Texto Dislexia TDAH Cida Moyses Cecilia Collares

download Texto Dislexia TDAH Cida Moyses Cecilia Collares

of 42

Transcript of Texto Dislexia TDAH Cida Moyses Cecilia Collares

O LADO ESCURO DA DISLEXIA E DO TDAH 1Prof Dr Maria Aparecida Affonso Moyss 2 Prof Dr Ceclia Azevedo Lima Collares 3

O corpo uma realidade biopoltica; a medicina uma estratgia biopoltica. Michel Foucault, 1977 Inicialmente, queremos enfatizar que existem pessoas com doenas reais, que levam a deficincias que podem comprometer seu desenvolvimento cognitivo. No delas que falamos neste texto. Ao contrrio, tratamos de pessoas normais, saudveis, que apenas apresentam comportamentos e modos de aprender distintos do padro uniforme e homogneo que se convencionou como normal. Quem convencionou? Este nosso primeiro questionamento destina-se a ativar o pensamento crtico, to em desuso atualmente. No negamos a existncia de pessoas que lidam com a linguagem escrita de diferentes maneiras, mais do que possamos imaginar; algumas com mais dificuldades, outras com incrvel facilidade, a maioria em um continuum entre esses extremos. O que questionamos a transformao disso em uma pretensa doena neurolgica, que jamais foi comprovada e intensamente criticada no interior do prprio campo mdico, muitas vezes tratada somente com interveno pedaggica. Por que a necessidade de transformar em doena? A quem e a qu interessa? Nesse processo de busca da uniformizao de todas as pessoas, os que no se submetem tm sido submetidos a processos desgastantes, humilhantes mesmo, destinados a mostrar-lhes e aos que os circundam que mais tranqilo conformar-se e deixar-se levar... Pessoas absolutamente normais, at serem diagnosticados/rotulados, ocupam os espaos de discursos e de aes que deveriam ser destinados ao acolhimento e atendimento daqueles que realmente tm problemas. A esses, sob a mscara da incluso, restam cada vez menos coraes e mentes efetivamente sintonizados com eles... At mesmo os parcos recursos pblicos a eles destinados tm sido objeto de cobia dos que inventam e reinventam as doenas do no-aprender e do comportamento.

Captulo do livro Excluso e incluso: falsas dicotomias, organizado por Marilda GD Facci, Marisa EM Meira e Silvana C Tuleski (no prelo) 2 Professora Titular de Pediatria, Faculdade de Cincias Mdicas/ Unicamp. 3 Professora Associada da Faculdade de Educao/ Unicamp (aposentada). Livre-Docente em Psicologia Educacional FE/Unicamp.

1

O processo de medicalizao Eu vejo o futuro repetir o passado, eu vejo um museu de grandes novidades4 Nas sociedades ocidentais, crescente a translocao para o campo mdico de problemas inerentes vida, com a transformao de questes coletivas, de ordem social e poltica, em questes individuais, biolgicas. Tratar questes sociais como se biolgicas iguala o mundo da vida ao mundo da natureza. Isentam-se de responsabilidades todas as instncias de poder, em cujas entranhas so gerados e perpetuados tais problemas. No mundo da natureza, os processos e fenmenos obedecem a leis naturais. A medicalizao naturaliza a vida, todos os processos e relaes socialmente constitudos e, em decorrncia, desconstri direitos humanos, uma construo histrica do mundo da vida. (Moyss e Collares, 2007) No se deve esquecer que a medicina constitui seu estatuto de cincia moderna atribuindo-se a competncia para legislar e normatizar o que seja sade ou doena e, honrando suas razes positivistas, biologiza a vida. Esse processo constitui um iderio em que questes sociais so apresentadas como decorrentes de problemas de origem e soluo no campo mdico; denominado por Ivan Illich de medicalizao, ao alertar que a ampliao e extenso do poder mdico minava as possibilidades das pessoas de lidarem com os sofrimentos e perdas decorrentes da prpria vida e com a morte, transformando as dores da vida em doenas. A vida estava sendo medicalizada pelo sistema mdico que pretende ter autoridade sobre as pessoas que ainda no esto doentes, sobre as pessoas de quem no se pode racionalmente esperar a cura, sobre as pessoas para quem os remdios receitados pelos mdicos se revelam no mnimo to eficazes quanto os oferecidos pelos tios e tias (Illich, 1982) Posteriormente, esse processo foi bastante discutido por Michel Foucault (1977, 1980), para quem um dos elementos de sua sustentao a dupla promessa da medicina, ao se afirmar capaz de curar e prevenir as doenas, a ponto de poder construir um futuro em que sua prpria existncia ser dispensvel, pois ter eliminado todas as doenas. Embora sua impossibilidade de realiz-las esteja se evidenciando mais e mais, a medicina mantm tais promessas em seu discurso. A partir do final do sculo 20, ser caracterizada como a medicina do poder e da perplexidade; poder por um lado, pois seu desenvolvimento cientfico e tecnolgico lhe atribui maior poder de controle e interveno sobre a vida e a morte; perplexidade por outro, pois se

4

O tempo no pra, de Cazuza e Arnaldo Brando

2

v constantemente confrontada por novos problemas e obstculos, que desafiam e desmentem suas promessas de salvao e de um futuro sem medicina. (Entralgo, 1982) A crtica medicalizao da vida tem sido objeto de pesquisa de vrios autores, destacando-se trs Peter Conrad, Peter Breggin e Thomaz Szasz por sua incansvel luta contra a medicalizao da vida e o uso crescente de drogas psicotrpicas, com relevantes pesquisas e reflexes tericas sobre o processo de medicalizao em geral e em particular do campo educacional e comportamental. A medicalizao da vida de crianas e adolescentes articula-se com a medicalizao da educao na inveno das doenas do no-aprender. A medicina afirma que os graves e crnicos problemas do sistema educacional seriam decorrentes de doenas que ela, medicina, seria capaz de resolver; cria, assim, a demanda por seus servios, ampliando a medicalizao. A medicalizao do campo educacional assumiu, e ainda assume, diversas faces no passado recente, alicerando preconceitos racistas sobre a inferioridade dos negros e do povo brasileiro, porque mestio; posteriormente, a inferioridade intelectual da classe trabalhadora foi pretensamente explicada pelo esteretipo do Jeca Tatu, produzido pela unio de desnutrio, verminose, anemia... Preconceitos, nada mais que preconceitos travestidos de cincia! (Moyss e Lima, 1982; Collares e Moyss, 1996; Moyss e Collares, 1997) A partir dos anos 1980, ocorre a progressiva ocupao desse espao pelas pretensas disfunes neurolgicas, a tal ponto que hoje a quase totalidade dos discursos medicalizantes referem-se dislexia e aos TDAH.

Da cegueira verbal congnita disfuno cerebral mnima

Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante...5

A busca por razes cientficas das disfunes neurolgicas quando e como quem comprovou o qu leva a uma interessante viagem pelo terreno das transmutaes, com omisses e distores de fatos, criaes de mitos etc... Uma viagem que passa ao largo de evidncias cientficas, rigor metodolgico, tica; em sntese, ao largo da cincia. Para os propsitos deste texto, aqui apresentaremos uma breve histria dessa inveno, com os principais marcos temporais6. Como sinopse, podemos adiantar que h 113 anos sucedem-se hipteses de doenas neurolgicas que comprometeriam exclusivamente a5 6

Metamorfose ambulante, de Raul Seixas Para uma reviso mais profunda, remetemos aos textos de Coles (1987), Moyss e Collares (1992), Conrad (2006; 2007), Szasz (2007)

3

aprendizagem e/ou o comportamento; hipteses jamais comprovadas e sempre criticadas dentro da prpria medicina. Nessa trajetria, sempre que o questionamento atingiu o que poderamos chamar de nvel crtico, ocorreu a transmutao da hiptese vigente em uma nova, diferente e absolutamente igual. Mudanas apenas cosmticas, sem nunca atingir o essencial. No final do sculo 19, mais precisamente em 1896, Hinshelwood, oftalmologista ingls, escreveu um texto especulando a existncia de cegueira verbal congnita. Seu raciocnio era simplista e linear. Se doentes com cegueira verbal7 no conseguiam mais ler e escrever, ser que crianas e adolescentes que no aprendiam a ler no teriam a forma congnita da doena? No houve nenhuma repercusso no meio cientfico. Reao previsvel, pois a especulao era feita sem qualquer evidncia emprica ou estudo sistemtico. Posteriormente, o prprio Hinshelwood publicou alguns casos que, segundo ele, seriam patognomnicos da doena descrita; todos os relatos, porm eram tpicos de problemas pedaggicos. Em 1918, Strauss, neurologista americano, especulou sobre a existncia de uma leso cerebral pequena demais para acometer outras funes neurolgicas, mas suficiente para comprometer exclusivamente o comportamento e/ou a aprendizagem. Da, o nome Leso Cerebral Mnima. Em 1925, Orton, neurologista americano, publica um relato de caso de cegueira verbal congnita. Era a primeira citao dessa entidade aps Hinshelwood. Publica o primeiro, o segundo, uma enormidade de casos (talvez todos aqueles que ningum tinha visto); da, consegue vultoso grant de pesquisa (auxlio financeiro) da Fundao Rockfeller e logo depois afirma que no se tratava de cegueira verbal congnita, mas sim de outra doena, descoberta por ele, a strephosymbolia. Segundo suas prprias palavras, apenas observando crianas lendo, percebeu que as palavras formariam engramas nos dois hemisfrios, idnticos, simtricos e opostos, como as palmas das duas mos; ao ler, por exemplo, a palavra AMOR, formar-se-iam dois engramas: AMOR em um hemisfrio e ROMA no outro. Da, para evitar a confuso de smbolos, o crebro anularia o engrama ROMA, de modo que restasse apenasAMOR;

se o crebro no fosse capaz de fazer isso, aconteceria a leitura especular em

decorrncia dessa confuso de simbolos (em grego: strephosymbolia).7

J naquele tempo se sabia que pessoas com doena neurolgica grave (como trauma craniano, acidente vascular cerebral, tumores) podem apresentar sequelas motoras importantes, frequentemente paralisando um brao, uma perna, um hemicorpo; uma das sequelas que pode acontecer, geralmente acompanhando as motoras, a perda do domnio j estabelecido da linguagem oral e/ou, mais raramente, da escrita. Tais condies eram chamadas, respectivamente, afasia e cegueira verbal; posteriormente, cegueira verbal virou dislexia e cegueira verbal congnita virou dislexia especfica de evoluo, conforme veremos adiante.

