Texto de Eloisa

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Filosofia

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  • Vol. 1, n 1, 2008.

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    Os fundamentos da ontologia de Descartes por Merleau-Ponty

    Elosa Benvenutti de Andrade1

    PIBIC/CNPq Resumo: O pensamento de Merleau-Ponty nos permite mostrar como a ontologia dicotmica de Descartes fundamentou um terreno no qual possvel determinar o ato do conhecimento e o contedo deste mesmo ato. Tal argumentao nos ajuda a observar como o sujeito cognoscente, construdo por Descartes, se apropria da realidade, que o mesmo considera heterognea e exterior a ele, atribuindo ao mundo como condio de existncia representaes constitudas por ele mesmo. Nosso objetivo apresentar como Merleau-Ponty sugere que, esta modulao moderna das coisas do mundo cria uma maneira de reconhecimento no mundo que poderia ser traduzida, ao invs de representaes, sensivelmente. Neste sentido, trabalharemos no enunciado dos principais conceitos sobre tal questo expostos em notas contidas na obra O Visvel e o Invisvel assim como as idias do mesmo autor sobre o conceito de subjetividade e percepo sensvel descritos nos ensaios O metafsico no homem e Em toda e em nenhuma parte. O que ser proposto nesta ltima fase do pensamento de Merleau-Ponty caminhar para uma concepo de uma conscincia perceptiva como experincia natural de um corpo carne. Isso significar que o estatuto clssico de conscincia, a partir do pensamento de Merleau-Ponty, passar a ser discutido sob o paradigma de uma conscincia sensvel. Palavras-chave: Descartes. Merleau-Ponty. Ontologia. Percepo. Subjetividade.

    Esta fase a que nos propomos expor do pensamento de Merleau-Ponty situa um

    mundo alm da ruptura histrica entre sujeito e objeto e que se define como um logos

    esttico. Contudo, veremos a trajetria que faz desembocar tal interpretao da

    realidade.

    Tanto a res cogitans cartesiana (oriunda da dade mente/corpo) como o sujeito

    transcendental kantiano (dotado de um aparato formal subjetivo) ou as noes de

    esprito e conscincia tradicionais carregam em si definies possveis por um

    movimento de interioridade e identidade absolutas em si mesmas. Todavia, isto em

    oposio a uma res extensa ou a um objeto definidos, ao contrrio, por uma

    exterioridade absoluta que garante uma impossibilidade de uma determinao por si de

    uma identidade no resultante da converso anterior de algo no mundo em uma idia ou

    representao deste mesmo mundo. Com isso, a dicotomia sujeito/objeto, prpria da

    1 Graduando em Filosofia da Universidade Estadual Paulista UNESP Campus de Marlia. [email protected]. Orientador: Prof. Dra. Mariana Cludia Broens.

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    metafsica racionalista cartesiana, cristalizou uma possibilidade de uma definio em

    ato de um conhecimento e a determinao do contedo deste mesmo ato. No entanto,

    para Merleau-Ponty esta racionalidade dicotmica ilusria criar dois movimentos que

    suscitam dois verdadeiros erros, a saber, a crena em um subjetivismo filosfico e a

    busca de um objetivismo cientfico.

    Segundo Merleau-Ponty, as conseqncias desse edifcio construdo pela

    Filosofia foi o poder concedido a um sujeito cognoscente de se apropriar de uma

    realidade que supostamente se apresenta a ele de forma heterognea e exterior a ele

    mesmo. A apropriao levada a caso pelo sujeito d-se, a medida em que as coisas

    constituintes do mundo que molda esta realidade apresentam-se como representaes

    constitudas pelo aparato cognitivo do sujeito que constitui, desta maneira, um certo

    conceito do mundo. Neste mesmo movimento a cincia reconhece no objeto a

    possibilidade (atravs de uma relao causal) de recriar a relao com o sujeito por uma

    certa presena de uma exterioridade proveniente das sensaes perceptivas, ocasionadas

    pela relao com o mundo, na conscincia do sujeito.

