos ............................................... 149 Tabela 15. Estratégias de Legitimação – Territórios da Paz – Logos .................................... 153 Tabela 16. Estratégias de Legitimação – Territórios da Paz – Presença ................................ 154 Tabela 17. Estratégias de Legitimação – CRAS – Presença .................................................. 156 Tabela 18. Estratégias de Legitimação – CRAS – Pathos ...................................................... 158 Tabela 19. Lógicas institucionais em ação ............................................................................. 160 Tabela 20. Síntese dos agentes do campo burocrático do Estado em ação nas favelas .......... 208
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1 INTRODUÇÃO
Figura 1. Vista da janela do apartamento onde morava no período da minha pesquisa de campo
Esta era a vista da minha janela no período de minha pesquisa de tese. Não obstante as
cortinas, os sons transpassam. As festas do sábado à noite e os cultos religiosos das
madrugadas de segunda atrapalham a leitura do meu Bourdieu e lembram-me que sou vizinha
da favela. Mas a distância do meu sofá ao morro, embora de alguns metros, é suficiente para
dar espaço a especulações sobre a vida na favela, que logo dão os contornos de uma favela
inventada - para mim, real.
Como a minha janela, muitas outras em apartamentos da cidade do Rio de Janeiro
emolduram favelas, e a relação de proximidade distante que mantenho com a minha favela
repete-se para muitos moradores do asfalto. A proximidade inevitável, não importa o quanto
tentamos, não nos deixa ignorar que a favela existe e está logo ali. A distância, quase forçada,
dá margens ao imaginário, e inventamos uma favela de onde só podem sair tiros, funks, armas
e drogas, nossos porteiros, nossas empregadas domésticas e os bandidos que vão nos assaltar.
A favela que vemos da nossa janela, diariamente, não é real? Surpreende quando
Valladares (2005) nos fala sobre a invenção da favela. Mas quando se sobe o morro logo se
sente na pele o que a autora nos mostra em palavras: “essa favela tão evidente é, de certo
modo, uma favela ‘inventada’” (VALLADARES, 2005, p. 21). As diferentes representações
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sociais da favela que foram sendo construídas ao longo do tempo determinam o que hoje os
moradores do asfalto entendem como “favela” (VALLADARES, 2005). Os incontáveis
estereótipos atrelados à palavra compõem uma carga muito pesada que nos inibe de subir o
morro, que nos mantém presos à favela que inventamos1.
Nesse processo de construção da favela, naturaliza-se o uso do singular e a palavra
“favela” passa a representar todos esses territórios como iguais e unitários (VALLADARES,
2005). A ideia de homogeneização desses territórios é cada vez mais reforçada frente a
propostas como a tese da “cidade partida” (VENTURA, 1994), em que a favela (no singular)
representa “a outra metade da cidade” (VALLADARES, 2005). Lógica conveniente, que
muitas vezes serve para justificar um tratamento igual a territórios tão diversos
(VALLADARES, 2005).
As intervenções do Estado nas favelas, por meio de seus representantes - diferentes em
outros territórios, mas semelhantes em todas as favelas (pensadas no singular) -
acompanharam historicamente as representações sociais das favelas. Em síntese, foram
passando de ações que priorizavam as remoções das favelas, entendidas como um “problema
social”, a tentativas de “integração” da “outra metade da cidade” (CAVALCANTI, 2009).
“A outra metade da cidade”, considerada o lugar dos marginais, principalmente a
partir da década de 1980, passa a ser construída, com um importante reforço da mídia, como
um território de violência, conforme mostra Valladares (2005) em sua reconstrução histórica.
A instalação do tráfico de drogas prioritariamente em favelas ajudou a estigmatizá-las como
“antro de criminosos”. Os episódios de disputas entre traficantes e policiais, que com
frequência tem as favelas como palco, foram sendo transformados em grandes espetáculos
violentos, transmitidos pelos jornais e TV à população que não os acompanha ao vivo. Aos
poucos, todos os que residem em favelas passaram a ser “confundidos” com os protagonistas
dos crimes que assistimos na TV, e a eles foi atribuída a responsabilidade pela violência que
priva a liberdade dos “cidadãos de bem”.
Em um contexto de fragmentação do território (SANTOS, 2008), característico do
momento atual, torna-se possível encontrar espaços às margens do Estado, que se apresentam
como periferias onde as pessoas são insuficientemente socializadas nas leis (DAS e POOLE,
2004), onde o Estado não se faz presente da mesma forma e na mesma intensidade (ASAD,
2004). Dito de outra forma, a presença do Estado não é homogênea em todo o território
1 Mesmo os moradores do asfalto que sobem a favela, como os turistas, por exemplo, sobem, em geral, uma favela inventada, sem a intenção de desconstruí-la. Os carros de “Safári” utilizados para transportar os turistas ilustram bem essa situação.
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nacional (MACHADO DA SILVA, 2008a). No contexto brasileiro em geral e, em particular,
no Rio de Janeiro, os espaços às margens do Estado podem ser representados principalmente
pelas favelas, historicamente identificados como a expressão de antítese da ordem pública
(STROZEMBERG, 2009).
A presença do tráfico prioritariamente em favelas, ajudou a reforça-la enquanto um
espaço às margens do Estado, e aos traficantes foram sendo associadas analogias ao Estado,
que os apontam enquanto um “poder paralelo” dentro das favelas. As “leis do tráfico”, os
“tribunais do tráfico”, o “dono do morro” são expressões que nos levam a crer que as favelas
sob domínio do tráfico possuem um funcionamento próprio, ou suas próprias regras, e,
portanto, não estão inseridas nas leis do Estado, estão às suas margens.
O tráfico de drogas, ainda, ao ser apontado como um “poder paralelo”, destaca-se
como uma importante ameaça à posição do Estado enquanto detentor do monopólio do uso
legítimo da violência. A legitimidade do Estado é posta em xeque frente a um grupo de
criminosos que agora são vistos como os “donos do morro”, que dizem possuir um espaço que
é público, onde exercem a violência que ganha as páginas dos jornais. As imagens de
traficantes armados, portando de pistolas a fuzis, expondo suas armas, sem nenhum receio,
nas favelas, são conhecidas por qualquer brasileiro, e nos levam a crer que, nesses espaços, o
monopólio da violência está em outras mãos. O contexto de aumento da violência urbana
vivido pela cidade do Rio de Janeiro leva-nos a buscar um culpado pela sensação de
insegurança diária, e é difícil não lembrar das imagens daqueles jovens armados dentro das
favelas - atribui-los a culpa segue-se como a saída mais natural.
É nesse sentido que a partir da década de 1980 as intervenções do Estado em favelas
ganham um diferencial: querem combater a criminalidade que estes territórios de violência
parecem originar. A figura dos traficantes como os “donos do morro” começa a atrair uma
séria de ações de representantes do Estado nas mais diversas áreas de atuação
(CAVALCANTI, 2009). Correspondendo à construção da favela como territórios de
violência, as ações parecem girar em torno da questão da segurança pública, que ganha lugar
de destaque. Representantes de organizações públicas - da área urbanística, social ou de
segurança - são guiados pela mesma crença de que mais investimentos na favela levam à
redução da violência urbana (CAVALCANTI, 2009).
Seguindo essa tendência, foi implementada, a partir de 2008, no Rio de Janeiro, a
chamada “política de pacificação”, por meio da qual são instaladas Unidades de Polícia
Pacificadoras (UPPs) nos espaços das favelas, com o objetivo de recuperar o controle destes
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territórios (BANCO MUNDIAL, 2012). Como consequência da “pacificação”, outros
representantes do Estado também foram entrando, e a presença do Estado em favelas foi
intensificada. Após um histórico de políticas anteriores que acabaram como tentativas mal
sucedidas, agora os representantes do Estado entram em uma tentativa de inseri-los em suas
leis, ainda seguindo uma lógica de “integração” das favelas à cidade.
Mas não foi preciso muito tempo de pesquisa de campo para que eu reforçasse a
minha suspeita inicial de que estes diversos representantes do Estado que adentram as favelas,
ou nelas permanecem, em um contexto de “pacificação”, são, eles mesmos, concorrentes nos
espaços de favelas. O ideal comum de “integrar” a favela à cidade não parece ser interpretado
da mesma forma pelos diversos representantes, e isto os leva a disputar uma posição que os
permita definir o que seria este ideal de “integração”, ou, nas palavras de Bourdieu (2014), o
que seria o bem público para aquela população. Foi a partir destas reflexões que me aproximei
do conceito de campo, que já me era caro, para tratar do Estado nas favelas. Portanto, me
refiro nesta pesquisa ao campo burocrático do Estado como o conjunto de representantes do
Estado que compõem a burocracia pública por meio de algum vínculo formal, e a estes
representantes, como agentes do campo, por vezes individuais, por vezes coletivos, como
organizações.
Busco atender ao apelo de pesquisadores em estudos organizacionais, como Dale e
Burrell (2008) ou Clegg e Kornberger (2006), que chamam atenção para o fato de que as
organizações não estão atentas para elementos do mundo material e social, são omissas em
relação ao espaço que ocupam - e o próprio fato de serem pensadas como organizações
prontas, como entidades definidas a priori, aponta para esta omissão. Mas para a retomada da
dimensão espacial na análise organizacional, faz-se necessário a compreensão do espaço
como uma realidade social, um conjunto de relações e formas, como produto e produtor,
como um espaço social (LEFEBVRE, 2007). E em decorrência da mútua relação de produção,
a qual se estabelece entre organizações e espaço social, as primeiras são melhor representadas,
em uma perspectiva processual, como processos de organizar, “as they happen” (SCHATZKI,
2006). Ou podem ainda ser tratadas como organizações, mas com a ênfase na palavra “ação”
que contêm, mas às vezes escondem – como organiz(Ações), para não esquecermos que são
também processos.
Compreendendo que são os efeitos sobre o espaço social aqueles de maior relevância
para a vida dos habitantes das favelas, volto o meu olhar nesta pesquisa para a produção do
espaço social por meio de processos de organizar dos agentes do campo burocrático do Estado
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em ação nas favelas. Especialmente em um contexto em que as ações do Estado em favelas
estão intensificadas, e tendo em vista que as transformações no espaço social produzem
consequências duráveis (CARLILE ETA AL, 2013), busco, na presente tese, responder ao
seguinte problema de pesquisa: qual é a relação entre o campo burocrático do Estado em ação
e o espaço social de favelas, no contexto da “pacificação”?
1.1 Objetivo Geral
Analisar a relação entre o campo burocrático do Estado em ação e o espaço social de
favelas, no contexto da “pacificação”.
1.2 Objetivos Específicos
• Analisar como os agentes do campo burocrático do Estado se fazem presentes no
espaço social de favelas;
• Analisar a relação entre o campo burocrático do Estado em ação nas favelas e os
processos de organizar dos agentes do campo;
• Analisar a relação entre os processos de organizar dos agentes do campo burocrático
do Estado em ação nas favelas e o espaço social;
1.3 Relevância
Do ponto de vista teórico e metodológico a proposta de tese que aqui se apresenta
busca contribuir para uma releitura das perspectivas organizacionais a partir de lentes
bourdiesianas, que apresentam o potencial de resgatar uma visão processual, com reflexos
epistemológicos e metodológicos na forma como concebemos e olhamos as organizações. Tal
perspectiva possibilita o questionando do essencialismo e de dualismos, tão caros às teorias
organizacionais e nelas de tal forma arraigados, que nos amarra a análises limitadas dos
fenômenos organizacionais e de suas consequências para o mundo material e social.
A perspectiva de Bourdieu, inerentemente processual, possibilita ainda o resgate da
dimensão espacial, tendo em vista que para se pensar o espaço social também é preciso
superar os dualismos e compreendê-lo como inacabado e, portanto, dinâmico (LEFEBVRE,
2007). Embora negligenciada em estudos organizacionais, a dimensão espacial é rica em suas
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possibilidades de contribuições para a área. Conforme mostrou Goulart (2006), o conceito de
espaço possibilita ampliar a compreensão dos efeitos das ações organizacionais para a
sociedade.
A centralidade da noção de poder pode também ser recuperada a partir de uma ótica
dinâmica. Os jogos inerentes aos campos, retratados por Bourdieu, permitem pensar o poder
de forma processual e relacional. Nesse sentido, busco reforçar, apoiada na lente
bourdieusiana, a relação entre o poder e o espaço social, marcada e remarcada por muitos
autores da geografia (Ex: SOUZA, 2002; RAFFESTIN, 1993; BRANDÃO, 2007; CASTRO,
2003; EDUARDO, 2006), mas raras vezes explorada empiricamente, principalmente devido à
dificuldade de operacionalização da categoria “poder” e de sua identificação no território em
análise (RAFFESTIN, 1993), seja na geografia ou em estudos organizacionais.
Embora adote a perspectiva de Bourdieu para pensar o Estado como um campo
burocrático, também procuro atualizá-la, na medida em que aponto para a importância de se
trabalhar com uma nova espécie de capital, o capital espacial. A bem fundamentada proposta
de Bourdieu para se pensar o Estado, quando transposta para o contexto contemporâneo, um
contexto de fragmentação do território (SANTOS, 2008) e de espaços às margens do Estado
(DAS e POOLE, 2004), ou, mais especificamente, para o contexto atual das favelas,
demandou aqui ser complementada por uma nova espécie de capital que amplia as
possibilidades de compreensão do campo burocrático do Estado em ação nas favelas.
O conceito de capital espacial aqui proposto também aponta para uma intensa
interferência do Estado na materialidade das favelas, como forma de acúmulo desta espécie de
capital. Indo ao encontro da superação de dualismos presente na perspectiva de Bourdieu,
adoto a noção de materialidade social como forma de apontar para um imbricamento entre
social e material, e, mais ainda, para uma capacidade de organização da matéria,
extremamente relevante nos espaços de favelas.
A partir da análise da materialidade social, e dos efeitos da matéria na organização do
espaço, busco desconstruir a noção de “organizar”. Mostro que organizar ou desorganizar
podem ser intercambiáveis dependendo da lógica específica de cada campo, e que as favelas,
embora à primeira vista pareçam espaços marcados pela desorganização, possuem a sua forma
própria de organizar. É nesse sentido que proponho o conceito de processos de (des)organizar,
tendo em vista que os mesmos processos podem se assumir como organizadores ou
desorganizadores, a partir de diferentes pontos de vista.
19
Proponho-me a tratar, neste trabalho, da questão das favelas, que foram historicamente
transformadas em um “problema” a ser resolvido (VALLADARES, 2005) e que, portanto,
acabam por entrar na agenda do pesquisador como um tema que clama por soluções. Como as
favelas suscitam debates, e por alguns são consideradas um “problema social grave”, acredito
que o trabalho que venho desenvolvendo pode trazer luz à temática das favelas e das
intervenções públicas nestes territórios, favorecendo o encontro de alternativas para se pensar
a questão, e quem sabe até para se repensar a sua condição de “problema social grave” que
requer soluções urgentes e bem específicas, porém iguais para todas as favelas.
Reforço, entretanto, que não me coloco aqui em uma posição assistencialista, com a
pretensão de “resgatar”, “empoderar” ou “dar voz” a uma população mais pobre e desprovida
de recursos. Acredito que o meu campo muito mais me “salva” do que eu a ele. Busco, isto
sim, por meio deste trabalho, problematizar a categoria “favela” e as demais questões que esta
palavra suscita. Procuro repensar a “favela” tratada no singular (VALLADARES, 2005) e os
consequentes tratamentos homogêneos que recebem. Chamo atenção para a importância de se
refletir sobre questões esquecidas, mas que se escondem por trás da palavra “favela”: o que
faz de um território uma favela? Por que outras regiões da cidade igualmente desprovidas de
certos serviços públicos não recebem essa denominação? Isto é um benefício para estas
regiões? Ou, mais ainda, ainda faz sentido falarmos em “favela”? Embora eu não tenha a
pretensão de responder a essas perguntas, elas perpassam o trabalho como forma de
incomodar o leitor e gerar reflexões.
Por fim, embora analise as intervenções estatais em favelas, também não me posiciono
de forma a “propor ‘soluções’ para o ‘problema social’ das favelas” ou a ajudar o poder
público a “integrá-las” ao restante da cidade (MACHADO DA SILVA, 2011, P. 699). Mais
uma vez, acredito que minha contribuição vai no sentido de colocar em questão, de buscar
problematizar as intervenções estatais em favelas, que se intensificam em um contexto de
“pacificação”. Porém acredito, é claro, de forma talvez ingênua e idealista, que meu trabalho
possa vir a encontrar os meus interlocutores, os quais me doaram tempo e atenção,
responderam às minhas perguntas, compartilharam um conhecimento único, e me
contagiaram, por meio de seus brilhos nos olhos, com um pouco mais de esperança. Livre de
um objetivo propositivo, este trabalho lança luz sobre a relação entre Estado e favela, e espero
que possa cair nas mãos desses sujeitos, cheios de boa vontade, que podem fazer bom uso do
conteúdo que se segue.
20
2 CONTEXTUALIZANDO ESTADO E FAVELAS
A sensação de insegurança, real ou produzida, permeia em algum momento aqueles
que circulam pelo espaço público. Desconfia-se de alguém, troca-se de calçada, trocam-se
olhares suspeitos e atentos a possíveis atos de violência. Quer-se circular livremente por uma
cidade segura, sem que seja preciso lembrar, cotidianamente, que naquela cidade também
circulam “criminosos” ou “bandidos”.
A expansão da criminalidade, impulsionadora do cenário descrito, põe em xeque o
papel do Estado como garantidor da ordem pública. O monopólio do uso legítimo da
violência pelo Estado é questionado em um cenário de insegurança generalizada e a
legitimidade do Estado torna-se ameaçada.
Diante da ameaça, procura-se um culpado. Recai sobre os “marginais”,
geograficamente localizados em espaços às margens do Estado (DAS e POOLE, 2008), a
responsabilidade pela origem e disseminação da criminalidade. Representados no Brasil
principalmente por favelas, os espaços “marginais” costumam ser considerados a gênese do
crime, o berço dos bandidos que tiram a paz dos cidadãos. A invenção da favela como um
território de violência (VALLADARES, 2005) a transformou em ímã para ações em prol da
segurança.
As ações do Estado, manifestas em geral por meio de políticas de segurança e
habitação/urbanização, ou a partir de programas e projetos sociais, implementados por uma
rede de órgãos públicos, voltam-se, incessantemente, para um mesmo espaço: a “favela”
(pensada no singular). Embora as favelas não contem com a presença do Estado na mesma
proporção que o restante da cidade, são alvo de uma série de programas e políticas públicas
que, independente de sua área principal de atuação, coincidem, em geral, no contexto atual,
em seu objetivo maior de integração da favela à cidade .
Entretanto, as ações do Estado não têm sido consideradas como bem sucedidas frente a
este objetivo maior. Não obstante os diversos representantes do Estado que atuam ou atuaram
em favelas nos últimos anos, a população externa permanece insatisfeita com a elevada
criminalidade, a qual atribuem às favelas, e os habitantes de favelas continuam com algumas
demandas básicas não satisfeitas.
O programa de Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs) surgiu em 2008, no estado
do Rio de Janeiro, como mais uma tentativa de combate à violência e voltado, mais uma vez,
para os territórios de favelas. O programa trouxe com ele outras iniciativas públicas que
passaram a atuar em favelas “pacificadas”, intensificando a ação do Estado nestes territórios.
21
Com vistas a trazer luz para o cenário atual em que a presença do Estado em favelas
vem se dando de forma mais intensa, este capítulo tem por objetivo contextualizar as
intervenções estatais em favelas, de seu percurso histórico ao contexto atual. Para tal, discuto
as representações sociais em torno das favelas, e as consequentes intervenções públicas nestes
territórios, conduzindo ao contexto atual da favela “pacificada”.
2.1 As Representações Sociais em torno das Favelas
Não é difícil perceber, quando se chega a uma nova cidade, onde estão os espaços
reservados aos considerados “marginais”, muito embora as fronteiras entre estes e outros
espaços sejam muitas vezes imprecisas. As grandes cidades, desde sua origem, sempre
procuraram destinar espaços, geralmente às margens (DAS e POOLE, 2004), aos “excluídos”
ou “menos favorecidos”.
Durante o século XIX, eram os cortiços que ocupavam o papel de lugar de pobreza e
serviam como moradia para aqueles que na época eram considerados membros de uma “classe
perigosa” (VALLADARES, 2005). Portanto, os cortiços tinham a eles associada a ideia de
“antro da vagabundagem e do crime, além de lugar propício às epidemias, constituindo
ameaça à ordem social e moral” (VALLADARES, 2005, p. 24). Por isso, eram com
frequência alvo dos discursos médicos e higienistas, o que muitas vezes desencadeava a
adoção de ações por parte dos governos (VALLADARES, 2005). Um exemplo, talvez dos
mais emblemáticos, foi a demolição do famoso cortiço “cabeça de porco”, no final do século
XIX na cidade do Rio de Janeiro (VALLADARES, 2005).
Segundo Valladares (2005), alguns estudos sugerem que os cortiços podem ser
considerados o “germe” da favela. Conforme os cortiços foram perdendo seu lugar de
destaque dentre aqueles preocupados com o higienismo, a partir do início do século XX, as
favelas vão, pouco a pouco, assumindo esse lugar (VALLADARES, 2005).
A acelerada disseminação de favelas no Brasil teve início no fim do século XIX,
quando foi formada a primeira aglomeração urbana que recebeu esse nome na cidade do Rio
de Janeiro, no Morro da Providência (OLIVEIRA, 1985). O Morro da Favella, como
inicialmente era chamado, surge a partir da instalação, iniciada em 1887, de combatentes de
Canudos que tinham por finalidade exercer pressão para que o Ministério da Guerra pagasse a
eles o que os devia (VALLADARES, 2005). Não há consenso, entretanto, em relação à
origem do nome. Conforme explica Valladares (2005), embora alguns defendam que o nome
advém da planta favella, comum no morro da Favella situado na Bahia e também encontrada
22
no morro carioca que recebeu este nome, outros defendem que o Morro da Favella localizado
na Bahia foi um local de resistência dos combatentes durante a guerra de Canudos.
Aos poucos a denominação “Morro da Favella” passou a ser estendida para qualquer
aglomerado de barracos sobre terrenos invadidos, que não contavam com serviços públicos
(VALLADARES, 2005; OLIVEIRA, 1985). Embora, conforme relata Valladares (2005), já
existissem outras aglomerações semelhantes ao Morro da Favella, foi este último que entrou
para a história a partir de sua relação com Canudos e que teve seu nome associado ao
fenômeno em geral.
No início do século XX, as favelas começaram a se expandir e a se tornar “visíveis”
(OLIVEIRA, 1985). Embora esse processo tenha sido iniciado nos anos de 1930, é nos anos
1950 a 1960 que começa uma expansão descontrolada das favelas (VALLADARES, 2005).
Segundo Pino (1998), foram principalmente problemas como inflação, desemprego, bem
como altos preços de aluguéis que levaram a este quadro. As favelas foram se constituindo
como parte da evolução urbana de algumas cidades do Brasil, como Belo Horizonte, Recife,
Salvador e Brasília (SILVA, 2009). Agravado pela tendência migratória para centros urbanos,
o crescimento das favelas acelerou-se, e em 1950 7% da população total da cidade do Rio de
Janeiro morava em favelas (OLIVEIRA, 1985).
As favelas têm sido tradicionalmente definidas a partir de uma lista de características
que se propõem comuns e generalizáveis a todas as favelas e que, em geral, retratam um
cenário de precariedade. Segundo Maricato (2001), por exemplo, o termo “favela” refere-se a
regiões marcadas por uma situação ilegal de ocupação do solo, na qual o morador não tem
direito legal sobre a terra que ocupa, podendo ser despejado a qualquer momento. A autora as
caracteriza como regiões sujeitas à exclusão urbana, já que são mal servidas pela
infraestrutura e serviços urbanos, como os de água, esgoto ou transporte. Outro problema das
favelas, levantado pela autora, diz respeito à sua localização em áreas ambientalmente frágeis,
como encostas íngremes ou beira de córregos, sujeitas a desmoronamento. Nesse mesmo
sentido, segundo Zaluar e Alvito (2006), as favelas ficaram oficialmente registradas como
uma área marcada por habitações irregulares, ausência de plano urbano, água, esgoto ou luz.
A partir de suas definições correntes, as favelas são caracterizadas como espaços
fortemente marcados por uma lógica de ausências, e historicamente definidos a partir daquilo
que não tem ou não são (OBSERVATÓRIO DE FAVELAS, 2009). Como explicam Zaluar e
Alvito (2006), a partir destas definições, as favelas acabaram sendo associadas a uma imagem
de carência, falta, vazio. Cavalcanti (2007) destaca os termos “pobreza” e “ilegalidade” como
23
aqueles que, historicamente, passaram a constituir a essência da maior parte das definições da
palavra “favela”.
A caracterização das favelas como espaços carentes, precários em uma série de
aspectos, além da carga pejorativa que acaba por associar a esses espaços, leva a uma falsa
ideia de homogeneidade entre os diversos territórios denominados de favela. Para Valladares
(2005, p. 151), ao se pensar a favela no singular, acaba-se reduzindo “um universo plural a
uma categoria única” e negando as diferenças de natureza sociológica que existem entre elas.
Como lembra Cavalcanti (2009), diversos estudos já mostraram que as características
tradicionalmente suscitadas para definir o que são as favelas já não são mais capazes de
retratar a diversidade de realidades que hoje estão atreladas à palavra “favela” e que por ela se
pretende representar. O Observatório de Favelas (2009), uma organização social de pesquisa
que se dedica a produção de conhecimento sobre favelas e fenômenos urbanos, em relatório
resultante do seminário “O que é favela, afinal?”, realizado em 2009, defende que esses
espaços devem ser definidos a partir daquilo que eles são, e devem ser reconhecidos em sua
especificidade sócio-territorial.
Mesmo em sua diversidade, os territórios de favelas possuem em comum uma
importante característica: o nome a eles atribuído. Em decorrência do nome que
compartilham, os territórios chamados favelas passam também a compartilhar uma série de
estereótipos e estigmas que as levam a receber um tratamento comum.
Como bem mostra Valladares (2005), a favela foi inventada. Não obstante a
concretude que a favela parece ter, retratada por estatísticas diversas e por sua frequente
presença nos noticiários, uma séria de representações sociais a respeito da favela foi sendo
construída nos últimos 100 anos (VALLADARES, 2005). Em sua obra A invenção da favela:
do mito de origem a favela.com, Valladares (2005) retoma às representações sociais da favela
desde sua origem, e mostra como esta passou de um problema a ser solucionado, alvo de um
discurso médico-higienista, a um problema que exigia administração e conhecimento e até
mesmo à solução. Mostra, ainda, o surgimento da favela como objeto de interesse das ciências
sociais e como as inúmeras pesquisas, que foram sendo desenvolvidas principalmente desde a
década de 1950, ajudaram a desencadear uma série de dogmas sobre os territórios de favelas.
À favela inventada, aos poucos foi sendo associada uma noção de marginalidade, que
se originou de uma diversidade de perspectivas que compõem o que ficou conhecido como
teoria da marginalidade, desenvolvida principalmente a partir da década de 1960
(VALLADARES, 2005). Como explica Valladares (2005), a teoria da marginalidade
24
articulou-se à ideia da existência de uma “cultura da pobreza” e passou a ser associada a
espaços urbanos “marginais”, segregados do restante da cidade, como eram consideradas as
favelas.
Em artigo originalmente publicado em 1967, Machado da Silva (2011) já chamava
atenção para ideia de marginalidade expressa em uma das vertentes que estudam as favelas.
Segundo o autor, a perspectiva que tem o intuito de propor soluções para o “problema social”
das favelas, tem por trás a crença de que é preciso integrar a favela ao restante da cidade, de
que a favela funciona como uma entidade autônoma, autonomia esta “expressa em termos de
uma ‘marginalidade’ sociopolítica e econômica” (MACHADO DA SILVA, 2011, p. 699). O
autor apresenta uma visão crítica a essa posição e defende, em primeiro lugar, que ao partir de
uma ideia de favela como algo isolado, essa vertente ignora os vínculos que esta estabelece
com o sistema global. Machado da Silva (2011) aponta, ainda, que a compreensão da favela
como “marginal” leva a uma postura assistencialista e também dá margens à imposição de
valores das classes dominantes como forma de solucionar os seus problemas.
Uma síntese do debate em torno da Teoria da Marginalidade, que também se apresenta
como uma crítica a esta teoria, foi apresentada por Perlman (2002) no livro O mito da
marginalidade. Embora tal livro tenha recebido muito destaque em âmbito nacional e
internacional, Valladares (2005) lembra que a crítica que a autora traz à teoria da
marginalidade não é original ou pioneira, mas segue, isto sim, o trabalho de outros autores,
brasileiros e americanos, como o próprio Machado da Silva (2011), que já haviam discutido a
questão.
Ao discutir o “mito da marginalidade”, Perlman (2002) mostra que há um conjunto de
estereótipos atrelado às favelas, de tal forma generalizado, que constitui uma ideologia
utilizada para justificar as políticas das classes dominantes voltadas para as favelas. A partir
de uma revisão das escolas de pensamento que se desenvolveram em torno da noção de
marginalidade, Perlman (2002) chega a um “tipo-ideal” da subcultura marginal, que
representa a figura do favelado como um indivíduo caracterizado como desorganizado e
isolado, pobre, desintegrado da vida política da cidade ou que assume uma postura de
radicalismo de esquerda, para mencionar alguns dos seus traços.
A partir da visão dicotômica da cidade, incentivada pela teoria da marginalidade e
anos mais tarde reforçada pela tese da “cidade partida” (VENTURA, 1994), as favelas,
pensadas de forma unitária, recebem até hoje estereótipos diversos que mudam de acordo com
o contexto histórico e social. Dentre tais estereótipos, pretende-se aqui destacar, como forma
25
de trazer luz ao contexto atual das favelas, aquele relacionado à violência urbana, que
identifica as favelas como a gênese do crime.
Ao tratar da favela “inventada”, referindo-se às diversas formas de representação
social que as favelas assumem ao longo da história, Valladares (2005) demonstra a invenção
da favela como um território de violência, que se desencadeou principalmente a partir da
década de 1980. A autora explica que “a associação, quase sistemática, entre pobreza e
criminalidade violenta fez da favela sinônimo de espaço fora da lei, onde bandidos e policiais
estão constantemente em luta” (VALLADARES, 2005, p. 20). E com isso as favelas passam a
ser vistas como a outra metade da cidade, metade marcada pela violência e pela pobreza
(VALLADARES, 2005).
Valladares (2005) associa o fenômeno descrito com a ideia de apartheid socioespacial
ou de uma segregação espacial entre morro e asfalto. Segundo a autora, à imagem da favela
como território de violência, pode-se acrescentar, a partir desta leitura, uma representação da
favela como o lugar por excelência da exclusão social, e destaca que a segunda serve para
reforçar a primeira.
Mas a ideia das favelas como territórios de violência também parece estar associada à
ação do tráfico de drogas e milícias, que se instalam prioritariamente nestes territórios. Para
Machado da Silva (2010), a segregação espacial, marca das grandes cidades, favorece a
concentração do tráfico nas favelas, redefinindo a imagem pública destes territórios como
territórios marcados pela violência. Os sistemas de controle e proteção social, frágeis nos
territórios onde a pobreza predomina, também facilitam o estabelecimento do tráfico
(MACHADO DA SILVA, 2010). As favelas acabam por assumir um papel de destaque neste
processo, firmando-se como o local privilegiado da venda de drogas nos centros urbanos
(SAPORI, 2007), embora seja importante lembrar que o tráfico de drogas também acontece
fora das favelas.
Com o fortalecimento do tráfico de drogas, especialmente a partir da década de 1980,
a questão passou a se tornar um dos focos centrais das políticas de segurança pública, e a
“guerra ao tráfico” passou a se basear “no combate às redes de distribuição de drogas em
favelas, através do confronto armado entre policiais e traficantes” (GRILLO, 2013, p. 5).
Grillo (2013) ressalta como um dos efeitos desta “guerra ao tráfico” a estigmatização dos
moradores das favelas.
Em sua etnografia sobre o crime, realizada em diversas áreas do Rio de Janeiro
controladas pela facção do tráfico de drogas intitulada Comando Vermelho, Grillo (2013)
26
mostrou como a firma2 mimetiza o Estado e busca alcançar o monopólio do uso legítimo da
violência dentro do espaço das favelas. A autora mostra, ainda, como as lideranças destes
grupos buscam legitimar o seu poder usando, para isso, práticas como comprar remédios para
alguns moradores ou brinquedos para crianças.
Essa “mimesis” da forma-Estado, demonstrada por Grillo (2013, p. 65), reforça a ideia
de “poder paralelo”, a crença na “existência de um Estado dentro do Estado”. Entretanto,
Grillo (2013) reforça que não há realmente um Estado dentro de um Estado, e que embora o
tráfico mimetize a forma-Estado ele não a é. A autora lembra que existe uma grande
superioridade do poder armado do Estado, o que faz com que traficantes tenham que negociar
e pagar subornos aos policiais para resolver questões como possíveis prisões ou repressões
policiais. Assim, segundo a autora, os traficantes, simultaneamente, relacionam-se com o
Estado e a ele se opõem. O que não significa dizer que o poder do tráfico não ameace a
legitimidade do Estado, tendo em vista que como ressalta a própria autora, e o que aqui é
importante retomar, o tráfico de drogas “disputa com o Estado o monopólio da violência
legítima em seus territórios de atuação” (GRILLO, 2013, p. 69).
Além da ação do tráfico, as favelas também se destacam como locais de atuação de
milícias. Segundo Zaluar (2007) as milícias se disseminaram nas favelas, principalmente a
partir de 2000. A autora explica que esses grupos podem ser entendidos como “organizações
formadas primordialmente por policiais e bombeiros militares, além de guardas penitenciários
– ativos ou aposentados -, que garantem a segurança de moradores de algumas vizinhanças
em troca de uma taxa mensal” (ZALUAR, 2007, P. 89). Nos casos em que as milícias atingem
um maior grau de desenvolvimento, elas impõem à população, além de seu serviço de
segurança, a compra de sinal ilegal de TV a cabo, a compra de mercadorias por um valor mais
elevado, uma taxa para o comércio de imóveis, ou uma taxa para cooperativas de transportes
alternativos, como os mototaxis ou as kombis (ZALUAR, 2007).
A mídia também parece assumir um papel importante na invenção da favela como
território de violência (VALLADARES, 2005). Segundo Valladares (2005), a partir da década
de 1980, a mídia brasileira passou a reservar espaço cada vez maior a reportagens retratando
as ações do tráfico de drogas, a criminalidade e a violência nas favelas. O estudo sobre a
evolução da cobertura da imprensa brasileira sobre segurança pública realizado por Ramos e
Paiva (2007) mostra que há um reconhecimento por parte dos próprios profissionais da área
de que os seus veículos contribuem para a associação entre territórios populares e violência, 2 Forma como é denominada a organização das atividades comerciais do tráfico de drogas da facção Comando Vermelho, em referência ao seu caráter empresarial (GRILLO, 2013).
27
tendo em vista que a grande maioria de reportagens sobre favelas nos últimos anos abordam
temáticas como tiroteios ou ações policiais.
É como consequência de uma diversidade de fatores característicos do contexto atual
que “as favelas passaram a ser vistas – pouco importa o quão errônea possa ser essa
compreensão – como o valhacouto de criminosos que interrompem, real ou potencialmente, as
rotinas que constituem a vida ordinária na cidade” (MACHADO DA SILVA, 2010, p. 297).
Com isso, os moradores das favelas passaram a ser identificados de forma generalizada como
bandidos ou quase bandidos (MACHADO DA SILVA, 2008a). Mais ainda, para Zaluar
(1999), tem-se hoje, dentro deste cenário, um paradoxo que marca o contexto urbano, em que
os pobres assumem, simultaneamente, um protagonismo como responsáveis e vítimas dos
crimes.
Ainda que se configure como um mito, que paira sobre a favela inventada, a ideia de
território de violência traz consequências que são reais. Além do aumento do preconceito
contra os seus moradores (ZALUAR, 2004), a identificação das favelas como responsável
pela violência urbana faz destes territórios atrativos para ações do Estado voltadas para a
reafirmação de sua legitimidade como monopólio do uso legítimo da violência.
2.2 As Intervenções Estatais em Favelas
Desde o início do século XX, quando as favelas passam a assumir o lugar dos cortiços
como “problema social” (VALLADARES, 2005), algumas ações governamentais passam a se
direcionar para elas. No Brasil, as intervenções estatais em favelas podem ser melhor
analisadas na cidade do Rio de Janeiro, local em que foi formulado o maior número de
políticas governamentais voltadas para as favelas (VALLADARES e FIGUEIREDO, 1983) e
onde foi recentemente implementada uma política considerada inovadora: a política de
“pacificação”.
Como espaços às margens do Estado, as favelas são entendidas como “places where
state law and order continually have to be reestablished3” (ASAD, 2004, p. 279). Nesse
sentido, programas e políticas estatais voltam-se e tornam a se voltar para as favelas, ora para
eliminá-las, resolvendo um problema social, ora para integrá-las ao restante da cidade.
Entretanto, as ações estatais estão voltadas para a favela inventada e tem por trás uma
forma específica de representação social das favelas. As políticas públicas voltadas para as
favelas sempre as trataram como um universo homogêneo entre si, mas específico em relação
3 Tradução Livre: “lugares onde a lei e a ordem do Estado precisam ser continuamente reestabelecidas”.
28
ao restante da cidade, e esta visão serviu para justificar as especificidades das ações
direcionadas às favelas (VALLADARES, 2005). Para o Estado tem sido mais conveniente
trabalhar com uma categoria única de “favela”, como “um alvo homogêneo ao qual
corresponderão exatamente programas especiais, ad hoc, capazes de resolver problemas
sociais bem identificados, não contestados pela base nem pelos políticos” (VALLADARES,
2005, p. 159). Mas esta categoria única de favela, conforme retratado por Valladares (2005),
modifica-se com o contexto histórico e social, o que se reflete também nas formas
preferenciais de intervenção estatal.
No início do século XX, as primeiras ações estatais direcionadas para as favelas
assumiram a forma de políticas de remoção (VALLADARES, 2005), medida privilegiada
para acabar de vez com o “problema social”, eliminar “o mal pela raiz”. Como mostrou
Valladares (2005, p. 41), “dentro dessa lógica particular, as favelas seriam elementos que
tanto se opunham à racionalidade técnica quanto à regulação do conjunto da cidade. Acabar
com elas seria, então, uma consequência ‘natural’”.
É em 1937 que as favelas aparecem pela primeira vez em um documento público,
sendo registradas no Código de Obras da cidade do Rio de Janeiro como uma “aberração” que
precisava ser eliminada (BURGOS, 2006). Com o Código de Obras, a partir da década de
1940, aos poucos começa a se impor a crença na necessidade de se administrar as favelas e os
seus moradores (VALLADARES, 2005).
Seguindo as recomendações do Código de Obras de 1937, a primeira experiência de
política pública voltada às favelas, os parques proletários, propunha a construção de parques,
com a finalidade de resolver o problema de insalubridade das franjas do Centro da cidade,
seguindo uma abordagem sanitarista do problema (BURGOS, 2006). Segundo Burgos (2006),
as medidas adotadas pelo poder público como uma tentativa de solucionar o problema das
favelas foram desde o início marcadas por uma lógica autoritária e excludente, que não
enxergava os moradores das favelas como cidadãos possuidores de direitos sociais, mas sim
como “almas necessitadas de uma pedagogia civilizatória” (BURGOS, 2006, p. 28). Vitor T.
Moura, organizador do programa, propunha medidas como o controle da entrada de
indivíduos de baixa condição social na cidade do Rio de Janeiro, o retorno dos indivíduos
com essas condições para os seus estados de origem, e a reeducação social dos moradores das
favelas voltada para a correção de hábitos pessoais e o incentivo a escolha de melhores
moradias, de forma que os moradores eram submetidos a sessões de lições de moral
29
(BURGOS, 2006), exemplificando a “pedagogia civilizatória” à qual se referiu Burgos
(2006).
Quando tiveram início os programas do Estado de remoção em favelas, na década de
1940, tais programas tornaram-se frequentes e passaram a fazer parte da realidade das favelas,
embora fossem muitas vezes intercalados com pequenas ações de urbanização
(CAVALCANTI, 2009). Como consequência, os moradores das favelas começaram a se
organizar, em um primeiro momento em comissões de moradores (BURGOS, 2006), e mais
tarde na Federação da Associação de Favelas do Estado da Guanabara (Fafeg), formada por
lideranças de moradores da favela que lutavam contra a remoção (CAVALCANTI, 2009).
Segundo Cavalcanti (2009, p. 73), principalmente em decorrência do período de regime
militar, “em meados dos anos de 1970, quase 140 mil moradores já haviam sido removidos de
cerca de noventa favelas, sendo realocados para áreas distantes das favelas de origem”.
De forma sintética, Cavalcanti (2009) aponta um padrão de políticas públicas
direcionadas para as favelas que se estabeleceu durante o século XX: durante os governos
autoritários predominavam as políticas de remoção; em períodos democráticos predominavam
políticas de urbanização, porém a partir de acordos clientelistas, efetivando-se apenas na
forma de pequenas melhorias de infraestrutura.
Segundo Cavalcanti (2009), na década de 1980, durante o primeiro governo Brizola,
este cenário se altera, e as favelas passam a receber uma diversidade de serviços públicos, na
forma de eletricidade, redes de esgoto ou coleta de lixo. Burgos (2006) reforça esta ideia ao
marcar que durante o governo Brizola foi desenvolvida uma agenda social especialmente
voltada para as favelas e houve mudanças importantes no que diz respeito à política de
direitos humanos, que propunham uma nova conduta policial diante dos moradores das
favelas.
A partir da década de 1980, conforme mostrou Burgos (2006), a questão das favelas se
complexifica ainda mais, diante de um contexto de disseminação da violência e da
consolidação de grupos paraestatais, como traficantes e banqueiros do jogo do bicho, nas
favelas cariocas. Como discutido anteriormente, é nesse período e dentro deste contexto que a
favela é inventada como território de violência (VALLADARES, 2005). Ao mesmo tempo,
sob influência da lógica da “cidade partida”, que ajuda a reforçar a compreensão da favela
como gênese do crime, há uma mudança nas políticas governamentais, que passaram de um
paradigma pautado na remoção para um paradigma de “integração” da favela ao restante da
cidade (CAVALCANTI, 2009). Diante da relação estabelecida entre o problema da violência
30
e “o problema das favelas”, reforçado pela lógica de segregação socioespacial entre morro e
asfalto (VALLADARES, 2005), as políticas que surgem neste período assumem como missão
central a integração das favelas (BURGOS, 2006).
Nesse sentido, foram desempenhadas, por parte do Estado, algumas tentativas
frustradas de recuperação do controle territorial das mãos dos criminosos por meio de
programas de requalificação urbana ou de segurança pública. Cavalcanti (2009) explica que a
apropriação das favelas pelo tráfico contribuiu para atrair ações do Estado voltadas para a
urbanização, tendo em vista que a questão da segurança pública ganha lugar de destaque na
agenda política e, portanto, projetos sociais e de urbanização voltaram-se para estes territórios
com o intuito de reduzir as chances de envolvimento de sua população com o crime. Tais
intervenções em alguns casos até levaram a melhorias na qualidade de vida, mas não
conseguiram recuperar o controle dessas áreas, resultando na manutenção do domínio do
tráfico nos territórios das favelas (BANCO MUNDIAL, 2012).
Segundo o Banco Mundial (2012), o mais ambicioso destes projetos foi o Favela-
Bairro, que teve início em 1994, perdurando por mais cinco anos. O programa Favela-Bairro,
política habitacional proposta pelo Grupo Executivo de Assentamentos Populares (GEAP),
criado pelo prefeito César Maia em 1993, surge com o objetivo de oferecer condições para
que a favela pudesse ser assumida como bairro da cidade (BURGOS, 2006). Conforme
explica Burgos (2006), como o programa foi elaborado sem que fosse debatido pelos diversos
atores políticos, seus objetivos, que inicialmente se restringiam à urbanização e à
infraestrutura, tiveram que ser adaptados, e passaram a incorporar outras dimensões, como
desemprego, geração de renda, lazer, esporte e cultura. Cunha e Mello (2011, p. 376) apontam
como o principal obstáculo para o sucesso do programa “a presença e atuação de grupos de
criminosos ostensivamente armados nesses territórios”. Para Cavalcanti (2007), embora o
programa não tenha sido capaz de alcançar os seus principais objetivos, ele serviu para a
consolidação da mudança da lógica de “remoção das favelas” para a lógica de “integração” da
favela à cidade.
Assumindo de forma mais direta a intenção de combate ao crime, programas de
segurança pública também foram direcionados aos territórios de favelas. Conforme destaca
Machado da Silva (2010), a superposição que foi se estabelecendo entre “o problema da
segurança pública” e o “problema das favelas” é importante para se compreender o sentido
das políticas de segurança, que passaram a adotar as favelas como objeto de ação. Segundo o
autor, tal superposição “acaba por concentrar o foco da política de segurança sobre os espaços
31
físicos, mais do que sobre as práticas das categorias sociais que os ocupam” (MACHADO
DA SILVA, 2010, p. 298).
Durante muitas décadas o Estado tentou se estabelecer permanentemente nas favelas
cariocas, por meio de uma postura baseada no uso da força. Entretanto, não foi bem sucedido
e acabou por retirar-se de forma abrupta dos territórios (BANCO MUNDIAL, 2012).
O estado do Rio de Janeiro lançou em 2000 um programa voltado para reduzir a
violência letal em favelas com alta incidência de homicídios (CANO, 2006). O Grupo de
Policiamento em Áreas Especiais (GPAE), o mais próximo de um precursor da UPP (BANCO
MUNDIAL, 2012), foi implementado pela primeira vez na favela do Cantagalo/Pavão-
Pavãozinho e estendido posteriormente para mais três favelas da cidade. Conforme explica
Cano (2006), o programa traz como diferencial a permanência da polícia na comunidade,
como uma tentativa de estabelecer uma relação de proximidade com os moradores e a busca
por inclusão da comunidade em programas sociais de prevenção à violência, em substituição
às estratégias anteriores de invasões periódicas das favelas, que levavam a muitos confrontos
armados. ISER (2012) explica que o GPAE tinha como conceitos básicos a implantação de
uma unidade de policiamento especializada voltada para o território de favelas, a presença
local da estrutura de comando de um batalhão da PM, o enfoque no policiamento das armas e
não das drogas, e o estabelecimento de parcerias para a instalação de políticas sociais.
Entretanto, conforme Cano (2006), o GPAE não pode ser considerado um novo modelo de
polícia. Em estudo realizado pelo ISER (2012, p. 24) em quatro favelas pacificadas do Rio de
Janeiro, a comparação entre o GPAE e a UPP é frequente, e revela uma visão dos moradores
de que a UPP conseguiu fazer o que o GPAE não conseguiu: “efetivamente retirar o controle
armado da favela da mão dos traficantes”. O próprio Major Carballo Branco, primeiro
comandante do GPAE, afirma sua frustração diante da incapacidade operacional e política do
GPAE de atender às demandas dos moradores das favelas. Conforme explica o Banco
Mundial (2012), o GPAE não pode ser considerado um programa bem sucedido, devido às
denúncias frequentes de corrupção policial, e a permanência de traficantes armados nos
territórios das favelas.
Não obstante a intensificação de investimentos, em um contexto de expansão da
criminalidade, o Estado não tem se mostrado capaz de retomar o monopólio do uso legítimo
da violência nestes espaços, e após tentativas frustradas de ocupar os territórios vê-se
obrigado a se retirar. Conforme aponta Soares (2006), as políticas de segurança pública
brasileiras são, em geral, ineficientes e não conquistam a confiança da população. As políticas
32
públicas de segurança não têm sido bem sucedidas em conter o crescimento dos crimes ou da
violência em geral, não obstante os investimentos realizados por governos federal ou
estaduais, ou a pressão social, que se acentua em meio à crescente sensação de insegurança
(ADORNO, 2002b).
2.3 A Política de “Pacificação”
Após sucessivas tentativas frustradas de domínio ou ocupação dos territórios das
favelas, o Estado depara-se com um cenário de expansão desenfreada da violência urbana.
Com a aprovação do Rio de Janeiro para sediar os Jogos Olímpicos em 2016 e a Copa do
Mundo em 2014, e diante da eminência de todos os olhares voltarem-se para a Cidade
Maravilhosa exibindo suas deformidades e a inconsistência do apelido, a preocupação com o
problema da segurança da cidade potencializou-se. O Banco Mundial (2012) explica que foi
dentro deste contexto que a formulação do Programa das UPPs teve início em 2006, quando a
alta cúpula do governo estadual, o setor de inteligência e figuras influentes do setor privado
reuniram-se para discutir possíveis soluções para o problema. Com base em programas de
segurança pública bem sucedidos em outras cidades do mundo, concluiu-se que “para
avançar, a primeira ação precisaria ser uma retomada definitiva dos territórios perdidos para o
tráfico, seguida pela instalação de policiamentos preventivos permanentes” (BANCO
MUNDIAL, 2012, p. 23).
Em novembro de 2008, o governo estadual do Rio de Janeiro inaugurou a primeira
UPP na favela Santa Marta, em Botafogo, zona Sul do Rio de Janeiro, “com o objetivo de
recuperar o controle de territórios tomados pelo crime organizado, desarmando o tráfico de
drogas e permitindo a integração social, econômica e política das favelas com a cidade”
(BANCO MUNDIAL, 2012, p. 12). Fleury (2012, p. 195) descreve o processo de pacificação
como “a ocupação militar, com ou sem confronto, seguida de instalação permanente de uma
unidade policial”, processo este que passou a ser considerado como condição para a desejada
integração da favela à cidade.
Em uma tentativa de sistematizar o processo de pacificação, Canavêz (2012) explica
que este tem início com um primeiro momento de planejamento a partir de investigações
sobre as características da favela a ser ocupada (como aspectos socioeconômicos, análises
cartográficas, etc). Em seguida, ocorre uma comunicação aos moradores e aos traficantes de
33
que a região será pacificada, principalmente para que os traficantes saiam antecipadamente,
evitando confrontos diretos entre a polícia e os criminosos.
Após a etapa inicial de preparação, sucede a entrada na favela em questão das
chamadas “forças pacificadoras”, compostas pela polícia militar, pelo Batalhão de Operações
Espaciais (BOPE), e em alguns casos também há o auxílio de tropas da Marinha, do Exército
e da Aeronáutica (CAVANÊZ, 2012). Esta etapa é oficialmente denominada de “intervenção
tática” (ISER, 2012). Antes da implantação da UPP em si, passa-se por uma etapa de
“estabilização”, em que ainda ocorrem intervenções táticas, mas também ações de cerco à
região abrangida pela UPP (ISER, 2012).
Conjuntamente com a retirada das forças armadas, ocorre a constituição da UPP, que
conta com a implementação de uma unidade da polícia entendida como comunitária, ou seja,
como uma polícia “que tem como conceito e estratégia a parceria da população com as
instituições da área de segurança” (CUNHA e MELLO, 2011, p. 373). As UPPs instalam-se
em prédios já existentes, em geral em prédios públicos que eram utilizados por outros órgãos
governamentais, ou em contêineres, posicionados em locais estratégicos (ISER, 2012). A este
respeito, ISER (2012) destaca que a unidade de polícia conta com policiais formados
especialmente para a atuação na UPP, que são treinados para a lógica de policiamento de
proximidade, e que se constituem obrigatoriamente por policiais recém-formados, sem os
“vícios” dos policiais que já praticaram as formas tradicionais de policiamento. A rotina de
implantação conta com atividades de policiamento com rondas, em que os policiais circulam
pelo território das favelas, constituindo-se, efetivamente, um comando local da unidade, que
está subordinado à Coordenadoria de Polícia Pacificadora (CPP).
Com o programa de pacificação, nos moldes descritos, o governo do estado se propõe
a chegar a um novo modelo de segurança pública, que se distingue da forma tradicional de
ocupação de favelas, a partir de dois pontos principais: “(i) a proposta de ocupação
permanente, sem previsão de término; (ii) o enfoque na retirada das armas no lugar da
erradicação do tráfico de drogas” (ISER, 2012, p. 10). As ocupações policiais em favelas
estabelecidas até então eram pautadas no combate a situações de violência armada, e as forças
do Estado se retiravam assim que o confronto estivesse sob controle, levando, portanto, à
retomada do território pelo tráfico (ISER, 2012). Já as UPPs “se orientam pela proposta da
ocupação permanente com a expectativa de tomada do controle territorial das favelas por
parte do Estado” (ISER, 2012, p. 10).
34
É importante marcar, entretanto, que isto que é denominado de “retomada do controle
territorial pelo Estado” não significa a erradicação por completo do tráfico de drogas, mas
apenas a retirada de seu poder armado, como declarou publicamente o secretário de
Segurança Pública do estado do Rio de Janeiro José Mariano Beltrame (ISER, 2012). Pode-se
concluir, a partir das falas do secretário, que as UPPs têm como principal objetivo a retomada
do território, e não o fim do tráfico de drogas. Segundo o diagnóstico do Banco Mundial
(2012, p. 44),
ao substituir a pretensão de ‘acabar com o tráfico’ pelo objetivo de ‘acabar com a
circulação de armas nas mãos de gangues de traficantes’, as UPPs mudaram o debate sobre
segurança pública, dissociando o problema do combate ao tráfico de drogas do problema de
territorialização da economia do tráfico. O programa pode, então, concentrar-se na
‘recuperação de territórios’, efetivamente comprometendo-se com uma agenda mais
orientada a emancipar os habitantes dessas áreas, embora a permanência da presença da
polícia certamente ajude a inibir atividades de comércio de drogas.
Grillo (2013, p. 7), que em sua etnografia do crime teve a oportunidade de
acompanhar um período de entrada das Unidades de Polícia Pacificadoras nas favelas onde
realizava sua pesquisa, defende que as UPPs conseguiram modificar de forma acentuada a
forma como se organiza o mercado ilegal de drogas no Rio de Janeiro e produziram
“mudanças na ostensividade do poder dos traficantes sobre um território”. A autora ressalta,
entretanto, a permanência do tráfico de drogas em todas as áreas ocupadas pelas UPPs,
embora o porte de armas pelos traficantes não seja mais tão aparente. Segundo Grillo (2013,
p. 8), no contexto de “pacificação”, “os traficantes se referem à relação que passaram a
manter com a polícia como ‘brincar de pique-pega’, pois, em vez de confrontá-la, refinaram
as suas técnicas para driblar a polícia e conseguir compartilhar o mesmo território com os seus
agentes”.
Machado da Silva (2010) chama atenção para o fato, ainda, de que não se pretende
uma disseminação das UPPs por toda a cidade, até mesmo pela insustentabilidade da
proposição. O que se tem em mente, isto sim, é a adoção de uma “política pacificadora” nas
regiões da cidade onde ainda não há paz, quais sejam, as favelas (MACHADO DA SILVA,
2010). Mas o autor lembra que a proposta das UPPs não diz respeito apenas a lidar com o
crime, mas também com a sensação de insegurança por ele provocada e, nesse sentido, a
instalação de UPPs em lugares estratégicos da cidade, como por exemplo em favelas com
maior visibilidade, se faz suficiente. Conforme explica o autor, o sentimento de segurança
pode sim ser reduzido com a transposição de atividades como o tráfico de drogas para regiões
mais distantes e com a redução da exibição de armas pelos criminosos.
35
É importante destacar no discurso oficial em torno das UPPs o seu vínculo com o
fortalecimento de projetos sociais nas favelas onde atuam (ISER, 2012). Não se pode perder
de vista que paralelamente à instalação da UPP nas favelas cariocas também são levados a
esses territórios uma série de serviços urbanos e de ações sociais, considerados parte do
processo de pacificação (CUNHA e MELLO, 2011). Além disso, como lembra Machado da
Silva (2010), os próprios policiais das UPPs passaram a ocupar outros papéis dentro das
favelas, como o lugar de alguém responsável por solucionar pequenos problemas do dia a dia
ou de mediadores entre os moradores das favelas e os demais órgãos públicos, a partir de uma
demanda dos próprios moradores, e cumprindo também ali um papel social.
Vale notar os novos programas introduzidos na favela a partir da instalação das UPPs.
Talvez o programa mais destacado na mídia, a UPP social, embora seja às vezes
compreendido como uma fase da política de pacificação, à ela diretamente vinculado (ex:
CAVANÊZ, 2012), não tem efetivamente nenhum vínculo formal com a UPP. A UPP Social
surgiu inicialmente como uma iniciativa da Secretaria de Estado de Assistência Social e
Direitos Humanos (SEASDH), em 2010, e no mesmo ano foi transferida para o município,
tornando-se um programa vinculado ao Instituto Pereira Passos (IPP). Outro programa social
desencadeado com a política de pacificação, ainda hoje vinculado à SEASDH, o “Territórios
da Paz”, com a proposta de criar redes sociais nos territórios em que atua.
Por possibilitar intensificação de intervenções estatais nas favelas e principalmente por
nelas ter conseguido permanecer, as UPPs são vislumbradas como uma política de segurança
pública que assume novos parâmetros e recebem, em geral, uma avaliação positiva, o que não
se restringe a uma simples percepção midiática. Machado da Silva (2010) explica que a
avaliação positiva das UPPs vem sendo reforçada, não apenas pelas inúmeras referências à
redução do crime que se perpetuam pela mídia, mas também pela aprovação da população do
Rio de Janeiro, tanto de moradores das favelas como daqueles que vivem em áreas externas.
Na visão do autor, existem evidências que sustentam esta visão positiva, como a apresentação
de bons resultados nas favelas em que atuam, sustentados por indicadores como a queda da
violência policial nas regiões com UPPs ou elevação do sentimento de segurança por parte
dos moradores. Entretanto, Machado da Silva (2010) chama atenção para a desconfiança que
perpassa os moradores em torno da permanência das UPPs, fundamentada por um histórico de
políticas públicas descontínuas.
A visão positiva do programa, apontada por Machado da Silva (2010), é reforçada por
meio dos resultados de diversas pesquisas que tem se voltado para análises do impacto das
36
UPPs. Com base em uma destas pesquisas, realizada em quatro favelas pacificadas do Rio de
Janeiro, ISER (2012) mostra que houve uma mudança no fluxo de circulação de pessoas que
não moram nas favelas, como agentes do Estado, pesquisadores, empresários ou turistas. São
destacados principalmente, os atores que se voltam para intervenções de caráter social, como
projetos esportivos, cursos profissionalizantes, atividades culturais ou mutirões de limpeza.
No relatório Os donos do morro, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança
Pública em parceria com o Laboratório de Análise da Violência da UERJ (LAV – UERJ) com
a proposta de apresentar uma avaliação do impacto das UPPs, também são apontados
resultados positivos, como redução da violência letal, de roubos e principalmente de mortes
em intervenções policiais dentro das favelas pacificadas, uma maior sensação de liberdade por
parte dos moradores das favelas, e a redução do estigma a elas atrelado, que resultou no
aumento considerável da entrada de pessoas de fora das favelas e no fortalecimento da
identidade e da auto-estima local.
O Banco Mundial (2012), a partir de uma pesquisa a respeito da transformação da vida
nas favelas trazidas com processo de pacificação, também mostra, por meio de entrevistas e
grupos focais com moradores de diferentes favelas – sendo três pacificadas e uma não
pacificada-, que a principal mudança consiste na possibilidade de os moradores circularem
pela favela com liberdade muito maior. Além disso, a UPP conseguiu melhorar a relação dos
moradores das favelas com a polícia, pois é vista pelos moradores como uma tentativa do
Estado de pacificar a própria polícia (BANCO MUNDIAL, 2012). Segundo o relatório, há
uma materialização, embora gradual, da integração dos moradores das favelas com o restante
da cidade, que se destaca, principalmente, no que diz respeito à regularização dos serviços
públicos. No relatório é destacado, ainda, o aumento do preço dos imóveis como decorrência
da pacificação, o que gera nos moradores o medo daquilo que eles chamam de “remoção
branca”. Ao sintetizar seus resultados, afirma-se que “a UPP já foi reconhecida, no Brasil e no
exterior, como uma iniciativa muito promissora, e este relatório aponta o mesmo” (BANCO
MUNDIAL, 2012, p. 24). Diante da visibilidade do programa, e das avaliações positivas que
vem recebendo, que o qualificam enquanto um programa a ser “copiado” em outras regiões,
destaca-se aqui a extrema relevância de análises detalhadas acerca deste contexto de
“pacificação”.
37
2.4 Conclusão
Neste capítulo, procurou-se contextualizar as intervenções estatais em favelas, de seu
percurso histórico ao contexto atual. Buscou-se destacar as diversas representações sociais
que foram, historicamente, atreladas às favelas, e a forma como as ações do Estado pautam-se
nestes estereótipos e voltam-se para a favela no singular, o que implica um tratamento
homogêneo às favelas.
Por meio de uma descrição do histórico das intervenções estatais em favelas, é
possível notar que tem-se, hoje, um cenário no qual as favelas destacam-se como territórios de
violência, responsabilizadas pela criminalidade da cidade. Nesse sentido, busca-se a
integração das favelas ao restante da cidade, como forma de lidar com o problema da
segurança pública.
Ganhou destaque, neste capítulo, o programa das UPPs, para que se aponte as
principais características do contexto no qual esta pesquisa foi desenvolvida. Entretanto,
embora as UPPs mereçam destaque, por serem apontadas como o programa que inaugura uma
nova etapa da vida nas favelas, “abrindo” a favela ao Estado, vale ressaltar que as UPPs vêm
acompanhadas de uma intensificação de ações do Estado na favela, e em minha pesquisa de
campo, que serviu de base para as análises teórico-empíricas que serão desenvolvidas a partir
daqui, volto meu olhar para os diversos representantes do Estado, para o que chamarei aqui de
campo burocrático do Estado em ação nas favelas.
38
3 MÉTODO DE PESQUISA
Para atender ao objetivo de investigar como se dá a relação entre o campo burocrático
do Estado em ação nas favelas e o espaço social, no contexto da “pacificação”, foi preciso
voltar meu olhar para o espaço em si, para os processos de organizar no espaço, para a vida no
cotidiano da favela e para a compreensão da dinâmica do campo burocrático do Estado em
ação nas favelas. Mas para aproximar o meu olhar disso que se configurou como meu objeto
de pesquisa, foi preciso fechar um pouco os livros e subir o morro, com vistas a adquirir um
novo conhecimento, agora “permeabilizado por cheiros, cores, dores e amores” (DA MATTA,
1978, p. 24).
Indo ao encontro da perspectiva teórica que fundamenta a pesquisa de tese aqui
apresentada, parte-se de um entendimento relacional e processual do objeto de estudo. Busca-
se, nesse sentido, a superação da dicotomia objetividade-subjetividade e dos demais
dualismos que dela decorrem (ação/estrutura, indivíduo/sociedade). Como consequência, as
organizações não são pensadas como produtos acabados, possibilitando que o fenômeno
organizacional seja investigado a partir da inclusão de novas dimensões (espaciais,
relacionais, ...). Tal opção epistemológica possibilita, ainda, a abertura para um pluralismo
metodológico, conforme mostrou Peci (2006).
A discussão em torno da dicotomia objetividade-subjetividade está presente nos
debates dos estudos filosóficos e sociais há muitos anos (PECI, 2006), e ganhou destaque na
área de estudos organizacionais especialmente a partir da publicação da destacada obra de
Burrell e Morgan Sociological paradigms and organisational analysis, em 1979. Na referida
obra, os autores propõem que a teoria social em geral, mas especialmente as teorias
organizacionais, podem ser analisadas a partir de quatro visões de mundo mais amplas -
funcionalismo, interpretativismo, humanismo radical e estruturalismo radical - que se refletem
em diferentes pressupostos teóricos sobre a natureza da ciência e da sociedade, e refletem
também diferentes escolas de pensamento (MORGAN, 1980). Burrell e Morgan marcam,
ainda, que os quatro paradigmas são incumensuráveis (TADAJEWSKI, 2009).
Em texto mais recente, o próprio Burrell (2007) reconhece algumas limitações do
modelo, mas ressalta como um de seus pontos positivos o fato de ter sido capaz de destacar
que a orientação funcionalista dominante na área não era a única possível. A visão objetivista,
inerente ao funcionalismo dominante, levou ao que Vergara (2007, p. 461) denominou de uma
“simplificação da vida organizacional” ou ao privilégio da “homogeneidade em detrimento
das diferenças”. Duarte e Alcadipani (2013) mostram como o objetivismo dominante na área
39
leva à naturalização de uma compreensão das organizações de forma reificada e neutra, com
fronteiras bem definidas, o que, segundo os autores, não dá conta de entender fenômenos
organizacionais complexos.
Como uma tentativa de síntese da dicotomia objetividade subjetividade reforçada na
obra de Burrel e Morgan e, portanto, rompendo com a incomensurabilidade paradigmática por
eles proposta, pode-se destacar a perspectiva teórica de Pierre Bourdieu (WACQUANT,
2012; PECI, 2006). O autor sofreu influências de diversas perspectivas teóricas, dentre as
quais se destacam a fenomenologia, o estruturalismo e o marxismo (PECI, 2006), e sua
perspectiva própria, derivada das diversas influências, chegou a ser denominada de
estruturalismo construtivista ou construtivismo estruturalista (MISOCZKY, 2006). O
estruturalismo construtivista de Bourdieu é descrito por Wacquant (2012) como uma
combinação entre abordagens fenomenológica e estruturalista, que possibilita uma
investigação social integrada e coerente. Sobretudo, a perspectiva de Bourdieu “afirma a
primazia das relações” (MISOCZKY, 2006, p. 80) e possibilita uma perspectiva relacional e
processual de análise (SETTON, 2002).
Os avanços trazidos por Bourdieu para as diferentes áreas sob sua influência podem
ser entendidos como reflexo de sua inquietude diante do estado do conhecimento que
dominava em sua época. Conforme Everett (2002), Bourdieu era inconformado com a
natureza dualística do pensamento sociológico e com a necessidade de escolher entre o foco
na estrutura ou na agência, no micro ou no macro, no qualitativo ou no quantitativo. Para
Bourdieu, o dualismo dominante na área era problemático, tendo em vista que o foco
exclusivo em um ou em outro leva necessariamente a contradições lógicas. Na visão do autor,
“de todas as oposições que dividem artificialmente a ciência social, a mais fundamental, e a
mais danosa, é aquela que se estabelece entre o subjetivismo e o objetivismo” (BOURDIEU,
2011a, p. 43).
Rompendo com os dualismos, a abordagem proposta por Pierre Bourdieu apresenta-se
como uma alternativa conciliadora para se pensar o mundo social (e mais tarde as
organizações que também o compõem), na medida em que se propõe a superar dicotomias
como objetividade/subjetividade, ação/estrutura, e indivíduo/sociedade (PECI, 2003).
Produzida com esse viés integrador, a perspectiva teórica de Bourdieu tem como marcas
fundamentais o pensamento relacional e o uso da reflexividade (SWARTZ, 2008).
Nesse sentido, a perspectiva teórica de Bourdieu pode ser transposta a área de estudos
organizacionais, de forma a prover uma visão processual para se pensar os fenômenos
40
organizacionais. Segundo Langley e Tsoukas (2010), a visão processual é aquela visão de
mundo que olha para os processos, muito mais do que para substância, como as formas
básicas do universo, priorizando atividades, mudanças e novidades, em detrimento do
produto, da persistência e da continuidade. Pettigrew (1997, p. 338) explica que a noção de
processo pode ser compreendida como “a sequence of individual and collective events,
actions, and activities unfolding over time in context”. Portanto, os estudos processuais
preocupam-se em analisar ou explicar essas sequências de ações coletivas ou individuais,
tendo em vista que a realidade social não é estática, mas sim um processo dinâmico
(PETTIGREW, 1997). Pettigrew (1997) ressalta, ainda, a importância do contexto para uma
análise processual. O autor explica que quando o interesse de investigação está no processo, o
contexto no qual ele está inserido, que molda o fluxo de eventos e que por sua vez é moldado
por ele, também merece ser investigado. Assim, assumir uma visão processual das
organizações significa entendê-las “como processos ou práticas de organização (organizing),
os quais se mostram heterogêneos, difusos e complexos, em constante fluxo e
transformações” (DUARTE e ALCADIPANI, 2013, p. 4).
Neste sentido, uma visão processual também possibilita a retomada da dimensão
espacial nos estudos organizacionais. Ao apresentar o seu conceito de espaço social, Lefebvre
(2007), não por acaso, adota como ponto de partida a crítica à dicotomia entre sujeito e objeto
advinda da lógica cartesiana, e denuncia o pressuposto de identidade entre o espaço mental e
o espaço real, que cria um abismo entre a esfera mental e as esferas física e social. Assim, o
conceito de espaço social, que tem origem no pensamento de Lefebvre, no qual esta tese se
baseia, está também inserido nesta mesma perspectiva teórica, na medida em que
compreende-se o espaço como um conjunto de relações e formas, no qual o social e o material
estão imbricados (LEFEBVRE, 2007).
Seguindo esta perspectiva epistemológica é possível compreender as organizações
enquanto processos de organizar - aproximando-as do dinamismo que é marca dos campos-, e
com isso possibilitando que se recupere a relação entre as organizações e o espaço, em que
ambos são, ao mesmo tempo, produto e produtor, inacabados, processuais. Pautando-me nessa
perspectiva teórica, este capítulo tem como objetivo descrever as estratégias metodológicas
que foram adotadas para atender ao objetivo de pesquisa proposto. Para tal, serão descritos os
métodos de coleta de dados e os métodos de análise de dados utilizados ao longo da pesquisa,
bem como o meu processo de inserção no campo.
41
3.1 Coleta de Dados
A coleta de dados se deu por meio de uma pesquisa de campo de inspiração
etnográfica com duração de 1 ano e 4 meses, de janeiro de 2013 a abril de 2014, em duas
favelas cariocas com UPPs, selecionadas com base nos seguintes critérios: localização em
duas diferentes regiões da cidade (zona norte e zona sul); acessibilidade. A escolha de duas
favelas em regiões diferentes da cidade, marcadas por uma discrepância em termos de renda
média de seus habitantes (enquanto a zona Sul é considera uma zona rica da ciada, a zona
Norte é considerada uma zona pobre), foi ao encontro da noção de amostragem teórica
proposta por Strauss e Corbin (2008), segundo a qual é válida a procura por locais, pessoas ou
fatos que maximizem as oportunidades de descobrir variações entre os conceitos, tornando as
categorias mais densas. O trabalho de campo teve o propósito de investigar, a partir da
realidade diária das favelas, o campo burocrático do Estado em ação nas favelas e a forma
como produzem o espaço social de favelas. Em suma, busca-se, via um olhar etnográfico,
identificar como os processos de organizar (re)produzem e são produzidos no espaço social
das favelas.
A pesquisa de campo foi realizada por meio de observação participante, de inspiração
etnográfica. Conforme explicam Emerson, Fretz e Shaw (1995, p. 1), a etnografia “involves
the study of groups and people as they go about their everyday lives”. Portanto, para a
realização de uma pesquisa etnográfica, o pesquisador precisa se aproximar de seu objeto de
pesquisa, o que significa não apenas uma proximidade física e social, mas também uma
verdadeira inserção no mundo daqueles outros que se está pesquisando (EMERSON, FRETZ
e SHAW, 1995). Segundo Cunliffe (2010), a etnografia diz respeito à compreensão da
experiência humana, da vida de uma comunidade específica, e por isso requer uma interação
com a comunidade, a construção de relações.
Nesse sentido, a imersão etnográfica não pressupõe um pesquisador passivo, um
pesquisador que procure se manter como “a fly on the wall” (EMERSON, FRETZ e SHAW,
1995, p. 3). Ela envolve um pesquisador com ativa participação nas atividades diárias, cuja
presença tem inevitável interferência nos acontecimentos do campo (EMERSON, FRETZ e
SHAW, 1995).
Não obstante as inúmeras descrições sobre o método etnográfico, Van Maanen (2010)
lembra que não existe nenhuma técnica específica atrelada à etnografia, e ela permanece
aberta ao improviso e a modos situados de pesquisa. Humphreys, Brown e Hatch (2003) a
comparam ao jazz, e mostram como o trabalho do etnógrafo no campo envolve um improviso
42
semelhante ao da conversação musical presente no gênero musical. Músicos do jazz e
etnógrafos, mostram os autores, buscam assumir uma identidade, passam por um processo de
auto-descoberta e de descoberta do outro, e estão envolvidos em atividades coletivas e sociais.
Tudo isso requer uma grande dose de espontaneidade e de intuição por parte do músico e do
pesquisador etnográfico (HUMPHREYS, BROWN e HATCH, 2003).
As etnografias estão enraizadas na observação (ZICKAR e CARTAN, 2010). A
observação participante, em particular, é caracterizada por uma abordagem em que o
pesquisador insere-se em um campo, e passa a participar de suas rotinas diárias para observá-
las de perto (EMERSON, FRETZ e SHAW, 1995). O pesquisador que adota a técnica de
observação esforça-se para enxergar os eventos a partir da perspectiva daqueles que estão
sendo estudados (ANGROSINO, 2000). Adotamos a observação participante, que, segundo
Angrosino (2000), baseia-se no estabelecimento de uma relação harmônica entre o
pesquisador e a comunidade estudada, e por isso requer um período relativamente longo de
imersão do pesquisador na vida diária daquela comunidade.
Embora a etnografia seja amplamente adotada principalmente nas áreas de
antropologia e sociologia, Van Maanen (2010) lembra que, no contexto atual, as pesquisas de
inspiração etnográfica, pautadas na observação participante, têm sido realizadas em várias e
diferentes áreas do conhecimento, como estudos culturais, jornalismo, tecnologia, medicina,
dentre outras. Entretanto, segundo Cunliffe (2010), pesquisas etnográficas ou de inspiração
etnográfica não são adotadas com muita frequência em estudos organizacionais. Alcadipani
(2008) lembra que embora a etnografia tenha tido, no passado, uma presença importante na
área de estudos organizacionais, a tendência ao seu uso vem diminuindo na área. Assim como
outros métodos qualitativos, a etnografia carrega, às vezes, um sentido pejorativo na área, pois
é associada a resultados que não são generalizáveis (CUNLIFFE, 2010). Para Cunliffe (2010),
a impopularidade do método na área de estudos organizacionais está também associada ao
longo tempo que precisa ser empregado em uma pesquisa etnográfica, o que vai de encontro
às atuais pressões por publicação. Zickar e Cartan (2010) ressaltam, ainda, que o crescente
interesse por métodos estatísticos, fortemente disseminados na área a partir da crença de que
estes fornecem um maior senso de precisão, contribui para afastar os pesquisadores
organizacionais de métodos qualitativos, dentre os quais se destaca a pesquisa etnográfica.
Como lembra Agar (2010), as organizações também são feitas de pessoas que
percebem, que interpretam, que possuem afetos e pensamentos e, portanto, as análises deste
mundo humano que compõe as organizações precisam investigar as perspectivas e as relações
43
sociais que nele estão em jogo, para que não se restrinjam apenas a aspectos superficiais. A
observação participante apresenta-se, assim, como uma alternativa apropriada para a análise
organizacional, especialmente quando as organizações são pensadas a partir de seus processos
de organizar, “as they happen” (SCHATZKI, 2006), sob uma ótica processual.
Embora no trabalho de campo que venho desenvolvendo eu não tenha “empacotado
minha escova de dente” (CUNLIFFE, 2010) e mudado para a favela, meu esforço em
investigar os processos de organizar de agentes do campo burocrático do Estado envolve uma
observação que se dá de forma ativa, no sentido de que minha presença traz consequências
para as atividades que ali se desenvolvem. Fui muitas vezes chamada “a colocar a mão na
massa”, seja ajudando a tirar fotos para a elaboração de um relatório, seja ajudando a cuidar
das crianças na UPP Mirim, e algumas vezes, até mesmo, a minha opinião foi solicitada, e
tentei expressá-la sem gerar controvérsias ou grandes alterações no curso natural dos eventos.
Com vistas a me capacitar neste tipo de abordagem metodológica, que não envolve
“receitas de bolo” ou listas de instruções, segui, primeiramente, as recomendações de Zickar e
Cartan (2010) que sugerem aos pesquisadores a leitura de outras pesquisas etnográficas.
Preparei-me para meu trabalho de campo lendo pesquisas de áreas alheias aos estudos
organizacionais (ex: WHYTE, 2005), de outras áreas, mas que também adotam a favela como
campo (ex: GRILLO, 2013; CAVALCANTI, 2007; ZALUAR; 2000), e, embora mais
escassas, etnografias em estudos organizacionais (ex: ALCADIPANI, 2008).
Busquei, em um primeiro momento, me inserir na vida das favelas estudadas por meio
de contato com os moradores locais, e a partir deles identificar os agentes do campo
burocrático do Estado que se inserem no cotidiano da favela e realizam processos de
organizar. Conforme ressaltou Alcadipani (2008), uma grande dificuldade da observação está
em decidir para onde olhar, e é preciso tomar decisões neste sentido. Portanto, para selecionar
aqueles agentes cujos trabalhos eu iria acompanhar mais de perto, pautei-me na visão dos
próprios moradores e esperei que eles me indicassem os agentes com quem interagiam e que
transformam seu espaço, e muitas vezes até mesmo que me apresentassem para eles. Além
disso, também procurei selecionar aqueles que têm maior circulação pelo espaço das favelas,
ampliando as minhas possibilidades de compreender o processo de produção do espaço.
Ressalto, entretanto, que também interagi e acompanhei, embora de forma mais eventual, o
trabalho de outros agentes do campo burocrático do Estado, na medida em que existia uma
interação entre os próprios agentes do campo burocrático do Estado que me conduziam uns
44
aos outros, e que em alguns momentos era convidada pelos próprios moradores para participar
de eventos de outros agentes.
Inicialmente fazia visitas semanais às favelas, e aos poucos a frequência de visitas foi
sendo intensificada, conforme apareciam eventos, reuniões ou atividades para os quais era
convidada. Em muitos momentos foi necessário, inclusive, escolher entre um evento e outro,
pois alguns eventos se sobrepunham, especialmente entre as duas diferentes favelas. Minhas
visitas eram sempre acompanhadas de notas de campo, que consistem em anotações
sistemáticas a respeito daquilo que se observa, com vistas a acumular um registro escrito das
vivências no campo (EMERSON, FRETZ e SHAW, 1995).
Entretanto, como apontam Emerson, Fretz e Shaw (1995), o pesquisador precisa saber
identificar quando e como é possível fazer notas de campo. Logo de início percebi que as
anotações raramente poderiam ser feitas dentro das favelas. Primeiro, porque podem gerar
constrangimentos e desconfortos, e até mesmo interferência de traficantes. E, ainda, porque,
em geral, estava envolvida em algum tipo de atividade, como festas, caminhadas, recreações
ou conversas informais, que não me permitiam parar e fazer anotações. Portanto, foi
necessário trabalhar com a memória e passei a fazer minhas anotações de campo no momento
em que chegava em casa, logo após alguma visita. Em situações em que participava de
reuniões algumas notas de campo podiam ser ali realizadas, já que outras pessoas também
estavam com seus cadernos anotando algumas questões referentes à reunião. Vale ressaltar
que recebi autorização para gravar algumas reuniões e eventos, o que facilitou o registro dos
acontecimentos do campo.
A observação participante é, em geral, complementada com outras formas de coleta de
dados, que permitem ao pesquisador conferir os resultados obtidos por meio da observação
(SANDAY, 1979). Assim como o olhar, o ouvir também é importante, e a realização de
entrevistas, paralelamente às conversas informais, pode ser uma boa complementação na
medida em que possibilita obter e aprofundar explicações fornecidas pelos próprios membros
da comunidade investigada (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1996). Nesse sentido, realizei
entrevistas com agentes do campo burocrático do Estado que realizavam processos de
organizar nas favelas, para também ouvir seus relatos a respeito de suas ações dentro e fora
das favelas. Para obter mais observações neste sentido, também foram realizadas entrevistas
com agentes do campo burocrático do Estado que assumem posição hierárquica superior em
algumas organizações que possuem representantes inseridos na favela, mas que não estão lá
presentes em seu dia a dia de trabalho, os quais geralmente estão inseridos em atividades de
45
planejamento dos processos de organizar em favelas. As entrevistas possibilitaram, ainda, um
conhecimento mais profundo da ação de agentes que realizam intervenções esporádicas no
campo, que não estão inseridos rotineiramente nas favelas, e que, portanto, não tem suas
ações observadas com tanta frequência, ou daqueles agentes que estão inseridos nas favelas,
mas que possuem pouca interação com os moradores e cujo trabalho eu acompanho apenas de
forma esporádica por meio da observação. Alguns moradores também foram entrevistados, no
sentido de obter informações sobre a interface que se estabelece entre moradores e os
representantes do Estado dentro daquele espaço do qual também são parte importante. As
entrevistas também se mostraram importantes no sentido de obter informações a respeito de
um momento anterior, em que eu ainda não estava inserida no campo. As comparações entre
as favelas antes e depois do processo de “pacificação” foram surgindo naturalmente nas
entrevistas realizadas, e trouxeram informações que não podiam ser captadas apenas por meio
de observação. Nesse sentido, 91 pessoas foram entrevistadas, e as entrevistas tiveram
duração média de 2 horas. A distribuição de entrevistados de acordo com o programa ou
favela está especificada nas Tabelas 1, 2 e 3 abaixo:
Tabela 1. Entrevistados Favela da zona Sul Categoria de Entrevistado Quantidade
Morador 18
Representantes da UPP 10
Representantes do PAC 5
Representantes da UPP Social 2
Representantes do Territórios da Paz 2
Representantes do CRAS 2
Representantes da Clínica da Família 1
Representantes do CIEP 1
Representantes da Comlurb 2
Representantes do ITERJ 4
Total 47
Tabela 2. Entrevistados Favela da zona Norte Categoria de Entrevistado Quantidade
Morador 14
Representante da UPP 11
Representante da UPP Social 2
Representante do Territórios da Paz 2
46
Representante do CRAS 6
Representante da Comlurb 2
Total 37
Tabela 3. Entrevistados Gerais Categoria de Entrevistado Quantidade
Representante da UPP 2
Representante da UPP Social 3
Representante do Territórios da Paz 2
Total 7
Vale ressaltar que as entrevistas seguiram um roteiro semi-estruturado. Embora
tenham sido construídos roteiros específicos para cada entrevistado, a base dos roteiros
encontra-se em Anexo (sendo um roteiro relativo a agentes do campo burocrático do Estado e
outro a moradores). Os moradores entrevistados foram selecionados a partir da observação,
que possibilitou identificar lideranças comunitárias, e pessoas que possuíam maior interação
com alguns agentes do campo burocrático do Estado. Além disso, ao final de cada entrevista
foram pedidas indicações de pessoas a serem entrevistadas. Os agentes do Estado foram
selecionados também por meio de observação, e nos casos em que os programas possuíam
poucos representantes nas favelas buscou-se entrevistar todos eles (este é o caso do PAC,
UPP Social e Territórios da Paz). Foi adotado o critério de saturação para selecionar a
quantidade de pessoas entrevistadas, ou seja, os dados foram coletados até que todas as
categorias estivessem saturadas e nenhum dado novo ou relevante parecesse surgir
(STRAUSS e CORBIN, 2008). Vale ressaltar, que a diferença na quantidade dos agentes do
campo burocrático do Estado entrevistados em cada um dos programas se dá também pela
quantidade destes agentes presentes em campo. Programas como a UPP Social e o Territórios
da Paz, por exemplo, possuíam apenas 2 representantes em cada favela, e portanto todos os
agentes dos programas em campo foram entrevistados. Já a UPP destaca-se como o programa
com maior número de entrevistas devido à grande quantidade de policiais em cada favela
(cada UPP possuía em torno de 120 policiais), e devido à minha dificuldade inicial de
“aprender” a linguagem policial. Dentre todos os agentes que participaram da pesquisa, os
policiais eram aqueles que se destacavam por possuir uma linguagem própria, um vocabulário
muito particular, e no início tive dificuldades para compreender a sua língua. Usavam termos
como “guarnição”, “grupamento”, “peixes”, “FEM”, “RUMBI”, “bico”, nomes de armas,
47
nomes de uniformes, referiam-se às escalas e às divisões internas às UPPs por meio de
códigos, e para que eu aprendesse a “falar a língua” dos policiais foi preciso uma interação
mais intensa e um maior número de entrevistas. Ao final, os policiais já brincavam que eu
deveria fazer concurso para a PM, porque eu já falava muito bem a língua deles. A diferença
no número de entrevistados entre a favela da zona Norte e a favela da zona Sul se deu devido
ao reduzido número de agentes do campo burocrático do Estado da segunda em relação à
primeira. Este dado também servirá para embasar a análise apresentada nos próximos
capítulos.
Vale ressaltar, que também recebi autorização para gravar algumas reuniões entre
UPPs e moradores, reuniões do Territórios da Paz e audiências públicas. Entretanto, ao todo
apenas 6 reuniões foram gravadas, no início da minha pesquisa de campo, tendo em vista o
clima acalorado das reuniões. As reuniões do PAC, por exemplo, sempre muito conflitivas,
nunca foram gravadas, porque temia pela integridade do meu gravador. Com o decorrer da
pesquisa de campo, o “clima” em ambas as favelas foi ficando mais tenso, e as reuniões
refletiam esta mudança. Acabei optando por encerrar as gravações, e me pautei em minha
habilidade de fazer anotações rápidas para registrá-las.
De forma a possibilitar a análise de dados, foi necessário, primeiramente, a
organização dos dados coletados ao longo da pesquisa de campo e a transcrição de todas as 91
entrevistas realizadas e das 6 reuniões gravadas. Para isso, contei com a ajuda de alguns
profissionais que foram instruídos por mim para me auxiliar nas transcrições literais das
entrevistas, embora eu mesma tenha realizado parte das transcrições. O auxílio externo foi
necessário devido à grande quantidade de entrevista e o tempo limitado para a finalização da
pesquisa de tese. As notas de campo e as entrevistas transcritas totalizaram mais de 3.200
páginas de dados.
3.2 Análise dos Dados
Os dados obtidos por meio da pesquisa de campo foram analisados com base em teoria
fundamentada (ou grounded theory), conforme propõe Strauss e Corbin (2008). O termo
“teoria fundamentada” refere-se a uma teoria que surge com base em dados, reunidos e
analisados de maneira sistemática por meio de um processo de pesquisa (STRAUSS e
CORBIN, 2008). O objetivo deste tipo de análise é possibilitar que, com base nos dados,
parta-se da descrição para um ordenamento conceitual, que se constitui na organização dos
dados em categorias segundo suas propriedades e suas dimensões, para a produção de teoria,
48
ou seja, um conjunto de conceitos desenvolvidos e relacionados por meio de declarações de
relações.
Para me engajar neste tipo de análise, contei com o auxílio do software Atlas.ti 74, que
me ajudou a lidar com as mais de 3.200 páginas de dados. Com auxílio do software, seguindo
as etapas de análise sugeridas por Strauss e Corbin (2008), iniciei o meu processo de análise
de dados a partir da microanálise, ou seja, da análise detalhada, linha por linha, de cada
documento de nota de campo ou de entrevista transcrita, produzindo, a partir daí, as primeiras
categorias, que se configuraram enquanto categorias iniciais. Tendo em vista que o processo
de análise não é um processo estático ou rígido, mas envolve a liberdade e criatividade do
pesquisador, na microanálise já são realizadas tanto a codificação aberta quanto a axial.
Enquanto a codificação aberta consiste em um processo analítico que possibilita a
identificação de conceitos e de suas propriedades e dimensões nos dados, criando categorias
ou subcategorias, a codificação axial consiste no estabelecimento de relações entre categorias
e subcategorias. Nesse sentido, na primeira leitura detalhada buscou-se identificar temas
persistentes, aspectos chave, que pudessem ser organizados em categorias, bem como a forma
como eles estavam relacionados. Busquei organizar estes dados empíricos recorrentes em
códigos, que também foram influenciados pelos meus pressupostos de pesquisa.
Após a primeira etapa de microanálise, seguiu-se uma nova etapa voltada para uma
codificação seletiva, ou seja, para a integração e refinamento de teoria às categorias, para a
formação de um esquema teórico maior. Nesse sentido, ainda com o auxílio do software
Atlas.ti 7, voltei-me novamente à leitura dos dados, buscando elevar as minhas categoriais a
um nível teórico. A aderência conceitual das categorias produzidas ajudou a validá-las
enquanto categorias teóricas.
Uma importante parte da teoria fundamentada diz respeito à validade das categorias
construídas. Uma das formas de conseguir esta validade é por meio da apresentação e
discussão destas categorias construídas com outros pesquisadores, para verificar o seu sentido
e incorporar estas sugestões. Seguindo esta lógica, ao longo de todo o trabalho, as categorias
foram compartilhadas com minha orientadora, que cumpriu este papel de validação, sugerindo
categorias novas e eliminando outras. Buscamos, por meio deste processo, conferir maior
validade às categorias construídas.
Como forma de complementar a teoria fundamentada, e diante da importância
explicativa que pareciam ter as falas persuasivas dos agentes investigados, também foi 4 Vale ressaltar que o software foi utilizado apenas para facilitar a organização da grande quantidade de dados, porém não recorri às ferramentas de codificações automáticas disponíveis no software.
49
utilizada uma análise retórica, complementada pela análise argumentativa. Conforme
explicam Bauer e Gaskell (2012), a análise retórica envolve a análise de discursos
persuasivos, desvelando tais discursos e questionando-se a respeito do porque eles são
persuasivos. Desta forma, o objeto da análise retórica é a persuasão (BAUER e GASKELL,
2012).
A análise retórica foi utilizada na presente pesquisa como forma de investigar as
estratégias de legitimação utilizadas por agentes dos programas da UPP, PAC, UPP Social,
Territórios da Paz e CRAS, conforme será explicado em capítulo posterior, de forma a prover
elementos que ampliem a compreensão a respeito das disputas entre os agentes e a respeito de
seus posicionamentos no campo burocrático do Estado. Para realização da análise retórica
foram selecionados argumentos persuasivos destes agentes, apresentados em entrevistas ou
em reuniões gravadas e transcritas. Tais argumentos foram analisados de forma a identificar a
origem dos argumentos, ou “como os oradores inventam argumentos em relação a
determinados objetivos” (BAUER e GASKELL, 2012, p. 302). Para a análise retórica, parte-
se da ideia de que cada estrutura de argumento dá um peso maior a uma das três qualidades da
fala propostas por Aristóteles (BAUER e GASKELL, 2012). Aqueles argumentos cuja
estrutura privilegia o Ethos configuram-se como uma argumentação persuasiva fundamentada
em princípios morais ou na credibilidade de seu autor. Os argumentos baseados em Pathos
apelam para a emoção como forma de persuasão. Já argumentos baseados em Logos
configuram-se enquanto argumentos lógicos, que se baseiam em uma lógica racional como
forma de convencimento. Além dos três tipos tradicionais de estruturas de argumento,
também foi possível identificar nos dados argumentos baseados em presença. Perelman e
Olbrechts-Tyteca (2005) chamam atenção para o fato de que as concepções tradicionais da
retórica negligenciam os argumentos de presença, fator essencial na argumentação segundo as
autoras. A presença possui um efeito direto em nossa sensibilidade, e não basta que uma coisa
exista para que se sinta a sua presença (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005). Por
isso, nos argumentos de presença o orador tenta tornar presente ou valorizar tornando mais
presentes certos elementos, por meio de recurso, principalmente, a objetos concretos
(PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005).
Como forma de facilitar a análise daquilo que está sendo privilegiado na estrutura dos
argumentos, também utilizei aqui uma análise argumentativa conforme proposta por Toulmin.