4

Interessante que, mesmo sem qualquer comprovao cientfica, por Orton ou por qualquer outro autor, a leitura especular apresentada at hoje como um dos principais sinais e critrios diagnsticos de dislexia. Na literatura, em contrapartida, abundam pesquisas mostrando que todos fazemos leitura especular, em determinadas situaes, especialmente quando cansados ou estressados; no processo de alfabetizao, isto se torna ainda mais freqente. Black (1973) comparou a ocorrncia de leitura/escrita especular em pessoas consideradas normais e com diagnstico anterior de dislexia, no encontrando diferenas: os normais apresentaram 20% de erros reversos para letras e 7% para palavras; os dislxicos apresentaram 22% e 5%, respectivamente. A propsito, tambm as omisses de letras e palavras, outro pretenso sinal/critrio de dislexia, so feitas por todos, mais frequentemente na alfabetizao; alis, incoerente falar em omisses em algum que est adquirindo palavras e letras... A importncia atribuda leitura especular pelos que defendem a existncia de doenas neurolgicas que comprometeriam exclusivamente a aprendizagem pode ser apreendida pela prpria logomarca da Associao Brasileira de Dislexia8. Tambm nos Estados Unidos da Amrica se atribui grande importncia a Orton: uma das mais antigas e influentes associaes da rea chama-se Orton Dyslexia Society, sendo inclusive uma das fundadoras da International Dyslexia Association, qual a associao brasileira filiada. Pouco importa que a hiptese de Orton jamais tenha sido comprovada; esse pequeno detalhe ser omitido da verso oficial. Mesmo assim, estranho que nunca nenhum adepto dessa corrente tenha se interessado em conhecer o embasamento de seu discurso e prtica. Realmente, essa histria passa muito longe da racionalidade cientfica, situando-se mais adequadamente no terreno da crena e da f9. Em 1937, surge um novo personagem nessa trajetria. Sua faanha ser fundamental para alavancar a construo em curso, porm seu nome Bradley ser pouco citado, at mesmo relegado ao ostracismo, provavelmente para no manchar a biografia da entidade que se construa. Neurologista americano, realizou experincias em crianas e adolescentes abrigados em asilos e orfanatos, dando-lhes drogas psicotrpicas calmantes e anfetaminas (Bradley, 1937). Seus efeitos colaterais, em especial a dependncia qumica, j eram conhecidos em adultos e por isso no eram usados em crianas. A partir de experincias mal explicadas, sem o mnimo rigor metodolgico nem falemos em tica , assim podemosO logo um quadrado composto de 3x3 blocos; a sigla ABD se repete em cada linha, com uma letra em cada bloco; cada letra gira constantemente sobre si mesma, nos eixos vertical e horizontal, em imagens especulares de si prpria. 9 Agnes Heller (1989), em brilhante reflexo terica sobre as formas de pensamento em particular, os preconceitos que regem a vida em sociedade, aborda as diferenas entre cincia e religio, razo e f.8

5

resumir suas concluses: usando anfetaminas, todas as crianas com problemas de comportamento ou aprendizagem apresentaram melhora significativa e persistente de todos os sintomas. Realizava-se o sonho prometido pela indstria farmacutica: um remdio que melhoraria todos, de tudo e para sempre! Resultado jamais atingido por seus seguidores e que deve ser olhado com a devida cautela, para no dizer descrdito. Quem desrespeita seres humanos respeita dados? Respeita seus pares? Podendo ser includo entre os responsveis pelos experimentos mais antiticos na histria da medicina, no estranha que Bradley no esteja no mesmo panteo erguido a Orton... Porm, abstrado seu nome, sua hiptese ganhar vida autnoma, transmutada em teoria no questionvel, a justificar que crianas e adolescente normais sejam introduzidos no terreno da dependncia qumica, pela prescrio mdica de psicotrpicos. Em 1962, novo marco. Realiza-se em Oxford um workshop internacional, reunindo equipes de pesquisa que se dedicavam, desde 1918, a encontrar a leso preconizada por Strauss. Resultado unnime: usando todos os recursos disponveis, nenhuma equipe conseguira encontrar a leso nas inmeras pessoas a quem atriburam o diagnstico de LCM. Saliente-se que, mesmo no dispondo de toda a tecnologia atual, dispunham de algo bastante preciso: o estudo anatomopatolgico, pois haviam acompanhado vrias pessoas at sua morte e estudado seu crebro diretamente ao microscpio. Concluso bvia: no havia leso mnima! O erro de Strauss, porm, era apenas conceitual: se no havia leso, s podia ser uma disfuno! Assim nascia a famosa Disfuno Cerebral Mnima (DCM). Suas caractersticas: a) acometer apenas comportamento e aprendizagem, justamente as reas mais complexas e de maior complexidade avaliao no ser humano; b) critrios subjetivos, vagos, sem definio (por exemplo: hiperatividade, agressividade, baixa tolerncia a frustraes, entre inmeros outros) e sem nmero mnimo de sinais, de modo que preencher um critrio apenas j era suficiente para fazer o diagnstico; c) ausncia de sinais ao exame fsico e neurolgico; d) ausncia de alteraes em qualquer exame laboratorial, includos radiografia e eletroencefalograma. Porm, j nascia com um construto de fisiopatologia10, baseado nas experincias de Bradley e, muito importante, com um remdio disposio da indstria farmacutica.10

A hiptese ento aventada sustenta, at hoje, o paradoxal: dar psicoestimulantes, como anfetamina e derivados, para crianas e adolescentes de quem se diz serem hiperativos, agitados, agressivos... Torna simples o complexo: o problema de base estaria na rea cerebral responsvel por filtrar a infinitude de estmulos que chegam ao SNC a cada milsimo de segundo, de modo que apenas os mais relevantes naquela frao de tempo atinjam a cortical e se tornem conscientes. Essa rea, que realmente existe, conhecida pela sigla SRAA (Substncia Reticular Ativadora Ascendente) e elemento fundamental para que a ateno seja focada em alguma coisa por um tempo. Eureka! O defeito seria a falta de funcionamento da rea, ento um estimulante a faria funcionar e a ateno melhoraria e o

6

Nesse momento, duas trajetrias distintas, iniciadas uma com a cegueira verbal congnita e a outra com a leso cerebral mnima confluem e se fundem; a primeira passa a integrar a segunda, sendo uma de suas manifestaes: entre os critrios para o diagnstico da DCM constavam os distrbios de aprendizagem, sendo que o mais frequente seria a dislexia especfica de evoluo, novo nome da cegueira verbal congnita11. Mais uma vez, sem dar um conceito claro, muito menos dizer como fazer tal diagnstico12. Assim, ao diagnosticar dislexia especfica de evoluo o diagnstico de DCM estaria automaticamente feito. A partir desse ponto, a trajetria de tais entidades nosolgicas sofre uma inflexo. Antes restritas a poucos grupos de pesquisa, passam progressivamente a circular cada vez mais nas formas de pensar a vida cotidiana; inicialmente, vo ocupando espaos maiores no discurso mdico, difundindo-se para o discurso psicolgico e o pedaggico, e da invadindo o imaginrio de quase todas as pessoas13. A espiral passa a girar cada vez mais rpido...

E surge o TDAH! Tem que ser selado, registrado, carimbado, avaliado e rotulado se quiser voar...14

Em 1984, a Academia Americana de Psiquiatria, considerando que os critrios diagnsticos da DCM eram vagos, subjetivos e confusos e, tambm, que o defeito localizar-seia na rea da ateno, prope nova mudana, lanando no mercado a mais nova sensao: a Attention Deficit Disorders (ADD), cujos critrios eram ainda mais vagos, todos iniciados com frequentemente, acrescido de aes como parece no ouvir, age sem pensar (!), falha em terminar tarefas, tem dificuldades de aprendizagem. Pretender que tais critrios sejam objetivos, quantificveis, de fcil avaliao, e que uma criana s se encaixaria neles se tivesse algum problema neurolgico foge de qualquer racionalidade cientfica. Absurdo! Menos de dois anos depois, nova mudana cosmtica: a ADD foi subdividida em dois subgrupos: ADD e, quando tambm houvesse hiperatividade relevante, ADD-H. Embora

comportamento e a aprendizagem tambm! Brilhante! S falta comprovar, dentro dos cnones cientficos, transcorridos exatos 72 anos! 11 A cegueira verbal virou dislexia; a cegueira verbal congnita virou dislexia especfica de evoluo. Explicao para o pomposo nome: especfica porque s comprometeria a linguagem escrita e de evoluo pois tenderia a melhorar com o tempo. 12 Lembre-se que se estava falando de uma doena neurolgica, no de um simples resfriado ou de desobedincia, o que nos autoriza a exigir critrios precisos, dentro da racionalidade mdica. Alis, a bem da verdade, o diagnstico correto de um simples resfriado obedece a critrios bastante claros. 13 Inmeros fatores compem o contexto para esse fenmeno; aqui destacamos o fato de j haver uma medicao disposio e o constante papel subliminar das indstrias farmacuticas. Para uma reviso mais detalhada, sugerimos os textos de Coles (1987), Moyss e Collares (1992), Conrad (2006; 2007), Szasz (2007) 14 Carimbador maluco, de Raul Seixas