    Assim entende Merleau-Ponty que, o subjetivismo filosfico solidifica um

    Idealismo que converte essa certa exterioridade do mundo em realidade que se limita ao

    desenrolar da histria doutrinria de tal corrente em uma realidade resultante de

    operaes lgicas de um sujeito cognoscente. De encontro a este subjetivissmo, o

    objetivismo cientfico, transforma a conscincia no resultado de um acontecimento

    fsico/fisiolgico verificvel e objetivo. Isto, devido crena, oriunda de um

    entendimento arquitetnico, numa razo orgnica universal. Desse modo, de acordo

    com Merleau Ponty, ambas as crenas reduzem o mundo a uma realidade proveniente

    de converses que por sua vez originam representaes e fenmenos naturais em

    terceira pessoa condenando este sujeito a viver a sombra de uma realidade.

    Portanto, a partir desta leitura da construo clssica realizada pela filosofia,

    Merleau-Ponty tomar os pensamentos dicotmicos como o complemento de uma srie

    de equvocos responsveis pela efetivao de um reducionismo originrio, ou seja, por

    uma clareza em uma idia de oposio, tal como, por exemplo, a distino kantiana

    entre conhecimento histrico e conhecimento racional, aparentemente ilusria segundo

    o filsofo.

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    Com isso, a proposta fornecida pelo pensador de um questionamento radical

    dos conceitos sustentados tanto pela cincia como pela filosofia, numa busca por seus

    fundamentos de origem. Em nota da obra O visvel e o Invisvel o filsofo escreve:

    O que desejo fazer reconstituir o mundo como sentido de Ser absolutamente diferente do "representado", a saber, como o Ser vertical que nenhuma das "representaes" esgota e que todas "atingem", o Ser selvagem. Isto para ser aplicado no somente percepo, mas tambm ao Universo das verdades predicativas e das significaes. Tambm aqui preciso conceber a significao (selvagem) como absolutamente distinta do Em si e da "conscincia pura" - a verdade (predicativa - cultural) como este Indivduo (anterior ao singular e ao plural) sobre o qual se cruzam os atos de significaes e do qual eles so aparas. A distino dos dois planos (natural e cultural) , alis, abstrata: tudo cultural em ns (o nosso Lebenswelt "subjetivo") (a nossa percepo cultural - histrica) e tudo natural em ns (mesmo o cultural repousa sobre o polimorfismo do Ser selvagem). (MERLEAU-PONTY, 1971, p. 229, grifo e parntese do autor).

    Deste sentido, como observamos, a mxima da proposta filosfica contida nesta

    fase de Merleau-Ponty ser colocar o advento da razo em xeque, tendo como axioma o

    fato de que a capacidade representacional da conscincia no se apresenta como

    definitiva e tampouco nica. Atravs da especulao do que seja a conscincia, ele

    levanta a hiptese de que haveria um fundamento equivocado quanto adoo de uma

    crena sobre uma vida representacional baseada numa noo de mundo que no abrange

    em seu conceito uma conscincia perceptiva que se reconhea enquanto corpo.

    Partindo disso, o filsofo atenta para a reviso de uma interpretao nica

    postulada sobre uma interioridade possvel que se reduz a imanncia da conscincia

    que, por sua vez, segundo ele, no se explica satisfatoriamente pela exterioridade fsico-

    fisiolgica. Assim, o caminho que comea a introduzir preocupar-se- com a noo de

    um corpo dotado de reflexibilidade e visibilidade. Em nota, ele continua:

    O sentido de ser a ser desvendado: trata-se de mostrar que o ntico, os "Erlebnisse", as "sensaes", os "juzos", - (os objetos, "os representados", em suma todas as idealizaes da Psique e da natureza), toda a quinquilharia destas pretensas "realidades" psquicas positivas, (e lacunares, "insulares", sem Weltlichkeit prpria) , na realidade, recorte abstrato no estofo ontolgico, "no corpo do esprito" - O Ser o "local" onde os "modos de conscincia" se inscrevem como estruturaes do Ser (uma maneira de pensar dentro de uma

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    sociedade est implicada na sua estrutura social), e onde as estruturaes do Ser so modos de conscincia. A integrao em si-para si faz-se no na conscincia absoluta, mas no Ser de promiscuidade. A percepo do mundo se efetua no mundo, a experincia da verdade faz-se no Ser. (MERLEAU-PONTY, 1971, p. 229, parnteses do autor)