Toulmin (2001) parte da ideia de que argumentos, assim como organismos, possuem uma
estrutura. Propõe, assim, uma análise argumentativa a partir da análise do layout do
50
argumento, ou seja, da forma como ele está estruturado. Para o autor, um argumento apresenta
dados (D) que consistem nos fatos aos quais recorremos para fundamentar uma alegação. A
alegação ou conclusão (C), por sua vez, consiste na parte do argumento cujos méritos
buscamos estabelecer. Normalmente, a relação entre estas duas partes resume-se em
expressões do tipo “se D, então C” ou “D, portanto C”. Por trás da relação entre o dado e a
conclusão, existe, segundo o autor, uma garantia (W), que determina o grau de força que os
dados conferem à alegação, ou, em outras palavras, a garantia é “uma premissa consistindo de
razões, autorizações e regras usadas para afirmar que os dados são legitimamente utilizados a
fim de apoiar a proposição” (BAUER e GASKELL, 2012, p. 226). Neste sentido, a análise
argumentativa, a partir da perspectiva de Toulmin, também nos permite acessar as premissas
por trás dos argumentos dos agentes, e por isso foi utilizada nesta pesquisa como forma de
ajudar a acessar as lógicas institucionais em disputa no campo burocrático do Estado,
conforme será explicitado em capítulo posterior.
Ainda seguindo a perspectiva da análise retórica, também busquei analisar ao longo da
tese o papel das metáforas utilizadas pelos agentes em sua “transferência” de sentidos de um
conceito a outro, conforme explicaram Bauer e Gaskell (2012). Na análise retórica a metáfora
é considerada um tropo, ou seja, uma mudança de significado de uma palavra que se dá de
forma bem sucedida (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005). Conforme explicam
Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), por meio da metáfora é possível transpor a significação
de um nome para outra significação. Tendo em vista que o uso de metáforas era muito
frequente entre os agentes de minha pesquisa, e referiam-se a fenômenos importantes em
minha análise, não pude deixar de me atentar para os sentidos que os agentes tentavam
transferir por meio de suas metáforas.
Enquanto os fundamentos da teoria fundamentada perpassam toda a análise, a análise
retórica e, mais especificamente, a análise de metáforas, foi utilizada em pontos mais
específicos da análise, nos quais se mostram úteis. Nesse sentido, ao início de cada um dos
capítulos teórico-empíricos que se seguem buscarei explicitar as técnicas de análise de dados
que os embasaram.
3.3 Do Asfalto para o Morro: Desaprendendo o que são as Favelas
A relação de proximidade distante que estabeleci com as favelas ao longo de minha
vida de moradora do asfalto, não obstante fosse uma relação de vizinhança, sempre me
concedeu distância suficiente para inventar a minha favela, ou aderir à favela inventada e
51
compartilhada pelos demais moradores do asfalto. Portanto, subi o morro com uma bagagem
pesada, cheia de estigmas e estereótipos que davam os contornos da favela que inventei.
Ainda indecisa sobre meu objeto de investigação na tese de doutorado, no início de
2011, aceitei ao convite de um amigo e fui conhecer uma favela localizada na zona Sul do Rio
de Janeiro. Fomos ajudar na mudança de uma senhora, fundadora e responsável por uma
Organização Não-Governamental (ONG) que ensina música às crianças da favela. Em
decorrência do aumento do preço dos aluguéis, que se desencadeou após a “pacificação”, ela
se viu obrigada a mudar para uma casa menor, para a laje da casa de outra moradora.
O meu primeiro contato implicou, decididamente, uma sensação de estranhamento. Da
minha parte, eu não conseguia entender como tantas pessoas viviam em tão pouco espaço,
nem como aquelas casas podiam se sustentar tão bem em cima umas das outras. Eles
pareciam pressupor que por eu ser branca, de olhos e cabelos claros, não falava português.
Eles não eram todos pobres, sem estudo ou bandidos. Eu não era uma gringa que não falava
português. Algumas bagagens tiveram que ser deixadas no asfalto. Eu precisava estar mais
leve para voltar a subir o morro.
Hoje entendo que a minha sensação de estranhamento, que em parte ainda se mantém,
se deu, principalmente, porque naquele momento o que eu subia era a minha favela inventada.
Aos poucos, reduzindo a bagagem, pude perceber que as coisas são muito mais heterogêneas,
e que existem diferenças importantes não só entre diferentes favelas, mas dentro de uma única
favela, e coisas bastante semelhantes entre favelas e outras partes da cidade. Pude também me
dar conta de que eu pareço gringa em qualquer lugar da cidade, mas que isso se acentua
quando estou em pontos que costumam receber turistas com maior frequência, seja na favela
“pacificada” ou no pão-de-açúcar (embora o último eu não costume visitar).
Sobretudo, a relação de proximidade distante, que na minha visita à favela revelou-se
mais claramente, deixou-me intrigada. E a sensação de estranhamento me causava um prazer
inenarrável, semelhante ao de uma viagem para um país culturalmente distante, com a
diferença de que desta vez eu estava bem perto de casa. Depois de outras visitas informais,
que voltaram a me revelar essa relação e essa incrível sensação, decidi estudar favelas. Mas
entendi que para isso era preciso passar por um longo processo de desaprendizagem, era
preciso desconstruir a favela que inventei. Quanto mais estreitos foram se tornando os meus
laços com as favelas, mais a palavra “favela” foi perdendo seus sentidos, e hoje já me
questiono até mesmo sobre sua razão de ser.
52
Meu processo de desaprendizagem me levou à conclusão - talvez temporária - de que
o único elemento comum a todas as favelas, que pode ser apontado com certeza e segurança, é
o nome “favela” que todas assumem para si. Mas as palavras não aparecem
desacompanhadas. Carregam com elas os seus sentidos mais diversos. E, assim, os
estereótipos que historicamente foram atribuídos à palavra “favela” atrelam-se a esses
territórios - territórios de pobreza, territórios de sujeira, territórios da malandragem, territórios
de violência.
3.3.1 As Favelas e os Agentes do Campo Burocrático do Estado
O trabalho de campo aqui descrito foi desenvolvido em duas favelas cariocas, uma na
zona sul e outra na zona norte. A zona sul do Rio de Janeiro é destacada como a região mais
rica da cidade, principal zona de residência da elite carioca. A zona norte, por sua vez,
destaca-se como uma região mais pobre, com um custo de vida mais baixo. Com vistas a
controlar possíveis interferências desta diferença social entre as regiões da cidade, optei por
me inserir em favelas em regiões diferentes. Inicialmente acreditava que seria importante
acompanhar favelas nas diferentes regiões, porque tinha a crença de que favelas da zona Sul
eram diferentes de favelas da zona Norte. Aos poucos percebi que cada favela é muito
particular, e que estas diferenças vão além de uma simples separação entre zona Sul e zona
Norte. Entretanto, minha escolha inicial acabou assumindo um novo sentindo. Percebi que os
próprios agentes do campo burocrático do Estado adotam como premissa que favelas de zonas
diferentes da cidade são diferentes entre si, e por isso tais favelas parecem receber tratamentos
diferenciados, intensificação suas ações nas favelas da zona Sul.
3.3.1.1 A Favela da Zona Sul
A favela com a qual estabeleci meu primeiro contato foi, naturalmente, a favela que
comecei a pesquisar. Localizada na zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, essa favela tem bem
delimitada sua separação do asfalto, e é bem fácil perceber o momento em que se dá o
primeiro passo para dentro do morro. Como está entre dois bairros nobres da cidade, o
contraste entre morro e asfalto torna-se especialmente acentuado.
A favela em questão é na verdade um conjunto de favelas composto por duas favelas
distintas que compartilham o mesmo morro e a mesma UPP. O número de moradores ainda
não é um consenso. Embora as autoridades afirmem que ali há um total de 10 mil habitantes,
os moradores discordam, e apontam que só nos registros do posto de saúde há mais de 20 mil.
Provavelmente em decorrência de sua visibilidade e da “boa” localização, a favela tem como
53
característica de destaque a enxurrada de projetos sociais que oferecem serviços ali – mais de
60 organizações estão ali com este fim. Os projetos ou organizações oferecem atividades
muito variadas como aulas de luta, ballet, música, natação, circo, dentre outras. Também em
decorrência de sua localização, há grande circulação de pessoas do asfalto, dentre turistas,
pesquisadores ou voluntários das ONGs. Esse fluxo acentuado pode ser uma explicação para a
desconfiança que os moradores apresentam com pessoas de “fora”, especialmente com a
figura do pesquisador. Olham com desconfiança para quem tira fotografias e reclamam de
serem com frequência tratados “como macacos no zoológico”.
Como já havia estabelecido ali alguns contatos, foi fácil marcar as primeiras
entrevistas com alguns moradores, ainda em 2011, para levantar informações iniciais. Mas o
desenvolvimento das entrevistas, naquele primeiro momento, mostrou-se penoso, e percebi
que muitas dificuldades ainda precisavam ser superadas.
Embora eu e os entrevistados falássemos a mesma língua, a comunicação em si era
muito difícil. Percebi que eu usava um vocabulário muito “acadêmico”, e que muitas vezes
minhas perguntas eram incompreensíveis, não importava o quanto eu tentasse repeti-las e
explicá-las. Por outro lado, o vocabulário do local era, algumas vezes, incompreensível para
mim. Como lembra Cardoso de Oliveira (1996), a maior dificuldade da entrevista está,
possivelmente, em uma diferença entre “idiomas culturais”, que decorrem da diferença entre o
mundo do pesquisador e do nativo. Essa dificuldade revelou-se para mim.
Também se despontou, logo de início, uma agressividade muito grande diante da
figura do pesquisador. No caso mais representativo desta questão, uma entrevistada me
perguntou o que ela ia “ganhar com isso”, e afirmou, de forma incisiva, que não aguentava
mais “ser pesquisada”. Respondi, com minha ingenuidade de costume, que os resultados da
minha pesquisa poderiam contribuir para as discussões em torno da questão das favelas e das
intervenções estatais em favelas. Ela riu e me disse que eu não era nem a primeira nem a
última pesquisadora a passar por ali, e que minha pesquisa só ia servir para me dar um título
de doutora e, portanto, só traria benefícios para mim.
Aquela fala, severa e convicta, me fez repensar a pesquisa, mas não abalou minhas
crenças na relevância de meus resultados – afinal, eu também tenho minhas próprias
convicções. Conclui que as entrevistas não eram a melhor estratégia para entrar no campo.
Primeiro era preciso me inserir, aprender a linguagem, aprender sobre as relações, e depois
disso as entrevistas poderiam se tornar naturais e até secundárias. Faltava-me, ainda, o
“anthropological blues” (DA MATTA, 1978).
54
Em janeiro de 2013, com meu objetivo melhor delimitado, voltei a me inserir no
campo, com uma nova estratégia. Passei a fazer algumas visitas àquela primeira senhora que
ajudei a se mudar. Paralelamente, estabeleci contato com estudantes de uma organização, sem
fins lucrativos, que auxilia projetos sociais em favelas por meio de ações de
empreendedorismos. O grupo estava inserido na favela que eu estava a pesquisar, e passei a
acompanhá-los em algumas visitas. Por meio deles também fui me aproximando de outros
moradores. Fui, aos poucos, criando uma rede de contatos.
Mas o meu interesse maior de pesquisa estava nos agentes do campo burocrático do
Estado inseridos na favela, e foi por meio dos meus contatos com moradores ou trabalhadores
locais que busquei identificá-los e estabelecer contatos, com vistas a acompanhar o trabalho
que realizavam ali. Talvez os mais óbvios, os policiais da UPP foram desde o início
acompanhados em meu trabalho, tendo em vista que os policiais de rua estavam por toda a
parte e sua relação com os moradores sempre pode ser observada. Fui informada por
moradores que o comandante daquela unidade havia sido recentemente alterado, e que por
isso a UPP local estava passando por uma reorganização interna. Aguardei esse primeiro
momento de reestruturação para estabelecer o contato com o novo comandante, que ainda não
havia se apresentado aos moradores.
Por meio dos alunos da organização estudantil e de moradores que atuavam em ONGs,
fui convidada a participar de um evento na favela da Rocinha, organizado pelo programa
Territórios da Paz, programa social vinculado à Secretaria de Assistência Social e Direitos
Humanos (SASDH), de nível estadual, que tem por objetivo criar redes nos territórios em que
atua, a partir do protagonismo dos moradores neste processo. Para tal, o programa contava
com um gestor e um assistente em quase todas as favelas pacificadas. Esse evento se mostrou
de extrema importância para o desenrolar da pesquisa.
Lá conheci a gestora do Territórios da Paz da favela da zona Sul. Apresentei-me para
ela e para o superintendente do programa. Expliquei a minha pesquisa e pedi permissão para
acompanhar o trabalho. Os dois se mostraram muito dispostos a ajudar. A gestora local
passou a me informar das atividades que desenvolvia na favela, e comecei a ser convidada
com muita frequência a participar. Embora não tenha tido resistência em me deixar
acompanhar seu trabalho, inicialmente foi muito cuidadosa com o que falava na minha
presença e lembrava sempre a todos, em tom de brincadeira, que eu era uma pesquisadora.
Com o tempo, consegui criar uma forte relação de confiança, e ela passou a ser uma das
minhas principais informantes no campo.
55
Ainda no mês de janeiro, alguns moradores me avisaram que havia sido convocada a
primeira reunião da UPP sob novo comando e me chamaram para participar. Nessa reunião, o
novo comandante pretendia se apresentar aos moradores. Cheguei mais cedo, para me
apresentar ao comandante, mas ele ainda não havia chegado. Apresentei-me ao sub-
comandante, que já estava no local, e este se mostrou muito receptivo e se disponibilizou a me
apresentar todo o prédio da UPP. Ele deu início à reunião sem a presença do comandante, que
só se apresentou no meio do encontro. Ao final da reunião, quando o comandante já estava
presente, me apresentei, expliquei minha pesquisa e falei do meu interesse em acompanhá-los.
Ele concordou sem resistência, me deu seu e-mail e o número do seu celular, e me apresentou
à soldado responsável pelas relações públicas da UPP, pedindo que ela me desse a assistência
necessária. A partir daí passei a ser informada por e-mail sobre todos os eventos e reuniões
realizados pela UPP. No início o sub-comandante não me autorizava à gravar as reuniões.
Depois de alguns meses, acostumado com a minha presença, passou a autorizar a gravação.
Pude perceber que uma relação de confiança foi sendo estabelecida.
Além de participar de eventos e reuniões, solicitei que me deixassem passar alguns
dias de trabalho com eles, para realizar observação. Embora tenham concordado com a minha
solicitação, nunca chegaram a formalizar uma visita apenas com o intuito de observação, se
não houvesse nenhuma atividade formal sendo realizada, como reuniões, UPP Mirim ou
Caravana da Saúde. Percebi que se sentiam mais confortáveis com entrevistas e que o objetivo
destas era sempre melhor compreendido. Assim, comecei a agendar algumas entrevistas, com
o intuito de ir até o local, mas estas acabaram sempre se seguindo por longos períodos de
observação a partir do meu envolvimento em alguma atividade.
De início os moradores também mencionavam com frequência a atuação da UPP
Social, mas nunca souberam me dizer exatamente em que atividades seus gestores estavam
envolvidos. A UPP Social é um programa social que entrou após a “pacificação”, e tem como
proposta integrar as áreas “pacificadas” ao restante da cidade. É vinculado ao Instituto Pereira
Passos (IPP), de nível municipal. Uma moradora que se declarou amiga da gestora da UPP
Social no local, me passou o seu contato. Conversamos, e ela insistiu que eu entrasse em
contato com um setor responsável por autorizar a realização de pesquisas, pois só eles
poderiam autorizar que eu acompanhasse seu trabalho. Mandei e-mail e, inicialmente, não
obtive retorno. Liguei algumas vezes, mas não encontrei o responsável. No mês seguinte
recebi a notícia, por meio de moradores, de que a UPP social estava saindo do campo, e
surgiram rumores de que o programa tinha chegado ao fim. Não obstante as informações
56
fornecidas pelos moradores, insisti em meu contato com a UPP social. O funcionário
responsável por autorizar a pesquisa respondeu ao meu e-mail informando que não estava
mais vinculado ao programa. Consegui falar, por telefone, com outra funcionária, que
informou que ela agora era a responsável por autorizar as pesquisas, mas que eu precisaria
aguardar, pois o programa passava por uma fase de reformulação. Informou-me que a gestora
na favela de meu interesse tinha saído do programa e que em breve entraria outra em seu
lugar.
Quase um mês depois, participei de uma reunião no IPP com uma funcionária da UPP
Social para quem expliquei novamente a minha pesquisa e minhas intenções de realizar
observações e entrevistas. Ela me forneceu uma entrevista inicial para uma compreensão geral
do programa. Retornou-me informando que eu poderia acompanhar os gestores em campo, e
agendou uma primeira reunião com os quatro representantes do programa – dois responsáveis
pela favela da zona Sul e dois responsáveis pela favela da zona Norte. A partir daí, os gestores
começaram a me inserir em suas atividades em campo, convidando-me para acompanha-las.
Foi uma surpresa quando percebi que a UPP Social, de tamanho destaque na mídia,
não tinha tanto destaque no campo, a ponto do próprio comandante da UPP compará-la com
uma “cabeça de bacalhau”. Embora na mídia e na literatura a UPP social apareça como um
programa relacionado à UPP, ela não tem nenhuma ligação formal com a UPP em si e na
prática o comandante da UPP nem mesmo conhecia a gestora da UPP social. Além disso, é
importante ressaltar que os moradores queixavam-se com frequência da ausência da UPP
Social, mas não sabiam explicar o porquê de seu afastamento. Após o retorno oficial do
programa às favelas, estas queixas foram amenizadas, embora os moradores ainda se
questionassem a respeito do papel da UPP Social nas favelas.
Os moradores também me apontaram a presença de um outro agente importante: o
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O PAC, de âmbito federal, está voltado para
a realização de obras de infraestrutura urbana, social e logística. Embora o PAC já estivesse
atuante antes da pacificação, os representantes do programa relatavam que suas ações foram
facilitadas com a instalação da UPP na medida em que passaram a circular com maior
liberdade pela favela, sem a necessidade de crachás de identificação ou de serem
acompanhados por moradores. Na favela investigada, o programa se dividia em duas frentes:
uma frente social, gerenciada por uma empresa privada selecionada por meio de um processo
de licitação, e uma frente de obras, gerenciada por uma empreiteira que também passou por
57
um processo de licitação. Além disso, havia dois agentes do governo, um referente à frente de
obras e outro referente à frente social, que supervisionam todo o trabalho no campo.
Um morador, responsável por uma organização de sociedade civil voltada para o
problema do lixo, me informou que trabalhava em parceria com o PAC, realizando mutirões
de limpeza, e me passou o contato do responsável pela frente social do programa. Consegui,
rapidamente, fazer o contato. O gestor foi muito receptivo, passou a me informar de todas as
reuniões do programa, e me explicou, detalhadamente, todo o seu funcionamento. Passei a
acompanhá-los de perto, sem maiores dificuldades. Entretanto, em junho, a empreiteira
licitada, responsável pela frente de obra, pediu o desligamento do programa, e as obras, assim
como o trabalho da frente social, foram paralisadas. Quando saí de campo, ainda estavam
aguardando a entrada de uma nova empreiteira no campo e a entrega de apartamentos sofreu
grande atraso, ainda que algumas Áreas de Reassentamento (AR) já estivessem prontas, o que
foi motivo frequente de reclamação dos moradores.
Vale ressaltar que, embora com menor frequência, também acompanhei o trabalho de
outros agentes do campo burocrático do Estado inseridos na favela que têm uma relação
menos frequente com os moradores em geral, como os representantes do Centro de Referência
de Assistência Social (CRAS) ou do Centro de Referência da Juventude (CRJ). Algumas
vezes tive a oportunidade de acompanhar eventos ou cursos oferecidos por essas
organizações. Entretanto, o CRAS foi apontado pelos moradores como um órgão quase sem
função. Uma evidência da baixa interação entre os representantes do CRAS e os moradores é
o fato de ter sido recentemente criado, por um grupo de adolescentes moradoras da favela, um
programa com o objetivo de auxiliar egressos do tráfico. O CRAS tem um programa com o
mesmo objetivo, que nunca recebeu nenhum egresso. As adolescentes já estão trabalhando
com três destes jovens, em poucos meses de atuação, e ficaram surpresas ao saber que o
CRAS também oferece esse auxílio. Ainda assim, consegui, por meio de um pedido de
autorização formal na Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SDS), acompanhar
mais de perto algumas ações do CRAS e realizar entrevistas com alguns de seus funcionários.
O CRJ, por sua vez, atendia a um grupo restrito de jovens. Participei de um novo
programa voltado para jovens, organizado por moradores de uma outra favela também da
zona sul, que está entrando na favela que pesquisava por meio de uma parceria com o CRJ e
com o Territórios da Paz. Este programa tem um potencial para ampliar o número de jovens
que frequentam o CRJ.
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Como os diversos agentes do campo burocrático do Estado também costumavam
interagir entre si, participar de eventos e reuniões uns dos outros, e até realizar eventos em
parceria, mesmo que eu não acompanhasse com a mesma frequência todos os agentes,
acabava também interagindo com eles. Além disso, algumas vezes tive contato, por meio dos
moradores, com agentes como representantes da Light, da Comlurb ou da CEDAE, mas a
interação entre os moradores e os agentes representantes destas organizações era restrita,
embora os moradores, muitas vezes, buscassem representantes em cargos superiores para
fazer reclamações ou estabelecer parcerias. Em geral, eles não eram bem sucedidos.
As características dos principais agentes do campo burocrático do Estado, com os
quais tive mais interação e os quais se mostravam mais presentes nas favelas, e que portanto
também foram mais explorados em minhas análises de dados, estão sintetizadas na Tabela 4 a
seguir.
Tabela 4. Características dos principais agentes do campo burocrático do estado em ação nas favelas
Nome do Programa Vínculo Institucional Objetivo5
Unidade de Polícia Pacificadora Secretaria Estadual de
Segurança Pública (Estadual)
Retomar dos territórios das
favelas
Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC)
Ministério do Planejamento
(Federal)
Ampliar a infraestrutura das
favelas
UPP Social Instituto Pereira Passos - IPP
(Municipal)
Encaminhar demandas dos
moradores de favelas a outros
órgãos públicos
Territórios da Paz
Secretaria Estadual de
Assistência Social e Direitos
Humanos – SEASDH
(Estadual)
Fortalecer redes
Centro de Referência de
Assistência Social (CRAS)
Secretaria Municipal de
Desenvolvimento Social – SDS
(Municipal)
Antecipar demandas;
Possibilitar o acesso a
benefícios.
3.3.1.2 A Favela da Zona Norte
A favela na Zona Norte do Rio de Janeiro, que acabou por também se tornar meu
campo de pesquisa, é localizada em um bairro onde moram classes mais baixas, e por isso o
5 Os objetivos apontados nesta tabela estão baseados nos objetivos declarados pelos representantes dos programas entrevistados ao longo da pesquisa.
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contraste entre morro e asfalto não é tão acentuado aqui. É difícil perceber o exato momento
em que se está adentrando a favela, pois as casas localizadas em suas proximidades, também
são, em geral, habitadas por pessoas de classes sociais mais baixas.
A favela da Zona Norte é, oficialmente, considerada parte de um complexo de favelas,
embora muitos moradores relutem em aceitar esta definição. O complexo é composto por 7
favelas com um total de 30 mil habitantes, e a favela específica que é o foco de estudo aqui
possui em torno de 7 mil habitantes, segundo informações de uma gestora local. Os dados
oficiais mais uma vez são outros – em torno de 2.000 na favela em questão e 10 mil no total.
Esta favela não é considerada uma favela de grande visibilidade, e fui recebida com
estranheza quando disse que estava realizando minha pesquisa lá. Moradores e gestores me
questionaram inúmeras vezes “por que você escolheu fazer sua pesquisa aqui?”. A circulação
de pessoas externas lá ocorre muito pouco: raramente recebe turistas, pesquisadores não se
interessam em estudá-la, e, oficialmente, não há nenhuma ONG no local, embora alguns
gestores afirmem ter no máximo duas, não muito reconhecidas enquanto ONGs. Ouvi relatos
de que algumas ONGs tentaram atuar lá, mas não conseguiram apoio financeiro e tiveram que
sair.
Foi também no evento realizado na Rocinha que conheci uma moradora desta favela
da zona norte. Ela fazia um trabalho em sua favela para conscientizar a população local a
respeito do problema do lixo, contando-os sobre a história do rio que corta o morro. Além
disso, em parceria com um professor universitário, ela estava organizando um eco-museu na
favela. Ela me convidou para fazer uma visita na favela onde mora e conhecer o seu projeto.
Fiz a minha primeira visita e fiquei encantada com o lugar. A moradora que conheci
na Rocinha me levou para conhecer toda a favela, e foi me contando a história do rio
enquanto caminhávamos. As casas eram maiores, assim como as ruas, e havia áreas florestais
ao redor. Lá as pessoas pareciam mais receptivas com pesquisadores, com os quais ainda não
haviam tido muito contato. Quando contava aos moradores que estava lá com propósito de
pesquisa, alguns prontamente se ofereciam para me conceder entrevistas. Foi possível,
inclusive, tirar fotos sem problemas. Os moradores pareciam até gostar.
Quando perguntei a alguns moradores sobre representantes do Estado que atuavam ali,
eles me informaram ter contato apenas com a UPP, com a gestora do Territórios da Paz e com
os representantes da UPP Social, mas não souberam me passar os contatos. Com a gestora do
Territórios da Paz da favela da zona sul consegui o contato da gestora do programa na nova
favela em que tentava me inserir. Ela marcou uma reunião comigo na SEASDH, onde
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conversamos sobre a minha pesquisa e sobre o seu trabalho. Ela me passou muitas
informações sobre a favela, mas se mostrou surpresa por tê-la escolhido para estudar. A partir
daí passei a acompanhar de perto seu trabalho, e ela me informava sobre todas as suas
atividades. Também se tornou uma informante chave sobre a favela em questão.
Fui avisada por uma moradora que ocorreria uma reunião, chamada “Café
Comunitário”, que acontecia toda última terça-feira do mês na UPP local. Compareci à
reunião e me apresentei ao comandante, que era o mesmo desde a implantação da UPP. Ele
me contou que também era acadêmico e que realizava pesquisas naquela favela também.
Autorizou-me a realizar a pesquisa e me apresentou para a soldado responsável pelas relações
públicas da UPP. A soldado também foi muito solícita em me ajudar e passou a me fornecer
todas as informações necessárias. Eles me deram, desde o início, autorização para gravar as
reuniões e me permitiam frequentar à UPP, ainda que fosse apenas com o propósito de
observação.
No “Café Comunitário” conheci a gestora da UPP Social daquela favela. Da mesma
forma que na favela da zona Sul, pedi autorização para acompanhar o trabalho no campo para
a responsável no IPP, e tratamos do assunto na mesma reunião realizada no IPP. Embora
também lá eu tenha sido informada que a UPP social passava por reformulações, a gestora
local foi alterada um pouco depois.
Em ocasião de uma caminhada ecológica realizada na comemoração do aniversário da
favela, passamos por algumas regiões, bem no topo do morro, onde algumas obras estavam
acontecendo. Os moradores que me acompanhavam informaram que eram obras do Cimento
Social, programa criado pelo Senador Marcelo Crivella e incorporado à prefeitura do Rio de
Janeiro, que realizava reforma de casas e remoções e reconstruções de casas que antes
estavam em áreas de risco. Os moradores relataram alguns confrontos entre os representantes
do programa e os moradores cujas casas foram marcadas para remoção. O contato dos
representantes do Cimento Social com os moradores se dava apenas nos casos em que era
necessário ocorrer a remoção. Eu tive a oportunidade de acompanhar algumas reuniões dos
moradores que tiveram as suas casas removidas pelo programa.
Também aqui tive contato com representantes do Centro de Referência de Assistência
Social (CRAS), que costumavam realizar parcerias com outros agentes que acompanhei em
minha pesquisa, como a UPP ou o Territórios da Paz. Neste caso, também foi necessário o
pedido de autorização para a SDS. Os representantes do CRAS nesta favela pareciam ser mais
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atuantes, talvez pelo menor número de agentes do Estado nesta favela, e por isso com eles tive
um contato mais próximo.
A Comlurb, neste caso, recebe destaque por possuir uma relação conflituosa com os
moradores, e por isso tive um contato mais frequente. O problema do lixo era fonte de
constantes reclamações dos moradores, que entravam em contato com frequência com a
Comlurb para fazer reclamações ou para auxiliá-los em mutirões de limpeza organizados por
eles mesmos.
O contato entre os moradores e representantes da Light ou da CEDAE era bem
restrito. A favela não era abastecida pela CEDAE, pois seus representantes afirmavam que
não era possível abastecer o morro devido à inclinação. Os moradores, portanto, criaram seu
sistema próprio de distribuição de água. Embora solicitassem o contato com representantes
destas organizações para reclamações, em geral não recebiam retorno.
3.3.2 A Inserção no Campo
Como lembra Cardoso de Oliveira (1996), na observação participante é necessário que
o pesquisador consiga viabilizar a sua aceitação no campo, de modo a facilitar sua interação.
Ainda que se saiba que o pesquisador nunca se tornará exatamente igual aos nativos
(WHYTE, 2005), é preciso ser aceito e estabelecer boas relações.
Embora o processo de negociação para entrada no campo seja em geral descrito na
literatura como um processo demorado (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1996), o meu processo
de negociação com os agentes que pretendia acompanhar, em geral, se deu de forma rápida,
facilidade que atribuo ao fato de se tratarem de agentes públicos, em um momento em que se
evoca maior transparência do Estado. Muitas vezes recebi como resposta à minha solicitação
de pesquisa: “Sou um representante do Estado, tenho que dar liberdade para quem quiser
acompanhar o meu trabalho”. E nem sempre foi preciso recorrer a um superior com um
pedido formal de autorização (pedidos formais de autorização foram necessários apenas nos
casos do CRAS e da UPP Social).
Cabe ressaltar, entretanto, que embora no âmbito formal esse processo tenha sido
facilitado, na prática foi preciso um tempo para que alguns dos agentes deixassem de “temer”
a minha presença. Principalmente no período inicial, percebi claramente que alguns dos
agentes evitavam falar certas coisas na minha frente ou, quando deixavam escapar, em um
momento de distração, logo me alertavam “não coloca isso na sua tese não!”.
Aos poucos uma relação de confiança foi sendo construída, e as coisas passaram a ser
ditas com um cuidado menor. Em uma das reuniões da UPP, em que eu estava gravando, o
62
sub-comandante fez uma piada e chamaram sua atenção: “Tenente, a Vanessa está
gravando!”. Ele respondeu, rindo, “não tem problema, eu confio nela”. Uma gestora do
Territórios da Paz declarou diretamente: “sou uma pessoa muito intuitiva, e minha intuição
me diz para confiar em você”. A partir daí, até mesmo confissões de sua vida pessoal
passaram a ser compartilhadas comigo.
Com o tempo, alguns acontecimentos começaram a me apontar que eu estava
conquistando minha aceitação no campo. Alguns moradores começaram a me ligar para avisar
sobre eventos que iriam acontecer. Ou quando me encontravam falavam de imediato “vai ter
uma reunião na semana que vem que você não pode perder!”. Convites para atividades
sociais, para além dos meus objetivos de pesquisa, como “tomar uma cerveja”, também
passaram a ser frequentes.
Na favela da zona Norte, fui convidada a participar ativamente da construção do Eco-
museu, e a dar aulas em um curso que seria ministrado para os moradores. Fui, ainda,
convidada, com direito a acompanhante, para o baile de debutantes que os representantes da
UPP estavam organizando para se aproximar dos jovens da favela, e ajudei, com frequência,
nos preparativos para a festa. Na favela da zona Sul, também recebi um convite para auxiliar
em um curso a ser ministrado para os policiais e um pedido de representar uma gestora do
Estado em um evento na favela em que ela não poderia estar presente.
Aos poucos minhas diferenças deixaram de ser tão acentuadas. Em uma ocasião, uma
moradora me relatou que uma turista havia sido confrontada pelos “meninos” do tráfico, e
atribuiu parcialmente a culpa do acontecimento à forma como ela estava vestida, claramente
como alguém de “fora”. E em seguida completou, apontando para a minha roupa: “essas
pessoas não se vestem assim como a gente, de calça jeans e All Star”. Nesse momento percebi
que estávamos vestidas de forma muito similar e que ela não estava mais me comparando a
uma pessoa de “fora”. Mas o acontecimento talvez mais emblemático ocorreu quando uma
gestora me chamou a atenção, durante uma conversa: “Não use esse vocabulário na frente dos
policiais! Você está usando expressões cunhadas pelo tráfico!”.
As dificuldades passaram a girar em torno de gerenciar as relações criadas, que muitas
vezes envolviam desavenças entre os diversos grupos com os quais criei laços. Depois de me
inserir em grupos diferenciados, passei a compartilhar das dificuldades relatadas por Whyte
(2005) de conciliar interesses e conflitos no campo. Fui aprendendo a circular, seguindo uma
regra fundamental da observação participante: evitando influenciar ativamente os eventos
(WHYTE, 2005).
63
Senti que com o tempo consegui criar boas relações no campo, e meu trabalho foi
facilitado por isso. Os meus próprios sentimentos, de afeição e de carinho, de saudade quando
não os via, e a alegria de estar ali, mostraram-me que eu também aceitei o meu campo como
parte importante da minha vida, mesmo com as diferenças que ainda se mantinham.
Tendo em vista os fortes vínculos que estabeleci com moradores e com agentes do
Estado nas favelas, o processo de saída de campo mostrou-se muito mais difícil do que o
esperado. Em um ano de pesquisa, já possuía uma grande quantidade de dados, e em minhas
conversas com pesquisadores mais experientes sempre ouvia conselhos no sentido de sair do
campo. Pensar em deixar de frequentar as favelas me trazia tamanha angústia, que acabei
estendendo a minha pesquisa por mais quatro meses além dos 12 meses inicialmente
planejados. Pressionada por prazos e pela grande quantidade de dados, após 1 ano e 4 meses
de pesquisa de campo, finalmente, aceitei a minha saída e retornei, de vez, do morro ao
asfalto.
64
4 SOBRE CAMPOS DE PODER: REINTERPRETANDO ESTADO E FAVELAS
Era uma noite de quarta-feira, quando adentrei o teatro localizado na favela da zona
Sul. Naquele dia, a minha ida à campo foi motivada por um evento específico: uma audiência
pública convocada com o propósito de discutir problemas da comunidade. Representantes dos
mais diversos órgãos públicos mostraram-se presentes e compuseram a mesa que daria início
à discussão. A maioria dos rostos ansiosos em cima do palco já me era familiar de minha
rotina na favela e pertenciam a pessoas que trabalhavam ali. Contrariando o meu pressuposto
inicial de que em favelas não há Estado, àquela altura já não era mais possível negar que o
Estado estava presente nas favelas, de forma concreta e objetiva, representado pelas figuras
daquelas pessoas que se acomodavam no palco. Com o início do debate, o clima começou a
“esquentar”, e os moradores que tiveram a oportunidade de falar ao microfone gritavam as
mais diversas queixas e em voz alta tentavam se fazer ouvir. Suas reclamações não eram
simples caprichos. Tratava-se de questões básicas, de condições básicas de vida, que iam
desde falta de luz, à água contaminada por fezes. Diante do espetáculo, não pude deixar de me
questionar: se o Estado está presente na favela, por que demandas tão básicas ainda não foram
atendidas?
Um olhar retrospectivo para os meses de pesquisa de campo que já haviam ficado para
trás me fez notar que foi aquela a ocasião em que mais me aproximei do encontro de uma
entidade, grupo ou organização a qual poderia denominar de Estado: o grupo de pessoas em
cima do palco. Pela primeira vez em campo, pude respirar aliviada, direcionar o meu olhar
para um único lugar e dizer, com certa tranquilidade, que estava observando o Estado na
favela. Quase todos estavam ali.
Entretanto, este foi um momento atípico. Desde que entrei na favela, com o objetivo
de acompanhar as ações do Estado, vivi uma angústia constante. O Estado estava em muitos
lugares ao mesmo tempo. E o meu olhar, único, não dava conta de observá-lo como um todo.
A agonia de ter que escolher para onde olhar acompanhou a minha trajetória em campo e
resultou em uma agenda complexa, em minutos contados, em difíceis decisões entre um
evento e outro, e em uma pesquisa de campo muito maior do que eu pude antecipar. Mas
acima de tudo, em uma frustração: a impossibilidade de encontrar uma unidade que pudesse
chamar de Estado, para a qual eu pudesse apontar e dizer com segurança “está ali o que eu
vim procurar”.
Em meu esforço de acompanhar cada um deles, em separado ou em parcerias, vi que
para além de uma discordância em termos de horários e locais de atuação, as pessoas que se
65
apresentavam na favela como representantes do Estado discordavam em muitos outros
aspectos. Críticas diretas ou indiretas, disputas por recursos em geral, omissão de
informações, conflitos abertos ou velados, contrapunham-se a ações conjuntas,
compartilhamentos de recursos, de ideias ou de angústias, e até relações de amizades. As
relações que eu observava em campo me apontavam para o fato de que a entidade que eu vim
observar tratava-se, na verdade, de uma rede de relações entre posições: corroborando meus
pressupostos iniciais, o Estado parecia ser melhor descrito enquanto um campo de poder.
Antes de voltar-me a responder diretamente às minhas perguntas de pesquisa, tenho
como objetivo, neste capítulo, demonstrar como cheguei ao conceito de campo para retratar
teoricamente tanto Estado quanto favelas. As noções de campo burocrático do Estado e de
campo da favela darão suporte aos capítulos que se seguem e é com base nelas que me
proponho a responder às minhas questões de pesquisa. Para tal, este capítulo parte dos dados
coletados tanto por meio de entrevistas quanto por meio de observação, no que dizem respeito
a moradores e representantes do campo burocrático do Estado, e pautou-se na teoria
fundamentada como forma de análise de dados.
Começarei apresentando o Estado enquanto um campo de poder. Depois, mostrarei
como o campo burocrático do Estado também sofre influência e é interdependente do campo
político. Em seguida, discuto também as favelas enquanto campos.
4.1 Desconstruindo o Estado enquanto “Entidade”: Disputas e Cooperações entre Burocratas do Estado em Ação nas Favelas
O primeiro problema com o qual me deparei em minha pesquisa de tese dizia respeito
a como tratar teoricamente o Estado. Embora meus pressupostos teóricos já me aproximassem
da noção de campo, buscava me manter fiel aos dados, e procurei olhá-los de forma cuidadosa
para corroborar ou refutar empiricamente minha premissa teórica. Este problema passou a ser
analisado com mais detalhes após a minha entrada em campo. Os burocratas do Estado que eu
fui observar eram muitos, representavam esferas diferentes do governo, disputavam entre si,
mas também cooperavam. Uns tinham mais poder e legitimidade do que outros e pareciam
seguir uma lógica própria.
Disputas eram frequentes entre vários burocratas. Em geral, representantes da UPP
Social e do Territórios da Paz compareciam às mesmas reuniões. Em uma noite de terça feira,
saíamos de uma reunião comunitária na favela da zona Sul em que representantes de ambos os
programas estavam presentes. Os dois membros da UPP Social, como era de costume, saíram
66
andando mais rápido na frente. Embora todos soubéssemos que estávamos descendo o morro
pelo mesmo lugar, e que íamos pegar o mesmo ônibus de volta para casa, eu e o representante
do Territórios da Paz fomos andando mais devagar, como quem mantém um distanciamento
intencional. Aquela dinâmica que sempre me incomodava, mas que permanecia velada,
naquele dia foi posta em palavras pelo membro do Territórios da Paz: “Olha lá! Eles sempre
fazem isso, sempre saem correndo na frente!” (Notas de Campo, 29/10/2013), falou em voz
baixa ao meu ouvido. Agora um pouco mais afastados dos sujeitos da nossa conversa, ele
continuou a reclamar, com um tom de voz um pouco mais alto, que os gestores da UPP Social
se afastam porque não gostam de compartilhar informações, acham que suas ideias serão
roubadas. Completou que os gestores do programa não são nada colaborativos, que são muito
competitivos com o Territórios da Paz.
A disputa entre os dois programas era acirrada. Embora nada fosse dito diretamente, e
houvesse uma relação de respeito mútuo entre os gestores dos programas, as reclamações nos
bastidores eram constantes. E aconteciam até mesmo disputas entre as demandas dos
moradores. Em uma reunião comunitária que tinha por objetivo a construção de projetos da
comunidade, os moradores pediram à UPP Social auxílio para digitar os seus projetos. A
reação ao ocorrido eu pude ouvir no dia seguinte: “Eles ficam lambendo o cu da UPP Social!”
(Notas de Campo, 15/10/2013), reclamou de forma exaltada um representante do Territórios
da Paz. E completou que a UPP Social acabou de chegar, e ainda não sabia de nada sobre a
comunidade.
A competição entre Territórios da Paz e UPP Social, programas que compartilham
tanto em comum e que teriam muitas oportunidades para atuar em parceria, embora bastante
emblemática, não era a única. Participei de uma reunião a respeito de um projeto com idosos
realizado a partir de uma parceria entre Territórios da Paz, prefeitura e CRAS, em que foi
planejado o próximo evento que fariam com os idosos de algumas favelas da zona norte: uma
série de palestras sobre idosos que voltavam a trabalhar. Este evento, particularmente, seria
coordenado pelo representante do CRAS presente na reunião. Na semana seguinte, ao
questionar sobre os preparativos para o evento, a gestora do Territórios da Paz me explicou,
meio sem jeito: a presidente do CRAS pediu que seu funcionário se retirasse do projeto,
porque acreditava que os demais programas estavam explorando “os idosos do CRAS”.
As relações se complexificavam ainda mais no que dizia respeito à figura da UPP, que
ocupava, para os demais representantes do Estado, seu lugar de “inimigo do povo”. E quem é
inimigo do povo é também inimigo do restante do Estado, como deixou claro um
67
representante da Clínica da Família: “Com a UPP a gente nem fala, (...), quer distância da
UPP, porque se você é amigo da UPP, você é inimigo da comunidade. Porque, cara, não bate,
não rola, os caras estão aí. Mas não é..., a gente não fala nem bom dia para eles”.(
Representante da Clínica da Família 1, Favela da zona Sul). A UPP Social, por sua vez, lutava
para esconder qualquer possível grau de parentesco com a UPP que seu nome denuncia. Seus
representantes foram, aos poucos, criando estratégias: apresentam-se aos moradores como IPP
ou ONU Habitat, órgão por meio do qual foram contratados. Em conversa informal com um
dos gestores da UPP Social, este me relatou, em tom jocoso, que surgiu uma ideia no IPP de
que eles andassem uniformizados: “pra andar com o nome da UPP Social é mais fácil eles
colocarem logo um alvo na nossa camisa para as pessoas atirarem, né” (Notas de Campo,
21/09/2013).
Os policiais também não davam tratamento especial a quem era representante do
Estado, e chegavam a revista-los, ainda que uniformizados, revelando a ausência de relações
de confiança entre eles. Durante entrevista, um funcionário da UPP Social me relatou a
seguinte situação:
Entrevistado: Uma vez eu estava ajudando o pessoal da Rio Luz a carregar as lâmpadas e a
polícia revistou todo mundo, inclusive o pessoal da Rio Luz. (risos)
Vanessa: Revistou o pessoal da Rio Luz?
Entrevistado: revistou o pessoal da Rio Luz. Perguntou o que que a gente estava fazendo.
(risos) "Que que estão fazendo aí?" Nem respondi, né.
Vanessa: Mas aí foi, acabou sendo uma situação conflituosa, assim?
Entrevistado: Claro, pô, você está trabalhando, o cara manda você largar a coisa, encostar a
mão na parede e tal. Eu nem encostei a mão na parede, eu fiquei virado, virado eu fiquei.
Assim, não dei, só larguei a caixa, e o cara veio, eu levantei a mão assim. Mas os caras da
Rio Luz, botaram a mão na parede lá. Largaram aquela escada, pesada, botaram a mão na
parede (Representante da UPP Social 3, favela da zona Sul).
E para concluir, comentou: “(...) é até bom porque tira totalmente a nossa visão,
entendeu, mas uma porrada de morador sendo revistado e a gente passando batido, entendeu.
A gente ri da situação depois, entendeu” (Representante da UPP Social 3, favela da zona Sul).
As disputas traziam implicações diretas para a minha pesquisa de campo, e eu era
claramente afetada por aquele ambiente conflituoso. A simples escolha de onde sentar em
uma reunião em que vários burocratas do Estado estavam presentes era uma grande fonte de
tensão. Abraços calorosos recebidos em público, falas de gestores ou policiais em reuniões
que demonstravam algum grau de intimidade comigo, ou um simples “boa noite” direcionado
de um policial, me causavam constrangimento. Acompanhada dos gestores do Territórios da
68
Paz cruzei com policiais conhecidos e fingi não os ver. Um dos gestores fez um comentário
em voz alta: “pra quê tanta arma?! Parece que estamos em guerra!” (Notas de Campo,
21/11/2013). Hesitei em concordar e dei um sorriso sem graça. O cumprimento aos policiais
ou a concordância com o gestor seriam sinais de posicionamento – afinal, eu estava do lado de
quem?
Tão frequentes quanto as disputas era a ausência de cooperação, mesmo em situações
em que a ajuda mútua era simples e bem vinda. Em incontáveis situações os funcionários do
PAC, que precisavam com frequência do suporte da Light ou da CEDAE em suas obras,
foram “deixados na mão”. A UPP Social que tinha como seu objetivo primeiro o
encaminhamento de demandas para outras secretarias chegou ao ponto de ter que se
reformular, em face de tamanha negligência dos órgãos acionados. E mesmo os representantes
do Estado que não são tão dependentes da cooperação dos demais tem a percepção de falta de
parceria, e reconhecem que isso atrapalha o trabalho: “é negativo também no sentido de que
as políticas não se conversam. As políticas não andam no mesmo ritmo” (Representante do
CRAS 4, Favela da zona Norte).
Os moradores, em seu convívio quase diário com os burocratas do Estado, sempre
tentando extrair deles melhorias para a sua comunidade, têm a compreensão de que o
individualismo dos representantes do Estado atrapalha a comunidade, e defendem que se
houvesse mais cooperação, não seria necessário tanto “Estado” dentro da favela. Este
reconhecimento foi expresso por uma frase muito repetida entre os moradores: “Eu acho que é
cada um por si e Deus por todos” (Morador 12, Favela da zona Norte). Conforme relata uma
moradora:
O Município e o Estado não se falam, continuam, no CRAS, a secretária de saúde não se
comunica com a assistência social e ocupa o mesmo espaço. Não se falam, são duas
secretárias, não.... Nada.... O Território da Paz detona a UPP Social, porque é Estado e
Município, entendeu? E o pessoal vai juntando pra poder, vão fazer, juntar forças e fazer,
eles também não facilitam a nossa vida, porque eles mesmos não se falam. Polícia civil e
polícia militar não se.... Não sei se já conversam, mas antes era disputa total. [...](Morador
10, Favela da zona Sul).
Mas também foram observadas relações de cooperação. As orientações iniciais aos
programas estão em geral direcionadas para o estabelecimento de parcerias, para que práticas
conjuntas aconteçam em campo. Ao ingressar nos territórios de favelas, os novos
representantes do Estado, em geral, apresentam-se aos demais e acreditam ser importante que
os outros representantes do Estado saibam que eles existem e o que eles estão fazendo ali.
69
A importância da cooperação entre os diversos representantes do Estado é reconhecida
como fundamental para o sucesso de suas ações: “Porque não dá pra gente ‘fazer acontecer’
sozinhos” (Representante do PAC 4, favela da zona Sul). E as orientações dos superiores
acabam se dando neste sentido: “teve uma determinada reunião em que a orientação ‘olha só,
precisa se aproximar do PAC e precisa se aproximar da UPP’”.
Entretanto, no dia a dia em campo, estas parcerias não são tão óbvias, e os
representantes reconhecem, que não obstante o esforço, as cooperações são exceção e não a
regra: “Mas é muito, muito pontual, sabe” (Representante da UPP Social 3, favela da zona
Sul).
As relações de cooperação com a UPP parecem ser as mais complicadas, ponto que
será discutido posteriormente nesta tese. Com o temor de terem suas imagens afetadas na
favela, os demais representantes do Estado evitam o contato, mas participam das reuniões
organizadas pela UPP para que se mantenham informados. E muitas vezes os policiais das
UPPs nem mesmo sabem quem são os demais burocratas do Estado presentes na favela.
É claro que neste caso também existem algumas exceções. O PAC, por exemplo, não
demonstra temor de se ver associado à UPP, e tem uma boa relação com os policiais: “a gente
está direto com a UPP, a gente pede muita ajuda a eles, a UPP também nos solicita,
trabalhamos juntos que nem irmãos, todo mundo filho do mesmo pai?!”( Representante do
PAC 3, Favela da zona Sul).
Outra exceção aparece na relação entre o Territórios da Paz da favela da zona Norte e
a UPP local. Ao longo do tempo os gestores e policiais foram construindo uma relação de
confiança e passaram a incluir em suas rotinas de trabalho ações conjuntas. A gestora do
Territórios da Paz local explicou como se deu este processo:
A gente [na favela da zona Norte] trabalha com a UPP, mas também foi uma coisa que
levou bastante tempo. Eu comecei a trabalhar [na favela da zona Norte] no começo de
2012, mas eu levei um bom tempo até fazer alguma parceria com eles, assim. Antes eu ia
aos conselhos comunitários, eu conversa com o [comandante], e tal, mas eu não fiz
nada.(...). Então já teve reunião que a gente fez, que eu falei para eles, eu não quero que
vocês vão, entendeu, não quero. Teve uma coisa que por quê? Eu achei que não ia ser
produtivo e aí depois já teve, a partir do momento que eu já tinha uma segurança maior no
trabalho dele, achava que não, que eles tinham objetivos que eu considerava interessantes e
que eu vi que eles tinham relacionamento com outras pessoas, também, que era positivo
com as lideranças, não tinha aquela coisa centralizadora de tentar meio que apagar as
lideranças, aí, sim, aí a gente foi começando a trabalhar com eles, (...). Mas esse, mas fora,
mas antes da gente ter essa segurança a gente não fazia nada, nossas coisas, nossos projetos,
70
nossos projetos. Nossas reuniões, nossas reuniões, entendeu. É mais ou menos assim
(Representante do Territórios da Paz 3, Favela da zona Norte).
Possíveis explicações para as exceções mencionadas serão discutidas posteriormente
neste capítulo. Mas as minhas observações iniciais já pareciam me apontar para o fato de que
o que eu observava era um campo de poder, era um Estado que, como retrata Bourdieu
(2014), não se podia tocar com o dedo.
4.2 Sobre o Estado enquanto Campo de Poder
A observação empírica serviu para me apontar para o conceito de campo como aquele
que melhor retrataria o Estado, pelo menos na situação investigada. Conforme explica
Bourdieu (2014), dentro do campo burocrático do Estado existem agentes com interesses
diversos, que por isso estão em constante luta. As lutas são intrínsecas ao campo burocrático
do Estado (BOURDIEU, 2014). Ou, como relatam Fligstein e McAdam (2012), os campos
são inerentemente conflituosos.
Ao observar um campo e, portanto, uma arena de disputas, vivenciei e ouvi relatos de
conflitos e competições entre os agentes com os quais buscava conviver, conforme
demonstrado anteriormente. Mas os campos não são dinâmicos apenas por suas disputas.
Competição e cooperação estão sempre na base da construção de todos os campos
(FLIGSTEIN e MCADAM, 2012). Portanto, no campo do Estado aqui em análise, algumas
práticas de cooperação também foram observadas.
Para retratar dinâmicas como a descrita acima, a noção de campo é utilizada nas mais
diversas áreas do conhecimento, e hoje pode-se encontrar pesquisas em sociologia, psicologia,
saúde, educação, tecnologia, dentre muitas outras, que se pautam no conceito. A ideia geral
por traz da noção de campo diz respeito a um espaço social, que contém nós ou posições, bem
como suas mútuas relações (MAZZA e PEDERSEN, 2004).
O conceito de campo aparece com uma frequência cada vez maior nas pesquisas da
área de estudos organizacionais (EMIRBAYER E JOHNSON, 2008), principalmente para se
pensar as relações de poder, dominação, classes, que estes campos representam (EVERETT,
2002). Intensamente difundido na área, o conceito de campo ganhou força, particularmente, a
partir da noção de campos organizacionais cunhada pela abordagem institucional, perspectiva
teórica que até hoje possui forte influência na área. DiMaggio e Powell (2005, p. 76), autores
de destaque dentro da abordagem institucional, definiram os campos organizacionais como
“aquelas organizações que, em conjunto, constituem uma área reconhecida da vida
71
institucional: fornecedores-chave, consumidores de recursos e produtos, agências regulatórias
e outras organizações que produzam produtos ou serviços similares”.
A noção de campos organizacionais traz contribuições para os estudos das
organizações na medida em que inclui não apenas um tipo de organização, mas todas as
organizações relevantes para o fenômeno em análise (EMIRBAYER e JOHNSON, 2008). Em
virtude de sua utilidade para a análise das organizações, o conceito de campo organizacional
ganhou grande apelo, a ponto de podermos dizer que foi dentro da abordagem institucional
que o conceito de campo foi mais utilizado e elaborado (EMIRBAYER e JOHNSON, 2008).
Entretanto, conforme defendem Emirbayer e Johnson (2008), embora o conceito tenha
trazido fortes contribuições para a área, a utilidade da noção de campo conforme formulado
originalmente por Bourdieu (autor cujo pensamento influenciou fortemente a noção de
campos organizacionais da abordagem institucional) tem sido subutilizada quando aplicada
apenas ao nível dos campos organizacionais: “A truly unified field-based framework for
organizational analysis must bring the field-theoretic approach to bear, not only on the
analysis of clusters of organizations, but also on the analysis of the social configurations in
which organizational fields are themselves embedded” (EMIRBAYER e JOHNSON, 2008, p.
3).
Favorável à utilização do conceito em estudos organizacionais, Swartz (2008), defende
que a perspectiva de campo de Bourdieu oferece à área ganhos conceituais muito maiores do
que as noções de contexto organizacional, ambiente ou população, com as quais os seus
pesquisadores estão habituados a trabalhar. Ao discutir as contribuições que tal conceito pode
trazer, o autor explica que a noção de campo ressalta, por exemplo, as dinâmicas de conflito,
que ficam em segundo plano em outras perspectivas teóricas. Segundo Swatz (2008), o
conceito ajuda, ainda, a explicitar o tipo e a qualidade das relações que se estabelecem,
indicando quem é dominado e quem é dominante, o que não ocorre a partir da noção de
populações ecológicas. O conceito engloba, também, conforme o autor, os laços concretos
entre agentes, também presente na análise de redes sociais, mas vai além, ao se atentar para
efeitos institucionais mais amplos, como o papel do capital simbólico. Em face das múltiplas
contribuições do conceito, Emirbayer e Johnson (2008) defendem que a noção de campo,
conforme proposta por Bourdieu, precisa ser reconhecida como um conceito crucial para a
análise de organizações, tendo em vista que estas precisam ser situadas em seu contexto
relacional, dentro da matriz de ralações que estabelecem.
72
Indo ao encontro dos autores, me proponho aqui a trabalhar com a noção de campo,
conforme proposta por Pierre Bourdieu, para a análise do Estado nas favelas, como forma de
localizar as organizações que representam o Estado dentro do contexto relacional no qual são
constituídas e constituintes, assumindo que uma organização em ação também pode ser
compreendida enquanto um agente social coletivo, embora por vezes os agentes sociais do
campo burocrático do Estado também se apresentem na forma de agentes individuais, que
merecem relevo para as análises organizacionais, tendo em vista que compõem o contexto
relacional do campo.
O conceito de campo é definido por Bourdieu e Wacquant (2012, p. 134) “como una
red o una configuración de relaciones objetivas entre posiciones”. Os campos, assim
pensados, são relacionais, dinâmicos, contingenciais, em constante mudança, indicando a
necessidade de serem pensados relacionalmente ou dialeticamente (EVERETT, 2002).
O dinamismo que marca as estruturas do campo segue uma lógica própria. Cada
campo possui sua lógica específica que vai determinar o seu funcionamento particular
(BOURDIEU & WACQUANT, 2012). Marca-se, assim, que o campo deve ser pensado
“como um espaço estruturado com suas próprias regras de funcionamento e suas próprias
relações de força” (MISOCZKY, 2006, p. 81). Ou seja, cada campo possui um jogo que lhe é
próprio e que o distingue de outros.
A lógica inerente a determinado campo está associada a relações de poder e
dominação. Disputam-se a hegemonia do saber (campo científico), da linguagem (campo
linguístico), do bem estar social (campo do Estado), de acordo com a lógica que determina um
campo específico.
Daí que os campos são constantemente comparados aos jogos - analogia originalmente
estabelecida por Bourdieu e Wacquant (2012). Entretanto, para eles, diferentemente de um
jogo, o campo possui regras que não estão explícitas ou codificadas, e as próprias regras do
jogo estão também em jogo ali.
Decifrar a lógica de determinado campo implica compreender as lógicas de dominação
em ação, assim como o valor relativo das diferences espécies de capital. Seguindo sua
analogia com um jogo, Bourdieu e Wacquant (2012) comparam os diferentes tipos de capital
com cartas de um baralho, cujo valor relativo de cada uma delas, muda de acordo com o jogo
em questão. Em outras palavras, o valor relativo das diferentes espécies de capital varia para
cada um dos campos, de acordo com o jogo que se estabelece ali. Conforme Bourdieu (2012,
p. 134), “as espécies de capital, à maneira dos trunfos num jogo, são os poderes que definem
73
as probabilidades de ganho”, servindo como “armas” na luta por ascendência em um campo
(EMIRBAYER E JOHNSON, 2008).
Entretanto, não são os tipos de capitais que diferenciam um campo de outro, mas a sua
lógica inerente de disputa e dominação, que, eventualmente, pode levar ao recurso de capitais
específicos. Existem espécies de capitais que são consideradas fundamentais, e que, portanto,
fazem-se presentes em vários campos (SALLAZ & ZAVISCA 2007). Este é o caso, por
exemplo, do capital econômico - considerado por Bourdieu como a forma mais óbvia de
capital - e também dos capitais cultural e social, mencionados em vários estudos. O capital
econômico é aquele que se apresenta na forma de riqueza material, como dinheiro, ações,
bens patrimônios; já o capital cultural se apresenta como conhecimento, habilidades,
informações, por exemplo; por fim, o capital social corresponde ao conjunto de acessos
sociais, que se dá sob a forma de relacionamento e redes de contatos (THIRY-CHERQUES,
2006).
Mas existem ainda espécies especializadas de capital, que só tem valor dentro de um
campo particular. Estas são definidas em função da lógica específica de cada campo ou do
jogo que ali se joga, o qual determina as propriedades que ali tem cotação ou que ali são
consideradas eficientes. Estas propriedades funcionam como o capital específico do campo
em questão e como fator explicativo das práticas que nele ocorrem (BOURDIEU, 2011b). Por
exemplo, o capital científico é identificado por Bourdieu (2004b) como o capital específico do
campo científico.
Embora existam, em um mesmo campo, diversos tipos de capital – fundamentais ou
especializados -, Everett (2002) chama atenção para o fato de que todas as formas de capital
estão conectadas. Quando um agente possui uma grande quantidade de um dado tipo de
capital (o econômico, neste caso, pode ser um bom exemplo), ele provavelmente também terá
uma grande quantidade de outros tipos de capitais (linguístico, social, etc) (EVERETT, 2002)
Merece relevo na perspectiva de Bourdieu uma forma destacada de capital, a qual o
autor denomina de capital simbólico, ou seja, “a forma percebida e reconhecida como legítima
das diferentes espécies de capital” (BOURDIEU, 2012, P. 135). Conforme explica, em mais
detalhes, Bourdieu (1996, p.170):
o capital simbólico é uma propriedade qualquer (...) que, percebida pelos agentes sociais
dotados das categorias de percepção e de avaliação que lhes permitem percebê-la, conhecê-
la e reconhecê-la, torna-se simbolicamente eficiente como uma verdadeira força mágica:
uma propriedade que, por responder às ‘expectativas coletivas’, socialmente constituídas,
em relação às crenças, exerce uma espécie de ação à distância, sem contato físico.
74
A partir do conceito de capital simbólico, conforme definido acima, Bourdieu (2012,
p. 7) propõe que se trabalhe com a noção de poder simbólico, descrito pelo autor como “esse
poder invisível, o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem
saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”. O poder simbólico é uma forma
transfigurada e legitimada de outras formas de poder. Assim, para Bourdieu (2012, p. 15), as
relações de força são transformadas em poder simbólico a partir de um “trabalho de
dissimulação e de transfiguração (numa palavra, de eufemização) que garante uma verdadeira
transubstanciação das relações de força, fazendo ignorar-reconhecer a violência que elas
encerram objetivamente”. Nesse sentido, o poder simbólico proposto pelo autor deriva da
posse de um recurso reconhecido e valorizado pelos demais agentes do campo (CARVALHO
e VIEIRA, 2007), ou seja, da posse do capital simbólico.
A lógica de dominação que determina um campo específico é jogada pelos agentes
que compõem a estrutura do campo. É quando um determinado agente possui uma ou mais
espécies de capital que são eficazes naquele campo, que ele adquire poder e influência, e isso
o faz existir como um agente no campo em questão (BOURDIEU e WACQUANT, 2012). A
distribuição dos agentes no campo, por sua vez, dependerá do volume e da estrutura de capital
que possuem, determinando suas posições (BOURDIEU, 1996).
Thiry-Cherques (2006) explica, de forma sintética, que Bourdieu adota o termo
“agentes” para designar todo aquele que atua tentando manter ou alterar as relações de força,
e que possui um sistema adquirido de preferências, de percepção, de classificação, tendo os
seus atos limitados a certos “constrangimentos estruturais”.
De forma a representar este “agente em ação”, Bourdieu desenvolve o conceito de
habitus, definindo-o como sistema de esquemas de percepção e apreciação, como estruturas
cognitivas e avaliatórias que eles (os agentes) adquirem através da experiência durável de uma
posição do mundo social” (BOURDIEU, 2004a, p. 158). Como estrutura estruturante, mas
também estruturada (PECI, 2003), o habitus interioriza o exterior e exterioriza o interior, ao
juntar um aspecto objetivo (estrutura) e um aspecto subjetivo (percepção, classificação,
avaliação) (PINTO, 2000). Em outras palavras, o habitus, é “um corpo estruturado, um corpo
socializado, um corpo que incorporou as estruturas imanentes de um mundo ou de um setor
particular desse mundo” (BOURDIEU, 1996, p. 144), que pode ser assumido como uma
subjetividade socializada (BOURDIEU E WACQUANT, 2012).
Essa estrutura estruturante e estruturada, a qual Bourdieu denomina de habitus, é
produzida a partir de estruturas características de certas condições de existência, é produto da
75
história (BOURDIEU, 2011a). Portanto, “the habitus could be considered as a subjective but
not individual system of internalized structures, schemes of perception, conception, and action
common to all members of the same group or class (…)” 6 (BOURDIEU, 1977, p. 86).
Embora exista uma tradição em estudos organizacionais que investe na transposição
da perspectiva de campo de Bourdieu para auxiliar na elucidação da realidade organizacional,
as dificuldades na transferência de conceitos ainda não estão plenamente superada. Não é por
acaso que ainda são empreendidas muitas discussões teóricas a respeito do tema em
periódicos importantes (Ex: EMIRBAYER e JOHNSON, 2008; VAUGHAN, 2008;
DOBBIN, 2008; SWARTZ, 2008; EVERETT, 2002; OZBILGIN e TATLI, 2005;
GOLSORKHI ET AL, 2009).
Fligstein e McAdam (2012) trazem importantes contribuições para que se avance em
relação ao pensamento de Bourdieu em sua recente obra A Theory of Fields. Apesar de a
teoria proposta não estar direcionada exclusivamente aos pesquisadores de estudos
organizacionais, os avanços que ela traz ajudam a superar uma das principais dificuldades da
área no que diz respeito à perspectiva de campos: o tratamento das organizações enquanto
agentes coletivos.
Inspirados fortemente (mas não exclusivamente) na perspectiva de Bourdieu, com a
qual declaram ter grande afinidade, Fliegstein e McAdam (2012) se propõem a apresentar
uma teoria integrada que explique como a estabilidade e a mudança são alcançadas por atores
sociais em arenas sociais circunscritas. Para tal, partem do conceito de campos de ações
estratégicas, como unidades fundamentais de ação coletiva na sociedade, “which can be
defined as mesolevel social orders, as the basic structural building block of modern
political/organizational life in the economy, civil society, and the state” (FLIGSTEIN e
MCADAM, 2012, p. 3)7. Eles enxergam os campos como arenas construídas socialmente
dentro das quais atores com dotes variados de recursos competem por vantagens. Fligstein e
McAdam (2011) reforçam que o que eles chamam de campos de ações estratégicas é um
termo que pode ser usado de forma intercambiável com o conceito de campo.
Assim como Bourdieu, Fligstein e McAdam (2012) também estão preocupados em
repensar o problema da relação entre agência e estrutura e a relação entre processos
macrossociais e as micro relações. Entendem que a melhor maneira de alavancar discussões a
6 Tradução livre: o habitus pode ser considerado como um sistema subjetivo, mas não individual, de estruturas internalizadas, esquemas de percepção, concepção, e ação comuns a todos os membros do mesmo grupo ou classe. 7 Tradução livre: que podem ser definidas como ordens sociais de nível meso como o bloco básico de construção estrutural da vida política/organizacional moderna na economia, na sociedade civil e no Estado
76
este respeito se dá por meio da criação de uma teoria de ação de nível meso, alcançada por
meio do conceito de campo. Os autores também compartilham com Bourdieu uma noção de
processualidade inerente aos campos. Para eles, mesmo campos que podem ser considerados
estáveis tem a eles inerentes um constante processo de mudanças incrementais: “To a degree,
change is always going on”8 (FLIGSTEIN e MCADAM, 2012, p. 7). Assim, como em
Bourdieu, esse dinamismo implica que os limites do campo não são fixos, mas mudam de
acordo com a definição da situação e das questões em jogo.
Com vistas a marcar as diferentes posições assumidas pelos atores nos campos,
Fliegstein e McAdam (2012) adotam os termos incumbentes e desafiadores. Enquanto os
primeiros assumem posições privilegiadas e uma influência desproporcional nos campos, os
segundos assumem posições menos favorecidas e tem pouca influência no campo.
Naturalmente, incumbentes lutam para se manter em suas posições, enquanto desafiadores
esperam a oportunidade para desafiar a ordem dominante.
Uma das mais importantes contribuições de Fliegstein e McAdam (2012) está em
pensar o contexto ambiental mais amplo no qual os campos estão inseridos, ajudando-nos a
compreender a inter-relação entre campos e evitando que o pesquisador foque apenas no que
ocorre no interior do campo (MORGAN ET AL, 2014). Para os autores, este contexto
ambiental pode ser pensado como um sistema intrincado de campos, mais próximos ou mais
distantes, que se influenciam mutuamente. Utilizam a metáfora da Boneca Russa para auxiliar
na compreensão de sua perspectiva teórica: assim como a boneca, o ambiente contextual é
composto por campos dentro de campos, de maior ou menor dependência, que podem levar a
mudanças uns nos outros. Em síntese, todos os campos estão embebidos em uma rede
complexa de outros campos. Para os autores, estas relações entre campos constituem uma das
principais fontes de mudança e estabilidade em todos os campos.
Campos próximos, segundo os autores, são aqueles com laços recorrentes e cujas
ações afetam o outro campo. Campos distantes, por sua vez, são aqueles que não possuem
laços e não tem capacidade de influenciar um outro campo. Distinguem-se também campos
dependentes e interdependentes. Um campo que está muito sujeito à influência de outro diz-se
dependente. Esta dependência pode ter uma série de fontes, como autoridade legal ou
burocrática, dependência de recursos, ou de força física ou militar (FLIGSTEIN e MCADAM,
2012). Quando dois campos ligados exercem mais ou menos igual influência sobre eles, diz-
8 Tradução livre: em certo grau, as mudanças estão sempre acontecendo
77
se que eles estão em uma relação de interdependência. Mas os campos também podem ser
independentes, ou seja, não afetados por outros campos.
A compreensão deste contexto mais amplo se faz necessária, na visão de Fligstein e
McAdam (2012), porque o estado de um campo em um determinado momento é
simultaneamente moldado pela dinâmica interna do campo e pelos eventos que se dão em um
campo de ações estratégicas externo com o qual o campo em questão tem laços próximos e de
dependência. Os autores reconhecem a dificuldade de se delimitar as fronteiras do que é
externo e interno, mas defendem que qualquer análise de campo que falhe em levar a sério a
questão das relações externas está fadada a ser incompleta.
Fligstein e McAdam (2012) evidentemente reconhecem a influência de Bourdieu em
sua obra e referem-se a teoria do autor como uma das mais desenvolvidas e consolidadas
perspectivas de campo já produzidas. Mas não deixam de apontar os seus avanços em relação
à Bourdieu, os quais, segundo os autores, poderiam ser aceitos pelo próprio Bourdeiu como
um caminho profícuo para a expansão da teoria dos campos. Para os autores, embora
elaborada e consistente, a teoria do Bourdieu não dá conta de compreender a natureza dos
atores coletivos, tão importantes para os estudos organizacionais. As discussões empreendidas
por Bourdieu estão focadas em atores individuais, e são raras as considerações a respeito de
atores coletivos. Esse foco nos indivíduos é muito útil, mas tende a obscurecer a dinâmica
coletiva dos campos (FLIGSTEIN e MCADAM, 2012). Os autores enxergam estas dinâmicas
coletivas como complementares às ações individuais gerais que é a preocupação central de
Bourdieu.
Além disso, embora Bourdieu também considere a existência de múltiplos campos que
estabelecem relações entre si, o autor não discute a natureza destas relações entre campos.
Bourdieu estava ciente do fato de que os campos eram interligados uns aos outros, mas ele
raramente teorizou sobre a relação entre os campos e a dinâmica que poderia resultar desta
interação (FLIGSTEIN e MCADAM, 2012). Para os Fligstein e McAdam (2012), esta
discussão é fundamental para entender a estabilidade ou mudança dos campos. Por fim, a
maioria do trabalho do Bourdieu estava orientada para a compreensão de campos existentes, e
como eles moldam o comportamento dos agentes de forma profunda. Mas o seu trabalho não
estava tão preocupado com a emergência de novos campos e a transformação dos campos
existentes, preocupação que se torna central na perspectiva de Fliegstein e McAdam (2012), e
que pode ser de grande valia para a compreensão da realidade organizacional.
78
É a partir desta noção de campo, conforme cunhada por Bourdieu e posteriormente
complementada por Fliegstein e McAdam (2012), que o Estado será aqui compreendido. O
Estado, na visão particular de Bourdieu (2012), é entendido como um campo burocrático ou
campo da função pública, que se define “par la possession du monopole de la violence
symbolique e légitime”9, capaz de regular os demais campos, como um poder no topo do
poder (BOURDIEU, 2012, p. 14). Em termos mais específicos, Bourdieu, Wacquant e Farage
(1994, p. 3), a partir da proposição weberiana, definem o Estado como “an X (to be
determined) which sucessfully claims the monopoly of the legitimate use of physical and
symbolic violence over a definite territory and over the totality of the corresponding
population”10.
Para chegar a sua definição própria de Estado, Bourdieu (2012) faz uma adição à
tradicional definição weberiana – que o entende como monopólio da violência legítima,
tratada como sinônimo de uma coerção física (WEBER, 1999) – acrescentando que se trata de
um monopólio da violência física e simbólica, ou simplesmente da violência simbólica
legítima, já que o monopólio da violência simbólica é condição para que se possa exercer o
monopólio da violência física. Para Bourdieu (2012) se a palavra “legítima”, já empregada
por Weber, for levada a seu extremo, ela já é suficiente para evocar a dimensão simbólica da
violência, tendo em vista que a ideia de legitimidade tem a ela atrelada a ideia de
reconhecimento. Entretanto, para Bourdieu (2012), Weber não desenvolveu profundamente
este aspecto do Estado em sua teoria, e é ele que Bourdieu (2012) se propõe a desenvolver.
Conforme explica o próprio autor:
Max Weber diz que o Estado é o monopólio da violência legítima. E eu o corrijo dizendo: é
o monopólio da violência física e simbólica legítima. As lutas a respeito do Estado são lutas
pelo monopólio desse monopólio, e penso que os fundadores do Estado moderno ficaram
bem colocados na luta por esse monopólio – como o atesta a permanência no tempo do que
chamo de nobreza de Estado (BOURDIEU, 2014, p. 450).
Para Bourdieu, (2014) o Estado não é um bloco, não pode ser compreendido como
uma unidade monolítica. O Estado é um campo, um campo administrativo, um setor
específico do campo de poder, “isto é, um espaço estruturado segundo oposições ligadas a
formas de capital específicas, interesses diferentes” (BOURDIEU, 2014, p. 51).
Assim como os demais campos descritos por Bourdieu, o campo burocrático do
Estado também possui uma lógica própria. Segundo Bourdieu (2012), no interior deste campo
9 Tradução livre: pela possessão do monopólio da violência simbólica e legítima 10 Tradução livre: como um X (a ser determinado) o qual clama com sucesso o monopólio do uso da violência física e simbólica sobre um território definido e sobre a totalidade da população correspondente
79
joga-se um jogo particular, guiado por uma lógica burocrática. Dentro deste campo, a política
está posta em jogo, e os agentes que possuem o privilégio de entrar neste jogo também
adquirem o privilégio de ter acesso a um recurso particular, o qual Bourdieu (2012) denomina
de um recurso universal ou metacapital, por meio do qual tais agentes tornam-se aptos a falar
em nome da totalidade de um grupo, do universum, em nome de um bem público, a falar o
que é bom para o público. Dito de outra forma, no interior do campo burocrático, os agentes
lutam pela posse de um capital capaz de lhes dar poder sobre os outros campos.
É por meio da acumulação por um mesmo poder central das diversas espécies de
capital postas em jogo no campo do Estado – como o capital econômico, informacional,
militar ou simbólico – que se forma um todo capaz de gerar esta espécie de metacapital a qual
se refere Bourdieu (2014), um capital que exerce poder sobre o capital. Em outras palavras, “o
Estado, à medida que acumula em grande quantidade diferentes espécies de capital, encontra-
se dotado de um metacapital que permite exercer um poder sobre qualquer capital”
(BOURDIEU, 2014, p. 266).
O campo burocrático configura-se, então, como a arena em que os agentes possuem
um metapoder, um poder sobre todos os poderes: “o campo burocrático é um campo que está
sobrelevado em relação a todos os campos” (Bourdieu, 2014, p. 477). Ou seja, é no campo
burocrático do Estado que são editadas as normas relativas a todos os demais campos, onde
são tomadas medidas transcampos (BOURDIEU, 2014).
Seguindo essa concepção de Estado, Bourdieu (2012, p. 16) refere-se ao campo
burocrático como o “point de vue des points de vue”11. Bourdieu (2012, p. 25) explica que o
Estado é assumido como um quase-Deus, “l`État est cette illusion bien fondée”12, que existe
apenas porque se acredita em sua existência, porque há uma crença coletiva nele, embora não
se possa tocá-lo. Em síntese, para o autor, o Estado é uma entidade teológica, que existe a
partir da crença.
O Estado, ao qual Bourdieu (2011a, p. 105) refere-se como um “corpo fictício”,
“molda as estruturas mentais e impõe princípios de visão e divisão comuns”, especialmente
por meio de procedimentos burocráticos, de estruturas escolares, e assim leva à construção de
uma identidade nacional. Torna-se, com isso, “o lugar por excelência da concentração e do
exercício do poder simbólico” (BOURDIEU, 2011a, p. 108).
Diante desta legitimidade do Estado perde-se de vista questões fundamentais: porque
temos que recorrer ao crime para punir o próprio crime? “O ato do justiceiro – Orestes - não é 11 Tradução livre: o ponto de vista dos pontos de vista 12 Tradução: O Estado é esta ilusão bem fundamentada
80
um crime igual ao ato inicial do criminoso?” (BOURDIEU, 1996, p. 101). Segundo Bourdieu
(1996), questões como estas só são lembradas em situações-limite, como em discussões como
a pena de morte. Em função de sua legitimidade, de sua condição de lugar por excelência do
poder simbólico, o Estado exerce coerções “invisíveis”, que contam com a cumplicidade dos
que as sofrem. E as favelas, investigadas neste trabalho, parecem se apresentar como uma
destas condições limites, na qual as coerções nem sempre contam com essa cumplicidade.
Em sua obra Sur L`État, Bourdieu (2012) explica que é possível encontrar no
dicionário duas definições de Estado: a primeira no sentido de um aparelho burocrático que
realiza a gestão dos interesses coletivos, uma administração, que pode ser representada pelo
governo francês, por exemplo; e a segunda no sentido de instância dentro da qual a autoridade
deste aparelho é exercida, em outras palavras, Estado-nação, território nacional ou, por
exemplo, a França. Para Bourdieu (2012), embora útil, esta distinção é artificial. Na visão do
autor, estas duas noções estão interligadas, na medida em que o Estado em seu sentido
administrativo se faz ao fazer o Estado em seu sentido territorial. Ou, de forma ainda mais
direta, a gênese do Estado como um aparelho burocrático é acompanhada da gênese do Estado
como um território nacional, e os dois sentidos atribuídos ao conceito são inseparáveis
(BOURDIEU, 2012).
É sobre esse território, que na visão de Bourdieu (2012) confunde-se com o próprio
Estado, que o campo burocrático exerce sua posição de legitimidade do uso da violência. A
capacidade do Estado de exercer a violência física e simbólica se dá devido a sua capacidade
de encarnar a si próprio objetivamente, por meio de mecanismos e estruturas organizacionais,
e subjetivamente, por meio de estruturas mentais e categorias de pensamento e de percepção
(BOURDIEU, WACQUANT e FARAGE, 1994). A este respeito, Bourdieu (2012) explica
que uma série de agentes sociais (os quais o autor exemplifica como reis, membros do
conselho do rei, funcionários do judiciário, dentre outros) constrói o Estado e se apresenta
como encarnações do Estado em suas diversas formas. Os atos do Estado, segundo Bourdieu
(2012), são ações desempenhadas por agentes dotados de uma autoridade simbólica. O Estado
existe, então, por meio de suas representações, “da instituição investida do monopólio da
violência simbólica legítima, ou do funcionário, titular do officium que fala e age ex officio”
(BOURDIEU, 2014, p. 484).
Essa é uma leitura clássica e tradicional do Estado, pautada em uma concepção
weberiana, e sempre será necessário retornar aos clássicos para se pensar ou repensar essa
“entidade”. Entretanto, de uma perspectiva organizacional, concebendo o Estado enquanto um
81
campo composto por agentes sociais que também assumem a forma de agentes coletivos,
como as organizações que o representam, aqui também se ganha partindo para as
contribuições da teoria dos campos proposta por Fligstein e McAdam (2012).
Como todos os campos, o Estado também é compreendido por Fligstein e McAdam
(2012) como um sistema complexo de campos, com as mesmas propriedades dos demais
campos. Assim como Bourdieu, os autores também rejeitam a visão comum do Estado como
único e hegemônico. O Estado é composto de uma miríade de ordens sociais, “the modern
state is a set of strategic action field that claim to make and enforce authoritative rules over a
specified geographic territory”13 (FLIGSTEIN e MCADAM, 2012, p. 68).
Dentro do campo burocrático do Estado também existem disputas, que neste caso se
apresentam como um conflito sobre qual burocracia controla qual questão. Como resultado,
Fliegstein e McAdam (2012) explicam que o governo moderno está sempre mudando sua
burocracia executiva para organizar melhor o controle de várias arenas da vida social. Assim,
a perspectiva de Fligstein e McAdam (2014) também dá conta de analisar a dinamicidade do
Estado moderno, tendo em vista que os autores entendem que o campo do Estado está sempre
produzindo novas burocracias (ou agentes sociais coletivos) para lidar com eventos que os
demandem.
Embora semelhante aos demais campos, o campo do Estado se diferencia por sua
habilidade de reter o controle sobre o uso legítimo da violência que representa sua última base
de poder (FLIGSTEIN e MCADAM, 2012). Segundo Fligstein e McAdam (2012), hoje, a
legitimidade do Estado está em prover bens públicos para os seus cidadãos, incluindo
proteção de ataques de Estados de fora, ordem pública, as regras da lei, e arbitragem de
controvérsias públicas. Para Fligstein (2008), os governos podem ser vistos como conjuntos
de organizações que formam campos constituídos pela reivindicação de fazer as regras para
todos em uma dada área geográfica. Os atores do Estado conseguiram reivindicar a
possibilidade de definir as regras das interações em um dado território geográfico, e tais
regras podem ser reforçadas pelo uso da violência física. Entretanto, ainda que o Estado
reivindique a soberania sobre uma questão ou um território, sua habilidade para exercer essa
autoridade é sempre aberta a contestações (FLIEGTEIN e MCADAM, 2012).
Devido à sua reivindicação para exercer soberania em dados territórios, os campos do
Estado têm um grande potencial para influenciar as mudanças e estabilidade em quase todos
os campos não-estatais dentro destas coordenadas geográficas (FLIGSTEIN e MCADAM, 13 Tradução livre: o Estado moderno é um conjunto de campos de ação estratégica que clamam para fazer e impor regras de autoridade sobre um territórios geográfico específico
82
2012). As relações entre os campos do Estado e não-estatais não é, entretanto, inteiramente de
mão única. Os autores explicam que a estabilidade do Estado depende do suporte que ele
recebe de incumbentes que controlam alguns campos não-estatais mais importantes.
Mais uma vez indo ao encontro de Bourdieu, Fligstein e McAdam (2012) também
enxergam nesta perspectiva o benefício de evitar o problema de reificar o Estado que para
eles, definitivamente, não é um ator unificado, mas avançam, principalmente, ao apontar para
a interdependência entre o campo do Estado e os demais campos, capaz de produzir mudanças
e instabilidades. Portanto, a combinação de ambas as teorias tornou-se elucidativa para a
análise do campo burocrático do Estado aqui empreendida e apresentada a seguir. Indo ao
encontro dos autores, a partir daqui passarei a me referir ao grupo de representantes do Estado
que atuam nas favelas como o campo burocrático do Estado em ação nas favelas, e a tais
representantes individuais ou organizacionais como agentes do campo burocrático do Estado,
assumindo os segundos enquanto agentes coletivos em ação.
4.3 O Campo Burocrático do Estado e o Campo Político: Relações e Interdependências
Era uma sexta-feira à noite e, como de costume, as ruas da favela da zona Norte
estavam movimentadas. O som alto vindo de diferentes bares da favela gerava uma mistura de
funk e pagode, que produzia em mim uma sensação bastante agradável – eu adorava a sexta-
feira na favela. Enquanto muitos moradores andavam animados pela rua, dirigindo-se para os
estabelecimentos de onde vinham as músicas, outros, mais preocupados do que animados,
dirigiam-se para a reunião que aconteceria no principal Clube da favela. Naquele dia, eu
acompanhava os segundos.
A reunião à qual nos dirigíamos tratava-se de um encontro entre um grupo de
moradores removidos pelo programa Cimento Social e o presidente da associação de
moradores, para discutirem o encaminhamento da questão. Entrei no clube e, como estava
habituada, me sentei entre os moradores para darmos início à reunião. O presidente da
associação de moradores, que se posicionava à frente de todos, começou a reunião me
apresentando e explicando que eu era uma pesquisadora convidada por ele para acompanhar a
situação do Cimento Social, com vistas a dar mais visibilidade à questão. Em seguida, ele
pediu que eu me sentasse à frente da sala e explicou que reservara os minutos iniciais da
reunião para que os moradores me apresentassem as suas queixas. Um pouco desconfortável,
devido à fala do presidente, e um pouco sem graça, devido à minha timidez habitual, me dirigi
à frente da sala e expliquei sinteticamente aos moradores o objetivo da minha tese,
83
esclarecendo que estava ali por vontade própria, porque eu achei que seria importante para
minha pesquisa acompanhar aquela situação. Passei a palavra aos moradores e iniciou-se uma
enxurrada de queixas. O valor baixo do aluguel social, a demora na finalização das obras, a
má qualidade das novas casas, a perda de espaço com as novas construções – as insatisfações
não se esgotavam.
Depois de ouvir os moradores e retornar ao meu lugar original, o presidente da
associação, finalmente, deu início à reunião, explicando a todos o real motivo para o atraso
nas obras do Cimento Social: o programa que havia removido os moradores de situações de
risco para construir novas casas, agora seguras, foi criado e era dirigido pelo político Marcelo
Crivella, embora agora tivesse sido incorporado pela prefeitura, que passou a financiar o
programa; acontece que Marcelo Crivella decidiu se candidatar à governador nas eleições que
aconteceriam no ano seguinte, e o prefeito, Eduardo Paes, estava apoiando outro candidato
para o cargo, o político Pezão; assim, para não contribuir para a campanha do Crivella, cuja
imagem estava diretamente associada ao programa, a prefeitura resolveu “atrapalhar” o
andamento das obras do Cimento Social. E concluiu, em síntese: “então eles estão fazendo de
tudo para dar errado e a gente tá fazendo de tudo para dar certo” (Notas de Campo,
01/11/2013).
Dando continuidade à reunião, o presidente da associação discutiu com os moradores
possíveis formas de driblar a situação. Sua primeira estratégia consistia na elaboração de um
dossiê detalhado, com foto e planta de todas as casas removidas, registros de seus tamanhos
exatos, planta das novas casas conforme prometidas pelo programa e planta das novas casas
conforme estavam sendo construídas, para dar encaminhamento ao Ministério Público. A
segunda estratégia consistia em levar a situação à mídia: estava organizando um abaixo
assinado e se articulando para divulgar o problema preferencialmente na Band, mas também
servia a Record. Todos os presentes concordaram que estas eram duas boas estratégias para
lidar com a questão.
Foi, também, a partir dos moradores, que eu compreendi que no meu campo de
pesquisa havia um jogo. Embora fosse o jogo do campo burocrático do Estado, os moradores,
afetados por ele, compreendiam a sua lógica e, tentavam se guiar por ela para terem suas
demandas atendidas. Bourdieu e Wacquant (2012) lembram que o que define um campo
enquanto tal é o fato deste possuir uma lógica que lhe é própria, capaz de o distinguir dos
demais campos. E o campo burocrático do Estado é marcado por uma lógica burocrática
84
(BOURDIEU, 2014), a qual os moradores de favelas tentavam se adequar em busca de
ganhos.
A primeira tática adotada pelos moradores para lidar com a questão das remoções do
Cimento Social foi recorrer a uma instância superior, o Ministério Público, responsável por
fiscalizar o cumprimento da lei, demonstrando um reconhecimento de que no jogo que se joga
no campo burocrático do Estado predomina a lógica burocrática.
Em seus estudos, Weber identificou a burocracia como a forma de dominação social
predominante na sociedade moderna, que se disseminou por se apresentar como a forma mais
eficiente de dominação social. Weber (2012) explica que na burocracia predomina a
dominação racional-legal, que tem sua legitimidade com base na crença em normas e regras.
As burocracias formais, embora sempre ideais, possuem normas e regras formais a
serem seguidas. Cada um dos agentes burocráticos analisados possuíam seus regulamentos
próprios, os quais alguns seguiam de forma mais rigorosa do que outros. Os agentes do
campo, em geral, guiavam-se por normas e regulamentos - alguns mais do que outros – que
ditavam as formas de contratações dos funcionários, os horários ou escalas de trabalho,
autorizações e proibições e até possíveis punições para o seu descumprimento.
Em suas interações com o Estado, os moradores têm dificuldades de lidar com as
normas e regras da burocracia estatal. Tive oportunidade de acompanhar diversas reuniões
comunitárias na favela da zona Sul, que estavam voltadas para a elaboração de um “projetão”,
que unisse os mais diversos projetos da comunidade, para uma proposta de financiamento do
BNDES. O BNDES estava oferecendo à comunidade o valor de 3,5 milhões. Diante da
motivação financeira, os moradores se empenhavam em tentar atender às mais diversas
exigências do BNDES, e muitas vezes se indignavam com tantas regras que não conseguiam
entender.
Conforme explicam Weber et al (1982), a burocracia moderna funciona com base em
princípios ordenados por regulamentos, ou seja, por leis ou normas administrativas. Composto
por burocracias formais, o campo burocrático do Estado tem o seu funcionamento pautado em
uma série de regulamentos formais que regem o seu funcionamento.
As burocracias modernas estão também baseadas em documentos escritos, preservados
em sua forma original ou em esboço (WEBER ET AL, 1982). No PAC a formalização de
todas as ações e decisões é sempre necessária: para terem o direito de podar uma árvore que
está atrapalhando as obras, é necessário um documento formal que registre a autorização; para
85
a compra de qualquer material, é preciso a cotação de preços, ainda que seja de um prego que
custe centavos. Conforme explica um representante do PAC:
Você tem que entender de tudo que está aqui e saber onde é que este tapume vai acontecer
na obra, então eu tenho que conferir o projeto com isto aqui e determinar, legal, esta
metragem está certa, é isto mesmo que tem que ser feito. E preparar toda esta
documentação para poder entregar ou para CEF ou para o próprio Estado, para poder
efetuar os pagamentos. Este é o lado chato, a parte burocrática da coisa (Representante do
PAC 3, Favela da zona Sul).
Nas UPPs não é preciso observar muito para perceber o formalismo presente ali.
Mesmo avisos rotineiros são registrados por escrito e pregados no quadro de avisos da
corporação. A respeito do preenchimento do uso de armários, havia um aviso digitado em um
papel, por sua vez pregado no quadro de avisos do hall principal da base da UPP da favela da
zona Sul: “Aviso: Foi observado que no alojamento dos soldados existem 25 armários sem
identificação! Favor identificá-los até o dia 04/9, caso essa ordem não seja cumprida até a
data informada, os mesmos serão abertos. Subcomandante” (Notas de Campo, 06/09/2013). A
ordem era clara e foi registrada por escrito para marcar a sua oficialidade.
Um representante da Clínica na Família, ao me relatar o seu dia de trabalho, ressaltou
a grande quantidade de horas dedicadas na sua rotina ao registro de suas atividades. Tudo
deve ser devidamente documentado, e para cada paciente, às vezes mais de uma ficha precisa
ser preenchida:
Vanessa: Como é um dia a dia de trabalho seu?
Entrevistado: Hoje, por exemplo, eu sentei só para almoçar, não tive nem horário de almoço
ainda. Então assim, dia a dia você já sai de manhã, hoje eu sai cedo de casa, bati meu ponto,
aí sentei no computador para fazer as fichas Bs, porque eles agora querem as fichas Bs
todas a caneta.
Vanessa: O que é ficha B?
Entrevistado: É um complemento da ficha A, porque a gente tem uma ficha A, e a ficha B é
tipo um complemento, é tipo as doenças classificadas. Cada pessoa com uma doença
classificada tem uma segunda ficha, além da ficha de cadastro inicial, a ficha A, tem a ficha
B, que é a ficha do hipertenso, do diabético, a ficha da criança até dois anos de idade, a
ficha da gestante, tudo isso é separado. Cada coisa dessa tem que ser alimentada no sistema,
tem a ficha do idoso, cada ficha dessa, além da ficha A que contém todos os dados, tem as
fichas de classificação (Representante da Clínica da Família 1, Favela da zona Sul).
Os gestores da UPP Social, por sua vez, devem registrar em seus blogs e agendas
todas as atividades de campo realizadas ao longo da semana, trabalho do qual costumavam
reclamar. Eu mesma tive que preencher fichas com informações pessoais e informações sobre
a minha pesquisa que ficariam arquivadas no setor de pesquisas do IPP.
86
Nesse sentido, os agentes do campo burocrático do Estado também estão sujeitos ao
formalismo: é preciso documentar por escrito todas as comunicações, decisões, ações dos
agentes. É como se houvesse uma “linguagem formal” que precisa ser falada para que se
possa ser ouvido. Como forma de ação legítima no campo, o formalismo era incorporado por
todos os agentes para que aumentassem suas chances de ganhos. Gestores dos programas
Territórios da Paz e UPP Social, que precisavam se fazer ouvir por outros agentes do Estado,
encaminhavam as demandas das favelas, na forma de relatórios, com explicações por escrito e
fotos da demanda local. Se as demandas não fossem encaminhadas por escrito as chances
neste jogo eram quase nulas.
