Texto Criativo 3

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A GRAÇA DOS FALHADOS Nas melhores histórias-canções da banda americana Richmond Fontaine existe um qualquer elemento que nos faz desresponsabilizar as personagens pelas situações desesperadas em que se encontram. O mal que "lhes acontece" - ainda que com culpados claros -, incide sobre elas com demasiada indiferença para que a situação seja justa. Dá-se o peculiar caso em que a especificidade das circunstâncias e a inevitabilidade trágica das consequências (quase) redime o transgressor. Tudo é intenso e confuso em excesso. Exemplo: quando um pequeno criminoso apenas aprende o que é certo e errado por ver o parceiro ir longe de mais torna-se claro que reside em nós o acordar. Mas quem somos nós para o exigir aos outros? As personagens dobram uma esquina e vêem-se enfim diminuídas por um caminho que lhes surge maior que o fôlego. O olhar torna-se amplo, vê o que nunca viu, e estes homens e mulheres dão por si a tentear caminho pela obscura e labiríntica viagem que os leva a um momento epifânico. Será possível argumentar que a inocência esvai-se apenas quando a consciência a alcança? Numa abordagem religiosa, certamente. Curioso é, no entanto, a ausência de uma bagagem religiosa nestas canções que se assemelhe de algum modo a artistas e bandas contemporâneas como Iron e Wine, Sufjan Stevens, The Hold Steady, Drive- ByTruckers, ou, porque não, Bruce Springsteen. Em Richmond Fontaine é-se igualmente salvo por uma manifestação de Graça, mas puramente humana sem nada de transcendente. O segredo para pintar zonas cinzentas, por contraditório que pareça, esse, talvez resida nas cores vivas do relato, honesto e arrebatado o suficiente para oferecer pouco espaço de manobra a cinismos. Imprudente mesmo quando o narrador nos jura que todas as palavras foram consideradas e são as palavras certas (e só as palavras certas), que a situação decorreu exactamente conforme descrito. Ainda assim, dizia eu, há sempre algo que nos leva a concluir que o relato, mais do que aparado, está amputado por alguém que organizou o que quer contar: está sem cabeça, tronco e membros. Os Richmond Fontaine nunca vão ser grandes. Nem mesmo pelos modestos padrões indie. A banda consegue a proeza de soar a uma banda de falhados a cantar canções sobre falhados. São salvos pela sua aptidão para nos apinhar de imagens, histórias, personagens, fantasias e vida. Gente normal (e aqui recorro a uma expressão inglesa do meu agrado) "trying to make ends meet". Luís Tiago Carvalho 2010

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A GRAÇA DOS FALHADOS

Nas melhores histórias-canções da banda americana Richmond Fontaine existe um qualquer elemento que nos faz desresponsabilizar as personagens pelas situações desesperadas em que se encontram. O mal que "lhes acontece" - ainda que com culpados claros -, incide sobre elas com demasiada indiferença para que a situação seja justa. Dá-se o peculiar caso em que a especificidade das circunstâncias e a inevitabilidade trágica das consequências (quase) redime o transgressor. Tudo é intenso e confuso em excesso. Exemplo: quando um pequeno criminoso apenas aprende o que é certo e errado por ver o parceiro ir longe de mais torna-se claro que reside em nós o acordar. Mas quem somos nós para o exigir aos outros?

As personagens dobram uma esquina e vêem-se enfim diminuídas por um caminho que lhes surge maior que o fôlego. O olhar torna-se amplo, vê o que nunca viu, e estes homens e mulheres dão por si a tentear caminho pela obscura e labiríntica viagem que os leva a um momento epifânico. Será possível argumentar que a inocência esvai-se apenas quando a consciência a alcança? Numa abordagem religiosa, certamente. Curioso é, no entanto, a ausência de uma bagagem religiosa nestas canções que se assemelhe de algum modo a artistas e bandas contemporâneas como Iron e Wine, Sufjan Stevens, The Hold Steady, Drive-ByTruckers, ou, porque não, Bruce Springsteen. Em Richmond Fontaine é-se igualmente salvo por uma manifestação de Graça, mas puramente humana – sem nada de transcendente.

O segredo para pintar zonas cinzentas, por contraditório que pareça, esse, talvez resida nas cores vivas do relato, honesto e arrebatado o suficiente para oferecer pouco espaço de manobra a cinismos. Imprudente mesmo quando o narrador nos jura que todas as palavras foram consideradas e são as palavras certas (e só as palavras certas), que a situação decorreu exactamente conforme descrito. Ainda assim, dizia eu, há sempre algo que nos leva a concluir que o relato, mais do que aparado, está amputado por alguém que organizou o que quer contar: está sem cabeça, tronco e membros.

Os Richmond Fontaine nunca vão ser grandes. Nem mesmo pelos modestos padrões indie. A banda consegue a proeza de soar a uma banda de falhados a cantar canções sobre falhados. São salvos pela sua aptidão para nos apinhar de imagens, histórias, personagens, fantasias e vida. Gente normal (e aqui recorro a uma expressão inglesa do meu agrado) "trying to make ends meet".

Luís Tiago Carvalho 2010