    Ao que parece, o visvel e vidente que protagoniza este campo de presena

    descrito por Merleau-Ponty apresenta-se como o corpo. Da atuao do mesmo

    emergiro desse modo s relaes da vida perceptiva e do mundo sensvel e, atravs da

    linguagem como manifestao do mesmo, surge ento o logos cultural, ou seja, o

    mundo histrico - cultural humano. Deste trajeto, a relao intersubjetiva surgir alm

    da arbitrariedade e do condicionamento pelas operaes cognitivas, mas agora,

    acontecer como intercorporeidade do ser bruto que antecede todas as separaes e

    fixaes construdas pelo pensamento filosfico e cientfico. A ontologia deste ser

    bruto, ou seja, pr-reflexivo, manifesta-se atravs do homem e das coisas do mundo,

    contudo, no se cristaliza neles. Por exemplo, segundo Merleau-Ponty a palavra, a

    linguagem seria uma forma de modulao de uma maneira de existir no mundo, todavia,

    uma maneira que originalmente sensvel. A respeito disso escreve o filsofo:

    Dizer que o corpo vidente no , curiosamente, seno dizer que visvel. Quando procuro saber o que quero dizer dizendo que o corpo que v acho apenas o seguinte: ele est de algum "lado" (do ponto de vista de outrem - ou: no espelho para mim por ex. no espelho de trs faces) visvel no ato de olhar - Mais exatamente: quando digo que o meu corpo vidente, h, na experincia que tenho disso, algo que funda e enuncia a vista que outrem possui ou que o espelho d de meu corpo. I. e: visvel para mim em princpio ou pelo menos concorre para o Visvel de que o meu visvel um fragmento. I. e, nessa medida, o meu visvel vira-se sobre ele para "compreende-lo"- E como que eu sei disso seno porque o meu visvel no de modo nenhum "representao" minha, mas carne? I. e, capaz de abraar o meu corpo, de "v-lo"- atravs do mundo que sou visto ou pensado. (MERLEAU-PONTY, 1971, p. 245, grifo do autor e grifo nosso)

    Assim, Merleau-Ponty apresenta uma verso de uma relao inter-humana

    dentro de um mundo sensvel que nico. Pela visibilidade, e pela noo de corpo que

    comea a ser inserida, o mundo humano no necessita de uma reflexo anterior como

    queria Descartes e nem de uma oposio como fez Kant. Pelo pensamento de Merleau-

    Ponty as relaes entre os seres humanos devem ser observadas em seus atos e

    desgnios, como relaes simples que no escondem nada por detrs, que no so

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    manipuladas por fantasmas na mquina. Portanto, relaes visveis em um campo,

    que o mundo, que pode ser compreendido como, nas palavras do pensador:

    diferenciaes de uma arquitetnica espao-temporal, contudo, perfeitamente visvel no

    ato de olhar.

    A fundamentao de uma ontologia do ser bruto: a histria do sujeito e da subjetividade

    No nos referiremos pormenorizadamente ao sentido que expressa o ser bruto

    segundo Merleau-Ponty, contudo, para o assunto que tratamos, cabe expor a

    fundamentao de tal conceito. Embora nosso trabalho possua a inteno de confrontar

    duas ontologias diferentes a partir do escrito pstumo O Visvel e o Invisvel, prudente

    percorrermos um pouco a base desta obra. Para isso, trataremos dos Ensaios O

    metafsico no Homem e Em toda e nenhuma parte escritos pelo filsofo, pois

    consideramos ambos como fundamentos do seu ltimo pensamento.

    Um dos temas trabalhados exaustivamente por Merleau-Ponty em tais textos

    (1948/1984 e 1960/1984) foi questo da subjetividade e a construo do sujeito pelo

    fato de que, para ele, tal empreendimento teria sido desenvolvido sem muito

    questionamento na filosofia, criando equvocos quanto ao ser, ou at mesmo perdendo-

    o. Na Quinta parte do ensaio Em toda e nenhuma parte, intitulado Descoberta da

    subjetividade, o filsofo trata da gnese desses conceitos. Para ele, a subjetividade no

    foi descoberta, mas construda. Perceber isto ser essencial para reunificar

    posteriormente as noes de visvel e invisvel, essncia e aparncia e, enfim,

    naturalizar o que fora atribudo metafsica. Trata-se de recusar a exigncia filosfica

    tradicional da contingncia do pensamento formulando, assim, uma ontologia menos

    ilusria.