7

mantendo o dficit de ateno como problema central, a hiperatividade recuperava sua importncia, retornando ao palco. Pouco depois, nova alterao: ADD se mantm e ADD-H vira ADHD (Attention Deficit and Hyperativity Disorders). No Brasil, talvez pelas crticas, o termo distrbio equivalente a disorder na lngua inglesa foi trocado por transtorno. Surgia enfim o glamoroso TDAH: Transtornos por Dficit de Ateno e Hiperatividade. Mudam as aparncias, mas a carcaa continua a mesma... Nascida sob o discurso da cientificidade e da objetividade para avaliar comportamento e aprendizagem, nunca demais lembrar , como diagnosticada a mais nova verso, os TDAH? Basta visitar a pgina15 da associao que organiza, rege e controla os discursos sobre ela. L se encontram os critrios diagnsticos, que no apresentam alteraes importantes, nem mesmo cosmticas, em relao aos da DCM, atestando e autenticando seu carter metamorfoseado. Aps aprendermos que o diagnstico de TDAH feito com base nos sintomas relatados pelo paciente ou seus familiares e devidamente interpretados por um especialista, somos informados que no h nenhum exame que d o diagnstico. Embora baseado em um questionrio disponvel na pgina para ser impresso e respondido por familiares, professores e quem mais quiser, a nfase grande e compreensvel: o diagnstico s pode ser feito por um especialista. Palavra mgica: transmite rigor e confiana e defende o mercado de trabalho! O critrio A (Snap IV), por sua vez, composto de 18 perguntas; as nove primeiras se referem a desateno e as seguintes a hiperatividade e impulsividade. Respondendo afirmativamente a seis itens em um subgrupo, est feito, respectivamente, o diagnstico de predominncia de dficit de ateno ou de hiperatividade no TDAH que, na verdade, j fora definido quando os pais foram convencidos de que a criana tinha problemas. Bem, quais so as 18 perguntas, afinal? 1. No consegue prestar muita ateno a detalhes ou comete erros por descuido nos trabalhos da escola ou tarefas. 2. Tem dificuldade de manter a ateno em tarefas ou atividades de lazer 3. Parece no estar ouvindo quando se fala diretamente com ele 4. No segue instrues at o fim e no termina deveres de escola, tarefas ou obrigaes. 5. Tem dificuldade para organizar tarefas e atividades 6. Evita, no gosta ou se envolve contra a vontade em tarefas que exigem esforo mental prolongado. 7. Perde coisas necessrias para atividades (p. ex: brinquedos, deveres da escola, lpis ou livros). 8. Distrai-se com estmulos externos 9. esquecido em atividades do dia-a-dia15

www.tdah.org.br; acesso em 23/02/2009

8

10. Mexe com as mos ou os ps ou se remexe na cadeira 11. Sai do lugar na sala de aula ou em outras situaes em que se espera que fique sentado 12. Corre de um lado para outro ou sobe demais nas coisas em situaes em que isto inapropriado 13. Tem dificuldade em brincar ou envolver-se em atividades de lazer de forma calma 14. No pra ou freqentemente est a mil por hora. 15. Fala em excesso. 16. Responde as perguntas de forma precipitada antes delas terem sido terminadas 17. Tem dificuldade de esperar sua vez 18. Interrompe os outros ou se intromete (p.ex. mete-se nas conversas / jogos).

Porm, deve-se destacar que enfatizado que o questionrio (conhecido por SNAP IV) constitui o critrio A e deve ser avaliado em conjunto com os demais critrios16: B) Alguns desses sintomas devem estar presentes antes dos 7 anos de idade; C) Existem problemas causados pelos sintomas acima em pelo menos 2 contextos diferentes (por ex., na escola, no trabalho, na vida social e em casa); D) H problemas evidentes na vida escolar, social ou familiar por conta dos sintomas; E) Se existe um outro problema (tal como depresso, deficincia mental, psicose, etc.), os sintomas no podem ser atribudos exclusivamente a ele.

Se algum no se sentir includo... Em sntese, podemos afirmar que sob o cientificista algoritmo de criana que no aprende e/ou criana com problema de comportamento + exame fsico normal + exames laboratoriais normais esconde-se, de fato, a criana que incomoda. A cada metamorfose, sob a desculpa de dar maior objetividade o que seria isso, em se tratando de comportamento humano? , os critrios foram ficando mais e mais vagos, plenos de preconceitos, prenhes de f e ideologia... Recentemente, talvez porque quem traz em sua ndole a constante mutao, a metamorfose das aparncias servindo para que tudo continue como antes, tambm a Dislexia Especfica de Evoluo foi transformada em Dislexia de Desenvolvimento, para deixar claro

Critrios estranhos para que se pretenda serem objetivos, suficientes para diagnosticar uma doena neurolgica: no critrio B, quantos comportamentos devem estar presentes, no mnimo? Os critrios C e o D so exatamente iguais, alm de que chama a ateno que uma doena neurolgica possa no se manifestar em todo e qualquer contexto, mas s em dois. Como os pais de uma criana que procuram essa sada podem no se influenciar por questes como essas? Afinal, se procuraram ajuda (provavelmente porque induzidos a isso) lgico que acham que seu filho tem problemas de relacionamento. Em relao ao critrio E, alm de evidenciar a busca de ampliar o alcance dos tentculos dessa entidade, como afirmar isso categoricamente?

16

9

que se trata de uma entidade que surge no decorrer do desenvolvimento da pessoa17 e no secundariamente a alguma doena neurolgica que interrompa, ou mesmo reverta, o domnio j estabelecido da linguagem escrita. No decorrer desses 113 anos, essas entidades vieram se conformando e moldando ao sabor de modismos e at mesmo da cincia. Isso bem ntido em relao s pretensas causas, que passaram pelo trauma de parto, pela herana gentica, pelas alergias alimentares, pelos corantes e conservantes de alimentos, pelos agrotxicos... Do mesmo modo, elas18 se alimentam dos avanos tecnolgicos no campo mdico. Avanos inegveis, que muito tm colaborado para o diagnstico precoce de doenas reais, mas que tm sido usados para dar um tom cientificista aos discursos e aumentar sua credibilidade. Afinal, a tecnologia no tem dono nem ideologia e pode ser usada tanto pelos jedis como pelo lado escuro da fora.

A tecnologia recicla e sofistica as justificativas Procurando bem, todo mundo tem pereba, marca de bexiga ou vacina, e tem piriri, tem lombriga, tem ameba, s a bailarina que no tem...19

Em sntese, at aqui, essa histria fala de um construto ideolgico, sem qualquer embasamento cientfico, que muda constantemente de nome e aparncia, sem que se altere nada em sua essncia, isto , a biologizao de seres culturais, datados e situados nas palavras de Paulo Freire, na busca de homogeneidade da humanidade, com rotulao e estigmatizao dos que no se submetam. No deve ser desprezado o fato de que quando h um excesso de nomes, de conceitos, de causas para o mesmo fenmeno, com grande chance nenhum deles confivel. Em se tratando de doenas, isso ainda mais vlido; para uma doena neurolgica, ento... Interessante que a cada volta da espiral de metamorfoses, a cada novo nome que surge, se afirma, categoricamente, que, agora sim, se tem a prova de que aquilo aquilo mesmo. Recentemente, tivemos mais uma confirmao da ausncia de embasamento cientfico. Em setembro de 2008, foi realizado em So Paulo o 8 Simpsio Internacional de Dislexia, promovido pela ABD. Essa associao divulgou intensamente o evento, inclusive em sua pgina, onde destacou:Impossvel resistir tentao: no decorrer do desenvolvimento normal da pessoa normal. Sejamos diretos: no so as entidades que se moldam, se alimentam, que fazem nada, pois elas nem mesmo existem; quem as reconstri e molda, quem as alimenta so indstrias e profissionais que se nutrem s custas delas... 19 Ciranda da Bailarina, de Edu Lobo e Chico Buarque18 17

10

A boa noticia, veio com a Dra. Ana Beatriz Barbosa e Silva, mdica psiquiatra e escritora que apresentou a palestra magna do Simpsio DDA e Dislexia: Sintomas Clnicos e Neuroimagens. Segundo ela, mais do que ajudar no diagnstico, a neuroimagem trouxe a certeza que o TDAH (transtorno de dficit de ateno/hiperatividade) e a dislexia existem.20 Se a neuroimagem trouxe a certeza de algo, s se pode entender que antes no havia tal certeza... Vejamos, ento, o que as novas tecnologias propiciaram. Uma enxurrada de pretensas provas do defeito, do que no funciona, e de suas pretensas causas, chegando mesmo a retornar a explicaes j abandonadas. Para maior clareza, podemos dividir tais pretensas comprovaes em trs grupos, segundo as tcnicas de investigao usadas, a refletir o tipo de defeito que se busca encontrar: anatmicas, funcionais e genticas. Aqui, necessrio um parntese. No campo mdico, a maioria das pesquisas que buscam relaes causais entre uma doena e quaisquer outros fenmenos enquadra-se no mtodo epidemiolgico, um tipo de pesquisa quantitativa que se distingue do experimental por no realizar diretamente experimentos, limitando-se a observar, acompanhar e comparar determinados fatos e manifestaes que ocorrem ao longo do tempo em grandes populaes. Simplificando, podemos dizer que como se o pesquisador estudasse os efeitos de um experimento realizado pela natureza, ou por um grupo humano externo pesquisa, como as conseqncias de uma exploso vulcnica ou das bombas atmicas lanadas em solo japons. um tipo de pesquisa muito usado, especialmente quando seria antitico realizar o experimento, inviabilizando um desenho experimental. Obviamente, por no se realizar no interior protegido dos laboratrios, exige grande rigor metodolgico e cautela nas concluses. Algumas caractersticas merecem ser destacadas. Em primeiro lugar, do mesmo modo que na pesquisa experimental, todos os procedimentos de amostragem (grupo controle e grupo experimental), devem ser estatisticamente definidos, de modo a garantir a seleo casual de sujeitos e o tamanho mnimo das amostras; posteriormente, os dados devem ser estatisticamente tratados, por programas de anlise adequados ao objeto de estudo. Em segundo, as concluses tm um limite bem definido, pois por mais sofisticado que tenha sido o desenho da pesquisa, o mais complexo tratamento estatstico no ser capaz de fornecer relaes causais, somente correlaes estatsticas; as relaes causais so, sempre, construtos tericos do pesquisador. Por fim, mas no menos20

Disponvel em www.abd.org.br, acesso em 23/02/2009

11

importante, a definio clara de critrios precisos para incluso e excluso nos grupos controle e experimental; dito de outro modo, como diagnosticar a doena em estudo? Isto significa, para este texto, responder claramente questo: como identificar uma pessoa dislxica entre 100 mal alfabetizadas? Obviamente, tal diagnstico no pode se basear no domnio da linguagem escrita! Ora, mas exatamente isso que feito! Apenas como mais um exemplo da fluidez de tais critrios, podemos citar o trabalho de Vellutino (1979), que atingiu ponto nodal: o crculo vicioso e viciado de usar a linguagem escrita para diagnosticar quem teria dislexia. Em um desenho de pesquisa simples e bem delineado, o autor comparou adultos que haviam sido diagnosticados como portadores de dislexia especfica de evoluo com adultos considerados normais21, retirando a bvia vantagem que o grupo controle tinha em tarefas que envolvessem a linguagem escrita: usou letras e palavras da lngua hebraica, desconhecida de todos. Resultado: os dois grupos tiveram exatamente o mesmo desempenho, que foi bem menor do que o de um terceiro grupo, composto por adultos considerados normais, de origem judaica, que conheciam a lngua hebraica. Para Vellutino, o que se chama de dislexia apenas intruso lingstica. Sem dvida, a questo de como diagnosticar quem ser includo na pesquisa torna-se ainda mais relevante quando se trata de uma entidade nosolgica com critrios diagnsticos vagos e imprecisos como vimos. Dislexia diagnosticada pela leitura; TDAH pelos critrios mostrados acima... No assim que a cincia mdica costuma ser. Pontuadas essas caractersticas fundamentais da pesquisa epidemiolgica, analisemos o mtodo e o rigor cientfico que embasam o que vem sendo alardeado como ltimos avanos.