Diante da informalidade da favela, o formalismo era difícil de ser seguido. Os
moradores, muitas vezes, não conseguiam ter suas demandas atendidas pelos agentes do
campo burocrático do Estado, porque não tinham registros formais ou os mais diversos
documentos. Na elaboração do projeto para a proposta do BNDES, a dificuldade diante do
formalismo ficou latente. Era demandado, por exemplo, que os moradores apresentassem o
Registro Geral de Imóveis (RGI) de seus imóveis. Nenhum deles possuía este documento para
apresentar.
Aos poucos os moradores foram aprendendo, que para fazer demandas, deviam seguir
o formalismo. Nunca vi os moradores tão entusiasmados em uma reunião quanto naquela
terça feira à noite. Pela primeira vez cheguei a uma reunião comunitária e me senti atrasada.
Os moradores já estavam organizados em torno de uma mesa redonda e redigiam uma carta.
Explicaram-me que se tratava de uma carta a ser entregue para a presidente Dilma, por uma
moradora que estava indo à Brasília no dia seguinte. Na carta, os moradores contavam que
eles tinham recebido muito bem o PAC, mas que agora tinham algumas reivindicações a
fazer. Fizeram uma lista de reivindicações, que incluíam desde a construção de uma nova
associação de moradores para que eles pudessem sair daquela, à construção dos prédios antes
da remoção dos moradores. No dia seguinte pela manhã, quando retornei à associação, a
presidente me mostrou orgulhosa o resultado do trabalho da noite anterior: a carta fora
impressa em um papel bem bonito, com o símbolo da associação de moradores, para lhe dar
ares mais formais. Entendi que tentavam seguir a lógica burocrática da formalização para que
fossem ouvidos.
Para a devida contratação de funcionários e ingresso formal no campo burocrático,
eram em geral exigidas a participação em concurso público. Segundo Weber et al (1982)
somente são empregadas nas burocracias modernas as pessoas que possuem as devidas
87
qualificações, previstas por regulamento. A meritocracia nos diz que para que haja uma
contratação ou ascensão de cargos, o contratado precisa mostrar objetivamente que é ele o
mais competente.
Atrelada à noção de meritocracia, há a impessoalidade. Conforme explica Bourdieu
(2014, p. 341):
O que está em jogo é a invenção de um campo cujas regras do jogo estão em ruptura com as
regras do jogo do mundo social corrente: no mundo público, não se é indulgente; no mundo
público, já não se tem irmão, nem pai, nem mãe – em teoria... No mundo público (ou nos
Evangelhos), repudiam-se os laços domésticos ou os laços étnicos pelos quais [se
manifestam] todas as formas de dependência, de corrupção. Tornamo-nos uma espécie de
sujeito público, cuja definição é servir essa realidade transcendente aos interesses locais,
particulares e domésticos, que é o Estado.
Assim, a impessoalidade também está presente no campo nos tratos em geral. Para
garantir a impessoalidade, contrata-se por meio de concursos públicos: os mais diversos
campos do Estado realizam processos formais para selecionar os seus candidatos, com base na
meritocracia. Os concursos para policiais que se tornaram mais frequentes, não cessam de
selecionar policiais novos e os mais aptos. Foi também por meio de concurso público que se
contrataram os gestores e assistentes do programa Territórios da Paz. Mas neste caso, os
concursos não são tão frequentes, e a falta de funcionários passa a incomodar.
Os processos de ascensão, quando possíveis, também são regidos pela impessoalidade
e pela meritocracia. Conforme explica um representante da Comlurb, a respeito do processo
de promoções na organização:
Nós temos aqui também o nosso, a nossa avaliação individual, o funcionário aqui é
avaliado diariamente pelas atividades dele. Aquele que se destaca ele fica apto a qualquer
progressão individual se tiver na empresa. Como agora tá tendo. Os garis bem avaliados
eles foram classificados e tão fazendo provas, estão passando por algumas etapas
eliminatórias pra chegar ao cargo de agente de limpeza urbana, que é aquele fiscal, né, que
o pessoal fala que é fiscal. É agente de limpeza urbana (Representante da Comlurb 1,
Favela da zona Norte).
Em processo de contratações maiores, como nos casos de contratação de uma empresa
privada pelo setor público, a impessoalidade e a meritocracia também devem prevalecer. O
PAC se deparou com esta questão, quando a empresa responsável pelas obras na favela da
zona Sul abandonou as obras. A explicação desta situação eu escutei em diferentes reuniões:
A [empresa X] pediu para sair, quando eles pediram para rescindir o contrato, foi legal,
foram chamar a 2ª colocada. A 2ª. colocada por logística não pôde aceitar, aí a lei manda
que a gente faça uma nova licitação e aí agora estamos trabalhando com uma nova
88
licitação, para chamar uma nova empresa, voltar tudo para trás, preparar tudo de novo para
continuar as obras e aí é isto que está rolando lá (Representante do PAC 3, Favela da zona
Sul).
Para entrar no jogo era preciso inserir-se na lógica burocrática: passar por um processo
impessoal e meritocrático de seleção. Mas os moradores também tinham dificuldades de
guiar-se por estes princípios, e reivindicavam ações do Estado que não podiam ser atendidas
por outra via alternativa. Havia uma reclamação constante, por exemplo, a respeito dos garis
comunitários: os moradores defendiam que o trabalho do gari comunitário era muito melhor, e
que gostariam que moradores das favelas voltassem a assumir seus trabalhos de garis. Os
representantes da Comlurb, em reunião, explicaram: só pode ser gari da Comlurb quem for
aprovado em concurso público. O Ministério Público não permite mais outra forma de
contratação.
A Figura 2 a seguir sintetiza as categorias expressas aqui:
Lógica Burocrática
Regras e Normas Formais
Formalismo
Impessoalidade e Meritocracia
- Concursos públicos;- Licitações;- Progressões
meritocráticas
- Registro formal da comunicação;- Registro formal das decisões;- Exigência de documentação;- Elaboração de relatórios
- Regulamentos;- Punições com base em
regulamentos formais;- Horários rígidos
Figura 2. Lógica Burocrática
A lógica burocrática do campo parece bastante clara, porque aparece em regras
explícitas e formais. Entretanto, são difíceis de serem acompanhadas pelos moradores, até
pelo seu afastamento histórico da ação do campo burocrático do Estado. Para seguir estas
formas de ação legítimas no campo, os moradores aprenderam (e me ensinaram ao aprender)
89
que para ser ouvido pelo Estado é preciso elaborar documentos formais e em última instância
podem, ainda, recorrer formalmente ao Ministério Público.
Ao impor tantas exigências, a lógica burocrática gerava o descontentamento constante
daqueles que tinham que lidar com elas. Em decorrência de suas disfunções, que não
chegaremos a tratar aqui, a burocracia passou a ter inerente a ela um sentido negativo, e os
agentes do Estado desabafavam com frequência: “É uma burocracia gigante que você tem que
enfrentar” (Representante do ITERJ 2, Favela da zona Sul). Os moradores, que tinham suas
demandas postergadas por conta da lógica burocrática, também faziam frequentes
reclamações: “(...) é uma burocracia muito grande, até para trocar uma lâmpada, porra, precisa
fazer não-sei-o-quê, não-sei-o-quê, não-sei-o-quê, para a escada tem, passa 20 anos”
(Morador 9, Favela da zona Sul)
Entretanto, Bourdieu (2014) entende que paralelamente ao campo burocrático, existe
uma série de campos, como o campo jurídico, o campo intelectual, ou o campo político, que
estão em concorrência entre si e que buscam triunfar sob os demais campos. Conforme
explicou Bourdieu (2014), são os agentes advindos do campo político que ocupam os cargos
da alta função pública, de altos funcionários no campo burocrático do Estado. Nesse sentido, é
preciso destacar a forte influência que o campo burocrático do Estado sofre do campo
político, este último entendido por Bourdieu (2012, p. 164) como:
O lugar em que se geram, na concorrência entre os agentes que nele se acham envolvidos,
produtos políticos, problemas, programas, análises, comentários, conceitos,
acontecimentos, entre os quais os cidadãos comuns, reduzidos ao estatuto de
‘consumidores’, devem escolher, com probabilidades de mal-entendido tanto maiores
quanto mais afastados estão do lugar de produção.
A medida que se avança e se ganha força no campo político, aumenta-se os efeitos de
acesso às posições de permanência no campo burocrático (BOURDIEU, 2012). No caso do
programa Cimento Social relatado anteriormente, fica clara a interdependência entre os dois
campos: Marcelo Crivella, que no momento da pesquisa ocupava um cargo de Senador, em
parceria com a prefeitura do Rio de Janeiro, deu início ao programa e passou a dirigi-lo em
nome da prefeitura, claramente influenciado pelas disputas do campo político. O programa
formalmente vinculado a prefeitura, e por isso parte do campo burocrático do Estado, tem a
sua lógica burocrática influenciada por uma lógica do campo político: é interrompido por uma
disputa política entre o prefeito Eduardo Paes e o senador Marcelo Crivella. As lutas políticas,
segundo Bourdieu (2014, p. 477), envolvem agentes “que estão numa relação de homologia
90
com os agentes inscritos no campo burocrático e nas lutas inerentes ao campo burocrático”,
como é aqui o caso dos agentes envolvidos nas disputas em torno do Cimento Social.
A história a respeito da reunião para tratar do programa Cimento social narrada
anteriormente vai claramente ao encontro do que propunha Bourdieu (2014): há uma
interdependência e uma competição entre os campos político e burocrático. Segundo Weber
(1974, p. 56) pode-se compreender por política “o conjunto de esforços físicos com vistas a
participar do poder ou a influenciar a divisão do poder, seja entre Estados, seja no interior de
um único Estado”. Assim, para o autor, quando se diz que uma questão é política, isto
significa que os interesses de divisão, conservação ou transferência do poder são fatores
essenciais. Todo homem que se envolve com a política aspira, de alguma forma, o poder
(WEBER, 1974).
Para Bourdieu (2014, p. 39) pode-se dizer que há uma política reconhecida como
legítima quando não se é questionada a possibilidade de fazer de outra maneira: “esses atos
políticos legítimos devem sua eficácia à sua legitimidade e à crença na existência do princípio
que os fundamenta”. No jogo político a política parece possuir a sua legitimidade, e as coisas
são feitas de acordo com as regras por ela impostas.
A disputa entre os políticos Marcelo Crivella e Pezão (o segundo no caso apoiado e
representado pelo prefeito Eduardo Paes) retrata uma relação importante entre o campo
burocrático do Estado e o campo da política: para que se possa ocupar os cargos da alta
função pública no campo burocrático é preciso acumular votos. Uma tática utilizada no
campo da política é a oferta de bens públicos como forma de angariar votos. Caso o político
Marcello Crivella fosse bem sucedido em seu programa Cimento Social, e conseguisse
construir as prometidas casas para aqueles moradores, provavelmente ganharia seus votos, e
isso o ajudaria em sua disputa pelo governo do estado contra Pezão.
Cada vez que eu explicava aos moradores de ambas as favelas que a minha tese tratava
de ações do Estado nas favelas, antes que eu fizesse qualquer pergunta, estes resumiam em
uma frase o que para eles me importava saber: “só aparecem aqui em época de eleição”.
Explicavam-me que a relação dos políticos com a favela resumia-se, basicamente, a uma troca
de bens públicos por votos, às vezes mais explícita outras mais discreta: “é um processo de
negociação política através do voto de cabresto. Eu faço isso lá porque aquela comunidade
tem uma barganha de voto e se eu fizer qualquer coisa vão votar em mim” (Morador 9, Favela
da zona Sul). Os agentes do campo burocrático do Estado também reconhecem e explicitam
esta lógica: “Isso só acontece porque o cara, sei lá, o cara tem o curral eleitoral dele. Ele vai
91
beneficiar e vai fazer o serviço onde ele ganha mais votos, isso é fato, entendeu”
(Representante da UPP Social 3, favela da zona Sul).
Os agentes que já conseguiram compor o campo burocrático do Estado, como
influência do campo político, utilizam de seus cargos burocráticos para, assim, angariar votos.
Alguns agentes me explicaram que existem comunidades que são “as meninas dos olhos” do
governo, como é o caso da favela da zona Sul onde desenvolvi minha pesquisa. Tais
comunidades recebem mais atenção, porque as ações do Estado nelas desempenhadas acabam
ganhando mais visibilidade, e com isso possuem um maior potencial de serem transformadas
em votos. Uma gestora do PAC, por exemplo, reconheceu sobre o programa: “Olha, a gente
sabe que é uma grande jogada política, todo mundo sabe. Mas, pelo menos, está sendo feita
alguma coisa pela comunidade”(Representante do PAC 4, favela da zona Sul). Da mesma
forma, os policiais da UPP reconhecem que a UPP é um grande programa “eleitoreiro”.
Os moradores, cientes do que precisam fazer para conseguir melhorias para sua
comunidade, seguem esta lógica e tentam se beneficiar. Foram muitos os relatos de moradores
que já haviam apoiado algum político em época de eleição, levando-o pela mão para dentro da
favela, tentando auxiliá-lo em sua busca por votos. Muitos comentavam comigo que estavam
aguardando o próximo ano: 2014 seria um ano de eleições. Segundo os relatos, anos de
eleições costumam ser bastante movimentados nas favelas: “o que tu vai ver de candidato
subindo esse moro: vem distribuição de peixe, vem que fulano vai te ajudar nisso. ‘Não,
quando eu estiver lá, vou te ajudar, quando eu tiver coisa lá, eu vou fazer isso, vou fazer
aquilo’” (Morador 28, favela da zona Norte).
O presidente da associação de moradores da favela da zona Norte considera que eles não
conseguem muita coisa para lá, devido à incapacidade dos moradores de se unirem e votarem
no mesmo político. Reclama que os moradores se vendem por qualquer coisa, como um
pequeno churrasco e uma caixa de cervejas, e que assim eles não conseguem negociar grandes
melhorias para a favela.
Então por exemplo, o candidato espera ter 10 mil votos, 5 mil votos [da favela da zona
Norte], aí teve mil. Ele achou que não é vantajoso pra ele satisfazer aqui, atender às
necessidades daqui. Por causa de mil votos... Se ele teve a oportunidade lá na Penha em que
ele teve 2 mil 2 mil e 500... Ele vai atender à comunidade da Penha, que foi aonde ele
obteve a quantidade maior de votos. Entendeu? Eles não pensam em plantar a sementinha e
em esperar aquela sementinha germinar, eles querem já plantar e colher frutos. E como[a
favela da zona Norte] não está acostumado com isso, então fica difícil de acontecer,
entendeu?( Morador 11, Favela da zona Norte)
92
Bourdieu (2012) aponta que o capital político, principal espécie de capital valorizada
no campo político, pode se apresentar em duas formas principais: um capital político pessoal,
que diz respeito à força de mobilização que um político detém à título pessoal, firmado no
fato de ser conhecido ou reconhecido em sua pessoa, de ter um nome ou uma reputação, e um
capital delegado da autoridade política, detido e controlado pela instituição, são o
reconhecimento e a fidelidade acumulados por um partido, por exemplo. O acúmulo do
capital político, seja na forma pessoal ou de autoridade, tem o poder de converter-se em votos,
seja para o político em sua esfera individual ou para o partido angariador de fidelidade e
reconhecimento. Conforme Weber (1974, p. 84) já enfatizava, “os homens interessados pela
vida política e que desejam participar do poder tentam, constantemente, aliciar seguidores,
reúnem os meios financeiros necessários e se põem à caça de sufrágios”. Esta caça por votos,
retratada por Weber (1974), aparece de forma muito clara nas favelas, onde a luta por
sobrevivência leva os moradores a se aproveitarem dela. Constitui-se, assim, como uma
influência do campo político no campo burocrático, na medida em que agentes do campo
político que querem um lugar no campo burocrático utilizam esta estratégia, e mesmo os
agentes que já compõe as altas funções públicas do campo burocrático, utilizam-se dela para
manterem-se no campo.
Retomando mais uma vez o exemplo inicial, o problema que ocorreu com o programa
Cimento Social explicita mais uma forma de influência do campo político no campo
burocrático: a formação de acordos políticos aumenta as chances de um agente ser mais bem
sucedido em seu ingresso no campo burocrático, por meio da oferta de cargos, por exemplo, e
tais acordos afetam diretamente as ações desempenhadas pelos agentes do campo burocrático.
Foi neste sentido que o prefeito Eduardo Paes decidiu apoiar o candidato Pezão para o
governo do estado. Embora naquela situação específica o ganho fosse do segundo, na medida
em que o primeiro tentava atrapalhar o sucesso do seu concorrente, um acordo político
envolve ganhos para ambos os lados. Os acordos políticos e seus efeitos (em geral negativos)
sobre às práticas dos agentes do campo burocrático também eram relatados abertamente pelos
agentes:
É, tem o acordo político, você sabe disso, né, o secretário que responde pela Comlurb não
conversa direito com o prefeito, porque sabe que tem que fazer aquela aquele aquela junção
de partido para ganhar uma eleição, né? E aí você tem que dividir um monte de coisa, um
monte de cargo e aí isso afeta no campo, entendeu. Por isso que eu falei para você que o
programa da UPP Social foi um programa muito bacana, muito bem elaborado, mas só que
na prática não funcionou (Representante da UPP Social 4, favela da zona Sul)
93
Conforme o relato, os acordos políticos podem facilitar em termos de sucesso nas
eleições e, consequentemente, em uma forma de ingresso no campo burocrático, mas também
atrapalham as ações dos agentes do campo burocrático em seu dia a dia de trabalho. O caso da
UPP Social é bastante emblemático neste sentido. O programa precisou ser reestruturado por
não conseguir cumprir sua função inicial de encaminhamentos de demandas: as demandas da
favela eram levantadas pelos gestores, que as registravam em relatórios e as encaminhavam
aos órgãos públicos competentes; entretanto, se o responsável pelo órgão não tivesse um bom
diálogo com o prefeito (tendo em vista que o IPP é um órgão municipal) as demandas não
eram resolvidas e a prefeitura não conseguia ter legitimidade diante dos moradores das
favelas. Os moradores também sofrem com as consequências negativas desta questão.
Relatam que em períodos em que o governo do estado e a prefeitura seguem políticas
diferenciadas, cada um respondendo por um partido independente, eles têm um problema
sério: os dois não se ajudam e ainda tentam se atrapalhar. Os agentes sintetizam esta situação,
consequência da existência de acordos políticos, por meio da expressão “vontade política”:
“dar importância a essa atividade social, depende do partido que tem interesse”
(Representante do CRAS 6, Favela da zona Norte).
Com base nesta discussão, também aparece uma forte oposição entre o “técnico”,
como algo exclusivamente do campo burocrático, e o “político”, que pode sofrer influências
de ambos os campos. Quando algum programa, órgão ou funcionário público quer se dizer
“neutro”, livre de acordos políticos que possam o comprometer, “sem rabo preso” como
dizem por aí, intitulam-se “técnicos”. Esta foi a saída, por exemplo, encontrada pela UPP
Social. Quando o IPP passou para as mãos de uma nova diretoria a principal mudança foi
clara: “despolitizar a UPP Social, ou seja, transformá-la de um programa político em um
programa técnico” (Notas de Campo, 11/03/2014). A ideia era minimizar as influências do
campo político no campo burocrático. Conforme explicou um dos gestores do programa, em
entrevista:
E o que é bom da UPP Social, é que são questões técnicas. Ninguém aqui, esteja gestor,
esteja assistente, entrou aqui porque foi o vereador, porque foi o fulano... não é que eu seja
contra isso, mas eu acho que, muitas vezes, quando a gente, quando a instituição de
secretaria, num programa desse, eu acho que a gente acaba politizando, não, politizando
não, politicando muito mais. Porque, aí, eu sou da área da Tijuca, eu vou querer que o
gestor seja alguém que, se eu for vereador, eu vou querer que seja alguém meu. Pra quando
o serviço chegar, eu dizer que fui eu que mandei. Então, o ponto-chave da UPP Social é ter
as pessoas técnicas (Representante UPP Social 6, Favela da zona Norte).
94
Consequência direta da oposição entre “técnico” e “político” são os cargos “técnicos”
ou “políticos”. Segundo Bourdieu (2012), a mobilização de capital político também se assenta
em estruturas objetivas, em instituições permanentes, como nos postos oferecidos pela
burocracia e instrumentos de mobilização. Conforme lembrou Weber (1974, p. 68), há uma
tendência à distribuição de empregos de toda espécie como formas de gratificações, empregos
estes que são distribuídos por chefes de partido a seus partidários: “as lutas partidárias não
são, portanto, apenas lutas para consecução de metas objetivas, mas são, a par disso, e
sobretudo, rivalidades para controlar a distribuição de empregos”. Os denominados “cargos
políticos” eram frequentes e geravam um certo desconforto em quem a eles estava
subordinado. Conforme explica um representante do Territórios da Paz:
(...) eu acho um absurdo completo, por exemplo, na minha secretaria só ter cargos
comissionados. Eu acho um absurdo completo. Você não tem continuidade política, você
não tem um quadro próprio de servidores concursados, permanente ali. Imagina. Muda
secretário, muda todo mundo. Até é um absurdo, você não tem continuidade nas políticas.
Não tem memória, você não consegue criar memória, entendeu. É um problema do serviço
público brasileiro em geral, você não conseguir criar memória ou não está preocupado com
a memória também (Representante do Territórios da Paz 2, Geral)
Os “cargos políticos”, além de comprometerem as práticas dos agentes em campo, que
perdem parte de sua autonomia de ação, ainda geram descontinuidades políticas, e os agentes
passam a falar em “políticas de governo”, que mudam com as mudanças no governo, em
oposição às “políticas de estado”, estas sim permanentes: “e [a UPP] também se confundiu
muito com uma política de governo, né, que o governador mudou, muda secretário, muda
comandante e eles vão deixando de lado os projetos que eles acham que não são importantes”
(Representante da UPP 2, Favela da zona Sul). Conforme lembra Weber (1974, p. 73), “os
funcionários ‘políticos’, no sentido próprio do termo, são, regra geral, reconhecíveis
externamente pela circunstância de que é possível desloca-los à vontade ou, pelo menos
‘colocá-los em disponibilidade’”. É esse deslocamento dos funcionários “políticos”, conforme
a eles se referia Weber (1974), que leva às descontinuidades políticas relatadas pelos agentes.
Os deslocamentos de funcionários “políticos” e as descontinuidades políticas foram
ficando mais claros com o aproximar das eleições. Em janeiro de 2014, os agentes do campo
burocrático do Estado passaram por um momento de forte tensão, quando o PT resolveu
“entregar” todas as suas secretarias. Um funcionário do Territórios da Paz contou, assustado,
para uma gestora do PAC que haveria uma mudança no secretário da SEASDH, e que eles
não tinham nem certeza a respeito da continuidade do programa. Mas eu só tomei ciência do
grau de instabilidade política daquele cenário quando a gestora do PAC me apresentou a
95
questão em números: contou que seriam publicadas 28 páginas de demissões no diário oficial
– todos cargos políticos. “Meu prédio inteiro vai pra rua!” (Notas de campo, 29/01/2014),
brincou o representante do Territórios da Paz.
Mas Weber (1974) também lembrou que a essa tendência se opõe o desenvolvimento
de um corpo de trabalhadores intelectuais especializados, altamente qualificados, que se
prepararam para o desempenho de sua tarefa profissional. Existem, segundo o autor, as
exigências de ordem técnica. Para suprir essas exigências, existem os “cargos técnicos”, e
aqueles que os ocupam se proclamam neutros. Reconhecem, entretanto, vantagens e
desvantagens de não se ocupar uma posição política neste jogo do Estado:
Então tem uma influência dessa coisa, da questão de eu não ser filiado a partido nenhum,
que eu acho que foi um pouco negativo em termos de me dar força política para
determinadas articulações, mas também teve um lado bom, que é por não ser filiado a
partido nenhum, algumas articulações se tornam mais fáceis (Representante do Territórios
da Paz 2, Geral)
Os moradores também participam dos acordos políticos, que muitas vezes interferem
nas ações dos agentes do campo burocrático em favelas. O funcionamento das associações de
moradores, que aos poucos fui compreendendo melhor, revela essa dinâmica. Em conversa
informal, um gestor do Territórios da Paz comentou, medindo suas palavras, que enquanto a
associação de moradores de um dos morros da favela da zona Sul possui uma “relação de
proximidade” com a prefeitura, a associação do outro morro era “mais próxima” do governo
estadual. Com o tempo comecei a perceber ao que o gestor estava se referindo. Pude observar,
durante as reuniões, que o presidente de uma das associações sempre se posicionava de forma
favorável ao governador, era a favor das UPPs e as defendia “com unhas e dentes”. Chegou
até mesmo a me dizer publicamente que eu poderia fazer a minha pesquisa ali, mas que eu
não deveria sair nestas manifestações que se posicionam contra o governador, exigência que
deixou alguns dos presentes um pouco indignados – “relaxa, a Vanessa não é Black Bloc
não!” (Notas de campo, 07/08/2013). Da mesma forma, a presidente da outra associação,
tendia a defender o prefeito e os programas municipais. Em entrevista, ao ser questionada a
respeito de sua “boa relação” com a prefeitura, me respondeu diretamente: “Eu tenho sim,
com o prefeito! Com o prefeito.... Ele já é uma pessoa mais flexível, entendeu? Do que o
governador” (Morador 13, favela da zona Sul). E completou me explicando que tem contato
direto com ele: “se eles não resolvem, eu vou ao prefeito. Eu deixo o prefeito sempre a última
cartinha, escondida aqui na manga, entendeu?” (Morador 13, favela da zona Sul). Percebi
então que os acordos políticos também se estabelecem com lideranças comunitárias, e mais
96
uma vez os moradores tiram proveito da lógica do campo para conseguir ter acesso mais fácil
àquilo que precisam para sua comunidade. Ao declarar o seu apoio a um agente do campo
burocrático – nestes casos, prefeito ou governador – que também são, simultaneamente,
agentes do campo político, os presidentes das associações de moradores estavam declarando o
seu apoio político, útil para mantê-los no campo burocrático.
Quando estes acordos não são feitos, a favela tem mais dificuldades em obter algum
benefício. Este é o caso da favela da zona Norte, em que o presidente da associação me
contou, orgulhoso, que não se vendia a nenhum político, não fazia acordos. Reconhecia que as
consequências disso eram um problema: aquela favela recebia poucas ações do Estado, muita
coisa faltava ali. Alguns moradores, por sua vez, estavam insatisfeitos com o posicionamento
do presidente da associação.
O resultado dos acordos políticos reflete-se na dificuldade de articulações que
almejam transpassar estes acordos, e logo se vê porque os programas que foram criados com
este propósito tiveram tanta dificuldade em suas ações. Conforme explica um representante do
programa Territórios da Paz: “Então você tem vários outros partidos funcionando em lógicas
centralizadas; disputa mesmo o espaço de poder. Então é muito, o meio político brasileiro ele
é muito fragmentado para você construir determinadas políticas de articulação institucional”
(Representante do Territórios da Paz 2, Geral). A fala do representante revela como a
excessiva competição política, característica do campo político brasileiro, dificulta uma
articulação entre os agentes do campo burocrático, apontando para a relação entre ambos os
campos.
Voltando, ainda, ao exemplo inicial, a segunda estratégia utilizada pelos moradores
para lidar com o problema do programa Cimento Social consistia em levar à mídia,
transformar o ocorrido em um escândalo político. Esta não foi a primeira vez em campo que
eu presenciei moradores buscando a via do escândalo político para conseguir o que queriam.
Uma moradora da favela da zona Norte teve a sua casa demolida, junto com a de outros
moradores, em um desabamento de terras no ano anterior. Depois de muita luta com a
Secretaria Municipal de Habitação (SMH), conforme ela me relatou meses depois, ela e os
demais moradores decidiram aproveitar o momento de Copa das Confederações para planejar
uma manifestação que consistia em abraçar o Maracanã em dia de jogo, vestindo uma camisa
com os dizeres: “SMH, queremos moradia!”. Quando ela me contou a história, o problema já
havia sido resolvido. Receberam do governo apartamentos em um novo complexo
habitacional. Não precisaram levar adiante a manifestação planejada. A ameaça foi suficiente.
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Os moradores sabiam muito bem tirar proveito dos escândalos políticos a seu favor:
qualquer problema na comunidade divulgavam nas redes sociais e, quando possível, na mídia.
A favela da zona Norte lidava com o seu problema do lixo assim. Quando queria a presença
da Comlurb, divulgava no Facebook que a favela estava suja, tática muito mais eficaz do que
o canal formal do 1746: “Quer ver se você tiver um problema na sua rua e quiser resolver
rápido, joga no Face. Assim ó! (estala os dedos). Quando tu vê... ‘Ué, consertou? Tanto tempo
que eu to pedindo, eu ligo pro 1746 e não acontece...’” (Morador 17, Favela da zona Norte).
Além do Facebook, a força da mídia era reconhecida pelos moradores, que acreditam
que não há ameaça maior aos agentes do Estado:
A mídia hoje está no morro. A mídia ela é mais forte que o próprio governo, ela veio para
cá, os caras peidam, irmão, não, porque meu nome vai ser lançado, eu vou ser preso
mediante a mídia, entendeu, então os caras não têm nem medo da UPP. Bota os caras para
descer, acabou, não tem medo do Governo, não tem, tem medo da mídia, irmão, entendeu.
E eles me respeitam, porque eu respeito eles e eles sabem que eu conheço um monte de
gente da mídia. Se eu sentir, meu irmão, que eu estou, sabe, sentindo cheiro de outra coisa,
eu vou falar com a mídia, sou um cara de explanar mesmo, cai para dentro, entendeu e
acabou, eu vou ferrar todo mundo (Morador 20, Favela da zona Sul).
Conforme lembrou Bourdieu (2014), os políticos ou os membros da nobreza do Estado
não possuem uma vida privada, pois esta está sempre sujeita à publicação. Segundo Bourdieu
(2014, p. 104), há, no campo político, uma teatralização do interesse pelo interesse geral, que
é desmascarada pelos escândalos políticos: “os escândalos políticos são a derrocada dessa
espécie de crença política, na qual todos estão de má-fé, sendo a crença uma espécie de má-fé
coletiva, no sentido sartriano: um jogo em que todos se mentem e mentem a outros sabendo
que se mentem”. Como o político é um homem conhecido e reconhecido, estão eles
particularmente vulneráveis ao escândalo, “sendo o escândalo gerador de descrédito, e o
descrédito é o inverso da acumulação do capital simbólico” (BOURDIEU, 2014, p. 260).
Para que não caiam no descrédito e na perda de legitimidade relatados por Bourdieu
(2014), os agentes do campo político e os agentes do campo burocrático que também possuem
participação no campo político respondem prontamente a qualquer iminência de um escândalo
político. Adentrando a favela da zona Sul, vi pendurada na rua principal da favela uma
enorme faixa convocando para uma reunião do PAC. Sabia que as obras do PAC estavam
naquele momento paradas, em decorrência da saída da construtora que estabelecera parceria,
por meio de licitação, com o governo federal para realizar as obras do PAC. Não entendia,
assim, o motivo de uma reunião emergencial. Por coincidência naquele dia me dirigia a uma
outra reunião do PAC, voltada para integração dos moradores do novo prédio. Chegando lá,
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minha dúvida foi esclarecida: no domingo anterior saíra uma enorme reportagem no jornal “O
Globo” denunciando os problemas nas obras do PAC da favela da zona Sul, que iam desde
interrupção nas obras à redução do valor do aluguel social, de R$650 para R$400 – a
construtora, agora não mais no programa, ajudava a pagar parte do aluguel aos moradores.
Tentando evitar o descrédito, decorrente do escândalo público, agendou-se uma enorme
reunião para novos esclarecimentos. Os agentes de ambos os campos reconhecem o temor do
escândalo político: “a mídia é muito forte para promover ou deslegitimar programas e tal,
então eu acho que tem esse incômodo mesmo” (Representante da UPP Social 4, favela da
zona Sul).
Não foram raras as vezes em que eu me vi inserida neste jogo. Alguns moradores viam
em mim uma forma de divulgar informações e produzir os tão efetivos escândalos políticos.
Na reunião sobre o Cimento Social, narrada inicialmente, me vi nesta situação. O presidente
da associação fez parecer aos moradores que eu estava ali para dar visibilidade aos “erros” do
Estado – o que, em certa medida, não deixa de estar acontecendo. Os agentes do Estado, por
sua vez, às vezes temiam a minha presença e me perguntaram, inúmeras vezes, se eu era
jornalista.
A influência do campo político no campo burocrático se dá, em síntese, na medida em
que os dois campos possuem lógicas distintas, que se interpenetram. Enquanto o primeiro é
guiado por uma lógica política, o segundo é guiado por uma lógica burocrática, conforme
descrito anteriormente. Entretanto, Bourdieu (2014, p. 437) lembra que é em Maquiavel que
aparece pela primeira vez “a ideia de que a política tem princípios que não são os da moral
nem os da religião”. Bourdieu (2014) ressalta que existe uma lógica política que é indiferente
aos fins éticos, e com esta lógica eu me deparei, com grande pesar, muito mais do que com
surpresa, em muitos dos meus dias de pesquisa de campo. A lógica política pode levar a
resultados que desviam dos princípios éticos – e as pessoas que foram removidas e não
tinham onde morar devido a (des)acordos políticos são apenas um exemplo. Conforme
lembrou Weber (1974, p. 120): “Quem deseja a salvação da própria alma ou de almas alheias
deve, portanto, evitar os caminhos da política que, por vocação, procura realizar tarefas muito
diferentes, que não podem ser concretizadas sem violência” (WEBER, 1974, p. 120).
Diante da forte relação que se estabelece entre campo burocrático e campo político, foi
preciso fazer um esforço para trata-las separadamente. Quando uma figura como o Marcelo
Crivella coordenava um programa como o Cimento Social, ele é um burocrata ou um político?
Não estão os “burocratas” que coordenam o PAC sujeitos à mesma lógica política de pressões
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para angariar votos para o governo Federal ou evitar escândalos políticos que o deslegitime?
A explicação que aqui se buscou para resolver este imbricamento entre os campos veio da
compreensão de que muitos agentes do campo burocrático também fazem parte do campo
político, e estes ainda lutam no campo político para manter as suas posições, assim como
agentes do campo político lutam para assumir posições no campo burocrático. Conforme
defende Loureiro et al (2010, p. 74), existe uma “burocratização da política e a politização da
burocracia, fazendo com que ambos adotem estratégias híbridas de atuação”. Foi este
hibridismo que pude observar em meu campo, e que tornou tão difícil estabelecer uma
separação entre ambos os campos.
4.4 Sobre Favelas enquanto Campos de Poder
Embora as favelas não possam ser consideradas como espaços onde habitam apenas
pessoas pobres ou marcados apenas por faltas e ausências, conforme já defendia Machado da
Silva (1967) na década de 1960 – e conforme eu mesma pude constatar ao longo de minha
pesquisa de campo -, há, sem dúvida, nos espaços de favelas, uma série de necessidades
básicas que ainda não foram satisfeitas. Nas duas favelas em que desenvolvi a minha pesquisa
o lixo era um problema gritante. Ainda que os moradores jogassem os seus lixos em
caçambas, estas viviam lotadas e transbordando e, muitas vezes, dificultavam ou impediam a
circulação por determinadas ruas. Como consequência, em ambas as favelas, havia ratos, que
alguns moradores até brincavam de chamar por um nome próprio para revelar, de forma bem
humorada, o frequente convívio com o animal. Quando chovia, ficava claro que o sistema de
esgoto era inadequado: o esgoto transbordava de forma muito intensa, e às vezes chegávamos
a ver fezes boiando pelas ruas. O acesso à saúde e à educação eram precários, assim como o
acesso a transporte público que era inexistente dentro das favelas. Por diversas vezes
vivenciei falta de água e de luz, o que ocorria quase semanalmente, e na favela da zona Sul os
moradores chegaram a passar a noite de natal do ano de 2013 às escuras. As minhas
observações a este respeito eram reforçadas pelas falas dos moradores, que faziam questões
de me apontar os problemas da comunidade, pois viam em mim uma possível via para que
suas demandas fossem atendidas, não importa o quanto eu esclarece que este não era o meu
papel. Embora as favelas tendam a centralizar as discussões em torno do problema de
segurança pública na cidade do Rio de janeiro, esta está longe de ser a única questão na qual o
Estado precisa intervir e prover melhorias dentro destes espaços.
É claro que existem outros espaços da cidade que vivem em situações similares ou
piores do que algumas favelas cariocas. Entretanto, conforme mostrou Valladares (2005), a
100
criação de uma categoria única que se intitula a “favela” no singular, fez com que estes
espaços se tornassem “símbolos” dos problemas sociais da cidade. E, mais ainda, tratadas no
singular, as favelas passaram a atrair ações do Estado homogeneizadas e homogeneizadoras
(VALLADARES, 2005).
Embora as favelas sejam espaços heterogêneos, cada uma delas com suas
características próprias, os moradores parecem possuir um reconhecimento de sua condição
comum como alvo destas políticas que se voltam para a “favela” no singular (BIRMAN,
2008). Há, segundo Birman (2008, p. 114), um reconhecimento, de que todos ali “são objetos
de uma política discursiva que os aloca numa posição subalterna e estigmatizada,
independente de e contra as suas vontades”, “um reconhecimento de que existe um ‘nós’ cujo
sentido é dado essencialmente pelo fato de serem, em conjunto, alvo dessa política que os
governa”.
Esta identidade conferida a este grupo de pessoas que possuem em comum ao menos o
reconhecimento de serem alvo de uma mesma política, de um mesmo tratamento
estigmatizado - pelo simples fato de habitarem um mesmo espaço geográfico, ou espaços
geográficos com algumas características comuns -, permite relacionar a favela mais
proximamente ao um sentido de campo de poder. Conforme definido anteriormente, consigo
enxergar nas favelas uma rede de relações entre posições, marcada por conflitos, mas também
por cooperações, bem como uma lógica própria de funcionamento. Apoio-me aqui no
pensamento de Fliegstein e McAdam (2012), os quais defendem a existência de uma relação
entre o espaço social, composto de campos, e o espaço geográfico. Para os autores, uma
proximidade geográfica leva também a uma proximidade no espaço social, e por isso é
comum que campos de poder estejam ligados no espaço geográfico. Os autores defendem que
os espaços físicos são também ocupados por campos, e torna-se muito mais fácil a criação de
um novo campo, quando as pessoas que irão fundá-lo possuem um contato físico direto. É
nesse sentido que o crescimento das cidades é uma das forças que claramente estão
envolvidas na proliferação de campos (FLIGSTEIN e MCADAM, 2012). Embora não tratasse
as favelas enquanto campos, Cavalcanti (2007) já apontava para esta possibilidade, ao afirmar
que as fronteiras sociais e espaciais tornam-se um princípio estruturador da vida social na
favela, e com o tempo tornam-se estruturas incorporadas, parte do habitus dos moradores de
favelas, por meio de seu reforço e seu apego constitutivo ao espaço.
Como um campo fundado a partir de sua estreita relação com o espaço físico ocupado
por seus agentes, o campo da favela, conforme chamarei aqui, tem no próprio espaço físico
101
uma condição definidora de seus agentes e dos próprios limites do campo. Dito de outra
forma, para que se faça parte do campo da favela é preciso possuir um parte do espaço físico
que a constitui. Cavalcanti (2007) defende que seria enganador inferir que, quando os
moradores de favela mudam-se para regiões externas próximas às favelas os limites da favela
são reconfigurados, pois partir para essa hipótese seria equivalente a assumir o argumento da
“cultura da favela”, e assumir que os moradores de favela levam a favela com eles. Ao
contrário, conforme mostra a autora, a distância simbólica entre morar na favela e morar de
frente para a favela é a principal atração para se mudar para fora da favela, para sua
vizinhança desvalorizada. É nesse sentido que afirmo que o campo da favela corresponde e
restringe-se ao seu espaço geográfico ou tem na dimensão espacial um forte elemento
constitutivo.
Embora não tenha aqui o objetivo de descrever em detalhes o jogo no campo da favela
e suas dinâmicas de capitais, conforme farei com o campo burocrático do Estado mais
adiante, me proponho apenas a apresentar os elementos empíricos que me levam a crer que,
para os propósitos da presente pesquisa, é possível compreender as favelas enquanto campos.
Segundo Bourdieu e Wacquant (2012), o principal aspecto que define um campo é o fato
deste possuir uma lógica própria. No caso das favelas foi possível observar a existência de
uma lógica própria a qual chamarei aqui de lógica de “lutas”, denominação que parte de uma
expressão cunhada pelos próprios moradores. Diante de uma série de necessidades básicas
não satisfeitas e de uma escassez de ações do Estado, os moradores de favelas são guiados por
um sentido de urgência, tendo em vista que lhes faltam coisas básicas para sua sobrevivência.
Nesse sentido, passaram a assumir para si a responsabilidade de “lutar” para que suas
demandas sejam satisfeitas, seja fazendo eles mesmos, seja por meio de um grande esforço
para cobrar uma ação do Estado. Parece existir uma crença generalizada de que os moradores
de favelas precisam lutar.
Não foram poucas as vezes em que ouvi na minha pesquisa, relatos de moradores mais
idosos a respeito de seu passado de “luta” na comunidade. Cavalcanti (2007) identificou em
sua pesquisa o uso do termo “luta” pelos moradores para se referir a um período marcado por
esforços coletivos voltados para o melhoramento das construções e dos serviços coletivos na
favela. Segundo Cavalcanti (2007, p. 128), a expressão “muita luta” “has a teleological effect
that is productive of a sense of agency, and of a mode of identification that expresses an ethics
102
that values hard work and perseverance14”. O que significa dizer que para os moradores as
coisas não chegam com facilidade. Assim, a construção material da favela é atribuída ao
trabalho físico e aos investimentos financeiros desempenhados pelos moradores ao longo dos
anos (CAVALCANTI, 2007).
Também em minha pesquisa deparei-me com estas falas, que me contavam sobre uma
vida na favela muito mais difícil do que a atual, e que diziam que os jovens de hoje tinham
tudo muito fácil. Contavam-me sobre as longas horas que passavam na fila para pegar água,
para as quais chegavam a levar colchões para passar a noite; falavam-me sobre como
construíram com as próprias mãos suas casas, o atual sistema de distribuição de água e o de
esgoto da favela, e às vezes discutiam se determinada obra havia sido realizada por eles ou
por algum programa público – já não se lembravam mais.
Embora Cavalcanti (2007) tenha se referido às “lutas” para marcar um período
específico da vida na favela, o termo “lutas” ainda é hoje usado pelos moradores para retratar
a dinâmica da favela, e o mecanismo que eles utilizam para conseguir melhorias para este
espaço. As “lutas” retratam tanto o fato de os moradores fazerem muitas coisas por eles
mesmos, como obras, mutirões de limpeza ou de construção, quanto a estratégia por eles
desempenhada para conseguir atrair ações do Estado ou fazer com que os órgãos públicos
cumpram a sua função dentro das favelas. “Antes era muita dificuldade mesmo. E hoje você
sabe a minha luta, né? (Morador 6, Favela da zona Norte) – assim comparou uma moradora o
período passado e o atual. As lutas ainda se fazem presentes e necessárias para a conquista de
melhorias nas favelas: “Se tem alguma coisa aqui, é com muita luta. Muita luta” (Morador 26,
favela da zona Norte).
Os moradores hoje se referem a estas “lutas” como marca de sua relação com o
Estado, e afirmam que para conseguir alguma coisa dos órgãos públicos é preciso “muita
luta”. As lutas às quais os moradores se referem, necessárias para conseguir alguma ação do
Estado, versam desde abaixo-assinados entregue aos órgãos públicos em prol de alguma
demanda, à denúncias ao Ministério Público, denúncias nas redes sociais ou na imprensa,
ameaças ou concretizações de manifestações, incessantes ligações de vários moradores ao
1746, ou até ações um pouco mais violentas quando os agentes do Estado levam adiante ações
com as quais os moradores não concordam. Este foi, por exemplo, o caso dos nomes de ruas
na favela da Formiga, conforme me relatou um representante da UPP Social:
14 Tradução Livre: tem um efeito teleológico produtor de um senso de agência e de um modo de identificação que expressa uma ética que valoriza o trabalho duro e a perseverança.
103
Inventaram o decreto de que todas as ruas da Formiga iam receber o nome de fruta. Estou
morando na Formiga, na Uva, na Formiga, Melão da Formiga, pô, gente, tá de sacanagem.
Os moradores não aceitaram. Então quando alguém foi lá botar a placa, eles sacudiram a
escada para o cara cair. E não vai botar. E não aceitaram, não botaram (Representante da
UPP Social 2, Favela da zona Norte)
E as “lutas”, muitas vezes, parecem ter resultados, ainda que após alguma situação de
estresse com o órgão público que está sendo demandado. Uma moradora bastante engajada
neste tipo de ação, especialmente em relação a problemas de lixo da comunidade, contou com
orgulho suas conquistas em relação à Comlurb:
Quantas e quantas vezes eu deixei eles enfurecidos comigo. Já troquei três pessoas da
Comlurb para a comunidade. Se eles começam a vacilar com a comunidade ‘ah, não vou
fazer isso, ah, não quero fazer isso’. Eu meto o pau mesmo. Vamos embora. Você não
servem para a comunidade (Morador 6, Favela da zona Norte).
Entretanto, como o campo burocrático do Estado, guiado por uma lógica burocrática,
parece ter mais dificuldades de atuar em espaços como as favelas, para além de qualquer tipo
de falta de vontade de que se possa acusa-los, os moradores encontram no campo da política
um imediatismo semelhante ao presente no campo da favela: enquanto os moradores querem
que suas demandas básicas sejam atendidas com urgência, justamente porque dizem respeito a
necessidades básicas não atendidas, os agentes do campo político querem angariar seus votos,
com urgência, para as próximas eleições. Por isso, os moradores também apelam muitas vezes
para o campo político, contando com a sua influência no campo burocrático, conforme
mostrado anteriormente. Zaluar (2000) também mostrou como os moradores da Cidade de
Deus, favela em que a autora realizou sua pesquisa de campo, recorriam a políticos para
satisfazer as suas demandas, como canal de acesso ao governo, que não os dá o que precisam.
Nas favelas aqui pesquisadas os acordos políticos também se mostraram presentes, conforme
já relatado, como uma forma de “luta” para conquistar melhorias para a favela, o que pode se
apresentar como uma alternativa mais fácil, diante do imediatismo comum aos campos
político e da favela.
Quando a articulação com o campo político não é bem sucedida, e quando o campo
burocrático do Estado não consegue atendê-los - seja por conta da sua lógica burocrática, que
impõe uma série de exigências de formalização a qualquer ação, seja pela dificuldade de criar
novas rotinas em um novo território com o qual não estão familiarizados -, os moradores de
favelas, diante da urgência que lhes é comum devido à natureza de suas demandas, optam por
fazer por eles mesmos, ainda que para isso precisem partir para a informalidade. Enquanto o
campo burocrático do Estado é marcado pela lógica burocrática, que exige alto grau de
104
formalização, o campo da favela e sua lógica de “lutas” é pautado em uma informalidade, que
os permitir “lutar” de maneira mais ágil e funcional. Misse (2013) mostra como as favelas são
marcadas pela ilegalidade e pela informalidade, desde sua forma de moradia irregular até o
transporte e o sistema de entrega de correspondências irregulares. O mesmo pode ser
observado em minha pesquisa de campo. Nas favelas que frequentei, os traços da
informalidade estavam por toda parte: os meios de transporte que eu usava para subir os
morros variavam entre a Kombi e o moto-taxi, ambos irregulares; nas associações de
moradores havia amplos escaninhos onde era organizada a correspondência a ser distribuída
na favela, tendo em vista que os endereços não eram formalizados; as moradias não possuíam
um registro formal; as organizações que funcionavam na favela e quase todo o comércio eram
irregulares; boa parte da energia elétrica era distribuída pela comunidade por meio dos
famosos “gatos”, ligações elétricas ilegais.
Partindo para a informalidade, nestes anos de “luta” em prol da comunidade, em
muitos aspectos os moradores de favelas aprenderam a ser muito mais ágeis e funcionais do
que o próprio Estado. Em outras palavras, eles aprenderam a resolver os próprios problemas
em um ritmo de urgência compatível à natureza de suas demandas, de uma forma que o
Estado, em sua lógica burocrática, ainda não consegue fazer. Por isso, em alguns casos eles
assumem a incapacidade dos agentes do Estado de resolver os problemas, reconhecem a sua
funcionalidade superior, e arregaçam as mangas, fazem eles mesmos o que seria função do
Estado.
Já em meus primeiros contatos com a favela da zona Sul, primeira favela que
frequentei, me deparei com uma infinidade de organizações criadas pelos próprios moradores
para tentar suprir demandas não atendidas pelo Estado – suas ações giravam em torno de
questões ambientais, educacionais, música, dança... Embora a favela da zona Sul recebesse
especial atenção, por se tratar de uma favela de grande visibilidade, e por isso recebesse mais
recursos e apoios para este tipo de organização, logo no início da minha pesquisa de campo
tive oportunidade de constatar que esta não era uma característica que se restringia a ela.
Participei do evento Troca de Saberes, organizado pelo Territórios da Paz, na favela da
Rocinha. Lá tive oportunidade de conhecer diversos projetos de moradores das mais diversas
favelas da cidade, que se propunham a suprir as demandas não atendidas, naquele caso
especialmente voltadas para a área ambiental, foco do evento. Foi neste mesmo evento que
conheci a senhora que me levou para conhecer a favela da zona Norte, onde também realizei
105
minha pesquisa de campo. Mesmo lá, uma favela de pouca visibilidade, esta senhora
organizava um projeto voltado para o problema de poluição do Rio local.
Para além deste tipo de organização, que funcionava de uma forma mais permanente,
os moradores de favelas têm, em geral, o hábito de realizar mutirões, nos quais se organizam
coletivamente para realizar alguma ação em prol da comunidade. Tive oportunidade de
participar de alguns destes mutirões na favela da zona Norte. Os moradores queriam remover
o lixo de uma pedra no alto do morro, muito importante para a história da comunidade: ali era
o local onde no passado pegavam água; depois se tornou o “micro-ondas15” do tráfico de
drogas, e com a entrada da UPP virou local de grande acúmulo de lixo. A ideia era retirar o
lixo para a construção de um eco-museu. Recorreram à Comlurb para a retirada do lixo. A
Comlurb respondeu que não seria capaz de atender a esta demanda. Assim, fizeram um
acordo de que eles retirariam e ensacariam o lixo, e a Comlurb desceria com o lixo aos
poucos, de dez em dez sacos. Reconhecendo a incapacidade da Comlurb de resolver este
problema, o assumiram para si, arregaçaram as mangas, e com “muita luta”, tiraram o lixo de
lá.
A lógica parece ser esta: se o Estado não tem condições de fazer, os moradores fazem
por eles mesmos. Esta lógica foi retratada em entrevista por uma moradora:
as coisas que acontecem aqui que eu te falei é na força do braço. Então eu acredito que ( )
da comunidade a gente não espera o Poder Público chegar, a gente não espera o Estado
chegar, ( ) a gente, a gente. Que que tem que fazer? Tem que desentupir bueiro. Vai lá,
desentope. Árvore está ameaçando cair em cima da casa de uma pessoa. Tem que vir o
Estado. Não. Vai lá, corta a árvore (Morador 22, Favela da zona Norte).
Os próprios agentes do Estado reconhecem que muitas vezes os moradores têm mais
facilidade do que eles para lidar com alguns problemas da comunidade. E cheguei a
presenciar agentes do Estado recorrendo a moradores, com pedidos de ajuda. Caminhava com
uma moradora da favela da zona Norte pelas ruas da favela, e quando chegávamos na rua
principal, mais larga, cruzamos com um mini-trator da Comlurb. O motorista, que parecia já
conhecer a moradora, disse para ela que estava cheio de buracos em uma das subidas do
morro, que estavam dificultando a subida da Comlurb. Perguntou à moradora se ela sabia que
outro órgão público era responsável pelos buracos, e pediu para que ela entrasse em contato
com a CEDAE para verificar se aquilo era de responsabilidade deles.
A necessidade das “lutas” para que suas demandas sejam satisfeitas parece não ser
mais questionada, nem por moradores de favelas, nem pelos agentes do Estado. Por diversas
15 Local onde os traficantes queimavam corpos.
106
vezes os agentes do Estado criticavam os moradores porque estes não se mobilizavam, não
participavam das reuniões, não se inscreviam em cursos oferecidos, como se sua falta de
esforço fosse um dos grandes motivos que justificasse a situação atual das favelas. E mesmo
entre os moradores parecia haver uma aceitação de que eles tinham a obrigação de fazer mais
esforço. As mesmas queixas que faziam os agentes do Estado, faziam os moradores a si
mesmos: reclamavam que eram desmobilizados, que quase ninguém comparecia às reuniões,
e ouvi uma liderança comunitária fazer um discurso acalorado aos jovens, dizendo que eles
tinham que se esforçar muito mais do que os outros, porque eles eram negros e pobres.
Na ocasião do mutirão de limpeza relatada anteriormente, eu parecia a única realmente
indignada com a incapacidade da Comlurb de retirar o lixo dali – indignação que só fez
aumentar quando dois policiais da UPP pararam para filmar a nossa ação de limpeza. Bastante
inconformada com aquela situação, diante da enorme quantidade de lixo que ainda tínhamos
que retirar, enquanto trabalhava questionei a um morador a respeito do motivo da
impossibilidade da Comlurb. O morador me respondeu que a Comlurb não tinha
infraestrutura e nem efetivo suficiente para realizar o trabalho. Deixando escapar a minha
indignação falei em voz alta “a Comlurb não dá conta, mas os moradores dão, né?” (Notas de
Campo, 21/09/2013). Um representante da UPP Social que também ajudava no mutirão tentou
“salvar” a Comlurb (e o munícipio em geral) da minha crítica e respondeu: “mas tem coisas
que a gente não tem condições mesmo de fazer” (Notas de Campo, 21/09/2013). Meio sem
graça respondi: “entendo...” (Notas de Campo, 21/09/2013), e guardei para mim a minha
indignação. Posteriormente, em entrevista com uma moradora, percebi que os moradores
pareciam não questionar o fato de estarem fazendo o trabalho da Comlurb. A moradora,
orgulhosa, assim me retratou a contribuição da Comlurb para os mutirões na pedra: “A
Comlurb tá fazendo o papel dela. Ela tá providenciando os sacos que nós estamos enchendo,
né? Ela está descendo... Todo dia ela carrega dez saquinhos e coloca lá na caçamba e leva”
(Morador 4, Favela da zona Norte). Com o tempo pude identificar de onde vinha este aparente
conformismo dos moradores com a incapacidade do Estado em atendê-los: os moradores
entendiam, muito melhor do que eu, que para o Estado a favela era um território novo e
complexo, e que eles precisariam de tempo para criar novas rotinas que incluíssem este
espaço “alheio” da cidade. Diante deste reconhecimento, moradores e agentes do Estado
assumiam que os primeiros precisavam “lutar”.
O que me inquietava não era a visão de que é necessária uma mobilização social.
Sempre acreditei e defendi esta ideia, e não foi à toa que decidi me dedicar à área de estudos
107
organizacionais, quando constatei a dimensão libertadora que a noção de organizações
também pode conter, embora a primeira vista pareça paradoxal. Entretanto, qualquer forma de
desigualdade sempre me inquietou, e me deparei em campo com uma forte desigualdade de
percepções em termos do que são obrigações de um morador de favelas e de um morador do
“asfalto”. Como parte do segundo grupo, nunca tive que fazer grandes esforços para ter o meu
lixo removido, e também nunca sofri pressões para participar de reuniões com os mais
diversos órgãos públicos, e ainda assim tive minhas necessidades básicas atendidas. Por que
se cobra de um morador de favelas um esforço tão maior?
O esforço dos moradores desencadeavam-se nas “lutas” devido a uma coesão social
existente nas favelas. Conforme demonstrou Grillo (2013), pode-se dizer que há nas favelas
uma experiência de comunidade, enquanto uma vivência comum ou um compartilhamento.
Segundo a autora, embora não se possa dizer que todos se conhecem ou saibam tudo sobre a
vida alheia, há, nas favelas, redes sociais de interconhecimento densas e extensas. Neste
mesmo sentido, Misse (2013) também defende em sua pesquisa que há, nas favelas, forte
coesão social, como nenhuma região de classe média da cidade é capaz de alcançar.
Entretanto, esta coesão social não é harmônica. As favelas são marcadas por disputas
internas e por grupos antagônicos que concorrem entre si. Tive que aprender a circular com
muito tato entre os grupos antagônicos em ambas as favelas, que também me disputavam
como recursos de poder. Aprendi a identificar os principais grupos em disputa, os líderes de
cada grupo, e após esse exercício confirmava com alguns agentes do Estado, especialmente da
UPP Social e do Territórios da Paz (que pareciam ter um conhecimento mais profundo a
respeito da dinâmica da comunidade) se eles identificavam os mesmos grupos que eu.
As disputas se revelavam de formas diversas. A concorrência talvez mais óbvia se
dava em torno da associação de moradores, um núcleo organizacional de destaque no
território de favelas. Em ambas as favelas pude identificar grupos de oposição à associação
em vigência, que faziam planos e traçavam estratégias para ganhar o poder nas próximas
eleições. Estes grupos também disputavam os recursos do Estado investidos nas favelas, e
ouvi várias acusações de “roubos” de projetos, de ideias, ou disputas por materiais. Em
ocasião em que os moradores foram forçados a montar conjuntamente um “projetão” para
angariar um recurso oferecido pelo BNDES, tais disputas tornaram-se ainda mais evidentes.
Os moradores se recusavam a “colocar o seu projeto na mesa” para juntar com os demais,
porque acreditavam que suas ideias seriam roubadas. E as reuniões para a construção deste
projeto, as quais eu acompanhei desde o início da minha pesquisa, eram ambientes de disputas
108
muito mais do que de consenso, o que aumentou ainda mais a dificuldade de se chegar a um
projeto final.
Também pude observar, ao longo de minha pesquisa de campo, inúmeras disputas
entre moradores em torno da posse de espaço na favela, como um recurso, ou um capital, nas
palavras de Bourdieu, importante para defini-los enquanto parte do campo. Até hoje me
recordo com detalhes da primeira reunião entre UPP e moradores que participei na favela da
zona Sul. Quando o comandante abriu a discussão para ouvir as queixas da comunidade, a
reunião passou a girar em torno da temática do espaço, e diversos moradores questionavam
como deveriam fazer para conseguir espaço, fosse para projetos socais ou para moradias, e
outros reclamavam de invasões e discutiam formas de retomar um espaço que antes era seu.
Uma moradora contou, por exemplo, que o espaço da rádio comunitária que ela comandava
havia sido cedido, pela prefeitura e pelo presidente da associação, para uma família que
perdeu a sua casa em um desabamento na favela. Queixou-se de estar sendo impedida de dar
continuidade às atividades da rádio, porque a família havia ocupado o local, e brincou que
eles já tiveram três filhos desde que se mudaram para lá. Outro morador, também brincando,
sugeriu que lhes dessem uma televisão, para evitar o aumento da família e a ocupação
permanente do espaço.
De forma ainda mais surpreendente, ouvi sérias discussões entre moradores, em ambas
as favelas, por terem sido acusados de não serem moradores da favela. Na favela da zona
Norte, em ocasião da festa de comemoração do aniversário da comunidade, duas senhoras
discutiram fervorosamente porque uma havia acusado a outra de ser moradora do asfalto e de,
portanto, não poder dar palpite a respeito da organização da festa. A discussão terminou em
choro e em gritos da segunda moradora, argumentando que embora ela morasse na parte baixa
da favela, ali ainda era favela. Já na favela da zona Sul, em algumas reuniões comunitárias, do
PAC ou da UPP, moradores foram acusados de não ter mais direito a voz, porque, afinal,
haviam se mudado para fora da favela. Estas acusações também terminavam em intensas
discussões.
Dentro das favelas pesquisadas havia, ainda, divisões territoriais que também geravam
disputas. Alvito (2006) refere-se a estas divisões como microáreas da favela, e mostra o apego
dos moradores a suas localidades de origem, e a competição entre elas. Indo ao encontro do
autor, também pude observar nas favelas subdivisões internas, e percebi como estas
subdivisões também impunham competições, tendo em vista que cada localidade buscava
atrair recursos para si, por meio de suas “lutas”. Esta temática será explorada em mais
109
detalhes em capítulo posterior. Mas cabe aqui ressaltar que a subdivisão territorial também é
marca das disputas internas às favelas, reforçando a possibilidade de pensá-las como campos
de poder.
As disputas também se davam entre favelas. Como os recursos fornecidos pelo Estado
eram escassos, as favelas precisavam lutar entre elas. Tive oportunidade de participar de
algumas reuniões que contavam com a presença de representantes de diferentes favelas.
Nestas, percebi um discurso de competição voltado para atração de recursos públicos, e para
queixas de que algumas favelas eram privilegiadas em detrimento de outras. Os moradores
brincavam, inclusive, que tinham que fazer mais coisas para chamar atenção em suas favelas,
para sair na mídia e, consequentemente, ganhar mais atenção do Estado. A fala de uma
representante do Territórios da Paz, ao me explicar porque ela resolveu criar reuniões
conjuntas para promover trocas entre diferentes favelas, revela o reconhecimento desta
competição entre favelas:
Quando eu comecei, eu comecei muito por conta disso. “Nós somos a melhor favela, aqui
ninguém entra, a gente é foda, a gente isso, a gente aquilo”. Eu falava assim: “[Rodolfo],
por que vocês são a melhor favela?” “Porque a gente arrasa numa reunião, a gente pode
chegar a uma Casa Civil, porque...”. “Pô”, eu falei “vem cá, tu conhece as lideranças do
Borel? Você conhece as lideranças lá do Leme? Você tem noção, [Rodolfo], do poder de
articulação?” “Ah, duvido”. “Então tá. Peraí, peraí que eu vou te convidar para você
conhecer”.
Mas como campos, as favelas também possuem relações de cooperação. As “lutas”
eram marcadas por criação de parceria entre os moradores. Era apenas por meio destas
coalizões ou relações de cooperação entre eles que era possível a realização de mutirões, a
criação de algum tipo de organização para suprir uma demanda da comunidade a qual o
Estado não consegue atender, ou para a cobrança de algumas demandas. As relações de
cooperação também se davam entre favelas, e era muito comum que as lideranças
comunitárias das favelas se conhecessem e estabelecessem contato, para troca de informações,
ou até mesmo parcerias diretas para realização de alguma ação conjunta.
Mas como todo campo, também nas favelas os agentes ocupavam posições, e era
possível perceber que alguns aproximavam-se mais da posição de incumbentes do campo, e
outros da posição de desafiadores. A expressão “donos do morro”, usada pelos moradores
para assim se referir ao chefe do tráfico daquela favela, é bastante simbólica da posição de
dominantes ou incumbentes ocupada pelos traficantes nos espaços das favelas. Estes são
designados como os donos do recurso capaz de definir um agente como parte do campo: o
espaço físico da favela. E o fato de os moradores se guiarem por uma “lei do tráfico”,
110
conforme será discutido no próximo capítulo, também revela a posição de domínio destes
agentes. Para além do tráfico, também é comum a identificação dentro das favelas de agentes
intitulados “lideranças comunitárias”, em geral reconhecidas por todos como tal. O termo
“liderança” também é revelador de outros agentes que se aproximam mais desta posição de
incumbentes e, consequentemente, de uma desigualdade de poder dentro do campo da favela.
Também em ocasião da construção do “projetão” para angariar recursos do BNDES, em meio
aos conflitos, as posições de dominância revelaram-se. Em uma das favelas, por exemplo,
uma organização de muito poder, escolheu quais seriam os moradores que poderiam participar
com os seus projetos do “projetão” maior. Aqueles que ficaram de fora, foram procurar se
inserir no projeto da favela vizinha, pois aquela organização ditou que assim seria. Os agentes
do Estado reconhecem o domínio das “lideranças comunitárias” e precisam aprender a lidar
com elas para a realização de seu trabalho:
Porque também tem isso, né, toda liderança fala por um grupo de pessoas. Então ela tende a
centralizar que esse grupo de pessoas seja representado e que se fala com esse grupo de
pessoas. Também não gosta muito que você acesse pessoas que não são representadas por
eles, entendeu. Até porque isso poderia enfraquecê-los, de certa forma (Representante do
Territórios da Paz 3, Favela da zona Norte)
Optei por tratar aqui também a favela enquanto um campo diante de algumas
evidências empíricas que me aproximaram do conceito: como todos os campos, as favelas
parecem possuir uma lógica própria, a qual aqui denominei de lógica de “lutas”, marcada pela
informalidade; relações de disputas e cooperações parecem marcar o espaço das favelas e a
relação entre favelas; os agentes que disputam parecem assumir relações assimétricas, nas
quais uns (como traficantes ou lideranças comunitárias) possuem mais poder do que outros.
A discussão aqui empreendida e a forma como parti dos dados para me aproximar do
conceito de campo das favelas são sintetizados na Figura 3 a seguir:
111
Campo das Favelas
Lógica de “Lutas”
Disputas e Cooperações
Posições dos agentes do campo
- Os traficantes como os “donos do morro”;
- As lideranças comunitárias.
- Disputas entre grupos antagônicos de moradores;
- Disputas entre microáreas das favelas;
- Disputas entre favelas;- Cooperação entre moradores;- Cooperação entre favelas.
- “lutas” dos moradores para atrair ações do Estado;
- “lutas” dos moradores para fazer por eles mesmos o que o Estado não consegue fazer.
Figura 3. Campo das favelas
4.5 Conclusão
O presente capítulo teve por objetivo demonstrar como cheguei ao conceito de campo
para retratar teoricamente tanto Estado quanto favelas. Procurei mostrar, nesse sentido, que a
observação empírica de que, tanto Estado quanto favela, eram marcados por relações de
disputas e cooperações, que se davam de forma assimétrica, expressando relações de poder, e
que ambos eram guiados por uma lógica própria de funcionamento, ajudou-me a corroborar a
minha crença inicial de que eu estava analisando campos de poder.
No campo burocrático do Estado, além das disputas e cooperações entre agentes, pude
observar uma lógica burocrática, expressa por regras e normas, formalismos, impessoalidade
e meritocracia. Além disso, também revelou-se em meus dados uma estreita relação entre o
campo burocrático e o campo político, e uma mútua influência entre eles, com efeitos diretos
para ação dos agentes do campo burocrático nas favelas.
De forma mais inesperada, pude observar que também as favelas podem ser
aproximadas do conceito de campo, tendo em vista que estas também são marcadas por
disputas e cooperações, e por uma lógica própria, a qual aqui denominei de lógica de “lutas”.
A informalidade, que possibilita as “lutas”, leva a uma agilidade e funcionalidade dos agentes
da favela que se apresenta de forma superior aos agentes do Estado.
112
A compreensão da favela enquanto um campo ajuda a elucidar a análise empírica na
medida que nos leva a compreender a relação entre Estado e favela como uma relação entre
dois campos de poder, com lógicas e dinâmicas distintas, que quando se encontram produzem
efeitos importantes, distintos dos efeitos das ações do Estado em outra região qualquer da
cidade. O conceito de campo, além de representar teoricamente as redes de relações
observadas tanto no que diz respeito à favela quanto no que diz respeito ao Estado, serviu para
elucidar as particularidades da relação que se estabelece entre eles. É nesse sentido que
tratarei a partir daqui a relação entre o campo burocrático do Estado e o espaço social de
favelas, a partir da perspectiva de que a produção deste espaço se dá em meio a um choque
entre campos com lógicas distintas.
113
5 O CAMPO BUROCRÁTICO DO ESTADO EM AÇÃO NAS FAVELAS: AS LÓGICAS EM DISPUTA E O CAPITAL ESPACIAL
Maio de 2005. Cheguei à favela de Bela Vista mais tarde do que o usual; eram cerca de
duas horas da tarde. Após estacionar no pé do morro, contemplei a possibilidade de subir de
Kombi. Mas, além de ter perdido a hora do rush das crianças voltando do turno matutino da
escola – o que implicaria uma longa espera para a Kombi encher – gostava mesmo de subir
a pé. Tomei o caminho do principal beco de acesso à Bela Vista. Este conduz o pedestre por
um caminho tortuoso que desemboca na única rua da favela. Nessa junção, lancei (como
sempre fazia) um olhar discreto para a “boca”. Como era de se esperar a essa hora do dia,
os seis ou sete enormes fuzis (além de algumas pistolas) ostensivamente à vista
contrastavam com o semblante entediado dos jovens que os seguravam. Aglomerados em
torno de um banco de concreto à sombra de uma amendoeira, jogavam conversa fora;
relaxados, fumavam um enorme baseado.
Algo parecia fora do lugar, mas eu não identificava de imediato a fonte do meu
estranhamento. Um segundo olhar, agora menos discreto, revelou o que me inquietava:
cerca de três metros dos jovens com suas armas, havia uma caminhonete da Light – a
empresa provedora de eletricidade do Rio de Janeiro. Pouco acima da “boca”, um técnico
da empresa, amarrado ao poste, distraidamente consertava os estragos do tiroteio da noite
anterior. Ele parecia tão indiferente aos jovens armados quanto estes à sua presença
(CAVALCANTI, 2009, p. 70).
Li e reli muitas vezes a introdução do texto da Mariana Cavalcanti. Repetia a leitura
não só porque me emocionava, mas também porque aquela cena não me era nada familiar.
Sabia que nas favelas pelas quais eu circulava, agora apelidadas de favelas “pacificadas”, a
situação narrada nunca seria vista. A cena voltou a se tornar uma impossibilidade.
Foi anterior à leitura deste artigo que vi cair por terra mais um dos meus falsos
pressupostos: a máxima de que não existia Estado ou serviços públicos nas favelas antes da
entrada das UPPs. Discussões com pesquisadores de outras áreas, depoimentos acalorados de
pessoas que agiam como representantes do Estado em favelas “não pacificadas”, narrativas
dos moradores de favelas, que lembravam do governo Brizola com paixão, e leituras de livros
e artigos que retratavam períodos anteriores às UPPs, me convenceram, por definitivo, de que
a UPP não “abriu as portas” da favela para o Estado pela primeira vez na história. Mas a
desconstrução dessa crença deixou sem resposta uma pergunta que me inquietava: afinal, o
que mudou na relação entre Estado e favela com o programa das UPPs?
Embora a presença de representantes do Estado nas favelas não tenha sido inaugurada
com as UPPs, os moradores sempre se referiam a um período anterior e posterior à entrada do
114
programa nas favelas. Em ambas as favelas, os moradores pareciam assumir como um marco
histórico ou um “divisor de águas” na história das favelas a instalação da UPP.
Em conversas informais com outros pesquisadores, argumentava-se que a política de
“pacificação” apenas intensificou a presença do Estado em favelas. Mas cada vez que eu
voltava ao artigo da Mariana, ficava menos convencida desta explicação. O que eu via nas
favelas não eram cenas de indiferença mútua entre Estado e tráfico que se repetiam com mais
frequência. As relações se complexificaram, e eu não seria capaz de sintetizar em uma ou
duas cenas a relação entre Estado e tráfico que eu via na favela “pacificada”.
Guiada por estas inquietações, fui conduzida a primeira pergunta de pesquisa,
necessária para que eu alcançasse o meu objetivo geral de pesquisa: como os agentes do
campo burocrático do Estado se fazem presentes no espaço social de favelas, no contexto da
“pacificação”?
Parto de uma contextualização da relação entre os agentes do campo burocrático do
Estado e as favelas, em um período anterior às UPPs. Para isso, baseio-me, principalmente,
em pesquisas anteriores realizadas neste período pré-UPP, e na fala dos moradores, que
constantemente comparavam o “antes” e o “depois” da presença das UPPs. Em seguida,
analiso as estratégias argumentativas de legitimação utilizadas pelos agentes e suas lógicas
institucionais, comparando-os com base em características que os distinguem. Para isso,
selecionei falas gravadas e transcritas em entrevistas e reuniões referentes aos seguintes
agentes do campo burocrático do Estado: UPP, PAC, UPP Social, Territórios da Paz e CRAS.
Estes programas foram selecionados como foco de análise por terem sido os programas que se
mostraram mais presentes e com os quais tive mais interação e, portanto, a respeito dos quais
eu possuía mais dados. As falas selecionadas diziam respeito aos argumentos de persuasão,
tendo em vista a legitimação dos programas, apresentados pelos agentes. Estas falas foram
analisadas por meio de análise retórica, complementada pela análise argumentativa, conforme
descrito no método de pesquisa.
Por fim, apresento uma discussão a respeito das disputas pelas espécies de capital
valorizadas no campo burocrático do Estado em questão. Para tal, pautei-me nos dados
referentes a observação e entrevistas com agentes do Estado e com moradores, que foram
analisados seguindo a perspectiva da teoria fundamentada, conforme descrita por Strauss e
Corbin (2008).
115
5.1 Da “Época dos Meninos” a “Depois das UPPs”
Não obstante as minhas tentativas iniciais de escapar da minha tendência a dar
centralidade às UPPs na análise do campo burocrático do Estado nas favelas - principalmente
porque acreditava que esta minha tendência referia-se a uma forte influência do discurso
midiático-, os moradores colocavam e recolocavam as UPPs no centro das minhas análises.
Quando questionados a respeito das ações de representantes do Estado ou órgãos públicos nas
favelas, os moradores nunca deixaram de mencionar as UPPs em primeiro lugar, e muitas
vezes suas falas restringiam-se a elas. E ao me narrar o histórico de ações do Estado nas
favelas, as UPPs eram novamente figura de destaque: apareciam como um “divisor de águas”,
falava-se em um “antes” e em um “depois” das UPPs: “É um marco, né. A pré-pacificação e a
pós-pacificação” (Representante da UPP Social 1, Geral).
Pode-se considerar que as favelas, conforme retratadas aqui, configuraram-se
historicamente como espaços às margens do Estado. Das e Poole (2004) ao apresentarem a
sua noção de “margens do Estado”, lembram que hoje existem lugares que estão sempre às
margens do que é assumido de forma inquestionável como território sob controle do Estado e
no qual ele tem legitimidade. Uma das possíveis formas de se compreender as margens do
Estado discutidas pelas autoras é pensá-las como periferias, como lugares naturais de pessoas
consideradas insuficientemente socializadas na lei, ou como espaços onde o Estado não tem
conseguido instaurar sua ordem, o exercício da sua autoridade. Asad (2004) lembra que as
margens do Estado estão onde está a incerteza perversa da lei e na arbitrariedade da
autoridade. Nesses espaços, o Estado “is constantly refounding its mode of order and
lawmaking” 16(DAS e POOLE, 2004, p. 8).
As margens do Estado, segundo Nelson (2004), costumam ser retratadas como locais
que ainda não foram mapeados e compreendidos, e por isso são pensados “more through myth
and stereotype than accurate information, full of often contradictory figures resisting state
rationality”17 (NELSON, 2004, p. 126). As pessoas não têm sobrenomes, os impostos não são
formalmente coletados, e os habitantes não são considerados dignos de confiança (NELSON,
2004, p. 126).
Mas isto não significa que todos os tipos de margens sejam homogêneos ou inertes
(DAS E POOLE, 2004). Ao contrário, Das e Poole (2004) utilizam o caráter indeterminado
16 Tradução livre: está constantemente refundando seus modos de ordem e de lesgislador 17 Tradução livre: mais por meio do mito e do estereótipo do que por meio de informações acuradas, cheio de frequentes figuras contraditórias que resistem à racionalidade do Estado
116
das margens para desconstruir a ideia de que o Estado é sólido. Segundo Asad (2004), as
margens fazem mostrar como o poder do Estado é sempre instável, e lembra que “the state`s
margins can be viewed differently precisely because ‘the state’ it self is not a fixed object18”
(ASAD, 2004, p. 279).
O momento histórico anterior às UPPs parecia refletir bem a noção de “margens do
Estado” explicitada por Das e Poole (2004), e não era à toa que os moradores referiam-se a
este período como “a época dos meninos”, demonstrando que até então quem dominava eram
os traficantes, chamados carinhosamente de “meninos”, ilustrando a intrínseca relação com a
lógica distinta da favela enquanto campo. As falas comparativas relatavam-me um período
marcado pelo domínio do tráfico nos espaços das favelas, e referiam-se às “leis do tráfico”
para me explicar como funcionava a favela. Em sua pesquisa em favelas sem UPPs,
dominadas pelo tráfico, Grillo (2013) mostrou como o tráfico mimetiza o Estado e reivindica
o uso legítimo da violência dentro das favelas. A autora argumenta que embora esta
“mimesis” da forma-Estado leve à noção de “poder paralelo”, com frequência evocada para
retratar o tráfico como um Estado dentro do Estado, a relação entre tráfico e Estado se dá não
de forma “paralela”, mas sim “tangencial”, tendo em vista que o tráfico, ao mesmo tempo que
copia e tende a se opor ao Estado, também se relaciona com ele em muitas situações, como no
caso dos “arregos”19, por exemplo.
Embora não exatamente como um “poder paralelo”, a partir de sua “mimesis” do
Estado, o tráfico possui algumas “recomendações gerais de conduta” (GRILLO, 2013, p.
109), que podem ser reconhecidas nas favelas por meio do uso de expressões como “lei do
tráfico” ou “lei do morro” pelos seus habitantes. Grillo (2013) mostra que embora os
moradores refiram-se a estas “recomendações” como “leis do tráfico”, estas são de baixa
previsibilidade, são um controle social arbitrário, e por isso se distanciam das “leis do
Estado”. Conforme mostrou a autora, não há um conjunto claro de regras a serem seguidas ou
previsões de sanções específicas para cada tipo de infração. Entretanto, ainda assim, os
moradores referem-se a elas como leis ditadas pelo tráfico, que embora não muito específicas,
como as leis do Estado, mesmo de forma arbitrária são usadas para guiar as ações dos
moradores. Ao usar “lei do tráfico” ou “lei do morro” como sinônimos, revelam o domínio do
tráfico sobre o morro.
18 Tradução livre: as margens do Estado podem ser vistas de formas diferentes precisamente porque “o Estado” ele mesmo não é um objeto fixo 19 Arrego é a forma como moradores e policiais referem-se aos subornos, uma quantia de dinheiro que os traficantes pagam aos policiais para evitar que estes interferiram em suas atividades.
117
Uma das mais conhecidas “leis do tráfico”, ditadas na “época dos meninos”, dizia
respeito à divisão territorial, por líderes de facções rivais, que impediam a circulação dos
moradores em comunidades rivais, onde eram chamados de “alemãos”. Relacionamentos
amorosos com pessoas da facção rival também eram proibidos e sujeitos a punições. No
mesmo sentido, os moradores relatavam proibições em termos das cores das roupas. Em
comunidades dominadas por facções rivais ao Comando Vermelho, por exemplo, era proibido
a circulação com roupas da cor vermelha. Havia, ainda, segundo o relato dos moradores, uma
cobrança dos traficantes pelos serviços de TV à cabo e internet, por exemplo. Além disso, o
tráfico cobrava pela emissão de documentos, que só eram válidos dentro da dinâmica da
favela. Conforme me explicou uma moradora:
E tinha uma cobrança de carteirinha de dinheiro ela fazia, coisa assim e os moradores eram
obrigados a participar daquilo. Se você vai fazer um documento era um documento de 500
reais para cima. Uma folha, por exemplo, se você quer vender tua casa, tua casa não é
registrada na prefeitura, que que eles faziam? Aí a Associação vem e te dá um papel
dizendo que você vendeu aquela casa, 500 reais (Morador 28, favela da zona Norte).
As “leis do tráfico” também se desenrolavam na realização de “tribunais do tráfico”
como forma de resolução de conflitos nas favelas, ilustrando mais uma transferência
metafórica do campo de Estado para o campo da favela. Grillo (2013, p. 104) explica que a
expressão “tribunais do tráfico” é utilizada pela imprensa carioca para designar “as práticas de
justiçamento ilegal cometidas por traficantes”. Para a autora este termo vai ao encontro da
ideia de que o tráfico configura-se enquanto um poder paralelo, “afinal, nada mais coerente do
que um Estado ter os seus tribunais” (GRILLO, 2013, p. 104). Grillo (2013) argumenta,
entretanto, que embora existam realmente processos de resolução de litígios, organizados por
“bandidos”, que com muita frequência envolvem o uso da força, não se tratam propriamente
de “tribunais do tráfico”, tendo em vista que o formato de tribunal é, na visão da autora,
inadequado para expressar os conflitos que são resolvidos entre os “bandidos”, onde não há
leis, juízes, ou tribunais, ou uma sequência clara de acusação, defesa, sentença e execução da
pena. Grillo (2013, p. 104) assim explica o seu funcionamento: conflitos de diferentes
naturezas, envolvendo “bandidos” ou “trabalhadores”, são encaminhados ao “dono do morro”
e desencadeiam os “desenrolos”, ou processos coletivos de mediação de disputas, por meio de
procedimentos orais, que visam o encontro de uma solução, “amparando-se no poder do
tráfico como instância mediadora”.
Embora entenda-se aqui a argumentação da autora de que estes processos de
“desenrolo” não são propriamente tribunais, e não possam ser retratados por uma única
118
imagem simplificada, continuarei usando aqui a expressão “tribunal do tráfico” para me
referir a esta forma de “solução de conflitos”, tendo em vista que este termo foi utilizado
pelos moradores ao longo de minha pesquisa de campo, para me relatar a maneira como os
conflitos eram “desenrolados” com o “dono do morro”. Os moradores referiam-se aos
“tribunais do tráfico” para me explicar que “na época dos meninos” os traficantes interferiam
na resolução de conflitos, ainda que estas fossem brigas entre vizinhos ou entre marido e
mulher, por meio dos famosos “desenrolos”, conforme descritos por Grillo (2013): “tudo o
que acontecia, se fosse uma briga dentro de casa eles se metiam, eles que julgavam, eles que
achavam que tinham que ser feito” (Morador 22, Favela da zona Norte).
Embora as “leis do tráfico” e os seus “tribunais” não sigam os padrões exatos das leis
do Estado e dos tribunais do Estado, de forma que o tráfico não possa ser pensado exatamente
como um “poder paralelo”, conforme mostrou Grillo (2013), os moradores atribuíam aos
traficantes um poder semelhante ao do Estado, e os colocavam neste lugar do Estado,
conforme revela o uso de vocabulários semelhantes para se referir a um e a outro. Os
moradores reconheciam que legitimavam este papel do tráfico: “a própria comunidade em vez
de procurar o poder público, procurava o tráfico” (Morador 12, Favela da zona Norte).
Como o tráfico parecia ocupar um lugar semelhante ao do Estado dentro da favela,
embora não de forma paralela, mas tangencial, com o suporte dos moradores, o próprio
Estado, quando se voltava para a realização de qualquer ação dentro das favelas, fazia-o de
forma subordinada ao tráfico. De acordo com os relatos dos moradores, o Estado parecia agir
nas favelas subordinado à “lei do tráfico”: “O Estado sempre pediu licença pro tráfico pra
poder entrar aqui. Qualquer obra que o Estado fosse fazer aqui, que a prefeitura fosse fazer
aqui, sempre pediu licença ao tráfico” (Morador 11, Favela da zona Norte). E a subordinação
do Estado ao tráfico era tanta, que este exigia a prestação de certos serviços, de forma que em
alguns casos a comunidade era melhor atendida naquela época do que o que é hoje:
E, o mais engraçado, é que antigamente com o tráfico, se a gente tivesse um problema... A
bomba queimou. O traficante chamava o responsável da CEDAE aqui, [do Rocha], a
bomba no dia seguinte tava no lugar. Hoje se a bomba queimar é uma dificuldade danada.
(...) O serviço do Estado na época do tráfico funcionava melhor do que funciona hoje. Por
incrível que pareça. Tá? Isso eu to te falando CEDAE, os serviços prestados pelo Estado. E
hoje tá complicado (Morador 11, Favela da zona Norte).
Embora a favela funcionasse de acordo com as “leis do tráfico”, os moradores me
relatavam a presença de alguns agentes do Estado na favela já neste período anterior às UPPs.
119
Agentes como a Comlurb, o PAC ou a Light já atuavam nas favelas, porém de forma bastante
diferente do que o que eu pude presenciar, no período “depois das UPPs”.
A Comlurb, por exemplo, agia nas favelas por meio da figura do gari comunitário: “a
gente tinha a Comlurb, os garis comunitários, né? Que aí era da própria comunidade. Então os
garis pegavam, recolhiam o lixo, faziam; a comunidade ficou bem mais limpa” (Morador 6,
Favela da zona Norte). Entretanto, em concomitância com o período de ingresso das UPPs nas
favelas, o projeto dos garis comunitário foi encerrado e estes foram substituídos por
funcionários devidamente concursados da Comlurb. Os representantes da Comlurb explicam
que os garis comunitários eram pessoas da comunidade selecionadas pela própria associação
de moradores, e insinuam que havia uma forte interferência do tráfico nesta seleção. Há uns
seis anos atrás, houve uma intervenção do Ministério Público nas situações dos garis
comunitários, que passou a exigir que apenas trabalhassem em nome da Comlurb,
funcionários que tivessem sido aprovados em concurso público. Um representante da
Comlurb, em entrevista, revelou de forma direta a interferência do tráfico em seu trabalho, em
período anterior às UPPs:
Até porque os garis comunitários, em algumas comunidades, não trabalhavam. Se tivesse
vinte, só trabalhavam cinco, seis. Porque a maioria era tudo parente de... Do poder paralelo.
Então, a gente se sujeitava a muita coisa antes disso (Representante da Comlurb 1, Favela
da zona Norte).
E completa: “Eu já tive reunião com traficantes pra pedir que os garis trabalhassem,
funcionassem. Na época do Borel já tive lá quase meia noite duas vezes pra conversar com
traficante pra pedir a ele pra fazer com que os garis trabalhassem” (Representante da Comlurb
1, Favela da zona Norte).
O PAC também já estava inserido em algumas favelas antes do processo de
“pacificação”, e algumas mudanças em sua forma de funcionamento foram relatadas por seus
representantes. A entrada do PAC na favela da zona Sul, naquele momento dominada pelo
tráfico de drogas, se deu por meio de adaptações às leis daqueles que naquele período eram os
“donos do morro”. Conforme explica um representante do PAC, para o ingresso do programa
houve negociações diretas com o tráfico de drogas:
Eu ouvia, o seguinte, eu ouvi lá atrás quando a [empresa de construção] entrou que eu não
era fiscal da obra, não estava envolvido com o PAC nem com nada, estava fazendo o tal
levantamento do CIEP, que a firma exigiu 30% do valor da obra para poder deixar a
empresa entrar lá no morro para poder trabalhar. Aí não tem condição e tal e não sei o que,
não sei o que foi conversado, mas de repente a obra começou a trabalhar e até então a
comunidade não era pacificada, mas logo um tempo depois, ocorreu a pacificação e aí o
120
negócio andou direitinho. O que foi conversado eu não sei, não tenho a menor ideia, deve
ter rolado alguma coisa (Representante do PAC 3, Favela da zona Sul).
A mesma informação a respeito de negociações entre o PAC e o tráfico é apontada
pelos moradores: “O PAC chegou, teve que sentar com os meninos, entende, teve que dar
uma parcela do quinhão para eles” (Morador 15, Favela da zona Sul).
Uma vez dentro da favela, ainda sem UPP, os funcionários do PAC trabalhavam “de
acordo com as leis do morro” (Representante do PAC 3, Favela da zona Sul). Apenas podiam
circular acompanhados de moradores, usavam uniformes e crachás para facilitar a
identificação, tinham horários restritos de atuação e a circulação pelo morro era controlada
pelo tráfico. Assim narraram os funcionários que acompanharam o programa desde o início.
A própria Light que, hoje, conseguiu regularizar boa parte dos gatos das favelas
“pacificadas”, antes tinha que se submeter “às leis do morro”. De acordo com os moradores, a
Light, muitas vezes, era obrigada a obedecer ao tráfico, e fornecer energia mesmo a famílias
que não pagavam por ela:
Porque antes, por exemplo, a Light, quando era gato, às vezes a família assim, a pessoa não
tinha nem o que comer, não pagava luz. Aí a Light subia para cortar. Quando eles
cortavam, a bandidagem esperava eles, e aí falava assim ‘ó, volta e vai ligar a luz, porque
aquela senhora não tem nem o que comer com os filhos dela’. Mas eu achava isso certo,
sabe? Era, ‘você só sai daqui depois de você ligar a luz daquela senhora porque ela não tem
nem o que comer, muito menos dar de comer aos filhos. Ela não tem dinheiro para ficar
pagando luz’. Aí às vezes a pessoa não tinha nada, uma televisão, uma geladeira, a Light ia
lá cortar. E cortava mesmo. E a bandidagem mandava, aí eles voltavam, aí eles pararam de
entrar. Aí a Light começou a perder feio, né? (Morador 6, Favela da zona Norte).
Mais complexa era a relação da polícia com as favelas, que quando não se rendiam ao
tráfico por meio dos “arregos”, mantinham uma relação que se dava por meio das temidas
incursões policiais, sempre acompanhadas de trocas de tiros: “Agora em relação à polícia, eles
chegavam atirando, então tinha troca de tiro, era isso que é o problema, né?” (Morador 6,
Favela da zona Norte). Os policiais também lembravam desse passado em que a relação da
polícia com a favela se dava com base no combate: “Os policiais militares eles estavam
acostumados aqui quando a gente subia o morro era só tiro, porrada e bomba, era tiro para
tudo quanto é lado” (Representante da UPP 8, Favela da zona Sul).
Como esta forma de intervenção policial claramente não era bem sucedida, a Polícia
Militar desenvolveu o GPAE, que teve sua primeira unidade inaugurada no ano 2000. Embora
parecesse se basear em uma lógica semelhante à das UPPs, que partia da instalação de uma
unidade no interior das favelas, como forma de retomar o território, o GPAE não contou com
121
o grande investimento do Estado com que hoje contam as UPPs. As comparações entre o
GPAE e as UPPs são constantes, tanto entre moradores quanto entre policiais, mas é unânime
a crença de que o GPAE não foi bem sucedido, e muitos temem que as UPPs “terminem como
o GPAE”. A falta de credibilidade do programa é evidenciada na fala dos moradores:
E o GEPAE e nada era a mesma coisa. Os cara ficavam dentro da casinhola deles, lá, os
meninos falavam vamos, fica aí, não precisa acontecer nada. Os meninos passava armado,
na casinhola, dentro da casinhola mesmo, na casinhola deles e fazia o que bem entendiam,
sabe, matavam, queimavam, esquartejavam, faziam o que bem entendia, então, a polícia aí
não fazia nada (Morador 15, Favela da zona Sul).
“A época dos meninos” descrita pelos moradores, e reforçada por pesquisas anteriores,
é caracterizado pelo monopólio do uso legítimo da violência do tráfico de drogas, que, muito
além de seu poder armado, realizava ações em prol de sua legitimidade, como a compra de
gás ou de remédios para moradores que estivessem precisando ou a distribuição de brinquedos
às crianças na época do natal. O vocabulário usado pelos moradores para se referir ao tráfico e
às suas ações também são reveladores dessa legitimidade. A própria expressão “meninos”
usada para se referir a eles revela algum afeto dos moradores aos traficantes, afeto este
reforçado por comentários que, diversas vezes, acompanhavam a expressão: os moradores
costumavam lembrar que viram os “meninos” crescer, que eles eram “cria da comunidade”, e
que, apesar de tudo, eles os respeitavam – “No morro eles respeitavam o morador” (Morador
17, Favela da zona Norte). Além disso, muitos termos usados na sociedade em geral para
referir-se ao Estado enquanto detentor do monopólio da violência, eram utilizados nas favelas
para se referir ao tráfico, como as “leis do tráfico”, os “tribunais do tráfico”, que embora não
funcionassem exatamente da mesma forma que no Estado, eram tratados de forma similar
pelos moradores.
Nesse sentido, os agentes do campo burocrático do Estado presentes nas favelas neste
período eram incapazes de impor às favelas as leis do Estado, e eles mesmos precisavam agir
dentro das “leis do tráfico” para que tivessem a sua presença autorizada naquele território.
Ainda que alguns agentes do Estado já estivessem presentes na favela, elas ainda eram
espaços às margens do Estado, na medida em que o Estado não impunha a sua lei, mas, isto
sim, agia de acordo com as “leis do morro”.