    O que est "em toda e nenhuma parte" para Merleau-Ponty justamente a

    infinidade de conceitos, tais como os de sujeito e subjetividade, que buscam refinar

    um ser que talvez seja menor e mais simples do que se pensara outrora. Contudo, com a

    descoberta antecedente do cogito e da reflexo, uma certa dialtica tomou conta dos

    debates sobre o ser distanciando-o cada vez mais do mundo, num movimento de

    estranhamento que salvou apenas um conceito infundado de conscincia. Merleau-

    Ponty escreve:

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    Deve-se, ento, acreditar que a subjetividade j estava ali antes dos filsofos, exatamente tal como depois eles deveriam compreend-la? Uma vez sobrevinda a reflexo, uma vez pronunciado o "eu penso", o pensamento de ser tornou-se de tal modo nosso ser que, se tentamos exprimir o que o precede, nosso esforo desemboca na proposta de um Cogito pr-reflexivo. Mas, que esse contato de si consigo antes que tenha sido revelado? algo diferente de um exemplo da iluso retrospectiva? Seu conhecimento apenas retorno ao que j se sabia atravs de nossa vida?

    E continua:

    Mas eu no me sabia de maneira propriamente dita. Que , ento, esse sentimento de si, que no se possui e que ainda no coincide consigo? J se disse que roubar a conscincia da subjetividade retirar-lhe o ser, que um amor inconsciente no nada, visto que amar ver algum, aes, gestos, um rosto, um corpo como amveis. Mas o cogito antes da reflexo, o sentimento de si sem conhecimento oferecem a mesma dificuldade. E assim, ou a conscincia ignora suas origens ou, ento, se quiser alcan-las, s pode projetar-se nelas [...] Heidegger considera que perderam o Ser no dia em que o fundaram sobre a conscincia de si. (MERLEAU-PONTY, 1984, p.231-232, grifo do autor e grifo nosso).

    Com isso, Merleau-Ponty, num dilogo direto tanto com a filosofia kantiana

    como com a cartesiana, pretende expor aqui uma idia comum na modernidade. Ora

    descrevendo o ser da alma, ora o ser-sujeito, o filsofo observa que ambos quiseram

    engrandecer uma idia de Ser e perderam o que poderia ser a forma mesma absoluta de

    ser, um ser menor, menos pomposo. Ele ressalta nesta sua leitura da modernidade que

    de Montaigne a Kant, e aps eles, o que sempre se adotou como verdade nas questes

    de reconhecimento de ser no mundo foi mesmo um ser-sujeito. Dessa forma, uma certa

    repetio caracterizaria toda uma tradio em filosofia baseada em discordncias que

    tomaram a subjetividade, ora como coisa, ora como substncia, tendo como pano de

    fundo um outro debate: a subjetividade como extremidade do particular e do universal.

    Assim, solidificaram-se duas idias de subjetividade que foram digeridas pela

    histria de maneira distinta. Uma subjetividade vazia, desligada e universal, a

    cartesiana; e uma subjetividade plena, soterrada, que necessita do mundo para se

    realizar, ao passo que estranha a este mesmo mundo, a kantiana.

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    Portanto, o papel da reflexo neste movimento foi o de revelar o irrefletido

    transformando-o em verdade de fatos incontestveis pelo testemunho de uma certa

    relao entre sujeitos inconscientes ligados por uma interioridade. Neste sentido, a

    realidade e a conscincia, estariam subordinadas sempre a uma razo. Sob este disfarce

    teramos, portanto, deixado de considerar a filosofia como instrumento e incio de uma

    interpretao do mundo para considerar a idia filosfica como coisa e resultado de

    algo. Merleau- Ponty escreve que "A filosofia est em toda e nenhuma parte, at mesmo

    nos "fatos", e em parte alguma e em domnio algum acha-se preservada do contgio da

    vida" (MERLEAU-PONTY, 1984, p. 212).