De volta ao comeo: o retorno da leso anatmica Todo mundo tem um primeiro namorado, s a bailarina que no tem. Sujo atrs da orelha, bigode de groselha, calcinha um pouco velha, ela no tem22

Na literatura, encontram-se relatos de alteraes anatmicas no crebro de pessoas ditas dislxicas. J de inicio, impressiona a existncia de alteraes em tantas regies: corpo caloso, cerebelo, reas occipitais, parietais e temporais. Aprofundando um pouco, percebe-se que cada localizao descrita por grupos diferentes de pesquisa, o que j sinaliza que talvez nenhum tenha achado algo concreto. Continuando, vemos que o nmero de sujeitos estudados sempre muito pequeno, contrariando uma das mximas nesse tipo de pesquisa:21

Assumindo que a linguagem no neutra, autores que questionam esses diagnsticos costumam chamar os pretensos dislxicos de leitores precrios e as pessoas ditas normais de bons leitores. 22 Ciranda da Bailarina, de Edu Lobo e Chico Buarque.

12

quanto menos se conhece um assunto, maior a amostragem necessria. A, o espanto: no h uma amostragem bem definida, segundo os rigores estatsticos, nem mesmo h um grupo controle e menos ainda a preocupao em relatar como foi feito o diagnstico. Em sntese, um pequeno nmero de pessoas de quem os autores dizem que eram dislxicos ou portadores de TDAH e cujo crebro perscrutado ao microscpio eletrnico, em busca de algo diferente do conhecido. Para maior clareza, tome-se como modelo de entendimento algo prosaico. Imagine-se uma pesquisa sobre cefalia em mulheres acima dos 40 anos de idade. Se encontrarmos uma correlao com o uso de tintura de cabelos, por exemplo, antes de tudo ser preciso saber qual a prevalncia23 de uso de tinta nos cabelos entre mulheres com mais de 40 anos que no tm cefalia. Em outras palavras, sempre ser necessrio saber a prevalncia do fenmeno estudado tanto na populao geral como nos estratos de quem tem a doena e quem no tem. No observar esse raciocnio cientfico bsico, pode levar a afirmar que ter duas orelhas causa de otite de repetio, pois todas as crianas com esse problema tm duas orelhas. Um dos autores mais citados pelos que defendem a existncia dessas entidades, quando tentam justificar a pretensa doena por um defeito na anatomia do sistema nervoso central (SNC) Galaburda, que possui grande nmero de artigos em peridicos e livros, sempre afirmando categoricamente a existncia de alteraes anatmicas em dislxicos, com destaque para a existncia de ectopias neuronais em crtex, tlamo e cerebelo, alm de simetria neuronal no plano temporal . Eis o relato do prprio autor de como surge sua linha de pesquisa: Finalmente, no final dos anos 70 do sculo passado, se encontrou a evidncia, quando Galaburda e colaboradores (1985) publicaram os resultados de vrios estudos em crebros dislxicos que indicavam a presena de sutis anomalias do processo de migrao celular ao neocrtex. Estas consistiam em ninhos de neurnios mal localizados na capa 1 do crtex cerebral, chamadas ectopias, e em focos infreqentes de microgiria, especialmente localizados no crtex perisilviano, que contm as zonas da linguagem. Achados subseqentes implicaram tambm o tlamo e o cerebelo. A localizao destas anomalias no desenvolvimento do encfalo foram relacionadas tanto com problemas fonolgicos e dficit de processamento auditivo, como tambm com transtornos motores com freqncia presentes em dislxicos; para melhor compreender as relaes de causa e efeito entre as caractersticas do crebro e as funes de conduta foram desenvolvidos modelos animais (Galaburda e cols, 2006) Acenda-se a luz amarela: modelo animal para dislexia?? Permanea acesa: como foi feito o estudo: quantos dislxicos, diagnosticados de que jeito? As alteraes encontradas tm23

Simplificando, prevalncia consiste na freqncia de X em um segmento populacional, em um corte transversal de tempo, aleatoriamente definido, como: quantos tm X em um dia, uma semana, um ano.

13

real significado patolgico? Isto , quantos de ns, que tivemos a sorte de no cair nesse diagnstico/rtulo, temos ectopias neuronais? E simetrias, quantos temos? Nenhuma resposta pergunta que os autores nem se preocupam em fazer... No foi fcil encontrar a resposta nos textos do autor ou de seus seguidores. No texto de 1985, Galaburda estudou os crebros de quatro (!) dislxicos. Posteriormente, publicou o relato de mais um dislxico com alterao anatmica cerebral. Ao todo, o autor mais citado e que mais pesquisou a anatomia do SNC em pretensos dislxicos estudou cinco (!!) pessoas, com idades de 12 a 30 anos, sem jamais explicitar como foi feito o diagnstico. Em contraste, o mesmo autor publicou em 1987, estudo sobre o plano temporal em 100 crebros obtidos ps-morte, todos sem qualquer alterao patolgica, de pessoas das quais no se conhecia nenhum dado relativo a sexo e dominncia lateral; tambm no h qualquer referncia a patologias, a includas dislexia e TDAH24. Os resultados mostraram que a relao de tamanho dos dois lobos temporais percorre um continuum entre dois os extremos; 16% dos crebros normais eram simtricos no plano temporal; o restante era assimtrico, sendo 63% com lobo esquerdo maior e 21% com lobo direito maior. Os autores afirmam no ser possvel qualquer inferncia sobre as causas e consequncias funcionais dessas diferenas, nem mesmo aventando a hiptese de que a simetria poderia ser patolgica. (Galaburda e cols, 1987) Enfim, com base em extrapolaes a partir de cinco pessoas e de modelos animais que se afirma, to categrica e to tranquilamente, que a dislexia e o TDAH so provocados por alteraes do desenvolvimento anatmico cerebral. Mesmo que mostrem um padro que se encontra em 16% da populao normal! Com essa disposio em transformar processos e fenmenos normais em provas de doena, s mesmo a bailarina pode no ter problemas...

Mudar para manter: agora a leso anatmica seria gentica

Futucando bem, todo mundo tem piolho, ou tem cheiro de creolina, todo mundo tem um irmo meio zarolho, s a bailarina que no tem25

Embora a pesquisa tenha sido financiada pelo Dyslexia Research Grant e pelo Orton Dyslexia Grant (mais uma vez, o reconhecimento e a exaltao a Orton, pela transformao de leitura especular em sinal de doena), no texto a palavra dislexia aparece apenas duas vezes, em uma mesma frase, quando os autores tentam, a partir de seus resultados sobre o continuum da relao de tamanho, especular sobre a divergncia de resultados na literatura sobre dominncia lateral e linguagem. Para reforar sua especulao, citam estudo sobre a associao entre distrbio de aprendizagem, dominncia lateral e cor de cabelo!! 25 Ciranda da Bailarina, de Edu Lobo e Chico Buarque.

24

14

J nos anos 1960, com o surgimento da DCM, surgiam as primeiras tentativas de explicar sua origem gentica. Os argumentos eram primrios demais, tratando comportamento como se fosse cor de olhos ou tamanho de ervilhas, de um modo to simplista que fariam Mendel se arrepiar... A partir de uma maior prevalncia entre meninos (3:1 em comparao com meninas), de ser mais comum em filhos de pais com o diagnstico e do fato de que, embora menos frequente, era mais grave em meninas, chegou-se no simplesmente concluso de que seria uma doena gentica, mas de que sua herana era do padro recessivo, ligado ao sexo. Simples: haveria de ser um gene do cromossomo X; bastaria um gene alterado para desencadear a doena em meninos (pois eles tm um cromossoma X e um Y); como na menina seriam necessrios dois (gentipo XX), seria mais grave. Simples demais, para no dizer simplrio, ignorando que se trata de comportamento e aprendizagem, as reas mais complexas dos seres humanos; plenos de subjetividade, sujeitos constitudos pela linguagem e pelos saberes, pela imerso na cultura e na histria, transformados em corpos biolgicos; pior, reduzidos a genes... Com freqncia, os que nos pretendem reduzir a um determinismo gentico ignoram que aprendemos modos de pensar, de ser, de agir com as pessoas em nosso entorno. Assim, simplista e biologizante demais ignorar que uma criana cujos pais tiveram dificuldades para controlar o esfncter vesical ter grande chance de repetir a histria, apresentando enurese, pois ser educada por pessoas que lidam mal com o fato; inconsciente, ou mesmo explicitamente, ser informada de que se espera e se aceita que faa xixi na cama at tal idade. Se quisermos falar em herana nessa situao, melhor agregar o adjetivo fundamental: herana cultural. Tambm as relaes com a aprendizagem, a leitura, a escola so apreendidas e aprendidas no interior da famlia e do grupo social a que se pertence. Analfabetismo no gentico, mas a falta de acesso aos bens culturais costuma ser herdada em sociedades marcadas pela desigualdade... Essa onda da causa gentica submergiu com o tempo, substituda por outros modismos do momento, inspirados na ecologia e preocupaes com a natureza, isto , os agrotxicos e produtos qumicos empregados na industrializao de alimentos. Porm, com os avanos da gentica, essa pretensa causa dessa pretensa doena retornou em sua plenitude. Somos bombardeados o tempo todo pela descoberta de quatro alteraes cromossmicas e de quatro genes causadores da dislexia. Um momento! Retorne-se ao pargrafo anterior! Quatro alteraes cromossmicas e ainda mais quatro genes causando uma s doena? Algo estranho... Quando h muitas causas envolvidas grande a chance de no se ter ainda acertado o alvo; mais ainda quando todas so de mesma ordem e mesma grandeza...

