Texto Criativo 1

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1 O Bairro TIAGO CARVALHO

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O Bairro

TIAGO CARVALHO

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Quando Maria recebeu a chave na mão foi imediatamente informada de que

tinha um mês para se casar. Maria franziu a testa e disse que não tinha noivo em

vista. Pediu uma extensão do prazo, tempo para conduzir devidamente o processo,

talvez acostumar-se primeiro aos costumes do Bairro. Afinal, uma nova vida não se

inventa num mês. O representante dos moradores do Bairro sorriu e apontou para a

mão de Maria. Maria abriu a mão, palma voltada para o céu, e lá estava a chave. “Não

sei o que possa fazer por si”, disse o representante dos moradores do Bairro. “Você

escolheu morar entre nós.”

Maria preparou-se para contrapor, quis frisar que se limitara a demonstrar

preferência por uma casa num local agradável, onde fossem minimizados os efeitos

nefastos dos ares húmidos na sua saúde. Desde criança que sofrera com tais

ambientes, e agora que se aventurara numa nova vida, fazia todo o sentido que os

evitasse. Mas dominou-se e reconsiderou. Sabia que, de imediato, evocar-lhe-iam

outra vez a mão, agora de novo encerrada sobre a chave.

Então, sem se exaltar, Maria tentou negociar. Jamais pensou que os prazos

fossem tão exigentes. Estava preocupada. E se não conseguisse satisfazer

correctamente todos os preceitos necessários? Certamente existem procedimentos a

cumprir nestas coisas! O representante dos moradores do Bairro interrompeu-a antes

que divagasse, e apressou-se a lembrar que todo o Bairro estaria ao dispor de Maria,

as gentes e os equipamentos, e que um mês era mais do que tempo suficiente para

aprontar tudo o que fosse necessário. Apenas pediu a Maria que se ocupasse de

indicar o noivo e a lista de convidados não residentes no Bairro. Sem grande urgência.

São coisas que se resolvem depressa, uma vez definidas. No máximo 50 convidados,

por favor nunca menos que 10. Caso Maria o requeresse, o Bairro não hesitaria em

oferecer-lhe aconselhamento também nessas duas questões.

O Bairro era agradável – isso era um facto inegável. Naquela manhã, uma

deliciosa brisa embalava o voo embriagado das andorinhas com o seu sopro cálido.

Um leve rumor de vento acarinhava as copas adocicadas das tílias que ladeavam a

estrada deserta, impecavelmente alcatroada. Sim, senhor. Não havia realmente como

negar que era um Bairro agradável! Jardins cuidados, calçada ampla, uma vizinhança

que se adivinhava tranquila e cortês! Maria disse que ia ver o que podia fazer. Agora

que o sobressalto passara, parecia-lhe desproporcionada a sua aflição. “Sempre tive

queda para me apoquentar”, pesou. Com efeito ainda faltava todo um mês para o

casamento. Ela faria por ser tempo suficiente. Maria enfiou a chave na fechadura da

sua nova casa, e girou-a pela primeira vez.

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Na manhã seguinte, ainda não eram sete horas, quando a campainha soou

com insistência digna de um alarme. Maria despertou do sono e, ensonada,

encaminhou-se para a porta vestindo um sumptuoso roupão de cetim cor-de-rosa que

encontrara no cabide do quarto. À porta, hirto como um soldado, estava um rapaz que

não podia ter mais do que 16 anos, vestido com um uniforme bege e uma boina preta.

O rapaz perguntou a Maria se necessitava de acompanhamento. “Se preciso de

companhia?”, indagou Maria. O rapaz avaliou o rosto de Maria. Manteve-se

expectante e não demonstrou sinais de compreender a correcção. Era pequeno, mas

robusto, com as formas um tanto exageradas. Cozida sobre a camisa, ao peito,

ostentava o que Maria reconheceu ser a insígnia identificadora do Bairro.

“É bonita”, disse Maria. “Encantadora!” E, com um gesto subtil da cabeça,

apontou com o olhar para o peito do rapaz. Atabalhoado, o rapaz baixou o queixo e

inspeccionou o peito, como se não soubesse bem o que procurar. Maria titubeou.

Percebera que com a sua observação de mera cordialidade, inadvertidamente,

embaraçara o rapaz. Quis libertá-lo o mais depressa possível da teia com que se

debatia, e, sem saber o que mais dizer, apressou-se a agradecer a gentileza do Bairro

ao enviar-lhe companhia. Frisou que estava muito bem impressionada com a atenção.

Mas recusou. “Penso que não terei dificuldade em dar com o local; sabe,

deram-me um mapa”. O rapaz ouviu-a mudo e quedo, o corpo e o olhar inabaláveis,

mais expectantes do que indagadores. “É um jovem encantador, mas um pouco lento”,

pensou Maria. Decidiu sorrir para aliviar o embaraço que também ela agora a sentia.

Pediu ao rapaz que aguardasse à porta um instante e encaminhou-se para a sala de

estar.

Voltou com o mapa do Bairro, desdobrado de forma a exibir a sua residência e

o local de funcionamento que lhe haviam destinado, ambos assinalados com anéis

encarnados. Mostrou o mapa ao rapaz; este pegou no documento cartográfico e

estudou-o atentamente. Continuou firme. Finalmente, disse: “Ainda assim, se precisar

de acompanhamento, eu aguardo que se arranje”. “Não é tão longe que deva

preocupar-me”, disse Maria, sacudida por uma gargalhada. Para sua surpresa, em

resposta, o rapaz rasgou um sorriso exagerado nos lábios e mostrou os dentes pela

primeira vez. Eram alvos, com aspecto saudável, perfeitamente alinhados. Depois

dobrou de novo o mapa do Bairro num pequeno rectângulo e despediu-se. “Foi muito

amável da sua parte”, disse Maria enquanto o rapaz se afastava da casa. “Disponha

sempre”, devolveu-lhe o rapaz. Maria notou-lhe laivos de grosseria na voz, mas não

soube o que fazer com essa impressão.

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Maria permitiu-se demorar alguns minutos encostada à ombreira da porta,

deleitando-se com as carícias do sol ameno da manhã e com a vasta carpete de relva

que se estendia a seus pés. Que rapaz peculiar. Mas tão prestável! Um pequeno

soldado fiel à sua missão! Antes de voltar a entrar em casa, carregou com um dedo na

campainha e suspendeu a respiração. Estava certa! O toque imitava mesmo o chilrear

de pardais ou andorinhas ou pintassilgos! O amanhecer em tons de Primavera!

“Realmente, é um Bairro muito agradável”, disse Maria para consigo. Espreguiçou-se

com todo o vagar do mundo e foi-se vestir. Agora, definindo o raio do noivo,

certamente o resto da sua vida encaixar-se-ia por si.