Para compreender com mais clareza o que mudou, afinal, e por que as UPPs assumiam
este lugar central de “divisor de águas”, passei a ouvir com mais cuidado as falas que me
narravam a origem das UPPs. O programa havia sido criado com uma finalidade específica:
retomar o poder nos territórios de favelas, fortemente estimulado por “uma insatisfação do
122
Estado diante da impotência de não poder fazer nada dentro de determinadas áreas”
(Representante da UPP 4, Favela da zona Sul) ou, em outras palavras, resgatar o seu
monopólio do uso legítimo da violência num território, até então, fora do seu alcance real.
Como uma forma de minimização do domínio do tráfico sobre os territórios, e de
ignorar que exista a possibilidade de se criar uma lei alternativa à do Estado, os policiais
referiam-se às favelas no período anterior às UPPs como uma “terra sem leis”. Reforçavam
que, para instaurar a lei neste território, era preciso criar uma nova polícia, ou fazer com que
os moradores vissem a polícia de uma outra forma, tendo em vista que a polícia, em sua forma
de funcionamento anterior, usava de violência, sem nenhuma legitimidade. Não tinha o
monopólio do uso legítimo da violência dentro dos espaços de favelas, fazendo com que se
perdesse o poder simbólico da ação do Estado.
Como espaços às margens do Estado, que além de estarem às suas margens ainda
possuem novos “donos”, detentores do uso legítimo da violência, as favelas incomodam. Ao
narrar com orgulho a origem do programa, os policiais da UPP não hesitavam em descrever as
atrocidades praticadas pelos traficantes em períodos anteriores: o sangue derramado, as
cabeças raspadas, os tribunais que terminavam em morte – um cenário insustentável, que
aumentava a violência por toda a cidade, diante do qual era preciso reagir. E o programa das
UPPs vem, então, como a resposta inevitável: “Chegava num nível de organização que, pô.
Não dava, não dava mais!” (Representante da UPP 1, Favela da zona Sul). O tráfico expandia
seu domínio de forma cada vez mais organizada e mais “semelhante” à ação do próprio
Estado.
Às margens e geridas por outras regras, as favelas colocaram em xeque o poder do
Estado, ameaçam gerar uma crise de legitimidade, e é nesse sentido que se entende aqui que a
criação do programa das UPPs apresenta-se como uma “nova polícia” em busca do monopólio
do uso legítimo da violência nas favelas. Não basta usar “polícias de confronto”, como o
BOPE ou a PM dos batalhões, para subir os morros, atirar e matar, pois esta estratégia não
contribui para que o Estado recupere a sua legitimidade, resgatando seu poder simbólico. É
preciso criar uma “nova polícia”, que assim como o tráfico lance mão também de estratégias
“legitimadoras”, como ações sociais ou boas relações pessoais, pois o puro e simples uso da
força não traz legitimidade:
E o processo de pacificação, o projeto do governo é esta aproximação, eles querem que a
população veja a polícia de uma outra forma, se a gente chegar aqui e se eu passar por eles
e não der bom dia, eu não vou mudar nunca a imagem para eles, então eu penso desta
forma, porque a gente tem que começar a mudar sim, porque a gente sai daqui até ali
123
embaixo e já somos vistos de outro jeito. Mas aqui na comunidade eles ainda têm uma
imagem muito... (Representante da UPP 8, Favela da zona Sul).
Entretanto, não foram só as UPPs que surgiram neste período recente, e os programas
que as seguiram tiveram nelas sua motivação inicial. Em meu convívio nas favelas me foram
apontados, logo de início, dois principais programas que “acompanhavam” a UPP: a UPP
Social e o Territórios da Paz. Pude observar os dois programas em campo durante minha
trajetória de pesquisa, e do muito que aprendi sobre eles parte dizia respeito a suas condições
de programas quase gêmeos, separados ao nascer, que como os gêmeos que vemos por aí
tendiam sempre a reforçar suas diferenças, e a repetir incessantemente que não se tratavam da
mesma coisa. As diferenças foram notadas em minha pesquisa, conforme será discutido mais
adiante. Mas o que aqui importa é ressaltar que ambos nasceram como uma tentativa de suprir
as demandas sociais que a UPP não dava conta de atender, e evitar que as UPPs se tornassem
os novos “donos do morro”, monopolizando, mais uma vez, o poder na favela nas mãos de
apenas um. Conforme explica um dos envolvidos neste período inicial dos programas:
A proposta [da UPP Social] veio do Ricardo Henriques em 2010. Então ele chamou
literalmente todo o meio acadêmico, todo, todo, ele chamou todo mundo, literalmente, para
conversar, o meio acadêmico, os principais gestores de projetos sociais, foi todo mundo,
(...) até professores da UFRJ, todo mundo foi contribuindo para várias questões que ele foi
chamando para discutir, até que na época a gestora da Subsecretaria da Integração das
Políticas Sociais era a professora Silvia Ramos, e aí eles foram chamando mesmo. Fomos
conversar e pensar numa proposta de intervenção nos territórios pacificados que pudesse
prosseguir, levar o tal do social, que o Beltrame tanto insistia, né, para essas comunidades.
Mas por isso mesmo a sacação da UPP Social veio. O Beltrame falava tanto que a UPP ,
que a polícia entrou e faltava o social, que eles falaram ‘vamos tentar articular o social para
ele chegar junto’ (Representante do Territórios da Paz 2, Geral)
É nesse contexto que surge a UPP Social, inicialmente sob tutela da Secretaria
Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH). Com a transferência do
Ricardo Henriques, fundador do programa, para o Instituto Pereira Passos, na esfera
municipal, a UPP Social o acompanhou e ambos deixaram a SEASDH:
Na transição do primeiro para o segundo mandato há uma mudança na secretaria, (...), o
Ricardo da Secretaria, recebe o convite do prefeito e num diálogo também com o
governador para assumir a presidência do IPP e para que o programa passasse a ser
conduzido a partir do município (Representante da UPP Social 7, Geral).
Mas foi deixado um embrião na esfera estadual: o concurso para contratação de
funcionários para a UPP Social da SEASDH já estava sendo realizado, e os aprovados
aguardavam a sua convocação. Surge, então, como solução, um novo programa, denominado,
124
improvisadamente, de Territórios da Paz, que aproveitou os recursos deixados para trás pela
UPP Social. Esta situação me foi narrada diversas vezes pelos representantes dos dois
programas, em seu esforço para marcar a distinção e justificar possíveis confusões. A fala de
um representante do Territórios da Paz retrata o improviso desse período inicial do programa:
E aí quando o pessoal entrou, a primeira leva, assim você sabe o que que é não existir nada?
Não existir programa? Não existe superintendente? Primeira equipe que eram os primeiros
cinco primeiros colocados, e honestamente, (...), que eram os cinco primeiros gestores, que
eram pessoas competentíssimas, assim, sabe, se depararem com aquilo. Teve gente que saiu
do Rio Grande do Sul para vir trabalhar. Aí o pessoal ficou bem apavorado. Falou e agora,
o que que eu faço assim? Não tinha nada, o que que é, não tem chefe, que que eu faço?
Ninguém sabia o que fazer e ali, cara, às duras penas o programa começou a ser construído
por aquela equipe, iniciou. Até nome essa equipe criou e ali eles foram e aí veio a segunda
leva e aí veio uma galera, o programa foi ganhando corpo (Representante do Territórios da
Paz 1, Favela da zona Sul).
Guardadas as suas diferenças, os dois programas possuem em comum as suas
motivações iniciais. UPP Social e Territórios da Paz foram ambos criados como uma
consequência direta da criação das UPPs, e os próprios nomes expressam suas vinculações a
um processo de “pacificação” que estava em andamento: “É como se a UPP Social, pelo
menos na sua formulação inicial teórica, ela fosse responsável por consolidar o processo de
integração e de pacificação, compreendendo que pacificação não se faz só com a polícia”
(Representante da UPP Social 4, favela da zona Sul).
Mesmo os programas que não foram criados como consequência da criação das UPPs,
e que já atuavam, de uma forma ou outra, dentro dos territórios de favelas, sofreram, neste
momento, algumas transformações. O PAC passou a atuar de forma mais livre, sem a
obrigatoriedade do uso de crachás ou uniformes, com uma livre circulação pelo território; a
Comlurb inseriu nas favelas os seus próprios garis, concursados como os do asfalto; a Light
conseguiu regularizar boa parte dos “gatos”.
Os exemplos narrados reforçam a minha suspeita inicial. A mudança na relação entre
Estado e favela trazida pela criação das UPPs não pode ser resumida apenas a intensificação
da ação do Estado. Agora o Estado não só se faz mais presente, com a criação de novos
programas voltados para a favela “pacificada”, como também ele se faz presente de uma outra
maneira, seguindo as suas próprias leis, sem se sujeitar de forma completa às (antigas) “leis
do morro”.
Embora já existisse, na “época dos meninos”, agentes do campo burocrático do Estado
inseridos nas favelas, parece ser esta a primeira vez em que o Estado consegue se aproximar
125
de uma posição de dominante nestes territórios. A vida nas favelas com UPPs começa aos
poucos a se adaptar (embora de forma controversa, como será mostrado nos próximos
capítulos) às leis que o Estado impõe. E mesmo os agentes do Estado que já estavam na favela
em períodos anteriores podem agora atuar de uma outra maneira, pois as leis do Estado
começam a se sobrepor às “leis do tráfico”.
Embora não se pretenda encerrar aqui a resposta à minha inquietação inicial, um
importante motivo pelo qual a cena descrita pela Mariana Cavalcanti (2009) tenha se tornado,
novamente, uma impossibilidade, diz respeito ao fato de que agora a relação entre o campo
burocrático do Estado e os espaços das favelas não se trata mais de intervenções pontuais do
primeiro nos segundos, cuidadosas em respeitar e agir dentro das leis impostas pelo tráfico. A
indiferença não pode mais existir quando o Estado começa a ser bem sucedido em impor as
suas próprias leis. Em um esforço para replicar o exercício de transposição histórica que a
autora faz na introdução do seu artigo, trazendo a cena para 2013 poderíamos dizer que as
armas e o baseado estariam escondidos; os olhares de indiferença, agora, seriam mais atentos
à possível aproximação de alguma figura do Estado; se o fato se concretizasse, os meninos da
boca se espalhariam discretamente para que não fossem percebidos como tal. E, no fundo, o
representante estatal saberia, mas fingiria não ver, para não ter que admitir que suas leis não
estavam sendo cumpridas. Mas esta é apenas uma das muitas possibilidades que hoje se tem
para representar esta relação complexa. A indiferença, diante de leis que se chocam, não é
mais uma delas.
5.2 Entre Consensos e Discordâncias: as Lógicas por trás das Disputas no Campo Burocrático do Estado
O clima era de ansiedade e alegria entre algumas adolescentes da favela da zona Norte,
naquela segunda-feira à noite. Agora era oficial: teriam a sua sonhada festa de debutantes,
para comemorar os 15 anos que completavam naquele ano. A UPP local, em parceria com a
equipe do Territórios da Paz, estava organizando uma festa para todas as jovens de 15 anos
daquela favela que quisessem participar. Por se tratar de uma festa organizada pela UPP, não
foram muitas as famílias que aceitaram a oferta. Mas as poucas jovens (em torno de 10) que
compareceram à UPP naquela noite, para tratar dos preparativos da festa, exibiam em seus
semblantes grande felicidade. A ansiedade era tanta que não conseguiam aguardar o início
oficial da reunião: questionavam sobre a data e o local exatos da festa, sobre o número de
convidados que poderiam levar, onde conseguiriam seus vestidos, quais seriam os príncipes
que dançariam com elas – as perguntas não cessavam. Mas foi ao final da reunião, quando as
126
meninas já haviam ido embora, que uma pergunta que não poderia ser respondida ali veio à
tona, em uma conversa informal entre as representantes do Territórios da Paz e a policial
responsável pelas relações públicas da UPP (P5): o funk seria liberado na festa? As
funcionárias do Territórios da Paz se recusavam a aceitar que fariam uma festa para
adolescentes da favela e não tocariam o funk. A policial, por sua vez, parecia desconcertada.
Embora sua posição fosse declaradamente contrária à liberação do funk, explicou que a
decisão não conferia a ela, e se comprometeu a tentar convencer o comandante – entretanto,
confessou que esta era uma missão complicada.
Apesar de seus interesses particulares naquela festa de debutantes, os representantes de
ambos os programas tinham um ideal em comum: acreditavam que os moradores da favela
mereciam ter acesso às mesmas coisas que qualquer morador do asfalto, sem distinção. E
como adolescentes comuns, aquelas meninas tinham direito a sua tão sonhada festa de 15
anos. Entretanto, não concordavam em tudo, e a disputa em torno do funk foi apenas a
primeira.
Conforme lembrou Bourdieu (2014, p. 31), no campo do Estado, um campo de
disputas, existe ao menos um acordo a respeito do sentido do mundo social, e é este
“consenso fundamental sobre o sentido do mundo social que é a condição mesma dos
conflitos”. Entre os agentes do campo do Estado parece haver um consenso em relação ao que
os levou à favela: “integrar a favela à cidade” parece ser ideal inspirador de todas as ações.
“As favelas eu enxergo como uma ocupação que foi irregular mas que agora tem que
dar um jeito de tomar, tem que transformar em um bairro” (Representante da UPP 3, Favela
da zona Sul), afirmou um representante da UPP; “(...) todo mundo da UPP Social,
independente de ser a equipe de campo, se está aqui internamente ou em outros lugares,
entende o conceito de cidade integrada” (Representante da UPP Social 1, Geral), explicou
uma representante da UPP Social; “Tentar transformar isso aqui, essa comunidade, em, no
mais próximo do que a gente costuma mais chamar de um bairro” (Representante do PAC 2,
Favela da zona Sul), reforçou uma representante do PAC. Estes são apenas alguns exemplos.
A ideia de integrar, acabar com as diferenças entre morro e asfalto, estava presente, de uma
forma ou outra, no discurso de todos os agentes do Estado. Isto é, todos pareciam concordar
em termos da finalidade de resgate territorial da presença do Estado. A palavra de ordem
parecia ser “integração”. A respeito deste ideal, um representante da UPP Social explicou:
(...) mas então o que significa integração no final do dia? A gente está perseguindo o quê?
(...)se o objetivo é integrar o que você precisa conseguir é que cada um dos órgãos que
proveem serviços públicos no espaço da cidade, passem a fazer o que fazem hoje, da
127
mesma maneira também nessas comunidades e com o mesmo padrão (Representante UPP
Social 7, Geral).
Entretanto, nem todos os agentes parecem concordar com o sentido explicitado acima,
e menos ainda com os meios e objetivos específicos para alcança-lo. Guiados por este ideal,
os agentes do Estado foram atraídos à favela, e embora compartilhem ao menos a ideia de
“integração”, fizeram das favelas palcos de suas disputas. Se há no campo uma dinâmica
processual marcada pelos conflitos entre os agentes, isto se dá, pelo menos em parte, porque
há por trás de suas ações um conjunto de premissas que as governam e as moldam, que nem
sempre são compartilhadas por todos.
Para dar conta desses dados observados empiricamente, resgatou-se aqui a noção de
lógicas institucionais, compreendida como um conjunto de padrões históricos, construídos
socialmente, que incluem valores, crenças e pressupostos nos quais indivíduos e organizações
estão pautados para dar sentido às suas atividades diárias (THORNTON e OCASIO, 2008). A
noção de lógicas institucionais se desenvolveu a partir da teoria neoinstitucional, porém ela é
distinta desta teoria e não pode ser considerada uma extensão dela (THORNTON, OCASIO e
LOUNSBURY, 2012). Nesse sentido, ainda que aqui não se compartilhe de muitos
pressupostos da abordagem institucional, e nem se pretenda trabalhar dentro desta perspectiva
teórica, o conceito de lógicas institucionais mostrou-se de grande valia, quando agregado à
perspectiva teórica de Bourdieu, para uma melhor compreensão do conjunto de pressupostos,
valores e crenças por trás das ações dos agentes do campo. Segundo Thornton e Ocasio
(2008), os agentes sociais apoiam-se em suas compreensões a respeito da lógica institucional
em sua competição por poder e assim criam condições para a reprodução destas lógicas. As
lógicas possibilitam que os agentes deem sentido à ambiguidade do mundo, prescrevendo
suas ações (SUDDABY e GREENWOOD, 2005). Embora as lógicas institucionais possam
ser trabalhadas em diferentes níveis (campo, organizações, mercados,...) (THORNTON e
OCASIO, 2008), aqui buscarei ilustrar as diferentes lógicas institucionais que competem
dentro do campo burocrático do Estado em ação nas favelas, visando demonstrar que a
disputa que marca a dinâmica do campo se dá em torno de lógicas institucionais distintas, que
posicionam os agentes do campo em ação.
Para melhor demonstrar este ponto, tratarei aqui dos agentes com os quais tive maior
contato em minha pesquisa de campo, devido a sua presença mais frequente na favela e
interação mais constante com os moradores: aqueles que compõem os campos da UPP, da
UPP Social, do Territórios da Paz, do PAC e do CRAS.
128
Para acessar o conjunto de premissas por trás das ações dos agentes, ao qual aqui
também me refiro como posicionamentos dos agentes, investiguei mais a fundo aquilo que
diferencia cada um deles em termos de: o nível governamental ao qual o agente está vinculado
(lócus), o que busca cada agente (seus objetivos), os meios que eles utilizam para alcançar os
seus objetivos (ações), e as suas estratégias de legitimação que revelam as premissas por trás
de seus argumentos (esta última por meio de uma análise retórica). Vale ressaltar que o
conceito de lógicas institucionais busca tipificar a partir de múltiplas dimensões de análise os
posicionamentos de agentes sociais e embora influenciem a ação individual, não a
determinam. Por isto, no próximo capitulo, introduzirei o conceito de processos de organizar,
e retratarei como estes agentes sociais também contém suas disputas próprias.
Como lugar por excelência de definição do bem público (BOURDIEU, 2014), o
campo burocrático do Estado é composto por agentes encarregados de definir o que é bom
para o público, mas que nem sempre estão de acordo nesta definição. Há, nas UPPs, uma
crença compartilhada de que o programa foi pioneiro na busca do ideal de integração. A
história que contam é clara e quase unânime: a UPP entrou para retomar o território das
favelas e abrir as suas portas para os demais representantes do Estado. Portanto, a sua missão
principal neste processo de integração é “acabar com essa cultura de domínio territorial”
(Representante da UPP 1, Favela da zona Sul) e fazer a “retomada do território que antes era
do Tráfico” (Representante da UPP 2, Favela da zona Sul): “é para isso que veio a UPP, para
tirar esse território desses marginais e devolver ao Estado” (Representante da UPP 2, Favela
da zona Sul).
A retomada do Território é vista como etapa necessária para que outros órgãos
públicos possam atuar nas favelas e, portanto, associa-se à entrada das UPPs uma ideia de
“abertura da favela”. “Acredito que a UPP primeiro era pra isso, reprimir o tráfico pra depois
entrar com os programas do governo que eles não tinham acesso, pra tentar resgatar essa
comunidade” (Representante da UPP 9, Favela da zona Norte), explica uma policial. A
retomada do território, na visão dos policiais, serviu “para que o Estado pudesse, sim, entrar
com políticas sociais, é, novos serviços, que não está ainda satisfatório para as pessoas da
comunidade” (Representante da UPP 2, Favela da zona Sul).
O cumprimento desta duas etapas é o que define, para os policiais, aquilo que eles
chamam de “pacificação”. Primeiro, ocupa-se o território, retirando-o das mãos do tráfico;
depois, “abre-se as portas da favela”: “Estar pacificado significa, na minha opinião, ela estar
controlada territorialmente, onde qualquer agente público, sendo policial militar, sendo agente
129
da CEDAE ou agente para qualquer serviço público, tem acesso” (Representante da UPP 11,
Favela da zona Sul).
Tendo em vista a retomada do território, até então controlado pelo tráfico, os policiais
da UPP apostam na presença ostensiva, e nem questionam o uso das armas como um meio
necessário. Falam da importância de “manter uma ostensividade de policiamento”
(Representante da UPP 11, Favela da zona Sul), que se dá por meio do uso de armas,
uniformes, giroflex, tudo aquilo que possa reforçar a sua presença. É inevitável, “Para inibir o
tráfico, o uso de armas” (Representante da UPP 14, Favela da zona Sul). A naturalização das
armas pelos policiais leva a uma quase invisibilidade das armas, e eles se referem a favela
atual como uma favela “sem armas”, não obstante a enorme quantidade de armas com as
quais eu cruzava diariamente. Afirmam que o maior ponto positivo da UPP foi a retirada das
armas das favelas. Ainda que as favelas estejam cheias de armas, quando estas estão nas mãos
de policiais beiram uma invisibilidade para eles.
Também compõe a ostensividade policial, a forte presença nas ruas da favela, o uso de
uniformes e a abordagem policial, marcando que ali todos podem ser suspeitos – até mesmo
crianças podem carregar drogas em suas mochilas. A abordagem de “trabalhadores” era
sempre questionada, mas tratada pelos policiais como “parte do trabalho”.
A retomada do território está associada a uma ideia de transformação das favelas para
o “bem”. A dicotomia entre “bem” e “mal” é frequente no discurso dos policiais, e o “bem”
neste caso é representado pelos valores nos quais eles acreditam. Nesse sentido, também é um
meio para se alcançar o cenário desejado, levar o “bem” para a favela, transmitindo a eles os
seus valores.
O projeto da UPP Mirim, desenvolvido para realização de diversos eventos com as
crianças, tinham suas atividades voltadas para a educação das crianças, pautada na concepção
de “bem” e “mal” desses policiais. Tive oportunidade de acompanhar algumas vezes a
realização deste projeto. Em uma das ocasiões, adentrei a sala do projeto acompanhada do
vice-comandante, e encontramos a policial responsável pela UPP Mirim bastante chateada. O
vice-comandante a abordou, tentando entender o que acontecera. A policial, um pouco
desconfortável com a minha presença, negou-se a falar. O vice-comandante, muito confiante,
tentado expressar sua confiança em mim, disse a ela que podia falar na minha frente, sem
problemas. Obedecendo a ordem, a policial nos narrou que uma das crianças havia invadido a
sala onde seriam realizadas as atividades da UPP Miriam e havia roubado o saco de pirulitos
que estava em cima da mesa, distribuindo os pirulitos, antes da hora, para todas as crianças.
130
Disse, revoltada, que pretendia expulsá-lo da UPP Mirim, porque, afinal de contas, ele
roubou. O vice-comandante, agora meio sem jeito, falou para ela, olhando para mim: “Não
exagera, [Soldado], você tem que entender que isso é parte da cultura deles. Aos poucos eles
vão aprender o que é certo” (Notas de campo, 23/05/2013). Ainda, a respeito da UPP Mirim,
um policial explicou, relembrando com saudades o programa que estava temporariamente
interrompido:
A UPP mirim era tão legal, eles eram militarizados, têm umas crianças que passam até hoje
e prestam continência para a gente, ‘tão bonitinho’, muito legal e é assim, eles aprendem
valores que nem eles têm dentro de casa, muitos não têm, se você ficar um dia inteiro aqui,
você vai ficar...é complicado, é uma realidade que não estamos acostumados, é um choque,
é complicado, eu fico com pena das crianças porque não pedem para estar ali, crescem no
meio de uma ignorância, de uma falta de tantas coisas, de tantos valores e aqui pelo menos
aqui com a gente, eles tinham uma outra coisa, tinham educação, respeito, eles eram tudo
militarizados, eles entravam em forma, tudo bonitinho, um atrás do outro, cobrir, firme,
prestavam continência, legal!!! Tomara que volte, vou conversar com o comandante para
ver se retorna (Representante da UPP 8, Favela da zona Sul)
Em entrevista, uma outra policial me narrou a seguinte situação: estava de serviço,
fazendo o policiamento nas ruas da comunidade, e resolveu abordar uma jovem que, segunda
ela, era “sapatão”, mais parecia um homem. Contou que a moradora tinha um pênis de
plástico dentro das calças e que ela fez questão de verificar se não havia drogas dentro do
pênis. Diante da situação, explicou à moradora que não era certo uma mulher andar com um
pênis de plástico nas calças: “Aí eu falei, você nasceu mulher, você não nasceu com isto e não
tem que andar com isto, fiz ela passar uma vergonha ali, um constrangimento...”
(Representante da UPP 8, Favela da zona Sul). Outros relatos de moradores iam ao encontro
deste posicionamento da UPP: contaram-me que tiveram o celular quebrado porque estavam
ouvindo o funk; contaram-me que foram repreendidos por policiais por terem descolorido o
cabelo, o que, segundo os representantes da UPP, era “coisa de veado”.
Pautados em uma lógica de “bem” e “mal”, de “certo” e “errado”, os representantes da
UPP acreditam que precisam ser ostensivos para combater o mal e, transmitindo seus valores,
ensinarão o que é o “certo”. E para sustentar esta sua posição, os agentes utilizam estratégias
de legitimação.
Segundo Bourdieu (2014), o Estado produz discursos de legitimação para justificar a
sua existência como dominantes. Bourdieu (2014) reconhece que no campo burocrático do
Estado estratégias de legitimação podem se dar por meio do discurso. As discussões em torno
das concorrências entre lógicas institucionais apontam para o uso persuasivo da linguagem, ou
131
retórica, como um mecanismo por meio do qual é possível ocorrer mudanças nas lógicas
institucionais (SUDDABY e GREENWOOD, 2005). Suddaby e Greenwood (2005)
demonstraram em sua pesquisa como a retórica pode ser utilizada para expor e manipular
lógicas institucionais dominantes e subordinadas. A análise retórica volta-se, especialmente,
para discursos políticos, e permite acessar pressupostos compartilhados por trás de textos
persuasivos (SUDDABY e GREENWOOD, 2005). Na perspectiva retórica, a linguagem,
reflexiva e dinâmica, é capaz de revelar as premissas embebidas na comunicação (HARMON.
GREEN JR. e GOODNIGHT, 2015). Nesse sentido, conforme explicado no capítulo de
método da presente tese, aqui será usada a análise retórica, complementada pela análise de
argumentos conforme proposta na teoria de Toulmin (2001). A partir de argumentos
utilizados pelos agentes como estratégias de legitimação, busco mostrar a natureza deste
argumento, acessando as premissas nas quais eles se sustentam.
Por meio da análise retórica, pode-se identificar que os agentes das UPPs fazem uso de
estratégias de legitimação com base em argumentos racionais - as quais são tradicionalmente
chamadas na análise retórica de Logos -, pautando-se especialmente em índices de
criminalidade para sustentar seu argumento. Como forma de legitimar o trabalho que vem
sendo feito pelas UPPs nas favelas do Rio de Janeiro, os agentes apelam para a lógica,
pautada em números que indicam que o crime da cidade diminuiu. Exemplos deste tipo de
argumento podem ser encontrados na Tabela 5 abaixo:
Tabela 5. Estratégias de Legitimação – UPP – Logos: Argumentos Racionais com Base em índices de Criminalidade
Estratégias de Legitimação
Exemplos Estrutura do Argumento
Logos: Argumentos racionais com base em índices de criminalidade
“Eu me baseio muito pelas estatísticas, os índices de criminalidade caíram drasticamente, você vê. (...) Então isso com certeza deu certo” (Representante da UPP 15, Favela da zona Norte) “Então [o programa das UPPs] funciona por isso, você vê aí os resultados, os índices de criminalidade reduziram bastante, não vê mais todos os crimes que tinham antes” (Representante da UPP 9, Favela da zona Norte)
Dado: Os índices de criminalidade caíram drasticamente (Portanto) Proposição: O programa das UPPs deu certo Garantia: A principal fonte de criminalidade está nas favelas, onde as UPPs atuam. Dado: Os índices de criminalidade reduziram bastante (Portanto) Proposição: O programa das UPPs funciona Garantia: A principal fonte de criminalidade está nas favelas, onde as UPPs atuam.
132
“Porque só de cair o índice de criminalidade [a UPP] já funcionou. E é o que a gente tem visto aí nos IBOPEs aí da vida” (Representante da UPP 7, Favela da zona Norte)
Dado: Os índices de criminalidade caíram (Portanto) Proposição: A UPP funciona Garantia: A principal fonte de criminalidade está nas favela, onde as UPPs atuam
Conforme demonstram os exemplos da Tabela 5, a proposição “o programa das UPPs
funciona” é sustentada, no argumento dos policiais, pelo dado “os índices de criminalidade
caíram” – um argumento lógico, pautado em números. Mas há uma premissa por trás de tal
argumentação que também precisa ser destacada: “A principal fonte de criminalidade está nas
favelas, onde as UPPs atuam”. Tal premissa demonstra que, na visão dos policiais, os grandes
responsáveis pela violência da cidade habitam ou habitavam as favelas. Com a atuação das
UPPs dentro das favelas da cidade os grandes vilões do crime foram presos ou fugiram para
longe, e as melhorias no problema da violência refletem-se nos índices apontados pelos
policiais. A visão de que há um “inimigo” nas favelas que precisa ser combatido pelas UPPs
vai ao encontro da ostensividade policial como meio de funcionamento, e ao seu objetivo de
retomada de um território perdido para estes “inimigos”.
Conforme explicitado em capítulo anterior, as UPPs têm no tráfico de drogas o seu
opositor direto em termos de monopólio do uso legítimo da violência. Diante do histórico de
domínio do tráfico nas favelas, ao qual, conforme retratado anteriormente, era atribuído um
papel semelhante ao do Estado dentro das favelas (tendo em vista as expressões utilizadas
pelos moradores para se referir a ele), as UPPs, em suas estratégias de legitimação, apelam
para o argumento de “redução da criminalidade” da cidade, como uma forma de qualificar o
suposto monopólio da violência pelo tráfico como uma importante fonte do crime na cidade.
Sendo assim, nada melhor do que a retomada deste monopólio pelas UPPs.
No mesmo sentido, também foi possível observar o uso de estratégias de legitimação
pautadas em um argumento de presença. Conforme explicaram Sillince e Brown (2009), a
“presença” diz respeito a uma propriedade do argumento de se fazer mais convincente quando
se baseia em exemplos vívidos ou que remetem a movimento. Os representantes da UPP
sucessivas vezes remeteram a este tipo de estratégia para melhor sustentar seus argumentos
em prol de sua legitimação. Os exemplos das estratégias de legitimação com base em
presença são apresentados na Tabela 6 a seguir:
133
Tabela 6. Estratégias de Legitimação – UPP - Presença Estratégias de Legitimação Exemplos Estrutura do Argumento
Presença: Argumento baseado em uma evidência de movimento ou vividez
“Todos os cantos você pode estar andando na comunidade. Com segurança porque eu falo com a própria experiência porque eu rodo tudo aí. Vou nos mais diversos locais da comunidade. Então na minha concepção tá sim pacificado” (Representante da UPP 15, Favela da zona Norte). “Se [o programa das UPPs] não funcionasse você não ia conseguir subir [a favela]” (Representante da UPP 4, Favela da zona Sul). “Não existem fuzis aqui, essa ostentação de fuzis ali na [favela da zona Norte] e tal, então hoje [na favela da zona Norte], a proposta governamental deu certo” (Representante da UPP 11, Favela da zona Sul)
Dado: É possível circular livremente pela comunidade (Portanto) Proposição: a comunidade está pacificada Garantia: “Estar pacificado” significa ter a liberdade para circular pela favela Dado: Você subiu a favela (Portanto) Proposição: o programa das UPPs funciona Garantia: o propósito das UPPs é permitir que qualquer pessoa possa entrar na favela Dado: Não existem mais fuzis na favela (Portanto) Proposição: A proposta governamental deu certo Garantia: o propósito da proposta governamental é retirar as armas da favela
Os argumentos de presença utilizados pelos policias tem como proposição a ideia de
que “o programa das UPPs funciona” ou de que as “a favela está pacificada”, ambas
legitimadoras das UPPs. Para sustentar suas proposições, partem de dados de presença, que
por serem mais salientes aos olhares possuem uma força própria. Partindo de dados como “é
possível circular livremente pela comunidade” ou “não existem mais fuzis na favela”, tais
argumentos servem para ressaltar que na luta pela retomada do território, por meio de sua
ação ostensiva, a batalha foi ganha, e nada poderia ser mais evidente do que a livre circulação
de todos pelos espaços da favela. O relevo da ausência de armas inimigas no território
conquistado, também mostra, de forma vívida, a vitória das UPPs: basta olhar ao redor e
constatar com seus próprios olhos que as armas, agora, não estão mais visíveis e, portanto, os
“inimigos” também não podem ser mais vistos por ali. Por trás deste tipo de argumento há
uma premissa que sustenta o objetivo declarado das UPPs: retomar o território do poderio do
134
tráfico. O uso de argumentos de presença como estratégia de legitimação vai ao encontro da
noção de capital espacial que será discutida mais adiante neste capítulo.
Os representantes da UPP também se utilizam de uma forma de argumentação
persuasiva que se fundamenta na moralidade, com base no caráter ou em códigos morais,
conhecidos como Ethos. Este tipo de argumento mostrou-se presente em duas formas
principais. A primeira delas, consiste em estratégias argumentativas baseados em valores,
conforme os exemplos da Tabela 7 a seguir:
Tabela 7. Estratégias de Legitimação – UPP – Argumentos Baseados em Valores Estratégias de Legitimação Exemplos Estrutura do Argumento
Ethos: Argumento baseado em valores
“Resistência ao trabalho da gente? É, é aquelas pessoas que viviam do sustento do tráfico, entendeu. São os familiares, né, a mãe, a irmã, a sobrinha do traficante, que antigamente tinha tinha, como se chama, falam, moral, moral na favela. Era ‘ó, meu tio manda’. ‘Sou irmã do patrão’. E essas coisas assim” (Representante da UPP 2, Favela da zona Sul) “(...) são décadas e décadas por causa que tinha sempre aquela polícia e bandido não se dão, não se dá, comunidade do lado do bandido. Até a comunidade abraçar a polícia vai demorar meses, anos e décadas, entendeu, muito tempo que demora (Representante da UPP 17, Favela da zona Norte) “Bom, a grande maioria aceita a polícia e gosta do trabalho da polícia, então é essa maioria que a gente escuta, de pessoas de bem.” (Representante da UPP 13, Favela da zona Sul)
Dado: Existe resistência ao trabalho da UPP (Portanto) Proposição: Existem pessoas que viviam do sustento do tráfico Garantia: Quem resiste ao trabalho da UPP vivia do sustento do tráfico Dado: a comunidade está do lado do bandido há décadas (Portanto) Proposição: Até a comunidade abraçar a polícia vai demorar Garantia: A comunidade não apoia a polícia porque apoia o bandido Dado: a grande maioria dos moradores da favela são pessoas de bem (Portanto) Proposição: A grande maioria aceita e gosta do trabalho da polícia Garantia: Pessoas de bem gostam do trabalho da polícia
135
A dicotomia entre “bem” e “mal” mais uma vez salta aos olhos ao se analisar as
estratégias argumentativas dos representantes da UPP. Uma forma de legitimar seu trabalho é
desqualificar todo aquele que a ele se opõe: quem é de “bem” apoia à UPP, quem resiste à
UPP é quem tem algum envolvimento com o tráfico (o que não os qualifica enquanto pessoas
de “bem”).
As premissas que pairam por trás da argumentação policial demonstram esta oposição.
Seus argumentos revelam um posicionamento da UPP como a figura do bem que resgatou a
favela das mãos do tráfico. Os pressupostos que sustentam sua argumentação são claros: todo
aquele que se opõe às boas ações da UPP possuem ou possuíram alguma relação com o
tráfico; ou aqueles que não apoiam à UPP apoiam os bandidos. Há quase uma obrigação de
apoiar a UPP para que se possa qualificar enquanto uma pessoa de “bem”. O trabalho da UPP
na favela consiste também em uma disputa entre bem e mal.
Mais uma vez, é por ter no tráfico de drogas o seu principal opositor dentro dos
espaços de favelas que os policiais das UPPs tentam desqualifica-los e desqualificar aqueles
que possuem qualquer tipo de relação com o tráfico. À oposição entre “bem” e “mal”
corresponde a oposição entre polícia e tráfico, polos opostos na luta pelo monopólio do uso
legítimo da violência.
O Ethos também se apresenta de uma outra forma na argumentação policial: como um
argumento baseado na superioridade de algumas regiões da cidade. Os exemplos são
apresentados na Tabela 8 a seguir:
Tabela 8. Estratégias de Legitimação – UPP – Argumentos Baseados na Superioridade Estratégias de Legitimação Exemplos Estrutura do Argumento
Ethos: Argumento baseado na superioridade
“Eu posso dizer que a comunidade hoje está pacificada a partir do momento que você pode, é, você pode ser alvejado no [na favela da zona Norte] ou você pode ser alvejado em qualquer lugar hoje: Grajaú, Vila Isabel, Tijuca. A violência da [favela da zona Norte] ela é igualitária ao Grajaú, ao Andaraí bairro, a Vila Isabel, bairro, é totalmente igual, a violência” (Representante da UPP 11, Favela da zona Sul) “(...) a UPP que deu certo hoje é que não tem essa ostentação do poder de arma de fogo. O tráfico vai rolar em qualquer lugar, na
Dado: A violência na favela da zona Norte hoje é igual à de outros bairros da cidade. (Portanto) Proposição: A comunidade está pacificada Garantia: A violência “ideal” a ser alcançada com a “pacificação” é a violência igual a de outros bairros da cidade. Dado: O tráfico de drogas existe em qualquer lugar do mundo (Portanto)
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minha opinião. O tráfico vai rolar em qualquer lugar, vai rolar aqui, vai rolar na Inglaterra, vai rolar na Holanda, vai rolar em qualquer país da África, vai rolar em qualquer lugar” (Representante da UPP 11, Favela da zona Sul) “[a UPP] funciona, é funciona para que hoje o morador da [favela da zona Norte] não sinta diferença em relação ao morador da Pereira Nunes, da Conde de Bonfim, entendeu, ele apenas está numa outra área, o morador que mora na [favela da zona Norte] hoje a diferença é apenas a ladeira” (Representante da UPP 6, Favela da zona Norte) “Tanto é que eu acho que funciona que pessoas de outros países vêm aqui conhecer. Outros Estados estão importando essa essa essa política, entendeu. Como não vai funcionar, se as pessoas querem ver o que está acontecendo no Rio de Janeiro, entendeu? Então eu acho que funciona e vai, vai continuar” (Representante da UPP 2, Favela da zona Sul)
Proposição: Para a UPP dar certo não precisa acabar com o tráfico, basta acabar com a ostentação de armas. Garantia: Para a UPP dar certo ela precisa fazer as favelas se assemelharem ao que existe em outros países. Dado: Hoje a diferença entre a favela e outras regiões da cidade é apenas a ladeira. (Portanto) Proposição: A UPP funciona Garantia: Para a UPP funcionar, ter um bom resultado, a favela precisa se tornar igual às demais regiões da cidade Dado: Outros Estados estão importando a política das UPPs (Portanto) Proposição: A política das UPPs funciona Garantia: os outros Estados sabem identificar o que são boas políticas e só importam políticas que funcionam
Os argumentos apresentados na Tabela 8 revelam que os policiais utilizam como
estratégias para se legitimar o apelo à superioridade das demais regiões da cidade e do mundo
em relação às favelas. São estas regiões externas que devem servir como modelo, e se elas
aprovam as UPPs isto significa que as UPPs deram certo, porque, afinal, elas sabem
diferenciar um bom e um mau programa.
Partindo de dados como “Hoje a diferença entre a favela e outras regiões da cidade é
apenas a ladeira” ou “Outros Estados estão importando a política das UPPs”, os policiais
sustentam as suas proposições de que “as UPPs funcionam”. Há, entretanto, por trás deste
argumento, a garantia de que “Para a UPP funcionar, ter um bom resultado, a favela precisa se
tornar igual às demais regiões da cidade” ou de que “os outros Estados sabem identificar o
que são boas políticas e só importam políticas que funcionam”. As premissas revelam, assim,
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a visão dos policiais de que as regiões externas às favelas são superiores e, por isso, devem
servir de modelo a ser seguido. Demonstram que por trás da ideia de “integração” em que
todos os agentes se pautam, mas cada um à sua maneira, há, para os representantes da UPP,
uma ideia de homogeneização, segundo a qual a melhoria das favelas diz respeito a se tornar o
mais próximo possível das outras regiões.
As estratégias de legitimação baseadas em argumentos de superioridade também
podem ser consideradas úteis para que não se questione o uso da violência como forma de
retomar aqueles espaços. O que se pretende pelo uso, pelo menos inicial, da violência, é
transformar estes territórios em algo “melhor”, “superior” porque semelhante ao que lhe é
externo. Neste sentido, o uso da violência tem a sua razão de ser e, portanto, não deve ser
questionado. Tem-se, mais uma vez, uma tentativa de retomada do monopólio do uso legítimo
da violência.
Às premissas que remetem a uma situação de conflito entre cidade e favela, que levam
a crer que é esta um território que precisa ser retomado, ocupado, posto à livre circulação – o
que só pode ser alcançado por meio de uma postura ostensiva – refiro-me aqui como uma
lógica de confronto. Por meio da análise retórica também foi possível revelar que os agentes
que compõem o campo das UPPs parecem embasar suas ações em premissas que dizem
respeito a uma crença de que há na favela um inimigo que precisa ser combatido, por ser ele o
responsável pelos altos índices de criminalidade da cidade. E o sucesso neste confronto é
comprovado por evidências vívidas, como a liberdade de circulação ou o fim da ostensividade
do tráfico.
Com base nas análises, também me refiro, quando se trata das UPPs, a uma lógica
civilizatória, como um conjunto de premissas que remetem a uma necessidade de transformar
a favela para o bem, transmitindo-lhe valores superiores, mais “civilizados”, com os quais
antes não tinha contato. Na análise retórica tal lógica se revela por estratégias argumentativas
com base no Ethos, em argumentos de moralidade ou caráter. As estratégias de Ethos
mostram que os policiais partem do pressuposto de que existem o bem e o mal – sendo as
UPPs e os que as apoiam representantes dos primeiros, e os traficantes e os que os apoiam
representantes do segundo. Ainda, parte-se da premissa de que regiões externas às favelas são
a elas superiores, e por isso devem ser imitadas, com vistas a uma homogeneização entre
favela e cidade.
O PAC, enquanto um programa de infraestrutura urbana, tem o seu objetivo claro:
ampliar a infraestrutura da favela. Consideradas como regiões com deficiências sérias em
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termos de infraestrutura, as favelas, ao menos algumas delas, receberam as obras do PAC
voltadas, principalmente, para “implantação dessa infraestrutura que sempre foi deficiente nas
áreas periféricas” (Representante do PAC 5, favela da zona Sul). Além disso, para o PAC, é
uma questão crucial que se possa resolver o problema do acesso às favelas, que em geral
possuem apenas uma via principal de acesso, sobrecarregada com a intensa movimentação.
Conforme explica um representante do PAC:
então a ideia do PAC é justamente isto, é oxigenar, abrindo estas avenidas, vai chegar o
carro das Casas Bahia, vai chegar o carro de polícia, vai chegar ambulância, o cadeirante
consegue chegar até mais perto de casa, então melhora muito a vida da população
(Representante do PAC 3, Favela da zona Sul).
Conforme explicou o representante do programa, a ideia é que as obras do PAC
facilitem o acesso, não só dos moradores, mas também de empresas que fazem entregas ou de
órgãos públicos em geral.
Para a realização das obras na favela, tarefa nada simples, o PAC tem uma interação
constante com os moradores, e sua estrutura revela a crença de que não basta a realização de
obras, também é preciso que se faça trabalhos sociais com a população. Por isso, dentro das
favelas, o PAC possui duas equipes básicas: a frente de obra e a frente social. A primeira,
como o nome diz, é a responsável direta por realizar as obras, remover as casas, abrir as ruas,
ou o que mais for necessário para tal. A segunda, por sua vez, engloba algumas atividades
distintas: Desenvolvimento Territorial (DT), responsável, principalmente, por educação
sanitária ou geração de trabalho e renda, e Gestão de Impacto (GI), que lida com os impactos
da remoção, auxiliando, principalmente, no remanejamento dos moradores e encontros de
integração.
Ambas as equipes buscam cumprir seu propósito por meio de ações previamente
planejadas, e não envolvem os moradores em decisões a respeito das obras ou de como devem
habitar os apartamentos que receberão do PAC – embora realizem reuniões frequentes para
passar para a comunidade o que está sendo feito. Declaram diretamente sua crença de que os
moradores não sabem o que é melhor para eles:
Infelizmente, nós brasileiros somos um povo burro, então eu ouvi uma expressão cara a
cara, por um cara da comunidade, subindo a escada lá do prédio AR2 e eu estava subindo
atrás dele e ele reclamando, “porra, pobre é que nem minhoca, é que nem larva, tirou da
merda, morre”. Você começa a dar uns prédios bonitinhos para os caras, o cara fica
fazendo necessidades na rua, botando roupa no varal na janela (Representante do PAC 3,
Favela da zona Sul).
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Acreditam, nesse sentido, que é preciso levar a eles aquilo que é melhor, ainda que
eles só reconheçam que o PAC os está fazendo um “bem” quando as obras estão prontas e a
situação da favela, inegavelmente melhor:
A comunidade nunca sabe, eles só querem ouvir o que eles querem ouvir, isto é muito
complicado e é muito complicado mesmo, porque eles só ouvem blá-blá-blá-blá o Estado
ferrou com a gente, blá-blá-blá blá-blá o Estado não pagou, blá-blá-blá hoje está sol, blá-
blá-blá o final de semana tem churrasco, é isto! É isto que eles querem saber, infelizmente.
Até a hora que verificarem a coisa pronta, que nem eles viram aquela rua que está meio
caminho andado ‘caraca, realmente aconteceu, que maneiro!’ (Representante do PAC 3,
Favela da zona Sul)
Com base nesta crença, os agentes impõem aos moradores que deixem as suas casas
para que possam removê-la. As remoções são fonte de conflitos frequentes entre moradores e
representantes do PAC, mas as declarações emocionadas de moradores que não querem deixar
as casas que construíram com as próprias mãos – como eu mesma pude escutar diversas vezes
– não são suficientes para convencer os representantes do PAC de que podem ficar. As
negociações são intensas, e como última medida, apela-se para o Ministério Público. A este
respeito, uma representante do PAC reconhece: “agora, eu não sei, assim se todos os
moradores concordam com isso, né, aqueles que são diretamente afetados pela obra, né, eu
entendo que é difícil, né, para eles terem que sair porque acaba que não dá alternativa, né, tem
que sair para poder a obra passar” (Representante do PAC 2, Favela da zona Sul).
Mas as discordâncias em relação as obras não se restringem às remoções. O lixoduto
da comunidade foi removido para a construção de um elevador panorâmico. Embora o
elevador facilite o acesso dos moradores, a grande maioria defende que o lixoduto trazia mais
benefícios, porque a comunidade sofre com o problema do lixo, e reclama de não ter sido
consultada antes da realização das obras.
Compartilhando da crença de que os moradores não sabem do que precisam, os
agentes responsáveis pela frente social “tem uma série de projetos de instrução, de educação,
da população de como ensinar a ser melhores cidadãos” (Representante do PAC 3, Favela da
zona Sul). E assumem que suas ações não são planejadas com a participação dos moradores,
porque são predeterminadas pelas diretrizes já estabelecidas pelo Ministério das Cidades.
Tive a oportunidade de acompanhar algumas das reuniões de integração da frente
social, que tem o propósito de “ensinar” aos moradores como eles devem morar nos prédios.
A linguagem infantilizada, as histórias sobre animais da fazenda que por serem egoístas no
fim se dão mal, a insistência aos moradores de que eles devem ter plantas em casa, ignorando
suas sugestões em prol da cana de açúcar (que serve para chupar) – a crença de que os
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presentes não sabiam o que é bom e que, como crianças, precisavam ser ensinados, gritava
aos olhos e ouvidos de todos os presentes. E o tratamento infantilizado não se restringia às
reuniões de integração, a ponto de um morador que sentava ao meu lado, em uma reunião
sobre as obras, sussurrar ao meu ouvido, em uma mistura de revolta e vergonha: “eles acham
que a gente é analfabeto! Aqui todo mundo tem pós, MBA,...” (Notas de campo, 24/04/2013).
Os representantes do PAC, com vistas a sua legitimação, assim como os representantes
da UPP, também se pautam em estratégias argumentativas de presença, como forma de
sustentar seus argumentos com base em elementos vívidos. Alguns exemplos deste tipo de
argumento, identificados por meio da análise retórica, podem ser observados na Tabela 9 a
seguir:
Tabela 9. Estratégias de Legitimação – PAC - Presença Estratégias de Legitimação Exemplos Estrutura do Argumento
Presença: Argumento baseado em uma evidência de movimento ou vividez
“[O PAC] Funciona. Porque uma intervenção tão grande, de tantos milhões, tem que funcionar” (Representante do PAC 1, Favela da zona Sul) “(...) por mais que o morador tenha essa visão de que “Ah, é o transtorno da obra”, mas é porque ainda não tá finalizada, depois que finalizar a obra, que eles vão ter as vias de acesso, vão ter uma locomoção melhor, ou até ter uma ter uma locomoção propriamente, que nem tem, e a parte de saneamento, e aí eles vão ver que realmente [melhora]” (Representante do PAC 4, favela da zona Sul) “Quem é o maior interessado? É quem mora na favela, é o cara que vai conseguir comprar uma televisão e não ter que subir a pé lá do ponto do ônibus até o morro, porque o caminhão das Casas Bahia vai chegar lá em cima. É o cara que quebrou a perna e vai conseguir chegar de carro ou em uma ambulância, ou
Dado: Foram investidos muitos milhões no PAC (Portanto) Proposição: O PAC funciona Garantia: Uma grande quantia de dinheiro é suficiente para garantir o sucesso de um programa como o PAC Dado: Os moradores estão insatisfeitos com os transtornos das obras do PAC (Portanto) Proposição: Eles ainda não conseguiram perceber os seus benefícios, com as obras incompletas Garantia: O resultado das obras do PAC é bom para a comunidade Dado: Com as obras do PAC o acesso à comunidade será mais fácil (Portanto) Proposição: O PAC melhora muito a comunidade Garantia: O aumento da facilidade de acesso é uma grande melhoria para a comunidade
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sair com uma ambulância para o hospital. Então melhora muito, muito!” (Representante do PAC 3, Favela da zona Sul)
O PAC tem a seu favor o fato de apresentar resultados materiais e, portanto, visíveis.
Esta característica do programa é aproveitada por seus representantes como estratégia de
legitimação. Foram muitos milhões investidos, que serão transformados em “vias
carroçáveis”, facilitando o acesso de todos e melhorando a circulação pela favela. Se os
moradores ainda estão insatisfeito com o programa, na visão de seus agentes, é apenas porque
os seus produtos ainda não estão prontos e, portanto, ainda não estão visíveis.
Partindo de dados como “Foram investidos milhões no PAC” ou “Com as obras do
PAC o acesso à comunidade será mais fácil”, sustentam as suas proposições de que “o PAC
funciona” ou de que “o PAC melhora muito a comunidade”. As premissas por trás destes
argumentos mostram que, para os agentes, um investimento de milhões ou a visível facilidade
de acesso com a abertura de vias são garantias suficientes de que o programa é bem sucedido
e traz melhorias para a favela. Aqui, assim como no caso dos representantes da UPP, temos
uma aproximação à noção de capital espacial que será trabalhada mais adiante neste capítulo.
A análise retórica também revelou o uso de estratégias de Ethos, baseada em valores,
pelos representantes do PAC, mais uma vez aproximando-se dos tipos de argumentação
utilizados pelos representantes da UPP. Tais argumentos são apresentados na Tabela 10 a
seguir:
Tabela 10. Estratégias de Legitimação – PAC – Ethos – Argumentos Baseados em Valores
Estratégias de Legitimação Exemplos Estrutura do Argumento Ethos: Argumento baseado em valores
“[Com o PAC] Ela deixa de ser favela para virar comunidade e daqui a pouco ela vira um bairro. Então ela vai subindo o seu padrão de vida e ela vai gostando disto. Então ela vai parar de jogar lixo na rua, ela vai parar de roubar, de matar, de brigar, de tacar uma faca na cabeça do outro, porque ela já vai aprender que não é tão assim...Caramba, dá para ser do bem, é legal ser do bem, é bom ser do bem!”( Representante do PAC 3, Favela da zona Sul) “[com o PAC] a filosofia deles
Dado: O PAC vai melhorar o padrão de vida da favela (Portanto) Proposição: A favela vai aprender a ser do “bem” Garantia: Pessoas com padrão de vida baixo, como os moradores de favela antes das ações do PAC, não são pessoas do bem (roubam, matam,...) Dado: Hoje você tem
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melhorou porque começaram a consumir mais e começaram a querer mais, viram que têm direito a mais coisas. Hoje já tem gente que fala muito bem na comunidade, nem todo mundo fala ‘para mim fazer’, tem pessoas que escrevem bem, que pensam, que trabalham, que funcionam numa boa. Lógico que tem um pessoal ruim ainda” (Representante do PAC 3, Favela da zona Sul)
pessoas na favela que funcionam bem (Portanto) Proposição: Com o PAC a filosofia dos moradores melhorou Garantia: Antes do PAC não existiam moradores na favela que funcionavam bem
A dicotomia entre “bem” e “mal” também aparece aqui, posicionando o PAC como
um programa capaz de levar o “bem” para a comunidade, de salvá-los de uma passado em que
as pessoas não sabiam que podiam ser “do bem”, e por isso matavam, roubavam, tacavam
facas uns nos outros e falavam um português ruim. Desqualificar a favela e seus moradores é
uma forma encontrada pelo PAC para sua legitimação. Afinal, dentro desta lógica, se hoje há
pessoas “de bem” dentro da favela, que sabem falar português, e que até “funcionam numa
boa”, é porque o PAC as salvou e, portanto, é um programa bem sucedido.
Dado que “hoje você tem pessoas na favela que funcionam bem”, pode-se sustentar a
proposição de que “com o PAC a filosofia dos moradores melhorou”. A garantia deste
argumento revela a premissa de que “antes do PAC não existiam moradores na favela que
funcionavam bem”, garantindo ao programa o papel de salvador desta população.
Aparece também aqui argumentos que tem a sua persuasão garantida pelo apelo às
emoções, tradicionalmente conhecidos como Pathos (BAUER e GASKELL, 2012), conforme
os exemplos da Tabela 7 a seguir:
Tabela 11. Estratégias de Legitimação – PAC - Pathos Estratégias de Legitimação Exemplos Estrutura do Argumento
Pathos: Argumento baseado em emoção
“Eu gosto muito das reuniões, os Encontros de Integração. É difícil, né, porque a gente não consegue agradar a todos, mas a gente sabe que tá fazendo uma coisa boa pra eles” (Representante do PAC 4, favela da zona Sul) “Conversar e convencer que aquela obra, que vai estar passando ali na casa dela né, daquele morador, mas que é pelo
Dado: Sabe-se que está fazendo uma coisa boa para os moradores (Portanto) Proposição: Gosta-se das reuniões, ainda que não se consiga agradar a todos Garantia: Nem todos os moradores sabem o que é bom para eles. Dado: As obras do PAC são para o bem da comunidade (Portanto) Proposição: o morador deve
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bem da comunidade como um todo, né, porque quem vai se beneficiar é toda a comunidade, abrir mão né, daquele espaço dela por um outro pra poder beneficiar toda a comunidade e ela também vai ser beneficiada, porque a obra vai beneficiar no tempo que ela continuará morando naquela comunidade, né” (Representante do PAC 2, Favela da zona Sul)
abrir mão de seu espaço para as obras do PAC Garantia: Os representantes do PAC sabem o que é bom para a comunidade
Os argumentos que apelam para as emoções para legitimar as ações do programa,
enfatizam os sentimentos dos próprios representantes do PAC de apreço pelo programa,
porque se sabe, afinal, que é para o bem de todos. Ainda que alguns moradores tenham que
ceder as suas casas, estes estarão realizando uma ação altruísta, pensando no bem da
comunidade acima do seu próprio bem.
Tem-se como dado “as obras do PAC são para o bem da comunidade” ou que “se sabe
que se está fazendo uma coisa boa para os moradores”, assim, “gosta-se das reuniões, ainda
que não consiga agradar a todos”, e “o morador deve abrir mão de seu espaço para as obras do
PAC”. Tem-se como garantia que “nem todos os moradores sabem o que é bom para eles”,
afinal, estão insatisfeitos, mesmo diante do dado de que as obras são para o bem; ainda, “os
representantes do PAC sabem o que é bom para a comunidade”, e isso serve como uma
garantia para sustentar o argumento de que, ao deixar as suas casas, os moradores estarão
contribuindo para o bem comum.
Aqui os representantes do PAC se justificam enquanto merecedores de uma posição
dominante no campo burocrático do Estado, posição esta detentora do direito de falar em
nome do público, de determinar o que é o bem público, conforme marcou Bourdieu (2014).
Pautam-se na premissa de que sabem, melhor do que os próprios moradores, o que é o bem
público. Nesse sentido, as estratégias de legitimação enraízam-se no próprio jogo do Estado: a
disputa por falar em nome do bem comum.
Também identifica-se no PAC semelhanças à lógica civilizatória presente na UPP. O
conjunto de premissas no qual os representantes do PAC parecem se pautar diz respeito, aqui
também, a uma crença na existência do “bem” e do “mal”, e o programa é também
posicionado como um representante do bem a “salvar” a favela, resgatando-a de um passado
de violência e outras atrocidades. Ainda, a lógica civilizatória aqui aparece como premissas de
que os representantes do programa estão em melhores condições de dizer o que é bom para os
moradores acima deles mesmos. Acredita-se que os sacrifícios que alguns moradores tiveram
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que fazer para que as obras se realizassem, trarão um bem para todos, pois se sabe definir o
que é bem e o que não é. Não se quer dizer aqui que as obras do PAC não trazem melhorias
para a favela, mostra-se apenas que a definição do que é uma “melhoria” não está nas mãos
dos moradores.
Com a entrada das UPPs nas favelas, como forma de atender à demanda por segurança
pública nestes espaços, o programa da UPP Social se propõe a acompanha-la neste processo,
porém voltada para o atendimento das demandas sociais. O objetivo da UPP Social é, então,
levantar demandas e encaminhá-las aos órgãos responsáveis por atende-las, fortalecendo a
articulação entre os moradores e o poder público: “Então, oferecer e constituir um canal que
catalisa a criação dessa interlocução e que compreende o conjunto que eu estou falando aqui
como fundamental para criar as bases para uma relação de outra natureza dessas áreas com o
poder público” (Representante UPP Social 7, Geral).
Os representantes da UPP Social fazem questão de reforçar que não são eles os
responsáveis diretos pelo atendimento das demandas. Eles apenas as encaminham, para que
estas possam ser atendidas por quem tem este dever. Para desfazer a confusão, que parecia ser
frequente, um dos representantes do programa explicou:
Simplesmente não somos nós que atendemos. Nós encaminhamos, nós somos aqueles que
estão no território ouvindo, encaminhando, nós não atendemos. Não trazemos o secretário
aqui. Não trazemos a; não temos esse poder. Nós chamamos e ele vem se ele quiser. Então,
né, não somos nós que atendemos essa demanda. Somos nós que apontamos essa demanda
(Representante da UPP Social 2, Favela da zona Norte).
O encaminhamento de demandas realizado pela UPP Social também tem uma
preocupação de fundo de gerar registros, produzir informações a respeito das favelas,
territórios pouco conhecidos pelo Estado. Nesse sentido, os representantes da UPP Social
levantam as demandas nas comunidades, e as registram em seus sistemas – seja por meio de
mapas georeferenciados, de relatórios ou até mesmo em seus blogs – para que seja criada uma
memória deste trabalho: “eu vejo que os programas anteriores, em áreas de favela foram
pouquíssimo documentados. É difícil você ter acesso às informações. Então eu acho que é o
grande diferencial do programa também” (Representante da UPP Social 1, Geral).
A UPP Social também se diferencia em sua forma de fazer as coisas, em sua
preocupação central de ouvir os moradores e tentar preservar sua visão a respeito de como os
problemas deveriam ser resolvidos. Referem-se a uma inversão na lógica das políticas
públicas, que em geral já chegam prontas aos moradores. A respeito desta noção de
“inversão”, um representante do programa explicou:
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Sabe uma coisa assim? Eu vou fazer de trás para frente. Eu acho que é o seguinte: a maioria
das decisões públicas que existe na cidade é de cima para baixo. O gestor público vê que ali
tem um problema e fala o seguinte. “Olha, gente.” Chega para a equipe dele e fala o
seguinte. “Olha, gente, tem esse problema aqui, como é que a gente vai resolver?”. Só que
quem participa da decisão raramente é a pessoa que está ali convivendo com tudo aquilo. E
quando o cara decide aqui, ele não quer saber o que o dali acha. (...). A gente identificou o
problema ali e a gente conversou com os moradores a melhor forma de resolver aquele
problema. E foi feito esse grande estudo, sabe. (...) Por exemplo, eu posso chegar aqui e
falar que isso aqui está errado. Isso aí é hierarquia mesmo, entendeu. Só que com a visão da
UPP Social já era diferente, a gente conversava, quem estava, com quem estava sendo
afetado a gente fazia um estudo e apresentava (...) (Representante da UPP Social 3, favela
da zona Sul).
Um exemplo desta forma de funcionamento é o projeto “Vamos Combinar”, realizado
pela UPP Social para lidar com o problema do lixo, comum a muitas favelas. Com o auxílio
de moradores, os gestores da UPP Social mapearam os melhores pontos de coleta de lixo
dentro da favela e montaram um relatório a ser entregue para a Comlurb. Os moradores
lembram satisfeitos do projeto, porém decepcionados com o fato deste nunca ter ido para
frente: a Comlurb não levou adiante a implementação. Outro exemplo foi o mapeamento de
logradouros realizado pela UPP Social. Para formalização do nome das ruas, sem que estes
fossem impostos aos moradores, a UPP Social fez um levantamento do nome de ruas e
regiões da favela informalmente adotados pelos moradores, para que estes pudessem ser
formalizados na prefeitura.
Embora inicialmente a UPP Social organizasse alguns fóruns próprios, com o objetivo
de apresentar o programa aos moradores, na época da pesquisa de campo sua atuação voltava-
se mais ao acompanhamento de eventos e reuniões organizados pelos próprios moradores, e
eram principalmente nestas ocasiões que eu os encontrava em campo. E mesmo em reuniões
comunitárias, preocupavam-se em respeitar a visão dos moradores: “Talvez você tenha
percebido nas reuniões às vezes, assim, a gente, eu pelo menos evito dar muita opinião e me
colocar muito porque as questões são comunitárias” (Representante da UPP Social 4, favela
da zona Sul).
Ainda que mantenham esta forma de funcionamento, os representantes da UPP Social
se posicionam enquanto prefeitura dentro da favela, e lembram que têm um papel institucional
a cumprir. Criticam o programa Territórios da Paz, discutido a seguir, justamente por sua
postura de “defender os moradores”, esquecendo, em suas visões, que são representantes do
Estado na favela:
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Mas de maneira geral, eu acho que uma grande diferença assim é que eles têm uma, têm
uma identificação maior com os moradores, no sentido, da forma como funciona, assim, em
campo. Acho que isso dá um pouco mais de capilaridade, mas é, em alguns momentos a
gente vê que traz um pouco de ruído, assim de como os moradores veem mesmo, assim.
Qual é, qual é o papel que eles têm, assim.(...) Acho que é importante para o trabalho, para
que as coisas fiquem claras, mesmo, assim, para os moradores e tal. Quem é o quê, assim
(Representante da UPP Social 4, favela da zona Sul).
Como o trabalho da UPP Social baseia-se na proposta dos moradores para a solução
dos problemas, estes também procuram deixar de lado uma preocupação com os méritos
daquilo que fazem ou deixam de fazer em campo, reconhecendo que às vezes é até difícil
diferenciar o que é deles: “mas a gente não corre atrás de mérito não, a gente está ali para
fazer o nosso. Para ‘ah, eu fiz isso’. Não. Tanto que a gente tem uma porrada de, a gente tem
um monte de coisa que a gente fez assim” (Representante da UPP Social 3, favela da zona
Sul).
As estratégias de legitimação da UPP Social revelam, primeiramente, um
reconhecimento de que o programa não conseguiu se legitimar como gostaria, e por isso seus
agentes, muitas vezes, utilizam argumentos que estão muito mais voltados para justificar a sua
falta de legitimidade. A partir de argumentos pautados na razão (Logos), alguns
representantes do programa explicam que não é possível afirmar com certeza se o programa
funciona ou não, na falta de uma avaliação formal. Exemplos de argumentos de Logos podem
ser vistos na Tabela 12 a seguir:
Tabela 12. Estratégias de Legitimação – UPP Social - Logos Estratégias de Legitimação Exemplos Estrutura do Argumento
Logos: Argumentos racionais pautados na impossibilidade de avaliação formal
“Defina funciona, né? Porque até naquele momento você, está num momento de fundamentalmente de implantação, né, quer dizer acho que do ponto de vista da acolhida, da receptividade, da proximidade formal, do ambiente que se formou etc. e tal, eu acho que a relação é completamente positiva. Agora daí pra frente as hipóteses todas que estão por trás disso não têm como ser testadas em seis meses. Então eu diria, respondendo à sua pergunta é aquilo que eu testemunhei e acompanhei, e estive envolvido, não tem tempo hábil para avaliar isso, né” (Representante UPP Social 7, Geral)
Dado: Não é possível avaliar o programa em pouco tempo (Portanto) Proposição: Não é possível dizer se o programa da UPP Social funciona Garantia: É necessária a realização de uma avaliação de longo prazo para poder responder se o programa da UPP Social funciona
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“É muito difícil dizer [se o programa traz mudanças para a favela]. É tão difícil de medir o impacto no trabalho (...) Eu tenho dificuldade de dizer(...)” (Representante da UPP Social 4, favela da zona Sul).
Dado: É difícil medir o impacto do programa (Portanto) Proposição: É difícil dizer se ele traz mudanças para a favela Garantia: Para dizer se o programa traz mudanças para a favela é preciso medir o seu impacto
Partindo do dado de que “Não é possível avaliar o programa em pouco tempo” ou de
que “É difícil medir o impacto do programa”, os representantes da UPP Social propõem que
portanto “Não é possível dizer se o programa da UPP Social funciona” ou que “é difícil dizer
se ele traz mudanças para a favela”. A partir de argumentos racionais, os agentes reconhecem
a possibilidade de haver problemas, não tentam, a todo custo, sustentar o bom funcionamento
do programa, mas também lembram que não é possível ainda dizer que o programa não
funciona ou não traz mudanças para a favela. A premissa é clara: “É necessária a realização
de uma avaliação de longo prazo para poder responder se o programa da UPP Social
funciona” ou, dito de outra forma, “Para dizer se o programa traz mudanças para a favela é
preciso medir o seu impacto”.
A inversão de lógicas, que busca muito mais justificar a falta de legitimidade à forçar
estratégias de legitimação, também se mostrou presente em argumentos de presença. Os
exemplos podem ser vistos na Tabela 13 a seguir:
Tabela 13. Estratégias de Legitimação – UPP Social - Presença Estratégias de Legitimação Exemplos Estrutura do Argumento
Presença: Argumento baseado em uma evidência de movimento ou vividez
“É, como nós não somos finalistas, eu não diria que o nosso efeito de trabalho é físico, o que muitas vezes dificulta até a gente explicar o que que é a UPP Social. ‘Mas o que vocês fazem, né? Qual é a proposta? E aí, o que vocês já fizeram?’ Está tudo documentado. Está tudo produzido, mas é informação. Informação não se mede, né?” (Representante da UPP Social 1, Geral) “Então, muitas vezes, parece que não funciona, isso é histórico, por
Dado: O efeito do trabalho da UPP Social não é físico (Portanto) Proposição: É difícil explicar o que é a UPP Social. Garantia: Efeitos físicos facilitam a explicação dos programas Dado: Às vezes, os moradores não conseguem
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conta disso. Porque, às vezes, são medidas pontuais. E eles mesmos não se identificam como pertencentes àquele complexo. Quando é igual à Formiga, já é melhor. Porque a Formiga é só a Formiga. É a UPP Formiga. Então, qualquer coisa que você leve é perceptivo pra toda a comunidade. Quando é um complexo, já é uma questão um pouco mais difícil” (Representante UPP Social 6, Favela da zona Norte) “Principalmente eu acho que para, hoje para quem ela mais funcionaria, deveria ser para a própria Prefeitura e Secretarias. Mas o problema é que a Prefeitura e Secretarias ainda não enxergou isso. (...) porque para a Prefeitura em si eles ainda não enxergaram o quão bom é a UPP Social para eles. Eles ainda não entenderam, entendeu? Mas para quem paga o programa, que é a própria Prefeitura, eles não entenderam a potência e quão bom é ter um programa desse na comunidade. Então para quem mais deveria funcionar, não funciona” (Representante da UPP Social 2, Favela da zona Norte)
perceber as coisas que a UPP Social leva para a favela (Portanto) Proposição: Muitas vezes, parece que o programa da UPP Social não funciona Garantia: Só se acredita que o programa da UPP Social funciona quando as coisas que eles levam são perceptíveis na favela Dado: A prefeitura ainda não conseguiu enxergar o quão bom é a UPP Social (Portanto) Proposição: O programa da UPP Social não funciona para a prefeitura Garantia: É preciso enxergar os benefícios do programa para que se considere que ele funciona
Percebe-se nos argumentos de presença, que os representantes da UPP Social veem na
falta de resultados físicos, mais vívidos do programa, a sua falta de legitimidade (aqui
diretamente assumida). Parte-se do dado de que “o efeito do trabalho da UPP Social não é
físico” para sustentar a proposição de que portanto “é difícil explicar o que é a UPP Social”.
Diante dos questionamentos que o programa recebe neste sentido, é importante reforçar que a
falta de um efeito físico e, portanto, mais visível, dificulta a explicação. Parte-se, então, da
premissa de que efeitos físicos facilitam a explicação dos programas. Ainda, o dado de que
“Às vezes, os moradores não conseguem perceber as coisas que a UPP Social leva para a
favela” sustenta a proposição de que “Muitas vezes, parece que o programa da UPP Social
não funciona”. O reconhecimento de que o funcionamento do programa é questionado é
justificado com base na premissa de que “só se acredita que o programa da UPP Social
funciona quando as coisas que eles levam são perceptíveis na favela”. Vê-se uma reflexão dos
149
gestores em torno dos questionamentos direcionados à UPP Social, mas também uma
tentativa de justifica-las sem que se entenda como certa a ideia de que o programa não
funciona ou é mau definido. Aqui não se parte para uma desqualificação daqueles que
criticam o programa como forma de legitimação, mas sim para uma apresentação de
justificativa para a fala daqueles que o questionam, que não necessariamente correspondam a
uma veracidade de suas falas.
Argumentos pautados na emoção também fazem parte do repertório de estratégias de
legitimação dos representantes da UPP Social. Alguns exemplos são apresentados na Tabela
14 a seguir:
Tabela 14. Estratégias de Legitimação – UPP Social - Pathos Estratégias de Legitimação Exemplos Estrutura do Argumento
Pathos: Argumento baseado em emoção
“Você para começar é um tiro no pé. É um, estamos dentro da Prefeitura apontando para a Prefeitura todos os erros que ela está fazendo. Pô, você está fazendo, desculpe o termo, está fazendo besteira aqui, meu filho, vai che/não vai funcionar nunca. E cada área diz aí, eu vou continuar a fazer assim. Não tem, isso é complicado. Você fica lá, você tem um sistema que você alimenta dizendo para o prefeito as besteiras que ele está fazendo. Complicado isso” (Representante da UPP Social 2, Favela da zona Norte) “(...) eu acho que ele [o programa] vai, ele, ele ele toca numa ferida da cidade, né? Eu acho, assim, coisa das favelas no Rio é muito, é uma, para muita gente eu acho que é uma realidade muito incômoda, assim, é uma coisa que não queriam que existisse, e você ficar o tempo todo chamando atenção, 'olha, a favela está ali e tal'. Eu acho que é, constrange muito as pessoas. Muito, eu acho que muita gente fica meio perturbada assim de ficar sendo lembrada que a favela está ali porque preferia esquecer, assim. Então eu acho que, eu não falo só dentro do poder público, eu falo para para para a opinião pública mesmo, que também
Dado: A UPP Social está dentro da prefeitura apontando para a prefeitura todos os erros que ela está fazendo (Portanto) Proposição: É difícil que o programa funcione Garantia: A prefeitura se incomoda com o fato de que o programa aponte os seus erros. Dado: A UPP Social toca em uma ferida da cidade e gera incômodo (Portanto) Proposição: Ela acaba tendo problemas na sua projeção política Garantia: A projeção política de um programa depende do sentimento que ele gera
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seria, que também faz diferença, né, na na projeção política, digamos assim, a mídia é muito forte para promover ou deslegitimar programas e tal, então eu acho que tem esse incômodo mesmo” (Representante da UPP Social 4, favela da zona Sul) “Mas a gente tem uns trabalhos assim bem gratificantes. Algumas mudanças de percepção que, sabe, de tirar o chapéu. A gente sente isso no campo, assim. Só pelo fato da gente ser bem-aceito. A gente não fez muita coisa no campo, mas você percebeu que todo mundo para para escutar a gente, todo mundo recebe muito bem a gente, entendeu. Se fosse outro órgão a gente não ia ser ( ), não ia ser convidado para nada, entendeu. Mas a gente é chamado ainda” (Representante da UPP Social 3, favela da zona Sul).
Dado: Os gestores da UPP Social são bem aceitos no campo (Portanto) Proposição: Os trabalhos que eles realizam são gratificantes Garantia: Ser bem aceito em campo é um retorno positivo do trabalho que realizam
Também como forma de justificar a fraca legitimidade do programa (aqui também
abertamente reconhecida), os representantes da UPP Social apontam para as emoções
daqueles que, de alguma forma, não dão o valor devido ao programa. Se a prefeitura ou a
opinião pública em geral não reconhecem o valor do programa e o deslegitimam de alguma
forma, é porque a UPP Social gera neles um incômodo, por tocar em uma questão delicada
como as favelas.
É um dado para os agentes que “A UPP Social está dentro da prefeitura apontando
para a prefeitura todos os erros que ela está fazendo” e, portanto, “É difícil que o programa
funcione”. Parte-se da premissa de que “a prefeitura se incomoda com o fato de que o
programa aponte os seus erros”, e por isso não dá ao programa o devido suporte para que ele
possa funcionar. Afinal, a UPP Social baseia-se em um encaminhamento de demandas. Para
que seu trabalho ganhe a “visibilidade” que os argumentos de presença mostram que não tem,
é preciso que as demandas que encaminham sejam minimamente atendidas. Ainda, partindo
do dado de que “A UPP Social toca em uma ferida da cidade e gera incômodo”, propõe-se
que por isso “Ela acaba tendo problemas na sua projeção política”. Pois, como garantia, tem-
se que “A projeção política de um programa depende do sentimento que ele gera”. Como a
151
UPP Social incomoda, é deslegitimada, não só pela prefeitura, mas pela opinião pública em
geral.
O conjunto de premissas que guiam as ações da UPP Social distanciam-se daqueles
observados na UPP e no PAC. Para alcançar seu objetivo, o programa busca “inverter” as
políticas públicas, e tentar formulá-las de baixo para cima, a partir da realidade dos moradores
e dos gestores de campo que buscam compreender esta realidade. Mais ainda, com o
reconhecimento de que as suas visões não são aquelas que definem o que é o “bem” ou o
“mal”, ou o “certo” e o “errado”, os representantes da UPP Social em parte aceitam que na
visão dos moradores ou daqueles que criticam o programa tal crítica pode fazer sentido,
afinal, se eles não conseguem enxergar os resultados do programa, como podem acreditar que
funciona? A esta nova lógica que aqui aparece denomino de lógica de inversão, como o
conjunto de premissas pautadas na crença de que os valores e a realidade dos moradores
também é válida e deve ser considerada nas tomadas de decisões a respeito das ações do
Estado em favelas.
Próximo à UPP Social, especialmente em seu ponto de origem, o programa Territórios
da Paz também surge com um objetivo de levantar e acolher demandas. Partindo da lógica de
que o programa não pode e não deve ficar na favela para sempre (questão que a UPP Social
também reconhece), o Territórios da Paz hoje assume um papel de articulador: “O papel do
Territórios da Paz é muito esse, de articular rede, a gente não tem poder de execução para
nada, sabe” (Representante do Territórios da Paz 1, Favela da zona Sul).
Partilhando aqui também da ideia de que as soluções para os problemas da
comunidade devem vir de baixo para cima, os representantes do Territórios da Paz
identificavam as demandas mais sensíveis, entretanto, não apenas as encaminhavam aos
órgãos responsáveis, mas também se propunham a mostrar aos moradores como este
encaminhamento deveria ser feito, envolvendo-os neste processo. Conforme explicou um
representante do programa:
A ideia era do Territórios da Paz era fortalecer reuniões locais e grupos locais, não criar
uma reunião própria, um grupo próprio para discutir problemas locais, como trajetória de
analisar uma política pública em cima de redes como solução para questões de serviços
públicos locais também. Formou uma espécie de construção de política pública por baixo.
Como assim? Tem o problema do lixo? Tá. Não vou te dar solução, mas vou ajudar você a
construir um relatório em relação a isso e você poder reivindicar à prefeitura de forma
organizada quais os problemas e onde ocorre no morro, ocorre, tira foto do lugar, não-sei-o-
quê, informa a prefeitura com relação a isso. Tem um problema com água? Vamos fazer um
mapeamento da rede de água aqui do Salgueiro, que é um caso emblemático que a gente
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levantou mais informações que a própria CEDAE tinha. Que os moradores todos se
engajaram e conseguiram fazer um levantamento muito grande sobre o problema de água
no Salgueiro (Representante do Territórios da Paz 2, Geral)
Nesse sentido, o programa preocupa-se em garantir que os moradores estejam aptos a
correr atrás de suas demandas sozinhos. Por isso, a preocupação maior do programa acabou se
tornando o fortalecimento de redes, capazes de realizar suas próprias reivindicações: “a gente
começou a perceber que o tema principal do nosso programa era fortalecer as redes
comunitárias” (Representante do Territórios da Paz 2, Geral).
Para que esta forma de funcionamento fosse possível, e considerando as fortes
diferenças que existem entre cada uma das favelas, o programa também tinha como meio de
funcionamento a grande autonomia das equipes, que eram livres para identificar a melhor
forma de trabalho e as questões mais relevantes para cada favela. A este respeito, uma gestora
explicou:
Só que a gente sabe que que que, por exemplo, você entra na Cidade de Deus, as redes
estão articuladas. Então como é que é articular, como é que articular rede vai ser o objetivo
na Cidade de Deus? Não. O nosso objetivo é apoiar as redes, é fomentar o que existe, é
isso. Não é mais ajudar a formar, entendeu? (Representante do Territórios da Paz 1, Favela
da zona Sul).
Conforme será discutido no próximo capítulo, esta característica do programa também
faz com que o trabalho do Territórios da Paz se diferencie muito de acordo com cada
território, de acordo com as características do local e às vezes, também, de cada gestor.
Outro ponto importante do Territórios da Paz, que aqui também se assemelha à UPP
Social, é a sua ideia de que as ações do programa, como são construídas de baixo para cima,
com a participação intensa dos moradores, não devem ser assinadas - não se deve colocar o
nome do programa em destaque naquilo que ele faz de forma conjunta com a comunidade - e
chegaram a mandar refazer notas de comunicação em que o nome do programa aparecia como
seu promotor: “a gente queria de fato que quem fizesse, que quem assinasse fosse instituições
locais, projetos locais, e que a gente fosse só no máximo apoiador, organizador. Os
realizadores sempre de lá” (Representante do Territórios da Paz 2, Geral).
Aqui também a análise retórica revela um reconhecimento explícito ou implícito de
que o programa tem tido dificuldades para se legitimar. Entre as estratégias de legitimação
apresentadas pelos representantes do Territórios da Paz também predominam argumentos
voltados para justificar os problemas de legitimidade em detrimentos de argumentos de
legitimação direta. Predominaram, dentre as estratégias, argumentos com base em Logos e em
Presença. Exemplos do primeiro tipo podem ser observados na Tabela 15 a seguir:
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Tabela 15. Estratégias de Legitimação – Territórios da Paz – Logos
Os representantes do Territórios da Paz apresentam argumentos racionais (Logos)
para argumentar, primeiro, que como não é possível realizar uma avaliação quantitativa de
longo prazo do programa, não é possível avaliar se o programa é efetivo ou não. Aqui, como
no caso da UPP Social, também se assume, com este argumento, a possibilidade de que o
programa não seja efetivo. Entretanto, também se aponta para o fato de que ainda não é
possível colocar por terra definitivamente a efetividade do programa, afinal, nenhuma
avaliação quantitativa de longo prazo foi ainda realizada. Nesse sentido, ao se assumir a
Estratégias de Legitimação
Exemplos Estrutura do Argumento
Logos: Argumentos racionais
“A quantificação disso em termos de política pública é muito difícil porque tem que avaliar isso a longo prazo com grupos de controle. Você não tem como avaliar um programa, por exemplo, de trabalho em territórios pacificados que trabalham com programa com territórios que receberam o programa e territórios que não receberam para poder avaliar de fato a efetividade da política. Isso a gente não tem como fazer” (Representante do Territórios da Paz 2, Geral) “A gente não tem veículo oficial realmente que demonstrasse o quão complexo, o quão rico é o nosso trabalho, fornecendo uma programação de utilidade que a gente constrói, que a gente elabora, que a gente finaliza. A gente não tem isto! (...) Então tem muito isto. E o próprio governo do Estado não sabe muito bem quem somos, não sabe muito bem...a própria secretaria não sabe, quem dirá o resto do Estado. Esta é a verdade! (...) Tem tudo isto, a gente paga muito mico neste sentido de tentar encontrar legitimidade dentro do nosso trabalho e a gente encarar essas aberrações (...)” (Representante do Territórios da Paz 4, Favela da zona Sul).
Dado: É difícil realizar uma avaliação quantitativa de longo prazo do programa Territórios da Paz (Portanto) Proposição: Não tem como avaliar a efetividade do programa Garantia: Para avaliar a efetividade de uma política é preciso realizar uma avaliação quantitativa de longo prazo Dado: O Territórios da Paz não possui um veículo oficial que demonstre a complexidade do programa e suas ações (Portanto) Proposição: O programa é desconhecido pelo próprio governo do Estado Garantia: Veículos oficiais de divulgação são necessários para que o programa torne-se conhecido
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possibilidade de falha, a garantia de que “Para avaliar a efetividade de uma política é preciso
realizar uma avaliação quantitativa de longo prazo” salva o programa de uma deslegitimação
definitiva. Pode-se questionar, porém não é possível afirmar com certeza.
O desconhecimento do programa, um aspecto que também afeta a sua legitimidade,
também é justificado com base em argumentos de Logos. É um dado que “o Territórios da Paz
não possui um veículo oficial que demonstre a complexidade do programa e suas ações”,
portanto “o programa é desconhecido pelo próprio governo do Estado”. Esta forma de
argumentação ajuda a legitimar o programa na medida em que aponta para uma outra causa
para o fato de o programa ser desconhecido: não é a falta de efetividade do programa que leva
a seu desconhecimento, mas sim o fato de que suas ações efetivas não são devidamente
divulgadas.
Os argumentos de Presença, por sua vez, são apresentados na Tabela 16 a seguir:
Tabela 16. Estratégias de Legitimação – Territórios da Paz – Presença
Os argumentos de Presença também seguiram, em alguns casos, a estratégia de
justificar a falta de legitimidade, mostrando aqui também um certo reconhecimento de que ela
Estratégias de Legitimação
Exemplos Estrutura do Argumento
Presença: Argumento baseado em uma evidência de movimento ou vividez
“E por isso mesmo, a gente teve um problema de visibilidade porque a gente, enquanto outros projetos e propostas botavam, assinavam o nome X, Y, a gente não assinava. Isso prejudicou um pouco nossa visibilidade” (Representante do Territórios da Paz 2, Geral) “Se não funcionasse, ele não estaria existindo até hoje, ele seria facilmente extinto como outros, por exemplo, ... Nenhum produto elaborado aqui pelo Territórios da Paz ele foi sumariamente extinto por ineficiência” (Representante do Territórios da Paz 4, Favela da zona Sul)
Dado: O programa Territórios da Paz não assinava os projetos e propostas (Portanto) Proposição: O programa teve um problema de visibilidade Garantia: A assinatura de projetos e propostas ajuda a dar visibilidade aos programas Dado: O programa Territórios da Paz não foi extinto (Portanto) Proposição: O programa funciona Garantia: Quando um programa não funciona ele é extinto
155
existe. O dado de que o programa não assinava os projetos e propostas serve para justificar
seus problemas de visibilidade. Aqui, mais uma vez, reconhece-se que o problema existe, mas
propõe-se outra justificativa em prol de não o deslegitimizar: a falta de visibilidade não se dá
porque o programa não realiza ações, mas sim porque não coloca a sua marca nelas.
Mas dentre os argumentos de Presença também é possível encontrar aqueles que
defendem a proposição de que o programa funciona. No exemplo acima justifica-se o seu
funcionamento a partir do dado de que até hoje o programa não foi extinto. Ele ainda existe,
logo funciona.
Assim como os representantes da UPP e do PAC apelam para argumentos de presença
para reforçar a sua legitimidade, afirmando-se legítimos porque seus resultados são visíveis,
os representantes da UPP Social e Territórios da Paz apelam para esta mesma forma de
argumento para justificar a sua falta de legitimação, afirmando-se injustamente
deslegitimados, porque seus resultados, embora importantes, não são tão fáceis de se
visualizar ou de serem associados ao nome do programa, porque estes não colocam a sua
marca.
Em suas similaridades com o programa UPP Social, o Territórios da Paz também
parece se pautar em premissas que remetem à lógica da inversão, aqui talvez levadas a um
ponto ainda mais extremo. Embora tenham partido de um objetivo semelhante ao da UPP
Social de encaminhamento de demandas, o Territórios da Paz percebe que é preciso fortalecer
as redes comunitárias para que estas realizem suas próprias demandas, não apenas invertendo
a lógica das políticas públicas, mas também tentando fazer de si mesmos um intermediário
desnecessário. Fomentam as ações dos moradores e deixam que eles assinem as ações
conjuntas. Mas os efeitos adversos dessa lógica de inversão na legitimidade do programa
podem ser observados por meio da análise retórica.
O CRAS, por sua vez, apresenta uma proposta que se diferencia de todas as anteriores.
Com o objetivo de proporcionar à população acesso aos seus direitos, fortalecendo os
vínculos familiares, e buscando atender às necessidades dos territórios em que atuam, o
CRAS tem um papel muito mais voltado para a prevenção:
Para atender esse território, para atender às necessidades desse território, para visualizar
questões das, né, quais são as demandas apresentadas nesse território, que que o CRAS
pode entrar com uma questão da prevenção porque o CRAS trabalha mais com a questão da
prevenção, né? O CRAS ele trabalha, todo enfoque do CRAS é trabalhado em cima das
prevenções. De prevenir e fazer algum tipo de trabalho (Representante do CRAS 8, Favela
da zona Norte).
156
Em termos mais concretos, o órgão é responsável por dar acesso às famílias aos
serviços prestados pela prefeitura, dar acesso ao Bolsa Família, principal programa de
transferência de renda, realizar o Cadastro Único, que dá acesso a benefícios como tarifa
social ou isenção de taxas em concursos públicos, e informações sobre os direitos da
população em geral. Além disso, são realizados grupos de convivência que dão suporte às
famílias.
Como uma programa de prevenção, muitas vezes os moradores não procuram
diretamente pelos serviços do CRAS, e muitas vezes desconhecem todas as suas ações. Para
lidar com isso, os representantes do CRAS procuram circular pelo território e divulgar
informações sobre os direitos dos moradores, como propostas de cursos ou possíveis
benefícios, nas associações de moradores.
Além disso, preocupam-se em acompanhar eventos dos moradores das favelas, e
participar de reuniões como as organizadas pela UPP, por exemplo, como forma de tentar
antecipar necessidades que possam ser prevenidas por meio de ações futuras do CRAS.
Conforme explicou uma funcionária: “Que tipo de população é essa que a gente atende? A
gente sempre tenta estar dentro dos eventos que acontecem. Então sempre quando tem uma
reunião ou acessar alguma coisa, a gente tenta estar junto, estar vendo qual é a necessidade”
(Representante do CRAS 8, Favela da zona Norte).
As estratégias de legitimação utilizadas pelo CRAS revelam que a atuação do
programa voltada para a prevenção também pode trazer problemas de legitimidade. Assim
como os programas UPP Social e Territórios da Paz, que perdem legitimidade porque não
apresentam resultados visíveis e dividem os créditos de suas ações com os moradores, o
CRAS, ao trabalhar na prevenção, também tem dificuldades de apontar seus resultados
concretos e, portanto, visíveis. Assim, também partem para estratégias voltadas para justificar
a falta de legitimidade, ou tentam apontar aspectos mais subjetivos e emocionais como
indicativos do sucesso do programa. Os principais argumentos utilizados pelos representantes
do CRAS foram classificados como de Presença ou Pathos. Exemplos do primeiro tipo
podem ser vistos na Tabela 17 a seguir:
Tabela 17. Estratégias de Legitimação – CRAS – Presença
Estratégias de Legitimação
Exemplos Estrutura do Argumento
Presença:
“uma fala bem antiga, o pessoal fala ‘ah, enxugando gelo’. ‘Enxugando gelo, não-sei-o-
Dado: O CRAS não consegue ver os resultados de suas ações (Portanto) Proposição: Seus funcionários ficam
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Para justificar uma possível perda de legitimidade, os representantes do CRAS partem
para argumentos de presença e defendem que diante do dado de que “O CRAS não consegue
ver os resultados de suas ações”, acaba que “seus funcionários ficam com a sensação de que
nada foi feito”. Com base na premissa de que “Enxergar os resultados das ações é importante
para a sensação de que se fez algo” justificam-se pela falta de resultados concretos a serem
apresentados como meio de provar que o órgão realmente funciona, que este é realmente bem
sucedido em suas ações.
Mas também partem para a prova mais concreta que possuem, advinda de seu
principal produto: os números do bolsa família. Como um programa de prevenção, que não
tem como avaliar quantitativamente as suas ações (afinal, como contar quantas famílias
qu’".(...), eu acho que por a gente não ver a questão do que a gente produz, da questão do resultado, né, de pesquisa. A mesma coisa, você está fazendo a sua pesquisa. Se você não vir esse resultado depois dá uma sensação esquisita porque parece que você fez, fez, fez e não conseguiu nada. Eu acho que essa questão da Secretaria, de você não ver o que você constrói, isso é muito complicado porque você, te dá a sensação de que você, de que não foi feito” (Representante do CRAS 8, Favela da zona Norte). (...) Por exemplo, do grupo que a gente atendeu, a gente tem referenciados aqui na comunidade, é, eu não lembro de cabeça mas a gente tinha sei lá 4 mil pessoas incluídas no Bolsa Família, né, porque as comunidades aqui não são tão grandes, né Porque aqui por área de território, [dessa região da zona Norte] são 38 mil famílias, famílias, não, a gente chama de pessoas para o IBGE. Mas 38 mil pegando tudo, (...). Então se a gente pegar nesse todo, a gente não tem esse retorno, mas que ele dá certo, dá, né, que ele consegue atender àquelas famílias vulneráveis. (Representante do CRAS 8, Favela da zona Norte)
com a sensação de que nada foi feito (“enxugar gelo”) Garantia: Enxergar os resultados das ações é importante para a sensação de que se fez algo Dado: Na região de atuação do CRAS existem 4 mil pessoas incluídas no Bolsa Família (Portanto) Proposição: O CRAS dá certo Garantia: A efetividade do CRAS pode ser avaliada pelo número de famílias atendidas pelo Bolsa Família
158
deixaram de morrer de fome em decorrência das ações do CRAS), os agentes apontam para os
números que têm: “Na região de atuação do CRAS existem 4 mil pessoas incluídas no Bolsa
Família”. Portanto, “O CRAS dá certo”.