15

Descrevem-se alteraes nos cromossomas 1,6, 12 e 15. Tambm se afirma que os genes DYX1C1, KIAA0319, DCDC2 e ROBO1, entre outros menos cotados, seriam a causa da dislexia de desenvolvimento. Aprofundando s um pouco a pesquisa, comea a ficar claro que cada grupo de autores defende que a sua descoberta, de um cromossoma ou de um gene, causaria tal doena. Ah, bom! Assim fica mais claro. No h concordncia entre os que defendem uma causa gentica para uma pretensa doena. Continuando a busca, outra surpresa: alguns autores citam todas as oito possibilidades, sem hierarquia entre elas, deixando escapar no no-dito que se trata de oito hipteses, ainda a comprovar. Mais, vrios textos referem-se a esses quatro genes com a sigla GCPD, que significa genes candidatos a predispor a dislexia. Ou seja, genes que esto disputando o trofu de serem considerados predisponentes e no causadores mas que, mesmo para s isso, ainda precisam provar que merecem tal trofu!! Alguns autores so reiteradamente citados pelos que defendem a existncia da dislexia e do TDAH, quando pretendem convencer que so doenas genticas. Apenas como exemplo, analisemos alguns. Em todos, busquemos o rigor metodolgico que se exige de uma pesquisa desse tipo, com nfase na questo: como foi feito o diagnstico e como foi feita a seleo de sujeitos? O ponto central, lembrando que se trataria de uma doena neurolgica, : admitindo que exista, como identificar uma pessoa com dislexia de desenvolvimento entre 100 mal alfabetizadas? No campo mdico, inclusive na neurologia, exigem-se critrios claros, precisos, rigorosos e objetivos... Um trabalho muito citado o de Smith e cols (1983), relatando que a anlise do padro de herana em famlias com distrbio de leitura aparentemente autossmico dominante sugeria fortemente que um gene desempenhando papel etiolgico estaria no cromossomo 15. Nenhuma palavra sobre o diagnstico, apenas afirmam que tinham distrbio de leitura; os sujeitos foram intencionalmente escolhidos, sem referncia a grupo controle. Tambm buscando o padro de herana da dislexia, Pennington e cols. (1991) estudaram 1698 pessoas, pertencentes a 204 famlias, escolhidas a partir do diagnstico de dislxicos entre seus membros. Diagnosticado como? Escolhido como, entre quantos? Comparado com qual grupo? Ausncia total de informaes. A concluso foi que proporo significante de famlias dislxicas apresenta diferentes padres de herana: ligada ao sexo, ou aditiva, ou autossmica dominante; nesse ltimo grupo, ainda haveria heterogeneidade gentica. Segundo os autores, as evidncias so de que a dislexia seria etiologicamente heterognea. Ou seja, seria uma nica doena, porm com muitas causas e mltiplos padres de herana! Estranho, ao menos nos ares mdicos...

16

A heterogeneidade constantemente lembrada decorre de algo bastante prosaico: a ausncia de critrios diagnsticos precisos para uma doena que ainda ningum provou existir! Um diagnstico de doena neurolgica baseado exclusivamente em domnio mal estabelecido da linguagem escrita realmente muito estranho. Mais estranho ainda que no provoque estranhamento aps mais de um sculo! Ao gosto e, para no sermos ingnuos, segundo as necessidades de cada equipe, pessoas que lem e escrevem mal sero enquadradas nesse pseudo-diagnstico melhor falar em rtulo e submetidas a exames e mais exames, de ltima gerao, sempre em busca de algo diferente, que rapidamente ser transformado em sinal patognomnico de doena e logo em comprovao de que a doena em questo existe... Raciocnio viciado, sem dvida, bem distante da lgica da cincia. O trabalho de Marino e cols. (2005) bastante interessante, como modelo de que, nessa rea, mesmo quando os dados dizem no, o pesquisador pode continuar dizendo sim... Os autores estudaram especificamente o gene DYX1C1, localizado no cromossoma 15, buscando, atravs de tcnicas bastante avanadas de seqenciamento gentico e isolamento de fragmentos com poucos nucleotdeos (as molculas que compem a dupla hlice do DNA), relao com dislexia de desenvolvimento em 158 famlias com pelo menos uma criana dislxica. Ressaltando o alto poder de seu mtodo para detectar tais associaes, concluram que seus dados no suportam o envolvimento desse gene na amostra estudada, para enfim, afirmar que seus resultados talvez se devam a heterogeneidade gentica, pois tal gene um bom candidato para a dislexia de desenvolvimento! O trabalho de Cope e cols (2005) apresentaria desenho metodolgico mais adequado, se no incorresse no mesmo velho vcio, ao considerar dislxica a pessoa que apresente distrbio extremo de leitura, sem conceituar claramente o que seja nem como se diagnostica tal distrbio, ainda mais quando adjetivado de extremo. Defendendo que o defeito gentico estaria localizado no cromossoma 6, afirmam terem sido feitas vrias tentativas recentes para associar a dislexia de desenvolvimento com vrios genes desse cromossoma, com resultados inconsistentes; propem-se, ento, a estudar especificamente a associao do gene KIAA0319 com tal distrbio extremo de leitura. Concluram que seus dados implicariam fortemente esse gene, cuja funo especfica ainda desconhecida, com a suscetibilidade para dislexia de desenvolvimento. Pouco, ainda muito pouco para afirmar que essa entidade seria gentica e, portanto, estaria comprovada sua existncia. Sem contar que a associao com um padro gentico no constitui certido de nascimento para nenhuma doena... Aqui necessrio um parntese. Admitamos que se comprove a associao de determinado gene (gentipo) com uma determinada expresso no fentipo. Isso somente 17

evidenciaria a associao, assim como acontece com cor de olhos, ou de cabelos, ou formato de olhos, sem significar que tal manifestao seja patolgica. A comprovao de que um conjunto de sinais, sintomas, alteraes no exame fsico e em exames laboratoriais constitui uma doena passa por outros caminhos, dentro da racionalidade mdica. este um dos grandes equvocos nessa rea. No tem sentido buscar a causa gentica de algo to mal conceituado, mal definido, mal diagnosticado/rotulado... Talvez seja o caso de perguntarmos a qu servem tantos pesquisadores de renome, mantendo e amplificando no iderio da vida cotidiana que os seres humanos so homogneos, obedecendo a um nico padro de comportamento e de pensamento, e que a pluralidade e a diversidade so doenas. Mesmo que se comprovasse definitivamente a associao com um nico gene, somente se poderia afirmar que determinado modo de aprender e lidar com a linguagem escrita seria geneticamente determinado; mas, quem disse que apenas um modo de aprender normal e todos os outros so patolgicos? Mesmo isso, to pouco, s poderia ser pensado se fosse possvel retirar desta equao os outros lados: o ensino, a escola, os valores, a cultura, os preconceitos, a falta de acesso... Pode-se encontrar um ponto positivo no trabalho de reviso feito por Fisher e Francks (2006): explicita que se trata de genes candidatos, embora em meio a frases que afirmem, categoricamente, que j est bem estabelecido que fatores hereditrios contribuem para a suscetibilidade dislexia. Outro ponto interessante tambm explicitado: admite-se que interfiram com a migrao de neurnios e estabelecimento de sinapses, em hiptese intrigante, segundo os autores, j que nenhum deles vinculado aos circuitos neuronais relacionados leitura, nem mesmo com o crebro humano. No esto relacionados ao crebro, mas podem interferir com a migrao de neurnios? Um ltimo trabalho merece ser revisto, para mostrar as divergncias de opinies na literatura na rea. Tratando dos mesmos quatro genes (DYX1C1, KIAA0319, DCDC2 e ROBO1) estudados por Fisher e Francks (2006), Galaburda e cols (2006) afirmam que eles participam do desenvolvimento cerebral e enfatizam que variaesdesse desenvolvimento constituem o substrato biolgico (leia-se anatmico) da dislexia de desenvolvimento, definida como transtorno caracterizado por dificuldades na aprendizagem da leitura. Destaque-se que os autores falam em variaes do desenvolvimento anatmico, confirmando que no podem ser consideradas patolgicas. Ora, ento uma doena neurolgica seria causada por variaes que no chegam a ser patolgicas? Como caracterizar, com preciso, tais dificuldades, excluindo todos os fatores externos ao desenvolvimento anatmico do crebro, como se pressupe que deva ser feito no campo cientfico? Sim, porque para afirmar que uma pessoa tem dificuldades na aprendizagem, o 18

fator ensinagem teria que estar funcionando harmonicamente, para usarmos terminologia adequada a uma lgica funcionalista. Mais, subentende-se que dentre os que no aprendem bem, s se esteja trabalhando com os que no aprendem por um problema neurolgico, isto , que tenham sido excludos aspectos emocionais, culturais, de submisso, de resistncia etc. Pensando no interior da racionalidade mdica, deve-se exigir os critrios que embasam tal diagnstico; deve-se no aceitar essa tranqilidade que acalma conscincias... A partir de estudos de processamento auditivo26 em estudos com animais, Galaburda e cols (2006) extrapolaram seus dados para seres humanos, sistematizando uma hiptese que j permeava subliminarmente outros textos: a tentativa de vincular quatro genes com variaes no desenvolvimento anatmico cerebral e transtornos de conduta e cognitivos associados dislexia de desenvolvimento e ao TDAH. Pesquisas em animais, da extrapoladas para o ser humano. Mas extrapolar comportamento e cognio? Leitura e dificuldade de leitura em animais? Dificuldade de aprendizagem de leitura em animais?? No ser extrapolao demais?

Com a neuroimagem, no livra ningum...