    Desta forma, utilizar a filosofia na contemporaneidade dentro do debate sobre a

    conscincia filosfica do problema ontolgica do ser e sua natureza, para Merleau-

    Ponty requer olhar para o passado e reconhecer que a cincia j fora utilizada para dizer

    sobre a medida do ser. Assim, no que se refere a uma crtica ao objetivismo cientfico

    contemporneo, adotando como base uma nova perspectiva ontolgica, o pensador

    coloca que a tarefa filosfica, no se direciona a desacreditar da cincia ou restringi-la

    "mas situ-la como sistema intencional no campo total de nossas relaes com o Ser"

    (MERLEAU-PONTY, 1984, p. 231).

    A partir da considerao de uma histria da construo do sujeito e da

    subjetividade, entendemos melhor o peso do que Merleau-Ponty descrever em seu

    ltimo escrito, a saber, O Visvel e o Invisvel. Uma das mximas adotadas por ele ser

    de considerar que no se trata de um irrefletido que contesta uma reflexo, mas trata-se

    da prpria reflexo contestar a si mesma. Assim, o pensador atenta para a considerao

    de que a reflexo como condicionante conscincia no nos leva um meio

    transparente e fechado, tampouco tem como funo fazer-nos passar por transcendncia

    do objetivo ao subjetivo. Todavia, a reflexo sob uma outra perspectiva pode nos fazer

    sair da sombra a que o internalismo cartesiano e kantiano nos condenou a fim de nos

    levar a uma outra dimenso da vida onde tais distines no se colocam. Dimenso esta

    de uma subjetividade naturalizada e de um sujeito que se reconhece no mundo como

    conscincia plena por seus gestos e aes, pelo visvel e pelo invisvel que no est de

    forma alguma confuso ou inacabado. Dessa maneira, observamos que o entendimento

    merleaupontyano sobre reflexo diferente do que foi posto pela tradio ocidental. No

    pensamento de Merleau-Ponty esta no exerce funo de tornar clara e distinta as

    coisas do mundo, pois este no est a sombra, ou seja, no foi tornado confuso pelas

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    percepes sensveis. Quando o filosofo diz pretender ser o ser bruto pr-reflexivo ele

    considera a reflexo j deslocada para o corpo, ou seja, a experincia do ser no mundo

    constitui a reflexo.

    O Metafsico no Homem

    A mxima da ontologia ltima inacabada por Merleau Ponty descrita na obra O

    Visvel e o Invisvel define-se pelo reconhecimento do ser no mundo como sensvel ao

    mundo. Tal reconhecimento para o filsofo teria sido impossibilitado pelo conceito de

    Metafsica difundido na histria da Filosofia. Dessa maneira, no ensaio O Metafsico no

    Homem, Merleau Ponty dedica-se desconstruo de tal termo a partir de uma anlise

    da significao de sua historicidade. Para ele, a difuso da idia metafsica teria

    permitido o discurso sobre uma certa atitude natural do homem no plano do

    conhecimento como oriundo de princpios da razo e o apreo pela moralidade.

    No incio do ensaio ele descreve sua impresso sobre o enraizamento da crena

    construda sobre a metafsica e expe sua proposta:

    Ora, a metafsica, reduzida pelo kantismo ao sistema de princpios da razo na constituio da cincia ou do universo moral, radicalmente contestada, nesta funo diretriz, pelo positivismo, no entanto, no cessou de levar uma espcie de vida clandestina na literatura e na poesia, onde hoje os crticos a reencontram. Ela aparece nas prprias cincias, no para limitar-lhes o campo ou para opor-lhes barreiras, mas como inventrio deliberado de um tipo de ser ignorado pelo cientificismo e que as cincias pouco a pouco aprenderam a reconhecer. Ns nos propomos a circunscrever melhor essa metafsica em ato, e, inicialmente, a faz-la aparecer no horizonte das cincias do homem. (MERLEAU-PONTY, 1984, p. 179).

