Tex Mariocaeiro1

7/29/2019 Tex Mariocaeiro1

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LIMBO, DA ARTE COMO TEMPLO DO SOCIALMrio Caeiro

Limbo metfora de um estado limiar, onde possvel que j estejamos, enquanto

indivduos, povo ou humanidade.Lus Campos

Limbo, instalada no Largo de So Carlos durante o Vero de 2004, foi das mais emblemticasobras da primeira edio da Luzboa Bienal Internacional da Luz. Na economia de um eventoque aspirou a promover uma arte pblica prxima dos fluxos do quotidiano, com acentonuma dimenso transversal [de aproximao aos campos do urbanismo, da arquitectura, daspolticas urbanas] e comunicacional [a ideia de festival], tratou-se de uma obra em que o ef-mero do acontecimento se aliou a uma reflexo sobre o Espao Pblico como oportunidade

cultural.Limbo mostra que possvel promover uma arte que interprete a realidade por via de dispo-sitivos culturalmente inclusivos e abertos interaco. Se toda a cultura pressupe umatenso crtica com as ideias quer de natureza, quer de civilizao1, e comporta, como notouBourdieu, imposio simblica, uma obra como Limbo tipicamente uma interveno tc-tica que tira partido de um determinada conjuntura para, acima de tudo, adquirir um certoprotagonismo comunicacional. -lhe subjacente uma ideia do social e do papel social da arte,e Limbo concretiza-a como interpelao que nos interroga acerca da possibilidade de a con-scincia da condio humana acarretar uma ideia de comunidade.

No Vero de 2004, Lisboa e o Pas viviam a loucura colectiva do Euro, com extraordinriamobilizao de massas em torno do espectculo do futebol, sob uma alienante presso[pseudo]comunitria. Nesse quadro, a pea instaurou-se como dispositivo contra-espectacu-lar construdo o paradoxo aparente pela articulao entre arquitectura, ambiente e dis-curso caracterstica de uma arte pblica total2. Os seus componentes: um pavilho efmerode traa asctica, uma imagem fotogrfica retroiluminada [com a funo de cpula], o loopde uma composio musical como ambiente e o todo paisagstico do lugar e do contexto, diae noite, 24/24 horas.3

Durante a produo, o projecto colaborativo envolveu sucessivas reunies com o comissaria-

do, a produo, a galeria, o fotgrafo, os responsveis camarrios, as pessoas fotografadas, omsico. Se os processos de autoria partilhada so caractersticos da arte pblica, no rigorna resoluo de cada problema, no aproveitamento de cada oportunidade, que reside a pos-sibilidade de uma interveno no se transformar num acrescento irreflectido na paisagemurbana. Nestes termos, ao promover uma deliberada concentrao do feixe de mensagens,Limbo funcionou como uma espcie de aforismo4, de apelo dialtico.

Lhomme accompli doit pour ainsi dire vivre simultanment en plusieurslieux et en plusieurs hommes il est tou moment en prsence dun vaste cercle et de

divers vnements.Novalis5


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Mantendo-se face ao visitante num registo distanciado, evitando o logro do sentimentalismo, a

pea reflectiu um conjunto de decises projectuais que contriburam para a sua eloqunciaenquanto dispositivo. Todas concorreram para articular a referida dimenso aforstica, quercomo breve e compacta formulao de uma ideia, quer como comentrio potencialmentemoral [na senda de Hipcrates6]. Limbo foi uma experincia da simplicidade de processos,tendo em conta um conjunto de aspectos fundamentais: escala [pela sua dimenso e implan-tao central, a pea tomou conta de toda a praa], permeabilidade [aos fluxos pedonais],dimenso comunicativa [o jogo exterior/interior, em que a forma cega do exterior funcionavacomo gatilho da curiosidade e, ao mesmo tempo, recatava o interior]; todas as solues projec-tuais, ponto por ponto, interpretaram um programa genrico de criar um templo urbano laico.

Lus Campos conseguiu na obra um equilbrio retrico entre uma esfera tica [o ethos do arti-sta], uma esfera emotiva [o pathos, amalgamado no momento da fruio visual da cpula]e uma esfera projectual [o logos da arquitectura e do design de exposies, como encadea-do de momentos de aproximao e vivncia].O modo como as pessoas acediam experincia foi elucidativo desta retrica. Ao colocar aa b e rtura a uma determinada altura metro e meio o artista conseguiu que os visitantes tives-sem de, ao franqueram a entrada, agachar-se ligeiramente, executando um subtil movimentocom o corpo; sada desse movimento, e perante a ausncia de motivos visuais at alturados olhos, de novo os rostos se viravam procura, primeiro em volta, depois para cima, sendoento submergidos pela poderosa imagem de uma caixa de luz com uma composio radialde corpos nus deitados, em anamorf o s e7. Sobre fundo negro, em posies muito diversas mas

naturais, a disposio desses corpos no deixava de aludir s figuras do Casal Primevo, doC rucificado ou do Feto, recortados num cu em plano inferior [palavras do artista] Assimse consumava a experincia de um no-lugar habitado por seres em condio de excluso eesquecimento.