No livra ningum, todo mundo tem remela, quando acorda s seis da matina, teve escarlatina, ou tem febre amarela, s a bailarina que no tem27

Com o desenvolvimento tecnolgico, existem alguns exames que conseguem avaliar a intensidade do metabolismo de clulas de determinado rgo, o que refletiria seu grau de funcionamento. Nos trs exames mais importantes RMN funcional, SPECT e PET 28 esses resultados so processados e apresentados em imagens digitais, enriquecendo as possibilidades de investigao e diagnstico mdico. Quando aplicados rea da neurologia,

Processamento auditivo um dos modismos mais recentes e polmicos nesse campo. Ser que com perguntas e respostas, ordens e aes possvel avaliar como o crebro processa um som? Pois isto que o nome promete e assim que se divulga que seja. Algo assim como pretender acesso privilegiado ao potencial de inteligncia, o malfadado QI, que tanto serviu para rotular, estigmatizar e excluir e que agora parece j estar se esgotando, cedendo espao a seus sucessores. Fica ainda mais esquisito pretender fazer isso em animais, pois pressupe que se domine sua linguagem. A pretenso de acesso direto e privilegiado inteligncia, aprendizagem, aos pensamentos, ao modo como o crebro processa informaes e sensaes, est alicerada no mtodo clnico, raiz epistemolgica da medicina e todas as cincias da sade no paradigma positivista. Para aprofundamento, remetemos ao texto Inteligncia abstrada, crianas silenciadas: as avaliaes de inteligncia, de nossa autoria, publicado em Psicologia (USP) 8 (1): 63, 1997 27 Ciranda da Bailarina, de Edu Lobo e Chico Buarque. 28 Respectivamente: Ressonncia Magntica Nuclear funcional; Tomografia Computadorizada por Emisso de Fton nico (da sigla em ingls, Single Photon Emission Computed Tomography) e Tomografia por Emisso de Psitron (da sigla em ingls, Positron Emission Tomography)

26

19

so chamados de neuroimagem e, tambm a, tm facilitado a deteco precoce de alteraes como tumores, sequelas de acidentes vasculares etc. Essa breve introduo tem por propsito deixar claro que so tcnicas que possibilitam atendimento mdico de melhor qualidade. O problema no reside nos exames, na tecnologia em si, mas no uso que se faz dela. E uma das conseqncias mais evidentes e perniciosas exatamente a amplificao da medicalizao de toda a vida. A avanada tecnologia permite que os mdicos olhem profundamente para as coisas que esto erradas. Ns podemos detectar marcadores no sangue. Ns podemos direcionar aparelhos de fibra tica dentro de qualquer orifcio. Alm disso, tomografias computadorizadas, ultra-sonografia, ressonncias magnticas e tomografias por emisso de psitrons permitem que os mdicos exponham, com preciso, tnues defeitos estruturais do organismo. Essas tecnologias tornam possveis quaisquer diagnsticos em qualquer pessoa: artrite em pessoas sem dores nas juntas, lcera em pessoas sem dores no estmago e cncer de prstata em milhes de pessoas que, no fosse pelos exames, viveriam da mesma forma e sem serem consideradas pacientes com cncer. (Welch e cols, 2008) o que tem acontecido tambm no campo do comportamento e da aprendizagem, aqui agregado exigncia crescente de modos de ser e de levar a vida mais e mais padronizados; as pessoas devem se ajustar ao padro, ao invs de a sociedade dever se organizar e reger pelo principio de acolher a todos em suas diversidades, propiciando-lhes as condies necessrias a sua realizao como ser humano. Os exames que se propem a avaliar as funes de determinado rgo ou sistema apresentam uma peculiaridade: fundamental que o rgo ou sistema em questo estejam em funcionamento, isto , devem ser ativados por estmulos adequados de modo a desencadear a funo que se pretende estudar no exato momento em que ocorre o exame. Tal fato, um tanto bvio, cria um obstculo intransponvel para nosso assunto: se se pretende avaliar as reas e funes cerebrais envolvidas no domnio da linguagem escrita, tais reas e funes devem ser ativadas exatamente pela linguagem escrita! Ora, mas ento seu resultado estar comprometido em todos os que no souberem ler, independente da causa ou motivo. At mesmo em quem no souber ler o texto apresentado no exame apenas porque est escrito em uma lngua que desconhece! Como ento o exame pode avaliar a presena de uma pretensa doena neurolgica que comprometeria esse domnio? Voltemos a nosso desafio, que vem sendo reiterado neste texto: admitindo que essa doena exista logicamente em taxas que seriam muito inferiores aos 10 a 12% apregoados como diferenciar uma pessoa com tal problema de uma mal alfabetizada? Afirma-se que em pessoas com diagnstico de dislexia de desenvolvimento e/ou TDAH, os exames de neuroimagem mostram pouca funo nas reas cerebrais envolvidas com 20

a ateno (e tambm com a linguagem escrita no caso da dislexia), o que viria confirmar a existncia das doenas pretendidas29. Porm, em funes cerebrais nada to simples e linear: frente a um texto em lngua desconhecida, saudavelmente desligamos e nosso pensamento voa por outras paisagens; nesse momento, um exame de neuroimagem mostrar que as reas de ateno e da leitura esto funcionando pouco. Mas isso tambm no o que acontece em quem no sabe ler? E no dizem que a dislexia de desenvolvimento se caracteriza por distrbios extremos na aprendizagem da leitura? Ento, tais resultados no seriam absolutamente previsveis, porque bvios? Coles (1987) relata que em americanos bons leitores o resultado do PET foi normal, quando solicitados a ler texto em ingls; quando receberam um texto em espanhol (que desconheciam), o resultado foi exatamente aquele que se diz tpico de dislexia. Simplesmente porque ler no apenas enxergar; ao contrrio, alm de pressupor que se enxergue e se saiba ler, envolve, em nmero infinito de reaes em cadeia, memria, afetos, emoes, perdas, alegrias, a prpria histria de vida da pessoa que l. bastante divulgado pelos que defendem a existncia dessa entidade que o resultado do exame se modifica com o tratamento, como se isso provasse a doena (Lozano e cols, 2003); ora, trata-se exatamente do contrrio: se o resultado muda depois que a pessoa aprende a ler, aps terapia que se resume a intervenes pedaggicas, pode-se questionar se o desempenho no exame se relaciona com as causas ou com as conseqncias de saber ler. Dito de outro modo, aprender a ler faz com que os exames de neuroimagem mostrem ativao das reas ligadas leitura! Aprender normaliza o exame e cura a doena! Porm, os pesquisadores que pretendem comprovar a existncia da dislexia de desenvolvimento com exames de neuroimagem no pedem que o doente em potencial apenas leia um texto; dele exigido muito mais, tarefas complexas mesmo para quem domina bem a linguagem escrita. Apenas como exemplo: As diferenas se apresentaram nas tarefas de juzo de letras, rima de letras e rima de pseudopalavras e em tarefas que exigiam converso de ortogrfico a fonolgico, onde os dislxicos apresentaram menor ativao das reas. Os achados de Shaywitz e cols (1998) apiam a hiptese de alterao no processamento fonolgico e existncia de reas estreitamente relacionadas com a dislexia de desenvolvimento. (Lozano e cols, 2003 - traduo pessoal, destaques nossos) Rimar pseudopalavras exige construir rimas com palavras que no existem e cuja leitura por si s j mais difcil, pois escapa de processo frequente na vida cotidiana, a quase adivinhao da palavra pela combinao de sua gestalt com o sentido na frase. Para responder se as letras T e V rimam (exemplo de rima de letras, segundo os autores) deve-se obedecer a29

Lembre-se, a propsito, da conferncia magna do 8 Simpsio Internacional de Dislexia.

21

qual lgica, a qual consenso generalizado, no exclusivo de lingistas e fonoaudilogos? O que rima de letras? Mais, a converso de ortogrfico a fonolgico pressupe domnio bem estabelecido da leitura e escrita, alm de conhecimentos especficos da rea da lingstica; alm disso, o ortogrfico no existe apenas na escrita, sendo ausente na fala? Quantos de ns, pretensamente normais, passaramos nessas provas? E mesmo assim, ainda se est apenas no terreno das hipteses. Muito longe da certeza, exibida at com arrogncia, pelos profissionais que tentam defender/vender sua atuao. A interpretao dos exames de neuroimagem exige cautela, pois o resultado consiste na subtrao da imagem de ativao em situao controle da imagem de ativao em situao de teste; Kristensen e cols (2001) alertam que processo equivalente deve ser feito no comportamento/funo testado, pois a interpretao pode ser comprometida pela ausncia de tarefas e de modelo cognitivo adequados. Existem tambm limitaes inerentes s prprias tcnicas que no devem ser minimizadas. A resoluo temporal no uso de PET, por exemplo, ainda muito incipiente (maior do que dez segundos) para avaliar processos cognitivos cuja escala de tempo no ultrapassa um segundo (Dmonet, 1998). Outras variveis intervenientes podem contribuir para diminuir a possibilidade de generalizao dos resultados. (...) Como decorrncia, identifica-se na literatura certa inconsistncia entre resultados descritos por pesquisadores de forma independente. (Kristensen e cols, 2001: 268) O uso da neuroimagem para diagnstico de TDAH til para apreendermos que vivemos tempos em que a biologizao e homogeneizao de comportamentos se amplifica em escala logartmica. Para tentar explicar as divergncias de literatura e, principalmente, de falhas do tratamento medicamentoso, alguns autores presumem que o TDAH no se resume a uma doena uniforme, mas tem vrios padres, tanto em termos de comportamento, como de exames de neuroimagem e de resultado a medicamentos. Para muitos, os exames de neuroimagem seriam fundamentais em casos complicados para que se atingisse o diagnstico correto e, consequentemente, fosse ministrada a droga adequada. Amen30 preconiza que

www.amenclinics.com; acesso em 14/06/2008. Daniel Amen proprietrio da Amen Clinics, rede de clnicas de neurologia/neuroimagem espalhadas pelos Estados Unidos da Amrica; em sua pgina na internet, a neuroimagem reificada, com imagens sedutoras pela tecnologia e casos cuja vida mudou radicalmente depois que, atendidos na clnica, chegou-se ao diagnstico (sempre biolgico) e tratamento correto; na pgina, pode-se tirar dvidas e agendar a consulta na clnica mais prxima da residncia. Em muitos casos apresentados, busca desqualificar o campo da psicologia, suas teorias e prticas; para apresentar as relaes conjugais como campo possvel de sua prpria atuao, cita um casal que procurou sua clnica aps gastar US$ 25.000,00 em terapia conjugal e ouvir da terapeuta que devia se separar; aps diagnstico e tratamento corretos, possvel pela neuroimagem, viveriam felizes at hoje.