    Ao passo que desenvolve seu pensamento, Merleau-Ponty aponta, atravs de

    uma anlise do eu penso e do sujeito transcendental, como ambos, ao serem sustentados

    como observadores absolutos do mundo, comunicam uma maneira de ser neste mesmo

    mundo. Esta maneira de ser passa a ser objetivada por sistemas metafsicos que

    sustentam uma crena cientificista e na realidade nos afastam do mundo. O mundo da

    Metafsica sustentado por estes tipos humanos trabalham apenas com resolues de

    dificuldades e reparao de fracassos. Isto porque ambas construes possuem como

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    imperativo o acesso negado realidade e a desconfiana na experincia. Segundo ele, as

    intenes sob uma perspectiva de aparncia distanciam se da esfera que possvel de

    uma realizao visvel e comunicada, ou seja, uma realizao na qual existiria uma

    relao intersubjetiva de fato com o mundo e no solitria como a ilustrada pelos

    sistemas calcados em uma conscincia distante do mundo. Para ele o que a tradio

    metafsica do homem no o deixou perceber que o mundo que se oferece a ele

    deslocando a percepo para uma crena na razo universal. Contudo Merleau-Ponty

    descreve que "a partir do momento em que reconheci que minha experincia, justamente

    enquanto minha, abre-me para o que no eu, que sou sensvel ao mundo e ao outro,

    todos os seres que o pensamento objetivo colocava distncia aproximam-se

    singularmente de mim" (MERLEAU-PONTY, 1984, p. 188) e desse modo descreve

    uma dupla experincia do cogito que comea a apontar para uma naturalizao da

    subjetividade como conscincia do mundo calcada numa compreenso das coisas que

    no requer oposio entre significado e percepo.

    Ele argumenta:

    A conscincia metafsica no possui outros objetos alm daqueles da experincia cotidiana: este mundo, os outros, a histria humana, a verdade, a cultura. Porm, em vez de tom-los j prontos, como conseqncias sem premissas ou como obviedades, redescobre sua estranheza fundamental para mim e o milagre de sua apario. Ento, a histria da humanidade deixa de ser a chegada inevitvel do homem moderno a partir do homem da caverna, esse crescimento imperioso da moral e da cincia de que falam os manuais escolares "demasiado humanos"; deixa de ser a histria emprica e sucessiva para tornar-se conscincia do vnculo secreto graas ao qual Plato ainda vive entre ns. (MERLEAU-PONTY, 1984, p. 188).

    Assim, Merleau-Ponty realiza uma crtica metafsica elaborada por Descartes

    no plano das idias claras e distintas a partir de uma aparncia confusa das coisas e

    metafsica kantiana de atribuio de forma e sentido pela razo s coisas do mundo.

    Para ele, ao deixarmos estas concepes, o inteligvel torna-se percepo, pois nos

    desviamos de todos os dogmas, regras morais e construes imperialistas usadas

    claramente para separar pensamento e experincia. Aceitar a metafsica como condio

    natural do homem e, desta maneira, aceitar um distanciamento ilusrio do ser com a

    vida, para Merleau-Ponty serve apenas para legitimar uma fraudulenta moral absoluta

    utilizada como sustentculo poltico e ideolgico de um "reino dos fins". Com isso,

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    impossvel ao ser humano alcanar o prprio pensamento e avaliar as condies em que

    sobrevive. Todavia, conscincia metafsica como experincia cotidiana traria-nos uma

    certa positividade alm da positividade cientificista e moral. Ele encerra seu ensaio

    escrevendo:

    Para poder circunscrever esta concepo da metafsica foi preciso situar um certo nmero de negaes. Porm, tomada em si mesma, ela a prpria positividade e no se pode ver do que ela nos privaria. A glria da evidencia, do dilogo e da comunicao bem sucedida, a comunidade de destino entre os homens, seu acordo, no segundo a semelhana biolgica, mas naquilo que lhes mais prprio - tudo aquilo que a cincia e a religio podem viver efetivamente, encontra-se aqui recolhido e arrancado dos equvocos de uma vida dupla. (MERLEAU-PONTY, 1984, p .192)

    O Racionalismo e o encontro com o invisvel

    Como podemos perceber pelo que foi exposto at agora, Merleau-Ponty

    desconfia de qualquer tipo de explicao que se baseie nas noes clssicas sobre a

    natureza da conscincia. Neste sentido, o que se observa de mais frutfero em seu

    pensamento e que nos leva a discuti-lo com Descartes refere-se slida base filosfica

    que Merleau-Ponty fornece em direo a uma nova ontologia "naturalista" da

    conscincia.

