Testemunho e “falso testemunho” na canção de Chico Buarque ... ·...

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  • XII Congresso Internacional da ABRALIC Centro, Centros tica, Esttica

    18 a 22 de julho de 2011 UFPR Curitiba, Brasil

    Testemunho e falso testemunho na cano de Chico Buarque leitura de No sonho mais, "Fado tropical", Uma cano

    desnaturada e "Brejo da Cruz"

    Doutoranda Luciana Fernandes Ucelli-Ramosi (UFES)

    Resumo:

    A Histria registra ocorrncias ligadas vida humana. H, porm, momentos, situaes e aspectos de que os registros oficiais no se imbuem. Nesses hiatos entre um e outro eventos que meream meno documental, as fices acodem necessidade de deixar para quem est longe (no tempo e no espao) impresses das vivncias que os registros (oficiais, estabelecidos) no contam. Chico Buarque de Hollanda foi, e qui ainda seja, um registrador desse tipo de Histria paralela de nosso pas. Para alm, a obra de Chico tambm marcada por histrias que no viveu e sequer testemunhou, mas que se constituem como relevantes retratos da vida brasileira. No testemunho direto e no falso testemunho, a cano de Chico Buarque lana luz sobre a experincia da dor, em diversos momentos e situaes brasileiras, legando ao receptor a chance de conhecer um aspecto ntimo da histria do Brasil que a Histria, oficial, no conta.

    Palavras-chave: Testemunho, falso testemunho, Chico Buarque de Hollanda, crtica de cano.

    1 Introduo

    A cano de Chico Buarque expressa um pouco das experincias dos indivduos que viveram a Ditadura Militar Brasileira. Essa cano mostra, para alm da coletividade povo, bloco indistinto de gente em que so citados nos respeitveis livros de Histria, os indivduos e suas angstias, dores e perdas dadas durante esse perodo. O autor se presta ao trabalho de transmitir, ora como personagem, ora como observador externo, uma impresso do que foi ser um brasileiro durante o perodo militar. Para alm, tm-se na cano de Chico registros das tentativas de reao, disfaradas, mas no tmidas, infelizes, mas, na maior parte das vezes bem humoradas, empreendidas durante a ditadura. Os jogos significativos dessa composio que aqui tomamos como relatos testemunhais ainda so capazes de nos deslocar do posto de frio apreciador da Histria ao de emptica, projetada e solidria plateia da vivncia de dor que nos precedeu.

    Doutro modo, a obra de Chico tambm marcada por testemunhos do no vivido. por essa via que aquilo que intitulamos falso testemunho porque francamente inventado, e, portanto, composto de objetos francamente estticos possibilita aproximao com o universo ntimo do malandro, com a angstia dum feminino que, como bom observador, ele pinta, com a ousadia doutro feminino que ainda no existe, mas que, como bom criador, ele inventa. Testemunho e falso testemunho, na cano de Chico Buarque, levam a conhecer melhor quem somos e para onde caminhamos, pela observao de quem fomos e de como chegamos at aqui.

    2 O testemunho na cano de Chico Buarque Diferentemente da literatura arte, a literatura de testemunho no objetiva produzir arte como

    representao, e sim como apresentao, denncia, ataque, resitncia, em face da produo de dor do ser humano contra outro ser humano. Considerando que importante nmero das obras musicais1

    1 Com alguma freqncia, um livro de contos ou crnicas (reunio de textos) tratado como obra, continente, e cada um dos textos que contm como clulas, contedo, fragmentos de uma obra. Considero, porm, que um conto uma obra. Isso porque tem vida prpria, significa, mesmo se fora do suporte. Essa mesma relao deve ser levada em considerao quando tratamos da msica.

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    de Chico Buarque de Hollanda se dedica a denncias dessa natureza, consideramos, aqui, essas obras como cano2 de testemunho. Das canes de testemunho que se podem destacar da obra de Chico, no entanto, saltam pelo menos dois tipos. O primeiro aquele em que o compositor canta experincias pessoais, em primeira pessoa, como Apesar de voc,Meu caro amigo e Acorda amor (chame o ladro). Outro tipo aquele que toca sua observao do semelhante, do que igualmente sofria a realidade do momento: testemunho em terceira pessoa como Anglica, feita sobre msica de Mitinho em referncia a Zuzu Angel. EssasSo obras nas quais o testemunho salta, ntido, aos olhos e o contedo tico (poltico, social, reacionrio) cavalga por sobre o esttico.