30

22

existem

seis

subtipos:

1)

TDAH

combinado,

com

sintomas

de

desateno

e

hiperatividade/impulsividade combinados; 2) TDAH tipo primariamente desatento; 3) TDA superfocado: desvio preocupante de ateno, inflexibilidade cognitiva, preocupao excessiva, comportamento argumentativo e de oposio; 4) TDA de lobo temporal; 5) TDA lmbico; 6) TDA anel de fogo: comportamento de oposio severo, distrao, irritabilidade, mudanas de humor. Conhecendo a histria, apreende-se que essa entidade vem sendo construda por propositais omisses, distores, mitificao de pessoas e fatos, culminando na criao de um mundo artificial, onde qualquer desvio do homogneo pretendido transformado em doena. Para esse mundo, a amnsia social e cientfica fundamental. Elabora-se uma hiptese sem qualquer evidncia emprica que a suporte; convencidos de sua perfeio, cientistas passam a olhar a realidade sob o vis de sua crena; na busca de elementos que confirmem sua hiptese inicial, deformam a prpria realidade e essa realidade deformada , por sua vez, a comprovao emprica da hiptese, conferindo-lhe o estatuto de cincia. Transformada em verdade, atua ainda mais sobre a realidade, deformando-a mais e mais. As novas observaes da realidade assim artificializada permitem modificaes, evolues na teoria, com explicaes fisiopatolgicas cada vez mais sofisticadas, complexas, atraentes. Cria-se uma espiral viciada, com novas mscaras para a mesma velha idia, que nunca se comprovou. (Moyss e Collares, 1992: 40) Um trabalho nacional ilustra bem como esse processo no apenas persiste, mas se amplificou; lidamos aqui com um campo enraizado no cho dos dogmas e da f, ao largo da cincia. Sauer e cols (2006) avaliaram 36 crianas, divididas em dois grupos: 18 com diagnstico de dislexia (apenas isso, diagnosticadas e ponto final!) e 18 normais; todas foram submetidas ao teste de processamento auditivo, porm o exame de neuroimagem (SPECT) foi feito apenas no grupo das dislxicas; o resultado do SPECT foi comparado com o padro do exame e no com as crianas do grupo controle, o que j escapa do rigor exigido nos estudos epidemiolgicos31. Entre as 18 crianas dislxicas, o SPECT foi normal em nove (50%), com alteraes nos outros 50%; desses, trs mostravam hipoperfuso em regio mesial de lobo temporal esquerdo; dois, em outras reas do lobo temporal esquerdo; um, em lobo temporal direito; um, nos dois lobos temporais e em outros lobos; dois, em outros lobos. O tratamento estatstico no mostrou significncia para correlaes entre os resultados do SPECT e o

No mnimo, dever-se-ia comparar os resultados dos exames do GE com os do GC. Qualquer procedimento deve ser feito sempre em ambos os grupos, a menos que comprovadamente beneficiem o grupo de doentes e tragam risco potencial para os controles, o que no o caso.

31

23

diagnstico de dislexia e nem com o processamento auditivo, como se poderia prever com essa distribuio do SPECT. Alm de um nmero pequeno de sujeitos, sem clculo amostral nem seleo casual, esse pequeno nmero foi comparado com um padro do exame; esse padro, por sua vez, com certeza no incluiu entre sua prpria amostragem pessoas que apenas no sabem ler, sem serem doentes. Dito de outro modo, qual o padro normal do exame para pessoas analfabetas ou mal alfabetizadas? Ento, apenas para complicar um pouco mais, quantas pessoas absolutamente normais, bons leitores, apresentam alteraes nesse exame? Lembremos os dados de Coles (1987), j citados, sobre a mudana no padro do exame quando se apresenta textos em lnguas conhecidas ou desconhecidas; acrescente-se que o exame tem sido feito exigindo tarefas muito mais complexas do que apenas ler um texto, para concluir que, como para qualquer ao intelectual e qualquer modo de avaliao intelectual, o resultado pode variar segundo o horrio, a motivao, a ansiedade, a artificialidade e inmeros outros fatores. Assim, a resposta para a pergunta acima ser que provavelmente muitos bons leitores, seno a maioria, podero eventualmente receber um laudo de anormalidade em um exame de neuroimagem voltado a avaliar suas funes cognitivas. Entretanto, no apenas desconsiderando seus prprios dados, j enviesados, mas afrontando-os, os autores afirmam:Observou-se que 50% dos exames mostraram-se alterados, sendo a maior parte (7 de 9 exames alterados) com hipoperfuso em reas do lobo temporal esquerdo. (...) Conclumos que crianas com dislexia apresentam alteraes do processamento neurolgico central que podem ser detectadas tanto em testes especficos de processamento auditivo, quanto em exames funcionais de imagem como SPECT. (Sauer, 2006:109-110)

Assim, no livra ningum mesmo. Nem a bailarina

A indstria farmacutica e suas relaes nada delicadas

Transformam o pas inteiro num puteiro, pois assim se ganha mais dinheiro 32Essa espiral viciosa em que o presente repete o passado e ameaa o futuro lana uma teia sobre todos ns. Apropria-se de profissionais de diferentes reas: alguns, refns de sua formao inadequada; outros muitos, voluntrios em sua cela de luxo, da qual detm a chave e os cdigos; a maioria, em uma espcie de servido voluntria, em que se permitem um nico horizonte, ocupado pelas planilhas de atendimentos e cifres... Apropriados, passam a32

O tempo no pra, de Cazuza e Arnaldo Brando

24

constituir e serem constitudos pela prpria teia, pronta a aprisionar qualquer um de quem outro algum afirme no se enquadrar nas normas esperadas... O atendimento preconizado para as pessoas que caem nessa teia ser sempre multidisciplinar. Afinal, preciso manter todos os profissionais da teia satisfeitos, sem muitas disputas entre si. Neurologista, psiclogo, psicopedagogo, fonoaudilogo, terapeuta ocupacional, psicomotricista e, s vezes at pedagogo... No importa em que rea a pessoa a se submeter ao e sofrer o tratamento apresente problemas ou dificuldades, o tratamento ser sempre em equipe, longo e, principalmente, muito caro. Por trs da equipe, menos visvel, a estrutura que mantm a teia: a indstria farmacutica, interessada em ampliar o nmero de pessoas aprisionadas e apropriadas. Moynihan e Cassels, jornalistas que tm se dedicado a desvelar as estratgias da indstria de criar e vender doenas para aumentar seus lucros, ajudam a entender seus modos de agir e a amplificao da medicalizao em ritmo atordoante por interesses financeiros: As estratgias de marketing das maiores empresas farmacuticas almejam agora, e de maneira agressiva, as pessoas saudveis. Os altos e baixos da vida diria tornaram-se problemas mentais. Queixas totalmente comuns so transformadas em sndromes de pnico. Pessoas normais so, cada vez mais, pessoas transformadas em doentes. Em meio a campanhas de promoo, a indstria farmacutica, que movimenta cerca de 500 bilhes dlares por ano, explora os nossos mais profundos medos da morte, da decadncia fsica e da doena - mudando assim literalmente o que significa ser humano. Recompensados com toda razo quando salvam vidas humanas e reduzem os sofrimentos, os gigantes farmacuticos no se contentam mais em vender para aqueles que precisam. Pela pura e simples razo que, como bem sabe Wall Street, d muito lucro dizer s pessoas saudveis que esto doentes. (...) Sob a liderana de marqueteiros da indstria farmacutica, mdicos especialistas e gurus sentam-se em volta de uma mesa para criar novas idias sobre doenas e estados de sade. O objetivo fazer com que os clientes das empresas disponham, no mundo inteiro, de uma nova maneira de pensar nessas coisas. O objetivo , sempre, estabelecer uma ligao entre o estado de sade e o medicamento, de maneira a otimizar as vendas.(Moynihan e Cassels, 2007: 151) Em outubro de 1995, o rgo governamental encarregado de supervisionar e controlar medicamentos nos Estados Unidos da Amrica Drug Enforcement Administration (DEA), vinculado ao U.S. Departament of Justice alertou: Grupos de apoio e consultoria tm um papel importante na circulao de informaes sobre TDAH e seu tratamento. Nos anos recentes tem havido grande aumento na filiao a essas organizaes e na participao em suas atividades. Children and Adults with Attention Deficit Disorder (CHADD) a maior organizao de suporte do pas. CHADD tem um corpo de mais de 28.000 membros e tem 600 captulos ao longo do pas. (...) Recentemente tem chamado a ateno do DEA que a Ciba-Geigy (fabricante do produto base de metilfenidato sob o nome comercial Ritalina) contribuiu com 25

US$ 748.000,00 para a CHADD, no perodo de 1991 a 1994. O DEA sabe que a profundidade da relao financeira com a empresa no conhecida do pblico, incluindo membros da CHADD que nela tm se apoiado como guia para o diagnostico e tratamento de suas crianas. Uma comunicao recente do United Nations International Narcotics Control Board (INCB) expressava preocupao com organizaes no-governamentais e associaes de pais que esto fazendo um lobbying ativo para o uso mdico de metilfenidato em crianas com TDAH. (...) Um porta-voz da Ciba-Geigy afirmou que a CHADD essencialmente um canal para fornecer informaes para a populao de pacientes. A relao entre a Ciba-Geigy e a CHADD levanta srias dvidas sobre os motivos da CHADD para seu proselitismo para o uso de Ritalina. (U.S. Department of Justice, DEA, 1995; traduo pessoal)