    Em seu ensaio Em toda e em nenhuma parte, Merleau-Ponty, no tpico IV, faz

    um rico inventrio sobre o que ele chama de O Grande Racionalismo. A tarefa

    executada em tal escrito reafirma a filosofia cartesiana como a responsvel por uma

    concepo naturalista que criou a falsa crena em um objetivismo cientfico, no

    positivismo e no subjetivismo filosfico. Para ele, tudo o que fora criado por este

    "grande racionalismo" apenas construiu todo um palco para a experincia perceptiva e

    para a conscincia que deve ser revisitado.

    O filsofo aponta que, a partir do pensamento de Descartes, tudo o que se

    constituiu, no que se refere ao pensamento filosfico e cientfico, fundou-se sobre a

    ontologia dualista substancial dividida entre matria e espirito, ou, res extensa e res

    cogitans. Dessa forma, ele afirma que qualquer tentativa de explicao sobre a natureza

    que seja calcada nas alternativas dualistas, com efeito, o espiritualismo e materialismo,

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    ser uma maneira de permanecer na ontologia dicotmica. Com isso, o filosofo prope

    um exame crtico das teses naturalistas e de seus pressupostos permeados numa cadeia

    de relaes causais sempre mediadas por um infinito positivo de explicaes e

    representaes. Para ele, um retorno a tais bases de extrema importncia, pois que nela

    se apia o problema clssico do que seja a conscincia e subjetividade, bem como a

    cincia contempornea.

    Na ltima nota de O Visvel e o Invisvel ele escreve:

    Meu plano: I o visvel II a Natureza III o logos deve ser apresentado sem nenhum compromisso com o humanismo, nem, enfim, com a teologia - Trata-se precisamente de mostrar que a filosofia no pode mais pensar segundo esta clivagem: Deus, o homem, as criaturas, - que era a clivagem de Espinosa. Portanto, no comeamos ab homine como Descartes (a I parte no reflexo) no tomamos a Natureza no sentido dos Escolsticos (a II parte no a Natureza em si, filosofia da Natureza, mas descrio do entrelaado homem-animalidade) e no tomamos o Logos e a verdade no sentido do Verbo (a III parte no nem lgica, nem teologia da conscincia, mas estudo da linguagem que possui o home). (MERLEAU-PONTY, 1971, p. 245, grifo nosso).

    Desse modo, o que ser proposto nesta ltima fase do pensamento de Merleau-

    Ponty caminhar para uma concepo de uma conscincia perceptiva como experincia

    natural de um corpo carne. Isso significar que o estatuto clssico de conscincia, a

    partir do pensamento de Merleau-Ponty, passar a ser discutido sob o paradigma de uma

    conscincia sensvel. Em nota da obra O visvel e o Invisvel ele escreve: "A carne este

    ciclo completo e no somente a inerncia num isto individuado espacio-temporalmente"

    (MERLEAU-PONTY, 1971, p. 234).

    Ao verificarmos o conjunto da obra de Merelau-Ponty podemos perceber que a

    idia de uma conscincia pautada na considerao de um corpo como carne, ou como se

    habitualmente se refere o filosofo como corpo encarnado, provm de uma concepo de

    subjetividade que supera a concepo clssica filosfica. Vimos que o filsofo se atm

    pormenorizadamente histria da construo de tal conceito, bem como atm a todo o

    processo de construo do pensamento moderno e suas bases conceituais. Diante disto,

    o que nasce da primeira fase do pensamento de Merleau-Ponty uma idia de uma

    subjetividade oriunda de uma experincia natural, ou seja, como unida ao corpo e ao

    mundo. Este ser o primeiro passo para nosso encontro efetivo com o invisvel, que no

    se separa do visvel, ou seja, o encontro com uma ontologia que no tome o ser como

  • Vol. 1, n 1, 2008.

    www.marilia.unesp.br/filogenese 96

    um ser partido. O encontro com uma noo de ser enquanto corporeidade reflexionante

    que se realiza plenamente atravs do homem e do mundo.

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