Mas este parece ser o único elemento mais concreto que pode ser apontado. Na
ausência de outras alternativas, em suas estratégias de legitimação, os representantes do
CRAS partem para argumentos de Pathos, e com base em respostas afetivas dos moradores
sustentam a legitimidade do programa. Alguns exemplos são apresentados na Tabela 18 a
seguir:
Tabela 18. Estratégias de Legitimação – CRAS – Pathos
Estratégias de Legitimação Exemplos Estrutura do Argumento Pathos: Argumentos baseados em emoção
“Algumas mães desses jovens vieram agradecer muito o Pró-Jovem. ‘O que que vocês fizeram pelo meu filho. Como ele mudou com esse trabalho', que a gente tem o professor de jiu-jitsu, que ele trabalha junto com os outros. Então, assim, eu acho que isso é uma coisa positiva como uma comunidade reconhece um equipamento público, que faz um trabalho, sabe qual o trabalho desse equipamento. Quando a gente vai para as comunidades, que não são todas que a gente consegue fazer, eu acho que é uma visão da própria comunidade também, mas quando a gente vai lá na comunidade e a gente atende aquela comunidade, a gente vê o retorno dessas pessoas, eu acho que isso é muito positivo. Eu acho que isso a gente ganhou aqui no CRAS, a gente teve muita visibilidade” (Representante do CRAS 8, Favela da zona Norte). “Sabe como eu vejo como funciona? Quando você cancela uma atividade e aparece criança. Agora o grupo de 10 a 17 anos parou de funcionar, e a dinamizadora recebeu vários questionamentos no Facebook sobre porque o grupo não ia voltar” (Representante do CRAS 1, favela da zona Sul)
Dado: Os moradores das comunidades reconhecem o trabalho do CRAS (Portanto) Proposição: O CRAS tem visibilidade Garantia: A visibilidade do programa é definida pelo reconhecimento dos moradores Dado: As crianças da comunidade demandam a continuidade das atividades do CRAS (Portanto) Proposição: O CRAS funciona Garantia: A efetividade do programa é definida pela demanda que os moradores fazem de suas atividades
159
Os agentes apontam para o fato de que “Os moradores das comunidades reconhecem o
trabalho do CRAS” ou de que “As crianças da comunidade demandam a continuidade das
atividades do CRAS” para sustentar as suas proposições de que, portanto, “O CRAS tem
visibilidade” ou de que “o CRAS funciona”. Para isso, partem das premissas de que “A
visibilidade do programa é definida pelo reconhecimento dos moradores” ou de que “A
efetividade do programa é definida pela demanda que os moradores fazem de suas
atividades”, como alternativa às premissas mais frequentes de que são resultados concretos e,
portanto, visíveis que garantem o bom funcionamento de um programa. Foram as alternativas
que encontraram diante do reconhecimento de que “O trabalho do CRAS não é valorizado”
dado que “o CRAS trabalha com prevenção”.
Ao conjunto de premissas nas quais pautam-se os representantes do CRAS chamarei
aqui de Lógica de Prevenção. Seguindo esta lógica, o programa procura antecipar demandas e
informar à população a respeito de seus direitos, além de oferecer benefícios, como o Bolsa
Família, que previnem possíveis dificuldades futuras. Como os efeitos da prevenção não
podem ser mensurados, a falta de resultados mais visíveis afeta a legitimidade do programa, e
Mas ainda assim, o olhar que se tem, principalmente para a Assistência é uma coisa como se fosse uma coisa secundária. (...) Por que você quer o quê? Que o sujeito não chegue lá, lá naquela zona de vulnerabilidade que é impossível de alcançar, que ele já está na rua, que ele rompeu os laços. Você quer o quê? Trabalhar essa família para que ele nunca chegue lá. É muito mais vantajoso para o Estado e menos oneroso também, trabalhar antes de acontecer. Você está trabalhando na prevenção. Mas não é isso. Não tem assim uma valorização do profissional que trabalha na ponta e isso que eu acho estranhíssimo, porque a gente está trabalhando com coisas, cargas negativas, cargas emocionais tão negativas por que que a gente não é tão valorizada quanto os cargos que a gente carrega no trabalho? E isso não existe. (Representante do CRAS 3, favela da zona Sul)
Dado: O CRAS trabalha com prevenção (Portanto) Proposição: O trabalho do CRAS não é valorizado Garantia: Trabalhos de prevenção não são valorizados
160
por isso usam estratégias de legitimação para contornar o problema, como justificativas
alternativas para a possível deslegitimação e o reconhecimento dos moradores como um
resultado significativo.
As diversas lógicas apontadas até aqui, bem como suas principais características, estão
sintetizadas na Tabela 19 a seguir:
Tabela 19. Lógicas institucionais em ação
Lógica
Civilizatória
Lógica de
Confronto
Lógica da
Inversão
Lógica da
Prevenção
Objetivos
Perseguidos
Transformar a
favela para o bem
Retomada do
Território
Encaminhamento
de demandas;
Fortalecimento de
redes locais
Antecipação de
demandas; Acesso
a benefícios.
Práticas
Transferência de
valores
Planejamento sem
participação dos
moradores
Ostensividade
Participação dos
moradores e
gestores de campo
nas tomadas de
decisões;
Fortalecimento das
redes para que os
moradores façam
suas próprias
demandas;
Produtos assinados
pelos moradores
Divulgação dos
direitos da
população;
Participação em
eventos da
comunidade. E a
Bolsa família?
Estratégias de
Legitimação
Ethos: argumento
baseado em
valores;
Ethos: argumento
baseado na
superioridade;
Pathos:
argumento
baseado em
emoção
Logos:
argumentos
racionais com
base em índices
de criminalidade;
Presença:
Argumento
baseado em uma
evidência de
movimento ou
vivacidade
Presença:
Argumento
baseado em uma
evidência de
movimento ou
vivacidade
Presença:
Argumento
baseado em uma
evidência de
movimento ou
vivacidade;
Pathos:
Argumento
baseado em
emoção
Agentes
UPP
PAC
UPP UPP Social
Territórios da Paz CRAS
161
Aponta-se aqui para lógicas diferentes por trás da ação de agentes que, além de
jogarem o mesmo jogo no campo do Estado, o fazem restritos a um mesmo espaço
geográfico. Ainda que compartilhem um ideal maior em comum, aqui apontado como a ideia
de integração, têm objetivos diferentes, formas de fazer diferentes e, pautados em premissas
diferentes, não concordam em muitas coisas, dificultando cooperações e intensificando
disputas.
Ainda, por meio da análise retórica, pode-se perceber que os agentes tentam se
legitimar por meio do discurso e, seguindo as suas lógicas próprias, utilizam estratégias
distintas para tal. Mais do que isso, as estratégias de legitimação já ajudam a antecipar as
posições dos agentes neste campo. Enquanto a UPP e PAC reforçam sua legitimidade, CRAS,
UPP Social e Territórios da Paz também se preocupam em justificar a sua falta de
legitimidade, que é assumida no discurso que a tenta justificar. Entretanto, dentro de uma
configuração de relações de poder que constitui o campo, a posição dos agentes, e aqueles que
marcam os polos de dominantes e dominados, pode ser acessada em termos do perfil distinto
de capital associado a ele (EMIRBAYER e JOHNSON, 2008). É nesse sentido que uma
análise das acumulações de capitais pelos agentes será apresentada a seguir.
5.3 A Dinâmica dos Capitais: Marcando Posições
Voltando à audiência pública, com a qual abri o capítulo anterior, foi também ali,
quando pela primeira vez, quase todos os agentes do meu campo apareciam juntos em um
mesmo lugar, que pude perceber de forma mais clara uma diferença na legitimidade dos
agentes. Embora aquele fosse um evento “neutro”, que não levava o nome de nenhum dos
meus agentes, a figura pública que o organizava (uma renomada política) não hesitou em
destacar a UPP como um ator que “ajudou muito a tornar esse, essa reunião em realidade”
(Audiência Pública gravada, 19/06/2013), e como tal ocupava um lugar central em cima do
palco. Um representante do PAC também foi chamado ao palco e anunciado como uma figura
que todos ali conheciam bem, e ao longo da audiência foi alvo de algumas críticas dos
moradores, as quais teve oportunidade de responder. A gestora da UPP Social, que tinha
acabado de voltar ao campo, após a fase de reformulação do programa, foi chamada ao palco
em improviso, e o nome do IPP foi enfatizado. Depois, a gestora me confessou que ficou
bastante embaraçada com a situação para a qual não havia se preparado. Mas não teve grandes
problemas, pois pode permanecer calada durante toda a audiência, sentada em um canto do
162
palco, quase esquecida. Já o Territórios da Paz não foi mencionado em nenhum momento, e
também não subiu ao palco – assistia à audiência da plateia, junto aos moradores.
Era claro que o grau de legitimidade dos programas não era homogêneo, e como a
análise retórica pode revelar, alguns dos agentes reconhecem suas dificuldades de
legitimação. Percebi que esta diferença podia ser explicada pelas dinâmicas de capitais.
Pautando-me na ideia de Bourdieu (2011b) de que é a partir da análise da acumulação de
capital que podemos compreender as posições dos agentes no campo, passei a me atentar aos
recursos acumulados pelos agentes, bem como às diferenças de valorização de tais recursos.
5.3.1 O Capital da Força Física
Em novembro de 2013, uma moradora que habitava uma região mais baixa da favela
da zona Norte, veio me contar, assustada, que havia visto traficantes armados em uma parte
alta do morro. Confessou que já havia ouvido relatos do domínio do tráfico nestes territórios,
mas que se recusava a acreditar até aquele dia, quando viu com os próprios olhos aquilo que
tentava ignorar. A minha surpresa, ao ouvir o relato, se dava muito mais devido ao espanto da
moradora do que por conta da informação que ela me passava. Eu já havia ouvido relatos, em
ambas as favelas, a respeito de traficantes “bancando” armados, e em algumas regiões mais
altas do morro, isso parecia ser muito frequente. Até mesmo os policiais me falavam sobre
isso, muitos deles revoltados por receberem recomendações do comandante para que
evitassem circular por essas regiões, evitando, assim, conflitos armados – nunca positivos
para a reputação das UPPs. Em ambas as favelas, todos sabiam da existência de regiões onde
o tráfico ainda exercia algum domínio. Embora as bocas fossem transitórias, o que dificultava
a circulação pelo morro, áreas, em geral mais altas, eram reconhecidamente “perigosas”,
porque ali havia um risco de haver traficantes “bancando” armados.
É inevitável perceber, portanto, que a disputa em torno do capital da força física entre
os policiais e os traficantes ainda se faz presente nos territórios de favelas. Embora as UPPs
tenham entrado para reaver o monopólio do uso legítimo da violência nestes espaços, e ainda
que atualmente veja-se nas favelas muito mais armas de policiais do que de traficantes (estas
em geral restritas às regiões mais altas), a disputa ainda se faz presente, e os traficantes ainda
lançam mão do poder que tinham no passado, e da constante ameaça de que o seu domínio
possa retornar, para continuar a impor aos moradores certas regras.
A coexistência entre as leis do tráfico e da UPP serão analisadas em mais detalhes no
último capítulo desta tese. Entretanto, cabe aqui ressaltar uma importante espécie de capital,
163
valorizada no campo burocrático do Estado, a qual as UPPs vieram resgatar, apresentando-se
como os principais representantes do Estado nessa missão: o capital da força física.
Bourdieu, Wacquant e Farage (1994) apontam como necessária para a consolidação do
Estado uma espécie de capital a qual os autores denominam de capital da força física, que está
associada à concentração das forças de coerção (exército e polícia) e de armamentos. Segundo
Bourdieu (2014), o processo de concentração da força física no campo burocrático do Estado
desenvolve-se para uma força pública, que significa a retirada do uso da força daqueles que
não estão ao lado do Estado. O processo de concentração do capital da força física é
acompanhado de uma desmobilização da violência ordinária, ou seja, “o Estado retira dos
agentes individuais o direito de exercer a violência física” (BOURDIEU, 2014, p. 268).
Bourdieu (2014) chama atenção para o fato de que é preciso pensar o Estado em
relação a um duplo contexto: por um lado, em relação a sua concorrência com outros Estados,
sendo necessário concentrar capital da força física para lutar externamente pelo seu território;
por outro lado, em relação a um contexto interno, a contrapoderes internos, que demandam a
criação de forças policiais destinadas à manutenção desta ordem interna. Este último viés
parece retratar o caso aqui analisado, no qual uma força policial foi criada para tentar reaver o
capital da força física da mão de traficantes nos territórios de favelas.
Bourdieu (2014) explica que a concentração de capital da força física pelo Estado, ou
seja, o monopólio da violência legítima, implica que a violência física só possa ser exercida
por “um grupamento especializado, especialmente mandatado para esse fim, claramente
identificado no seio da sociedade pelo uniforme, portanto um grupamento simbólico,
centralizado e disciplinado”. As UPPs, no caso descrito, tentam se impor nos espaços de
favelas como os únicos detentores do monopólio da violência legítima, e por isso não apenas
impõem a sua presença armada dentro destes territórios (como a Polícia Militar do Rio de
Janeiro vinha fazendo a anos sem sucesso), mas também apelam para a execução de projetos
sociais, para a noção de polícia de proximidade, e para a tentativa de estabelecer vínculos de
confiança com os moradores, em busca de sua legitimidade. Reconhecendo a influência do
passado conflituoso e “fracassado”, a PM optou, ainda, por adotar um uniforme diferenciado
nas UPPs: ao invés de usarem o mugue, ou o 3º B como é oficialmente chamado o uniforme
de combate da PM, os policiais da UPP se vestem com o 5º B ou o uniforme social da PM.
Esta medida foi deliberadamente adotada com o propósito de desvincular a imagem das UPPs
de uma polícia de combate.
164
Vale ressaltar que os demais agentes do campo burocrático do Estado também podem
recorrer ao capital da força física, mas permanece o recurso a este grupamento simbólico,
UPP, por meio do suporte dos policiais em suas atividades. Em minha pesquisa de campo, o
único agente que parecia lançar mão deste recurso era o PAC, que, em algumas situações,
recorria aos policiais da UPP para auxiliá-los nas remoções, quando as negociações não
avançavam.
Os meninos do tráfico, ainda presentes na favela, ainda pareciam possuir capital da
força física dentro destes territórios. A posse deste capital revela-se não apenas pelo porte de
armas, mas também pela legitimidade que em certa medida os moradores ainda atribuíam a
eles – revelada, por exemplo, pela expressão “meninos” por meio da qual os moradores
referiam-se aos traficantes ou pelas frequentes afirmações de que os traficantes os tratavam
com respeito, conforme discutido no início deste capítulo.
Ainda detentores do capital da força física, os traficantes tinham as suas formas de
retaliação aos moradores, mesmo com a presença da UPP. Com o tempo comecei a ouvir
relatos de moradoras que foram expulsas do morro por traficantes porque mantinham relações
amorosas com policiais. Ouvia-se casos de moradores punidos por conversarem com policiais,
como um morador da favela da zona Norte que teve a porta do seu estabelecimento marcada
com um símbolo da UPP. Ou comerciantes que recebiam os policiais que foram proibidos de
assim fazê-lo:
Tem uma senhora que ela morava bem em frente a estes prédios aqui da UPP, ela fazia
comida na casa dela, até o Major almoçava a comida na casa dela, era uma delícia e a gente
come a vontade. Ela faz e coloca uma garrafa de coca-cola na mesa, pode beber à vontade,
então era uma delícia a comida dela, sendo que ela saiu daqui porque a cozinha dela estava
ficando pequena, era cozinha de casa. Ela alugou uma lojinha lá embaixo e a gente ía para
lá comer...aí agora a pouco tempo ela veio dizer que estava proibida de vender para a gente,
porque foram lá e a ameaçaram. Mas ela já vendia há muito tempo para a gente, não sei se
foi por conta destes últimos acontecimentos, ela veio até falar direto com o comandante. E
o comandante: “A única coisa que eu posso fazer por você é pedir para eles não irem mais
almoçar lá, infelizmente ! Que a senhora está sendo ameaçada...” Ela tratava a gente como
uma mãe, todo mundo chamava ela de tia, vamos almoçar lá na tia, vamos almoçar lá na
tia ! Ela tem 2 filhos e uma netinha que também adora a gente (Representante da UPP 8,
Favela da zona Sul).
Mas se por um lado ainda impõem as suas leis, por outro os traficantes são com
frequência denunciados, de forma anônimo para evitar retaliações, aos policiais das UPPs, o
que aponta para uma perda de sua legitimidade.
165
Por outro lado, também expressava-se em alguns momentos uma falta de legitimidade
da UPP em seu monopólio do uso legítimo da violência. Quando os policiais recorriam ao
capital da força física, para realizar prisões e apreensões, os moradores, muitas vezes,
praticavam atos de agressão aos policiais, estimulados por conflitos decorrentes de
abordagens policiais, tentativas de prisões, interrupções de festas. Foram incontáveis os
relatos de policiais que receberam pedradas e até gavetadas de moradores revoltados. Na
favela da zona Norte, um policial retornou à base com a cabeça aberta atingida pelas pedras.
Na favela da zona Sul, até crianças se engajavam nas ações: “Eu fiquei muito surpreso, para
não dizer bem apavorado, no dia que eu vi um policial fazendo uma prisão por tráfico de
drogas, e crianças jogando pedras no policial que estava na ocorrência.” (Representante da
UPP 3, Favela da zona Sul).
É claro que, em alguma medida, as UPPs já foram conseguindo readquiri o monopólio
do uso legítimo da violência nas favelas, e não é à toa que os policiais das UPPs circulam
armados por aqueles espaço diariamente, e ainda assim muitos moradores refiram-se à favela
atual como uma “favela sem armas” – a legitimidade também parece levar a uma
invisibilidade do armamento. Entretanto, também é preciso reconhecer, que este monopólio
do uso legítimo da violência ainda vem sendo disputado com os traficantes, que hoje ainda
expõem armas em certas regiões do morro, e ainda encontram alguma obediência nos
moradores de favelas.
A forma como parti dos dados para chegar ao capital da força física é sintetizada na
Figura 4 abaixo:
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Capital da Força Física
Armamentos
Contingente de forças de coerção presentes do território
Legitimidade no uso da força
- Agressão de moradores aos policiais
- Invisibilidade do armamento policial
- Obediência dos moradores ao tráfico
- Denúncias das atividades do tráfico à UPP
- Presença de policiais nas favelas- Presença de traficantes nas favelas
- Exposição de armas policiais nas favelas
- Exposição de armas do tráfico em regiões mais altas da favela
Figura 4. Capital da força física
Conforme retrata a Figura 4 anterior, o capital da força física nas favelas é disputado
entre policiais da UPP e traficantes. Ambos expõem armas dentro das favelas, embora os
primeiros mais do que os segundos. Ainda, ambos apresentam o seu contingente de forças de
coerção nas favelas. A legitimidade do uso da violência parece não estar plenamente
estabelecida para nenhum dos polos desta disputa. Tento os policiais das UPPs quanto os
traficantes parecem ser questionadas em alguns momentos, os primeiros quando são agredidos
e os segundos quando são denunciados pelos moradores. Mas, em alguns momentos, ambos
encontram obediência nos moradores, o que implica a ambiguidade de leis que marca a favela
“pacificada”, conforme será discutido no último capítulo.
5.3.2 O Capital Social
Eu, alguns moradores e dois representantes do Territórios da Paz nos dirigíamos para
um chope após um dia de trabalho na favela, quando uma moradora lembrou com saudades da
última gestora da UPP Social que havia deixado o campo, da qual se tornara tão próxima. A
167
gestora do Territórios da Paz reagiu de imediato: afirmou que a antiga gestora da UPP Social
não fazia nada, e que a moradora apenas sentia sua falta porque tinha ficado amiga dela. A
moradora, por sua vez, respondeu que a gestora do Territórios da Paz não ligava muito para
ela, e apontou um outro grupo de moradores como os seus melhores amigos e, portanto, alvo
de mais atenção.
Depois de muitos chopes no bar e cafés em casas da favela, os quais envolviam
momentos informais de socialização entre representantes do Estado e moradores, àquela
altura já estava claro para mim que agentes do Estado também estabeleciam laços de amizade
e outras relações pessoais com os moradores da favela. E as frequentes crises de ciúmes
envolvendo, principalmente, representantes do Territórios da Paz e da UPP Social,
apontavam-me para uma disputa destas relações.
A disputa por relações sociais e as redes de relações que os agentes do campo
burocrático do Estado desenvolviam nas favelas aproximavam-me de uma outra espécie de
capital retratada por Bourdieu: o capital social. Bourdieu (2012) refere-se ao capital social
como sinônimo de uma força social que possibilita que os agentes entrem nas lutas pelo
monopólio de poder. Como um capital de relações (BOURDIEU, 2014), pode ser definido
como: “the aggregate of the actual or potential resources which are linked to possession of a
durable network of more or less institutionalized relationships of mutual acquaintance and
recognition – or in other words, to membership in a group20” (BOURDIEU, 1986, p. 244).
Segundo Bourdieu (1986), esta rede de relações que constitui o capital social é produto
de estratégias de investimento, que podem se dar de forma individual ou coletiva, de forma
consciente ou inconsciente, voltadas para o estabelecimento de relações sociais que sejam
úteis para os agentes do campo. Nos espaços de favelas, os seus habitantes apresentam-se
como recursos extremamente úteis para os agentes do campo burocrático do Estado, na
medida em que são importantes fontes de informação, e por possibilitarem acessos dentro das
favelas que podem facilitar o trabalho dos agentes do Estado. Além disso, são estes mesmos
habitantes importante fonte de legitimidade, por meio de seu reconhecimento. É nesse sentido
que o capital social, especialmente na sua forma de redes de relações duráveis com os
moradores, estava em disputa no campo burocrático do Estado que eu observava na favela, e
era fácil perceber as diferenças em seu volume entre os agentes.
20 Tradução Livre: o agregado de recursos reais ou potenciais que estão ligadas à posse de uma rede durável de relações de conhecimento mútuo e reconhecimento mais ou menos institucionalizadas - ou em outras palavras, a participação em um grupo
168
O contato direto com a associação de moradores é realizado por todos os agentes do
campo burocrático do Estado, que entendem que encontram ali as lideranças da comunidade,
os principais agentes com que devem se relacionar e estabelecer vínculos duradouros. Em
geral, esta primeira relação é estabelecida com sucesso, afinal os moradores também tem
interesses em criar relações com os agentes do Estado, por meio dos quais podem conseguir
benefícios para a favela. Há um reconhecimento, em ambas as favelas, de que a associação de
moradores é, de forma geral, o principal canal de comunicação com os agentes do Estado.
Entretanto, uma penetração para além da relação com a associação não é atingida por todos os
agentes do campo burocrático do Estado em ação nas favelas.
Os representantes da UPP declaram abertamente o seu interesse em realizar estratégias
para se aproximar da comunidade, especialmente no momento da implementação. Os policiais
que permaneceram na UPP da favela da zona Sul desde o seu período inicial contam que seu
primeiro comandante usava estratégias para se aproximar, como a circulação mais intensa
pela comunidade, a realização de projetos sociais, e a simples simpatia. Não é à toa que os
moradores lembram dele com saudade, e defendem que foi o melhor comandante que já
tiveram até hoje.
No momento da pesquisa, os policiais de ambas as favelas apontavam como as suas
principais relações a associação de moradores e os idosos das comunidades, que os recebiam
muito bem. As relações de verdadeira amizade, mais duráveis, eram pontuais, e muitas vezes
estavam relacionadas com o papel social assumido pelo policial. Na favela da zona Norte
pude presenciar dois importantes momentos de relações afetivas mais fortes entre policiais e
moradores: o primeiro ocorreu quando um policial que realizava um projeto de boxe com as
crianças da favela foi transferido para outra UPP. Alguns moradores, principalmente as
crianças e as mães das crianças, que já haviam estabelecido com ele vínculos mais duráveis,
se manifestaram contra sua transferência, e conseguiram a permanência daquele policial ali.
Situação semelhante aconteceu quando a policial responsável pela P5, relações públicas da
UPP, foi convidada pelo comandante que acabava de ser transferido, a acompanha-lo para a
nova UPP. Ela me relatou que embora gostasse muito do comandante, ficou comovida com o
apelo de alguns moradores, que demandaram de forma carinhosa a sua permanência. Por
conta de sua função de relações públicas da UPP, esta policial em particular já havia
conseguido criar uma rede de relações com moradores que participavam dos eventos, como
festas ou passeios, organizados por ela. Cedendo aos apelos, acabou ficando.
169
Também me foram relatadas outras relações de amizade entre policiais e algum
morador específico, como o caso de um policial que às vezes assistia televisão na casa de uma
senhora. Casos de relacionamentos amorosos entre policiais e moradoras também se
apresentaram em ambas as favelas. Conforme me relatou um policial:
Tem policial, tem o cara aqui que tinha namorada, esposa, tia e dormia. (...) tinha colegas que davam ideia mesmo. Tinha um monte que casou com mulheres da favela, largam filhos e esposa e casam, não veio morar aqui, mas no final de semana eu vejo e pergunto: “O que você está fazendo aqui”? O cara de bermuda e camiseta... “Estou visitando a minha sogra”. Tem para tudo. Aqui é danado para fazer isto (Representante da UPP 19, Favela da zona Norte).
Entretanto, as situações narradas são exceções. É perceptível entre os moradores um
certo temor em relação à UPP, e um afastamento forçado. Depois de um longo histórico de
relações mais do que conturbadas entre moradores e policiais, o estabelecimento de relações
de proximidade entre ambos não é natural.
As relações passadas entre polícia e favela ainda assombram os moradores, e a
histórica falta de confiança no Estado também faz crer que as UPPs não vão durar para
sempre e que o poder do tráfico voltará pronto para punir aqueles que tiverem apoiado as
UPPs. Esta é uma narrativa frequente entre os moradores, que com medo de possíveis
retaliações, preferem se manter afastados. De acordo com uma moradora:
Ninguém quer contato com eles. Porque também tem aquele lado de ser reprimido pelo
outro lado, né. Porque quem fica de muito papo com a polícia sabe que a pessoa vai achar,
‘ah, tá dando, quem mora no morro, não sei o quê’. Vai chamar de X-9, ninguém quer o
contato com a polícia porque sabe que polícia não presta (Morador 18, Favela da zona Sul).
O temor de receber o rótulo de X-9, que muito tem a contribuir para futuras punições
do tráfico, leva os moradores a evitarem até mesmo um “bom dia” aos policiais. Quando
caminhava com moradores pelas vielas das comunidades, percebia que muitos deles passavam
pelos policiais como se ali não tivesse ninguém – postura que eu imitava, também com temor
de punições. O medo de retaliações também se refletia em uma resistência à entrada na UPP:
Você sabe que isso aqui era um morro que era ocupado pelo poder paralelo. Aí vieram as
UPPs, que estão entrando em todas as favelas. Então o morador ainda tem muito receio de
ir à UPP, porque está dentro da UPP. A pessoa ainda tem aquele receio, ainda existe aquele
medo, aquele receio (Morador 25, favela da zona Norte).
Como consequência, frequentei reuniões da UPP extremamente vazias, que chegavam
a gerar embaraço no comandante presente. A festa de debutantes organizada pela UPP da
favela da zona Norte também refletiu esta questão. Pouquíssimas jovens participaram da festa,
e mesmo as que assim o fizeram mostravam resistência de ir à UPP. Relatos frustrados dos
policiais também narravam situações de distanciamento da população:
170
Teve um dia que eu tava subindo com a viatura e vinha uma senhora subindo essa rua daqui
e não tem como, é de cortar o coração. Tem que chegar pra pessoa... Às vezes é uma coisa
complicada pra gente, mas até pra própria senhora, que ela não aceitou, que eu ia levar ela
até o lugar. Porque se fosse a minha mãe, a minha avó, uma coisa desse tipo... Só que ela
não vai aceitar, porque ela entrou na viatura do policial. Então lá em cima, quem tá vendo
tá achando que ela é informante do tráfico, que tá informando a gente aqui de alguma coisa
do tráfico (Representante da UPP 20, Favela da zona Norte).
A lógica era clara: “Então você fecha com o que é lei do morro e você fica tranquila a
vida toda ou você esperar uma ajuda do Estado que pode ser que sim, uma ajuda mais ou
menos, coisa e tal, entendeu” (Morador 20, Favela da zona Sul).
Dentre as muitas coisas que eu aprendi com os moradores, esta foi uma delas, e
rapidamente este temor me contagiou e começou a afetar a minha pesquisa. Diferentemente
dos moradores, eu precisava ter contato com os policiais, pois estes eram agentes importantes
do campo que eu me propus a analisar. Tive que agir com muito cuidado, e a relação com os
policiais acabou por se tornar uma fonte constante de tensão. Sentada em um bar com um
grupo de moradores, percebi que na mesa ao lado havia um grupo de policiais dentre os quais
eu conhecia alguns. Meu temor de que eles se aproximassem e me cumprimentassem com
intimidade, me levou a usar uma desculpa de horário, para deixa-los naquela noite. Quando
cruzava com um policial conhecido evitava o olhar para não demonstrar o contato. Quando
saia tarde da UPP e os policiais me ofereciam carona na viatura para descer o morro, eu
negava enfaticamente, e creio que entendendo o motivo da minha posição, eles não insistiam
mais.
Com a ampla troca de comando em outubro de 2013, a situação de ambas as favelas,
ambas sujeitas a um novo comandante, começou a se agravar. Na favela da zona Sul, onde o
tráfico já tinha força, a troca de tiros virou rotina, e como consequência, no prédio da UPP,
que já recebia poucas visitas, agora quase não se via morador. Eu, pesquisadora, não podia
romper o contato, e tentava, disfarçadamente, continuar a frequentar a UPP. Quando pegava
um mototaxi para me dirigir à UPP, indicava a direção de outro destino próximo, tentando
esconder meu verdadeiro paradeiro. Conforme as situações de conflito se agravavam, recebi
conselhos dos representantes da UPP Social, com os quais às vezes desabafava meu estado de
tensão, para deixar de frequentar a UPP naquele período. Cheguei a desmarcar algumas visitas
por esta razão. Mas ao perceber que minha pesquisa poderia ser afetada, decidi conversar com
um morador que eu sabia ter contato com os meninos do tráfico. Expliquei a ele o meu temor,
e perguntei se eu sofreria retaliação por entrar com tanta frequência no prédio da UPP. Ele me
disse: “Fica tranquila. Os meninos já sabem quem você é, e você já está autorizada no morro.
171
Eles sabem o que você faz na UPP” (Notas de campo, 04/11/2013). Com esse respaldo,
consegui relaxar e seguir, ainda com cuidado, minha pesquisa na UPP.
As retaliações àqueles que estabeleciam relações com os policiais, narradas na seção
anterior, eram conhecidas e surtiam o efeito desejado: um afastamento entre a comunidade e
os policiais. Isto não significa que alguns moradores não frequentassem reuniões da UPP, não
entrassem em seu prédio, ou não os dessem “bom dia” – até algumas relações pontuais de
amizade ainda existiam. Entretanto, conforme o clima de conflito com o tráfico esquentava, as
relações entre UPP e moradores esfriavam na mesma proporção.
A agressão de moradores aos policiais, em casos mais extremos, conforme retratado na
seção anterior, também evidenciam o baixo volume de capital social acumulado pela UPP.
Para além de um “bom dia” não dito, as pedradas deixavam clara a insatisfação de alguns
moradores com a presença da UPP. Em termos de capital social, a UPP não saia na frente. E
os policiais reconheciam que a clara oposição presente na favela entre traficantes e policiais
contribuía para o afastamento dos moradores. Identificavam uma competição entre eles e os
traficantes, também pelo capital social da favela: “O traficante ele chega com a figura bem
paternalista, né? De dar o remédio, a cesta básica, dá o bujão de gás, dá a roupa e o lanchinho
da criança, pipa, bola, o refrigerante. O Estado não faz esse papel, o traficante faz, conquista
essas pessoas e domina o território, né” (Representante da UPP 2, Favela da zona Sul).
O PAC, que no momento de minha pesquisa encontrava-se em sua segunda fase,
também era assombrado por um passado ruim. Moradores e agentes do programa lembravam
os problemas da primeira fase: obras não concluídas, cronograma não cumprido, atrasos no
aluguel social – tudo contribuía para uma falta de confiança dos moradores no PAC. Para se
livrar das sombras do passado, os agentes cuidavam de sua postura e tentavam recuperar a
confiança “sendo transparentes com o nosso trabalho. Mostrando como era o trabalho, as
atividades que a gente ia desenvolver, entendeu?” (Representante do PAC 1, Favela da zona
Sul).
Sem interferência do tráfico nesta relação, os moradores frequentavam as reuniões do
PAC, que em geral eram bem cheias e agitadas, e iam ao chamado “canteiro social”, onde a
equipe da frente social do PAC realizava plantões para atendimentos dos moradores,
encaminhar suas questões quando necessário. Mas as relações não passavam disso, eram em
geral formais e restringiam-se ao canteiro social e às reuniões, e as principais demandas eram
encaminhadas via associação de moradores.
172
Mas a lógica do PAC de impor obras prontas e o tratamento infantilizado que às vezes
davam aos moradores em reuniões, fazia com que as relações fossem às vezes conflituosas:
“Se é pra fazer, vamos fazer direito, eles não tão sabendo.... Não tão respeitando, mas uma
vez, veio de fora, querendo impor o que eles acham, acham que ninguém vai reclamar”
(Morador 10, Favela da zona Sul). Embora eu tenha frequentado diversas reuniões do PAC,
nunca pude gravá-las, tamanho o grau de tensão – nunca cheguei nem a pedir autorização para
fazer gravações, porque o clima era de tanta revolta, que temia que as agressões se voltassem
para mim e para o meu gravador. Assistia às reuniões calada, com o meu caderno em mãos. E
em muitas ocasiões pude registrar por escrito os diálogos agressivos que se passavam nas
reuniões: “meu pai me ensinou que quando um burro fala o outro abaixa a orelha” (Notas de
Campo, 25/06/2013), assim um representante do PAC pediu silêncio aos moradores, em uma
das reuniões.
Os motivos por trás da mútua agressividade, que pude presenciar em muitas reuniões,
diziam respeito a atrasos nas obras, e à revolta dos moradores em terem que deixar suas casas
para viver de aluguel social, antes que os apartamentos estivessem prontos. Mas eram nas
negociações que antecediam as remoções que os conflitos se tornavam mais intensos.
Pressões e ameaças aos moradores para que estes deixassem suas casas eram sempre
relatados. E os representantes do PAC, por sua vez, descreviam a agressividade da parte dos
moradores nos processos de negociação: muitos se recusavam a recebe-los, outros os
expulsavam com xingamentos, e outros, ainda mais extremos, jogavam neles coco, xixi e
ratos. As relações eram longe de harmoniosas, e quando mais tranquilas, não passavam de
uma relação formal.
Para um programa como a UPP Social, que tem como propósito o encaminhamento de
demandas, a articulação entre poder público e moradores, o acesso à comunidade é central, e
o estabelecimento de boas relações, um meio necessário para o sucesso do trabalho. Para tal, a
primeira barreira a ser transposta era o nome do programa, que denunciava uma suposta
associação entre a UPP Social e a polícia.
Mesmo antes de entrar em campo, quando a UPP Social abriu processo seletivo para
agentes comunitários, moradores que pudessem trabalhar para o programa, os rumores já
começaram: alguns moradores deixaram de se candidatar para a vaga porque seus familiares
acharam imprudente que se estivesse associado a um programa chamado “UPP Social”.
173
Com a entrada dos agentes em campo, começaram os questionamentos. Os moradores
queriam esclarecimentos a respeito da suposta relação da UPP Social com a polícia, para
garantir sua segurança. Conforme me relatou um morador:
porque o nome da UPP Social para a gente, entendeu, é muito taxante, entendeu. Assim, eu
não. Mas como eu moro num local de área de risco, comunidade, fica um pouco difícil você
lidar com pessoas que estão com crachá escrito UPP Social, entendeu.(...). Eles mesmos me
explicavam e eu mesmo fazia várias perguntas. “Cara, vocês são policiais, vocês são
infiltrados e tudo? Porque se vocês forem o que eu falo para vocês eu vou morrer, poxa, é
sério porque é gravíssimo, pô, dentro da comunidade se o cara vir que você está, entendeu,
só sentir que você está ( ), pode acontecer uma coisa gravíssima com você, entendeu”
(Morador 20, Favela da zona Sul).
Os representantes da UPP Social rapidamente se deram conta dos problemas que o
nome os trazia, e fizeram um esforço para deixar claro que não tinham nenhuma relação com
a polícia além do nome. Passaram a se identificar como representantes da prefeitura, IPP ou
ONU Habitat, evitando ao máximo o nome UPP Social. Não usavam nenhum tipo de
identificação que revelasse o nome oficial do programa, pois sabiam de suas implicações e
das barreiras que podiam criar entre eles e os moradores. De tanto serem questionados a
respeito do nome do programa, já esclareciam de cara:
O nome, não sei se você vai chegar a perguntar, mas eu já vou adiantando, a questão do
nome, às vezes, é muito problemática, muitas das vezes, pra gente. Por que muito, não é um
nem dois, às vezes, 90%, a gente tem que ficar repetindo que nós não somos da polícia.
Porque a UPP Social... mas aí.. “mas, vocês não são policiais?” “Não, nós não somos
policiais”. E aí, quando eles, de fato, têm essa relação que nós não somos policiais, eles
conseguem se desarmar (Representante UPP Social 6, Favela da zona Norte).
Para esclarecer a questão, evitavam também estabelecer contatos mais próximos com
os policiais da UPP, e sua relação com eles, em geral, se resumia a participações em reuniões
entre policiais e a comunidade. O grau de complicação da questão variava de acordo com a
favela, e com a força que o tráfico ainda tinha em cada território. Em meu campo, a diferença
era clara: na favela da zona Sul era muito difícil ter uma relação mais próxima aos policiais –
questão que os representantes da UPP Social local reforçaram em sua fala; na favela da zona
Norte, era um pouco mais fácil.
As relações, no início, eram complicadas. Além do nome, a UPP Social realizava
atividades em campo que poderiam ser mal interpretadas, e levantavam suspeitas. Como
inicialmente cumpriam tarefas de mapeamento, algumas vezes foram interpelados pelo
tráfico, que queria checar quem eram aqueles sujeitos que andavam com um mapa pela favela.
Um agente me narrou a tensão que viveu quando foi incumbido de entregar um mapa do IPP
174
para a UPP local. Explicou que cumpriu sua tarefa em uma noite de chuva, buscando a
máxima discrição, para que não fosse flagrado entregando um mapa aos policiais.
Mas com o tempo o programa foi se consolidando em campo, e desfeitos os primeiros
mal entendidos, a relação com os moradores começaram a melhorar. Participavam ativamente
das reuniões comunitárias, e por diversas vezes pude presenciar os moradores recorrendo a
eles com demandas ou pedidos de ajuda. E até mesmo traficantes, depois de bem esclarecida a
questão, chegaram a levar demandas a representantes da UPP Social, conforme narrado por
um agente:
Mas depois que isso passou, o cara chegou até a me procurar para me dar demanda,
entendeu, já via como coisa útil ali. Por exemplo, uma vez (...) ele me viu chegando com o
pessoal da Rio Luz e tal. Aí foi fazer reclamação que a Polícia estava quebrando a luz lá em
cima. (risos) Quebrando a luz lá em cima do morro para pegar eles ( Representante da UPP
Social 3, favela da zona Sul).
Com a conquista da confiança dos moradores, e em alguns casos até do tráfico, os
representantes da UPP Social passaram a tomar um novo cuidado: em não tornar as suas
relações em campo muito pessoais. Procuravam sempre se posicionar enquanto prefeitura e
marcar sua posição institucional. Criticavam os representantes do Territórios da Paz , no que
apontavam como uma importante diferença entre os programas, em sua postura de
“identificação” com os moradores, uma proximidade muito maior: “eles se posicionam em
coisas muito, quase como sociedade civil, assim” (Representante da UPP Social 4, favela da
zona Sul). Reconhecem que embora isso possa lhes dar mais capilaridade, também traz ruídos
e faz com os moradores confundam seu papel de representante do Estado com um papel de
morador da favela, conforme explicitado anteriormente. Os representantes da UPP Social
preferem evitar a confusão e deixam bem claro que estão ali como prefeitura.
A visão da UPP Social a respeito do Territórios da Paz não me pareceu ser sem
fundamento. Era inegável a capilaridade que o programa Territórios da Paz tinha na favela, e
os fortes vínculos que eles conseguiam estabelecer com os moradores. Andando com os
agentes pelo morro, o fato se evidenciava, na medida em que muitos já os conheciam, e
paravam para cumprimenta-los com intimidade.
Os representantes do Territórios da Paz relatam que desde o início foram muito bem
recebidos pelos moradores, que aguardavam ansiosos por uma contrapartida social à UPP. E
embora os agentes do programa relatassem um cuidado em não ter uma inserção no campo
que passasse para o nível pessoal, reconheciam que a separação era muito difícil, e que
relação de amizades com moradores eram inevitáveis.
175
Para além de sua grande inserção nas comunidades, os representantes do Territórios da
Paz em ambas as favelas criavam claros laços de amizade com alguns moradores.
Conversavam com eles como se conversa com um amigo, dando conselhos, compartilhando
intimidades, brincadeiras e risadas. Presenciei inclusive situações em que um morador se
ofereceu a emprestar dinheiro para um agente que estava com o seu salário atrasado. E, como
bons amigos, também tinham suas desavenças, que até podiam resultar em troca de insultos e
xingamentos. Mas também como bons amigos, rapidamente deixavam o desentendimento
para trás.
Tinham cuidado, ainda, em manter uma boa imagem perante o tráfico. Quando
passávamos pela boca, disfarçada mas sabida, um morador que nos acompanhava reparou que
os meninos do tráfico olhavam muito para mim e para a gestora do Territórios da Paz. Em um
instinto protetor, o morador, que caminhava na frente, parou para nos esperar e falou: “Tô
esperando porque se alguém fizer alguma gracinha eu mato!” (Notas de campo, 18/11/2013).
Depois de nos afastarmos da região a agente reclamou: “Isso, queima meu filme mesmo!”
(Notas de campos, 18/11/2013), preocupada com sua reputação perante o tráfico.
Como consequência da proximidade, era comum que os representantes do Territórios
da Paz posicionassem-se de forma favorável aos moradores, tentando ajuda-los em diversas
situações. Mesmo em situações mais pessoais, que fugiam à sua alçada, comovidos, acabavam
ajudando: “Geralmente eu tenho que me policiar. Senão passa. Passa mesmo. Passa da função.
Mas se eu estou aqui, eu estou vendo, estou sabendo que tem problema, então eu não acho
coerente eu deixar passar, entendeu” (Representante do Territórios da Paz 5, Favela da zona
Norte). Com uma compreensão mais clara das relações sociais nas favelas, que em geral são
complexas e marcadas por grupos em conflitos, os representantes do Territórios da Paz , em
ambas as favelas, me surpreendiam com a destreza com que lidavam com os moradores:
sabiam o que falar, com quem podiam falar, o que não podiam falar. Observando-os aprendi
muito sobre as relações sociais nas favelas.
Mas foi também observando-os que compreendi que o capital social tem dois lados:
se por um lado os acessos sociais ajudam na legitimidade dos agentes, o estabelecimento de
relações tão próximas acaba por proporcionar um acúmulo de capital social para o próprio
indivíduo em sua esfera pessoal, e não mais para a instituição a qual ele representa. Em
entrevistas com moradores bastante próximos dos representantes do Territórios da Paz,
percebi que estes não mencionavam o programa como um representante do Estado na favela,
e quando faziam menção a algum contato com o programa, referiam-se ao nome da pessoa
176
com a qual estabeleciam suas relações. Além disso, os moradores muitas vezes os tratavam
como iguais, como moradores que também lutavam, sem muitos recursos, em prol da
comunidade.
Os representantes do CRAS parecem reconhecer a ambiguidade do capital social. Em
sua proximidade com os moradores, reclamavam de uma percepção de que os moradores às
vezes esquecem que estão ali como representantes do Estado: os chamam de “tia”, levam a
eles problemas pessoais que vão muito além do seu papel ali. Os agentes referem-se a essas
relações como relações de vizinhança ou domésticas, as quais atribuem ao fato de estarem
compartilhando um mesmo espaço físico. Uma representante do CRAS explicou a situação:
Aqui o CRAS está dentro da comunidade. Então aqui nós somos vizinhos. Então, assim, é
muito comum, a gente teve um caso que, assim, ( ) onde, de ter um problema na família, ela
vem aqui. Ela vem buscar o apoio da equipe, vem querer, sabe, "eu preciso de ajuda”. E ela
não chama você de "ah, Doutora, senhora, não. Tia, eu preciso da sua ajuda, a minha mãe
está lá, não-sei-o-quê" (Representante do CRAS 3, Favela da zona Norte).
Às relações estreitas que possuem com a comunidade, os agentes atribuem um lado
positivo, porque os aproxima e gera confiança, mas também reconhecem o seu lado negativo:
os papeis se confundem – não se sabe se são Estado ou se são morador. “Essa coisa, esse
exemplo que ela falou, é como se a gente fosse um vizinho, né, eles não veem como setor
público, entendeu” (Representante do CRAS 4, Favela da zona Norte), reclama uma
representante do CRAS. Reforçam que precisam estar o tempo todo lembrando aos
moradores quem eles são ali:
Mais no sentido de pontuar, de mostrar qual é o papel nosso aqui, que não é mais um
vizinho, é é, assim, é muito sútil isso, assim porque falar disso parece que é é é está
esvaziando, mas assim é sútil. Você saber dizer para ele. Olha só, eu estou aqui para te
ouvir, mas eu sou a psicóloga do CRAS, eu estou representando o CRAS aqui. Eu não sou
sua vizinha, eu não sou sua tia, mas não no sentido negativo, você chamar uma pessoa de
tia dentro da comunidade é uma forma carinhosa e até de proximidade (Representante do
CRAS 3, Favela da zona Norte).
E como toda relação estreita tem suas desavenças, com o CRAS não é diferente. Eles
explicam que quando alguns moradores não tem suas demandas atendidas, apelam para
retaliações. Relataram situações em que quebraram os vidros do prédio e jogaram ratos: “essa
relação meio doméstica é meio assim, ‘vizinho, dá um copo de açúcar?’. Não, então eu vou te
retaliar” (Representante do CRAS 4, Favela da zona Norte).
A forma como a partir de elementos empíricos cheguei à categoria de capital social é
ilustrada na Figura 5 a seguir:
177
Capital Social
Relações de Amizade
Relações Harmoniosas
Conflitos
- Agressões físicas;- Xingamentos;- Retaliações;- Diálogos agressivos.
- Encaminhamento de demandas;- Pedidos de ajuda formal;- Presença em reuniões;- Acesso à base do programa.
- Confraternizações;- Conselhos pessoais;- Confidências pessoais
Afastamentos Forçados
- Evitação de acesso à base do programa;
- Ausência de cumprimentos;- Ausência em reuniões.
Figura 5. Capital Social Conforme anteriormente explicitado, o capital social se apresentou nas formas
principais de relações de conflito, relações de afastamento, indicadores de dificuldades na
acumulação desta espécie de capital, relações harmoniosas, estas mais neutras, e relações de
amizade, com laços mais estreitos, indicadores de sucesso no acúmulo de capital social. As
quatro formas principais aparecem em combinações diferentes e não são exclusivas. Seus
efeitos para a legitimidade dos agentes também não são óbvios, e apontou-se para uma
ambiguidade, em que as relações de amizades, além de também levarem a relações de
conflito, podem gerar perda de legitimidade da instituição, se levadas a seu extremo.
5.3.3 O Capital Informacional
Foi em fevereiro de 2013, quando eu estava um pouco mais de um mês em campo, que
eu assisti à primeira reunião entre UPP e moradores. A sala no interior do prédio da UPP era
ocupada por poucos moradores, dentre os quais alguns eu já conhecia. O comandante chegou
um pouco atrasado e foi logo se dirigindo à frente da sala. Deu boa noite e se apresentou, para
os que ainda não o conheciam, como o novo comandante da UPP daquela comunidade. A
comunidade à qual o comandante se referia era apenas uma das duas comunidades que
ocupavam aquele morro, e a reação dos moradores à sua fala foi imediata: gritavam que
aquela era a UPP da outra comunidade também. O comandante ficou constrangido diante da
gafe. Pediu desculpas e, depois de se recuperar do constrangimento, deu prosseguimento à
178
reunião.
Embora eu estivesse há tão pouco tempo em campo, eu já tinha conhecimento a
respeito das disputas acirradas entre as duas comunidades que dividiam o morro.
Historicamente, as duas comunidades não tinham uma boa relação e moradores de uma das
comunidades evitavam ir ao território da outra. Apreendi esta informação por meio do meu
convívio (até ali recente) com os moradores, e logo a identifiquei como uma questão delicada,
com a qual tinha que ter cuidado para não criar desavenças em campo. O comandante da UPP
ainda não tinha aquela informação, e ocorridos como este começaram a me sinalizar para uma
interdependência entre o capital social e o acúmulo de informações a respeito da favela pelos
agentes.
Ao tratar do campo burocrático do Estado, Bourdieu, Wacquant e Farage (1994)
refere-se à acumulação, neste campo, de um capital informacional. Explicam que esta espécie
de capital dá ao Estado a vantagem de pensar a sociedade em sua totalidade, e pode ser
acumulada por meio de censos, de estatísticas, de contabilidade nacional, de objetivação,
cartografia, arquivos ou codificações, que lhe dão condições de concentrar uma variedade de
informações a respeito do território que domina. Na visão de Bourdieu (2014) é inegável o
vínculo que se estabelece entre o Estado e as estatísticas, pois somos, desde a origem do
Estado, quantificados e codificados por ele, e temos uma identidade de Estado definida.
Percebi, nos agentes do meu campo, um esforço para a concentração de informações
sobre a favela, cada um à sua maneira. Para os representantes da UPP o mais importante era o
acumulo de informações a respeito do tráfico e dos crimes em geral. Reconheciam que para
ter acesso a este tipo de informação, precisavam do auxílio dos moradores. E era
principalmente com este propósito que se esforçavam para manter boas relações com os
moradores da favela: “Você trata o morador bem para que ele possa te tratar bem. Trazer até
alguma informação que seja útil, né, para o policiamento” (Representante da UPP 2, Favela da
zona Sul).
Neste caso a estratégia parecia funcionar, porque eles contam aqui com a questão do
sigilo. Para realizar denúncias à UPP os principais canais que os moradores podem utilizar são
o telefone da base da UPP, que é intensamente distribuído pela comunidade, o contato direto
com os policiais nas ruas, o Disque Denúncia, e o tradicional 190. Com a garantia do sigilo, e
portanto a garantia de que não sofrerão retaliação, os moradores realizam denúncias
frequentes. Quando eu observava os policiais, com muita frequência estes recebiam um aviso
por rádio, de policiais encaminhando denúncias de moradores, que em geral indicavam um
179
local de venda de drogas, ou a localização de um indivíduo com porte de arma. A UPP
contava, ainda, com um serviço de inteligência, responsável por organizar as informações
recebidas e coletar novas informações por meio do uso de câmeras, gravadores ou outras
estratégias. Eles também criavam um vínculo com alguns moradores aos quais denominavam
de informantes, que passavam informações constantemente para o serviço de inteligência da
UPP.
Com uma estratégia bem estabelecida, os policiais tinham de cor estatísticas de crimes
nas favelas, e faziam análises para obter mais informações. Conforme me explicou um
policial orgulhoso de seu trabalho:
Você tem número de prisões, dando um exemplo, foram 19 prisões ou apreensão de
menores por tráfico de drogas em junho, aí eu tento analisar, vamos lá, aumentou o número
de prisões, vamos fazer um gráfico de correlação com o desacato e resistências à prisão,
vamos dizer assim, se aumenta também, se o policial para fazer essas prisões, se aumenta o
número de desacato também, então vamos ver o que está correlacionado. Então tudo eu
tento planejar em cima de números e estatísticas (Representante da UPP 3, Favela da zona
Sul).
Tomando por base as informações registradas, criavam também os mapas de manchas
criminais, mapas que apontavam as regiões mais sensíveis aos crimes, ou seja, aqueles regiões
com os maiores índices de ocorrências criminais. Era com base neste tipo de mapa que
planejavam a distribuição dos policiais pelo espaço da favela.
Organizando e analisando com cuidado todas as informações, os policiais tinham um
conhecimento bastante profundo a respeito dos crimes na favela. Conforme me afirmaram
diversas vezes em nossas conversas, os policiais sabiam exatamente quem eram traficantes
dentro da favela, mas explicavam com pesar que só podiam prendê-los se fossem pegos em
flagrante: “a gente sabe quem são os principais chefes do tráfico, que ficam ali tomando
cerveja aqui nessa birosca aí do lado aí o dia inteiro” (Representante da UPP 3, Favela da
zona Sul). Mas quando o crime ocorre, sabem onde podem encontrar o responsável:
Uma coisa interessante que aconteceu aqui esses dias foi o seguinte: um turista, não me
lembro se era turista ou não, foi à delegacia registrar uma ocorrência de um roubo, e falou
que viu o elemento fugindo na direção da comunidade, ligou pra cá. "Pô, fulano me roubou
aqui tal" "Tá bom, como que ele é?" "Ele é assim, assim, tal tal." "Tá bom, peraí. Pô,
conhece?" "Pô, deve ser fulano! Vamo lá na casa dele?" "Vamo lá!" Chegou lá, estava o
camarada lá com a bicicleta, tudo lá na casa dele. Entendeu a diferença? Tipo assim, num
policiamento amplo, como que eu vou identificar? No meio de um..., como que eu vou
identificar um elemento que roubou? Aqui não, a gente tem esse contato, a gente tem esse
convívio. Ao montar meu banco de dados de informações (Representante da UPP 1, Favela
180
da zona Sul).
Aqui também a disputa direta com o tráfico aparece. Assim como os policiais recebem
denúncias de tráfico de drogas ou de porte de armas, eles também recebem trotes, denúncias
falsas, que servem para ajudar os traficantes em suas manobras, ao movimentar os
grupamentos policiais. E os traficantes também possuem seus informantes, que os mantém
sempre cientes a respeito da movimentação da UPP. É uma disputa por informação para
montarem suas estratégias.
Embora os policias reconheçam que para obterem informações, ou acumularem o
capital informacional, precisam manter boas relações com a comunidade, ou ter capital social,
eles não parecem perceber a retroalimentação que existe entre as duas formas de capital: para
o acúmulo de capital social também é necessário informação sobre a favela, mas estas
informações precisam se estender para além de índices criminais.
A gafe cometida pelo comandante da UPP na minha primeira reunião em campo,
repetiu-se diversas vezes durante a minha pesquisa. Os policiais não adotavam a sigla que os
moradores usavam para se referir à favela, que abreviava o nome das duas comunidades,
evitando desavenças: argumentavam que aquela era uma sigla cunhada pelo tráfico. Mas
como era muito longo referir-se à favela pelos dois nomes, referiam-se a ela restringindo-se a
uma das comunidades, o que gerava reclamações dos moradores da outra. Os policiais
atendiam o telefone da base com a saudação “UPP [comunidade da zona Sul], bom dia”.
Como se aquela favela se resumisse a uma única. Outra gafe comum era se referir ao principal
prédio da comunidade pelo nome de um único projeto, odiado pela comunidade, que ocupava
o prédio em questão junto com diversos outros projetos. Não podia entender como os policiais
nunca tinham ouvido os moradores explicarem que o prédio era da comunidade, e que aquele
projeto não merecia dar nome ao prédio como se fosse seu. Diversos exemplos me mostravam
que, embora estivessem ali há mais de quatro anos, os representantes da UPP ainda não
tinham muitas informações sobre o cotidiano da comunidade, e rompiam com regras básicas
de convivência, que eu aprendi logo, em minhas primeiras semanas em campo, e que
reconheci como extremamente necessárias para o estabelecimento de relações sociais com os
moradores.
Como se restringem a manter apenas um relacionamento formal com os moradores,
que se dava por meio das reuniões ou do acesso ao canteiro social, os representantes do PAC
recebem apenas informações específicas a respeito de problemas nas obras ou de demandas
referentes às ações do PAC. Assim como no caso da UPP, os representantes do PAC não
acessam informações gerais referentes ao convívio na comunidade, aos hábitos dos
181
moradores, ou questões do gênero, que também auxiliam no estabelecimento de vínculos
sociais. Um reflexo disso se dá, por exemplo, no tratamento que direcionam aos moradores,
que muitas vezes gera irritação: desconhecendo o real nível de instrução dos moradores da
favela, o PAC trata-os com uma linguagem mais simples e infantil, e procuram passar para
eles apenas mapas e informações simplificadas, que trazem como retorno comentários
irônicos dos moradores “até a gente que é burro consegue entender” (Notas de Campo,
24/04/2013). Além disso, equivocam-se ao marcar reuniões em horário comercial, em que os
moradores estão trabalhando. Seguindo a lógica da retroalimentação entre capital
informacional e capital social, aqui o acúmulo de ambos fica prejudicado.
No caso da UPP Social, o acúmulo de capital informacional é central, tendo em vista
que o programa tem como um de seus propósitos gerar informações que auxiliem as ações dos
demais órgãos públicos em favelas. Como pretendem auxiliar órgãos das mais diversas áreas,
o escopo de atuação da UPP Social é grande, e precisam levantar e registrar informações dos
mais diversos tipos.
Para ter acesso a informações de demandas dos moradores, a UPP Social possui um
canal formal de comunicação, o Fale Conosco, e também tem um convívio frequente com os
moradores das favelas aos quais dão acesso aos seus números de telefone celular. Além disso,
em sua etapa inicial, a UPP Social voltou-se para o mapeamento da favela. Foi realizado um
mapeamento de logradouros, e um Mapa Rápido Participativo (MRP), que consiste na divisão
da favela em regiões, que recebem cores diferentes de acordo com o seu grau de
desenvolvimento. Os mapas fornecem informações gerais que podem ser úteis aos mais
diversos órgãos.
Uma característica importante da UPP Social, que contribui para o acúmulo de
informação pelo programa, é a figura dos agentes comunitários: moradores de favelas que são
contratados para trabalhar no programa, que ficam responsáveis pelos seus territórios de
origem. Conforme explicou um agente:
O agente de campo, ele obrigatoriamente tem que ser do território, tem que ser morador
daquela comunidade, e ele foi iniciado no ano, no ano passado, quando eu entrei,
justamente por essa dificuldade de se entender o território, saber que tinha que ser alguém
que conhece, ( ) além das lideranças locais, saber onde pode, e o que não pode, onde pode
chegar, quais são as partes mais difíceis, os acessos, os logradouros, que é algo muito
complicado na comunidade são os logradouros, vamos combinar, né?( Representante da
UPP Social 2, Favela da zona Norte).
As informações coletadas através destas vias é devidamente registrada e armazenada
no IPP. Os gestores da UPP Social possuem agendas de campo, alimentam Blogs com
182
informações sobre as favelas, e relatórios são produzidos para o restrito da informação.
Tendo a informação como um fim em si mesmo, os representantes da UPP Social
parecem conseguir acumular não apenas informações formais sobre demandas, mas também
informações sobre os princípios de convívio, sobre o cotidiano da favela, na qual possuem um
convívio frequente com os moradores. As regras informais básicas de convivência que podem
gerar conflitos já foram apreendidas pelos representantes da UPP Social, e aqui o capital
informacional e o capital social se retroalimentam sem grandes impedimentos.
Os representantes do Territórios da Paz também têm o levantamento de demandas, ou
a identificação das temáticas sensíveis às comunidades, como parte do escopo de suas ações.
Nesse sentido, o capital informacional aqui também é fundamental para a plena realização do
trabalho. A forma como os agentes acessam estas informações se dá, na maior parte das
vezes, por meio de conversas informais com moradores, enquanto circulam pelam favela.
Conforme explicou uma gestora:
também a gente faz uma, a gente faz assim: umas rondas assim. É engraçado. Ronda, de
vez em quando a gente circula por todas as comunidades, aí passa nas principais lideranças
para ‘e aí, o que que está acontecendo e tal, não-sei-o-quê’ para meio que fazer essa, essa
atualização, entendeu. E de maneira geral a gente tem isso (Representante do Territórios da
Paz 3, Favela da zona Norte).
E para registrar informações sobre demandas específicas identificadas, também partem
para a elaboração de relatórios formais.
A destreza dos representantes do Territórios da Paz em lidar com os diversos grupos
de conflito da favela, relatada anteriormente, também é decorrente do acúmulo de capital
informacional a respeito de regras de convivência, linguagem adequada, tudo isso adquirido
por meio de seus fortes laços sociais. Assim, aqui também os dois tipos de capital se
retroalimentam de forma continua, propiciando um maior acúmulo de ambos os tipos.
O CRAS, por sua vez, experiencia situação semelhante, ao estabelecer relação tão
próximas com a comunidade. O relato de uma agente retrata a situação:
Se acontecer alguma coisa tanto para o bem quanto para o mal, você sabe mesmo sem
saber. Sem querer saber, mesmo que você não vá lá, o assunto vem para cá ou pela própria
criança ou por alguém da comunidade, o assunto aparece. E às vezes isso de um lado é bom
porque você trabalha esse assunto, essa situação conflituosa, ou, enfim problema, você
consegue trabalhar. Mas por outro lado traz essa coisa, essa mistura, né (Representante do
CRAS 3, Favela da zona Norte).
O relato mostra que as relações “domésticas” estabelecidas com o CRAS também
levam a um compartilhamento de informações, mais uma vez como se os agentes fossem
183
parte da comunidade. Neste aspecto, pode ser positivo, tendo em vista que as informações são
úteis para o trabalho de prevenção do CRAS.
A forma como se chegou à categoria teórica do capital informacional a partir dos
dados é sintetizada na Figura 6 a seguir:
Capital Informacional
Informações sobre princípios básicos de
convivência na comunidade
Informações formais, vinculadas ao objetivo do programa
- Regras informais de convivência;
- Nível de instrução dos moradores;
- Horários mais adequados para as reuniões.
- Índices criminais;- Problemas nas obras;- Demandas em geral;
Figura 6. Capital Informacional
No campo burocrático do Estado em ação nas favelas, o capital informacional se
apresenta em duas formas principais: como informações formais, que dizem respeito ao
objetivo do programa ou órgão, e como informações sobre princípios básicos de convivência
a respeito da realidade da favela. De forma geral, pode-se afirmar, que aqueles programas que
possuem um volume menor de capital social, parecem ter acesso apenas ou principalmente ao
capital informacional na sua forma de informações formais, o que, por sua vez, dificulta o
acesso ao capital social. Já os programas que possuem um acúmulo maior de capital social,
como os casos da UPP Social, Territórios da Paz e CRAS, conseguem ter acesso ao capital
informacional nas suas duas dimensões, e assim capital social e capital informacional parecem
se retroalimentar, lembrando a afirmação de Bourdieu (2011) de que as espécies de capital
podem ser conversíveis umas nas outras. Esta relação entre as duas formas de capital aqui
descritas é ilustrada na Figura 7 a seguir:
184
Capital Social Capital Informacional
Figura 7. Relação entre capital social e capital informacional
5.3.4 O Capital Econômico
A primeira vez que entrei na UPP da favela da Zona Norte no início de 2013, fui
surpreendida diante da incompatibilidade entre as minhas expectativas e a realidade do local.
Como sempre ouvira falar, especialmente através da mídia, dos grandes investimentos
financeiros depositados nas UPPs, imaginava que uma boa infraestrutura era oferecida para o
trabalho policial. Entretanto, naquele dia deparei-me com um prédio velho, decorado em seu
interior por mesas e cadeiras ainda mais velhas, sujas e sem encosto. Poucas salas abrigavam
os policiais em suas atividades administrativas, e em uma dela, que parecia ser usada para
aulas, havia um colchão velho jogado ao chão. Parecia haver ali falta de investimentos
financeiros.
Ao longo de minha pesquisa, em conversas com os policiais, estes me narravam
histórias semelhantes às que eu lia nos jornais: contavam sobre os grandes investimentos
financeiros do governo nas UPPs, que se refletia em um aumento desenfreado do número de
policiais formados a cada ano do programa. A explicação para a incoerência que prendia
minha atenção se revelou em conversa com um representante do programa: “Investiu-se muito
em quantidade e se esqueceu da qualidade. O projeto é quantitativo. O secretário se tornou
refém de um número: 40 UPPs até 2014” (Representante da UPP 21, Geral).
O investimento era realmente muito grande, mas se diluía entre muitas UPPs. Com o
programa, e uma tentativa de mudança nas políticas de segurança pública, os salários policiais
foram aumentados e mais ainda no caso de policiais de UPP, que ganham uma gratificação de
R$750 oferecida pela prefeitura da cidade do Rio de Janeiro. Os aumentos salariais exigiam
um investimento ainda maior diante do aumento de número de policiais formados. Conforme
explicou um policial:
Quando eu entrei na polícia éramos 37 mil homens. Hoje somos 48 mil policiais e com um
185
projeto pra estender até 60 mil homens. Então, por mês, saem do CFAP mil policiais. Por
mês. A cada quinze dias forma uma turma de 500. Sai do CFAP, sai do CFAP, igual uma
fábrica. Porra, de botar inveja em qualquer Ford da vida. Fábrica de polícia. A cada quinze
dias saem 500 de lá prontos. Então é muita gente! (Representante da UPP 1, Favela da zona
Sul).
Nesse mesmo sentido, os policiais costumavam brincar que daqui a pouco teríamos
mais policiais no Rio do que cidadãos comuns. Não obstante a grande produtividade da
“fábrica de policiais”, alguns policiais reclamavam do baixo número do efetivo da UPP –
número este que eu vi diminuir ao longo da minha pesquisa de campo, com a abertura de
novas UPPs.
Mas para acompanhar o crescimento acelerado no número de policiais era também
necessário um acompanhamento do investimento em recursos, o qual parecia não existir na
mesma proporção. Os policiais se queixavam da má qualidade dos armamentos, e me
mostravam a ferrugem da pistola que não era limpa. E no fim de 2013, quando o clima de
confronto começou a aumentar, ouvi relatos de policiais que foram atirar durante um
confronto, mas não foram capazes de concluir a ação porque sua arma falhou. Além disso,
neste mesmo período, aumentou a demanda por armamentos letais, especialmente o fuzil.
Entretanto, conforme me relataram alguns policiais, não havia fuzil para todos aqueles que o
demandavam. Ainda assim, não se pode negar que o investimento era alto: as UPPs tinham
computadores, rádios Nextel para todos os policiais, viaturas, motos, GPS, armamentos não
letais. Diluídos entre um número crescente de UPPs, os recursos financeiros pareciam
diminuir.
Os rumores a respeito da necessidade de mais recursos financeiros nas UPPs
começaram a aumentar quando veio à tona a notícia de que o Eike Batisita havia retirado
grande parte do seu suporte financeiro ao programa, levando até a rumores sobre o possível
fim do programa:
o EIKE Batista andou cortando algumas verbas, ele ia investir nas UPP’s, 20 milhões
parece, ele suspendeu, uma grana legal, então pode ser que lá depois de 2016 para lá e que
o EIKE Batista não tem tanto interesse em investir, porque ele quer investir agora para ele
ter retorno, 2014 e 2016, como isto é tudo uma politicagem e tudo isto envolve muito
dinheiro, pode ser que lá na frente acabe por conta disto, ah não tem verba ( Representante
da UPP 8, Favela da zona Sul).
Entretanto, como eu também pude aos poucos perceber, os agentes do Estado também
conseguem investimentos financeiros por meio de doações, e os recursos a eles destinados,
tanto pelo repasse direto do Estado quanto pelas doações indiretas, dependem do grau de
186
legitimidade de cada agente, conforme será demonstrado mais a frente.
Com as UPPs não foi diferente. Para suprir a escassez de recursos e avançar em
projetos mais ambiciosos, recebiam doações. Na favela da zona Norte um projeto de boxe
com crianças da comunidade foi todo montado a partir de recursos de doações. O policial
responsável pelo projeto me explicou em entrevista:
Não, não, a polícia não me deu nada, a polícia não me deu nada. O, que que aconteceu? Eu
pensei, quando eu comecei aqui não tinha nada, era tudo no chão. Imaginei que um dia eu
tinha que fazer alguma coisa para ganhar material e então eu fiz um projeto montadinho,
direitinho, com diretrizes, linhas gerais, objeto do projeto, tudo montadinho, e comecei a
apresentar para um, apresentar para outro, apresentar para outro, e eu fui apresentando com
alguns parceiros de luta, que treinavam comigo, que arbitravam comigo, e aí eu fui
conseguindo material de pouquinho em pouquinho, em pouquinho em pouquinho, até que
eu fui montei isso daí. Já estou montando a segunda parte do projeto agora (Representante
da UPP 17, Favela da zona Norte).
O mesmo ocorreu na festa de debutantes oferecida pela UPP. Eu pude acompanhar a
organização da festa, e as estratégias para conseguir doações. Com o nome da UPP, no fim
tudo se resolveu: bolo, doces, salgadinhos, garçons, salão de festa, tratamentos de cabelo e até
os vestidos das meninas vieram de doações.
Na favela da zona Sul a UPP recebia apoio de algumas empresas privadas, que
doavam pessoal e material para fazer atividades com as crianças no projeto da UPP Mirim. E
aos poucos fui descobrindo que muitos dos móveis velhos que preenchiam os espaços dos
prédios também eram fruto de doações.
Havia assim mais um capital importante pelo qual os agentes do campo precisavam
lutar para acumular: o capital econômico, retratado por Bourdieu (2004) como uma das
formas mais óbvias de capital. O capital econômico, como parece ser evidente, apresenta-se
na forma de riqueza material, como dinheiro, ações, bens patrimônios (THIRY-CHERQUES,
2006). Entre os agentes do Estado, esta forma de capital é disputada, principalmente, por meio
das transferências diretas do governo.
Mas as disputas não se dão apenas entre os diferentes agentes apontados aqui. Tais
agentes, apresentam disputas internas, na medida em que algumas favelas tendem a receber
mais atenção. No caso das UPPs as diferenças são claras. A UPP da zona Sul apresenta uma
infraestrutura bastante superior: “hoje é uma das melhores UPPs, das 34 existentes. Ninguém
tem uma estrutura tão boa quanto essa” (Representante da UPP 4, Favela da zona Sul). A
187
infraestrutura da UPP da zona Sul era superior também pela presença de uma RUMBE21
própria, evitando que os policiais tivessem que se deslocar, todos os dias, para o batalhão de
referência, para retirar e devolver o armamento. O mesmo não acontecia na favela da zona
Norte, onde os policiais tinham que se deslocar aos batalhões, e às vezes acabavam optando
por utilizar armamentos próprios. As diferenças também se apresentam na distribuição de
armamentos: enquanto os policiais da zona Norte diziam nunca terem visto um Teaser22, os
policiais da zona Sul iam para as reuniões comunitárias com a Teaser na cintura.
Mas as diferenças na distribuição de capital econômico entre os agentes, de acordo
com a favela, não se refletiam apenas nas UPPs. Em alguns casos a desigualdade era até
maior. O PAC, por exemplo, existia apenas na favela da zona Sul, não obstante a incessante
demanda dos moradores da zona Norte pelo programa.
É dispensável comentar o enorme montante de recursos financeiros investidos em um
programa de infraestrutura das proporções do PAC - R$ 52.000.000 é o valor declarado total
das obras. A disponibilidade de recursos financeiros do programa é evidenciada pelas
proporções das obras realizadas no território, que envolvem aberturas de vias e construções de
prédios, e contam com equipamentos pesados: “Usamos todo o maquinário pesado, guindaste,
trator, retroescavadeira, bate-estaca, monta-carga, guincho, uma porção de coisas, um
ferramentário pesado, além da enxada, pá, picareta e estas coisas todas” (Representante do
PAC 3, Favela da zona Sul).
Além da frente de obra, o PAC também investe em uma frente social, que também
evidencia uma abundância de recursos: estão sempre bem equipados, com laptops e
Datashows, oferecem lanches ao fim das atividades, e parecem contar com todo o
equipamento necessário para a plena realização de suas atividades. Embora um de seus
representantes reclame que a parte social recebe apenas 2,5% do valor da obra em recursos,
uma das agentes reconhece que eles estão muito a frente, em termos de recursos financeiros,
dos demais programas sociais:
Nós temos uma renda dentro dos nossos projetos e a gente vai tentar incubar alguns
projetos para que eles possam dentro do PAC, o PAC vai ser o financiador inicial, para que
incube e eles tenham depois tenha desenvolvimento por si e se consolidem (...). É, nenhum
órgão do Estado tem essa possibilidade, nenhum órgão, mas nenhum projeto. Você vê UPP
Social, Territórios da Paz, nenhum deles tem essa possibilidade que nós temos porque esse
dinheiro vem do PAC, vem da Caixa Econômica, a gente executa as atividades, gera
trabalho e renda, faz todo o trabalho de desenvolvimento territorial e auxilia a incubar. Essa
21 Local onde os policiais retiram suas armas para o serviço. 22 Tipo de armamento não letal que imobiliza por meio de choques.
188
é a ideia (Representante do PAC 5, favela da zona Sul).
Como se pode perceber, o PAC não precisa demandar recursos por meio de doações.
O alto volume de capital econômico acumulado pelo programa advém diretamente do
governo, e parece dar conta do necessário, claro, sem excessos.
A UPP Social, com seus investimentos iniciais, contratou uma grande equipe de
gestores, assistentes e agentes de campo, as quais foram providas de equipamentos que
facilitassem sua circulação em campo: notebooks, máquinas fotográficas, aparelhos celulares,
e quando necessário tinham acesso à carro. Entretanto, com o contingente de funcionários da
UPP Social, não foi possível ter uma equipe exclusiva para cada território. Em geral, cada
equipe assume mais de uma favela, de acordo com as suas distribuições geográficas: “É, hoje
são 33 UPPs, já instituídas, né, enquanto a UPP Polícia, são 14 equipes de campo, nessas 14
equipes de campo, elas muitas vezes dividem, uma equipe ela se divide para mais de um
território” (Representante da UPP Social 1, Geral).
Com o passar do tempo, e com os problemas de legitimidade do programa por conta
da impossibilidade de atender às demandas que encaminhavam, o programa passou por uma
reformulação, e os recursos pareceram gradativamente diminuir. Um reflexo bastante evidente
se deu no tamanho das equipes de campo: “Nós éramos 11: éramos sete agentes de campo,
três assistentes e um gestor. Caiu para dois. Um gestor e um assistente para 15 comunidades.
É complicado” (Representante da UPP Social 2, Favela da zona Norte), desabafou um
representante da UPP Social. Além disso, os agentes também reclamavam a respeito da falta
de reposição de equipamentos, que quando se quebravam estavam perdidos. Não havia
reposição. No caso do programa, a queda na legitimidade parece ser acompanhada por uma
queda no capital econômico.
No Territórios da Paz trabalhava-se com o básico: cada equipe, composta por um
gestor e um assistente, era responsável por um território; cada equipe tinha um laptop, que
chegou após um ano de trabalho, depois de muita reclamação, conforme os relatos, e um
modem de 3G. Os celulares eram escassos, o que também era fonte de reclamações.
Os vínculos de trabalho entre os representantes do Territórios da Paz e a SEADH eram
precários, assim como os benefícios que recebiam: “a gente não tem transporte, a gente não
tem vínculo, trabalho extra garantido pela constituição, a gente tem um PJ e nem sequer um
cargo comissionado, a gente é agente governamental por período determinado”
(Representante do Territórios da Paz 4, Favela da zona Sul). Além disso, os salários pareciam
atrasar com frequência – pelo menos as reclamações dos atrasos eram frequentes entre os
agentes no campo.
189
Em decorrência das condições ruins de trabalho muitos agentes foram deixando o
programa, e ao longo do tempo alguns territórios ficaram descobertos, outros tinham apenas
um gestor, sem assistente, outros apenas assistente, sem o gestor, que embora acabasse por
assumir todas as funções de um gestor e de um assistente conjuntamente, continuava a ganhar
o salário mais baixo de assistente que originalmente lhe foi atribuído. “A secretaria se
esvaziou e não tem como sustentar mais o programa. Todo começo de ano é a mesma coisa. A
cada ano vai saindo mais gente, mais comunidade descoberta...” (Representante do Territórios
da Paz 5, Favela da zona Norte), relatou uma agente do programa.
Os recursos financeiros disponíveis para os trabalhos em campo eram nulos: “cara, a
gente trabalha sem um real, Vanessa, sem um real. Você imagina se a gente tem dinheiro?”
(Representante do Territórios da Paz 1, Favela da zona Sul). A falta de recursos dificultava as
ações do programa, que reduziam sua legitimidade, reduzindo as chances de atrair capital
econômico. Conforme explicou um agente:
O que falta basicamente nisto aqui é investimento, investimento em melhores condições de
salários, investimento em plano de carreira, em infra-estrutura. O programa é bom, ele é
elaborado por pessoas técnicas e acadêmicas brilhantes, têm pessoas brilhantes aqui, fora
que você fala, caraca...e muitas já saíram também. Mas o problema é sempre esta execução
final, como é que isto é trabalhado, gera estas ansiedades (Representante do Territórios da
Paz 4, Favela da zona Sul).
Diante da falta de recursos, restava o improviso. Os agentes foram aprendendo a
realizar ações com pouquíssimos recursos que, em geral, conseguiam ser bem sucedidas.
Faziam também parcerias com agentes mais bem providos. Apelavam para as doações, como
a equipe da favela da zona Norte, que encaminhou memorandos aos supermercardos da região
e conseguiu doação de macarrão para um evento. Conforme relatou um representante do
programa: “Poucas vezes a gente de fato entrou com o dinheiro do Estado. Muito poucas
vezes. Para eventos, projetos, ações; a gente conseguiu formar coletivas de rede que
conseguiu se autofinanciar com uma espécie de economia solidária local” (Representante do
Territórios da Paz 2, Geral). As estratégias para apresentar resultados sem recursos variavam
com a equipe ou gestor, mas as dificuldades não passavam despercebidas pelos moradores,
que os consideravam com boa vontade, mas sem recursos.
Os CRAS parecem possuir os recursos necessários para se manter funcionando.
Possuem um prédio dentro das favelas, e equipamentos como computadores, impressoras,
escâneres, dentre outros. Mas aqui também aparece uma diferença entre os equipamentos
inseridos nas favelas da zona Norte e da zona Sul. A diferença já se observa pelo tamanho do
190
prédio: ainda que compartilhado com a Clínica da Família, o espaço disponível para o CRAS
na zona Sul é muito maior.
O mesmo se reflete no número de funcionários. Na zona Sul os agentes relataram
contar com 27 funcionários, e embora reconheçam que este é o número correto, ainda assim
acham que é pouco pela quantidade de demandas do território. Na zona Norte, relatam
trabalhar com um número reduzido de funcionários, o que aumenta a carga de trabalho de
cada um. Contam que a escassez de funcionários, atrelada a exigência de metas, faz com que
o trabalho se torne muito difícil por ali. Enquanto na favela da zona Sul relatam promessas de
instalação de ar condicionado nas salas, na favela da zona Norte contam que precisam
improvisar muito no trabalho, porque faltam recursos. Mas, de forma geral, os equipamentos
funcionam em ambas as comunidades e, mesmo com poucos recursos, conseguem cumprir
suas funções.
A forma como os dados empíricos levaram à categoria teórica do capital econômico
são retratados na Figura 8 a seguir:
Capital Econômico
Equipamentos
Efetivo de Funcionários
Recursos disponíveis para as realizações das atividades
- Recursos financeiros;- Lanches;- Disponibilidade de
espaço.
- Número de policiais;- Número de agentes de campo;- Tamanho das equipes;- Número de territórios por equipes.
- Computadores;- Celulares;- Armamentos;- Veículos
Salários
- Aumento de salários;- Gratificações;- Benefícios;- Atrasos salariais.
Figura 8. Capital econômico Conforme o exposto, o capital econômico acumulado pelos agentes parece se
apresentar em quatro formas principais: nos equipamentos disponíveis, no efetivo de
funcionários, nos salários recebidos e nos recursos disponíveis para a realização das
atividades. Para acumular o capital econômico, os agentes podem conseguir transferências
191
diretas de recursos via governo, ou podem conseguir doações, que em geral dependem da sua
legitimidade.
5.3.5 O Capital Espacial
Em uma terça feira bem cedo fui à base da Comlurb em um bairro da zona Norte,
conversar com o gerente responsável pela região que incluía a favela onde eu vinha realizando
a minha pesquisa. Após uma longa conversa em que expliquei os meus interesses de pesquisa
e fiz perguntas a respeito das ações da Comlurb na favela da zona Norte, o gerente me
questionou animado “quer ver com os seus próprios olhos o que é o Estado entrando em uma
favela?” (Notas de campo, 08/10/2013). A UPP tinha ocupado no domingo anterior uma nova
favela da zona Norte, e como é habitual nos processos de “ocupação”, a Comlurb entrara
junto para limpar a comunidade, dando-a uma “cara nova”. O gerente estava se dirigindo para
lá, para acompanhar o trabalho dos garis que por sua vez acompanhavam o BOPE. O convite
para visitar uma favela em “processo de pacificação” me pareceu tentador, e também um
pouco arriscado. Mas minha curiosidade de pesquisadora falou mais alto do que qualquer
receio e, bastante eufórica, eu aceitei ao convite.
Entramos em um micro-ônibus da Comlurb e seguimos para o local. Na entrada do
morro havia um sofá velho coberto com um toldo, com uma placa que indicava o ponto dos
mototaxis. A movimentação parecia fraca naquele dia, e sem nenhum cliente no local, poucos
mototaxistas jogavam conversa fora sentados ao sofá. Passamos por eles e começamos a subir
a principal rua da comunidade até o topo do morro, onde o gerente da Comlurb me convidou a
descer do ônibus. A favela estava deserta. Nas ruas não se via nenhum morador. Enormes
carros do BOPE estavam espalhados pela favela, e policiais do BOPE armados com fuzis
ficavam parados próximos aos carros. Os garis da Comlurb trabalhavam sem parar em vários
pontos da favela, e nos dirigimos até alguns deles para checar como andava o trabalho. O
gerente me explicou que a Comlurb sempre acompanha o BOPE nos processos de
“pacificação”. Explicou que suas primeiras ações voltam-se para o corte das gramas, e a
retirada do “lixo branco”, termo usado pela Comlurb para se referir àquele lixo mais visível,
que em geral se apresenta na forma de plásticos ou papéis – ação que tem o rápido efeito de
dar uma “cara nova” à favela. Orgulhoso do trabalho dos garis, o gerente pegou uma câmera
fotográfica, e começou a registrar a limpeza do local.
Não pude deixar de comparar a favela em transição que ali observava com as favelas
“pacificadas” com as quais estava acostumada. Percebi ali uma forte materialização do tráfico
no espaço, que embora não mais estivesse presente, especialmente naquele momento de
192
processo de “pacificação”, deixou sua marca por vários cantos da favela. Percebi que em
mesas, bancos e muros espalhados pela favela havia pichação com a sigla do Comando
Vermelho – CV, com uma frequência muitíssimo maior do que nas favelas onde realizava a
minha pesquisa. O gerente da Comlurb parecia conhecer bem o funcionamento daquela favela
antes da entrada do BOPE. Mostrou-me um local da favela onde o tráfico costumava ficar, por
ser o melhor ponto de visibilidade da favela vizinha, dominada por uma facção rival. Este
local era na frente da casa de uma senhora, que havia construído um desajeitado muro de
concreto protegendo o seu portão, tendo em vista que aquele local recebia tiros constantes da
favela dominada pela facção rival. Em frente ao muro de concreto, lia-se um aviso
importante: “Risco de bala” (Notas de campo, 08/10/2013), com assinatura do Comando
Vermelho.
Quando retornei às minhas favelas, depois desta experiência curiosa, comecei a
procurar com mais cuidado as marcas do tráfico pelo espaço. Encontrei alguns símbolos do
Comando Vermelho, principalmente marcados na calçada, e em poucos muros. Bem no topo
da favela da zona Norte, onde antes era o principal local de concentração do tráfico, ainda lia-
se “CV” em um muro bastante visível. Mas o que mais me aparecia ali eram as marcas da
UPP.
Não é preciso visitar uma favela “pacificada” para saber que ali existe uma UPP:
circulando pelo Rio de Janeiro nos deparamos por acaso com placas, que indicam, bem antes
de se chegar à favela, a direção da UPP local. Na entrada da favela, as placas começam a ser
acompanhadas da presença dos policiais, devidamente uniformizados e armados, e em geral
suas viaturas marcam a entrada da rua principal. É fato que eles estão por toda a parte, e no
percurso guiado pelas placas da UPP é possível que se cruze com vários policiais. Quando
finalmente se chega ao destino, encontra-se uma sinalização maior, para garantir que se
reconheça no prédio, em geral imponente e bem centralizado, a base da UPP. Não dá para se
ter dúvidas. Assim como eu não tive dúvidas, ao entrar na favela em “processo de
pacificação”, que ali, bem recentemente, era dominado pelo tráfico.
Como pioneira no processo de “ocupação” das favelas e principal oponente na disputa
pelo capital da força física, a UPP apresenta-se como um rival direto do tráfico, e ambos
lutam por dominar um recurso escasso e exclusivo: o espaço das favelas. A oposição direta ao
tráfico é revelada na fala dos policiais: “A UPP veio mesmo para tirar o território, os
traficantes do controle desse território, né?” (Representante da UPP 2, Favela da zona Sul),
assume um representante da UPP. Não é à toa que os moradores enxergam as UPPs como a
193
oposição ao tráfico, e se pensam em uma retirada das UPPs do território, já a associam
diretamente ao retorno do poder do tráfico.
Como oposição ao tráfico, quando conseguem o domínio do território, as UPPs
tendem a assumir o lugar de seu rival: tornam-se, a seu modo, os novos donos do morro.
Passam a controlar os espaços das favelas como se os pertencessem, e os moradores,
assumindo este controle, pedem permissão à UPP para utilização dos espaços. Os policiais
tornam-se os responsáveis por autorizar festas na quadra da favela, o uso de salas para a
atividades de ONGs, áreas de estacionamento, e até o espaço da associação de moradores da
favela da zona Norte foi apropriado pela UPP:
eu fui lá pedi a chave da associação, porque a associação ela era dos moradores [da favela
da zona Norte] e a UPP estava aqui pra ajudar, não pra prejudicar. Aí ele falou assim, “olha
só, mas isso aí é do tráfico”. Aí eu falei “olha só, a associação não é do tráfico não, a pessoa
que estava à frente da associação era envolvida com o tráfico, mas a associação é da
comunidade e ela tem que ficar aberta, porque as pessoas precisam do serviço dela. Aí ele
virou pra mim e “olha só, eu to te entregando a chave, de hoje, o que acontecer de hoje em
diante você é o responsável”. Eu falei “olha só, tenente, eu sou o responsável a partir do dia
10 de junho pra frente, do dia 10 de junho pra trás o senhor não tem como me
responsabilizar por atos de outras pessoas. Ele “não, não, tudo bem”. Aí ele me deu a chave
e a gente começou a trabalhar. (Morador 11, Favela da zona Norte)
Ao ocupar os espaços das favelas, os policiais da UPP facilitam para que outros
agentes do Estado façam o mesmo. Mais uma vez reforço aqui, que isto não significa que já
não houvesse agentes do Estado dentro das favelas antes das UPPs. Entretanto, como
reconhecem os agentes, a entrada da UPP facilitou a atuação dos demais agentes nas favelas, e
agora joga-se o jogo seguindo as regras do Estado. Mesmo os agentes que já estavam nas
favelas antes das UPPs, agora mudam as suas relações, e a ocupação dos espaços é facilitada
com a garantia da livre circulação.
Com o direito a circular livremente, os mais diversos agentes empenham-se em ocupar
o espaço das favelas. Pensam nas estratégias para melhor fazê-lo e entendem que a percepção
dos moradores de que os agentes conseguem se materializar dentro das favelas ajuda a
legitimá-los.
As UPPs parecem ser bastante eficazes em suas estratégias de ocupação. Além de uma
base física, em geral imponente, adquirida por meio da incorporação de algum prédio já
existente na favela – o que em alguns casos gera revolta nos moradores – e containeres
espalhados por outras regiões da favela, o grande efetivo de policiais possibilita que a UPP se
faça presente pelo território. Os policiais que se espalham pelas ruas das favelas, podem fazer
194
parte de dois tipos diferentes de grupamentos, seguindo as ordens do comandante: os policiais
do GPP (Grupamento de Polícia Pacificadora) ficam baseados, o que significa que devem
ficar parados em um setor determinado, marcando ali a sua presença e fazendo abordagens
quando necessário; outra opção é que se faça parte do GTPP, o grupamento tático, no qual os
policiais podem circular livremente pela favela. E eles traçam as melhores estratégias de
ocupação:
antes de eu chegar aqui o policiamento, era um policiamento fixo, cada determinado setor
parava, dava presença e eu já tentei botar um policiamento mais dinâmico. Então a partir do
momento que eu coloco um policiamento mais dinâmico eu tenho um número de
ocorrências maiores, porque o policial possui mais liberdade para executar as prisões,
cercar mesmo vamos dizer assim para quem está relacionado ao tráfico de drogas, mas
também não é a nossa meta aqui, mas é um número que a gente tem que olhar. Em
contrapartida quando você coloca um policiamento dinâmico, o tráfico de drogas migra,
sempre vendia aqui na porta da casa de fulano de tal, então quem via eram os vizinhos de
fulano de tal, só que como ele está migrando, ele está vendendo aqui, amanhã está
vendendo aqui, amanhã está vendendo aqui, amanhã está vendendo aqui. Então as pessoas
acham que o tráfico aumentou, mais pessoas estão vendo o tráfico de drogas porque cada
dia ele está vendendo em um lugar diferente, então você no policiamento dinâmico, você
também dependendo do local, a pessoa que sempre passa naquele horário voltando do
trabalho e vai para a sua casa, ela via o policial ali, de dia ela não vê mais os policiais ali,
ele pode estar aqui, pode estar lá. Então ela sente assim também que o policial e o
policiamento diminuiu. Aí, você tem que colocar alguns pontos estratégicos, no horário de
volta do trabalho, coloca o policial aqui para o morador se sentir seguro, chegar na sua casa
e tal e no horário de incidência de tráfico de drogas ou qualquer outro tipo de delito a gente
tenta migrar (Representante da UPP 3, Favela da zona Sul).
Conforme fica claro na fala do policial, embora seja mais eficiente, em termos de
números de prisões e apreensões, a opção pelo GTPP, com a livre circulação, o GPP é
importante para se fazer visível, para que os moradores tenham a percepção de que o espaço
está sendo ocupado por policiais.
O PAC também conta com bases na favela: o Canteiro Social, para a equipe da frente
social, que consiste em um apartamento em um dos seus prédios, e uma base para a frente de
obras,
onde tinha a sala de fiscalização, a sala da engenharia, a sala de reunião, cozinha,
refeitório, sala administrativa, sala de serviço médico, RH, tudo isso pronto e preparado em
um canteiro, com ar-condicionado, telhado, acesso, iluminação, alarme, computador, rede,
wifi, tudo numa boa (Representante do PAC 3, Favela da zona Sul).
195
Suas estratégias de ocupação do espaço também se dão por meio das remoções,
negociando com os moradores a sua retirada para passagem das obras.
Os programas da UPP Social e do Territórios da Paz optaram, depois de algumas
discussões, por não terem bases físicas dentro dos territórios de favela. O dilema era
complicado: embora a base física ajude a dar visibilidade ao programa, pode inibir a
circulação dos agentes pelo espaço, estratégia que se considera importantíssima para que o
programa se faça presente nas favelas. Este dilema aparecia no discursos dos agentes:
Eu fico pensando, às vezes assim, viajando mesmo, nunca elaborei muito isso, mas é
porque às vezes era muito difícil para as pessoas entenderem que a gente trabalha bastante
pelo fato da gente não ter um espaço físico. Às vezes eu fico pensando se não daria, não
daria mais segurança no sentido de dar mais materialidade ao trabalho. Mas ao mesmo
tempo, eu acho que a forma da gente trabalhar circulando, eu acho que é vantajosa, assim,
por várias coisas, inclusive porque de fato a gente anda muito, nem ia dar para ficar a
semana inteira [na favela da zona Sul], né (Representante da UPP Social 4, favela da zona
Sul)
Outro ponto importante notado aqui, com base nas informações levantadas pelos
agentes, que contam com alto volume de capital informacional, é que as favelas, em geral, são
divididas em subterritórios, e a localização da base física do programa em um destes
territórios pode afastar os moradores dos demais, contribuindo para reduzir o capital social,
tão caro a ambos os programas.