Esta dimenso psico-fisiolgica e cultural de condensao da experincia humana perante aobra de arte, num espao pblico, foi a essncia de uma situao que graas harmonia eintegrao de todas as suas componentes, convidou quela religio da ateno de que um diaKafka foi o intrprete-mor.Se as zonas proibidas de Limbo [Lus Campos cita Stuart Morgan quando define o artista como

p a s s a d o r de pessoas e bens atravs de fronteiras] so as de uma transpessoalidade, de umaespiritualidade laica, permaneamos em Kafka para dizer que se tratou de abrir espao ao dizerdo Indestrutvel humano. Como se assim cada cada um daqueles corpos deitados fssemos nsprprios, e aquele momento urbano de acesso a um espao sagrado pudesse, na sua nudez desmbolos e normas, celebrar, em suspenso de rituais ou hierarquias, uma condio humanaque sinnimo de entendermos o outro em relao. Limbo props-se, nestes termos, comorecuperao de uma arte em que o corpo assume centralidade epistemolgica: Il ny a quunseul Temple au monde, et cest le corps humain. Rien nest plus sacr que cette forme suprieu-re. Sincliner devant un homme, cest rendre hommage cette rvlation encarne.

L fora de Limbo, da Luzboa, da Arte , o futebol talvez dissesse um mesmo outro emrelao, mas numa modalidade alienante; ali dentro, dissmos juntos que estamos juntos,mesmo que cada um deitado no seu destino Entre o cu e a terra


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1 Terry Eagleton em A Ideia de Cultura, Temas e Debates, Lisboa, 2003.

2 Logo em frente ao nosso Teatro de pera, numa deliciosa contingncia wagneriana

3 Para quem acompanhou a produo, a obra incluiu a aventura de reunir e fotografar dezenas de pessoas, processo cola-borativo que foi particular pela necessidade de os modelos serem fotografados nus, deitados sobre um grande vidro sus-penso numa estrutura de tipo andaime.

4 O aforismo enquanto gnero estabelece o contacto entre o filosfico e o literrio. um estilo de discurso ligado per-cepo do mundo e que pode contribuir para a expressividade da mensagem. [] A sua funo pragmtica fundamen-tal. A forma lacnica, de expresso curta, e a natureza de mximo apuramento do aforismo propicia uma grande conden-sao de potencialidades significativas, apresentando assim um cdigo de prescries sociais para a interpretao da reali-dade.

5 Traduo de Olivier Schefer, inArt et Utopie Les Derniers Fragments, Editions Rue dUlm, Paris, 2005.

6 O clebre patrono da Medicina e autor de um considervel corpo de aforismos, devendo colocar-se a hiptese de estadimenso discursiva ser fundamental para a articulao da sua tica com o real.

7 Deformao resultante da compresso do corpo contra o vidro, na altura da fotografia; de alguma forma, tambm meto-nmia de uma condio humana submetida gravidade


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Limbo is a metaphor for a threshold state, where it is possible that we already find

ourselves, as individuals, as a people or as humankind.Lus Campos

Installed inLargo de So Carlos during the summer of 2004, Limbo was one of the most

emblematic works of the firstEdition ofthe Luzboa International Biennial of Light. In the

economy of an event that aspired to promote a public event close to the flows of everyday

life, with stress being laid on a transversal dimension [one that offers an approach to the

fields of town planning, architecture and urban policies] and a communicational dimen-

sion [the idea of a festival], this was a work inwhich the ephemeral nature of the event was

combined with a reflection on the Public Space as a cultural opportunity.

Limbo shows that it is possible to promote an art that interprets reality through culturally

inclusive mechanisms that are open to interaction. While the whole of culture presupposes

a critical tension with ideas, drawn from both nature and civilisation, and simultaneous-

ly carries with it a symbolic imposition, as Bourdieu noted, a work such as Limbo is typi-

cally a tactical intervention that takes advantage of a certainset of circumstances to

acquire, above all, a leading role interms of communication. Underlying it is an idea of

the social role of art, and Limbo achieves this by questioning us about whether an awaren-

ess of the human condition brings with it an idea of community.

In summer 2004, Lisbon and the rest of the country were living through the collective hyste-

ria of the European Football Championship, with an extraordinary mobilisation of themasses around the spectacle of football, under an alienating [pseudo]community pressu-

re. With inthis context, the piece was introduced as a constructed anti-spectacular device

the paradox is apparent through its combination of architecture, environment and dis-

course ina way that was characteristic of a total public art.

Its components: an ephemeral pavilion with an ascetic outline, a back-lit photographic image

[with the function of a vault], the loop of a musical composition as an environment and the

landscaped whole of the place and the context, day and night, 24 hours round the clock.

During production, the collaborative project involved successive meetings with the cura-tors, the production team, the gallery, the photographer, the council representatives, the

people photographed, the musician. While shared authorship processes are characteristic of

public art, it is inthe rigorous solving of each problem, the advantage taken of each oppor-

tunity, that one ensures the possibility of an intervention not being transformed into an ill-

thought out addition to the urban landscape. Under such terms, inpromoting a delibera-

te concentration of the cluster of messages, Limbo functioned as a kind of aphorism, a kind

of dialectical appeal.