    Retomando o rumo originalmente proposto para a presente abordagem, porm, importa passar anlise daquelas em que o esttico e o tico do-se as mos, nivelados. Falo das canes testemunhais de Chico em que sobretudo arte o que desempenha o papel de denncia. Difcil dizer de algo que no seja arte na cano de Chico, e por isso enfatize-se que essa diferenciao quer apontar como arte testemunhal aquelas canes que so francos objetos estticos, capazes de significar artisticamente, independentemente de serem consideradas como referncia a um momento ou situao especfica, e que tocam o grande pblico, mesmo que se esteja a tratar dum grande pblico que desconhea por completo o contexto no qual aquelas obras foram edificadas (e que, de certo modo, as edificou). Diferentemente das j citadas, que abordam diretamente a desgraa e que para um desconhecedor da desgraa mencionada deixam lacunas a preencher, estas de que aqui se vai falar apresentam sentidos completos, muitos dos quais ridculos, e podem bem alcanar sentido na recepo dum desconhecedor das situaes que as motivaram. Essas mesmas obras, se frudas atentamente por um brasileiro praticante, revelaro dores do ser brasileiro, e encontraro coro para as denncias em que, a fundo, se constituem.

    2.1 Testemunho codificado: No sonho mais No sonho mais uma obra dessas a que nos referimos como testemunho-arte, por se tratar

    de testemunho indireto, composto sob a forma ficcional. Nesta, a relao entre dominador e dominados representada na alegoria do casal, como relao entre homem e mulher:

    Hoje eu sonhei contigo Tanta desdita, amor Nem te digo Tanto castigo Que eu tava aflita de te contar Foi um sonho medonho Desses que, s vezes A gente sonha E baba na fronha E se urina toda E quer sufocar

    Meu amor Vi chegando um trem de candango

    Levanto essas consideraes para destacar que emprego, nesta anlise, a concepo de que as canes so obras, completas, e o suporte que as leva ao mercado, disco que as rene, um produto de mercado (Cf. UCELLI-RAMOS, 2009, p. 17). 2 Considero, aqui , o conceito de cano apresentado por Gil Nuno Vaz (2007, p. 12), em que traz tona o senso-comum que a entende como juno de letra e msica. Do desdobramento dessa noo generalizada, aproveito ainda uma acepo mais restrita, segundo a qual cano todo texto que se presta a ser cantado, [...] geralmente acompanhado por instrumento ,dentro de uma determinada forma musical, de durao geralmente breve[...] ) 2007 ,p .13 .(

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    Formando um bando Mas que era um bando de orangotango Pra te pegar Vinha nego humilhado Vinha morto-vivo Vinha flagelado De tudo que lado Vinha um bom motivo Pra te esfolar

    Quanto mais tu corria Mais tu ficava Mais atolava Mais te sujava Amor, tu fedia Empestava o ar Tu, que foi to valente Chorou pra gente Pediu piedade E olha que maldade Me deu vontade de gargalhar

    Ao p da ribanceira Acabou-se a lia E escarrei-te inteira A tua carnia E tinha justia Nesse escarrar Te rasgamo a carcaa Descemo a ripa Viramo as tripa Comemo os ovo Ai, e aquele povo Ps-se a cantar

    Foi um sonho medonho Desses que s vezes a gente sonha E baba na fronha E se urina toda E j no tem paz Pois eu sonhei contigo E ca da cama Ai, amor, no briga Ai, no me castiga Ai, diz que me ama E eu no sonho mais (2006, p. 290).

    A mulher sonha com a degradao do amor. Esse o texto. O subtexto, legvel sem muita complexidade, poltico: ela sonha a destituio daquele que exerce sobre ela um poder. Ocorre que h ainda um terceiro sentido. O argumento da cano quer fazer ver o dio ao poder travestido em sonho, mas tambm a vergonhosa e conivente submisso do subordinado, indivduo que percebe a distribuio desigual de obrigaes e benefcios num contexto social, chega a sonhar a destituio desse poder, mas enquanto ele se mantm, adula-o. Os cidados ilustrados na pele da mulher que

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    sonha, uns por medo da coero, outros pela manuteno dos despojos que recolhem de sob a mesa de quem exerce o poder, fundam o grmen de uma popular sociologia das convenincias.

    O que exerce o poder representado como o homem do casal, e, apropriadamente, a voz de quem sonha a da mulher, comumente submetida a mando e castigo, nas relaes homem-mulher. Da, aflita por manifestar um sonho de morte, mas ainda chamando de amor, a voz do texto no sai de entre a cruz e a caldeirinha. Amor uma palavra perdida, solta, no corpo do sonho, ironicamente de acordo com a gramtica, que postula que o vocativo no parte nem do sujeito nem do que se predica.

    A nica constante em toda a cano, desde o ritmo de apresentao dos fatos, um ritmo ansioso, at o contedo do prprio caso relatado, a aflio: tanto a de contar, quanto aquela por que passa o que ouve o discurso, objeto do sonho. A mulher sonha o homem pego, esfolado, em fuga (sem sucesso), atolado, malcheiroso, humilhado, choroso, escarrado... Enfim, passado de mestre de cerimnia ao centro da arena; de valente a bigorrilho; na cova dos lees.

    No primeiro momento, a violncia do sonho s pode ser expressa p