O CRAS possuía uma base física em ambas as favelas pesquisadas, o que se
considerava positivo no sentido de ter um espaço para realizar as ações. Entretanto, os efeitos
adversos que os representantes da UPP Social e do Territórios da Paz conseguiam prever, aqui
se tornavam reais: a localização em um território específico afastava os moradores dos
demais. Diante disso, os representantes do CRAS começaram a usar como alternativa o
chamado “CRAS itinerante”: “Mas assim, existe uma programação. O CRAS itinerante, de
quinze em quinze dias, aí a gente faz esse atendimento em determinados locais na
comunidade” (Representante do CRAS 7, Favela da zona Norte). Assim se faziam presentes
em todo o espaço da favela, e a legitimidade do programa pareceu aumentar: “Então a
comunidade começou a olhar o CRAS com um outro olhar. Um olhar do que o CRAS está
aqui para atender” (Representante do CRAS 3, Favela da zona Norte).
Seja por meio de sedes físicas ou por meio da circulação pelo território, os agentes
parecem considerar de extrema importância que se façam presentes nos espaços da favela, que
possuam uma territorialidade. E a combinação entre a existência de sede física e a circulação
196
pelo território parece ser a estratégia mais bem sucedida nesse sentido, embora nem todos os
agentes consigam lançar mão de ambas as estratégias.
Para além de uma preocupação com a ocupação do espaço, os agentes também tentam
se fazer visíveis por meio da apresentação de resultados materiais ou de transformações
materiais no espaço. A propriedade de visibilidade da matéria faz dela um meio valorizado de
se apresentar resultados. E os agentes que não conseguem fazê-lo reconhecem o prejuízo
disso para a legitimidade do programa.
No caso das UPPs isto se torna claro pela quase homologia entre objetivo de
“pacificação” e o propósito de esconder as armas e as drogas e, portanto, o tráfico dentro das
favelas. Os policiais reconhecem que o tráfico sempre existirá, em qualquer lugar do mundo, e
que portanto a permanência do tráfico na favela não é um problema, desde que se faça de uma
forma discreta. Os moradores reconhecem a mudança: “o que mudou foi só que, o armamento
era visível, a ostentação do armamento, era visível, eles andavam armados aqui dentro direto”
(Morador 12, Favela da zona Norte).
Outro elemento material eliminado pelas UPPs, e apresentado como um importante
indicativo do sucesso do programa, é o fim dos tiros, que também tem a vantagem de facilitar
a circulação pelo território, agora não mais interrompida por inesperados tiroteios. A ausência,
ou ao menos redução, dos tiros na favela “pacificada” é também sempre apontada pelos
moradores como uma mudança bastante positiva trazida pelas UPPs, que torna quase
inquestionável a melhoria da vida na favelas: a conquista do direito de entrar e sair a hora que
se quer, de trazer seus familiares para visita, e até de ficar parado à janela de sua casa, sempre
servia de referência para explicar porque a favela, pelo menos por um lado, melhorou com as
UPPs.
Entretanto, estes foco em “esconder” elementos materiais do espaço acaba tendo um
efeito ambíguo para a legitimidade das UPPs. Conforme explicou um policial, hoje, um tiro
em uma favela pacificada, é considerado uma denúncia de falência do programa:
Então, pragmaticamente, o ato de um tiro, e como a mídia ainda vai potencializar isso, se
transforma em ataque, todo o projeto está sob dúvida, sob suspeita, mas ali é uma ação –
em alguns momentos, não estou falando de todas – bem pontual. Diz muito mais respeito a
uma coisa daquele local. Pode ser uma liderança mal intencionada ou pode ser uma
inabilidade, uma falta de percepção dos policiais, pode ser medo dos policiais e pode ser, às
vezes, um conflito porque ali tem atividades em jogo (Representante da UPP 21, Geral).
Ao mesmo tempo, para evitar os tiros, e a consequente deslegitimação daquela UPP,
os policiais acabam perdendo regiões da favela para o tráfico, que passa a se concentrar, em
197
geral em regiões altas do morro, onde escondem seus armamentos e drogas. Quando isto
acontece, alguns comandantes ordenam que se evite circular na região, pois a chagada de um
policial no local pode resultar em uma troca de tiros, digna de capa de jornal, que a qualifica
como falha no programa. A situação foi explicada por um policial da UPP da zona Norte:
Ontem foram dois. Baleados, entendeu? Por que? Porque querem fazer o serviço, querem
fazer a patrulha e eles não vão deixar. Porque ali o terreno agora é deles, a figura do terreno
agora é deles. Porque tipo assim, a polícia que deixou. Porque não deixa patrulhar em
certos lugares e não toma certo local. Não adianta você vir tomar com 300 homens que
você não vai conseguir (Representante da UPP 20, Favela da zona Norte).
Os resultados do PAC não poderiam ser mais materiais e concretos, e portanto visíveis
nos espaços das favelas: o programa realiza obras, abre ruas, levanta prédios. Todos os
moradores sabem o que o PAC faz ali e, não obstante os conflitos constantes por conta das
remoções, reconhecem que o programa tem um papel ativo. Entretanto, a frente social do
PAC sofre do problema de não conseguir fazer visíveis as suas ações, e reconhecem um
esforço para a apresentação de resultados mais concretos:
Não só esse [da favela da zona Sul], mas também de todos os outros que a gente fazia era
uma combinação de urbanista sendo um pouco porque o trabalho nessa parte social ele é
muito abstrato. Então acabou sendo um pouco porque essa parte do social é muito abstrata
e eu acho que, por ser urbanista, muita coisa que a gente fazia tentava revelar a forma
física. (...) Então hoje, os nossos diagnósticos físico e social que se recomenda no trabalho
de desenvolvimento territorial considera tanto as questões físicas que precisam ser
melhoradas, como a questão social (Representante do PAC 1, Favela da zona Sul).
A UPP Social e o Territórios da Paz enfrentem, mais um vez aqui, uma dificuldade. Os
programas não tem um papel de executores no território, mas apenas de encaminhadores de
demandas ou de fortalecedores de redes comunitárias. Diante disso, os próprios agentes
reconhecem um problema de visibilidade nas ações dos programas por conta da ausência de
apresentação de resultados concretos.
Para lidar com a questão, uma representante do Territórios da Paz reconheceu que,
para além de suas funções, busca entregar produtos para a comunidade:
Eu acho que hoje o nosso papel lá é fomentar novas lideranças, tá, é articular rede, formar
rede, fortalecer rede. Eu acho que o papel é esse. Mas a gente tem que apresentar produto.
Isso eu não estou falando nem institucionalmente não, para a própria comunidade, assim
(Representante do Territórios da Paz 1, Favela da zona Sul)
O CRAS, embora voltado para a prevenção, vê no bolsa família a sua salvação: “Que
que o CRAS, a nossa sorte é o bolsa família” (Representante do CRAS 3, Favela da zona
Norte). Resultado mais concreto do programa, o bolsa família serve para abrir portas para que
198
os moradores acessem outros serviços do CRAS: “Muitas vezes as pessoas chegam aqui com
a perspectiva de que o bolsa família é, quando você abre um leque de benefícios”
(Representante do CRAS 7, Favela da zona Norte), explica uma agente que aponta o bolsa
família como o produto mais reconhecido, e as vezes o único conhecido do CRAS.
É nesse sentido que falamos aqui em um capital espacial como um capital valorizado
no campo burocrático do Estado em ação nas favelas. Conforme explicou Bourdieu (2011b),
para além dos espécies de capitais fundamentais, em geral presentes em todos os campos,
como o capital econômico ou o capital social, as espécies de capital são definidas de acordo
com a lógica específica de cada campo e, portanto, novos tipos de capital podem aparecer em
campos distintos. No campo burocrático do Estado em ação nas favelas pode-se identificar o
capital espacial como uma nova espécie de capital em jogo, que se apresenta em suas duas
formas principais: em uma dimensão de territorialidade, que se dá por meio da ocupação do
território pelos agentes do campo burocrático do Estado, e uma dimensão de materialidade,
que se dá por meio da apresentação de resultados materiais ou de transformações materiais no
espaço. A forma como se chegou ao conceito proposto de capital espacial, a partir dos dados,
é ilustrada na Figura 9 a seguir:
Capital Espacial
Dimensão de Territorialidade (Ocupação
do território)
Dimensão de Materialidade (Apresentação de resultados materiais ou transformações
materiais no espaço)
- Base física dos agentes;- Circulação dos agentes pelo
espaço;- Baseamento no território.
- Invisibilidade de tiros, armas e drogas;
- Obras;- Bolsa família.
Figura 9. Capital Espacial
A disputa pelo capital espacial, que se dá no campo burocrático do Estado em ação nas
favelas, também se evidencia pela disputa dos agentes por espaços mais visíveis, propriedade
199
que valoriza o capital espacial. Em outras palavras, a propriedade de visibilidade de um
espaço ou da matéria parece ser aquilo que os torna valorizados enquanto capital espacial, e
por isso, quanto mais visível maior é o seu valor enquanto recurso de poder. É reconhecido
que as favelas vem centralizando as discussões a respeito de desigualdade social na cidade do
Rio de Janeiro, e alguns agentes e moradores apontaram inclusive para o fato de que falar de
favela “está na moda”. Nesse sentido, também se reconhece que uma ação realizada em uma
favela ganha muito mais visibilidade do que uma ação em um outro território pobre qualquer
da cidade, o que leva a uma concentração de ações em territórios de favelas em detrimento de
outros espaços – não é à toa que o processo de “pacificação” restringe-se às favelas. Uma
agente discutiu a questão, e apontou os aspectos positivos e negativos desta tendência:
Então o que eu percebo de uma, eu acho que o que tem de maneira geral é que essa coisa
que a gente fala, né. Que favelas, se tornou uma coisa meio “cult”. Todo mundo quer falar
de favela, todo mundo quer falar de favela, todo mundo quer, e eu acho que isso acaba, isso
criou um lugar para as favelas diferenciado, assim. E que eu acho que é justo e é injusto.
Injusto na medida em que você tem outras áreas da cidade, que são às vezes muito mais
empobrecidas do que as favelas, mas por não ter essa identificação como favela, que é uma
coisa também um pouco abstrata porque onde é favela onde não é.(...). Mas ao mesmo
tempo eu também acho legal esse lugar, assim, de você ter, de você ser foco de política
pública, você ser foco porque realmente você teve, são lugares que são desprivilegiados,
assim, de ações do Estado, de benefícios, de maneira geral. Então acho legal que seja esse
foco, mas não acho legal que seja somente esse foco, entendeu. (...) Então eu acho então, e
eu acho que isso essa visibilidade que as favelas alcançaram. Então eu acho que é legal essa
visibilidade, mas também não pode se achar que ‘ah coitadas das favelas são um lixo da
pobreza’...não, eu não acho que seja. Mas eu acho que é isso (Representante do Territórios
da Paz 3, Favela da zona Norte).
Os equipamentos do CRAS, por exemplo, tem a responsabilidade de atender a um
território muito maior do que as favelas nas quais estão inseridos. Estão voltados para
população de baixa renda, esteja ela em favelas ou não. Entretanto, sua base está localizada
dentro da principal favela da região pela qual é responsável, e mesmo suas ações de “CRAS
itinerante” privilegiam os espaços de favela.
Mas as diferenças de valorização também se dão entre diferentes favelas, e talvez seja
este o elemento que melhor explica as diferenças que encontrei na relação entre Estado e
favelas entre a favela da zona Sul e a favela da zona Norte. Todos reconhecem que existem
favelas mais “populares”, que recebem maior atenção. Por aparecem na mídia com
frequência, o que muitas vezes relaciona-se ao fato de estarem localizadas em regiões mais
ricas da cidade, o território e a matéria destas favelas ganham mais visibilidade e, portanto,
200
são mais valorizados enquanto capital espacial. Tornam-se, assim, mais disputado, o que gera
um sentimento de esquecimento nas demais favelas. Nas UPPs, os policiais reconhecem esta
diferença:
Facilidade aqui é porque eles são observados. De mais investimento por ser Zona Sul.
Então, facilidade para eles é essa, de morar pessoas aqui no entorno que são da elite
influente, né? Então é ruim para eles que aqui seja uma bagunça. Eles querem ver que tenha
um mínimo de organização para eles terem paz lá embaixo, entendeu (Representante da
UPP 2, Favela da zona Sul).
As diferenças em termos de valorização do capital espacial nas favelas aqui
pesquisadas foi, desde o início, bastante gritante. A quantidade de agentes do Estado em cada
uma das favelas era perceptivelmente desigual: enquanto a favela da zona Sul contava com a
ação da UPP, UPP Social, Territórios da Paz, CRAS, PAC, Clínica da Família, CIEP, dente
outros, a favela da zona Norte contava apenas com uma UPP, as equipes da UPP Social e do
Territórios da Paz, CRAS, e o programa Cimento Social. As reclamações dos moradores a
respeito, principalmente, da ausência do PAC e de uma Clínica da Família eram constantes,
mas não ajudavam a resolver a questão: “O PAC passou de helicóptero [pela favela da zona
Norte]”. (Morador 12, Favela da zona Norte). Escolas também não havia ali. E os próprios
policiais se referiam à favela da zona Sul como “a menina dos olhos do Estado”
(Representante da UPP 14, Favela da zona Sul). O mesmo acontecia em termos de ONGs:
enquanto a favela da zona Sul contava com mais de 60 ONGs em seu espaço, a favela da zona
Norte, tinha no máximo duas, conforme explicou um representante da UPP Social:
“Pouquíssimas. Pouquíssimas, raras. Você pode colocar abrangendo porque se for da
comunidade, do morro, que é fixo no morro, que pertence ao morro, são duas, no máximo”
(Representante da UPP Social 2, Favela da zona Norte).
Vale ressaltar, ainda, o importante papel desempenhado pela mídia, e sua influência na
dinâmica de capitais. As favelas que mais aparecem na mídia são aquela que recebem mais
intervenções públicas. Este é um fato relatado por moradores, que brincam em arrumar algum
escândalo para tornar a sua favela “famosa”.
Assim como o capital espacial de algumas favelas é mais valorizado pelo Estado, este
também se torna mais valorizado pelo tráfico de drogas, porque em geral as favelas com mais
visibilidade também são aquelas que dão um retorno maior ao tráfico, em termos de venda de
drogas. Portanto, as disputas por espaço entre tráfico e Estado nestas favelas são mais
acirradas. Os policiais reconhecem esta diferença, e apontam a existência de favelas mais
201
tranquilas e mais violentas, deixando clara a sua preferência, embora não tenham esta
autonomia de escolha, por trabalhar em favelas onde os conflitos são menos frequentes:
Assim, como eu te falei, nessa experiência de quatro anos, é importante salientar que cada
comunidade tem a sua particularidade, né. Umas são muito tranquilas no relacionamento,
como Dona Marta, o Tabajaras, bem tranquilo. Algumas UPPs o clima ainda é tenso, né,
como hoje no Complexo do Alemão, se não me engano, o Macacos, da Tijuca ainda tem
um pouco de de de resistência (Representante da UPP 2, Favela da zona Sul).
Este fato também se mostrou visível ao longo de minha pesquisa de campo. Desde o
início a favela da zona Sul destacou-se como um território onde as disputas entre tráfico e
UPP eram mais acirradas, e o meu convívio com o tráfico nesta favela foi bem mais intenso.
No fim de 2013, quando as disputas se acirraram em ambas as favelas, foi na favela da zona
Sul onde vive os momentos de maior tensão, e presenciei alguns tiroteios. Na favela da zona
Norte, os confrontos diretos entre UPP e traficantes eram bem mais escassos, e os policiais
afirmavam que os traficantes locais eram traficantes “pé de chinelo”. Com um capital espacial
mais valorizado, as disputas pelo território na favela da zona Sul mostravam-se, naturalmente,
mais intensas. Embora reconheça-se que não é este o único fator explicativo para disputas
mais acirradas com o tráfico, a valorização do capital espacial revelou-se como um fator
explicativo importante nesta pesquisa, e ajudou a esclarecer as diferenças entre as duas
favelas.
Bourdieu (2014) explica que, por meio da redistribuição de recursos o Estado produz
um efeito simbólico, ou seja, quando seus agentes redistribuem o capital econômico que
possuem para a população transformam-no, segundo Bourdieu (2014), em capital simbólico.
Nas palavras do autor:
Hoje se sabe que coisas que apareceriam como desperdício – o fato de redistribuir
cobertores ou inhames – são, na verdade, uma forma de acumulação. A alquimia simbólica
consiste justamente na redistribuição: eu recebo dinheiro e, ao dá-lo de novo, o transfiguro
em doação criadora de reconhecimento – podendo a palavra ‘reconhecimento’ ser tomada
nos dois sentidos do termo, no de gratidão e no de reconhecimento de legitimidade. A
lógica da centralização leva assim, através da redistribuição, a uma nova forma de
acumulação: uma acumulação de capital simbólico, de legitimidade (BOURDIEU, 2014, p.
360).
Nesse sentido, para Bourdieu (2014) a redistribuição produz legitimidade. Segundo o
autor, este processo se apresenta como algo ambíguo, pois é um processo em que o capital vai
ao capital: “mesmo quando redistribui o rei não para de acumular. Até a redistribuição é uma
das formas por excelência de acumulação, pela transmutação do capital econômico em capital
simbólico.” (BOURDIEU, 2014, p. 361). É por meio do capital econômico que o Estado
202
consegue também acumular o capital simbólico que, segundo Bourdieu (2014), situa-se na
ordem do conhecimento e do reconhecimento e se apresenta também na forma de um acúmulo
de legitimidade.
Indo ao encontro de Bourdieu (2014), o que aqui se pretende mostrar é que quando o
processo de redistribuição se dá por meio de um acúmulo intermediário do capital espacial,
aumenta-se o potencial de transformação de capital econômico em capital simbólico. No
campo burocrático do Estado em ação nas favelas, os agentes capazes de transformar o seu
capital econômico em capital espacial, ou, dito de outra forma, aqueles que redistribuíram o
capital econômico por meio da ocupação do território ou de transformações na materialidade
do espaço, foram aqueles que também apresentaram maior acúmulo de capital simbólico,
observado pela maior legitimidade que estes agentes possuíam perante a população.
O capital espacial parece ser especialmente valorizado, e ampliado em seu potencial de
transformação em capital simbólico, quando se trata de sua interface com campos como as
favelas. Conforme retratado no capítulo anterior, as favelas, com suas lógicas de “lutas”, são
ainda marcadas por uma série de necessidades básicas não atendidas, o que as impõe um
senso de urgência, um imediatismo. Dentro deste contexto, compreende-se que a apresentação
de resultados concretos, mais imediatamente visíveis, seja mais valorizada do que, por
exemplo, as redes de relações sociais duráveis que acabam por estabelecer no longo prazo
com outros agentes que acumulam capital social.
Assim, não obstante o baixo volume de capital social acumulado pela UPP, o
reconhecimento deste agente diante dos moradores era inquestionável, mesmo por parte
daqueles que apresentavam as mais diversas críticas, que iam desde a antipatia dos policiais
ao controle da vida cultural da favela. A legitimidade do programa era revelada nas falas dos
moradores que sempre apontavam a UPP como “o Estado” na favela e reconheciam,
invariavelmente, que o programa trouxe melhorias importantes. “Mas o fato de você ter o
Estado aqui, a UPP, eu acho que é importantíssimo. UPP está aqui. (...) Mas tem o Estado
representando, sendo representando aqui dentro. Eu acho que é importante” (Morador 8,
Favela da zona Sul), declarou uma moradora. Outro morador assim descreveu as mudanças
trazidas pela UPP: “Imagina uma nuvem que tem preta em cima da comunidade e você vai e
limpa ela. É isso, foi isso que a UPP fez” (Morador 19, Favela da zona Sul).
Após apresentar as suas mais diversas críticas ao programa, os moradores sempre me
lembravam que agora podiam circular pelo espaço, que não havia mais tiros, e que hoje seus
filhos podiam viver em uma favela “sem armas” e sem drogas – estes aspectos eram
203
reconhecidos, de uma forma ou de outro, por quase todos os moradores com os quais
conversei. Conforme explicitado anteriormente, a invisibilidade da arma policial também
aponta para alguma legitimidade das UPPs nas favelas.
Os policiais atribuíam a aparente legitimidade do programa à sua presença física no
território e as inegáveis transformações materiais que este trouxe para a favela:
O que acontece, foi aquilo que falei, quem tem estrutura física dentro do território, é a UPP
que está aqui pintada de azul e branco e todo mundo tem como referência. Quem está
fardado na rua com a bandeira do Estado no ombro? É o policial, então ele acaba sendo
referência, enquanto que de repente a UPP Social e o Território da Paz vêm e executam o
trabalho deles, mas não acabam se tornando referência, porque não estão aqui presentes 24
horas (Representante da UPP 3, Favela da zona Sul).
Como consequência do reconhecimento das UPPs como “o Estado” na favela, as UPPs
e os moradores adquiriram o hábito de demandar dela aos mais diversas funções, mesmo
aquelas que eram claramente atribuições de outros agentes do Estado. Quando questionado a
respeito das funções que assume enquanto representante da UPP, um policial respondeu:
Várias, várias! Presidente da Light, da Cedae, da Comlurb... (risos). São várias né, porque a
referência que os moradores têm do Estado, é esse prédio físico da UPP. Então a procura,
cadê o Estado?! Está lá azul e branco pintado lá e firme, porque a CEDAE não está aqui
fisicamente ou a Comlurb não está aqui, então você acaba sendo a referência, (...) então
aqui se acaba fazendo todas estas e mais relacionamento com o público, instrução,
procedimentos operatórios, procedimentos administrativos, mas o principal é você acabar
sendo referência para os outros segmentos públicos que você não esperava ser, você como
Major da PM não esperava que ninguém um dia fosse te procurar porque está faltando água
ou porque a Comlurb não limpou a caçamba de lixo. (Representante da UPP 3, Favela da
zona Sul).
Os representantes do PAC, como visto anteriormente, também não conseguiram um
grande acúmulo do capital social, principalmente em decorrência dos constantes conflitos
com os moradores, devido às tentativas de remoção. Entretanto, o programa era reconhecido
mesmo por aqueles que brigavam nas reuniões: “O PAC em si ele veio, fez uma melhora. Fez
ou não fez? Fez uma melhora. Né, como eu falei, estou sentado em cima do antigo trilho que
levava o bondinho para cima do morro (...) esses olhos aqui viram, não foi ninguém que
contou, eu estava aqui. É, eu vi. Está mudando” (Morador 9, Favela da zona Sul).
UPP Social e Territórios da Paz, não obstante sua relação de proximidade e amizade
com os moradores das favelas, já não tinham o mesmo reconhecimento. Os moradores eram
unânimes em afirmar que não conseguiam enxergar o que os dois programas traziam para
eles: “a UPP Social, a muito tempo se fala de levantamento de dados, que ela tá dando
204
encaminhamento, isso e aquilo, mas eu não vi nada de concreto.” (Morador 10, Favela da
zona Sul). E o mesmo se afirmava do programa Territórios da Paz: “Eu vejo a [Valéria]
também, um pouquinho, como a UPP Social. (...) A UPP Social é município e a [Valéria] é do
Estado. Mas, não vejo grandes acontecimentos não” (Morador 10, Favela da zona Sul).
Embora o convívio fosse constante, não sabiam nem mesmo precisar o que aqueles
agentes do Estado faziam ali:
Eu gostaria de saber qual o trabalho dela aqui dentro. Porque todas as agentes de campo que
chegou aqui, pra mim, (...), eu não vi nada de útil. “Ah, vou trazer isso aqui pra você que
vai ser um legado da UPP Social”, eu não vi isso. Então não sei que tipo de relação ela tem
aqui dentro da comunidade, com quem, aonde. Não sei (Morador 24, favela da zona Sul)
O mesmo desconhecimento se via em relação ao programa Territórios da Paz: “O
Territórios da Paz aqui não tem muito, eu não vejo muita coisa deles, não. Não sei nem na
realidade o que eles estão fazendo. O que eles fazem” (Morador 16, favela da zona Sul).
O CRAS, por sua vez, tinha grande parte do seu reconhecimento decorrente do Bolsa
Família: “Até na divulgação do CRAS, reconhecimento das coisas, porque assim, quase
ninguém sabe o que é o CRAS, né? A pessoa sabe assim, onde faz o bolsa família. Aí onde
faz o bolsa família, todo mundo sabe” (Representante do CRAS 8, Favela da zona Norte).
Como seus agentes conseguiam antecipar, o Bolsa Família os “salvava”. Mas para os
moradores este agente se resumia a um provedor do Bolsa Família dentro da favela: “O CRAS
é igual ao bolsa família” (Representante do CRAS 4, Favela da zona Norte).
Mas aqui também, no que diz respeito às relações entre as espécies de capital, a
conversão do capital econômico em capital simbólico, por meio do acúmulo de capital
espacial, parece se dar de uma forma cíclica. O fechamento do ciclo se dá ne medida em que a
legitimidade dos programas também leva ao acúmulo do capital econômico, tendo em vista
que programas com maior legitimação recebem mais recursos públicos, e conseguem atrair
doações, como é o caso do financiamento que o Eike Batista deu às UPPs. Os representantes
da UPP fazem uma ligação quase direta entre a legitimidade do programa e os recursos nele
investido: “porque eu vejo que isso aqui é o, é a Menina-dos-olhos da polícia, né. Nada é mais
importante para a polícia hoje do que as UPPs. Então é bom você trabalhar um projeto que
você tem investimentos” (Representante da UPP 2, Favela da zona Sul). É em parte porque
obra traz reconhecimento e porque as UPPs tornaram-se o grande representante do Estado nas
favelas, que são estes os programas que recebem mais investimentos, ou que conseguem
acumular grande volume de capital econômico. A relação cíclica entre as espécies de capital é
ilustrada na Figura 10 a seguir:
205
Capital Simbólico Capital Econômico
Capital Espacial
Figura 10. Relação entre capital econômico, capital espacial e capital simbólico
Portanto, o que se observou foi que os programas com maior concentração de capital
econômico tem mais facilidade para redistribui-lo por meio do acúmulo do capital espacial,
que pode se apresentar na forma de ocupação do espaço pelos agentes ou da apresentação de
resultados materiais e transformações materiais do espaço. Quando esta é a via de
redistribuição privilegiada, amplia-se o potencial de transformação do capital econômico em
capital simbólico, o que corresponde a uma maior legitimidade dos agentes. Por sua vez, a
legitimidade serve como um atrativo para maiores investimentos financeiros nos agentes,
contribuindo para um maior acúmulo de capital econômico. Assim, fecha-se um ciclo de
legitimidade dos agentes.
A UPP é o agente do campo que parece apresentar maior legitimidade perante os
moradores (embora ainda seja questionada em alguns momentos), tendo em vista que acabou
por se tornar “o Estado” na favela e que é apontada pelos moradores como o agente que
trouxe mais transformações “visíveis” para as favelas, tanto que é apontado como um “divisor
de águas” na história das favelas. De acordo com o descrito, apresenta-se também como o
agente que mais diretamente ameaça o poder do tráfico, em sua busca pelo acúmulo do capital
da força física. Como forma de confrontá-la, o tráfico apela para a principal via sob a qual
ainda tem algum controle, e tenta restringir o seu acesso ao capital social, por meio de
ameaças e retaliações a moradores que, de alguma forma, estabeleçam contato com a polícia.
Entretanto, conforme mostrado, embora o capital social seja importante para dar acesso ao
206
capital informacional, com o qual estabelece uma relação de retroalimentação, o seu baixo
volume não restringe o acesso ao capital espacial, que lhe dá legitimidade, tendo em vista que
este compõe um outro ciclo de capitais – aquele no qual capital econômico, capital espacial e
capital simbólico são convertidos nesta ordem.
A partir das análises de distribuição de capitais, é possível aproximar-se do
posicionamento dos agentes do campo em um continuum que tem como extremos as posições
de incumbentes e desafiadores. Os incumbentes, conforme Fligstein e McAdam (2012),
ocupam as posições dominantes no campo, e os desafiadores, em posições inferiores,
aguardam oportunidades para tentar reverter a ordem do campo. Embora se reconheça que as
estruturas do campo são extremamente mais complexas do que a simples dicotomia
incumbentes/desafiadores, o posicionamento dos agentes neste continuum, de acordo com o
volume de capital que possuem, já nos antecipa muito sobre esta estrutura e nos indica uma
das suas características mais importante: quem são aqueles que mais se aproximam de uma
posição de dominantes neste campo. O posicionamento aproximado dos agentes pode ser
observado na Figura 11 a seguir:
Incumbentes Desafiadores
UPP PAC CRAS UPP Social
Territórios da Paz
Capital Simbólico
Capital Econômico
Capital Espacial
Capital Social
Capital Informacional
Figura 11. Posição aproximada dos agentes no campo burocrático do Estado
Na fala dos agentes a respeito de programas que sucederam a entrada das UPPs, como a
UPP Social e o Territórios da Paz, está presente o reconhecimento da necessidade de se
apresentar como um contraponto à figura do capitão, alguém que tivesse recursos de poder e
conseguisse projetar uma ascendência similar à do capitão dentro do espaço das favelas. No
entanto, com base na análise que apresentei aqui, tais programas parecem não estar sendo bem
sucedidos em conseguir se apresentar como uma oposição legítima à UPP, porque não
conseguem concentrar as espécies de capital capazes de ser convertidas em capital simbólico.
Estão, isto sim, aguardando um momento propício para tentar reverter a ordem do campo.
207
5.4 Conclusão
Este capítulo teve por objetivo analisar como os agentes do campo burocrático do
Estado se fazem presentes no espaço social de falas, no contexto do programa das UPPS. Para
tal, foram analisadas as lógicas institucionais por trás das ações dos agentes, bem como a
concentração de capitais entre os diversos agentes.
Nesse sentido, foram analisados os conjuntos de premissas nas quais se pautam as
ações dos agentes, e pode-se perceber que cada um desses agentes pauta-se em lógicas
institucionais diferentes, e muitas vezes conflitivas, ao desempenhar suas ações. Lógicas
distintas podem servir para inibir relações de cooperações entre os agentes e parecem tornar
as disputas mais acirradas. Da mesma forma, agentes que se pautam em lógicas semelhantes
ou não conflitivas, como é o caso da UPP e do PAC, encontram a possibilidade de atuarem de
forma conjunta. Entretanto, mesmo agentes com lógicas semelhantes, como UPP Social e
Territórios da Paz, disputam entre si. Este fator parece ser explicado pela semelhança dos
programas em seus objetivos finais, e por recorrerem a uma mesma espécie de capital, qual
seja, o capital social, para tentarem galgar posições no campo.
Além disso, as estratégias de legitimação utilizadas pelos agentes, e aqui analisadas
por meio da análise retórica, já antecipam a posição dos agentes, na medida em que mostram
que enquanto alguns agentes apenas reforçam sua legitimidade (como a UPP ou o PAC)
outros preocupam-se em justificar a falta dela (como a UPP Social, o Territórios da Paz e o
CRAS).
Mas só foi possível uma maior aproximação das posições dos agentes no campo, por
meio da análise da distribuição de capitais. Com base nesta análise, pode-se perceber que os
agentes dominantes no campo, como a UPP e o PAC, parecem ser mais ricos em capital
econômico, espacial e, como consequência, simbólico, e que os agentes desafiadores, como
CRAS, UPP Social e Territórios da Paz, possuem um acúmulo maior dos capitais social e
informacional. Há uma dificuldade particular, por parte dos agentes que se aproximam das
posições de dominantes no campo, em acumularem o capital social, devido às retaliações do
tráfico, que os enxerga como ameaças, em suas posições de legitimidade. Já os agentes
desafiadores, tem dificuldades em alcançar a posição de dominantes pois, sem legitimidade, é
difícil acumular o capital econômico, o capital espacial, que só é possível com recursos
financeiros e, assim, o capital simbólico. Por isso, acabam disputando entre eles a posse do
capital social, que está ao seu alcance, o que explica as disputas mais acirradas entre
programas como o Territórios da Paz e a UPP Social.
208
A análise da dinâmica de capitais vai ao encontro das estratégias de legitimação
utilizadas pelos agentes. Os argumentos de presença, reforçados pela maior parte dos agentes,
fosse para justificar a sua legitimidade ou a falta dela, vão ao encontro da valorização do
capital espacial, tendo em vista que apontam para resultados concretos dos programas ou para
a possibilidade de mobilidade no espaço, como forma de buscar sua legitimação por meio da
retórica. Já os agentes que recorrem ao capital social, que lhes é acessível, buscam lançar mão
de argumentos pautados no Pathos, ou seja, em afetos e emoções, para ressaltar um vínculo
afetivo com os moradores, por exemplo, como estratégia de legitimação. Nesse sentido, as
análises das estratégias de legitimação dos agentes e da dinâmica de capitais parecem se
complementar e apontam para uma mesma direção. A Tabela 20 a seguir apresenta uma
consolidação e síntese dos resultados encontrados em ambas as análises apresentadas neste
capítulo:
Tabela 20. Síntese dos agentes do campo burocrático do Estado em ação nas favelas
Lócus Objetivo Ações Estratégias
de Legitimação
Capitais Lógicas
UPP Estadual Retomada do
Território
Transferência de valores e
ostensividade
Logos, Presença e Ethos
Espacial, Econômico e
Simbólico
Lógicas civilizatória
e de confronto
PAC Federal Ampliar a
infraestrutura das favelas
Transferência de valores
Planejamento sem
participação dos moradores
Presença, Pathos e Ethos
Espacial, Econômico e
simbólico
Lógica civilizatória
UPP Social Municipal Encaminhamento
de demandas
Participação dos moradores e gestores de campo nas tomadas de decisões; Produtos
assinados pelos moradores
Logos , Presença e
Pathos.
Social e Informacional
Lógica da inversão
Territórios da Paz
Estadual Fortalecimento de
Redes
Participação dos moradores e gestores de campo nas tomadas de decisões;
Fortalecimento das redes para
que os moradores façam suas
próprias demandas;
Logos e Presença
Social e Informacional
Lógica da Inversão
209
Produtos assinados pelos
moradores
CRAS Municipal Antecipação de
demandas; Acesso a benefícios.
Divulgação dos direitos da população;
Participação em eventos da
comunidade.
Presença e Pathos
Capital Social e
Informacional
Lógica da Prevenção
Outro ponto de destaque é a diferença de valor do capital espacial de diferentes
favelas. As duas favelas aqui pesquisadas tem, ao que tudo indica, discrepâncias em seu
capital espacial: a favela da zona Sul parece ser mais valorizada. Neste sentido, não apenas a
favela da zona Norte atrai menos agentes do campo, como também aqui as disputas tornam-se
menos acirradas, tanto entre os agentes e o tráfico, quanto entre os agentes em si, sendo
possível até que se formem parcerias entre programas que competem, como a UPP e o
Territórios da Paz. Tem-se, assim, que o valor do capital espacial também ajuda a intensificar
ou não as disputas do campo, influenciando a intensidade das lutas.
Em síntese, os agentes, com lógicas distintas, tendem a disputar entre si. Suas posições
no campo, já apontadas pelas estratégias de legitimação, dependem da espécie e do volume de
capital que conseguem acumular. Nas favelas, as disputas e diferenças de posição aqui
descritas não passam despercebidas, e produzem os seus efeitos sobre o espaço social. E o
intermediário nesta dinâmica são os processos de organizar, que serão discutidos no próximo
capítulo.
210
6 DISPERSÕES, LENTIDÃO, DESCONTINUIDADES E (DES)MATERIALIZAÇÃO: A RELAÇÃO ENTRE O CAMPO BUROCR ÁTICO DO ESTADO E OS PROCESSOS DE ORGANIZAR
Foi naquela mesma audiência pública, narrada em capítulo anterior, que eu comecei a
refletir com mais afinco a respeito da aparente contradição com a qual me deparara: o Estado
está, definitivamente presente na favela, mas os moradores ainda apresentam demandas
básicas de condições de vida. Saí daquele teatro intrigada com a questão: o Estado está
presente, mas o que ele faz aqui afinal? Por que não é entregue aos moradores ao menos o
básico do que eles necessitam? Era preciso olhar para as ações daqueles agentes na favela,
tarefa que não se mostrou nada simples diante da minha tentativa inicial de analisar cada uma
das “organizações” que estavam ali.
Em meus esforços para acompanhar os agentes em campo, os quais naquele momento
para mim ainda eram sinônimos de “organizações”, percebi que assim como era impossível
enxergar “o Estado” como uma entidade bem definida também era impossível enxergar “a
organização”. O que era o PAC, afinal? A SEOBRAS, a EMOP? A empresa privada
contratada para realizar as atividades da frente social e a construtora contratada para realizar a
obra estão dentro ou fora desta “organização” chamada PAC? E a organização dos moradores
contratada pela frente social para fazer mutirões de limpeza? Conforme lembrou Czarniawska
(2010), as fronteiras das “organizações” não são claras e bem definidas como nos fazia crer a
abordagem sistêmica, assim faz mais sentido falar em processos de organizar, opção que vem
sendo adotada por muitos pesquisadores em estudos organizacionais, dentro de uma
perspectiva processual.
Embora a relação entre a noção de campo e de processos de organizar pareça fazer
sentido, há uma escassez de trabalhos que busquem analisar a relação entre os dois conceitos.
Buscando preencher esta lacuna teórica que se apresenta como uma alternativa promissora
para melhor atender ao meu problema de pesquisa inicial, e buscando passar de um nível
macro para o micro, direcionando meu olhar para as ações dos burocratas de rua, me
proponho aqui a responder a uma segunda pergunta de pesquisa, como um desdobramento da
pergunta inicial: qual é a relação entre o campo burocrático do Estado em ação nas favelas e
os processos de organizar dos agentes do campo?
Para isso, apresentarei brevemente a noção de processos de organizar, e a perspectiva
processual da qual provem o conceito. Com base neste conceito, apresentarei os resultados da
minha pesquisa no que dizem respeito à forma como as regras do campo conduzem a
211
processos de organizar lentos e descontínuos, à influência das lógicas dos agentes na
produção de processos de organizar dispersos e à incorporação de determinados processos de
organizar pelos agentes em decorrência das espécies de capital que pretendem acumular.
Termino mostrando como a posição privilegiada de um agente no campo pode levar a um
acúmulo de processos de organizar. Em termos metodológicos, busquei trabalhar aqui com as
notas de campos e entrevistas com moradores e agentes do Estado gravadas e transcritas, as
quais foram analisadas com base em teoria fundamentada.
6.1 Onde estão as Organizações? Assumindo o Conceito de Processos de Organizar
Era uma segunda-feira à noite, e uma das reuniões de integração do PAC tinha
acabado de se encerrar. Como de costume, eu ajudava os representantes do PAC que
coordenavam a reunião a guardar o material e recolher o lixo do lanche, para que pudéssemos
descer o morro. Como naquele dia o trabalho era pouco, uma das representantes da frente
social me convidou para acompanha-la até a porta da sala, pois ela ia fumar um cigarro e
queria conversar. Não a conhecia há muito tempo, e aproveitei para pergunta-la sobre sua
trajetória profissional, sobre o seu histórico anterior ao PAC, agora em um contexto mais
íntimo, afastada dos demais. Depois de me narrar brevemente a sua história, me interrompeu
antes que eu emendasse mais uma das minhas perguntas e, bastante fora de contexto,
esclareceu que não concordava com a forma como aquelas reuniões eram conduzidas, que não
concordava em “ensinar” aos moradores como eles deveriam viver: “se eles querem botar
varal para fora, quem sou eu pra dizer que fica feio?” (Notas de Campo, 23/09/2013). Embora
tenha evitado me posicionar diante do comentário, deixei escapar a minha concordância em
um riso aliviado.
O fato é que as “organizações” que eu tentava analisar, por assumi-las como agentes
do campo, tinham elas mesmas suas próprias disputas inerentes, que iam desde de simples
discordância a respeito de como agir à criação de subgrupos informais, muitas vezes
conflitivos. Quando eu passava de um nível macro de análise, que dizia respeito ao campo,
para um nível micro, para olhar para as ações desempenhadas pelos burocratas de rua, o
denominador comum entre eles apontado no capítulo anterior para retratar as lógicas
institucionais dos programas e a forma como cada um deles se diferencia, com base em suas
características principais, perdia-se de vista. A visão das organizações que a abordagem
sistêmica ajudou a cunhar, pautada no “biologismo” inerente à perspectiva, nos leva a pensar
as organizações sem suas contradições internas e como objetos bastante previsíveis. Mas não
212
foi este tipo de previsibilidade e uniformidade que eu encontrei em cada uma das assumidas
“organizações” que eu observava ali.
O dinamismo do campo retrato no capítulo anterior também parecia se refletir nas
ações dos burocratas de rua. A presença de subgrupos que disputavam ou ao menos
discordavam a respeito da forma como deveriam agir era comum. Nas UPPs, os moradores
logo me apontaram a diferença entre o “bom policial” e o “policial violento”. Sabiam quem
era quem, e os horários dos plantões nos quais tinham que se preocupar: “já conseguem fazer
essa diferenciação, discernir, né, que esse aqui dá para conversar, aquele lá não dá, hoje é o
plantão do fulano de tal, não dá para brincar no tatame, entendeu” (Morador 27, favela da
zona Norte). Mas a minha surpresa veio quando percebi que este mesmo reconhecimento era
compartilhado pelos policiais. Ao encerrar uma entrevista com um policial, este pediu que eu
desligasse o gravador e comentou: “então, eu pedi pra você desligar o gravador pra te dizer
que eu acho que você também deveria entrevistar policiais mais truculentos. Pesquisa é
pesquisa. Você tem que ver como é que é” (Notas de Campo, 27/09/2013). Comecei a
observar que a categoria do “policial truculento” fazia parte do vocabulário dos mais diversos
policiais, que sabiam me apontar quem a ela se enquadrava. Outro subgrupo importante, alvo
de muitas críticas, é o subgrupo das “FEMs”, a policial feminina. Vistas pelos demais como
uma policial que não consegue “bancar”, ou seja, que “não vai sustentar, não vai aguentar o
serviço” (Representante da UPP 14, Favela da zona Sul), as mulheres nas UPPs usam das
mais diversas estratégias para reafirmar o seu valor, desde a adoção de ações mais violentes,
até a união para se fortalecerem enquanto um grupo. Não é à toa que foi este subgrupo unido
que denunciou o “caso Amarildo23”, o que só serviu para aumentar as críticas às “FEMs” nas
UPPs onde eu pesquisava. Isso para não mencionar as disputas entre policiais dos batalhões e
policiais das UPPs (tratada com mais detalhes no próximo capítulo), tendo em vista que os
primeiros consideram os segundos “mariquinhas”, policiais mais “frouxos”, e apresentam
uma grande resistência ao programa das UPPs. Embora de início possa-se defender que estes
não compõem a mesma “organização” – ao se estabelecer uma separação entre batalhão e
UPP – pude perceber que eles se misturam na mesma unidade em muitos momentos, desde o
estágio inicial dos policiais da UPP em batalhões até a transferência de policiais antigos dos
batalhões para a UPP.
Mas a disputa entre subgrupos não é exclusiva das UPPs. No CRAS, há uma disputa
interna entre “contratados” e “concursados”, e na medida em que os primeiros sentem-se 23 Caso de um morador da favela da Rocinha cujo desaparecimento foi atribuído a policiais da UPP local, de grande destaque na mídia no ano de 2013.
213
desvalorizados, passam algumas vezes a descontar o seu descontentamento nos segundos que,
por sua vez, tendem a responder tratando-os como inferiores porque terceirizados. Os
conflitos foram retratados pelas diretoras das duas unidades pesquisadas. A respeito desta
questão, uma funcionária explicou:
Você tem que estar, compreender e sair do contexto para você entender que não é, é um
sistema perverso que está fazendo isso com os profissionais. Não é a minha colega que está
do meu lado que está me sacaneando. É o sistema. É ele que está sendo sacana comigo,
entende, e às vezes as pessoas não se dão conta disso (Representante do CRAS 3, Favela da
zona Norte).
Na UPP Social, a disputa entre subgrupos que discordam entre si fica evidente na fala
de um dos representantes do programa, que se refere, especialmente, ao período de troca da
presidência da UPP Social:
O Ricardo Henriques que foi o presidente do IPP e também um dos idealizadores do
programa, lembra que eu te contei que a Silvia Ramos tinha uma plataforma e o Jaílson,
outra? O Jaílson, Ricardo, todo mundo da patotinha que era ligado também ao grupo do
Adilson Pires. (...) Quando o Adilson Pires veio como vice, vice-prefeito, é, viu aquela,
voltou, surgiu novamente da UPP Social e do, para dentro mesmo da Secretaria. Então veio
novamente aquela coisa do Jaílson mudar, chegar e pegar a plataforma (...) da UPP Social.
Ficou aquele bafafá, se vai acontecer ou não, aquela coisa meio louca, e um grande mal-
estar dentro, que não sabe se isso mesmo ia acontecer, o Ricardo Henriques viu que ele não
conseguiria acompanhar essa briga e então a Eduarda La Rocque que foi Secretária de
Fazenda, assumiu a UPP Social (Representante da UPP Social 2, Favela da zona Norte)
Também foram comuns relatos a respeito de disputas com os próprios dirigentes, ao
ditarem ordens de cima com as quais os demais grupos não concordavam. Os policiais das
UPPs em diversas ocasiões desabafaram suas discordâncias em relação à forma como a
unidade estava sendo conduzida ou às ordens ditadas pelo comandante. Em algumas,
chegaram a desobedece-las. No Territórios da Paz os agentes chegavam a falar em um
movimento de resistência a ordens com as quais não concordavam:
Então a gente tem os movimentos de resistência, quando a gente acha que que o grupo que
chegou, não é um grupo, assim porque mudança de grupo mesmo só teve essa, né. Mas
assim quando existe alguma demanda política que chega para a gente, a gente fala ‘não
vamos fazer’, entendeu. Às vezes a gente consegue, às vezes não. Mas a gente tem os
movimentos de resistência que permitem que a gente mantenha mais ou menos as nossas
características fundamentais, entendeu (Representante do Territórios da Paz 3, Favela da
zona Norte).
Embora tenha-se identificado no capítulo anterior as lógicas institucionais
predominantes que guiam cada um dos agentes sociais, quando se olha para as ações
214
desempenhadas pelos burocratas de rua perde-se de vista esse denominador comum, e as
divergências saltam aos olhos, mesmo entre burocratas vinculados a um mesmo programa.
Os agentes que disputam no campo burocrático do Estado não são exclusivos de um
único campo, e é preciso considerar que em certa medida suas ações também estão pautadas
em lógicas difundidas em outros campos de poder. Os burocratas da UPP Social e do
Territórios da Paz, por exemplo, são, antes disso, parte do campo acadêmico, e foi com eles,
talvez, que eu pude mais facilmente me identificar, tendo em vista que as lógicas
predominantes nos campos acadêmicos dos quais fazemos parte nos impregnavam e
moldavam nosso agir, para além das lógicas dos programas em questão. Diversos programas
analisados contavam com moradores de favelas como parte de suas equipes de trabalho,
função em geral denominada de “agente comunitário” ou “agente de campo”. As UPPs,
embora não tivessem nenhum tipo de contratação especial de moradores de favela, contava
em sua equipe com diversos policiais nascidos e criados nas mais diversas favelas da cidade.
Era difícil distinguir o que os influenciava mais: a lógica da favela ou a lógica do campo
burocrático do Estado que compunham. Mais ainda, agentes dos próprio campo em questão
circulavam entre um programa e outro (e, portanto, mudavam de lógica?): representantes do
Territórios da Paz se demitiram do programa e ingressaram na UPP; a UPP Social tentava
contratar funcionários do Territórios da Paz para compor a sua equipe.
O próprio Bourdieu (2014, p. 429) reconhece a questão ao afirmar que “os diferentes
agentes são, portanto, ambíguos e divididos em relação a si mesmos”. Para ilustrar isto que
Bourdieu (2014) chama de “uma divisão em si e entre si”, o autor relata o exemplo dos
professores por ele entrevistados para a realização de sua pesquisa a respeito das
transformações nas universidades por consequência de maio de 1968. Segundo o autor,
dependendo da pergunta que fazia, os professores respondiam segundo princípios ou lógicas
diferentes: “Eles podiam responder como pais de alunos e eram, nesse momento, muito
severos diante do ensino; podiam responder como professores, e então eram muito
indulgentes; podiam responder também como cidadãos e podiam até assumir uma terceira
posição” (BOURDIEU, 2014, p. 423). Bourdieu (2014) explica que isto ocorre porque os
professores são, ao mesmo tempo, usuários do sistema de ensino, pais de alunos, e agentes
deste sistema, como professores. O mesmo é observado no campo burocrático do Estado, em
que aqueles que compõem o campo podem ser também moradores de favela, podem ser
também pesquisadores, que às vezes estudam o próprio campo, e podem ser, ainda, cidadãos
215
que suportam ou não o “Estado”, muitas vezes engajando-se em manifestações contra o
próprio campo do qual fazem parte.
Além disso, cabe ressaltar, que a maior parte dos agentes do campo burocrático do
Estado em ação nas favelas eram recentes, nascidos há pouco, e por isso é difícil dizer em que
medida a lógica do campo já envolve os mais diversos burocratas, que não lhe são exclusivos.
Em um contexto de disputas, fronteiras mal definidas, circulação dos burocratas entre
campos e programas diferentes, sobreposição de campos, não existe, portanto, esta entidade
homogênea, previsível e bem definida a qual aprendemos a chamar de organização.
Czarniawska (2010) lembra que quando a teoria dos sistemas foi trazida para a administração
algumas mudanças e redefinições foram demandadas. A aplicação da perspectiva sistêmica
em administração exigiu que fossem criadas unidades independentes (entendidas como
sistemas abertos) separadas por fronteiras bem definidas de seu ambiente externo e
relacionada com ele por meio da adaptação (CZARNIAWSKA, 2010). Estas unidades foram
chamadas de “organizações”, um termo genérico derivado da expressão “organizações
formais” (CZARNIAWSKA, 2010). Surge, assim, uma tendência a acreditar que é impossível
pensar sem o conceito de “organização”, pois o mundo se faz perceber como organizado ou,
pelo menos, como organizável (TSOUKAS, 2013).
Nesse sentido, “(…) the insistence on studying ‘organizations’ can obscure key
instances of organizing: organizing without organizations; organizing among organizations;
and organizing in spite of organization”24 (CZARNIAWSKA, 2010, p. 144). Czarniawska
(2010) lembra que muitos processos de organizar acontecem entre organizações, seja na
forma de alianças ou esforços cooperativos, seja na forma de redes, ou de fusões e aquisições,
ou a cooperação entre várias partes de diferentes organizações formais, com o propósito de
desempenhar uma ação conjunta. Muitas destas formas, ou quase todas, se mostraram
presentes no campo aqui analisado, conforme apresentado no capítulo anterior. Processos de
organizar, lembra Czarniawska (2010), podem ocorrer dentro de organizações formais, mas
raramente estão contidos em seus limites, e impor esta moldura ao cenário exclui muitos
fenômenos novos que estão relacionados aos processos de organizar. A liberação dos
processos de organizar desta moldura artificial imposta pelo limite virtual de uma organização
formal, na visão da autora, pode ajudar os pesquisadores a examinar processos de organizar
que acabam escondidos quando se tem um foco nas organizações. Parafraseando o
24 Tradução Livre: a insistência em estudar as “organizações” pode obscurecer instâncias fundamentais dos processos de organizar: o organizar sem organizações; o organizar entre as organizações; e o organizar, apesar da organização.
216
pensamento de Bruno Latour a respeito do estudo das sociedades, Czarniawska (2014) reforça
que os pesquisadores organizacionais precisam olhar para o performático ao invés de olhar
para as organizações; devem olhar para como as organizações são realizadas, como elas
acontecem, e não para como elas aparecem.
Guiados por uma lógica semelhante, vários pesquisadores em estudos organizacionais
vêm se pautando em uma perspectiva processual. Tem-se na perspectiva de Weick a respeito
do “organizing” e do importante papel do “sensemaking” a perspectiva processual mais
difundida, responsável por inspirar vários teóricos em estudos organizacionais. Mudando a
atenção das organizações como entidades acabadas para processos de organizar, Weick
(2010) ressalta os processos nos quais ações interdependentes são reunidas em sequências
sensíveis que geram resultados sensíveis.
Conforme explicam Langley e Tsoukas (2010), a noção de processo na qual se pautam
alguns estudiosos organizacionais, se define pela visão de mundo que vê o processo, muito
mais do que a substância, como a forma básica do universo. A orientação processual prioriza
a atividade em detrimento do produto, mudança em detrimento da persistência, novidade em
detrimento da continuidade, e prioriza temas como mudança, fluxo, ou rompimento
(LANGLEY e TSOUKAS, 2010). Assumindo o processo como fundamental, esta abordagem,
conforme Langley e Tsoukas (2010), não nega a existência de eventos, estados, ou entidades,
mas insiste em desempacotá-los para revelar a complexidade das atividades e transações que
se dão e que contribuem para a sua constituição. Em outras palavras, segundo Shotter (2010,
p. 71),
To adopt a process orientation is, we might say, to adopt a worldview – (…) – in which
instead of substance (stuff) we see processes; instead of already existing things we see
things in the making; instead of a succession of instant configurations of matter we see a
unitary, holistic, continuous flow of events, we see becoming rather than merely being.25
Bakken e Hernes (2006) explicam, com base no trabalho de Chia e Langley, a
contraposição existente entre uma abordagem que enfatiza o processo (uma visão “forte” de
processo) e uma abordagem que enfatiza a entidade (uma visão “fraca” de processo). Quando
a organização é vista como uma entidade, de acordo com os autores, o processo passa a ser
entendido como a interação entre entidades estáveis, previamente dadas, que embora
interajam de formas diversas, permanecem intactas. Já a perspectiva “forte” de processos
25 Tradução Livre: Adotar uma orientação de processo é, poderíamos dizer, adotar uma visão de mundo - (...) - em que, em vez de substância (coisas), vemos processos; em vez de coisas já existentes, vemos coisas na sua fabricação; em vez de uma sucessão de configurações instantâneas de matéria, vemos um fluxo de eventos unitário, holístico e contínuo; vemos o tornar-se, em vez de apenas ser.
217
pensa as entidades como produtos dos processos, aqui assumidos como categoria central, e
não como anteriores a ele.
Conforme Langley e Tsoukas (2010), a noção de processos de organizar pauta-se em
uma ontologia relacional, a qual reconhece que nada do que existe possui uma existente
separada de suas relações com outras coisas e, assim, supera-se os dualismos entre mente e
corpo, razão e emoção, individual e coletivo, agência e estrutura. Conforme defende Peci
(2004), as perspectivas que superam tais dicotomias avançam ao deixar de considerar as
organizações como produtos dados, e abrem espaço para a inclusão de dimensões espaciais ou
relacionais na compreensão das organizações.
“A process point of view invites us to acknowledge, rather than reduce, the complexity
of the world” 26(LANGLEY e TSOUKAS, 2010, p. 3), e é, portanto, por meio dela que se
pretende aqui dar conta de analisar a complexidade do campo em questão, que colocou por
terra a tentativa inicial de se trabalhar com o conceito tradicional de “organização”. Conforme
lembra Shotter (2010), quando se passa a enxergar o mundo por meio da perspectiva do
processo, começa-se a ver uma realidade cada vez mais difícil de compreender, cada vez mais
distante do que se esperava. Ou, como reconhece o próprio Weick (2010, p. 102), “thinking
processually tends to be hard to articulate, hard to disseminate, hard to aply. Hard, but not
impossible”. É em uma tentativa de reconhecer a complexidade dos objetos de análise, mais
do que tentar reduzi-los a objetos simples os quais a ideia de “organização” daria conta de
explicar, que se parte aqui para a noção de processos de organizar.
Dentro de uma perspectiva processual, a organização é constituída pelos processos de
interação entre os seus membros, e o que chamamos “organização” é apenas uma abstração
(LANGLEY e TSOUKAS, 2010, p. 4). Conforme explica Alcadipani (2008, p. 20), “to talk of
organising is to consider that organisations are an active course of action, a continuous result
of a precarious and partial process”27. Ao abandonar a noção de organização, Czarniawska
(2010, p. 154) defende que os pesquisadores organizacionais deveriam estudar processos de
organizar (“organizing”), enquanto conexões entre ações:
My plea is to study organizing as the connection, re-connection, and disconnection of
various collective actions to each other, either according to patterns dictated by a given
26 Tradução Livre: Um ponto de vista processual nos convida a reconhecer, em vez de reduzir, a complexidade do mundo. 27 Tradução Livre: Falar em processos de organizar é reconhecer que as organizações são um curso de ação ativo, um resultado contínuo de processos precários e parciais.
218
institutional order or in an innovative way. Such collective action need not be performed
within the bounds of a formal organization.28
A autora assume a noção de processos de organizar enquanto uma cadeia de ações,
enquanto conexões não lineares entre eventos que possuem um propósito (Czarniawska,
2014). Lindberg e Czarniawska (2006) explicam que o conceito de redes de ações tem como
pressuposto a ideia de que os processos de organizar demandam que diferentes ações coletivas
estejam ligadas entre si seguindo um padrão institucionalizado.
Segundo Gergen (2010), todas as ações requerem ações suplementares, e são, ao
mesmo tempo, suplementos de uma ação anterior, e é nesse sentido que o processo se dá. As
ações suplementares, segundo o autor, possuem duas funções: primeiro, a de conceder
significado ao que a precedeu, e segundo a de também demandar uma ação suplementar. O
significado que ela atribui permanece suspenso até que ela também receba o seu suplemento.
Em outras palavras:
More broadly, we may say that in daily life there are no acts in themselves, that is, actions
that are not simultaneously supplements to what has preceded. Whatever we do or say takes
place within a temporal context that gives meaning to what has preceded, while
simultaneously forming an invitation to further supplementation (GERGEN, 2010, p. 62)29.
Gergen (2010) lembra que as ações também impõem restrições ao tipo de
sumplementação que se dá, e estas restrições existem porque as ações já estão embebidas em
uma tradição de ações e suplementos. Nesse sentido, para o autor, nossas palavras e ações
funcionam de forma a impor restrições às palavras e ações dos outros, e vice e versa. Essas
restrições possuem a sua origem em uma história de co-ações precedentes (GERGEN, 2010).
Mas o autor lembra que palavras e ações funcionam apenas como restrições e não como
determinantes, porque as condições sob as quais se coordena as ações são raramente
constantes.
É importante lembrar, entretanto, que uma visão de mundo processual é apenas uma
orientação, e por isso pode ser desenvolvida em várias direções diferentes, explorando uma
grande variedade de temas em pesquisas organizacionais (LANGLEY e TSOUKAS, 2010).
Na visão Langley e Tsoukas (2010, p. 11), está faltando o “como” em estudos
28 Tradução Livre: O meu apelo é para estudar a organização como a conexão, re-conexão, e desconexão de várias ações coletivas umas com as outras, quer de acordo com os padrões ditados por uma determinada ordem institucional ou de uma forma inovadora. Tal ação coletiva não precisa ser realizada dentro dos limites de uma organização formal 29 Tradução Livre: De forma mais ampla, podemos dizer que na vida diária não há atos em si, ou seja, ações que não são simultaneamente suplementos para o que o precedeu. Tudo o que fazemos ou dizemos ocorre dentro de um contexto temporal que dá sentido ao que o precedeu, enquanto formando simultaneamente um convite para mais suplementação
219
organizacionais: “In other words, more process organization studies are needed not simply to
satisfy academic curiosity about the nature of the world, but to better understand how to act
whithin it”. E são as pesquisas que enfatizam as atividades das pessoas, ou como estas
atividades contribuem para a criação de categorias estáveis, que se aproximam mais desta
perspectiva processual (LANGLEY e TSOUKAS, 2010).
Ainda, olhar para os processos de organizar dos agentes do campo burocrático do
Estado em ação nas favelas significa também olhar para aqueles indivíduos que são chamados
de burocratas de rua (street level bureaucrats). Burocracias ao nível de rua (street level
bureaucracies) são organizações hierarquizadas nas quais um alto grau de discricionariedade é
dado aos agentes que atuam em sua linha de frente, na base da hierarquia, por sua vez
denominados de burocratas ao nível de rua (street level bureaucrats) (PIORE, 2011).
Os burocratas ao nível de rua são compreendidos, na literatura que trata do tema, como
funcionários do setor público que lidam diretamente com os cidadãos em suas rotinas de
trabalho (LOYENS e MAESSCHALCK, 2010). São considerados agentes públicos que
representam a autoridade do Estado, são os intérpretes das políticas públicas, a interface entre
o governo e os indivíduos (BRODKIN, 2012). Exemplos de burocratas ao nível de rua são
professores, policiais, profissionais de saúde e de segurança em geral, para mencionar alguns
(LOYENS e MAESSCHALCK, 2010).
Brodkin (2012) lembra, entretanto, que no contexto atual, esta interface entre governo
e indivíduos não é feita apenas por burocratas ao nível de rua que fazem parte diretamente da
burocracia do Estado, mas também por representantes de ONGs ou de PPPs, por exemplo.
Este é o caso aqui, por exemplo, da empresa privada que atua na frente social das ações do
PAC ou da construtora licitada para realizar as obras do PAC.
São os burocratas ao nível de rua que estão no núcleo operacional do Estado, pois são
estes funcionários que mediam a formação das políticas e toda a dinâmica política e social de
forma mais ampla (BRODKIN, 2012). Portanto, estes são também os principais intérpretes de
processos de organizar em nome do Estado, aqueles que interagem diretamente com o espaço.
São estes agentes que desempenham os processos de organizar capazes de produzir o espaço
social, os quais serão analisados a seguir.
220
6.2 Descontinuidades e Lentidão em Processos de Organizar
Naquela sexta-feira à noite em que me reuni aos moradores para participar da reunião
referente ao programa Cimento Social na favela da zona Norte, voltei para casa um pouco
abalada, refletindo a respeito da interrupção das ações do programa. Não se tratava
simplesmente do encerramento de ações que traziam melhorias superficiais; tratava-se de
ações voltadas para a construção de moradias, e enquanto o programa não fosse retomado
(isto se ele fosse um dia retomado) várias famílias não tinham onde morar e viviam de forma
improvisada com o auxílio do aluguel social. Não era a primeira vez que eu via um programa
público ou uma frente de um programa ser interrompido, mas o desconforto intenso que me
marcou naquela noite me fez refletir com mais cuidado a respeito das descontinuidades.
Como a esta altura já havia concluído, era preciso olhar para as ações, ou mais
precisamente para as conexões entre ações, conforme apontado por Czarniawska (2010), para
compreender os processos de organizar que davam os contornos do campo em análise, já que
era inviável enxergar ali as organizações bem definidas as quais eu fora procurar.
Mas conforme lembrou Czarniawska (2010), as redes de ações muitas vezes seguem
padrões, e eu começava a perceber em meu campo, que os processos de organizar que ali se
davam tendiam a seguir alguns padrões, se davam de maneira repetida em diferentes ocasiões
e por diferentes agentes do campo. Segundo Czarniawska (2014), é quando as ações são
repetidas que elas se tornam percebidas como padrões de ação, e é por isso que a repetição de
ações torna-se tão importante. Há, na literatura de estudos organizacionais processuais, uma
demanda por análises processuais que tragam contribuições a respeito de padrões repetitivos
entre atividades e eventos (LANGLEY e TSOUKAS, 2010). Guiada pelos processos de
organizar que seguiam padrões repetitivos em meu campo, e agora apoiada na literatura de
estudos processuais, passei, então, a tentar identificar quais eram estes padrões de ação que
marcavam os processos de organizar dos burocratas de rua.
Em poucos meses de pesquisa já me saltava aos olhos as descontinuidades e
interrupções em processos de organizar. Estas descontinuidades começaram a aparecer em
processos mais simples, como cursos oferecidos aos moradores que não eram finalizados,
como o programa “Vamos Combinar” iniciado pela UPP Social em parceria com a Comlurb
que foi interrompido, ou como o encerramento de alguns projetos sociais oferecidos pelas
UPPs. Com o tempo, passei a presenciar interrupções com consequências mais drásticas, e
não foi apenas o encerramento do Cimento Social que me deixou abalada. Também na favela
da Zona Sul o principal programa de reurbanização, o PAC, interrompeu as suas obras, e
221
alterou o seu planejamento inicial, chegando a remover casas desnecessariamente. As
descontinuidades nos processos de organizar pareciam ser um padrão.
Mas conforme lembram Langley e Tsoukas (2010), as ações não existem de forma
separada de suas relações com outras coisas, e as descontinuidades como padrões nos
processos de organizar que eu observava ali também só existiam de forma relacional. Pautada
no pressuposto de Gergen (2010) de que toda ação é simultaneamente um suplemento do que
a precedeu, passei a investigar o que aqueles processos de organizar suplementavam e davam
sentido.
A interrupção no programa Cimento Social que tanto me instigou era decorrente de
uma causa clara: os acordos políticos que faziam parte das regras políticas do campo. Os
acordos ou falta de apoio político, exemplos da influência do campo político no campo
burocrático apontada em capítulo anterior, também se mostraram antecedentes dos padrões de
descontinuidade em outras situações. A UPP Social, por exemplo, teve seus processos de
organizar voltados para a resolução do problema do lixo das comunidades interrompidos
devido à falta de apoio político da Comlurb, responsável por dar continuidade às ações. O
PAC manteve por diversas vezes obras paradas porque dependiam das ações de outros, como
da CEDAE ou da CEG, e ao serem questionados a respeito da inação destes órgãos
apontavam para uma possível falta de apoio político entre eles. A noção de processos de
organizar aqui nos ajuda a perceber que o organizar ocorre para além de pensáveis limites, na
forma de alianças ou esforços cooperativos, conforme Czarniawska (2010).
A existência de cargos políticos, também apontados em capítulo anterior como
consequências da influência do campo político no campo burocrático, são também
responsáveis pelos padrões de descontinuidades. Os relatos de que a troca de secretário levou
à troca de diversos funcionários e a mudanças nas diretrizes que guiam os processos de
organizar foram destacados por agentes dos diversos programas. Durante o meu período em
campo, o programa Territórios da Paz trocou de superintendente 3 vezes, e cada um deles
ditava novas diretrizes que produziam descontinuidades nos processos de organizar. A
principal mudança foi sentida com a saída de um superintendente que os gestores
qualificavam como um técnico, um acadêmico, para um superintendente que, segundo os
relatos, ocupava um cargo político. Neste processo de transição, os funcionários do programa
relatavam mudanças em seus processos de organizar: o primeiro superintendente demanda um
maior esforço intelectual, na forma de produção de artigos e relatórios pormenorizados a
respeito das favelas. Mas foi na segunda mudança de superintendência que presenciei um caso
222
mais emblemático de descontinuidade. Os representantes do programa distribuíram aos
moradores das favelas um documento a ser preenchido para se candidatarem a participar de
um edital que selecionaria 99 projetos de 13 favelas para receber um financiamento no valor
de 12 mil reais. Eu vivenciei a correria dos gestores em campo para que os moradores
preenchessem os documentos em tempo hábil e estivessem aptos a participar. Acontece que o
edital nunca aconteceu, pois se deu em uma transição de superintendência, A este respeito, um
representante explicou:
Eu acho que como mudaram tudo, como toda esta costura política entre o PT e o PMDB vai
encerrar em março, então tudo pode acontecer. (...) Se este edital de fato existiu, se estava
na intenção de ser uma coisa de fato, eu não sei! Pode ter sido uma articulação política dado
que a secretaria de Direitos Humanos sobre os auspícios do PT tivesse penetração nas
comunidades enquanto mais uma troca de secretário?! Pode ser também. Alguém vai
chegar para você e 6 meses vamos sair e vai enrolando aí porque é o que a gente tem para
agora! Ninguém vai fazer isto, enquanto a gente estiver aqui, eles vão fazer com que as
engrenagens de uma certa forma acabem se maquinando. (...) Mas se estão funcionando de
fato, aí é uma história completamente diferente, então acaba gerando este mal estar. Cadê o
edital? Não vim aqui e preenchi três páginas de ficha de inscrição, encheu o saco, eu não
poderia estar almoçando, aí a gente vai lá para a ONG que fica lá em cima, aí a gente desce
para a ONG que fica aqui embaixo... preenche, por favor, vai ser legal..olha vai vir mais
investimentos para vocês, mas reze que você pode ser sorteado ou não, porque são 99
projetos. São 99 projetos pertencentes às 13 comunidades com UPP, mas e aí? Aí fica nisso
e como é que vai explicar depois? “E o edital?!” O edital...tá saindo (Representante do
Territórios da Paz 4, Favela da zona Sul).
Da mesma forma, a UPP Social teve descontinuidades em seus processos de organizar
devido à alteração do presidente do IPP: enquanto o primeiro presidente propunha que o
programa desempenhasse ações voltadas para o levantamento de demandas e para a
articulação dos moradores com os órgãos públicos, a nova presidente deu essas ações por
encerradas e propunha ações voltadas para o empreendedorismo e para a parceria com o setor
privado. Alguns funcionários, insatisfeitos com as mudanças, chegaram a deixar o programa,
intensificando as descontinuidades.
No CRJ, um representante referiu-se a este padrão como uma “dança das cadeiras”: “É
sempre a troca de governo que tem a dança das cadeiras e aí você fica ali, pô vai continuar o
trabalho, será que vai continuar ou não o trabalho que você está realizando?” (Representante
do CRJ 1, Favela da zona Sul). Em decorrência dessa “dança das cadeiras”, os processos de
organizar tornam-se descontínuos: os cursos oferecidos pelo CRJ são alterados conforme se
alteram os superintendentes dos programas – seja como uma forma de eliminar cursos mais
223
caros, como foi o caso do curso de fotografia, ou seja por uma mudanças de diretrizes.
Conforme me explicou um representante do CRJ, a adesão dos moradores aos cursos leva um
tempo, e muitas vezes eles não conseguem sustentar um mesmo curso por tempo suficiente a
ponto dos moradores aderirem a ele. Como consequência, muitos cursos ficam vazios.
Na UPP a troca de comando – e, como consequência, a troca de policiais de confiança
(os “peixes”30) – era constante, e também dependia das decisões do coordenador geral das
UPPs (cargo que também se alternava). Na favela da zona Sul o comando mudou 3 vezes ao
longo de minha pesquisa de campo, e, na favela da zona Norte, 4 vezes. As implicações destas
mudanças de comando para os processos de organizar eram perceptíveis. Alguns comandantes
autorizavam eventos com mais facilidade, demandavam uma postura menos agressiva dos
policiais, e incentivavam o desenvolvimento de projetos sociais na UPP. Outros, proibiam
eventos, demandavam uma postura mais repressiva, e chegavam a encerrar os projetos sociais
que estavam em curso naquela UPP. Os comandantes também, em geral, alteravam a
distribuição dos policiais por cargos, o número e tipos de grupamentos policiais, e a
obrigatoriedade ou não de policiais “FEM” em cada grupamento. Conforme explica um
policial: “o Comando é o espelho da tropa. Se o Comandante é mais voltado para a
pacificação, eu vejo a tropa mais tranquila. Se o Comandante está mais disposto a combater o
crime, a tropa vai ‘dançar conforme a música’ dele” (Representante da UPP 14, Favela da
zona Sul).
Os moradores também reconheciam estas mudanças, e pareciam perceber uma
alteração na postura dos policiais de acordo com o comando:
Depois que ele saiu, aí o negócio melhorou mais um pouco. Era moto-táxi sendo agredido,
era moto-táxi que tinha que dar dinheiro, (...). E assim ficou. Então ele foi embora. E aí
veio um outro. Tudo bem ficou. Não ficou nem um mês também. Coitado. E esse daí está
tentando impor a ordem. Mas assim, até com os policiais que estão com eles, estão super
mais calmos. Vamos ver até quando. Apesar que já diz que ele já sai agora. Só ficou um
mês porque ele é comandante do Choque, ele é comandante do Choque. Então aí ele está
aqui. Mas já vai trocar. E aí a gente vai ver o que que vai dar. A gente fica assim (Morador
28, favela da zona Norte).
Nas duas favelas, a situação de violência começou a piorar no fim de 2013, em um
momento em que várias UPPs sofreram alterações em seus comandos. Os moradores
pareciam estabelecer uma relação direta entre a mudança de comando e o aumento da
violência, e diziam que os traficantes estavam “testando” o novo comandante.
30 A expressão “peixes” é utilizada pelos policiais das UPPs como referência aos policiais que são de confiança dos comandantes, e que costumam acompanha-los quando eles são designados para outra UPP.
224
Os padrões de descontinuidades eram tão frequentes, que existia inclusive uma
insegurança constante em relação à continuidade dos programas como um todo. Pude
acompanhar em diversas ocasiões a insegurança dos representantes do Territórios da Paz
diante dos rumores de encerramento do programa. A cada troca de superintendência,
espalhava-se uma tensão:
(...) e com esta onda de boatos de que o PT vai sair da secretaria, e com isso eles desta
superintendência vão embora juntos, o que vai restar para a gente? (...)Eles vão falar:
“deixa eles trabalhando” e quando chegar o momento final vamos receber a notícia, talvez
como um tapa nas costas pelos serviços bem prestados e tal, mas enfim... (Representante do
Territórios da Paz 4, Favela da zona Sul)
A UPP Social funcionava com base em contratos temporários, e no meio de 2013 foi
interrompida por tempo indefinido para se reestruturar, levantando rumores a respeito do fim
do programa. Com prazo para encerramento ou possível renovação, o clima entre os
funcionários do programa também era de insegurança. Ao ser questionada a respeito da
continuidade do programa, uma representante me respondeu: “isso é tão nebuloso, porque a
gente tem o contrato é até julho, né, esse é o dado de realidade, mas ele pode ser renovado de
novo. Eu sinceramente não sei porque ano que vem é ano de eleição e aí só Deus sabe”
(Representante da UPP Social 4, favela da zona Sul).
Também a UPP provocava rumores a respeito de seu encerramento, sendo este
especialmente vinculado ao fim das Olimpíadas em 2016. O temor em torno do ano de 2016
parecia pairar sobre as favelas. E mesmo os policiais, que em geral eram confiantes a respeito
do sucesso do programa, consideravam a possibilidade de encerramento. Este temor está
pautado na crença de que o objetivo do programa das UPPs é apenas político, ajudar a ganhar
votos. Como as Olimpíadas marcam um momento crítico para a cidade do Rio de Janeiro, em
que todos os olhares estarão voltados para ela, passado este momento as UPPs não serão mais
importantes pois não terão mais tanta visibilidade.
Neste caso, a insegurança em relação à continuidade dos programas parecia estar mais
vinculada à busca por acúmulo de votos, ou por tirar votos de seus opositores. Moradores e
representantes do Estado me relatavam que os programas eram políticas de governo e não de
Estado, o que significa dizer que a mudança de governo ameaça o fim do programa, pois a sua
continuidade seria uma forma indesejada de angariar votos ao seu oponente que o criou. E os
comentários a respeito da continuidade dos programas vinham sempre acompanhados de um
desabafo final “tudo depende do resultado das próximas eleições”. Conforme relatou uma
representante do PAC:
225
Infelizmente não se pensa essa política pública, se pensa em política de governo. Política
pública de Estado, sabe? Isso de alguma forma tinha que estar amarrado. Não sei se existe
uma lei, uma instituição que, sabe. Mas. Porque o que mais a gente vê aí é isso. Tinha que
ter política pública do Estado. Isso. Não do Governo. Isso é o que eu acho (Representante
do PAC 5, favela da zona Sul).
Tem-se, assim, que os processos de organizar observados no campo burocrático do
Estado tendem a seguir um padrão, enquanto repetição de ações (CZARNIAWSKA, 2010),
marcado por descontinuidades, e é nesse sentido que se fala aqui em processos de organizar
descontínuos. A categoria descrita e a forma como, a partir dos dados, cheguei a ela, está
representada na Figura 10 a seguir:
Processos de Organizar Descontínuos
Descontinuidades decorrentes de trocas de
cargos políticos
Falta de Apoio Político gerando descontinuidades
Associação da continuidade dos programas ao contexto político
- Troca de superintendência levando a boatos de encerramento do Territórios da Paz;
- Fim das Olimpíadas levando à insegurança em relação à continuidade das UPPs;
- Crença de que o que se tem são “políticas de governo”
- Ausência de força política do IPP levando ao encerramento do “Vamos Combinar”;
- Falta de apoio político no PAC levando à paralização de obras que necessitavam das ações de outros órgãos públicos.
- Troca de superintendentes alterando cursos oferecidos pelo CRJ;
- Troca de presidência do IPP tornando a UPP Social mais voltada para o setor privado;
- Troca de comando da UPP encerrando projetos sociais.
Figura 12. Processos de Organizar Descontínuos
Pode-se observar aqui que a conexão entre ações que compõem os processos de
organizar dos agentes do Estado sofrem restrições da influência do campo político no campo
burocrático, que a impõe um padrão de descontinuidades – seja a partir da troca de cargos
226
políticos, da falta de apoio político, ou da crença de que a continuidade dos programas
depende do contexto político. Isto demonstra um imbricamento entre a dinâmica dos campos
e os processos de organizar.
Outro padrão de ação dos processos de organizar decorrentes do campo burocrático do
Estado em ação nas favelas é a lentidão que os marca. Os padrões de lentidão tornam-se
especialmente visíveis quando dizem respeito a uma interface entre o campo burocrático e o
campo das favelas. O imediatismo que marca as favelas requer processos de organizar mais
ágeis, e o campo burocrático do Estado se percebe em um novo território a respeito do qual
não possui muito conhecimento, e no qual ainda está aprendendo a estabelecer novas rotinas.
As obras do PAC pareciam infindáveis, e as reclamações dos moradores nas mais
diversas reuniões que pude acompanhar iam em geral no sentido de cobrança de prazos que já
estavam esgotados: as obras nunca finalizavam no prazo previsto. Os programas Territórios
da Paz e UPP Social iniciavam suas ações, mas demoravam tanto para mostrar os poucos
resultados mais concretos que podiam apresentar, como livros produzidos a partir de eventos,
ou mapas decorrentes do levantamento de informações, que os moradores davam aqueles
projetos por encerrado e inacabados. A Comlurb, por sua vez, não parecia acompanhar o
ritmo de produção de lixo dos moradores da favela. Demorava para atender suas demandas e
gerava insatisfações diante de caçambas lotadas.
Aqui, mais uma vez partindo da ideia de que as ações só existem de forma relacional
(LANGLEY e TSOUKAS, 2010), e que os padrões dos processos de organizar se dão em
relação à dinâmica do campo, é possível notar que é em função das restrições impostas pela
lógica burocrática que os padrões de lentidão marcam os processos de organizar.
As regras e normas formais e o formalismo, apontados em capítulo anterior como
exemplos da lógica burocrática, impõem exigências aos processos de organizar dos agentes do
campo burocrático do Estado em ação nas favelas, que os tornam muito mais lentos, em um
espaço no qual não estão habituados a agir, diante da necessidade de criação de novas rotinas
em espaços para eles complexos. O programa Territórios da Paz elaborou um plano de
memórias a partir de um projeto desenvolvido pelo programa que visava ajudar a recuperar a
memória de algumas comunidades. Entretanto, os moradores reclamam que não viram o
resultado. O livro, decorrente do projeto, estava há muitos meses para ser publicado, mas
algumas normas dificultaram o processo: “e agora está no Jurídico aqui da Secretaria. Aí já
está pronto mas tem que autorizar não-sei-o-quê e a UERJ que tem que publicar porque a
227
editora é de lá e tem que respeitar os prazos da editora de lá, não-sei-o-quê, não-sei-o-que-lá”
(Representante do Territórios da Paz 3, Favela da zona Norte).
Como uma exigência do PAC, o ITERJ atuou na favela da zona Sul com vistas a
regularizar a situação fundiária dos moradores. Entretanto, as exigências legais em termos de
produção de documentos e seguimentos de regras são tantas, que o ITERJ demora anos para
finalizar o processo. Conforme explicou um de seus representantes:
Para uma regularização fundiária, precede um levantamento topográfico, você tem que
contratar, tem que medir todos os lotes, fazer uma planta adequada, fazer um cadastro
socioeconômico de todas essas famílias, discutir esse projeto de parcelamento, se é o
melhor para a comunidade ou se necessita de algumas intervenções urbanísticas, onde é
necessário reassentar uma família, recolocar, porque, às vezes, ali ficaria melhor passar
uma rua, como está acontecendo na [favela da zona Sul]. Isso tudo traz trauma para a
comunidade. (...) Em cima disso, nós temos que ir para a prefeitura pegar os habite-se
dessas casas também – é até uma dificuldade. Às vezes essas casas não têm ventilação
própria, não têm uma ventilação adequada (Representante do ITERJ 2, Favela da zona Sul).
O PAC, por sua vez, atrasou uma de suas obras porque não tinha a licença adequada
para realizar a poda das árvores que estavam impedindo a obra. E eu mesma tive a minha
pesquisa prejudicada por este padrão de lentidão: levei quase seis meses para conseguir
autorização do programa da UPP Social para realizar a minha pesquisa, pois precisei
preencher relatórios, que foram encaminhados a um setor de pesquisa e tive que realizar
reuniões internas até que minha pesquisa fosse liberada.
A impessoalidade e a meritocracia também são responsáveis pelo padrão de lentidão.
As obras do PAC, interrompidas pela retirada da construtora, ficaram paralisadas durante
meses porque era necessário abrir um novo processo de licitação para que uma nova
construtora pudesse assumir as obras. Conforme explicou um representante do PAC:
A [construtora] pediu para sair, quando eles pediram para rescindir o contrato, foi legal,
foram chamar a 2ª colocada. A 2ª colocada por logística não pôde aceitar, aí a lei manda
que a gente faça uma nova licitação e aí agora estamos trabalhando com uma nova
licitação, para chamar uma nova empresa, voltar tudo para trás, preparar tudo de novo para
continuar as obras e aí é isto que está rolando lá (Representante do PAC 3, Favela da zona
Sul).
É também prezando a impessoalidade e a meritocracia que os programas levam tanto
tempo para a contratação de novos funcionários, o que torna os seus processos de organizar
mais lentos, em decorrência do baixo efetivo que tem que dar conta de muito trabalho. Uma
representante do Territórios da Paz explica que é por conta de questões burocráticas que um
novo concurso público para contratação de novos funcionários para o programa ainda não
228
aconteceu: “Ah, sempre, 'ah porque foi para não sei quem’. Aí volta, mandou alterar alguma
coisa. Vai e volta. E nesse período está indo, entendeu” (Representante do Territórios da Paz
3, Favela da zona Norte).
Os agentes reconhecem que o tempo do campo do Estado é muito mais lento, e que
este padrão também é responsável por gerar insatisfação nos moradores: “e os tempos do
Poder Público são tempos bem diferentes das comunidades, a gente também entende isso (...).
Então, assim, é, essa diferença de tempos, eu consideraria como um dos desafios a serem
cumpridos” (Representante da UPP Social 1, Geral).
Conforme lembram Langley e Tsoukas (2010), a busca por padrões de ação também
inclui uma busca por padrões temporais, e no campo burocrático do Estado em ação nas
favelas um padrão temporal torna-se perceptível: a lentidão que marca os seus processos de
organizar. A categoria aqui denominada de processos de organizar lentos e os elementos
empíricos que levaram a ela podem ser observados na Figura 13 a seguir:
Lentidão decorrente de regras, normas e
formalismos
Lentidão decorrente da impessoalidade e da
meritocracia
- Exigência de licença para podar árvore atrasando obras do PAC;
- Exigência de documentações atrasando o processo de regularização fundiária do ITERJ;
- Exigência de documentações e reuniões no IPP atrasando a minha pesquisa.
- Novo processo de licitação para contratação de construtora atrasando obras do PAC;
- Abertura de concurso público atrasando a contratação de novos funcionários no Territórios da Paz.
Processos de Organizar Lentos
Figura 13. Processos de Organizar Lentos
229
Os processos de organizar realizados pelos burocratas de rua sofrem também
restrições da lógica burocrática do campo, e como decorrência apresentam padrões de
lentidão. Regras, normas e o formalismo, bem como a impessoalidade e a meritocracia,
marcas da lógica burocrática levam a processos de organizar lentos, gerando uma
incompatibilidade entre o “tempo do Estado” e o tempo no qual os moradores das favelas
necessitam que suas demandas sejam satisfeitas.
6.3 Dispersões e Sobreposições em Processos de Organizar
Conversava com um morador da favela da zona Sul – favela que recebe
particularmente muitos recursos públicos – e, no ápice de seu relato a respeito de sua relação
com o Estado ao longo de sua vida enquanto morador de favela, ele desabafou em um tom de
indignação: onde está todo esse investimento público aqui dentro? Depois do seu desabafo,
confiou-me o que chamou de sua “teoria”, a qual um dia pretendia estudar formalmente em
um trabalho de mestrado: se pegarmos todos os recursos públicos investidos na favela desde a
década de 1980, incluindo aí investimentos em obras, projetos sociais, e até mesmo o salário
de todos os gestores públicos que já haviam passado por lá, e distribuíssemos este dinheiro
para pagar ensino superior de pelo menos dois membros de cada família da comunidade, a
favela estaria muito melhor. Sua “teoria” me fez pensar. Ela tinha por trás a premissa de que
as ações dos agentes do Estado na favela deveriam ter relação entre elas, estar direcionadas
para um mesmo objetivo, seguir uma mesma direção, que, na visão dele, girava em torna da
questão da educação.
De fato, a lógica deste morador estava muito longe de estar sendo seguida pelos
agentes do campo burocrático do Estado que eu observava em minha pesquisa. Suas ações
não se guiavam por um mesmo objetivo, não seguiam uma mesma direção, e poucas vezes
estavam relacionadas. Acontece que o conjunto de ações que compõem os processos de
organizar são moldadas por instituições (LINDBERG e CZARNIAWSKA, 2006), e conforme
demonstrado no capítulo anterior, cada uma daquelas “organizações” que se apresentavam
enquanto agentes do campo burocrático do Estado seguiam, em alguma medida, as suas
lógicas próprias. Embora reconheça-se as limitações das lógicas institucionais de cada agente
para produzir uma homogeneidade entre as ações dos burocratas de rua, e ainda que a lógica
burocrática do campo burocrático do Estado e a influência do campo político ajudem a
estabelecer padrões de ações comuns aos agentes, tais agentes também apresentam, em certa
medida, padrões próprios de ação, moldados pelas lógicas institucionais.
230
A lógica de confronto que predomina nas UPPs condicionam, embora não
determinem, uma série de ações que se voltam para o combate de um “inimigo” nas favelas,
conforme demonstrado no capítulo anterior, e aqui discutido em mais detalhes com o suporte
do conceito de processos de organizar. Com o objetivo de retomar o território, os processos de
organizar dos policiais das UPPs são marcados, em sua maioria, por esta lógica de confronto,
que os faz abordar e revistar moradores, realizar prisões e apreensões de armas e drogas,
barreiras policiais nas entradas das favelas, para que nenhum inimigo possa escapar. As ações
que compõe os seus processos de organizar guiados pela lógica do confronto parecem estar
conectadas: há um planejamento da distribuição dos policiais pelo território com base em
índices criminais ou de informações do serviço de inteligência, que controla a favela por meio
de estratégias de disfarce como o uso de microcâmeras; a identificação do criminoso a partir
da “fundada suspeita” (exemplifica como o uso de casaco em um tempo quente, a reunião de
um grupo de jovens ou uma postura tensa diante da presença do policial) está associada à
abordagem e revista; prende-se se for o caso; apreende-se suas drogas e armas, caso
encontradas.
Esta primeira rede de ações parece ser complementada por processos de organizar
moldados pela lógica civilizatória, também apontada no capítulo anterior como característica
das UPPs. As duas redes de ações parecem estar conectadas entre si, na medida em a segunda
ajuda a “orientar” potenciais criminosos para que estes não ingressem na vida do crime,
evitando assim que a primeira rede de ações tenha que ocorrer ou que seja finalizada com
prisões e apreensões. É nesse sentido que os policiais da UPP realizam atividades sociais com
crianças, buscando transmitir, por meio destas ações, valores considerados “superiores” a
crianças que não têm de onde tirá-los: “Se você começar a incentivar os esportes... ah mas não
é um trabalho da polícia? É sim, poxa. Se eu estou tirando aqui os jovens que estariam
ingressando no mundo do crime através do esporte, é um trabalho da polícia sim. E é dessa
transformação que a gente quer participar” (Representante da UPP 3, Favela da zona Sul). E é
também guiados por esta lógica, que os policiais assumiram um novo processo de organizar: a
autorização dos eventos da comunidade. Para melhor regulamentar esta questão foi criada a
resolução 013, que se tornou famosa nas comunidades por produzir indignação. Os bailes
funks são proibidos e, às vezes, até mesmo o som do funk em rádios ou celulares são
reprimidos pelos policiais. Em uma reunião para tentar estabelecer regras a respeito da
realização de eventos na favela da zona Sul, um representante da UPP chegou a discutir com
os donos dos estabelecimentos o tipo de música que eles poderiam tocar ou passar nas TVs:
231
“Ah não, tem o DVD ali e a televisão, vai botar o UFC? Beleza. Jornal da Globo? Beleza.
(...). Po, quadradinho de oito, quadradinho de nove, sei lá, po, acabou, acabou, acabou tudo.
Não tem como, é seis por meia dúzia” (Reunião Gravada, 05/06/2013). A crença é que o funk
está relacionado com o tráfico e incentiva a violência, e a sua proibição ajuda a afastar os
moradores da criminalidade.
Mas a lógica civilizatória não é exclusiva das UPPs. Conforme mostrado no capítulo
anterior, também no PAC é esta a lógica predominante. No caso do PAC, os processos de
organizar de ambas as suas frentes de ação (frente social e frente de obra) parecem ser
moldados por esta mesma lógica. Na frente de obras, parte-se da lógica civilizatória para se
fazer crer que é possível determinar por si mesmos aquilo que é melhor para os moradores,
ainda que estes não concordem. E nesse sentido, forma-se uma rede de ações bastante
embasada: negocia-se com os moradores a sua remoção, e é legítimo partir para ameaças,
porque no fim ser removido será melhor para o morador; depois, remove-se as casas, ainda
que contra vontade; e as obras, baseadas em um projeto pronto desenvolvido por quem sabe o
que é o “melhor”, são, finalmente, postas em ação.
A frente social, por sua vez, pautando-se na mesma lógica, realiza a gestão de impacto,
auxiliando no cadastro dos moradores para os fins de remoção, e posteriormente ensinando-os
a habitar os novos prédios, guiados pelos valores da “civilização” e seguindo a melhor forma
de habitar. As reuniões de integração contam com ações como explicações a respeito da
importância de que tudo seja padronizado nos apartamentos, por questões estéticas, até a
explicações a respeito de como funciona uma gestão condominial e a eleição do síndico do
novo prédio, com a intermediação dos representantes do PAC. A gestão territorial se propõe a
capacitar os moradores para trabalhos que lhes são dignos, como os serviços de garçons ou de
cabeleireiros, ou a educar ambientalmente os moradores daquela comunidade.
A UPP Social, guiada pela chamada lógica da inversão, conforme proposta no capítulo
anterior, tem os seus processos de organizar guiados por outros propósitos e direcionados para
outro lugar. Inicialmente com o objetivo de encaminhar demandas, estabelecendo um vínculo
entre o poder público e os moradores, os representantes da UPP Social desempenhavam
processos de organizar que, conforme indicam a sua lógica, estão direcionados de baixo para
cima, por meio de uma rede de ações que começa na favela até chegar aos órgãos que
convém: começa-se por realizar ações que possibilitem compreender as demandas da
comunidade, como a participação de reuniões organizadas pelos próprios moradores, ou por
outros agentes, ou até mesmo em mutirões de limpeza, levantamentos de informações sobre a
232
favela por meio de observação e conversas informais com moradores; organizam as demandas
e informações levantadas em relatórios ou mapas, o que funciona como uma ação
intermediária que busca “traduzir” aquilo que lhes diz a favela e os moradores em uma
“linguagem” que os agentes do Estado estejam mais habituados a compreender; relatórios e
mapas são encaminhados aos órgãos responsáveis por atender as demandas neles apontadas.