Lhomme accompli doit pour ainsi dire vivre simultanment en plusieurslieux et en plusieurs hommes il est tout moment en prsence dun vaste cercle et de

divers vnements.Novalis

LIMBO, OF ART AS A TEMPLE OF THE SOCIAL

Mrio Caeiro


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By maintaining a distance inrelation to the visitor, and avoiding the pitfalls of sentimenta-

lism, the piece reflected a series of project-based decisions that contributed to its eloquence asa device. All of these decisions helped to jointogether the already-mentioned aphoristic e l e -

m e n t s, either into the brief and compact formulation of an idea, or as a potentially moral

c o m m e n t a ry [ inkeeping with Hippocrates]. Limbo was an experience of the simplicity of pro-

cesses, taking into account a series of fundamental aspects: scale [because of its size and cen-

tral implantation, the piece took over the whole square], permeability [to flows of pedestri-

ans], communicative dimension [the interplay between exterior and interior, inwhich the

blind form of the exterior triggered curiosity and, at the same time, sheltered the interior]; all

of the projects solutions, one by one, interpreted the generic programme of creating a lay

urban temple.

In this work, Lus Campos managed to achieve a rhetorical balance between an ethical

sphere [the ethos of the artist], an emotion-based sphere [pathos, amalgamated at the

moment of visually enjoying the vault] and a project-based sphere [the logos of architec-

ture and the design of exhibitions, as a sequence of moments of drawing closer and expe-

riencing].

The way inwhich people adhered to the experience was elucidatory about this rhetoric. By

placing the opening at a certainheight a metre and a half from the ground the artist

ensured that, on passing through the entrance, visitors were obliged to stoop slightly, perfor-

ming a subtle movement with their bodies; inemerging from this movement, and inview

of the absence of any visual motifs at eye level, their faces againturned insearch of some-thing, firstly looking around and then upwards, at which point they were then submerged

by the powerful image of a light box with a radial composition of recumbent naked bodies,

inanamorphosis. Set against a black background, inpositions that were very different but

natural, the arrangement of these bodies alluded to the figures of the Primeval Couple, the

Crucified Figure or the Foetus, cut out against a sky towards the bottom [the artists

words] In this way, the experience was consummated of a non-place inhabited by beings

ina state of exclusion and forgetfulness.

This psycho-physiological and cultural dimension of the condensation of human experien-

ce inthe face of the work of art, exhibited ina public space, was the essence of a situati-on that, thanks to the harmony and integration of all of its components, represented an

invitation to that religion of attention of which Kafka was once the chief interpreter.

If the forbidden areas of Limbo [Lus Campos quotes Stuart Morgan when he defines the

artist as a forger passing people and goods across frontiers] are those of a transpersona-

lity, of a lay spirituality, let us stay with Kafka to say that it was a question of opening up

room for the expression of the indestructible human condition. As if, inthis way, each of

those recumbent bodies were us ourselves, and that urban moment of access to a sacred

place might, inits nakedness of symbols and norms, celebrate, inthe suspension of ritu-

als or hierarchies, a human condition that is a synonym for our understanding the other

inrelation to ourselves. Under these terms, Limbo was proposed as a recovery of an art in

which the body assumes an epistemological centrality: Il ny a quun seul Temple au

monde, et cest le corps humain. Rien nest plus sacr que cette forme suprieure. Sincliner

devant un homme, cest rendre hommage cette rvlation encarne.


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Outside outside Limbo, outside Luzboa, outside Art the football perhaps expressed a simi-

lar other inrelation to ourselves, but inan alienating form; there inside, we specificallysaid together that we are together, even if each of us were lying recumbent intheir own fate

Between heaven and earth

1 Terry Eagleton in A Ideia de Cultura, Temas e Debates, Lisbon, 2003.

2Immediately opposite our Opera Theatre, in a delicious Wagnerian contingency

3For those who accompanied the production, the work included the adventure of joining together and photographingdozens of people, a collaborative process that was peculiar because of the need for the models to be photographednaked, lying on a large pane of glass suspended on a scaffold-type structure.

4The aphorism as a genre establishes contact between the philosophical and the literary. It is a style of discourse that islinked to the perception of the world and which may contribute to the expressiveness of the message. [] Its pragmaticfunction is fundamental. Its laconic form, amounting to a terse expression, and its nature of providing a maximumsynthesis provides the aphorism with a great condensation of potential meanings, thus presenting a code of social pres -criptions for the interpretation of reality.

5 Translation by Olivier Schefer, in Art et Utopie Les Derniers Fragments, ditions Rue dUlm, Paris, 2005.

6The famous patron of Medicine and the author of a considerable number of aphorisms, so that one should perhapsconsider the hypothesis of this discursive dimension being fundamental for the articulation of its ethics with reality.

7Disfigurement resulting from the compression of the body against the pane of glass, at the moment when the photo -graph was taken; in any case, it is also a metonymy of a human condition subjected to gravity

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