Esta “tradução” também se apresenta como uma “formalização do informal”, por meio da
qual os agentes tentam formalizar aquilo que já existe de forma informal na favela, como foi o
caso dos nomes das ruas ou regiões. Em período posterior, quando a UPP Social tentava se
desvencilhar do levantamento de demandas, suas ações passaram a girar em torno,
principalmente, da participação em eventos e reuniões da comunidade, o que também
auxiliava em um levantamento de informações, e no estabelecimento de vínculos entre os
moradores e organizações privadas que pudessem auxiliá-los em suas demandas não
atendidas. Assim, por meio de uma rede de ações “de baixo para cima” os burocratas da UPP
Social invertem os processos de organizar.
O programa Territórios da Paz, como guiado pela mesma lógica da inversão, parece
apresentar processos de organizar bastante semelhantes, e a inversão da rede de ações também
ocorre aqui. Aqui também vão do levantamento de demandas e informações em campo, para a
sua tradução e o seu encaminhamento. Porém, acrescenta-se, talvez como consequência de
uma lógica de inversão ainda mais impregnada, o fortalecimento das redes de moradores, o
que acabou tornando-se o objetivo principal do programa. Nesse sentido, essa preocupação
com o fortalecimento também se estende para processos de organizar que vão além de
encaminhamentos e levantamentos de demandas e que passam para ações voltadas, por
exemplo, para o “fortalecimento” de jovens, o “fortalecimento” de mulheres, por meio de
eventos e atividades voltados especialmente para eles, a criação de uma rede de comerciantes,
ou o incentivo à troca de experiências entre moradores de diferentes favelas, para que estes
possam, juntos, se fortalecer. Ainda, a partir da ideia de que cada favela tem as suas demandas
específicas, os representantes do Territórios da Paz possuem uma grande autonomia de ação,
e costumam construir as suas agendas e decidir a respeito de seus processos de organizar de
acordo com o que acontece em cada favela, o que faz com que mesmo as ações dos agentes
deste mesmo programa possam ser bastante desconectadas.
Pautado em sua lógica de prevenção, o CRAS apresenta processos de organizar que
tendem a se antecipar a problemas mais graves. Realizam uma rede de ações que parte da
participação em eventos da comunidade, com o propósito de identificação de moradores ou
233
famílias mais “frágeis”, para o cadastro destes moradores, seja no cadastro único ou no banco
de dados do CRAS, e culmina na oferta de benefícios que tendem a evitar problemas futuros,
como o bolsa família, a tarifa social da Light, o desconto em inscrições em concursos
públicos, a participação em grupos de convivência, o acesso a cursos gratuitos ou o acesso a
atividades culturais diversas. Conforme explicou uma representante do programa:
O CRAS é a porta de entrada para as famílias que querem acessar os serviços e benefícios
prestados pela prefeitura; ter acesso ao programa de transferência de renda, que é o Bolsa
Família; os serviços de convivência, que são os grupos, e que também são as diretrizes do
Ministério; e informações sobre os direitos da população (Representpate do CRAS 2, favela
da zona Sul).
Vale ressaltar que os processos de organizar descritos não seguem uma sequência
rígida, e por isso se fala em redes e não em cadeias de ação. Os processos estão conectados,
mas podem acontecer em ordens diversas.
Conforme lembram Lindberg e Czarniawska (2006), para que haja processos de
organizar entre organizações, é necessário que as ações separadas no tempo e no espaço sejam
de alguma forma conectadas, formando uma cadeia ou rede destes processos de organizar.
Entretanto, no campo burocrático do Estado em ação nas favelas os agentes possuem lógicas
próprias que, conforme mostrado anteriormente, intensificam as disputas no campo de poder.
Como decorrência das disputas do campo, muitas vezes os processos de organizar dos
diferentes agentes são impedidos, ou ao menos inibidos, de estabelecer conexões entre si, e,
como resultado, deparamo-nos com processos de organizar dispersos, que estão direcionados
para objetivos diferentes e para aspectos diferentes da vida na favela. O conceito de processos
de organizar dispersos e os elementos empíricos que conduziram a ele podem ser observados
na Figura 14 a seguir:
234
Ausência de conexão entre processos de
organizar
- Lógicas próprias de cada agente gerando disputas que inibem a conexão entre processos de organizar de diferentes agentes;
- Lógicas próprias de cada agente levando a processos de organizar distintos.
Processos de Organizar Dispersos
Figura 14. Processos de Organizar Dispersos
As lógicas próprias de cada agente incentivam disputas que, por sua vez, inibem as
conexões entre os processos de organizar. Os processos de organizar dispersos tornam ainda
mais difícil enxergar o que faz “o Estado” na favela, e conduz à indignação do morador que se
questionou a respeito de onde está o investimento de tantos anos que o Estado direcionou à
favela. Ainda que “o Estado” não exista enquanto uma entidade homogênea a qual de alguma
forma eu fui procurar, nem mesmo os seus processos de organizar são homogêneos ou
conectados entre si, justificando a minha sensação inicial de que “o Estado” está por toda a
parte, e age em várias direções - o que se tornou uma angústia e fez da minha pesquisa de
campo algo muito mais complexo.
Como os processos de organizar dos diferentes agentes raramente estão conectados,
eles também acabam, muitas vezes, por se sobrepor, como ações semelhantes, porém
separadas. Isto significa dizer que mesmo quando os agentes se voltam para o mesmo aspecto
da vida na favela, ou apresentam algum objetivo em comum, suas ações são realizadas de
forma isolada umas das outras. A sobreposição de ações é reconhecida pelos próprios agentes:
235
(...) a quantidade de coisas acontecendo ao mesmo tempo e assim o tanto que uma atropela,
vai por cima da outra, então a gente tenta. É, assim ver o que tem de recurso disponível e
usar ele da melhor forma possível porque eu acho que quando tem a sobreposição assim
tem o desperdício enorme e o desperdício é uma coisa que frustra as pessoas demais, assim,
né (Representante da UPP Social 4, favela da zona Sul).
Este é o caso, por exemplo, da oferta de cursos na comunidade. Como diferentes
agentes levantam demandas, e às vezes identificam a capacitação como uma delas, cursos são
levados aos mesmos moradores por caminhos diferentes, gerando uma certa confusão.
Conforme relatou um morador: “Você trouxe um curso de inglês. A UPP Social traz também.
UPP Social traz um curso de elaboração de projetos, você traz também. Qual que eu vou
fazer? Qual que é o melhor?” (Morador 20, Favela da zona Sul).
Outro exemplo da sobreposição é o caso dos projetos voltados para a questões
ambientais e do lixo, importante demanda em ambas as favelas. Diferentes agentes
desempenhavam esforços nesta direção: o PAC, por meio de mutirões realizados em parceria
com uma ONG formada por moradores da favela; a UPP Social, tentando mapear os melhores
pontos de coleta; o Territórios da Paz, que tentou organizar uma semana do meio ambiente; e
a própria Secretaria do Meio Ambiente, que realizava ações de conscientização isoladas. Mas
como partem de lógicas diferentes, seus processos de organizar não estabelecem conexões e
acabam se sobrepondo sem se conectar. E mesmo quando estão pautados em lógicas
semelhantes, como é o caso da UPP Social e do Territórios da Paz, mínimas diferenças em
torno destas lógicas já parecem ser suficientes para manter suas ações desconectadas.
Os processos de organizar sobrepostos, conforme aqui estão sendo chamados, bem
como os elementos empíricos que conduziram a esta categoria, podem ser observados na
Figura 15 a seguir:
236
Processos de organizar semelhantes, mas
desconectados
- Oferta de cursos semelhantes por agentes diferentes;
- Diferentes ações de conscientização ambiental, realizadas por agentes diferentes.
Processos de Organizar Sobrepostos
Figura 15. Processos de organizar sobrepostos
A escassez de conexões entre os processos de organizar dos diferentes agentes leva a
processos de organizar dispersos e, às vezes, sobrepostos. E este padrão de ações também
aponta para um imbricamento entre processos de organizar e campos de poder, mostrando que
as disputas do campo podem inibir conexões de ações de agentes que divergem.
6.4 Organizando para o Acúmulo de Capital: A (Des)Materialização dos Processos de Organizar
Parecia que os meses de trabalho intenso para a organização da festa de debutantes da
UPP da zona Norte tinham valido a pena. O salão estava lindo, e contava com uma pista de
dança e mesas com doces. As meninas ainda terminavam de se arrumar ansiosas no banheiro
no momento em que eu cheguei. Estavam todas muito bonitas e transpareciam felicidade. A
representante do Territórios da Paz, que trabalhara intensamente nos preparativos da festa, me
chamou a atenção para a presença do secretário de segurança, José Mariano Beltrame, que ao
lado de sua assessora conversava com representantes da UPP em um canto do salão. Todos
olhavam de longe e apontavam a sua presença, que provocou entusiasmo, como uma
celebridade que se encontra por acaso.
237
Depois de observar de longe a presença do secretário, também bastante entusiasmada
com o comparecimento de uma figura tão ilustre, voltei ao banheiro para ajudar as meninas
nos preparativos finais. Eu ajudava a fechar o vestido de uma das debutantes, quando a
assessora do secretário de segurança aproximou-se da porta do banheiro e comunicou às
representantes do Territórios da Paz que o Beltrame tinha outro compromisso, e já precisava ir
embora, mas que não poderia fazê-lo antes de registrar a sua presença na festa por meio de
fotografias com as debutantes.
Agora com mais pressa, as meninas terminaram de organizar o banheiro e saíram para
as fotos. A sessão de fotos começou no corredor em frente ao banheiro: o secretário de
segurança posicionava-se entre as jovens, e o fotógrafo registrava o momento. Depois,
seguimos para a mesa com o bolo no grande salão de festas e a cena se repetiu. Finalizado o
registro fotográfico, o Beltrame se despediu e partiu para o seu outro compromisso.
Conforme lembra Czarniawska (2014), a noção de redes de ações diferencia-se de
“cadeia de eventos” porque, além de não seguir uma linearidade, às ações é possível atribuir
um propósito ou intenção. Em campos de poder, às redes de ações que compõem os processos
de organizar dos diversos agentes também se voltam para a mobilização de capital, necessário
para se manter ou para se buscar alcançar uma posição dominante no campo.
Pode-se dizer que UPP Social, Territórios da Paz e CRAS tinham, como consequência
direta de seus processos de organizar mais centrais, o acúmulo de capital social e
informacional. O capital social destes agentes era mobilizado por meio de suas participações
nas mais diversas reuniões comunitárias, no apoio que davam a eventos dos moradores, ou
nas conversas informais que compunham suas tarefas diárias de trabalho: “E é uma coisa que
a gente fez também foi conversar com os moradores mais antigos, (...) Me conta que que é [a
favela da zona Norte]. Quais os maiores principais problemas, como é que foi, o que começou
e tal, não-sei-o-quê” (Representante do Territórios da Paz 3, Favela da zona Norte). O
levantamento de informação era central para seus objetivos principais, e mesmo suas
atividades diárias costumam ser registradas e armazenadas como informação. Na UPP Social,
por exemplo, tem-se o hábito de alimentar um blog:
E para além disso a gente tem as questões que eu te falei de documentar isso. Gerar
relatório, gerar blog, toda agenda nossa promove um blog. Então, a gente tem todo um
histórico de qual foi a agenda, com quem foi, qual foi a perspectiva, qual o desdobramento
(Representante UPP Social 6, Favela da zona Norte).
UPP Social e Territórios da Paz produziam relatórios com base nas demandas
levantadas, criavam mapas que representassem o grau de desenvolvimento da comunidade
238
(MRP), ou mapas geo-referenciados. O CRAS levantava informações para fins de prevenção,
e ao cadastrar os moradores montava uma base de dados com as informações necessárias.
UPP e PAC, entretanto, tinham, em seus processos de organizar centrais, ações que
inibiam, mais do que o contrário, o acúmulo do capital social e, consequentemente, do
informacional. A UPP patrulhava ostensivamente a comunidade, abordava e revistava
moradores, gerando conflitos constantes. Além disso, ao se apresentar como uma oposição
direta ao tráfico, sofria retaliações do mesmo por meio de ameaças aos moradores que com
ela estabelecesse contatos mais próximos. O PAC, principalmente em decorrência das
remoções, também tinha dificuldades de criar laços sociais com moradores, e as mudanças nas
obras, os prazos não cumpridos, ajudavam a criar um clima de conflito. Como decorrência,
para estes agentes foi preciso desenvolver processos de organizar secundários, como um
esforço a parte para o acúmulo dos capitais social e informacional.
Na UPP foi criado o setor denominado P5, responsável pelas relações públicas.
Conforme explicou um policial: “Nós temos aqui um que chama de P5, né, que é
comunicação social, é uma policial que ela fica mais encarregada de fazer o contato com os
moradores mais relativos a eventos, né, festas, reuniões” (Representante da UPP 2, Favela da
zona Sul).
As UPPs passaram a contar também com um serviço de mediação de conflitos por
meio do qual, ao serem demandados, enviam um policial treinado que intermedia os mais
diversos conflitos na comunidade. Além disso, passou-se à incorporar às funções dos policiais
a realização de projetos sociais, como a organização de campeonatos de futebol, aulas de
música, e oferta de passeios para as crianças, além de emprestar a sua van com frequência
para locomover os moradores para os mais diversos eventos – serviço do qual eu mesma pude
usufruir diversas vezes. Na favela da zona Sul existia o programa UPP Mirim, que consistia
em um projeto semanal para a realização de diversas atividades recreativas e passeios com as
crianças da comunidade. Na favela da zona Norte, um dos policiais iniciou um projeto de luta,
no qual ensinava boxe para as crianças da favela. Como complemento, alguns comandantes
tinham o hábito de realizar reuniões periódicas entre UPP e moradores, com vistas a se
aproximar da comunidade, geralmente chamadas de “Café Comunitário”. Realizam, ainda,
eventos com a comunidade, como festas para as crianças ou a festa de debutantes.
Deparando-se com a dificuldade de ainda assim acumular capital social, na favela da
zona Norte o GPP sofreu uma diferenciação, e passou a realizar pesquisa de satisfação com os
moradores. Conforme explicou um policial a respeito do trabalho do “novo” GPP:
239
“[Perguntamos] se você está satisfeito com a UPP, se tem algum ponto que você acha que
deveria ter um policiamento e não tem, o cabeçalho normal, total, se você acha que a UPP vai
aca... é se você acha que a UPP veio para ficar e algumas apreciações finais” (Representante
da UPP 11, Favela da zona Sul).
O PAC contava com a frente social para ajudá-lo no acúmulo do capital social. Além
dos cursos e mutirões de limpeza oferecidos pelos moradores, eles ajudavam a organizar
reuniões com os moradores, contando que a transparência do programa poderia ajudar na
aproximação.
Como os capitais social e informacional se retroalimentam, conforme mostrado no
capítulo anterior, UPP e PAC, na dificuldade de acumular o primeiro, também sofriam uma
escassez do segundo, e precisaram criar processos de organizar que os auxiliassem também no
acúmulo do capital informacional.
A UPP aqui também criou um setor a parte: a P2 responsável pelo serviço de
inteligência - “E hoje eu estou no serviço reservado. P2, serviço reservado, (...) onde eu
trabalho com a inteligência, com denúncia, até mesmo contra abusos de policiais dentro da
comunidade” (Representante da UPP 4, Favela da zona Sul). No início do programa das UPPs
estas utilizavam o serviço de inteligência dos batalhões, mas logo sentiram necessidade de
criar o seu próprio. Conforme explicou um representante:
O que que acontecia, cada Unidade de Polícia Pacificadora eram subordinadas aos
batalhões de área, no caso aqui era o 19. Então, o serviço reservado, de inteligência,
funcionava no batalhão 19, de Copacabana. Aí criaram o serviço de inteligência, criaram o
CPP, uma Coordenadoria de Polícia Pacificadora, onde todas as UPPs ficavam
subordinadas, estão subordinadas até hoje, à Coordenadoria. Essa Coordenadoria criou a
agência de inteligência central das UPPs que, por sua vez, criou os núcleos de inteligência,
como esse aqui. Aqui é um núcleo de inteligência, onde criamos, colhemos dados e provas
e enviamos a agência maior, que é no CPP, para que dali eles enviem para a agência central
que vai ao Ministério Público, que vai à delegacia, que vai à vara de execuções penais, para
serem expedidos mandados de prisões, e consigam fazer uma investigação maior,
centralizando as informações lá para que possa haver uma operação ou uma coisa desse tipo
(Representante da UPP 4, Favela da zona Sul).
As UPPs contam, assim, com um telefone próprio, distribuído aos moradores para que
estes façam denúncias. E desempenham estratégias como o uso de microcâmeras ou de
policiais à paisana, para levantar informações que não os chegam de outra forma. As
informações a respeito das ocorrências da comunidade obtidas por meio de denúncias ou
serviço de inteligência são registradas: “temos mapeamento aqui, ali pela nossa maquete que
240
ainda está em montagem, mas tinha um quadro ali com os locais de tráfico, um dos nossos
maiores problemas era a incidência de tráfico, o som alto das biroscas que incomoda os
moradores daqui e de baixo também” (Representante da UPP 3, Favela da zona Sul).
O PAC baseia-se principalmente nas reuniões com os moradores e na criação de uma
comissão mais restrita, composta pelos moradores, para o acúmulo de informações. E, estão
disponíveis para ouvi-los, durante os horários de funcionamento do canteiro social.
Quando se trata do acúmulo de capital econômico, para além das transferências
governamentais diretas de recursos públicos, os processos de organizar desempenhados neste
sentido, dizem respeito à demanda por doações. Os representantes do Territórios da Paz , sem
muitos recursos, entregavam ofícios em supermercados, e visitavam outros órgãos como a
subprefeitura em busca de recursos, quando necessário para a realização de algum evento. Nas
UPPs o recebimento de doações era mais fácil, o que parece estar vinculado à maior
legitimidade do programa, conforme mostrado no capítulo anterior.
Mas a atração de recursos econômicos depende também do acúmulo de capital
espacial. Conforme discutido na seção a respeito das dinâmicas de capital, a redistribuição do
capital econômico por meio de sua transformação em capital espacial, potencializa o acúmulo
de capital simbólico, trazendo mais legitimidade que, por sua vez, de forma cíclica, ajuda na
atração de mais capital econômico. Em uma tentativa de manter este ciclo, e com isso se
manter ou alcançar legitimidade, pode-se perceber que os agentes do campo buscam
materializar ou desmaterializar seus processos de organizar. Os processos de organizar dos
agentes precisam se tornar visíveis no espaço, para que levem ao reconhecimento ou à
legitimidade que buscam. Para isso, é preciso que eles sejam materializados ou que levem a
alguma desmaterialização, tornando invisíveis elementos visíveis, mas em certa medida
inconvenientes, o que nem todos os agentes conseguem fazer.
Em sua pesquisa a respeito da coordenação entre unidades de cuidado em três
organizações de um setor de assistência médica sueco, Lindberg e Czarniawska (2006)
mostraram que a rede de ações que se estabeleceu ali era capaz de apresentar produtos
tangíveis, tendo sido materializada na forma de objetos e procedimentos padronizados,
contribuindo para a estabilidade e durabilidade da rede. Aqui também foi possível observar a
materialização ou desmaterialização de redes de ação enquanto processos de organizar, por
meio da apresentação de produtos tangíveis ou pela eliminação de objetos indesejados, neste
caso contribuindo para o acúmulo do capital espacial, valorizado no campo, e, portanto, para a
legitimidade dos agentes.
241
No campo da “pacificação” os agentes mais bem sucedidos nesta (des)materialização
dos processos de organizar parecem ser a UPP e o PAC. Os representantes da UPP,
materializam suas ações de patrulhamento ostensivo por meio da materialização de seus
representantes, devidamente uniformizados, no espaço das favelas, espalhando viaturas e
cabinas. E desmaterializam seus processos de organizar quando, por meio do policiamento e
das abordagens policiais, são bem sucedidos em manter escondidas as armas e drogas, e
consequentemente as bocas, dentro das favelas:
A gente já sabe, normalmente, a GTTP já sabe quais são os setores que têm problemas,
então a gente busca ficar mais nesses lugares, evitando a venda, evitando o tráfico. Inibindo
o tráfico e quando tem pessoa diferente também no morro, a gente está sempre abordando,
buscando documento, averiguando mesmo. Essa é a nossa função, é o tempo todo assim
(Representante da UPP 14, Favela da zona Sul).
No caso do PAC, a materialização de seus processos de organizar é também bastante
óbvia. Sua rede de ações que tem início nas negociações e cadastros dos moradores, finaliza-
se na realização de obras de pequeno ou grande porte, e a abertura de uma nova via carroçável
na favela torna material o processo de organizar que seus agentes desempenharam ali. Os
representantes do PAC exibem com orgulho o resultado material de suas ações: “Você viu
como está, não viu como era! Agora está lindo! Antes era um caos. Eu vou ver se acho uma
foto qualquer do casarão aqui. Era caótico, era um caos, realmente muito ruim”
(Representante do PAC 3, Favela da zona Sul).
A materialização também ocorre por meio de suplementos que, como explicou Gergen
(2010), servem para dar sentido a uma ação anterior. O registro fotográfico pode ser
percebido como um dos mais importantes suplementos que compõem os processos de
organizar de alguns agentes, e que ajuda a materializá-los, como uma concretização final.
O uso de fotografias para registro das ações dos agentes e, com isso, materialização de
seus processos de organizar, pode ser observado nas favelas em diversas situações. Diversas
vezes presenciei policiais da UPP registrando a visita de importantes órgãos como a ONU por
meio de uma fotografia no mural principal no hall do prédio, onde se via acima de uma foto
da UPP, o nome oficial daquela unidade. As reuniões de integração do PAC também foram
registradas em fotos, e no último dia tirou-se uma fotografia do conselho condominial
escolhido por meio de votos naquela reunião. Os registros fotográficos da festa de debutantes
da UPP não se restringiram ao dia da festa e à companhia do Beltrame, narrados no início
desta seção. Os cursos de salgadinhos oferecidos por uma ONG que doou os salgados para a
festa também foram registrados em fotos, e contou até mesmo com a presença de uma
242
jornalista que registrou um dos dias do curso. O evento também foi materializado em um
objeto importante: o convite da festa, com a foto das debutantes e o nome da UPP.
A noção de (des)materialização dos processos de organizar pode ser observada na
figura 16 a seguir:
Resultados Materiais de Processos de Organizar
Omissão de elementos materiais indesejados como resultado de
processos de organizar
- Abertura de vias carroçáveis;- Reformas de prédios; - Presença de policiais
uniformizados nas favelas;- Viaturas e cabinas da UPP
espalhadas pela favela.
- Invisibilidade de drogas na favela;
- Invisibilidade de armas na favela;
- Invisibilidade das bocas.
(Des)Materialização de Processos de Organizar
Figura 16. (Des)materialização de processos de organizar
A busca por tornar os seus processos de organizar visíveis, seja por meio da sua
materialização ou da desmaterialização, leva ao acúmulo de capital espacial e,
consequentemente, simbólico. UPP e PAC, aparentemente bem sucedidos na
(des)materialização de seus processos de organizar, parecem acumular capital espacial e
simbólico e, conforme apontado no capítulo anterior, parecem se aproximar mais da posição
de incumbentes do campo.
Como consequência de sua capacidade de (des)materialização dos processos de
organizar, e conforme mostrado no capítulo anterior, a UPP parece se destacar como a
principal incumbente do campo e observa-se que, como tal, ela acaba por acumular processos
de organizar de outros agentes do campo do Estado. As ações de mediação de conflitos,
assumidas por alguns policiais da UPP, são realizadas em parceria com o Tribunal de Justiça,
243
que treina alguns policiais devidamente selecionados para o cargo a realizar este tipo de
função. Conforme explicou um policial: “nós temos aqui um policial, que faz a mediação de
conflito, fizeram curso no Tribunal de Justiça junto com o policial assina uma promotora,
então dá uma formalidade nessa mediação” (Representante da UPP 3, Favela da zona Sul).
Além disso, os policias também se tornaram responsáveis por dar cursos de moto-frete
aos moradores. Em parceria com o DETRAN, eles receberam um treinamento apropriado, que
os torna aptos a agir em nome do DETRAN fornecendo os treinamentos necessários. A este
respeito, um representante da UPP explicou:
Para todos os moto-frentistas. Por quê? Porque o DETRAN ele, o DETRAN, ele
determinou esse curso especializado para a gente porque eles não têm pessoal para dar aula.
Então ele fez um convênio com a PMERJ, deu a instrução para alguns policiais, a instrução
deles, para a gente estar podendo ministrar aulas pros moto-frentistas (Representante da
UPP 6, Favela da zona Norte)
Ao reconhecerem a UPP como “o Estado na favela”, os moradores também levam a
ela as mais diversas demandas, ainda que estas não estejam contidas em suas atribuições.
Como consequência, os policiais chegam a atuar levando crianças deficientes à escola,
levando doentes ao hospital, como se fossem uma ambulância na favela, e encaminhando
demandas a outros órgãos público, quando eles mesmos não conseguem atende-las. Conforme
reconhece um morador:
Aqui tem esse problema com o Estado. A Polícia reclama que eles são chamados para
certos casos que não são da área deles, mas eles têm que entender que não está claro qual é
a área deles na comunidade, que uma vez que faltam outras coisas eles são os únicos
representantes que podem ouvir, além da associação. Então se falta uma água lá em cima,
infelizmente, às vezes um policial é chamado, mas é chamado para quê se ele tem não tem
como colocar a água? Mas quem é que vem botar a água? Se não atende telefone, se passa
para ao ramal não-sei-o-quê, passa para lá (Morador 27, favela da zona Norte).
Os policiais reconhecem esse acúmulo de processos de organizar e desabafam:
Aí muitos dos policiais, o policial de uma UPP a gente costuma dizer que ele é juiz, que ele
é eletricista, que ele é bombeiro, que ele é tudo. Muitas vezes a pessoa chega aqui e fala “ó,
entrou uma cobra na minha casa”. Lá na UPP. Aí da UPP a gente tem que tirar a cobra de
casa. "Ah, a pedra está rolando, vai cair em cima da minha casa." Aí a Defesa Civil. Chama
a polícia. A UPP vai lá para tirar aquela pedra de lá. "Ah, minha mulher está passando mal,
vai ter um filho". Aí a UPP que vai lá pegar o carro e vai levar ela ao hospital, Então,
muitas das vezes a polícia não tem aquela, o serviço em si que era dela, de ficar parada ali,
fazendo a segurança, evitando que o tráfico volte. Você vê a UPP hoje fazendo funções
assistencialistas. Entre elas, ajudar enfermo, tirar cobra de dentro de casa, trocar gás de
senhora idosa que não consegue trocar, trocava, essas coisas assim, entendeu, que já não é
244
função da polícia. Mas o policial faz por estar aqui na UPP, para ajudar, entendeu
(Representante da UPP 17, Favela da zona Norte).
A noção de acúmulo de processos de organizar, bem como os elementos empíricos que
conduziram a ela, podem ser observados na Figura 17 a seguir:
Transferência de Processos de Organizar de
outros agentes para os incumbentes do campo
Demandas dos moradores por Processos de Organizar de
outros agentes aos incumbentes do campo
- Parceria entre UPP e DETRAN para a oferta de cursos de moto-frete por policiais;
- Parceria entre UPP e Tribunal de Justiça para realização de mediação de conflitos por policiais.
- Demandas dos moradores aos policiais por serviços de água;
- Demandas de moradores aos policiais por funções assistencialistas.
Acúmulo de Processos de Organizar
Figura 17. Acúmulo de processos de organizar
No campo burocrático do Estado em ação nas favelas, assumir a posição de dominante
do campo parece significar também assumir processos de organizar de outros agentes, que ao
invés de ingressarem por eles mesmos nas favelas, transferem seus processos de organizar aos
incumbentes. Além disso, a posição de incumbente parece intensificar as demandas que os
moradores direcionam ao agente.
Mais uma vez, parece haver aqui uma relação de imbricamento entre os processos de
organizar e o campo de poder. As espécies de capital específicas do campo tendem a
influenciar os processos de organizar dos agentes, que podem ajudar a mobilizá-las, e a
mobilização das diferentes espécies de capital, por meio de processos de organizar, influencia
a posição dos agentes no campo. Além disso, no caso em questão o sucesso no acúmulo das
espécies valorizadas de capital, levando à aproximação de uma posição dominante, parece
245
também ser responsável por atrair processos de organizar, por meio da transferência de
responsabilidade de outros agentes.
6.5 Conclusão
A partir da conclusão de que o Estado na favela configura-se enquanto um campo de
poder, ao qual passei a me referir como um campo burocrático do Estado em ação nas favelas,
este capítulo teve por objetivo responder a seguinte pergunta de pesquisa: qual é a relação
entre o campo burocrático do Estado em ação nas favelas e os processos de organizar dos dos
agentes do campo?
Diante da dificuldade de se observar em campo aquilo que estamos habituados a
chamar de organizações, enquanto entidades homogêneas, com fronteiras bem definidas,
passei a adotar aqui a noção de processos de organizar, enquanto diferentes ações coletivas
que estão conectadas de acordo com um padrão que é institucionalizado em um tempo e local
determinado (LINDBERG E CZARNIAWSKA, 2006), respondendo às lógicas institucionais
em ação.
A análise do campo da “pacificação” com base na noção de processos de organizar
revelou que os processos de organizar dos agentes do campo seguem alguns padrões, tendo
em vista que ações sofrem restrições de uma ordem institucional maior, conforme já revelara
Czarniawska (2010). A lógica burocrática do campo e a influência do campo político no
campo burocrático, conforme apontado em capítulo anterior, moldam os processos de
organizar dos agentes, produzindo padrões aqui denominados de descontinuidades e lentidão.
Mas os processos de organizar também sofrem restrições das lógicas próprias de cada
agente, o que pode levar a condição de que agentes guiados por lógicas distintas
desempenham ações em direções diferentes. Além disso, as lógicas próprias de cada agente
estão por trás das disputas entre os agentes, e por isso inibem o estabelecimento de conexões
entre as diversas redes de ações. É nesse sentido que falei aqui em processos de organizar
dispersos e sobrepostos.
Lembrei, ainda, que as redes de ação apresentam um propósito (CZARNIAWSKA,
2014), que no caso dos campos de poder também estão voltados para a mobilização dos
capitais valorizados no campo. Conforme proposto no capítulo anterior, é por meio da
redistribuição de capital econômico por meio do acúmulo de capital espacial, que é possível
angariar capital simbólico e, portanto, legitimidade no campo. Nesse sentido, os agentes aqui
tendem a (des)materializar os seus processos de organizar, seja por meio da apresentação de
resultados materiais ou por meio da omissão de elementos materiais, com o propósito de
246
acúmulo do capital espacial. Quando são bem sucedidos neste processo, e se aproximam de
uma posição de dominantes no campo, os agentes passam a sofrer um acúmulo de processos
de organizar, seja por meio da transferência de processos de organizar de outros agentes ou
pela demanda dos moradores por processos de organizar de outros agentes aos incumbentes
em questão.
É nesse sentido que defendemos aqui que os processos de organizar dos agentes de um
campo estão imbricados à dinâmica do campo, e moldados por suas lógicas próprias
apresentam padrões de ação. Mais ainda, as disputas inibem conexões entre ações de agentes
que se opõem, e a busca de capital também é produtora de padrões. Processos de organizar
com padrões específicos, moldados pela dinâmica do campo, refletem-se em seus efeitos no
espaço social de favelas, e é finalmente a eles que me voltarei no capítulo que se segue.
247
7 (DES)ORGANIZANDO O ESPAÇO SOCIAL: HIBRIDISMOS, AMBI GUIDADES E A FAVELA MAQUIADA
Era uma sexta-feira do mês de outubro, e aquela não era a primeira reunião entre UPP
e moradores à qual eu me dirigia. Depois de 10 meses de pesquisa de campo, já estava
habituada a participar de tais reuniões, embora agora não fossem mais tão frequentes quanto
eram no passado, conforme me relatavam os moradores. Desta vez, a reunião seria em
conjunto com o SEBRAE e, diferentemente das anteriores, não aconteceria na base da UPP,
mas sim em uma instituição filantrópica voltada para educação formal, localizada na rua
principal da favela da zona Sul.
Ao entrar no prédio da organização perguntei onde seria a reunião, e pediram que eu
aguardasse na biblioteca, para onde me dirigi. No centro da sala havia algumas poltronas que
contornavam um tapete redondo. Sentei-me em uma delas, acompanhando duas mulheres que
já estavam ali. Cheguei à reunião pontualmente às 15h, e após tantas horas aguardando atrasos
ao longo dos meses que ficaram para trás, não me parecia estranho que ainda não houvesse
quase ninguém ali. Depois de longas conversas sobre faculdades, filhos e medicina oriental,
uma hora após o horário marcado, começou a me bater um estranhamento em relação à quase
completa ausência de moradores na reunião. Ainda erámos apenas três. Uma das mulheres era
uma moradora do “asfalto” que estava hospedada em uma pensão na favela, e estava ali à
pedido da dona do estabelecimento, para levantar informações a respeito do SEBRAE. A
segunda, uma moradora da favela, que também atuava como funcionária do CRAS, respondeu
à verbalização do meu estranhamento firmando o seu crachá de representante do CRAS no
peito, e virando-o para mim. Enfatizou que estava ali apenas como representante do CRAS,
porque enquanto moradora da favela de forma alguma frequentaria uma reunião da UPP.
Questionei o porquê, e ela me respondeu, em um tom de revolta: “porque isso aqui é muita
fantasia! É uma fantasia que não corresponde à realidade...” (Notas de Campo, 18/10/2013).
Não entendi muito bem, pelo menos naquele momento, à que fantasia a moradora se
referia - e também não tive oportunidade de questioná-la, pois fomos interrompidas ali para o
início da reunião. Mas àquela altura já me parecia claro que a ideia de “favela pacificada”
propagada para o “asfalto”, especialmente por propagandas políticas e pela mídia em geral,
não correspondia à “favela pacificada” vivenciada pelos moradores. Compreendia que as
transformações na favela decorrentes da chamada “pacificação” não eram experimentadas
pelos moradores de favela da forma como vinha sendo divulgado. Um bom indício para a
minha compreensão vinha da minha própria vivência das favelas: o morro que eu subi havia
248
10 meses não era mais o mesmo que eu subia naquele momento – a “favela pacificada” que eu
experimentava em minha pesquisa era bem diferente da que construí enquanto moradora do
asfalto, que apenas a lia no jornal.
Minhas vivências e reflexões me levavam à pergunta que faltava para fechar o meu
questionamento inicial: o que mudou na vida na favela, na forma como os moradores viviam
aquele espaço, a partir da intensificação de ações do Estado ali? Ou, em termos teóricos,
conceitualmente mais corretos: qual é a relação entre os processos de organizar dos agentes
do campo burocrático em ação nas favelas e o espaço social? É a esta questão que me
proponho a responder no presente capítulo.
Para tal, iniciarei apontando como cheguei ao conceito de espaço social para tratar das
favelas, e discutirei o conceito teoricamente. Depois mostrarei como o choque entre campos
guiados por lógicas distintas tende a se materializar no espaço em formas híbridas. Discutirei
também a capacidade da matéria de (des)organizar o espaço social de favelas, e como as
transformações materiais trazidas pelos agentes do Estado levam a tal (des)organização. Por
fim, proponho que se pense a “favela pacificada” como uma “favela maquiada”, partindo de
uma expressão cunhada pelos próprios moradores de favelas para melhor compreensão de sua
situação atual. Em termos metodológicos, mais uma vez parti aqui das notas de campos,
reuniões e entrevistas, tanto com moradores quanto com representantes do Estado, gravadas e
transcritas, e as analisei com base na teoria fundamentada. Além disso, também me pautei
aqui em uma análise de metáforas, parte da análise retórica, conforme explicitado no método
de pesquisa.
7.1 As Favelas enquanto Espaços Sociais
Não foi à toa que naquela biblioteca, aguardando o início da reunião da UPP, a
moradora, que era também uma representante do CRAS, usou o seu crachá para me mostrar
de forma concreta, mais efetiva do que por palavras, que ela ali se apresentava apenas
enquanto funcionária do CRAS. A importância da matéria para a organização da vida na
favela, à primeira vista talvez bastante desorganizada, também foi apontada em trabalhos
anteriores. Grillo (2013) em sua pesquisa a respeito da vida no mundo do crime, mostrou
como objetos como armas, telefones celulares e carros possuem também capacidade de ação
na criminalidade que se passa nas favelas. Ao retratar a forma como os moradores de favelas
(e posteriormente ela mesma) buscavam diagnosticar o “clima” da favela, Cavalcanti (2007)
aponta para a importância dos tiros: sua quantidade, de onde vem, se possuem ou não
resposta, são indicadores deste “clima” que se pretende analisar. E ainda muito antes, Zaluar
249
(2010) demonstrou, em sua pesquisa na Cidade de Deus, na década de 1980, que um elemento
importante para diferenciar trabalhadores e bandidos é a posse de armas (ponto corroborado
pela pesquisa de Grillo (2013) anos depois).
As pesquisas que eu lia reforçavam um importante aspecto observado em campo: a
matéria também parece possuir capacidade de ação. E o meu olhar de pesquisadora de estudos
organizacionais me levava a priorizar, de forma ainda mais específica, a capacidade de
organização dos elementos materiais: crachás e uniformes serviam para deixar claro quem é
quem; prédios e suas grandes dimensões serviam para demonstrar quem tinha mais poder; e a
ausência de tiros e armas se pretendia a demonstrar que se tratava ali de uma “favela
pacificada”.
É este imbricamento entre o social e o material que Lefebvre (2007) e outros autores
por ele influenciados assumem como premissa ao propor o seu conceito de espaço social31.
“O espaço (social) é um produto (social)” – assim pode ser sintetizada a principal proposição
apresentada por Lefebvre (2007) em sua obra The production of Space. O termo “social” é
posto entre parênteses pelo autor para ressaltar a aparente obviedade de seu enunciado. O
espaço é produzido por meio de práticas, é formado por um conjunto de relações
(LEFEBVRE, 2007) e, portanto, o social lhe é inerente.
Com vistas a superar o incômodo abismo entre social e material, em busca de uma
“teoria unitária do espaço”, Lefebvre (2007) apresenta o seu conceito de espaço social. A
partir de suas críticas, Lefebvre (2007) defende que o espaço social seja pensado, não como
sujeito nem como objeto, mas como uma realidade social, um conjunto de relações e formas.
A importância das relações sociais para se pensar em um espaço social, que é muito mais do
que um espaço físico, é reforçada por Lefebvre (2007, p. 83): “any space implies, contains
and dissimulates social relationships – and this despite the fact that a space is not a thing but
rather a set of relations between things”32. Portanto, segundo Lefebvre (2007), o espaço social
31 Considera-se, entre os geógrafos, que os conceitos de espaço e território estão estreitamente relacionados e fala-se em uma inseparabilidade entre eles. Em termos gerais, o espaço é assumido como um conceito de maior amplitude e anterior ao território (RAFFESTIN, 1993; GEIGER, 2002; CORRÊA, 2002; HAESBERT e LIMONAD, 2007). Para Raffestin (1993, p. 143), “o território se forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível”. Por meio do trabalho os indivíduos apropriam-se do espaço e o territorializam, sendo o território, assim, uma produção a partir do espaço (RAFFESTIN, 1993). Entretanto, conforme lembra Haesbaert (2014), embora Lefebvre refira-se sempre a espaço e não a território, o autor o compreende enquanto um espaço-processo, enquanto um espaço socialmente produzido, e não a este espaço físico-natural, antecessor ao território. Por isso neste caso não se faz necessária uma diferenciação entre os conceitos. 32 Tradução Livre: qualquer espaço implica, contém e dissimula relações sociais - e isso apesar do fato de que um espaço não é uma coisa, mas sim um conjunto de relações entre coisas.
250
não é simplesmente uma coisa ou um produto dentre outros, mas contém coisas produzidas e
engloba suas inter-relações.
Esta concepção também se reflete no trabalho de outros autores que o seguiram, como
Milton Santos, Soja ou Raffestin, para mencionar alguns. Fortemente influenciado pela obra
de Lefebvre, Milton Santos, exímio geógrafo brasileiro, propõe uma noção de espaço
condizente e similar. Para o autor, “o espaço é formado por um conjunto indissociável,
solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não
considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá” (SANTOS,
2009a, p. 63). A partir de sua definição, Santos (2009a) reforça a ideia de que os sistemas de
objetos e os sistemas de ações não podem ser pensados um sem o outro. Os sistemas de
objetos dão forma às ações, e os sistemas de ações criam novos objetos. Eles interagem e, por
meio desta interação, o espaço se transforma. Diante dessa indistinguibilidade, o autor propõe
que a interação entre os dois sistemas seja tratada, ao mesmo tempo, como processo e como
resultado. O espaço é, então, dinâmico e unitário, contendo materialidade e ação humana
(SANTOS, 2008).
Para Soja (1993), Lefebvre pode ser considerado como o autor que deu origem à
geografia humana crítica pós-moderna, e ele próprio sofre influência da obra de Lefebvre.
Soja (1993) entende o espaço como uma construção social, uma estrutura criada, “comparável
a outras construções sociais resultantes da transformação de determinadas condições inerentes
ao estar vivo” (SOJA, 1993, p. 101).
Também indo ao encontro de Lefebvre (2007), Raffestin (2012) defende que o espaço
é uma construção, é um instrumento que se transforma de acordo com as necessidades.
Portanto, explica o autor, o espaço não pode ser definido de forma absoluta ou permanente, “it
is a concept that permits positing or inventing a means to go beyond, in order to express both
material and immaterial realities33” (RAFFESTIN, 2012, p. 123).
Com vistas a clarificar o conceito, Raffestin (2012) estabelece uma comparação entre
o espaço e o “livro de areia”, de autoria de Jorge Luis Borges. Na referida obra, Borges
explica que o livro recebeu este nome porque, assim como a areia, também não tem início e
nem fim. Segundo Borges, seu livro tem infinitas páginas, dentre as quais nenhuma é a
primeira ou a última. Para Raffestin (2012), o livro de areia é uma boa metáfora para o
problema do espaço, entendido como um espaço socialmente produzido, cujas origens
33 Tradução Livre: é um conceito que permite a postulação ou a invenção de um meio de ir além, a fim de expressar tanto realidades materiais como imateriais.
251
perdem-se de vista, assim como o fim. Para Raffestin (2012, p. 122), “space is the book, and
vice versa34”.
Outra implicação importante dessa perspective, está relacionada com a concepção do
espaço social como meio de produção, como produtor social, material e imaginário, e não
apenas como um produto a ser usado e consumido (LEFEBVRE, 1991; DALE e BURRELL
2008). Como consequência, “places and spaces shape our actions, interactions and sense of
meaning, emotions and identity35” (DALE e BURRELL, 2008, p. 43). Assumindo o espaço
como produto social, Lefebvre (2007) propõe que o interesse de estudo não deve estar voltado
para “as coisas no espaço”, mas, isto sim, para “a produção do espaço”. As coisas que se
localizam no espaço e o discurso sobre ele são capazes de fornecer pistas sobre seu processo
de produção (LEFEBVRE, 2007).
Daí a relevância de avançar na discussão das consequências da proposição “(social)
space is a (social) product”36 (LEFEBVRE 1991 p. 26). De fato, o espaço social, produzido e
reproduzido em conexão com as forças de produção, não é produto apenas de atividades
econômicas e técnicas, é também, e principalmente, um produto político (LEFEBVRE, 2007).
Seguindo sua sentença, Lefebvre (2007) explica que, como produto social, o espaço acaba por
assumir uma realidade própria e, além de ser um meio de produção, também se torna um meio
de controle, de dominação, de poder. Portanto, ao se investigar “a produção do espaço”,
também cabe investigar as relações de poder que o espaço revela, e no caso das favelas, aqui
analisadas, este espaço é produzido por meio de um choque entre campos de poder, no
encontro das lógicas do campo burocrático do Estado e do campo das favelas.
Com base no pensamento de Lefebvre (2007), que propõe que a produção do espaço
seja entendida a partir de uma interação de aspectos materiais e sociais combinados
(LEFEBVRE, 2007), Dale (2005, p. 651) propõe a noção de materialidade social como um
conceito “whereby social processes and structures and material processes and structures are
seen as mutually enacting37”.
Ao propor o conceito de materialidade social, Dale (2005) esclarece que a
materialidade não pode ser reduzida simplesmente a coisas. Para a autora, a materialidade
contém cultura, linguagem, imaginação, memória, e por isso é muito mais do que um simples
34 Tradução Livre: espaço é o livro, e vice-versa. 35 Tradução Livre: lugares e espaços moldar nossas ações, interações e senso de significado, emoções e identidade. 36 Tradução Livre: “O espaço (social) é um produto (social)” 37 Tradução Livre: em que os processos e as estruturas sociais e processos e estruturas materiais são vistos como mutuamente determinantes
252
objeto. A autora lembra, ainda, que não é apenas a materialidade que assume significados
sociais, mas a própria materialidade também molda a natureza da agência social, tendo em
vista que os seres humanos são parte do mundo material, e por isso não são capazes de
manipulá-lo sem que sejam incorporados ou mudados por ele. Portanto, para Dale (2005), é
preciso romper com a ideia de que o material configura-se como algo fixo e inerte, enquanto o
social, como algo dinâmico e ativo.
Para ilustrar a noção de materialidade social e esclarecer sua proposta, Dale (2005)
compara o conceito a uma metáfora do rio e suas margens. A autora lembra que a visão mais
comum que se tem de um rio é a de que este atua como uma força ativa em movimento, capaz
de mudar a paisagem por onde passa. As margens, por outro lado, são vistas como estruturas
fixas, determinadas pelo movimento do rio. Ideia semelhante, lembra a autora, tem-se do
social e do material. Entretanto, Dale (2005) argumenta que um olhar mais próximo e
cuidadoso pode perceber as falhas inerentes a esta visão. A formação do rio também é
determinada pela configuração das margens, e as margens também atuam como forças ativas.
Mais ainda, o rio carrega pedras e areia das margens, e os dois tornam-se quase
indistinguíveis, assim como o são o material e o social.
Carlile et al (2013) explicam que a noção de materialidade social aponta para a
performance da matéria e para o imbricamento entre o social e o material. Para os autores é
irônica a limitada atenção dada à materialidade como tópico de interesse de pesquisa, tendo
em vista que grande parte da vida humana tem sido mediada por objetos e artefatos. Também
defendem que a visão passiva da materialidade abre espaço para que se assuma uma
neutralidade entre seres humanos e não-humanos e, assim como Dale (2005), assumem que a
matéria é importante, pois objetos materiais também possuem um papel ativo na vida social.
Indo ao encontram de autores como Dale (2005) e Carlile et al (2013) que buscam
ampliar a atenção à materialidade em estudos organizacionais, assume-se aqui que o conceito
também amplia as possibilidades de compreensão dos processos de organizar. Dale e Burrell
(2008) chamam atenção para o fato de que as organizações têm sido afastadas de elementos
do mundo material e social, e por isso precisam ser rematerializadas. Crítica semelhante é
apresentada por Clegg e Kornberger (2006), que defendem que as organizações não estão
atentas para o espaço que ocupam, nem mesmo para a razão ou modo como o ocupam.
Assumindo a centralidade das organizações na sociedade contemporânea, Dale e
Burrell (2008) argumentam que elas atuam como mediadoras das práticas sócio-espaciais e,
portanto, assumem um papel primordial na construção do espaço social. A partir de uma
253
noção da organização como uma forma social que facilita a ação coletiva ou como um
processo ordenador, Dale e Burrell (2008) explicam que a entendem como uma entidade
embebida no mundo material e social. Defendem, a partir daí, que o espaço e a materialidade
constroem a organização assim como a organização os constrói.
Nesse sentido, Dale e Burrell (2008, p. 33) propõem uma análise das organizações
mais consciente do espaço e da materialidade, e se propõem, assim, a seguir uma abordagem
“which takes organisation out into the world, rather than seeking to bring the world to
‘organisation’38”. No mesmo sentido, para Goulart (2006), a aproximação com o referencial
que trata do espaço geográfico, possibilita que estudos organizacionais ampliem seu nível de
análise, sem que se perca, entretanto, o foco nas organizações e em suas interações.
Mas para se pensar as organizações como produtoras e produto do espaço social e de
sua materialidade, conforme demandam Dale e Burrell (2008), não se pode perder de vista o
caráter dinâmico, contínuo e reflexivo da relação que se estabelece entre as organizações e os
espaços nos quais estão inseridas. Portanto, a centralidade das organizações no processo de
produção do espaço social, e como mediadoras das práticas sócio-espaciais, só poderá ser
assumida quando as organizações forem concebidas a partir de uma perspectiva processual,
enquanto acontecem (SCHATZKI, 2006), como entidades inacabadas ou como um contexto
para ação e interação humana (HERNES, 2004).
Para se pensar em uma relação entre organizações e espaço social, é preciso
compreender que a natureza reflexiva inerente a esta relação implica um processo de
produção contínuo, em que os dois são, simultaneamente, produto e produtor e, portanto,
inacabados. Assim, faz-se mais uma vez necessária uma aproximação da noção de processos
de organizar.
Conforme ressaltou Orlikowski (2007, p. 1435), para que se compreenda os processos
de organizar, é importante considerer “the ways in which organizing is bound up with the
material forms and spaces through which humans act and interact39”. Como lembra o autor, a
materialidade molda os contornos e possibilidades dos processos de organizar, assim como os
processos de organizar moldam a materialidade. E este imbricamento entre os conceitos
mostrou-se presente no espaço social de favelas, conforme será demonstrado a seguir.
38 Tradução Livre: que leva a organização para o mundo, em vez de tentar trazer o mundo para a "organização”. 39 Tradução Livre: as maneiras pelas quais a organização está vinculada com as formas materiais e os espaços através dos quais os seres humanos agem e interagem.
254
7.2 Quando Campos se Chocam: Hibridismos e Ambiguidades no Espaço Social
Foi assistindo a uma palestra do Mário Brum em uma disciplina sobre favelas
cariocas, na Fundação Getulio Vargas, que voltei minha atenção para os hibridismos que se
materializavam nos espaços de favelas, e a partir daí comecei a observá-los com mais cuidado
em meu campo. Ao apresentar os principais resultados de sua tese40 a respeito da Cidade
Alta, na Cidade de Deus, Mário Brum projetou algumas fotos do que havia se tornado a
Cidade Alta, inicialmente construída como um complexo habitacional para receber os
desabrigados após o incêndio na Praia do Pinto (BRUM, 2011). As fotos eram alarmantes: os
prédios padrão, todos iguais, construídos em blocos que em conjunto formavam o complexo
habitacional, tinham sido alterados pelos moradores do local das mais diversas maneiras.
Muitos construíram “puxadinhos”, formando uma estrutura retangular que se projetava para
fora das paredes, que antes determinavam os limites do prédio. Para manter a estrutura
sustentada, alguns construíram uma pilastra entre ela e a calçada externa ao prédio. Com o
tempo, foram sendo construídos barracos ao redor dos prédios, e alguns até mesmo entre duas
fileiras de prédios, ligando-as. Era um hibridismo de construções “padronizadas” do Estado e
não padronizadas dos moradores que se materializava no espaço em formatos nada
convencionais.
Como os processos de organizar desempenhados por agentes de um campo estão
imbricados à lógica própria de cada campo, agentes do campo burocrático do Estado e agentes
do campo da favela tinham suas maneiras próprias de organizar, e o choque entre elas, por
meio do qual se produz o espaço social de favelas, parecia se materializar em formas híbridas,
como as observadas por Brum (2011) na Cidade Alta.
Guiados pela lógica de “lutas”, marca do campo da favela, conforme descrito em
capítulo anterior, os moradores das favelas desempenhavam processos de organizar que
pareciam seguir um padrão marcado pela agilidade e funcionalidade, que o apelo para a
informalidade, também marca do campo, os possibilitava alcançar. Marcados por um histórico
de escassez de ações do Estado e, consequentemente, de escassez de elementos básicos para a
sua sobrevivência, como água, luz ou saneamento básico, os moradores foram aprendendo a
sobreviver por eles mesmos, a suprir com seus próprios processos de organizar a falta de
processos de organizar do Estado ali.
40 BRUM, Mario Sergio. Cidade Alta: História, memórias e estigma de favela num conjunto habitacional do Rio de Janeiro. Tese de Doutorado em História Social/PPGH-UFF. Niterói, 2011.
255
Com o “processo de pacificação” e com a intensificação de ações do Estado nas
favelas, os moradores vivenciaram um período inicial de euforia, e muitos deles retrataram
para mim os sentimentos de esperança e expectativa que marcaram este momento de entrada
das UPPs. A descrição de uma moradora a respeito deste período inicial que apresento a
seguir me foi narrada de forma bastante semelhante, embora com palavras e entonações
diferentes, por muitos moradores em entrevistas ou conversas informais:
(..) quando na entrada da UPP, teve aquele período de recepção, né, de conhecer, de
conhecer, a comunidade conhecer, conhecer o projeto, e o pessoal, né, o secretário, o
comandante, conhecer a comunidade. Eu achei até bacana, a comunidade compareceu, a
comunidade compareceu porque era algo novo, era algo que a comunidade estava vendo na
televisão que estava dando certo nas comunidades da Zona Sul, então a comunidade criou
aquela expectativa, sabe, achando que ia ter diálogo, que ia ser possível ter discussões em
torno da necessidade da comunidade, que ali o projeto. Aí a comunidade foi. Mas hoje a
comunidade já não está mais na credibilidade da UPP, entendeu, em torno do projeto UPP.
Não está mais. E eu vou te falar em nome da comunidade até, até ousar e falar em nome da
comunidade, a comunidade está muito cansada porque eu converso com todo mundo, toda
hora, todo dia (Morador 23, Favela da zona Norte).
O sentimento generalizado parece poder assim ser resumido: “eles criaram na gente
muita expectativa para nada” (Morador 22, Favela da zona Norte).
Acontece que as UPPs também parecem trazer um agravante para a reputação do
Estado entre os moradores: se antes da “pacificação” a justificativa dada pelos agentes do
Estado era a de que não conseguiam atuar nas favelas por problemas de segurança, agora essa
justificativa não se fazia mais válida, a não ser que o próprio Estado colocasse em xeque o
programa das UPPs. A ausência de uma justificativa plausível para a permanência de
necessidades básicas não atendidas nas favelas, serviu para reforçar (e talvez consolidar de
vez) a falta de confiança dos moradores no Estado, e a frase que provavelmente eu mais ouvi
dos moradores ao longo da minha pesquisa parecia caracterizar de forma unânime a visão que
eles tinham acerca do poder público: “não fazem porque não querem”. Conforme explicou um
morador:
Porque a desculpa do Estado e da prefeitura é que não atuavam dentro da comunidade
porque não havia segurança. Ponto. Quando a UPP foi instalada, todo mundo pensou que as
demandas de esgoto, falta de água, coleta de lixo, iluminação pública... Todas as demandas
do poder público, projetos sociais, iam vir junto com a UPP. Todo mundo abraçou a UPP
aqui dentro da comunidade da [favela da zona Norte]. (Morador 11, Favela da zona Norte).
Passada a fase inicial, os moradores parecem hoje vivenciar uma certa decepção com o
Estado. Depois de um longo histórico de falsas promessas e de atenção apenas em períodos
256
eleitorais, os moradores desenvolveram uma relação de falta de confiança em relação ao
Estado, e este sentimento só foi reforçado após mais uma decepção: a entrada das UPPs gerou
uma série de expectativas que, na visão dos moradores, não foram atendidas, e o Estado agora
não conta mais com uma boa justificativa para tal. A crença de que a entrada da UPP seria
acompanhada por uma série de outros programas e ações do Estado, que resolveriam de vez
os problemas das favelas, não foi confirmada. O sentimento de falta de confiança era expresso
pelos moradores em frases como: “tudo que vem do governo o pessoal fala ‘olha, tá dando
com uma mão, vai puxar com as duas’” (Morador 24, favela da zona Sul) ou “o morador não
acredita mais” (Morador 23, Favela da zona Norte).
Quando os questionava a respeito desta falta de confiança em relação ao Estado, os
moradores não apenas me narravam um passado repleto de decepções, promessas não
cumpridas, ou programas públicos que foram iniciados, mas nunca finalizados (como o caso
do programa “cada família um lote” ao qual os moradores apelidaram de “cada família um
calote”), mas também se remetiam a uma desconfiança em relação aos reais interesses por trás
do programa das UPPs e os demais programas públicos que a seguiram nas favelas.
A associação das intervenções públicas atuais nas favelas com a Copa do Mundo e as
Olimpíadas a serem sediadas no Rio de Janeiro parecia ser, para quase todos, pelo menos uma
hipótese a ser considerada, e até mesmo muitos policiais estabeleceram relação entre os
eventos esportivos e o programa das UPP. Como consequência, o ano de 2016, ano em que
aconteceram as Olimpíadas na cidade, parecia assombrar o imaginário dos moradores, que se
referiam com temor ao período pós-2016: “Depois que passar Copa do Mundo, que passar
essas coisas todas, será que a gente vai ter a paz ainda? Mesmo que seja falsa, mas será que....
Momentânea, entendeu? Será?” (Morador 13, favela da zona Sul).
Os processos de organizar lentos e descontínuos, característicos do campo burocrático
do Estado em ação nas favelas, não parecem ser capazes de atender às expectativas dos
moradores, especialmente quando se trata de um espaço novo e complexo para os agentes do
Estado, nos quais eles ainda não conseguiram criar plenamente as suas novas rotinas. Diante
da perda de esperança e da desconfiança em relação ao Estado, os moradores de favelas hoje
acabam tendo que realizar, ainda, esforços para que suas necessidades sejam atendidas – seja
por meio de um esforço excessivo para conseguir que os agentes do Estado atendam às suas
demandas, seja fazendo eles mesmos. De uma forma ou de outra, os moradores de favela
ainda precisam “lutar”.
257
Agentes do Estado referem-se a uma diferença que marca o “tempo do Estado” e o
“tempo da favela”, reflexo das diferenças de lógicas, levando a uma inquietação dos
moradores, que acabam por resolver os seus próprios problemas. Acontece que os processos
de organizar de moradores de favela, marcados pelo imediatismo, assumiram padrões de
maior rapidez e funcionalidade, em um campo em que pode se apelar para a informalidade. Já
os processos de organizar do campo burocrático do Estado em ação nas favelas assumem
padrões de lentidão, decorrentes do encontro entre a lógica burocrática do campo e a novidade
de um espaço, para eles, complexo, que os exige novas rotinas.
A incompatibilidade de tempos sobre a qual me falavam alguns agentes do Estado
ganhou forma para mim, especialmente, em uma das reuniões de integração do PAC. Na
ocasião, uma representante do programa “ensinava” aos moradores que eles não podiam
deixar móveis e sofás velhos nas dependências do prédio. Era preciso ligar para a Comlurb
buscar. E completou: “A Comlurb é muito rápida!” (Notas de Campo, 23/09/2013). Ao seu
comentário, uma moradora respondeu: “Ela é muito rápida quando é ali na Vieira Souto!”
(Notas de Campo, 23/09/2013). E daí desencadeou-se uma discussão a respeito da agilidade
da Comlurb. Em voz baixa, a senhora que sentava atrás de mim comentou: “Mas que
discussão idiota! Tem um monte de bêbado aqui, é só dá um trocado para o bêbado que ele se
livra do sofá na hora!” (Notas de Campo, 23/09/2013).
Diante da incapacidade, demora ou excessivas exigências burocráticas dos agentes do
Estado na resolução dos problemas dos moradores de favelas, muitos dos quais dizem respeito
a demandas urgentes, mesmo em um contexto de uma presença mais intensa dos agentes do
Estado nas favelas, dá-se perpetuidade à lógica de “lutas”, e os moradores fazem por eles
mesmos. Este é o caso, por exemplo, dos gatos, que ainda são adotado por alguns moradores,
mesmo com uma atuação mais intensa da Light nas favelas:
eu tentei normalizar quando eu fiz a minha casa, quando eu comprei um relógio quando
eles chegaram lá eles falaram que não era aquele relógio. Tinha que ser um outro e botou
mil e um empecilho. Eu continuei com o gato porque eu tinha acabado de gastar num
relógio que eu pedi para eles colocar, fiz caixinha dentro, fora da minha casa, tudo para
encaixar, eles disseram que não era nada daquilo, que eu tinha que comprar um outro e não-
sei-o-quê, não-sei-o-quê, quebrar de novo a casa, eu continuei no gato (Morador 6, Favela
da zona Norte).
É por meio do choque entre campos com lógicas distintas, e consequentemente entre
processos de organizar ágeis e lentos, transitando entre informalidade e formalidade, que o
espaço social de favelas parece ser produzido. E este choque reflete-se no espaço social,
expressando-se como hibridismos e ambiguidades.
258
7.2.1 Hibridismos
Ao retornar, meses depois, ao local do mutirão de limpeza do qual participei na favela
da zona Norte, me deparei, com muito pesar e com lágrimas nos olhos, com os sacos de lixo
que enchemos durante os mutirões decompondo-se no local onde os posicionamos para que a
Comlurb os retirasse. O lixo ensacado já estava ficando exposto, e os moradores começavam
a jogar mais lixo em cima dos sacos. A Comlurb não estava conseguindo retirar o lixo com
tanta rapidez quanto conseguimos ensacá-lo, e a diferença de tempos entre os processos de
organizar da favela e do Estado materializava-se no espaço naqueles sacos decompostos que
voltavam a se tornar um grande bloco de lixo. Ao lembrar dos longos sábados quebrando lixo
com a enxada e ensacando-os com uma pá, tive vontade de chorar.
Embora o mais comovente, este não foi o único exemplo em que pude enxergar no
espaço os efeitos dos choques entre processos de organizar imbricados a campos com lógicas
distintas, produzindo hibridismos espaciais. Logo após a interrupção das obras do PAC na
favela da zona Sul, que deixou várias obras inacabadas no espaço da favela, pude observar a
rápida ocupação que os moradores faziam deste espaços temporariamente abandonados pelo
PAC. Conforme mostrei anteriormente, o capital espacial é valorizado tanto no campo da
favela quanto no campo do Estado e é, no primeiro caso, justamente o que define um agente
enquanto agente daquele campo. Portanto, além de ser disputado dentro de cada campo, o
capital espacial também é disputado entre os agentes de ambos os campos, quando estes se
apresentam dentro de um mesmo espaço geográfico. Mas a maior agilidade dos processos de
organizar do campo da favela permite que os moradores apropriem-se com rapidez de espaços
em que o Estado deixa de atuar, mesmo que temporariamente.
Por isso, vi as ruas semi-abertas pelo PAC serem ocupadas por mesas de pingue-
pongue, onde os moradores jogavam em cima do asfalto. Vi apartamentos serem ocupados
por moradores, que depois impediam a retomada da obra, e logo davam a “sua cara” ao
espaço ocupado. Ouvi relato de degraus de cimento que foram construídos para dar
sustentação a um parque infantil serem ocupados por casas construídas rapidamente pelos
moradores. E mesmo quando as obras eram finalizadas, mas não agradavam aos moradores,
dava-se um jeito: vi uma praça com mesas e bancos de cimentos ser ocupada com uma
poltrona velha, que embora não “combinasse” muito com a decoração da praça, era muito
mais confortável para se sentar.
Os hibridismos espaciais também apareciam como consequência do choque entre a
informalidade do campo da favela e a formalidade do campo burocrático do Estado. Um bom
259
exemplo são os moto-taxis. Conforme lembrou Misse (2013) as favelas nunca contaram com
transporte público, e por isso desenvolveram seus próprios meios de locomoção, tendo em
vista que a inclinação dos morros dificulta que se suba-os a pé. Em ambas as favelas
pesquisadas, as opções de transporte para subir o morro se davam com o uso de kombis ou
moto-taxis, ambos no valor de R$2,50, à época da pesquisa. Com a entrada da UPP, que veio
acompanhada de um discurso de que as leis da favela agora teriam que seguir as leis do
“asfalto”, a questão do transporte informal teve que ser repensada. Entretanto, conforme
explicou Misse (2013), a profissão de moto-taxista não é reconhecida pela prefeitura. Com a
“pacificação” estes meios de transporte não foram formalizados pela prefeitura, e continuam
atuando de forma irregular, tendo em vista que são indispensáveis à vida na favela, e que o
Estado não apresentou nenhuma outra alternativa formal.
Entretanto, como pude perceber ao longo de minha pesquisa de campo e conforme
reforçado também por Misse (2013), os comandantes das UPPs, embora tenham mantido os
meios de transportes informais, impuseram uma série de regras para o seu funcionamento,
como o uso obrigatório de capacetes e de coletes, e a determinação do local dos pontos.
Diante da incapacidade do Estado de prover transporte público, os moradores resolveram o
problema a sua própria maneira, marcada pela informalidade. Com o choque de campos, que
se intensifica com a entrada das UPPs, a formalidade do campo do Estado produz na favela
um hibridismo: um meio de transporte ilegal com regras formais de atuação.
Entretanto, os agentes campo burocrático do Estado em ação na favela também
começam se apropriar pela lógica da própria favela, principalmente, no que diz respeito à
funcionalidade. De fato, muitos agentes do Estado passaram a incorporar em suas próprias
estruturas organizacionais, formas organizacionais advindas do campo da favela, produzindo
estruturas híbridas. Conforme mostrou Silva (2013), os mutirões de limpeza, por exemplo,
que costumam ser realizados pelos moradores, passam a ser remunerados pelo Estado. Um
exemplo emblemático em minha pesquisa é o caso do PAC, que firmou contrato com uma
organização dos moradores da favela da zona Sul que trabalha com a questão do lixo, para
que estes realizem mutirões de limpeza periódicos, conscientizando os moradores a respeito
da questão do lixo. De forma ainda mais ampla, como mostrou Silva (2013), surge
recentemente nas favelas a figura do agente comunitário: morador da favela que passa a atuar
para um determinado órgão público. Diversos agentes do campo burocrático do Estado em
ação nas favelas analisadas contavam com este cargo: UPP Social, PAC, Clínica da Família,
CRAS, são alguns deles. A Comlurb incorporou como parte de suas funções o estímulo aos
260
mutirões em favelas – realizados pelos moradores, para os quais a Comlurb cedia o material.
Conforme me explicou um gerente da Comlurb em entrevista:
V – E como é que funcionam esses mutirões?
K – Tem moradores voluntários, a gente cede no caso a luva e o equipamento necessário e
eles marcam um dia e entra a Comlurb e o material da Comlurb e os moradores voluntários,
né. Então eles vão lá e limpam as canaletas, ... Geralmente as encostas.
V – Entendi. É... E aí essas encostas são limpas no mutirão porque no trabalho do dia a dia
da Comlurb vocês não têm acesso a esse tipo de...?
K – Essas encostas... Quando acontece isso são encostas que... A Comlurb tem a rotina
dela, mas não de ficar limpando dia a dia o que o morador faz de errado. Então tem
algumas áreas que a Comlurb não tem mão de obra suficiente, então, a medida que passa o
tempo a Comlurb limpa alguma coisa e... Mas não coisas assim excessivas. Aí combinam
“Vamos fazer uma limpeza ali e vamos orientar os moradores”. Aí alguns aceitam, outros
continuam jogando no terreno lá, tem má vontade de carregar o seu lixinho até um
container mais próximo. Sai jogando, infelizmente...
V – E esses mutirões eles acontecem por iniciativa dos moradores ou é a própria Comlurb
que propõe, que chega lá e “ah, vamos fazer um mutirão”.
K – Não, quando tem assim necessidade,... Isso aí depende muito da visão técnica, quando
precisa a gente convoca e vê se eles podem colaborar... Porque também, é um mutirão, não
é obrigado, né... É voluntário, é uma coisa bem espontânea. Mas aqui eu ainda não fiz. Lá
no Borel acontecia sempre porque já virou uma rotina.
V – uhum. Entendi. Aí vocês chegam, propõem, veem ...
K – Vai na associação de moradores, convocar os líderes daí, indicados por eles, aí vamos
convocar o pessoal no dia tal.
V – E fora das comunidades tem esse tipo de trabalho também?
K – De mutirão não. Da Comlurb não (Representante da Comlurb 1, Favela da zona Norte).
Como se pode perceber no trecho acima, a Comlurb reconhece sua incapacidade de
responder à urgência imposta pela lógica da favela, concretamente, de fazer uma limpeza
completa das favelas, e por isso contam com os próprios moradores para ajuda-los nesta
função, muito embora não possam obriga-los a tal. Em algumas favelas, como é o caso do
Borel, relatado pelo gerente da Comlurb, os moradores são quase “incorporados” à estrutura
da organização, e já se conta com o trabalho deles para que a função da Comlurb seja
cumprida, com auxílio destes mutirões que passam a ocorrer periodicamente. Já no asfalto
isso não acontece, uma vez que a rotinização já está estabelecida.
Os hibridismos retratados anteriormente e os elementos empíricos que me conduziram
a esta categoria são sintetizados na Figura a seguir:
261
Hibridismos
Choque entre campo burocrático do Estado e
campo das favelas produzindo hibridismos
- Espaços semi-construídos pelo Estado e ocupados por moradores;
- Meios de transportes informais, seguindo regras formais;
- Estruturas organizacionais híbridas
Figura 18. Hibridismos Em síntese, o que aqui me propus a demonstrar é que a lógica de “lutas” do campo da
favela levou os moradores historicamente a desenvolverem formas mais funcionais e ágeis de
organizar, possíveis em um campo marcado pela informalidade e pela urgência imposta pelos
problemas enfrentados. Já no campo burocrático do Estado, que busca “penetrar” o espaço da
favela, os processos de organizar são marcados pela formalidade, e parecem ser “lentos” e
demorados aos olhos dos moradores. Quando os campos se encontram, em uma período de
“pacificação”, este choque produz efeitos no espaço, exemplificado discursivamente pela
metáfora da luta e materializado em hibridismos espaciais, seja em construções, em serviços
informais semi-formalizados ou mesmo nas próprias estruturas organizacionais dos agentes
que atuam naquele espaço.
7.2.2 Que Lei Seguir? A Ambiguidade entre Leis do Tráfico e das UPPs na Favela “Pacificada”
O clima no pé do morro estava bem diferente naquela manhã de quinta-feira. Uma
grande aglomeração de pessoas concentrava-se em uma das principais entradas da favela, e a
concentração de gente contava com alguns repórteres - alguns arrumando suas câmeras,
outros gravando. A movimentação acompanhada da presença de muitos policiais armados,
262
tanto policiais dos batalhões quanto policiais da UPP, me apontava claramente que alguma
coisa incomum havia acontecido. Subi um pouco a rua principal e perguntei a um morador,
que me explicou que houve confronto entre a UPP e os traficantes naquela madrugada, e um
morador havia morrido. Ele me informou que o conflito já estava encerrado. Assim, peguei
um moto-taxi e subi o morro. Eu me dirigia à Associação de Moradores, e o moto-taxi, agora
proibido de circular pelas vielas, teve que me deixar ainda na rua principal para que eu
andasse por ruas mais estreitas até o meu destino final. Desci da moto e, insegura, perguntei
ao motorista: “agora já tá tranquilo, né? Eu posso entrar aí sem problemas, né?” (Notas de
Campo, 24/10/2013). Para aumento da minha insegurança, o motorista respondeu: “olha, não
posso te garantir nada não. Não posso te dizer que está tranquilo não...” (Notas de Campo,
24/10/2013). Pensei na possibilidade de recuar, mas aquela era a minha chance de observar
uma favela após confronto, seguido de morte. Guiada pela curiosidade, segui em frente.
As ruas da favela estavam absolutamente desertas, com todo o comércio fechado, e um
silêncio que antes eu acreditava ser impossível. Andando por vielas desertas, comecei a me
sentir cada vez mais tensa, e conforme meu nervosismo aumentava, acelerava os meus passos.
A minha sensação era de que a Associação de Moradores estava mais longe aquele dia.
Quando finalmente cheguei à Associação, deparei-me com a presidente sentada à mesa de
recepção. O seu simpático “bom dia” habitual foi substituído por uma expressão de espanto:
“Você subiu? Você é maluca?!” (Notas de Campo, 24/10/2013). Expliquei a ela que eu tinha
entendido que as coisas já estavam normalizadas. Ela me explicou que o tráfico havia
determinado o fechamento de todo o comércio, incluindo creches e escolas, e que em
situações como essa não era prudente circular pela favela. Sugeriu fortemente que eu descesse
o morro de imediato, pois os policiais da UPP ainda rondavam a favela de fuzis em punho, e
outro confronto poderia acontecer a qualquer momento. Pediu que um morador me
acompanhasse até o pé do morro. Eu obedeci e desci com ele, bastante abalada.
Os traficantes não apenas ainda estavam presentes na favela “pacificada”, como
também ainda impunham as suas “leis”, e um pedido de fechamento do comércio era
obedecido por todos, sem sinais de hesitação. Não obstante sua imprecisão, conforme descrito
por Grillo (2013), as “leis do tráfico” ainda estavam presentes na favela “pacificada” e foram
logo de início aparecendo para mim.
Em meus primeiros meses em campo, uma jornalista “gringa” subiu o morro para
fazer uma reportagem a respeito das tão faladas favelas “pacificadas”. Após conversar com
alguns moradores, a jornalista começou a descer o morro a pé, e até recusou a companhia de
263
moradores que haviam se oferecido para acompanha-la. No percurso, parou para tirar algumas
fotos, que ilustrariam a reportagem. Acontece que ainda existe no morro uma importante “lei
do tráfico”: a proibição de fotos por pessoas de fora. Assim a “gringa” foi interpelada por um
“bandido”, que pegou a sua câmera, apagou as suas fotos e a conduziu ao elevador, com um
aviso claro de que ela nunca mais poderia voltar ali. Ouvi este relato de diferentes fontes, que
talvez estivessem tentando me alertar para a permanência de “leis” as quais eu precisava
seguir. Isto foi suficiente para me fazer desistir de minha ideia inicial de trabalhar com
fotografias como forma de coleta de dados para a minha pesquisa de tese.
Além da imposição de punições àqueles que criavam vínculos com os policiais das
UPPs, conforme relatado em capítulo anterior, os traficantes ainda mantinham a prática dos
conhecidos “tribunais do tráfico”, e a necessidade de “desenrolar” com o dono do morro ainda
se fazia presente em algumas situações, e contrapunha-se às novas leis da UPP. Alguns
moradores até mesmo defendem que maneira certa de se resolver as questões em alguns casos
consiste em pedir autorização para o tráfico para levar alguma questão à UPP, conforme
revela o diálogo abaixo:
Vanessa: Mas hoje as pessoas ainda levam questões para o Dono do Morro resolver assim,
esse tipo de briga, ainda levam para o Dono do Morro resolver?
Entrevistado: Tem que levar. Por que o pessoal vai levar para quem? Vai levar para o
comandante?
Vanessa: É, nesse caso...
Entrevistado: Você dentro da comunidade, onde é uma lei que não tem limite, onde se o
cara do nada eles podem pintar e fuzilar esse prédio, ir na UPP e jogar uma bomba se eles
quiserem, e o problema todo não é esse que você está na comunidade. Você tem um lugar
fixo que tem essa casa. Você vai apostar toda a sua vida lá na UPP? Talvez, vá ficar só ali o
problema. Mas até isso você pode falar para o bandido: "olha só, algum problema eu posso
resolver na polícia, coisa e tal?" Até isso você tem que desenrolar. Ou então "não, teu
problema vai ficar aqui mesmo"
Vanessa: Entendi
Entrevistado: “Vamos desenrolar” (Morador 20, Favela da zona Sul)
Partindo da ideia de que as favelas cariocas configuraram-se como “terras sem lei”, a
UPP entra nas favelas tentando trazer a sua própria lei, que em geral contrapõe-se às “leis do
tráfico”. O objetivo é “salvar” as favelas, aplicando a elas as mesmas leis do “asfalto”:
A maior mudança na vida de um morador é porque o morador que estava sem UPP
acostumado a viver sem leis, sem regras, ele começa a ter os seus direitos e também os seus
deveres também. Ele começa a ver que agora tem regras, tem horários para se colocar um
som na laje dele para não incomodar as pessoas, começa a entender que tem coleta de lixo
264
regular e que ele tem que jogar o lixo na caçamba de lixo. Passa a ver mesmo que tem
regras que tem que ser cumpridas, acho que a maior mudança aí com o morador é esta,
porque morador de comunidade não estava acostumado a ouvir NÃO do Estado
(Representante da UPP 3, Favela da zona Sul).
Dentre as “novas regras”, uma das mais “problemáticas”, que se destacava pelas
constantes reclamações dos moradores, eram aquelas que diziam respeito aos eventos da
comunidade, ou mais especificamente, à proibição dos famosos bailes funks. A proibição de
bailes impõe-se como uma das principais fontes de conflito entre UPPs e moradores, e estes
últimos alegam uma forte interferência das UPPs na cultura da favela, a partir de suas novas
regras. Grillo (2013) explica que os bailes funks são, ao mesmo tempo, manifestações
culturais da comunidade, e servem para produção identitária, mas são também festas
marcadas pelo controle do tráfico, cuja realização depende do seu financiamento pelos
mesmos, os quais se apresentam como anfitriões e protagonistas das festas. Com base no
argumento de que o baile funk é uma festa de traficantes, os policiais as proíbem, ainda que
reconhecem a interferência na cultura local. A este respeito, os moradores reclamavam
constantemente: “Como assim, cara? Se a comunidade sempre existiu, se a trajetória da
comunidade é essa, (...), como que ele vai querer mudar uma tradição de uma comunidade?
Não tem como mudar! Tradição é tradição!” (Morador 17, Favela da zona Norte).
Diante de duas leis, em geral, antagônicas, decorrente do choque entre campos em um
mesmo espaço, os moradores não sabem que lei seguir, ou a quem recorrer no momento em
que conflitos precisam da interferência de uma “entidade superior”. Os conflitos acabavam se
desenrolando de forma ainda mais confusa em uma favela com duas “leis”. Dois moradores
que compunham juntos uma organização que trabalhava com a lixo da comunidade tiveram
um desentendimento e se separaram. Um deles acusou o outro de lhe ter roubado dinheiro, e o
segundo negava veementemente a acusação. Em uma primeira tentativa de resolver o conflito,
o primeiro morador dirigiu-se à UPP, que os encaminhou à delegacia, onde registraram uma
queixa, sem nenhum resultado. Insatisfeito, o mesmo morador resolveu então dirigir-se ao
“dono do morro”. Ambos foram chamados para um “desenrolo”. O segundo morador, que me
relatou esta história, disse ter ido “desenrolar” temendo um desfecho ruim. Mas viu a situação
ser resolvida quando veio à tona, durante o “desenrolo”, a informação de que o primeiro
morador havia recorrido antes à UPP e, na ausência de solução, decidiu levar a questão à
boca. Segundo o relato do segundo morador:
O bandido ficou bolado: “vem cá, eu não preciso falar para você que a lei do morro, como é
que se direciona? (...) Eu preciso te ensinar que você não tem que chamar primeiro a
265
polícia, depois os bandidos? Se tu chama a polícia, fica por lá mesmo. Ou tu chama
bandido. Não tem que chamar a polícia, depois bandido não! E o cara está falando que tu
encheu a casa dele de polícia. Agora está chamado nós aqui. Olha só, vou só te falar uma
coisa: a próxima vez que você for pedir ajuda à polícia e depois a nossa... Quem é que
comanda aqui? Nós pode ser limitado lá embaixo, mas nós fazemos a lei aqui em cima, a
gente não tem limite, você sabe disso. Vai passar pela lei do morro. Qual a lei do morro?
Não vou te explicar, você sabe qual é” (Morador 20, Favela da zona Sul).
Em outra ocasião, uma organização filantrópica voltada para a educação, em geral
bastante respeitada dentro da comunidade, convocou uma reunião com os moradores para que
eles “pensassem juntos” a melhor maneira de resolver um problema: a quadra esportiva da
organização estava sendo invadida nas madrugadas por moradores. Após a reunião,
acompanhei discussões acaloradas entre moradores e agentes do Estado, nas quais os
primeiros defendiam que aquela reunião não tinha cabimento, pois todos sabiam que os
“moradores” que estavam realizando as invasões eram “meninos do tráfico”. Argumentavam
que a diretora da organização estava encurralada: não podia mais falar diretamente com o
tráfico, conforme fazia antigamente, pois podia parecer estar “passando por cima” da UPP;
mas também não podia levar a questão à UPP (não obstante a presença de policiais na reunião
convocada), porque iria “se queimar” com os meninos do tráfico. A solução encontrada foi o
que os moradores descreveram como uma transferência de responsabilidade para eles. Na
visão dos moradores, aquela reunião consistia em uma tentativa de fazer com que eles fossem
falar com os meninos do tráfico no lugar da diretora. Depois, um morador confidenciou que o
tráfico já estava ciente da situação e havia feito a sua própria reunião sobre o assunto ao
mesmo tempo em que acontecia a reunião oficial. Rapidamente, o problema foi resolvido.
Havia grande incerteza em torno de que leis seguir. Não havia um consenso entre os
moradores, no que dizia respeito a esta questão. Alguns moradores preferiam confiar na
polícia e a procuravam, pelo menos em primeiro lugar. Mas uma moradora que levou uma
briga de vizinhos à UPP relatou ter sido censurada por outros moradores: “porque eles têm
muito isso, que é o Tráfico que ainda manda. Eles te ameaçam, então na época eles falaram
que eu era louca de ter ido até a polícia. Não sou louca, eu tenho direitos” (Morador 22,
Favela da zona Norte). Outros moradores são mais taxativos em relação à falta de confiança
na UPP, e optam por apelar às antigas “leis do morro”: “Pra mim o órgão errado é procurar o
estado pra fazer qualquer tipo de reclamação” (Morador 24, favela da zona Sul). De uma
forma ou de outra, produz-se uma insegurança, diante do choque entre campos e da
coexistência de leis no espaço.
266
7.2.3 A Materialidade Social e os Processos de (Des)organizar
“E a favela muda com o Tráfico. O objetivo, a visibilidade do tráfico local. Então,
assim, é muito complexo trabalhar em área de UPP, eu acho que é mais complexo do que
trabalhar em área do Tráfico” (Representante do Territórios da Paz 2, Geral) - A visão a
respeito do trabalho em uma “favela pacificada” expressa neste depoimento de um
representante do programa Territórios da Paz, me fez pensar a respeito da complexidade de
minha pesquisa de campo. A possibilidade de estudar favelas com UPPs apresentou-se para
mim como uma alternativa mais “segura” do que a pesquisa em favelas “não pacificadas”, e
embora não tenha sido este o motivo último da definição do meu campo de pesquisa,
considerava-me com sorte por ter esta opção “segura”.
Depois de alguns meses de pesquisa de campo em duas favelas “pacificadas”, a fala do
representante do Territórios da Paz parecia fazer bastante sentido. Com tudo mais velado, mas
ainda presente, as favelas com UPPs eram muito mais complexas do que pude antecipar, e a
minha expectativa de “segurança” desfez-se logo no primeiro mês em campo.
Com a valorização do capital espacial no campo burocrático do Estado em ação nas
favelas, e a consequente tendência a uma (des)materialização dos processos de organizar de
seus agentes, conforme demonstrado em capítulos anteriores, a relação entre o campo
burocrático do Estado e o espaço social de favelas faz-se notar, primordialmente, por
mudanças na matéria do espaço. Conforme reforçaram Carlile et al (2013, p. 3) a matéria
importa, especialmente porque produz consequências, e consequências materiais, como
lembram os autores, podem durar um longo tempo: “In the end, matter matters not only as an
intelectual effort, but also in an ontological and practical sense, i.e., it generates consequences
for how we experience and act in our world41”.
Para Carlile et al (2013) atentar-se para a materialidade social não significa apenas
atentar-se para a performance da matéria, mas também para as consequências duráveis de sua
performance. Indo ao encontro dos autores, como forma de melhor compreender a relação
entre o campo burocrático do Estado em ação nas favelas e o espaço social, me proponho aqui
a analisar as transformações materiais produzidas pelos processos de organizar do Estado em
favelas, atentando-me para a performance da matéria e suas consequências duráveis. A partir
daí, proponho a noção de (des)organização do espaço, com um importante auxílio da matéria,
tendo em vista que as transformações materiais podem se apresentar de forma ambígua: se de
41 Tradução Livre: No fim, a matéria é importante não apenas como um esforço intelectual, mas também em um sentido ontológico e prático, isto é, ela gera consequências para como nós experimentamos e agimos em nosso mundo.
267
um ponto de vista, essas transformações tendem a organizar as favelas, no sentido de que as
aproximam da forma de organização do “asfalto” - onde o Estado consegue impor as suas leis
-, de outro, tais transformações podem ser também desorganizadoras, tendo em vista que
rompem com a forma de organização que já existia nas favelas, a qual, embora não
correspondesse a forma de organização do asfalto - já que as favelas estavam “às margens do
Estado” (DAS e POOLE, 2004) - , configurou-se, ao longo dos anos, como a sua forma
própria de organizar, representando sua própria lógica do campo das favelas.
7.2.3.1 Sedes Físicas, Obras e Remoções: Suplantando Vínculos Afetivos e Fronteiras Espaciais
Foi preciso pouco tempo de pesquisa de campo para que eu me atentasse para as
divergências entre as comunidades que dividiam os morros. Tanto na zona Sul quanto na zona
Norte, as favelas que eu frequentava eram, na realidade, uma composição de comunidades,
que contavam com apenas uma UPP. Na zona Sul eram duas comunidades, e para se referir ao
morro incluindo ambas, os moradores costumavam usar uma sigla, economizando palavras,
que não foi incorporada pela UPP, por ser considerada como cunhada pelo tráfico. De forma
alternativa, a UPP referia-se apenas a uma das comunidades, gerando irritação nos moradores
da outra. Na zona Norte são sete comunidades que juntas compõem um “complexo” com
apenas uma UPP. As divergências entre as comunidades começam desde o nome, pois não
gostam de ser intituladas de “complexo”, tendo em vista que acabam sendo resumidas a
apenas uma das comunidades que dá nome ao conjunto como um todo. Também observei aqui
o que que retratou Misse (2013, p. 208) em sua pesquisa: a instalação das UPPs unem em um
grande Complexo territórios historicamente divididos pelo tráfico, “propondo uma nova
forma de identidade local, que tende a considerar o que havia antes como ruim”.
A rivalidade entre as comunidades, que às vezes culminavam em conflitos mais
diretos, não parece existir por acaso. As favelas do Rio de Janeiro, conforme me relataram
muitos moradores e conforme descrito em trabalhos anteriores (ex: GRILLO, 2013;
ZALUAR, 2000; CAVALCANTI, 2007), foram marcadas por uma fragmentação territorial
imposta pelo tráfico de drogas. Como às vezes facções diferentes dominavam territórios
diferentes das favelas, eram criadas fronteiras territoriais que não podiam ser ultrapassadas
por moradores das comunidades rivais, denominados de “alemãos”, sem o risco de punição.
Os moradores me contavam histórias a respeito deste período de separação territorial, algumas
das quais terminavam tragicamente – os “alemãos” sofriam desde de punições mais leves,
268
como cabeças raspadas, até a morte queimados, no caso de líderes da facção rival que
dominavam o outro lado do morro.
Embora a entrada das UPPs tenha, em muitos casos, eliminado ou tornado mais
veladas estas disputas entre facções e, consequentemente, as fronteiras territoriais, os
moradores ainda não se sentem à vontade para circular por todo o território, e parece existir
um apego à sua própria comunidade, que vai muito além de uma simples imposição pelo
tráfico de drogas. Não consegui identificar com precisão se o ponto de origem desta disputa
resume-se ao domínio de facções rivais, mas pude perceber, com mais clareza, especialmente
em um contexto de redução de poder do tráfico, que a rivalidade entre as comunidades não se
reduz apenas a isso. Os moradores não parecem defender apenas os “bandidos” de sua
comunidade, como retratou Zaluar (2000), mas defendem, acima de tudo, a sua comunidade
como um todo, lutam para atrair para ela recursos públicos, e como tais recursos são restritos,
é preciso disputa-los com as demais comunidades. Consideram sempre que a sua favela
recebe menos recursos do que as demais, ou as “sobras” das comunidades vizinhas.
Presenciei, em muitas ocasiões, confrontos entre moradores de comunidades distintas,
especialmente em reuniões entre moradores e agentes do Estado, nas quais os primeiros
tentavam “puxar a sardinha” para a sua comunidade, disputando os escassos recursos aos
quais, por vezes, eles tinham acesso. Como as reuniões eram, em geral, conjuntas, entre todos
os habitantes sob o comando de uma mesma UPP, a rivalidade que os agentes do Estado
muitas vezes tendiam a ignorar revelava-se ali em longas discussões, algumas mais acaloradas
do que outras. E quando a reunião acabava mal, no dia seguinte havia o diagnóstico: a culpa
havia sido dos moradores da outra comunidade, que não tinham educação. Muitas vezes
exigiram dos agentes do Estado, raramente com sucesso, reuniões separadas, prevalecendo a
lógica homogeneizadora do Estado, traduzida em tratamento “igual para todos”.
Existia ainda na favela “pacificada” uma tendência a evitar a circulação por um
território que não fosse o seu, o que poderia ser entendido como um resquício da “época dos
meninos”. Alguns agentes do Estado me revelavam assustados que os moradores de uma
comunidade nunca haviam pisado na comunidade vizinha, e acreditavam que este era um
problema que precisava ser resolvido com urgência. Alguns, como os representantes do
Territórios da Paz, marcavam reuniões itinerantes entre as comunidades da favela, com a
finalidade de estimular a livre circulação. Defendiam que os moradores tinham que ocupar os
espaços da favela. Uma representante do Territórios da Paz me relatou, com orgulho, o
269
resultado de uma reunião que marcou em uma comunidade pouco visitada pelos moradores
das demais:
Então, por exemplo, então primeiro você já tem a circulação que as pessoas não circulam,
não circulam muito entre as comunidades [da favela da zona Norte], até por causa das
heranças que você tem do Tráfico, bairristas e tudo o mais. E aí por exemplo, foi uma
pessoa que falou quando ela foi, ‘gente, eu nunca tinha ido [nesta comunidade]. Foi a
primeira vez que eu fui [a esta comunidade]’. Então eu acho isso interessante, né, na
questão do espaço físico. (...)Então eu acho que isso é o maior, é o maior benefício que a
gente pode levar, entendeu (Representante do Territórios da Paz 3, Favela da zona Norte).
Milton Santos (2009a) mostra que o território deve ser compreendido como o chão
mais a sua população, ou seja, como uma identidade. O autor ressalta a importância do
sentimento de pertencimento àquele espaço, de pertencer àquilo que nos pertence. Indo ao
encontro de Milton Santos, Medeiros (2009) lembra como o território é um território de
identidade, que reúne indivíduos com um mesmo sentimento em relação a ele. Segundo a
autora, o território possui uma dimensão identitária e afetiva que não deve ser ignorada. E
ressalta a importância das fronteiras territoriais para os vínculos afetivos que se estabelecem
com o espaço: “A fronteira delimita o território, marca o espaço de sobrevivência, o espaço de
força. É este o espaço defendido, negociado, cobiçado, perdido, sonhado cuja força afetiva e
simbólica é forte’’ (MEDEIROS, 2009, P. 218). É nesse sentido que podemos compreender os
vínculos afetivos dos moradores de favelas com aqueles espaços que ajudaram a criar, os quais, por
meio de suas ‘‘lutas’’, muitas vezes produziram com as suas próprias mãos.
Mas as instalações das sedes físicas de representantes do Estado na favela, não
respeitavam as fronteiras territoriais historicamente produzidas pelos moradores. Para que
haja uma sede, os agentes precisam, necessariamente, optar entre um território ou outro,
gerando desconforto daqueles que não pertencem ao território escolhido.
As UPPs possuem em todas as favelas uma sede física central. Como muito moradores
já possuem uma resistência a entrar na base da UPP, independente de sua localização em uma
comunidade ou em outra, e como a ida à UPP não se faz fundamental, não é este o maior
problema que a instalação da sede física traz para a comunidade. Entretanto, conforme
mostrou Misse (2013), a falta de consideração com os anseios da comunidade no momento de
escolha das bases das UPPs costuma ser um problema que tem como consequência a revolta
da população. Este tipo de problema foi observado em minha pesquisa, no caso da favela da
zona Norte, na qual a UPP ocupou o principal prédio, utilizado pelos moradores para
realização de atividades culturais. Não foram poucas as reclamações que escutei neste sentido,
270
e como forma de resistência alguns moradores continuam a se referir ao prédio pelo nome
antigo por eles escolhido, e não como “base da UPP”.
Outros órgãos públicos que precisam ser acessados pelos moradores com mais
frequência, tem o seu serviço prejudicado por conta da resistência que alguns moradores ainda
apresentam em circular pelas comunidades vizinhas. Este é o caso, por exemplo, do CRAS,
que em ambas as favelas, atendem a vários territórios, mas tem sua sede física apenas em um
deles.
Outros agentes do Estado, como o Territórios da Paz ou a UPP Social, optaram por
não possuir sede física na favela. Além de acreditarem que a ausência de sede estimularia uma
maior circulação pelo espaço das favelas, tais agentes também demonstraram um
reconhecimento em relação à rivalidade entre comunidades e aos vínculos afetivos dos
moradores com seus territórios que, neste caso, preferiram respeitar:
Eu posso estar enganadíssima. Mas eu acho que você ter um espaço no território pode te
limitar horrores (...). Então se eu tenho, por exemplo, se eu estou num, porque a maioria das
equipes passa por essa realidade. O território que eu trabalho são três territórios. Dois, na
prática. [Comunidade 1 e Comunidade 2]. Eu vou para onde? Eu vou para [a Comunidade
1] ou vou para [a Comunidade 2]? Onde é que fica a minha sala? Se eu fui começar lá [na
Comunidade 1], você pode esquecer, [a Comunidade 2] me vira as costas, você está me
entendendo? Então eu vejo como uma armadilha você ter um espaço no território fazendo o
trabalho que a gente faz (Representante do Territórios da Paz 1, Favela da zona Sul).
Problema semelhante era vivenciado como consequência das obras e remoções. Em
ambas as favelas os programas de urbanização e infraestrutura não pareciam ter uma
compreensão clara a respeito do vínculo afetivo dos habitantes com o seu território, o que
pode decorrer inclusive de sua dificuldade na mobilização do capital informacional, e ao
necessitar realizar uma remoção para “abrir frente de obra”, começavam sempre as
negociações sugerindo a transferência daquele morador para um território externo às favelas,
alternativa à qual em sua maioria os moradores resistiam.
Talvez as situações mais emocionantes que vivenciei em campo, que mais vezes me
levaram a chorar junto com os moradores, foram aquelas que diziam respeito às remoções. O
desrespeito ao vínculo afetivo que os moradores estabeleceram com o espaço das favelas
provocavam fortes emoções que me contagiavam invariavelmente. Na favela da zona Sul, as
reuniões do PAC eram marcadas por fortes reações emocionais dos moradores, que
acompanhavam as suas queixas em relação ao programa. Em uma das maiores reuniões do
programa, uma moradora foi a frente do auditório, e berrou ao microfone que sua casa foi
demolida enquanto ela ainda estava tirando as suas coisas. Contou, bastante nervosa, que
271
quando foi reclamar que a indenização que recebeu no valor de R$103 mil não era suficiente
para comprar uma casa no morro, foi questionada pelo representante do PAC a respeito do seu
desejo de continuar na zona Sul. Foi fortemente recomendada a procurar uma casa na zona
Norte da cidade. Para completar a situação, em meio a um choro agora intensificado, a
moradora contou revoltada que sua casa foi removida à toa, porque agora as obras do PAC
não passariam mais ali. Estava lá, seu terreno, vazio de casa e cheio de lixo: “vocês já
pararam pra pensar como a gente fica?” (Notas de Campo, 01/10/2013) – gritou e, assim,
fechou a sua fala.
Na favela da zona Norte, alguns moradores removidos pela Secretaria Municipal de
Habitação, por estarem morando em área de risco, estavam sendo transferidos para complexos
habitacionais fora da comunidade. Tive oportunidade de visitar pessoalmente um desses
complexos habitacionais, em visita a uma ex-moradora da favela da zona Norte, e pude
constatar com os meus próprios olhos o que os moradores me relatavam: como o complexo
passou a ser habitado por pessoas de várias favelas distintas, foram transferidos para um
mesmo território grupos de traficantes de facções rivais. Como consequência, os moradores
da favela da zona Norte, agora habituados à favela “pacificada”, voltaram a viver sob o
domínio do tráfico e entre guerras de facções, porém em uma situação, segundo eles, ainda
mais difícil, porque aqueles traficantes os eram estranhos, não se tratavam mais dos
“meninos” que “viram crescer” e com os quais estabeleciam uma relação de mais respeito.
Além de moradores removidos para áreas externas à favela, havia também casos de
remoções que desrespeitavam as fronteiras territoriais internas à favela, historicamente
construídas. Na favela da zona Sul, após longas negociações, um grupo de moradores foi
transferido para a comunidade vizinha, com a qual, a princípio, evitavam relações estreitas. O
prédio para o qual seriam inicialmente transferidos não ficou pronto. A solução foi passa-los
para o prédio da comunidade vizinha e também rival, contrariando o desejo dos moradores,
que queriam permanecer em sua própria comunidade.
A insatisfação diante das remoções eram recorrentes: os moradores não queriam
deixar as suas casas que, muitas vezes, construíram com as próprias mãos. Um dos moradores
mais avessos às remoções do PAC me explicou de forma mais clara o motivo de sua
resistência: quando, aos 14 anos, perdeu os seus pais, chefes do tráfico em seu morro, que
foram assassinados por traficantes de uma facção rival, canalizou todo o seu sofrimento no
objetivo de juntar dinheiro para construir a sua própria casa, que agora seria removida pelo
PAC. Até a Associação de Moradores da favela da zona Sul foi marcada para ser removida
272
pelo PAC, porque estava em frente de obra. E a escassez de espaço para realocação dentro da
favela apresentava-se como um sério obstáculo a ser enfrentado. Os representantes do PAC
reconheciam o problema como um ponto negativo do programa:
O ponto negativo é realmente você retirar as pessoas que tão lá, que tão lá… as pessoas que
tão lá. Assim, tem tradição né, de família, sabe, que o avô veio pra cá, construiu essa casa,
“minha mãe morou, meu avô morou, minha mãe morou, eu moro”, e assim, não quer
desfazer. Né, porque subiram ali, independente desse acesso que não existe, com tijolo nas
costas, cimento nas costas, e construíram as casas. Então isso é ruim, né, você tentar
convencê-los de que por mais que a gente tá indo pra um apartamento no plano habitacional
ou a opção que ele tem de ter uma idealização ou uma conta assistida - porque ele tem três
opções, na hora que sai né - mesmo assim, você fazer, né, aquela coisa da hereditariedade,
da história, da vida dele dentro da comunidade, é difícil. Isso é um ponto negativo
(Representante do PAC 4, favela da zona Sul).
Percebe-se, na fala acima, que os agentes do Estado não são simplesmente insensíveis
ao problema dos moradores. Entretanto, a lógica homogeneizadora da ação burocrática do
Estado acaba por afastá-los de respostas individualizadas, na busca por “organizar” as favelas.
Mas as sedes físicas, obras e remoções apresentam-se também como uma
transformação material (des)organizadora dos espaços sociais de favelas. Se por um lado
fazem dos representantes do Estado uma presença mais permanente na favela, e melhoram o
acesso, oferecendo aos moradores novas moradias, por outro também suplantam as fronteiras
territórios, e negligenciam os vínculos afetivos dos moradores com o espaço, tão importantes
para a manutenção da identidade local, conforme sustentaram Santos (2009) e Medeiros
(2009), bagunçando afetos e emoções, produzindo reações comoventes, contagiantes.
7.2.3.2 A Favela sem Tiros, mas com “Estranhos”
Quando comecei a frequentar as favelas, os moradores se preocuparam em me explicar
alguns princípios básicos a respeito de como lidar com situações de tiroteios no morro:
explicaram-me em que comunidade os moradores abririam as portas de suas casas para eu
entrar e em que comunidade isso não aconteceria; explicaram-me que neste último caso eu
deveria procurar um lugar para me esconder; e, acima de tudo, nunca sair correndo em meio a
um tiroteio, embora seja este, em geral, o nosso primeiro impulso. Preocupei-me em aprender
estes princípios, mesmo achando que nunca precisaria coloca-los em prática, tendo em vista
que eu frequentava apenas favelas “pacificadas”. E foram realmente poucas as vezes em que
eu presenciei tiroteios nas favelas, e estes restringiram-se à favela da zona Sul.
273
Os tiroteios que no passado faziam parte da rotina da favela, e com os quais os
moradores já sabiam como lidar - pois moldavam sua mobilidade e as construções na favela
(CAVALCANTI, 2007) -, eram agora um evento raro nas favelas “pacificadas”, o que se
destacava como um grande triunfo das UPPs. Os policiais apontavam com orgulho um dos
principais resultados da “pacificação”: não havia mais tiros nas favelas, e os moradores
haviam recuperado o seu “direito de ir e vir”. Os moradores reconheciam, de forma quase
unânime, este como o principal aspecto positivo das UPPs, e também se emocionavam ao
relatar a conquista: contavam-me a respeito do primeiro natal que puderam realizar com toda
a família em sua casa na favela, no qual o único barulho que se ouvia era o de fogos de
artifício; retratavam-me a sensação de segurança com que agora podiam deixar os seus filhos
brincado livres pela favela; diziam que agora traziam amigos e parentes a qualquer hora para
conhecer suas casas; e que saiam de suas casas todos os dias para trabalhar com a certeza de
que poderiam voltar para dormir.
Mas o “direito de ir e vir” conquistado pelos moradores com o fim dos tiros estendeu-
se também para os demais moradores ou frequentadores da cidade, e a favela que antes já se
destacava como ponto turístico (FEIRE-MEDEIROS, 2009), começou a atrair ainda mais
turistas. O turismo em favelas era apontado como uma conquista para os moradores, na
perspectiva dos agentes do Estado, que também reclamavam que os moradores de favelas não
sabiam explorar devidamente a atividade, com grande potencial de fonte de renda.
De fato, nem sempre eram os moradores de favelas que exploravam a atividade
turística. Tive a oportunidade de conhecer moradores do asfalto que abriram hostels ou
restaurantes na favela, para aproveitar o potencial turístico do local. E os próprios moradores
reconheciam: “é uma comunidade com potencial turístico muito grande, tá sendo explorada
por outras pessoas” (Morador 10, Favela da zona Sul).
Além daqueles que subiam o morro para fazer turismo ou obter renda com esta
atividade, existiam aqueles que subiam o morro para ali ficar. Não foram poucos os gringos
ou moradores do “asfalto” agora moradores de favelas, com os quais me deparei em minha
pesquisa de campo, especialmente na favela da zona Sul. Estes nem sempre eram vistos com
bons olhos por aqueles “nascidos e criados” na comunidade, e o temor da tão falada “remoção
branca” rondava a favela e dificultava as relações com os novos habitantes.
Para além de um considerável aumento do preço dos imóveis, como efeito da
“pacificação”, o fim dos tiros na “favela pacificada”, elemento que antes dificultava a
circulação dos moradores, mas também inibia a entrada de pessoas do “asfalto”, tem um
274
efeito de “abertura da favela” e, seja para turismo ou para moradia permanente, o fluxo de
pessoas do “asfalto” ao morro pareceu aumentar consideravelmente.
Para os policiais, a entrada de pessoas de fora que passam a morar nas favelas é vista
como algo muito positivo, pois muda para melhor o perfil de moradores da favela: “Eu
acredito que até melhorou, mudou um pouco do perfil das pessoas que vieram morar aqui,
entendeu?” (Representante da UPP 2, Favela da zona Sul). Os moradores também
reconheciam o benefício da “abertura da favela”, tendo em vista seu potencial de geração de
renda. Também a enxergavam como uma possibilidade de maior “integração” entre morro e
asfalto. Conforme afirmou um representante do CRJ, também cria da comunidade: “essa
integração é boa para quebrar o clima de antigamente de asfalto-comunidade” (Representante
do CRJ 1, Favela da zona Sul).
Entretanto, conforme mostrou Grillo (2013), não obstante as críticas à expressão,
pode-se reconhecer na favela um sentido para o termo “comunidade”, na medida em que os
moradores construíram densas redes sociais de interconhecimento. Com o aumento do fluxo
de pessoas “estranhas” na favela pacificada, os moradores relatam uma aparente perda neste
reconhecimento, e temem a presença de “estranhos” no morro: “são comunidades que estão
sendo invadidas por gringos, pessoas que a gente não sabe da onde veio, o que estão
trazendo” (Morador 10, Favela da zona Sul).
Os moradores referiam-se a mafiosos que foram encontrados escondendo-se em
favelas vizinhas, a estupradores que haviam sido encontrados dentro de sua própria
comunidade, para me explicar porque temiam a entrada de “estranhos”:
Agora, com a UPP dentro da comunidade, eu me sinto mais vulnerável. Eu vejo a
comunidade mais sensível nesse lado porque, assim, estão entrando pessoas que você não
conhece, que hoje em dia mora qualquer pessoa dentro da comunidade, você acha seguro, a
maioria, dentro desses estrangeiros, que vêm, tem estuprador, tem assassino, que vem de
país de fora. Porque não mostra as suas origens. Então ninguém sabe, tanto que aqui tinha
um estuprador morando na comunidade, um estrangeiro, que vieram, estavam procurando
ele há muito tempo, veio achar ele aqui. Você viu (Morador 18, Favela da zona Sul).
Além do fim dos tiros, outra transformação material que contribui para esta
(des)organização do espaço das favelas é a obrigatoriedade do uso de capacetes no moto-taxi,
pelos policiais da UPP. Cavalcanti (2007) mostrou em sua pesquisa em favelas em período
anterior às UPPs que os moto-taxistas e passageiros não podiam usar capacetes, porque eles
esconderiam a identificação dos passageiros e dos motoristas, deixando vulnerável o território
do tráfico. Na “favela pacificada” o uso de capacetes torna-se obrigatório, e a segurança de se
saber exatamente quem entra e quem sai não é mais garantida dentro das novas regras.
275
A insegurança do moradores diante da presença de “estranhos” é agravada com a
entrada nas favelas de traficantes de outros territórios. O vínculo de confiança estabelecido
entre moradores e traficantes, revelado pela expressão “os meninos” por meio da qual os
primeiros referem-se aos segundos, apoia-se no fato de os traficantes de uma favela serem
“meninos” que a comunidade “viu crescer”, “cria da comunidade”, conforme anteriormente
exposto. A instalação de Unidades de Polícia Pacificadoras em um determinado território tem
como primeira consequência, pelo menos inicial, a expulsão dos traficantes do morro, que
migram para outras regiões da cidade e, em muitos casos, para outras favelas sem UPPs ou
com UPPs já consolidadas. Grillo (2013) aponta em sua pesquisa a forma como a instalação
das UPPs muda a relação do traficante com seu território, pois muitos bandidos tornam-se
“sem morro” e passam a depender de serem acolhidos em morros aliados. Os moradores
temem estes traficantes “estranhos” e muitas vezes atribuem a eles a responsabilidade pelos
eventuais conflitos entre tráfico e UPPs ou uma exposição ocasional de armas. Aqui ainda
permanece a característica apontada por Zaluar (2000): os moradores tendem a proteger e a
ver de forma mais positiva os traficantes de sua própria comunidade. Aos traficantes
“estranhos”, os moradores não se referem como “meninos”, e os acusam de desrespeitar as
regras básicas de convivência do morro, “bancando” armados em qualquer lugar.
Transformações materiais como ausência de tiros, o uso de capacetes, e a própria
instalação de UPPs em outros territórios contribuem para a entrada de pessoas “estranhas” nas
favelas. O que por um lado pode ser enxergado como um benefício para a comunidade, tendo
em vista que pode gerar renda, como no caso das atividades turísticas, ou aumentar a
integração entre morro e “asfalto”, também é vivido pelos moradores de favela como produtor
de uma sensação de insegurança, diante de um enfraquecimento do sentido de “comunidade”,
com o mútuo conhecimento e consequente controle das pessoas da favela. Aqui a matéria
(des)organiza porque traz renda e “integração” acompanhadas de um temor dos “estranhos”.
7.2.3.3 O Fim da Ostensividade das Armas: Revisitando “Trabalhadores” e “Bandidos”
Aquele ainda era o meu primeiro mês de pesquisa de campo, e portanto a favela que
eu subia era para mim uma favela segura, sem traficantes ou tiros, construída com base nas
informações que recebia como moradora do asfalto. Como ainda não sabia como andar pelas
vielas da comunidade, subi a favela da zona Sul pelo elevador, e fiquei ali mesmo aguardando
duas crianças que viriam me buscar e me levar até à ONG que eu visitaria naquele dia. Ainda
bastante sujeita aos erros de uma pesquisadora principiante, enquanto aguardava peguei meu
caderno de campo e comecei a anotar minhas primeiras impressões. Um rapaz jovem,
276
claramente morador da comunidade, parou a minha frente e começou a me encarar, não com
curiosidade, mas com um olhar cheio de “marra”. Incomodada, mas sem entender, tive como
primeiro impulso interromper as minhas anotações e guardar o meu caderno na mochila. Meu
gesto não pareceu ser suficiente. O olhar se manteve em minha direção. Comecei a ficar muito
nervosa, e as crianças não chegavam. Estávamos sozinhos ali, eu e o rapaz “marrento”.
Cogitava descer o morro, quando chegou uma senhora. Para meu conforto, a senhora conhecia
o rapaz, e os dois começaram a conversar, sem que o segundo desviasse o olhar de mim. Em
meio à conversa, o seguinte diálogo aconteceu:
“Senhora: Por que você não arruma um trabalho, não pede um emprego naquela obra ali?
Rapaz: Eu já trabalho, pô
Senhora: Aonde?
Rapaz: Tu sabe aonde!
Senhora: Eu não sei de nada não...” (Notas de Campo, 22/01/2013).
Os dois entraram no elevador, e eu anotei o diálogo. Pensei que o rapaz falava também
para mim, para quem ele olhou durante toda a conversa. Assustada e surpresa, inferi que ele
se referia a um trabalho no tráfico de drogas, o qual naquele momento eu ainda acreditava não
existir, pelo menos não de forma tão explícita ou disseminada, em uma favela “pacificada”.
Chegando à ONG, tive que perguntar: ainda existem traficantes aqui? Minha pergunta
parecia quase incompreensível: é claro que existem traficantes em uma favela “pacificada”. A
presença do tráfico não era surpresa para ninguém: moradores referiam-se a eles para me
explicar seu distanciamento da UPP; os policiais me diziam que inclusive sabiam quem eram
os traficantes, embora lamentassem não poder prendê-los assim; os demais agentes do Estado
também sabiam de sua presença, e procuravam caminhar com muito cuidado entre tráfico e
UPP dentro da favela. Parecia que eu era a última a saber que tráfico em favela “pacificada”
era normal e óbvio para todos.
As favelas sem UPPs, as quais eu conhecia, principalmente, por meio de outras
pesquisas e de conversas com moradores, apresentavam, de forma clara, a diferença entre
trabalhadores e bandidos. Em sua pesquisa na década de 1980, Zaluar (2000) mostra que
existe uma oposição importante entre “trabalhadores” e “bandidos” na favela, sendo a
identidade do trabalhador em parte construída por sua oposição àqueles que não trabalham:
“bandidos” ou “vagabundos”. Embora o trabalho seja um critério fundamental para esta
diferenciação, a autora também aponta a posse de armas como demarcadora da diferença:
bandidos andam armados e trabalhadores não. Nas palavras da autora:
277
Ser bandido é pertencer a esta categoria de pessoas que carregam no seu corpo um estigma
e uma indiscutível fonte de poder: a arma de fogo. Mas não se trata apenas de uma oposição
lógica em um sistema classificatório. Colocar uma arma na cintura tem, entre eles, o sentido
de declarar publicamente uma opção de vida e de passar a ter com a população local
relações marcadas pela ambiguidade e abertas ao conflito (ZALUAR, p. 146).
Grillo (2013) também suporta esta ideia, ao apontar a posse de armas como um critério
importante nesta diferenciação. Conforme mostrou a autora, em sua pesquisa sobre a vida no
crime, mesmo aqueles que de alguma forma se envolvem em atividades ilegais, como por
exemplo com a venda de mercadorias roubadas, não são considerados “bandidos” pelo
simples fato de não carregarem uma arma.
Grillo (2013) explica que uma característica particular dos traficantes do Rio de
Janeiro (diferenciando-os, por exemplo, daqueles que exercem suas atividades na cidade de
São Paulo) é o fato deles ostentarem suas armas ao público de forma a tornar bastante
aparente a sua presença, potencializando seus efeitos opressivos. Segundo a autora, os
traficantes cariocas se arriscam, mas não deixam de exibir as suas armas, em uma crença de
que elas ajudam a protege-los.
Em minha pesquisa, pude observar também, a partir do relato dos moradores a respeito
deste período anterior às UPPs, que além da exposição de armas pelos “bandidos”, os
moradores em geral sabiam quem eram os “bandidos”, porque os conheciam desde criança,
foram criados ali. Usavam a expressão “são crias da comunidade” para me explicar que
aqueles “meninos” eles viram crescer.
Embora exista esta diferença, isso não significa dizer, conforme reforçou Zaluar
(2000), que existia uma separação completa e clara entre “bandidos” e “trabalhadores”, nem
que a oposição entre as duas categorias fosse absoluta. Ela lembra que a relação entre eles é
ambígua e complexa, tanto no que diz respeito a representação da atividade criminosa para os
trabalhadores, quanto em relação às práticas por eles desenvolvidas.
Mas a ambiguidade e complexidade em torno desta diferenciação parece ter se
intensificado bastante com a entrada das UPPs. A partir do processo de “pacificação”, e o
consequente fim da ostensividade das armas pelo tráfico de drogas, a diferença entre
“trabalhadores” e “bandidos” torna-se muito mais velada. A ostentação antes permitia a fácil
identificação do “bandido” por qualquer pessoa, e a sua inibição torna hoje quase impossível a
identificação imediata de um “bandido” por uma pessoa que não conhece bem a favela. Para
os moradores, esta identificação pode ser mais fácil, na medida em que conhecem melhor as
pessoas da comunidade e, em geral, sabem quem é quem. Mas com a entrada de traficantes
278
“estranhos”, como consequência das UPPs, e com o ingresso de novos meninos no tráfico,
esta tarefa tornou-se mais difícil até mesmo para os moradores.
É claro que o fim da ostensividade de armas e drogas é visto como uma grande
conquista para a comunidade na perspectiva de todos. Os moradores comemoram o fato de
seus filhos crescerem sem a presença de traficantes armados pelas ruas da favela. E policiais
referem-se ao fato como um indicador do sucesso do programa das UPPs.
Entretanto, um efeito importante da maior obscuridade na diferenciação entre
“trabalhadores” e “bandidos” manifesta-se no espaço das favelas como um aumento na
insegurança, tendo em vista que agora é preciso mais cuidado com o que se fala, onde se fala,
para quem se fala, quando não se sabe quem é quem. Um morador subia o morro com um
saco de lixo para reciclar, e foi interpelado por outro morador que o ofereceu ajuda, em troca
de R$5,00. O primeiro morador respondeu que se o pagasse este valor, ele mesmo não
ganharia nada com o aproveitamento do lixo, e completou “você ganha mais do que eu!”.
Quando o primeiro morador me contou esta história, revelou-me que sabia que o cara era
bandido, pois já o conhecia da comunidade. Entendendo a acusação, o bandido revoltou-se,
temendo que algum policial pudesse estar ouvindo a conversa, e chamou o morador de X-9. O
morador, por sua vez, ficou revoltado: embora não tivesse em volta ninguém armado, sentiu-
se inseguro de algum outro bandido ter ouvido a acusação, e puni-lo por ser X-9. Iniciou-se aí
uma grande discussão. Os dois ficaram tensos com as acusações, pois não sabiam bem quem
eram aquelas pessoas que os estariam ouvindo.
Preocupação semelhante vivem agora os agentes do Estado, que em geral precisam se
relacionar com pessoas diferentes na favela, mas na ausência das armas nunca sabem muito
bem com quem estão falando. Um representante da Comlurb, me revelou o seu receio: “até
porque eu estou num local que eu sei que é um local que não é totalmente confiável, né, é
você, você lida com várias pessoas, mas você sempre tem que estar com um pé na frente e
outro atrás.” (Representante da Comlur 3, favela da zona Sul).
Depois de minha experiência inicial, vivenciei intensamente esta sensação de
insegurança. Não obstante a minha enorme curiosidade a respeito do funcionamento do tráfico
nas favelas, era preciso muito cuidado ao fazer os meus questionados, pois estes poderiam ser
mal interpretados, especialmente quando eu não sabia exatamente com quem eu estava
falando. Em algumas ocasiões conversei com “bandidos” sem saber que se classificavam
nesta categoria, fato que só me foi revelado depois. Em outra ocasião, quando conversava
com um grupo de moradores em um bar da favela da zona Norte, e aproveitei a descontração
279
da conversar para questioná-los a respeito do tráfico, tive minha fala interrompida por gestos
discretos mas desesperados: um traficante acabava de entrar no bar e ouviu a minha pergunta.
Sem a arma, não pude reconhece-lo, e acabei cometendo uma grande gafe, que poderia até ser
sujeita à punição. Tentei consertar reforçando para todos no bar que eu era pesquisadora e,
após um tempo de conversa, acho que ganhei a simpatia do “bandido”, que se despediu de
mim sorrindo e beijando a minha mão.
Assim como os bandidos não são mais facilmente identificáveis, também não o são as
chamadas “bocas”. Grillo (2013, p. 82) descreveu em detalhes como eram as bocas nas
favelas sob domínio do tráfico, as quais frequentou durante sua pesquisa: nas favelas “não
pacificadas” as “bocas”, “lócus central do varejo de drogas”, são o local onde “bandidos,
armas e drogas se concentram”, e onde ocorrem as vendas e prestação de contas. Em termos
mais concretos, a autora descreve as “bocas” como um local onde as drogas podem estar
expostas em bancas ou em panos ao chão ou, alternativamente, podem estar guardadas nas
mochilas, mas são marcadas, principalmente, pela concentração de homens armados. Assim,
são extremamente fáceis de se identificar, mesmo por uma pessoa que entra na favela pela
primeira vez.
Com a entrada das UPPs, foi preciso pensar em alternativas às “bocas” tradicionais,
facilmente identificáveis, espacialmente em função das armas sempre aparentes. Nesse
sentido, as “bocas” agora passam a ser itinerantes, e a concentração de homens ostentando
armas e drogas, o que antes não deixava dúvidas a respeito da sua localização, agora foi
substituída apenas pela presença de poucos jovens parados em um mesmo local, que
costumava variar - caracterização nada óbvia. Conforme me explicou um policial da UPP:
Boca é o que eu falei para você. Boca, boca, boca não existe. Não existe aquilo, "ah, vamos
comprar ali comprar ali do lado da padaria na boca de fumo". Não tem. São itinerantes. Que
que acontece? Hoje ela pode estar na padaria, amanhã ela já não vai estar na padaria,
porque tem a presença da polícia ali. Aí ela já está lá no outro lado lá. Ah, vamos lá. Ela já
não está lá, está lá do lado de lá, entendeu. Então é, seria mais ou menos aquele jogo de cão
e gato. Quando vem para cá e chega aqui, eles estão aqui, depois vem para cá e fica naquela
perseguição, entendeu. Isso é contínuo. Sempre vai ter, sempre vai ter, enquanto existir
usuário sempre vai ter a pessoa para vender porque isso aí, enfim, sempre tem. Aí é bem
menor, não é às vistas como é, como era antigamente. Não tem o pessoal gritando, "aqui,
compra comigo". É bem, bem, bem às escuras mesmo, entendeu (Representante da UPP 17,
Favela da zona Norte).
Os moradores também eram bem cientes dessa nova estratégia do tráfico. De tempos
em tempos me apontavam um novo local onde agora era a “boca”, reforçando que eu evitasse
280
passar por lá. Mas com a transição e agora descaracterizada, era difícil acompanhar a
movimentação das “bocas”, e às vezes os moradores reclamavam em relação a uma
insegurança a respeito de por onde poderiam circular. Se antes sabiam claramente onde ficava
a “boca” e evitavam frequentá-la, agora esbarravam com ela ao acaso pelas ruas da favela, e a
surpresa de se perceber em meio a uma “boca” nunca era muito agradável, como eu mesma
pude algumas vezes vivenciar.
De repente, pior porque quando você está armado, lá, na boca de fumo, seja onde for, você
tem uma missão, né, você tem uma comissão. Todos juntos em prol de alguma coisa que
não seja boa, mas estão juntos, têm uma administração. Só que não há administração, há
focos, né? Lá, cá, ali, acolá, entendeu. E essa desarticulação do Tráfico também
desarticulou a comunidade como defesa. Então antes você sabia que andar por ali não era
uma coisa bacana, agora você não sabe por onde andar (Morador 27, favela da zona Norte).
A dissimulação de “bandidos” e “bocas” nos espaços das favelas tem um objetivo
claro: esconder-se dos policiais das UPPs. Embora os policiais aleguem saber quem são os
principais traficantes do morro, diante da possibilidade do disfarce, passam a desconfiar de
todos: abordam crianças, homens e mulheres, e até mesmo outros agentes do Estado.
As frequentes abordagens policiais são fonte de grande insatisfação dos moradores
com a presença da UPP no morro. Reclamam do tratamento indistinto entre “trabalhadores” e
“bandidos” durante as abordagens. A estas queixas os policias respondem afirmando que nada
podem fazer, porque se não sabem quem é quem, todos podem ser culpados:
Porque o morador muitas das vezes ele é trabalhador, mas ele não quer ser abordado,
porque ele acha que ele é trabalhador e não tem cara de bandido. Mas não é assim, né? A
gente sabe que os traficantes às vezes usam as pessoas para fazer transporte de drogas.
Então esse relacionamento com a comunidade é bem complicado (Representante da UPP 2,
Favela da zona Sul).
O fim da ostensividade de armas e drogas por bandidos das favelas, importante
transformação material em seu contexto recente, de um ponto de vista, organiza estes espaços,
já que os tornam mais próximo da forma de organização que existe em outros espaços da
cidade, e geram uma inegável sensação de segurança a todos os que ali circulam. Entretanto,
de forma quase paradoxal, esta mudança material também é produtora de insegurança, na
medida em que torna velada a figura do “bandido” e a localização das “bocas”,
desorganizando, porque coisas óbvias, com as quais era preciso ser cuidadoso, tornam-se
obscuras, estendendo o cuidado, por via das dúvidas, a tudo e a todos.
281
7.2.3.4 Quem Precisa de Uniformes e Crachás? Quem é Quem na Favela “Pacificada”?
No início de minha pesquisa de campo uma das grandes dificuldades que enfrentei foi
a de saber com quem eu estava falando, quem era quem na favela “pacificada”. Para além da
dificuldade de identificar “trabalhadores” e “bandidos”, a favela “pacificada” é complexa:
agentes do Estado podem morar nas favelas ou podem ser também pesquisadores, moradores
de favelas podem ser agentes do Estado, moradores do “asfalto” se mudam para as favelas,
mas às vezes não são reconhecidos como verdadeiros moradores, especialmente quando se
trata de “gringos” ou de pessoas com mais dinheiro que abrem os seus negócios, e estes
últimos são facilmente confundidos com agentes do Estado. A complexidade é intensificada
pelo aumento no fluxo de pessoas “novas” e “estranhas” na favela, sejam elas novos
moradores, novos investidores, ou novos agentes do Estado.
Conforme apontado em outro capítulo, mesmo em período anterior à entrada das
UPPs, alguns agentes do Estado já se faziam presentes na favela. E embora aí já houvesse
misturas entre algumas categorias (a figura do “agente comunitário” é, por exemplo, anterior
às UPPs), existia um elemento que se fazia obrigatório: o uso de uniformes e/ou crachás como
forma de identificação. Os relatos de agentes do Estado que circulavam pelas favelas antes
das UPPs eram bastante claros: só podia-se circular identificado e, de preferência, na
companhia de moradores. Conforme explicou um representante do PAC que já trabalhava na
favela da zona Sul antes das UPP: “[Na favela da zona Sul], quando a gente entrou lá existia o
tráfico, a gente entrava uniformizado, andava com moradores pra poder ser conhecido, com
crachá, tudo direitinho, tinha horários em que a gente não entrava” (Representante do PAC 1,
Favela da zona Sul).
Após a instalação das UPPs, e um consequente aumento da sensação de segurança
para a entrada de pessoas de fora nas favelas, o uso de uniformes e crachás tornou-se
dispensável. A lógica é clara: se antes se usava a identificação para que os traficantes
soubessem quem era quem, e os respeitassem enquanto agentes do Estado, agora não se devia
mais satisfação aos traficantes e, portanto, a identificação faz-se dispensável. Seguindo essa
lógica, dentre os vários agentes do Estado que adentraram as favelas, acompanhando às UPPs,
muitos não usam uniformes ou crachás, e circulam pela favela com roupas “comuns”. Este é o
caso, por exemplo, dos representantes do Territórios da Paz ou da UPP Social, que andam
sem nenhum tipo de identificação. E mesmo os representantes do PAC, reduziram o uso de
coletes após a entrada das UPPs, e agora o fazem apenas em ocasiões mais específicas,
quando precisam circular de forma mais intensa pela favela.
282
É claro que mesmo sem uniformes, a confusão entre um agente do Estado e um
morador não é óbvia. Conforme mostrou Cavalcanti (2007), os moradores de favelas em geral
possuem um habitus comum. Entretanto, agora também é possível questionar quem é
morador. Com a entrada dos “estranhos” na favela, esse habitus ao qual se referia Cavalcanti
(2007) não é mais tão generalizável assim, tendo em vista que muitas pessoas do “asfalto” ou
“gringos” agora habitam as favelas, com seus próprios habitus. Assim, um agente do Estado
pode ser facilmente confundido com um morador, destes que se mudaram recentemente, mas
que não deixam de ser moradores. Outras vezes o agente do Estado é realmente também um
morador, e neste caso a separação de papéis é confusa até para eles mesmos. E, ainda, com a
intensificação da presença de agentes do Estado na favela, mesmo que estes sejam
reconhecidos como tais, é difícil saber quem é represente de que programa ou órgão público, e
a confusão se faz entre os próprios agentes do Estado.
Os representantes do Territórios da Paz , que além da ausência de uniformes, tendiam
a estabelecer fortes vínculos de amizades com os moradores, eram com frequência
confundidos com moradores, pelos próprios moradores, que a eles se referiam pelo nome, e
que tinham dificuldades de aponta-los como representantes do Estado quando eu os
questionava a respeito da presença do Estado na favela - ainda que passassem boa parte do
seu tempo com eles. A respeito desta confusão, uma agente do programa me relatou:
Eu acho que algumas pessoas percebem que a gente quase como se fosse uma liderança
local, entendeu. (...) Você é como se fosse mais uma pessoa, entendeu. Então assim até por
isso. Da gente ter convidado para esse negócio do Facebook. Foi por causa de um
presidente lá, de uma entidade, que falou assim ‘não, que eu fiz um Facebook para todas as
lideranças [da favela da zona Norte], então você tem que estar, né’. Peraí, não moro [na
favela da zona Norte]. Então isso é uma, eu acho que é confuso (Representante do
Territórios da Paz 3, Favela da zona Norte).
Para evitar este tipo de confusão, os representantes do CRAS, que também
estabelecem relações próximas com os moradores, preferem usar alguma forma de
identificação:
Usa o colete, usa o crachazinho também, que ajuda, né, porque assim quando você está
dentro da comunidade você é mais uma pessoa.(...). Até para ele saber quem é você, né?
Embora às vezes, muitas vezes você suba, a pessoa identifica como alguém estranho que é,
que é de estar levando um serviço, ou está, mas eles não sabem (Representante do CRAS 3,
Favela da zona Norte)
As misturas entre categorias, antes demarcadas por uniformes e crachás,
complexificam as relações sociais na favela “pacificada”. Conheci agentes do Estado que
283
moravam nas favelas e também moradores de favelas que eram agentes do Estado, sem
entender muito bem o que veio primeiro. Conheci até mesmo um “gringo” que morava na
favela e trabalhava, sem o uso de identificação, para a Clínica da Família.
O fato de uniformes e crachás tornarem-se dispensáveis é um claro sinal de avanço e,
por um lado, maior organização da vida na favela, obtido com a pacificação: o aumento da
sensação de segurança dispensa a obrigatoriedade de se fazer identificar. Entretanto, também
desorganiza, na medida em que tem-se, mais uma vez, um enfraquecimento daquele sentido
de comunidade apontado por Grillo (2013), e as redes de interconhecimento descritas pela
autora tornam-se mais frágeis, gerando também insegurança.
7.2.3.5 Um Novo Uniforme e um Novo Policial: Os “UPPs” e suas Armas (Des)organizadoras
Um grupo de policiais da UPP da favela da zona Norte foi cedido, naquele dia, para
apoiar o batalhão da região. Vestiram o MUG, uniforme de combate da polícia militar, em
geral não utilizado pelos policiais da UPP, que vestem o uniforme social da PM, e foram
almoçar em um bar da comunidade. Os moradores, estranhando o uniforme, os questionaram:
“Ué? Vocês agora foram promovidos? Agora vocês são polícia?” (Representante da UPP 12,
Favela da zona Norte). Um policial me contou o ocorrido para me explicar que os moradores
de favelas não entendiam que eles, que serviam às UPPs, eram também policiais militares, e
os enxergavam como um novo tipo de policial.
Embora os policiais que servem às UPPs passem pelo mesmo concurso e mesma
formação de qualquer outro policial militar, e façam até em seus primeiros meses o que eles
chamam de “estágios” nos batalhões, eles usam, em seu dia a dia de trabalho na favela, um
uniforme diferente. Enquanto os policiais dos batalhões vestem-se com um uniforme cinza
escuro, chamado de MUG ou Quinto B, o qual passou a caracterizar a polícia de combate, que
subia os morros e desencadeava confrontos, os policiais da UPP, em uma tentativa de romper
com esta imagem de “polícia de combate” associada ao MUG, passaram a utilizar o uniforme
social ou de passeio da PM (Terceiro B), composto por uma camisa social azul clara e uma
calça social preta, acompanhados de uma boina azul escura na cabeça. Conforme me explicou
uma policial:
Esta daqui é uma farda de passeio da polícia, a polícia tem esta farda e sempre teve, sendo
que é farda de passeio. Eles colocaram a UPP com esta farda para ficar menos operacional,
menos tiro, porrada e bomba. O MUG é igual à do BOPE, mas sendo a do BOPE preta, o
MUG é mais claro, então quando ele entrava com aquela farda era mais para combater
(Representante da UPP 8, Favela da zona Sul).
284
Acontece que o novo uniforme parece criar também uma nova categoria de policial:
aos policiais vestindo o uniforme social os moradores referem-se como “os UPPs”, e os
diferenciam do policial que veste o MUG, aos quais os moradores se referem como “os
polícias”. Entendem, inclusive, que existem formas diferentes de ingressar na PM ou de
ingressar nas UPPs: “Tanto é que eles perguntam como é que se faz para ser da UPP, para
fazer a prova para policial da UPP?” (Representante da UPP 19, Favela da zona Norte). Para
se referir aos novos policiais criam uma denominação diferente: “aqui os próprios moradores,
eles não chamam a gente de polícia, eles chamam a gente de UPP. ‘Olha os UPP’s aí’! Eles
mesmos já diferenciam. ‘Ô UPP! Não é ô policial, Ô UPP! Ô UPP! Os UPP chegou’!”
(Representante da UPP 8, Favela da zona Sul).
À nova categoria de policial, “os UPPs”, os moradores associam a imagem de um
policial mais “frouxo”, um policial “menor”, de “nível mais baixo”, e não foi à toa que os
moradores questionaram aos policiais no bar se eles haviam sido “promovidos” por conta da
mudança de uniforme: “eles acham mesmo que com esta farda aqui a gente não tem moral
nenhuma, eles acham que somos menos polícia” (Representante da UPP 8, Favela da zona
Sul). E acreditam que entre “os UPPs” e “os polícias” são os segundos que possuem mais
moral:
Já aconteceu de a gente tá vestido de UPP em outras determinadas ocorrências que
tomaram proporção maior e chegar apoio do batalhão. Eles ai “Fala alguma coisa agora, os
polícias tá ai”, a gente não é polícia, os outros são? Mais ou menos isso, entendeu? Chega a
ser engraçado (Representante da UPP 12, Favela da zona Norte).
Este tipo de diferenciação também se estende à própria Polícia Militar como um todo.
Dentro da corporação referem-se aos policiais dos batalhões como “policiais de verdade”, e
até mesmo os policiais da UPP adotam esta diferença. O seguinte diálogo é revelador desta
crença:
“Entrevistada: a maioria dos meninos que entram para a Polícia para realizar um sonho é o
sonho de ser um policial de verdade, de batalhão de verdade, não-sei-o-quê, entendeu? Eu
já entrei de gaiata. Então eu ainda caio nesse serviço aqui, é o que eu quero ficar, entendeu.
Vanessa: Ser um policial de verdade? Por que, ser policial da UPP não é ser policial de
verdade?
Entrevistada: É, o nosso trabalho é um trabalho com proximidade e facilitação. Não é um
trabalho operacional. Acho que policial de verdade é até muito feio, né, eu acho que são
policiais que trabalham com um jeito diferente. Mas eu não deixo de ser policial militar”
(Representante da UPP 16, Favela da zona Norte).
E outro policial completou este pensamento compartilhado dentro da Polícia Militar:
285
Acha que aquele cara que tem 20 anos de polícia, que já anda com o fuzil arrastando, já sai
dando tapa “ih, esse aí é bravo, não mexe que é polícia de batalhão é ruim, UPP é tudo
frouxo”. Tem esse preconceito, entendeu. Dessas duas formas. Tanto internamente na
polícia quanto externamente, na favela (Representante da UPP 17, Favela da zona Norte).
Como consequência, há, entre alguns policiais das UPPs, um sentimento de vergonha
de dizer que trabalham em uma UPP, a ponto de me confessarem que inicialmente negavam o
seu verdadeiro local de trabalho e diziam trabalhar no batalhão da região.
Ainda que enquanto um policial “mais frouxo”, os moradores de favela tiveram que
aprender a lidar com esta nova figura circulando pelas ruas da favela. A relação com “os
polícias” era simples: quando estes subiam o morro, havia confronto com o tráfico, tiros eram
disparados, e a circulação pela favela era limitada. “Os policiais” saiam, e a favela voltava a
funcionar do seu jeito. Com os UPPs, a relação se complexifica, tendo em vista que estes
estão permanentemente na favela, armados.
Mas os moradores logo aprenderam que a arma atrelada a um “UPP” não é a mesma
arma atrelada a um “polícia”, e as armas dos “UPPs” parecem perder, em parte, a sua
capacidade de organização. Quando um “UPP” armado realiza a prisão de um morador em
meio à favela, há, com muita frequência, conforme já relatado, agressões de moradores aos
policiais, que jogam pedras e até objetos: “Tanto senhoras quanto senhores ninguém respeita a
UPP. (...) porque assim, quando a BOPE entra, é um respeito porque tem medo. A BOPE vai
entrar e vai fazer porque a BOPE é para matar(...)” (Morador 28, favela da zona Norte).
Os “UPPs” atribuem esta incapacidade de impor a ordem ao fraco poder de suas
armas, tendo em vista que os moradores sabem que eles não podem usá-las, salvo em raros
casos: “a gente não pode reagir, fazer, por exemplo, disparar uma arma de fogo só porque o
pessoal está gritando, entendeu, a gente não pode fazer isso, entendeu. Aí e muita gente faz
isso porque sabe que não pode” (Representante da UPP 13, Favela da zona Sul). E muitas
vezes o armamento não-letal tem uma capacidade de organização maior, porque estes os
moradores sabem que podem ser usados. Trata-se de uma “polícia pacificadora”, que perde a
sua credibilidade em função de um tiro, conforme discutiremos na sessão a seguir: “Eles
sabem que a gente não pode fazer nada. Não existe a possibilidade de você ser atacado com
pedras e responder com tiro. Não existe!” (Representante da UPP 14, Favela da zona Sul).
Embora mais fracas, as armas dos “UPPs” estão sempre presentes na favela, e os
moradores tiveram que aprender a conviver em sua rotina diária com a presença dos “UPPs” e
suas armas (des)organizadoras. Não obstante a redução na frequência de tiros de policiais
dentro das favelas, a possibilidade de um tiro é constante e, às vezes, inquieta os moradores
286
locais. O histórico de relações conflituosas com “os polícias” ainda marca a relação dos
moradores com esta nova categoria de policiais. E ainda que “os UPPs” pareçam mais fracos,
estes ainda não são dignos de confiança, mas, mesmo assim, estão sempre por perto. Uma
moradora assim tentou retratar a sensação de insegurança advinda de um convívio diário e
ininterrupto com uma nova polícia na qual não confia:
(...) Hoje em dia a gente não sabe se vai ter uma bala perdida, se vai ter um confronto, de
uma hora para outra. Porque antes a gente só se preocupava com a operação, hoje em dia o
morador se preocupa 24 horas com a polícia dentro da comunidade, a gente não sabe qual é
a hora que a gente vai morrer. Qual é a hora que nosso vizinho vai morrer, qual é a hora que
uma criança vai ser baleada porque 24 horas nós convivemos com isso (Morador 18, Favela
da zona Sul).
Por muitos, é visto como um grande avanço essa nova categoria de policial, com
armas mais “fracas”, que possui armas, mas atira pouco. A favela com UPP parece muito
mais organizada do que a favela que sofre constantes e imprevisíveis incursões policiais, que
culminam em grande tumulto e impedem a circulação. Entretanto, tem-se agora uma polícia
constantemente presente, e embora sua arma tenha enfraquecida a sua capacidade de ação, ela
está a todo o tempo presente na favela. Embora mais rara, a iminência de um tiro é
permanente. Os moradores precisam aprender a estabelecer um novo tipo de relação com uma
nova polícia na qual ainda não confiam.
7.2.3.6 A Coexistência de Armas: Traficantes e “UPPs” como “Cães e Gatos”
Entrevistava uma “UPP” na favela da zona Sul quando ela foi chamada pelo rádio. O
policial ao outro lado da linha perguntava em que região da favela ela se encontrava, porque
ele havia recebido uma denúncia de que havia traficantes armados em certa região do morro.
Ela explicou que estava concedendo uma entrevista a mim, mas entrou em contato pelo rádio
com os policiais do seu grupamento para que eles fossem a região averiguar a informação.
Assim o fez. Um tempo depois, ainda em entrevista, a policial recebeu um rádio de um
companheiro de grupamento, que a informou que havia sido uma denúncia falsa. Ela não
parecia surpresa. Segunda a “UPP”, denúncias falsas a respeito de porte de armas eram
bastante comuns, pois funcionava como uma estratégia para desloca-los pelo espaço das
favelas.
Tráfico e “UPPs”, ambos com algum domínio sob aquele território, precisam aprender
a conviver, sem “manchar” a fama da favela “pacificada”. A lógica é evitar conflitos diretos,
que terminem em tiros e mortes. Conforme mostrou Grillo (2013, p. 206), a relação entre
policiais e traficantes em período anterior às UPPs se dava com base em descontinuidades
287
“militares” entre morro e “asfalto”: “quando a polícia entra na favela há tiroteio. Quando
bandidos armados são avistados no asfalto pela polícia, também”.
Aqui também as armas exercem um papel importante na dinâmica entre “UPPs” e
traficantes, e o encontro de armas também culmina em tiros. Entretanto, diferentemente do
período retratado por Grillo (2013), aqui “UPPs” e traficantes convivem constantemente em
um mesmo espaço geográfico e, portanto, precisam adotar estratégias para evitar o encontro
de armas. Os traficantes escondem as suas armas e fogem dos “UPPs” pelo espaço, das mais
diversas formas, criando uma dinâmica de circulação retratada por moradores e policiais pelo
uso da expressão “igual a cão e gato”: “Então, mas é uma coisa bem escondida, tá igual cão e
gato, fica tipo num labirinto, né!? Correndo um atrás do outro” (Morador 13, favela da zona
Sul). A maioria dos policiais, sob ordem do comandante, evitam circular por espaços, em
geral em regiões altas dos morros, onde sabem que há maior chance de os traficantes
“bancarem armados” – só vão a estas regiões caso ocorra alguma denúncia.
Para que não se encontrem, as armas organizam a circulação pelo espaço. Traficantes
evitam passar por onde há policiais armados. E quando sua passagem é necessária, apela-se
para os telefones como suporte às armas na organização da circulação pelo espaço: traficantes
ou aqueles que os suportam fazem ligações para a base da UPP e realizam uma denúncia
“falsa”, informando que em uma determinada localidade da favela existem traficantes
expondo suas armas. Este tipo de denúncia não pode ser ignorado pelos policiais, e nestes
casos as armas dos “bandidos” também possuem a capacidade de atrair uma determinada
guarnição de policiais ao seu encontro. Tendo aquele grupamento sido deslocado, os
traficantes podem, agora, circular por aquele espaço.
As armas também são utilizadas como símbolo de poder nos espaços das favelas. O
fato de que hoje podemos circular pela favela sem nos depararmos com armas de traficantes –
embora passemos por muitas e muitas armas de “UPPs” – é evocado como o principal
símbolo de poder das UPPs e de uma consequente perda de poder do tráfico. Os moradores
passam a utilizar a expressão “bondes”, tradicionalmente usada para designar um grupo de
traficantes fortemente armados que desfilam se exibindo pela comunidade, para também se
referir aos grupamentos policiais, em geral do GTPP (de livre circulação pela favela e que
sempre portam fuzis) - também em geral àqueles mais agressivos e temidos pelos moradores:
“o bonde do SD X” refere-se à guarnição policial liderada, de maneira informal, pelo Soldado
X, provavelmente o mais “truculento”. Os moradores aprendiam as escalas, e sabiam os dias
em que o temido “bonde” estava “tirando serviço”. Nestas ocasiões, era preciso ser mais
288
cuidadoso. Alguns policiais me contavam orgulhosos que suas guarnições eram chamadas de
“bondes”, o que para eles significava que eles faziam um “trabalho sério”. O que entendiam
por “trabalho sério” era o fato de que sua guarnição tendia a desobedecer às ordens do
comandante e circular por regiões do morro onde era sabido ter uma maior concentração de
traficantes armados, e por isso eram estas as guarnições com mais frequência envolvidas em
confrontos. Conforme explicou um policial:
Mas aí, aí tu recebe uma ordem desse jeito aqui: “Você vai rodar, mas você não pode ir lá”.
“Ah, não pode ir lá por que?”. “Não pode ir lá porque lá é perigoso”. Mas é lá que eu tenho
que ir. É lá que é perigoso? Então é lá que eu tenho que ir. Hoje tá perigoso porque eles tão
com uma pistola lá, ontem eu passei lá eu tomei tiro, tavam com uma pistola lá. Então tem
lá. Daqui a um mês tu vai lá aí tu não consegue nem entrar porque não tem só uma pistola,
tem 10 fuzis, 15 fuzis. Aí tu tem que fazer o que? (Representante da UPP 20, Favela da
zona Norte)
A ostentação de armas apresenta-se, assim, como um desafio ao poder da UPP. O
traficante que “banca armado” é considerado abusado, e se põe a mostrar que o tráfico ainda
tem poder. Quanto maior a arma exposta pelo traficante, e quanto mais baixa for a região do
morro em que ele a expõe, maior o desafio ao poder dos policiais. No fim de 2013, com uma
troca de comandos em várias UPPs, os moradores começaram a relatar, com certo temor, um
ganho de poder do tráfico em ambas as favelas, e o principal argumento usado para sustentar
tal afirmação eram os relatos cada vez mais frequentes de bandidos “bancando armados” pelas
ruas da favela, e eu mesma cheguei a presenciar um “bandido” com uma pistola em região
intermediária do morro, o que me passou uma sensação de enfraquecimento da UPP.
A ostentação de armas que desafia a polícia também a atrai, deslocando policiais em
sua direção. Quando é realizada uma denúncia “verdadeira”, e os “UPPs” efetivamente se
deparam com um bandido “bancando armado” o resultado não é outro senão a troca de tiros, e
a disputa de poderes materializa-se agora de forma ainda mais perigosa: “Quando algum
bandido, ou polícia, se encontram ai, tem que ser, tiro pra polícia se esconder e eles
conseguirem correr” (Morador 10, Favela da zona Sul). Esta foi a causa do confronto narrado
no início deste capítulo. Como decorrência de uma denúncia, policiais se depararam com
bandidos armados no alto de um dos morros, e assim iniciou-se uma intensa troca de tiros
naquela madrugada, resultando na morte de um morador.
Mas se a exposição de armas por “bandidos” no morro põe em xeque o poder das
UPPs internamente, o desfecho deste desafio que culmina em troca de tiros, põe em xeque o
poder das UPPs perante toda a sociedade, porque, com grande frequência, vão parar nas
páginas dos jornais, em uma daquelas célebres manchetes “tiroteios na favela impõe medo aos
289
moradores da zona Sul”. Quando os tiros terminam em morte, como na situação que
vivenciei, é difícil escapar da mídia que logo se coloca ao pé do morro, e divulga a notícia em
tom de questionamento à eficácia do programa das UPPs. Representantes da UPP reconhecem
a relação estabelecida entre tiros e falência do programa: “Pragmaticamente, o ato de um tiro,
e como a mídia ainda vai potencializar isso, se transforma em ataque, todo o projeto está sob
dúvida, sob suspeita” (Representante da UPP 21, Geral).
As transformações materiais sofridas na favela “pacificada” que levam a uma
coexistência de armas, são, por um lado, organizadoras, porque se tem agora a quem recorrer
quando se depara com um traficante armado: as denúncias às UPPs podem ser uma saída.
Mas, movidos por esse denúncia, e atraído pelas armas dos “bandidos”, os UPPs podem
acabar atirando, e colando em xeque a nova forma de “organização” da favela “pacificada”.
Além disso, a coexistência de armas produz uma dinâmica de “cão e gato” entre “UPPs” e
traficantes, complexificando a dinâmica das favelas.
As ambiguidades decorrentes dos choques entre o campo burocrático do Estado e o
campo das favelas são sintetizadas na Figura 19 a seguir:
290
Ambiguidades
Ambiguidades de Leis nas favelas “pacificadas”
(Des)organização do espaço de favelas com auxílio da matéria
- Permanência de “leis do tráfico”
- Permanência dos “tribunais do tráfico” e dos “desenrolos”
- Imposição de “novas leis” pela UPP.
- Rompimento com vínculos afetivos e fronteiras espaciais por meio de sedes físicas, obras e remoções
- Fim dos tiros levando a entrada de “estranhos”
- Fim da ostensividade de armas velando as diferenças entre trabalhadores e bandidos
- Redução do uso de uniformes e crachás dificultando a compreensão de quem é quem
- Surgimento da nova categoria de policiais: os “UPPs”
- (Des)organização a partir da coexistência de armas
Figura 19. Ambiguidades
7.3 A Maquiagem do Espaço
Comparando as favelas que subia em minhas primeiras visitas em campo àquelas que
eu subia em meus últimos meses de pesquisa, percebi como a minha noção de “favela
pacificada” foi se alterando ao longo do trabalho de campo. Não obstante a minha forte
sensação de insegurança típica de uma pesquisadora iniciante, que se põe a fazer observação
em um grupo desconhecido pela primeira vez, a favela que eu subia no início da pesquisa era,
para mim, uma favela sem tiros, sem armas e sem drogas, por onde eu poderia circular com
liberdade assim que eu me familiarizasse com seus tortuosos caminhos. Além disso, era uma
favela com um futuro próspero pela frente, que acabava de vivenciar o que naquele momento
ainda era para mim “a entrada do Estado” em seu território, e por isso era uma favela cheia de
esperança, com tudo para mudar para muito melhor. A favela que eu subi, com tanta tristeza e
pesar, pela última vez em abril de 2014, era, para mim, bem diferente. Era uma favela
291
insegurança, com drogas e armas de bandidos, em geral, escondidas, e com muitas armas de
“UPPs”. Era uma favela que também podia ter tiros, resultantes do encontro de armas de
bandidos e de “UPPs”, mas os quais tentava-se velar, evitando-se falar neles, para que não
fossem parar na mídia. A circulação pelo seu espaço tinha que ser cuidadosa, porque além das
regiões que claramente precisavam ser evitadas, não se sabia muito bem onde se deveria
evitar transitar. Era uma favela extremamente mais complexa do que eu pude antecipar, com
relações conflituosas, figuras ambíguas, influências políticas e cheia de agentes do Estado,
com muita boa vontade, mas com pouco poder de ação. E com isso não quero dizer que a
favela tenha se alterado bruscamente em meus meses de pesquisa, mas que a minha
“realidade” a respeito da favela se alterou. Nestes últimos momentos eu já entendia bem a que
“fantasia” a moradora/representante do CRAS estava se referindo naquela reunião da UPP. A
“favela pacificada” para quem está de “fora”, para quem não participa de seu cotidiano (eu,
quando subia o morro pela primeira vez), é bem diferente da “favela pacificada” para quem a
enxerga “de dentro”, para quem vive como seus habitantes o cotidiano da favela (eu, ao final
de minha pesquisa, quando já havia conseguido acessar melhor a visão dos habitantes das
favelas).
Para além de uma ambiguidade dos processos de organizar dos diversos agentes do
Estado - que ao mesmo tempo que organizavam, desorganizavam -, desencadeada pelo
choque de campos que eu encontrei nas favelas –, também observei, o que foi corroborado
com relatos de moradores, que as descontinuidades e dispersões que marcam os processos de
organizar destes agentes, conforme mostrado no capítulo anterior, não permitem que as
favelas sejam efetivamente retiradas de sua condição de pobreza, tendo suas necessidades
básicas plenamente satisfeitas. O que se tem, isto sim, é o que os moradores denominam de
uma “administração da pobreza”, por meio da qual os agentes do Estado os mantem em uma
condição de “pobreza”, mas uma “pobreza organizada”, diante da qual seja possível viver ou
sobreviver: “Não existe a transformação, entende. O que existe é, é, não é questão de ser
pelego, não, é a sustentabilidade da miséria” (Morador 15, Favela da zona Sul). A respeito
desta noção de “administração da pobreza”, um morador explica:
Porque você entra com a polícia para administrar, administrar a pobreza, sabe? Para
administrar a falta de formação, para entrar na casa das pessoas e separar briga de marido e
mulher, para dar um corretivo num menino que não tem oportunidade (Morador 27, favela
da zona Norte)
Talvez o exemplo mais emblemático disso que os moradores chamam de
administração da pobreza seja a questão da educação. Existem, em ambas as favelas, uma
292
grande oferta de cursos, e em geral os agentes reclamam de uma falta de interesse dos
moradores em relação a eles. Acontece que estes cursos, oferecidos pelos mais diversos
agentes do Estado, proporcionam aos moradores a oportunidade de se capacitarem em
profissões que os ajudariam a sobreviver, mas os proporcionariam baixa renda, como cursos
de garçom, ajudante de cozinha, manicure ou costura, enquanto os moradores demandam
cursos como o de petróleo e gás. Uma representante do PAC, um destes agentes que oferecem
este tipo de curso, explicou como não obtêm resultados muito positivos com esta forma de
capacitação:
Poucos moradores foram aproveitados. Não porque não foram capacitados, mas porque
houve falta de interesse, entendeu. Não se interessaram. Quando era oferecido o curso, o
emprego, desculpa, a pessoa dizia que não podia, ou dizia que não tinha feito o curso para
conseguir emprego era mais para consumo próprio, enfim, vinha assim com alguma... ou
que não podia trabalhar naquele período, até eu vi algumas situações relacionadas a bar.
Não me lembro, teve de garçom, de pizzaiolo, de salgados, enfim, acho que tinha algum
específico para bar. Não sei se auxiliar de cozinha, alguma coisa assim (Representante do
PAC 2, Favela da zona Sul).
Os moradores, por sua vez, contra-argumentam: “Veio com negócio de pizzaiolo,
ajudante de restaurante, auxiliar de serviços gerais. Não, a gente não quer isso não. A gente
quer coisa maior!” (Morador 15, Favela da zona Sul). É claro que tais profissões são dignas
como todos as outras, mas seria muito mais importante, para que os moradores nem mesmo
precisassem buscar auxílio do governo neste tipo de curso profissionalizante, que os recursos
fossem investidos em educação básica de qualidade. Na favela da zona Sul, o CIEP que existe
dentro da comunidade foi classificado com o pior Ideb do Rio de Janeiro em anos anteriores.
Na favela da zona Norte não há escolas.
Além do investimento deficiente em educação, a área da saúde também não teve
grandes avanços. Na favela da zona Norte, os moradores lutam por uma Clínica da Família,
que foi prometida há anos, mas até hoje não saiu do papel. Precisam se deslocar a hospitais
mais distantes, em casos de emergência, e especialmente os idosos da comunidade, que têm
dificuldades de locomoção, sofrem com a falta de opções. Já a favela da zona Sul, conta com
uma Clínica da Família, que atende às duas comunidades. Entretanto, os moradores não
parecem muito satisfeitos com ela. Embora tenham uma boa relação com os médicos e gostem
do atendimento local, com o baixo efetivo de funcionários, a Clínica não dá conta de atender a
todos os problemas de saúde que aparecem na comunidade, e em muitos casos encaminham
os pacientes para outros hospitais. Conforme desabafou uma moradora:
293
Que que adianta, até as cinco horas aquele posto funciona. Até as cinco. Mas se chegar
alguém lá, num estado grave, que eles não podem socorrer, não tem uma ambulância. (...)
Então ali é só para atendimento assim, básico, uma gripezinha, uma injeçãozinha, tudo
inha, porque mesmo um atendimento que precisa, necessário, a pessoa tem uma parada
cardíaca, vai morrer porque ali não tem estrutura para isso (Morador 18, Favela da zona
Sul).
Os programas de urbanização e infraestrutura, como o PAC, na favela da zona Sul, ou
o Cimento Social, na favela da zona Norte, sofrem críticas constantes dos moradores que
questionam a qualidade e importância das obras. Os apartamentos oferecidos pelo PAC,
segundo os moradores, são de baixa qualidade: as infiltrações são constantes (como eu mesma
pude ver em visita a moradores dos prédios do PAC); os apartamentos são pequenos
comparado ao tamanho dos barracos que, em geral, possuíam mais de um andar; não é
possível ter instalação para ar condicionado; e os vidros das janelas são tão finos, que um
morador brincou que instruiu ao seu neto a falar baixo dentro do imóvel, porque um tom de
voz mais alto seria capaz de quebrar as janelas. Questionam, ainda, o fato de priorizarem a
abertura de vias carroçáveis, em detrimento da construção de escolas e creches, por exemplo.
Reclamam que, para o PAC, abrir via é sinônimo de progresso. O Cimento Social é descrito
pelos moradores como um programa que “dá uma pintura” em casas, prioritariamente as mais
visíveis. Os moradores reclamam que as obras feitas nas favelas possuem, em geral, um efeito
paliativo e não estruturais como deveriam: “O que precisa ser feito [na favela da zona Norte]
são obras estruturais, são obras que criem uma nova galeria de esgoto, que crie a galeria de
águas pluviais, que crie um novo abastecimento de água... Quer dizer, são obras estruturais,
não são obras paliativas” (Morador 12, Favela da zona Norte).
Esta noção de “administração da pobreza”, que parece se refletir nas mais diversas
áreas, é reconhecida por alguns agentes do Estado, que entendem que por mais que se
esforcem, suas ações não dão conta de levar grandes transformações para as favelas:
Essas demandas que são mais direcionadas e estão um pouco nesse mito, de tentar na
articulação ‘ah, não-sei-o-quê, da água, do lixo, não-sei-o-quê, não-sei-o-quê’, eu acho que
a gente de maneira geral não consegue atender. A gente pode tentar atender assim, em nível
local e tipo ‘ah, vamos tentar fazer uma melhoriazinha aqui’ (...). Uma melhoria local, uma
coisa bem pontual, você consegue. Mas promover uma transformação, não. Não consegue
(Representante do Territórios da Paz 3, Favela da zona Norte).
A ideia de “administração da pobreza” me ajuda a suportar o meu argumento de que
há uma discrepância entre a “realidade” da favela divulgada e assumida por aqueles que lhe
são externos, e aquela vivenciada cotidianamente dentro das favelas. Se por um lado acredita-
294
se em uma favela segura, rumo ao desenvolvimento e ao progresso, consequência da inédita
“entrada do Estado”, por outro tem-se a visão de que a vivência da favela ainda é produtora de
muita insegurança, e esta “entrada do Estado”, que nesta outra visão é, na verdade, apenas
uma intensificação de ações do Estado, leva apenas a mudanças paliativas, típicas de uma
“administração da pobreza”.
Zaluar (2010) observou em sua pesquisa que os moradores possuem uma consciência
de sua condição de oprimidos, explorados, esquecidos, quando afirmavam que “é tudo
ilusão”, referindo-se tanto ao carnaval e às promessas dos políticos, quanto aos serviços
oferecidos pelas religiões populares. De forma semelhante, em minha pesquisa os moradores
apresentaram uma consciência de sua realidade, e não pareciam se enganar com a
“administração da pobreza” que o Estado os oferecia para mantê-los satisfeitos. De maneira
similar, aqui usavam a expressão “maquiagem do espaço”, ou alternativamente “mascarar”, “é
só fachada”, “fantasia”, dentre outras: “Pra mim, é só, tipo, uma maquiagem, pra mim isso é
uma maquiagem” (Morador 13, favela da zona Sul). Usam a metáfora da maquiagem para
ilustrar o fato de que privilegiam-se ações superficiais capazes de transmitir uma boa imagem
externamente, ainda que esta imagem não corresponda à realidade interna da favela. Mais do
que uma maquiagem, é uma maquiagem malfeita que, como vimos, um único tiro é capaz de
revelar suas imperfeições: “eu digo maquiagem, mas maquiagem malfeita, que quando o
gesso cai, é sabe quando a gente põe aquela maquiagem no rosto, começa, né? É assim”
(Morador 18, favela da zona Sul)
As UPPs, talvez por serem o principal símbolo do Estado na favela e responsável pela
inauguração de uma nova fase na relação do Estado com a favela, eram os principais alvos
deste tipo de crítica. As expressões que remetiam à “maquiagem do espaço” para caracterizar
especificamente o trabalho das UPPs foi usada de forma quase unânime pelos moradores, que
às vezes a substituíam por expressões que revelavam um mesmo sentido: a ideia de que os
significados que as UPPs transmitem para uma população externa às favelas não corresponde
à realidade vivenciada pelos moradores em seu cotidiano. Nestes casos, as expressões
variavam para “pacificação de faz-de-contas”, “pacificação para inglês ver”, “UPP como uma
fantasia”, “pacificação entre aspas”, “UPP como um cosmético”, “UPP como um programa
pra gringo ver”. Um morador assim explicou esta discrepância de visões que este conjunto de
expressões revela:
Outro estranho, já vai ter o outro olhar. Porque o outro estranho está pensando que está tudo
bem, entende. Você está com esse pensamento agora porque você está vivendo aqui dentro,
você está, mas o outro estranho, entende, está, é um outro olhar. Porque o Governo já
295
passou para ele que aquilo foi uma coisa isolada. Que foi um confronto, um trabalho da
UPP, que de repente confrontou com marginais armados e foi troca de tiro. Para a
sociedade passou isso, entendeu, que aqui continua tranquilo. Então quem vem de fora, não
sabe nada e continua a mesma tranquilidade (Morador 15, favela da zona Sul).
O sentido da “Maquiagem do espaço”, compartilhado entre os moradores, e às vezes
diretamente a própria expressão, também apareciam na fala dos mais diversos agentes do
Estado, que reconheciam que o trabalho em uma favela “pacificada” era bem distante do que
acreditavam os olhares externos – era muito mais complexo. Até mesmo os policiais da UPP,
principais “acusados” de contribuírem para a produção da “maquiagem”, reconheciam este
efeito no espaço e se expressavam, com muita frequência, por meio de um vocabulário bem
semelhante ao dos moradores:
os olhos de quem não está aqui na comunidade e mesmo dos policiais lá fora: “é uma
comunidade pacificada”, bonitinho. Mas aqui dentro tem esses confrontos, ainda tem o
tráfico, ainda tem tudo isso. O que as pessoas estão recebendo é a mensagem de que a
comunidade está pacificada. Mas, na verdade, nós que estamos aqui dentro sabemos que
isso aqui é um barril de pólvora. (...) Então, a maquiagem é essa, continua tendo e a gente
continua aqui brigando lutando realmente pela pacificação para evitar que os moradores
convivam com essa situação de arma e de venda de drogas, de roubo, e corre pra cá, enfim,
e lá fora para a população a parte, não acontece nada disso (Representante da UPP 14,
Favela da zona Sul).
O uso de metáforas, denominadas de tropos na análise retórica, tem a propriedade de
transferir significados de um objeto a outro (BAUER e GASKELL, 2012), conforme
discutido no método de pesquisa. A “maquiagem” e as metáforas equivalentes retratadas aqui
transferem à favela “pacificada” a capacidade de produção de uma estética falsa, e quando
associada ao adjetivo “malfeita” revela que é também fácil de ser desvelada. Por baixo da
“maquiagem”, na visão dos moradores, a favela “pacificada” não parece exibir a beleza que
sua “maquiagem” transmite aos olhares externos.
Conforme apontado nos capítulos anteriores, com a valorização do capital espacial no
campo burocrático do Estado em ação nas favelas, agentes do campo tendem a priorizar a
(des)materialização dos processos de organizar, e muitas mudanças na matéria do espaço das
favelas foram realizadas desde o início do “processo de pacificação”. Mas a matéria também
possui uma dimensão simbólica, e emite significados (YANOW, 2010). Para Yanow (2010),
também é preciso se atentar para o significado que as coisas emitem e reconhecer que o
espaço é um ator significante na criação e comunicação de significado. Ou, conforme lembrou
Santos (2009b, p. 59), “as coisas nascem já prenhes de simbolismos, de representatividade, de
uma intencionalidade destinados a impor a ideia de um conteúdo e de um valor que, em
296
realidade, elas não tem. Seu significado é deformado pela sua aparência”. Assim, Santos
(2009b) nos lembra que os objetos espaciais se apresentam a nós de forma a nos enganar.
É nesse sentido que a metáfora da “maquiagem do espaço” com frequência evocada
pelos moradores com vistas a retratar a discrepância entre as “realidades” das favelas, interna
e externamente, são aqui reinterpretadas teoricamente como um conjunto de significados
emitidos por elementos materiais que não condiz com a realidade daquele espaço na
perspectiva de seus habitantes ou daqueles que vivem o seu cotidiano. Assim, embora a
presença de diversos agentes do Estado na favela e de várias obras simbolize uma ideia de
organização, progresso e desenvolvimento do espaço, na visão dos moradores tem-se também
uma desorganização e uma “administração da pobreza”; e embora a ausência de armas e tiros
e a presença de policiais simbolize um espaço seguro e organizado, na visão dos moradores
também está sendo produzida uma desorganização que gera insegurança. Ou, como afirmaram
os próprios policiais, a favela “pacificada” é, na verdade, “um barril de pólvoras”.
7.4 Conclusão
Neste capítulo me propus a responder a seguinte questão: qual é a relação entre os
processos de organizar dos agentes do campo burocrático em ação nas favelas e o espaço
social? Para tal, pautei-me nos conceitos de espaço social e de materialidade social, a partir da
observação de que, nas favelas, a matéria apresenta importante função organizadora. A
capacidade de ação da matéria é fundamental para a organização da vida na favela. Nesse
sentido, social e material estão imbricados.
Compreendendo o “processo de pacificação” como um choque entre o campo
burocrático do Estado e o campo das favelas, no qual o primeiro vem tentar impor suas leis ao
segundo, e retomar o monopólio do uso legítimo da violência dentro deste espaço geográfico,
mostrei como campos com dinâmicas diferentes possuem padrões de processos de organizar
também bastante distintos. Processos de organizar de agentes do Estado e da favela chocam-
se no espaço e expressam-se em hibridismos e ambiguidades.
Demonstrei, ainda, como os agentes do Estado, partindo da premissa de que as favelas
eram espaços desorganizados, tentam impor a sua forma de organização e, ao mesmo tempo,
as desorganizam. O imbricamento entre o campo e seus processos de organizar faz com que
os agentes do Estado, que procuram acumular o capital espacial, busquem (des)materializar os
seus processos de organizar e com isso transformem, de forma prioritária, a matéria do
espaço. Mas a matéria possui capacidade de ação e, especialmente nas favelas, importante
função organizadora. Foi nesse sentido que falei aqui em uma (des)organização a partir da
297
matéria: se por um lado as mudanças materiais organizam o espaço, aproximando-os daquilo
que o Estado entende por organização, por outro, também o desorganizam, pois rompem com
a forma de organização estabelecida nas favelas em períodos anteriores.
A ambiguidade por trás da organização do espaço leva ao que os moradores intitulam
de uma “maquiagem do espaço”. A matéria emite significados (Yanow, 2010), e as
transformações materiais no espaço social de favelas, trazidas pelos agentes do campo
burocrático do Estado, emitem uma ideia de organização, segurança, desenvolvimento e
progresso, que não corresponde à realidade vivenciada pelos habitantes de favelas. Para estes,
a favela “pacificada” corresponde a um espaço que é também produtor de insegurança,
desorganizado em muitos aspectos, ao qual o Estado não tem conseguido levar ao
desenvolvimento ou ao progresso, mas, isto sim, a uma “administração da pobreza”.
298
8 CONCLUSÃO: SOBRE A RELAÇÃO ENTRE CAMPOS, PROCESSOS DE ORGANIZAR E ESPAÇO SOCIAL
Tive por objetivo, nesta tese, analisar a relação entre o campo burocrático do Estado
em ação e o espaço social de favelas, no contexto da “pacificação”. Para atender ao meu
objetivo, busquei manter-me fiel aos meus dados, reunindo-os em alguns argumentos que
juntos pudessem compor uma linha argumentativa única, capaz de responder às questões de
pesquisa.
Comecei por mostrar como o “Estado”, que me propus a analisar nas favelas,
aproximava-se da noção de campo, conforme proposta por Bourdieu, e foi neste conceito que
me pautei ao longo de toda a tese. Além disso, também busquei mostrar, desde o início, que
embora estivesse tratando do campo burocrático do Estado, este não poderia ser abordado
livre da influência do campo político, e o primeiro passou a ser pensado também a partir de
sua interdependência com o segundo. Mais ainda, busquei discutir como as próprias favelas
podem ser aproximadas da noção de campo, tendo em vista que estas também parecem
possuir uma lógica própria, disputas e cooperações, e diferentes posições entre os agentes.
Em seguida, ao analisar como os agentes do campo burocrático do Estado se fazem
presentes nos espaços sociais de favelas, apontei para uma disputa entre lógicas institucionais
divergentes dentro do campo, como um elemento explicativo importante da competição entre
agentes e das dificuldades de cooperação. Indo ao encontro de Bourdieu (2014), reforcei a
forma como os agentes buscam galgar posições no campo, para que possam falar em nome do
bem comum e ditar a lógica predominante. Para tal, recorrem às diferentes espécies de capital.
Como forma de melhor me aproximar do posicionamento dos agentes no campo, analisei a
concentração de capitais pelos agentes, e busquei demonstrar uma aparente polaridade entre
as espécies de capital: por um lado, tem-se uma retroalimentação entre capital social e
informacional, acessados com mais facilidades por agentes como UPP Social, Territórios da
Paz e CRAS; por outro, tem-se um ciclo, onde capital econômico, capital espacial e capital
simbólico, convertem-se uns nos outros nesta ordem, acessados, com maior facilidade, por
agentes como UPP e PAC. Aqui destaca-se o capital espacial, valorizado no campo
burocrático do Estado em ação nas favelas, por sua capacidade de ser convertido em capital
simbólico, e como uma espécie de capital própria do campo burocrático do Estado no
contexto descrito.
Voltei-me, então, para a análise da relação entre o campo burocrático do Estado em
ação nas favelas e os processos de organizar desempenhados pelos agentes do campo.
299
Busquei mostrar como a lógica burocrática do campo e a influência do campo político,
quando se chocam com a lógica própria da favela - e em um novo território no qual os agentes
do Estado precisam aprender a criar suas rotinas -, levam a processos de organizar lentos e
descontínuos. Ainda, como agentes disputam em torno de lógicas institucionais distintas, seus
processos de organizar tornam-se dispersos e sobrepostos, porque estes tem dificuldades em
estabelecer conexões entre suas redes de ações, mesmo quando elas estão direcionadas para
um mesmo objetivo. O capital espacial, valorizado no campo burocrático do Estado em ação
nas favelas, também influencia a criação de padrões nos processos de organizar, tendo em
vista que os agentes do campo buscam (des)materializar os seus processos de organizar,
apresentando resultados concretos e visíveis em suas ações.
Por meio desta análise inicial aponto para uma estreita relação entre o campo
burocrático do Estado e os processos de organizar. Sustento que há entre eles uma relação de
imbricamento, em que ambos se influenciam mutuamente. Se por um lado as lógicas do
campo impõem padrões aos processos de organizar, por outro, os processos de organizar
também auxiliam em uma concentração de capitais, possibilitando a manutenção ou alteração
da ordem do campo.
Por fim, voltei o meu olhar para o espaço social de favelas, e assumindo as favelas
também enquanto campos, busquei demonstrar como a produção do espaço social se dá a
partir de um choque entre campos com lógicas distintas. Quando o campo burocrático do
Estado e o campo das favelas se chocam, o espaço social é produzido a partir de hibridismos e
ambiguidades, que aparecem nas favelas nas formas de hibridismos espaciais, ambiguidades
entre regras do Estado e do tráfico, e ambiguidades advindas da própria noção de organizar, a
qual busquei descontruir propondo o conceito de processos de (des)organizar. Os agentes do
Estado, quando buscam o acúmulo do capital espacial, por meio da (des)materialização de
seus processos de organizar, também desorganizam a favela na perspectiva de seus
moradores, diante da capacidade de organização da matéria que assume papel central na vida
da favela.
Seguindo esta linha argumentativa, cheguei ao conceito de maquiagem do espaço,
expressão utilizada pelos próprios moradores para se referir à realidade das favelas
“pacificadas”. A metáfora da maquiagem serve para transferir à realidade da favela uma
propriedade dissimuladora, a capacidade de disfarçar e esconder uma realidade, que em geral
é mais “feia” do que a “beleza” que a maquiagem ajuda a produzir. A favela “maquiada”
apoia-se nas transformações materiais trazidas pelos agentes do Estado para se “embelezar”.
300
Ausência de tiros, de armas e de drogas, presença constante de policiais, obras de
infraestrutura, ajudam a emitir um sentido, por meio da dimensão simbólica da matéria, de
que as favelas “pacificadas” são seguras e estão progredindo, desenvolvendo-se. Por baixo da
maquiagem, camada que busquei acessar por meio de minha pesquisa de campo, tem-se uma
realidade mais complexa, na qual segurança e insegurança se mesclam, e tem-se, isto sim,
uma “administração da pobreza”.
Busquei operacionalizar, portanto, a relação entre processos de organizar e espaços
sociais, atendendo à demanda na literatura de estudos organizacionais para um
(re)materialização das organizações (DALE e BURRELL, 2008). Conforme demonstrado, a
relação entre organizações e espaço social é melhor apreendida por meio de uma lógica
processual, segundo a qual entende-se ambos enquanto processos, imbricados em uma mútua
relação de produção contínua. Mais ainda, evidenciou-se que o espaço social é um produto
político, é produzido e reproduzido a partir de relações de poder. A relação entre poder e
espaço também foi aqui evocada ao se apontar para uma produção social dos espaços de
favelas a partir de um choque entre campos de poder, em meio a lógicas em disputa.
Foi um desafio estimulante e complexo encadear aquilo que analisava em argumentos
que, em sequência, se articulassem e fizessem sentido de forma a responder ao meu problema
de pesquisa. Evidente que a experiência que vivi nas favelas foi de uma complexidade muito
maior, e que a partir de meus dados cheguei a conclusões que não foram abordadas nesta
pesquisa, e que talvez nem sequer fossem de interesse acadêmico, mas que, sem dúvida,
contribuíram para diversas esferas da minha vida e fizeram de mim uma outra pessoa e uma
outra acadêmica, espero que melhor. A forte “cultura” policial, as linguagens próprias do
Estado e das favelas, as mudanças no mercado imobiliário da favela após a UPP, a ameaça de
gentrificação nas favelas, são exemplos de alguns dos temas que transpassam a minha
pesquisa, que tiveram destaque em meus dados, mas que não são abordados em profundidade,
por falta de tempo e espaço, e por minha insistência em tentar manter uma linha
argumentativa clara, na qual os diversos temas se articulem.
Uma outra limitação desta pesquisa diz respeito à minha incapacidade de olhar o
campo burocrático do Estado como um todo, ou de buscar traçar os seus limites. Um conceito
ideal como o de campo requer uma análise que o circunscreva a um recorte empírico, e foi
isto o que busquei fazer ao voltar o meu olhar, de forma mais específica, para o campo
burocrático do Estado em ação nas favelas, limitando as conclusões de minha pesquisa a este
contexto específico.
301
Entendo também que minha pesquisa diz respeito a uma momento histórico muito
particular na cidade do Rio de Janeiro, e é, portanto, uma pesquisa circunscrita temporalmente
e geograficamente. Entretanto, considero que o contexto histórico e o espaço geográfico aos
quais minha investigação se circunscreve são de tamanha relevância para a cidade, e possuem
implicações de tão grande valor - especialmente para os que habitam as favelas -, que as
análises empíricas deste cenário se fazem não só necessárias como urgentes. Tais análises
podem, ainda, contribuir para contextos semelhantes em outras cidades do País ou do mundo,
algumas das quais buscam até mesmo “copiar” o modelo do programa das UPPs. Por diversas
vezes ouvi em congressos nacionais e internacionais relatos de pessoas que identificaram um
cenário muito semelhante em sua cidade de origem, apontando-me para uma outra relevância
do trabalho para a qual eu mesma ainda não estava tão atenta.
É preciso reconhecer também que minha pesquisa seria outra se realizada em mesmo
contexto e momento histórico por outro pesquisador. Reconheço, especialmente, a minha
tendência, provavelmente bem perceptível, de me posicionar ao lado dos moradores de
favelas, e de buscar, talvez com mais afinco, acessar a realidade para estes interlocutores
específicos. Para além dos meus ideais críticos e voltados para transformação social, que me
levam a buscar sempre uma posição em prol das “minorias”, a minha sensação de
estranhamento aguçava-se diante destes interlocutores tão próximos, mas tão distantes, e a
minha curiosidade de pesquisadora também me “puxava” nesta direção. Entretanto, também é
preciso ressaltar que busquei me proteger desta tendência enviesada e contei com ajuda da
minha orientadora (muito ciente da minha condição), que me chamava atenção,
incessantemente, do primeiro ao último dia de pesquisa, para que eu buscasse olhar também
pela perspectiva dos representantes do Estado.
Em meio a tantas temáticas que ficaram em aberto, a tantos contextos semelhantes ao
redor do mundo, e a tantos possíveis olhares diferentes do meu, reconheço que minha
pesquisa tem ainda muitos pontos a serem investigados futuramente. O uso do conceito de
lógicas institucionais como forma de complementar a perspectiva teórica de Bourdieu pode
ser explorado mais a fundo, tendo em vista que a literatura sobre lógicas institucionais está
longe de se esgotar nos aspectos que foram utilizados nesta pesquisa. A própria natureza do
capital espacial e sua aplicabilidade a outros campos ou ao próprio campo burocrático do
Estado em outros contextos merece ser tema de pesquisas futuras. A capacidade de
organização da matéria, que me saltou aos olhos no cotidiano da favela, não apenas em meu
campo, mas também em campos descritos em pesquisas passadas, constitui-se em um aspecto
302
de extrema relevância que tende a ser negligenciado. Assim como nas favelas, a matéria
(des)organiza em contextos diversos e merece atenção.
Mas as minhas conclusões não se restringem a contribuições teóricas ou a implicações
para pesquisas futuras. Concluí também sobre a importância de uma pesquisa de campo
profunda para o enriquecimento da área de estudos organizacionais, que tende a se guiar
muito mais por pontos do que por uma produção de conhecimento verdadeira. Concluí que o
conhecimento necessário à formação acadêmica não se encontra apenas em livros, e que
fechar os livros pode ser muito engrandecedor para a formação de um pesquisador que, como
eu, tem uma tendência à valorizar o conhecimento teórico acima de todas as outras coisas.
Concluí que a grande pilha de livros que há entre mim e meu campo não faz de mim melhor
ou superior, faz de mim uma pessoa com um conhecimento diferente, mas que também tem
muito a aprender com outras formas de conhecimento. Concluí, por fim, que se tornar um
pesquisador requer muito mais do que inteligência ou leitura; requer vivências e experiências
no mundo “real”, revelador de tantas realidades... E foi subindo e descendo o morro,
experimentando o cotidiano nas favelas, que pude acessar as múltiplas realidades, as
ambiguidades vividas pelos meus interlocutores, as favelas por baixo de sua maquiagem, a
(des)organização das favelas.
303
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313
10 ANEXOS
Roteiro de Entrevista
Agentes do campo do Estado
Trajetória pessoal e profissional
1) Nome, Idade, Escolaridade.
2) Conte-me sobre sua carreira pessoal e profissional até chegar à sua posição atual.
3) Desde quando está nesta organização/programa? Que cargo ocupa aqui? Quais as favelas
em que já trabalhou?
4) Você já tinha algum outro contato, aproximação ou experiência de trabalho com favelas?
Isso influencia de alguma forma o seu trabalho hoje?
Atuação na Organização/Programa
1) Você saberia explicar como se deu o surgimento da Organização/Programa?
2) Qual é o papel da Organização/Programa na favela? Isso varia de acordo com a favela?
3) Você saberia apontar pontos positivos e negativos da Organização/Programa?
4) Na sua visão, quais são os papéis que você precisa desempenhar enquanto um funcionário
desta Organização/Programa?
5) Você realiza alguma atividade para qual não havia sido designado anteriormente? Quais?
Como percebe isto?
6) Conte-me sobre a sua rotina de trabalho.
7) Em seu trabalho você se envolve em alguma atividade de planejamento? Quais?
8) Aquilo que foi planejado corresponde ao que está sendo executado? Quais são os pontos
que precisaram ser readaptados no processo de execução?
9) Quais são as principais normas que regem o trabalho de vocês?
10) Como se dá a comunicação dos moradores com a Organização/Programa? Existe algum
canal de comunicação institucional ou uma ouvidoria dos moradores em relação à atuação da
Organização/Programa?
11) Qual é o efetivo na comunidade onde atua (quantitativo de pessoas e distribuição por
turno de trabalho)?
12) Quais são os equipamentos e tecnologias que permitem sua equipe trabalhar? Atendem as
necessidades da equipe?
314
13) Existe algum treinamento especial para entrar na Organização/Programa? Como acontece
e o que aprendem?
Percepções sobre as comunidades
1) Qual a sua percepção sobre as favela em geral? E sobre as favelas onde você trabalha? Essa
percepção mudou depois que você começou a trabalhar em favelas?
2) Em sua percepção, o que mudou no dia-a-dia da comunidade a partir da entrada da
Organização/Programa?
3) Como é a sua relação com a comunidade e como ela está se construindo?
4) Existem conflitos com os moradores e porque? Quais os conflitos mais frequentes?
Como resolvem os conflitos com os moradores caso aconteçam?
5) Existem aproximações e demonstrações de apoio (sinergias) e porque?
6) Como se dá a relação com os moradores do entorno próximo as comunidades? Existem
conflitos e aproximações?
7) Em sua opinião, quais são as facilidades e dificuldades no território onde atua?
Mudanças na materialidade
1) Vocês têm mais alguma coisa em termos de estrutura física aqui dentro?
2) Na sua visão, como o trabalho desempenhado pela Organização/Programa afeta as favelas
(em termos físicos, sociais, culturais, econômicos,...)? Que transformações ele traz?
3) Que outros representantes do Estado você vê atuando dentro das favelas? E como o
trabalho desempenhado por outros gestores representantes do Estado afeta as favelas?
Relação com outros agentes
1) A Organização/Programa estabelece parcerias com organizações na comunidade para
facilitar a realização do seu trabalho? (Ex: associação de moradores, ONGs locais, fóruns e
etc) E fora da comunidade? Como se dão essas relações?
2) Existem outros projetos atrelados à Organização/Programa que atuam dentro das favelas?
Quais são e o que realizam?
Avaliação e perspectivas de futuro
1) O projeto funciona, para que? Para quem? Como se dá o atendimento de demandas da
população local?
315
2) Você acredita que as manifestações que têm ocorrido nos últimos tempos afeta o trabalho
de vocês de alguma forma?
3) Qual é a sua percepção sobre continuidade Organização/Programa? Como vê a expansão
dessa Organização/Programa e sua manutenção?
4) Como pensa que será a favela daqui a 10 anos e as intervenções estatais em favelas?
Encerramento
- Você indica alguém que poderia conversar comigo?
Roteiro de Entrevistas
Moradores das favelas
Trajetória pessoal e profissional
1) Nome, Idade, Escolaridade.
2) Conte-me sobre sua trajetória de vida.
3) Você mora nesta favela/comunidade há quantos anos? Como chegou aqui
Relação com agentes organizacionais públicos
6) Quais são os representantes do Estado/órgãos públicos que atuam nesta favela?
7) Eles sempre estiveram aqui? Quando entraram?
8) Você percebeu alguma mudança na postura do Estado?
9) Qual é o papel destes representantes do Estado/órgãos públicos aqui? (Explorar cada um
deles)
10) Você saberia apontar pontos positivos e negativos da ação destes representantes do
Estado/órgãos públicos? (Explorar cada um deles)
11) Que tipo de atividade estes representantes do Estado/órgãos públicos realizam aqui na
favela? (Explorar cada um deles)
7) Você tem contato próximo com estes representantes do Estado/órgãos públicos? Como é a
sua relação com eles? (Explorar cada um deles)
8) Como se dá a comunicação dos moradores com os representantes do Estado/órgãos
públicos? Existe algum canal de comunicação institucional ou uma ouvidoria dos moradores
em relação à atuação deles?
316
Percepções sobre as comunidades
1) Qual a sua percepção sobre a favela onde você mora?
2) Em sua percepção, o que mudou no dia-a-dia da comunidade a partir da entrada de
representantes do Estado/órgãos públicos?
3) Existem conflitos entre representantes do Estado/órgãos públicos e os moradores e porque?
Quais os conflitos mais frequentes?Como resolvem os conflitos com os moradores caso
aconteçam?
4) Existem aproximações e demonstrações de apoio (sinergias) e porque?
5) Em sua opinião, quais são as facilidades e dificuldades que estes representantes do
Estado/órgãos públicos encontram neste território?
Mudanças na materialidade
4) Na sua visão, como o trabalho desempenhado pelos representantes do Estado/órgãos
públicos afeta as favelas (em termos físicos, sociais, culturais, econômicos,...)? Que
transformações ele traz? (Explorar cada um deles)
5) O que tem mudado no dia a dia da favela/comunidade?
Relação com outros agentes
1) Você percebe algum tipo de relação entre os diferentes representantes do Estado/órgãos
públicos? Como se dão estas relações? (Explorar conflitos e apoios)
2) Estes representantes do Estado/órgãos públicos relacionam-se com outras organizações de
moradores da favela/comunidade?
Avaliação e perspectivas de futuro
1) Você acredita que a ação destes representantes do Estado/órgãos públicos nas
favelas/comunidades funcionam? Por que? Para quem? Eles atendem as demandas locais?
2) Você acredita que as manifestações que têm ocorrido nos últimos tempos afeta o trabalho
dos representantes do Estado/órgãos públicos?
3) Qual é a sua percepção sobre continuidade da ação destes representantes do Estado/órgãos
públicos? Como vê a entrada de novos representantes do Estado/órgãos públicos na
favela/comunidade?
4) Como pensa que será a favela daqui a 10 anos e as intervenções estatais em favelas?
317
Encerramento
- Você indica alguém que poderia conversar comigo?