O modelo se reproduz em vrios pases, inclusive no Brasil. Organizaes nogovernamentais se constituem agregando pais de crianas e adolescentes rotulados, portadores do pretenso distrbio e profissionais interessados em ajud-los; geralmente as associaes so presididas pela sua poro leiga; os profissionais compem o quadro da diretoria e assessorias cientficas, sempre em trabalho voluntrio. O mesmo texto publicado pelo DEA constatou dramtico aumento do uso de metilfenidato nos Estados Unidos da Amrica. Entre 1990 e 1995, houve um aumento de 600% na produo e consumo da droga; segundo estatsticas da ONU de 1993 sobre o uso de psicotrpicos, a produo e o consumo americanos eram cinco vezes maiores do que em todo o resto do mundo. Por incrvel no coincidncia, a CHADD encaminhou, em conjunto com a Academia Americana de Neurologia, petio ao DEA para que o metilfenidato fosse reclassificado dentro do CSA (Controlled Substances Act Lei de Substncias Controladas), do nvel II (junto com as anfetaminas e metanfetamina, por sua semelhana qumica e farmacolgica) para o nvel III, em que o controle menor. Tambm no surpreende que a CHADD negue qualquer relao de sua iniciativa com as contribuies financeiras da CibaGeigy (atualmente Janssen-Cilag). A solicitao no foi atendida. No Brasil, a histria se repete. Publicaes e teses, em especial no campo da neurologia e psiquiatria, insistem em divulgar o prejuzo causado aos pretensos pacientes e seus familiares pela exigncia de prescrio da droga em receiturios controlados. Alguns autores chegam a ser incisivos em suas concluses: O perfil de efeitos colaterais dometilfenidato seguro, no parecendo justificar o seu uso constrito no Brasil, ante os benefcios robustos amplamente demonstrados na literatura. (Pastura e Mattos, 2004: 100)

O acesso a informaes sobre produo e consumo de medicamentos no Brasil muito mais difcil; que dir de dados sobre relaes, contribuies e congneres entre indstria farmacutica e organizaes vinculadas aos rtulos de dislexia e TDAH. Em 2008, a 26

rede de televiso Bandeirantes iniciou uma srie de reportagens, intitulada Receita Marcada. O faturamento anual da indstria farmacutica no Brasil chegou a R$ 28 bilhes, 30% dos quais so destinados ao marketing, que inclui brindes, jantares, passagens para congressos, sempre gratuitos, para mdicos selecionados. Como feita a seleo? Aqueles que mais prescrevem os medicamentos da indstria em questo. E como a indstria sabe? Simples: negocia cpias das receitas mdicas com as farmcias (Jornal da Band, 2/7/2008) Outra evidncia da promiscuidade entre indstrias farmacuticas e ONGs voltadas ao atendimento dessa grande e lucrativa parcela da populao de jovens e adolescentes est na prpria pgina eletrnica33 da Associao Brasileira do Dficit de Ateno (ABDA), que destaca o que chama de empresas parceiras: Novartis e Janssen-Cilag, indstrias farmacuticas fabricante de produtos comerciais base de metilfenidato. Alguns dados ilustram o sucesso das estratgias dos vendedores de doenas, usando a expresso cunhada por Moynihan e Cassels (2007):

1. A produo mundial de metilfenidato (MPH), a droga mais usada para pessoas rotuladas como portadoras de TDAH, cresceu 400% entre 1993 e 2003. 2. Nos Estados Unidos da Amrica: a. A produo de MPH cresceu mais de 800% entre 1990 e 2000; a produo de anfetamina cresceu mais de 2.000% no mesmo perodo. ((U.S. Department of Justice, DEA, 2000) b. o consumo de MPH cresceu 600% entre 1990 e 1995; em 1995, correspondia a mais de 80% do consumo mundial. (U.S. Department of Justice, DEA, 1995) c. em 1995, 10 a 12% dos meninos entre 6 e 14 anos tinham o diagnstico de TDAH e recebiam MPH. (Breggin, 1999) d. o nmero de pessoas com diagnstico de TDAH subiu de 500.000 em 1985 para 7.000.000 em 1999. (Breggin, 1999) e. o nmero de pessoas medicadas com Adderall (dextro-anfetamina) cresceu de 1,3 milho em 1996 para 6 milhes em 2000. (U.S. Department of Justice, DEA, 1995) 3. o nmero de pessoas medicadas com Ritalina em 2007 era 6.000.000; 4.750.000 eram crianas, sendo 3.800.000 meninos.34

33 34

Disponvel em www.tdah.org.br, acesso em 08/04/2009. Disponvel em http://learn.genetics.utah.edu/content/addiction/issues/ritalin.html, acesso em 28/02/2009.

27

4. Entre 1992 e 2001, o consumo na Espanha cresceu 8% ao ano. (Criado-lvarez e Romo-Barrientos, 2003) 5. Em Portugal, 400 crianas tomavam MPH em 2003; eram 3.000 em 2004 e entre 6.000 e 8.000 em 2006. (Campos, 2007) 6. No Brasil, as vendas de MPH crescem em ritmo assombroso: 71.000 caixas de Ritalina em 2000 e 739.000 em 2004 (aumento de 940%); entre 2003 e 2004, aumentou 51%. Em 2008, foram vendidas 1.147.000 caixas, sob os nomes Ritalina e o sugestivo Concerta; aumento de 1.616% desde 2000. Se for includa a dextroanfetamina, droga menos utilizada, as vendas em 2008 ultrapassam 2 milhes de caixas. Nesse ano, ao preo no varejo, gastou-se cerca de 88 milhes de reais com a compra de metilfenidato.35

Com esses poucos indicadores, talvez os estudos de Moynihan e Cassels (2007) passem a merecer credibilidade. Segundo os autores, pode parecer estranho que indstrias farmacuticas busquem criar novas doenas, mas isto moeda corrente no meio, traduzida em bilhes de dlares anualmente. A estratgia, que consta em relatrio do Business Insight, consiste em mudar o modo das pessoas lidarem com seus problemas reais, at ento vistos como simples indisposies, convencendo-as de que so dignos de interveno mdica. Comemorando o sucesso do desenvolvimento de mercados lucrativos ligados a novos problemas da sade, o relatrio revelou grande otimismo em relao ao futuro financeiro da indstria farmacutica: "Os prximos anos evidenciaro, de maneira privilegiada, a criao de doenas patrocinadas pela empresa". (Moynihan e Cassels, 2007: 153) Podemos agora entrar na discusso sobre conseqncias dessas drogas para a vida das pessoas que sofrem esses tratamentos.

Controlar preciso, viver no preciso Este mundo no seguro. Qualquer dia pode ser justo seu ltimo dia, como um cowboy da cocana.36

Dados gentilmente fornecidos pelo IDUM (Instituto de Defesa dos Usurios de Medicamentos), em comunicao pessoal, poca em que este texto foi redigido. Atualmente, os dados esto disponveis em www.idum.org.br. O IDUM extrai esses dados do IMS-PMB Pharmaceutical Market publicao de instituto suo que levanta e atualiza todos os dados do mercado farmacutico brasileiro. 36 Cocaine, de DJ Khaled Ft. Akon

35

28

O tratamento preconizado para o TDAH que, lembre-se, incluiria a dislexia de desenvolvimento consiste em psicotrpicos estimulantes do sistema nervoso central, destacando-se duas drogas: metilfenidato (MPH) e dextro-anfetamina (D-anfetamina)37. O MPH a droga mais usada, comercializada no Brasil com os nomes Ritalina e, mais recentemente, Concerta. As demais ainda no foram liberadas no Brasil. A D-anfetamina bastante usada nos EUA, como Adderall. O mecanismo de ao do MPH e das anfetaminas exatamente o mesmo da cocana: poderosos estimulantes que aumentam a ateno e a produtividade. Com estrutura qumica semelhante, essas substncias aumentam os nveis de dopamina no crebro, pelo bloqueio de sua recaptao nas sinapses. Lembre-se que a dopamina o neurotransmissor responsvel pela sensao de prazer. Como conseqncia desse aumento artificial, o crebro torna-se dessensibilizado a situaes comuns da vida que provocam prazer, como alimentos, emoes, interaes sociais, afetos, o que leva busca contnua do prazer artificial provocado pela droga, culminando na drogadio. Alm disso, especula-se se aumentos desnecessrios da dopamina durante a infncia poderiam alterar o desenvolvimento do crebro. Como a medicao costuma ser retirada em torno dos 18 anos, esses jovens podem se tornar aditos a cocana na vida adulta, como modo de substituir a droga legal que tomaram por anos.38 As reaes adversas do MPH so inmeras e bastante graves, ao contrrio do que costumam afirmar os que defendem seu uso. Afetam praticamente todos os aparelhos e sistemas do corpo humano. Reaes Adversas do Metilfenidato (MPH)Sistema Nervoso Central Psicose Alucinaes Depresso Choro fcil Ansiedade Irritabilidade Agitao Hostilidade Suicdio Convulso Isolamento Insnia Confuso Sonolncia Estereotipia Compulso < interesse Tics Dor torcica Parada cardaca Taquicardia Palpitaes Hipertenso Dor estmago Obstipao Diarria Sistema CardioVascular Arritmia Aparelho Gastrointestinal Anorexia Nuseas Vmitos Cimbras Sistema EndcrinoMetablico Alt. Hipofisrias (GH e Prolactina) Retardo crescimento < estatura final Perda de peso Outras retirada e Rebote Insnia Depresso Exausto vespertina Hiperatividade Irritabilidade Piora dos sintomas

Viso borrada Cefalia Tontura Rash cutneo Anemia Leucopenia Perda cabelo Dermatite Enurese

A pergunta bvia : qual a lgica de usar estimulantes do SNC em jovens de quem se diz serem hiperativos? Remetemos nota explicativa do construto de fisiopatologia construdo para justificar a inveno da DCM e o uso de psicoestimulante. (pagina 6) 38 Disponvel em http://learn.genetics.utah.edu/content/addiction/issues/ritalin.html, acesso em 28/02/2009

37

29

Zumbi-like Facies anfetamina

Discinesias Snd. Tourette Alt. Cognio

Boca seca Gosto ruim Alt. Funes hepticas

Alt. funes sexuais

Febre inexplicada Artralgia > Sudorese

iniciais

(Breggin, 1999: 5; traduo pessoal)

Reviso da literatura recente, em especial em peridicos conceituados no campo cientfico, confirmam esses dados. Advokat (2007) fez uma reviso de artigos de pesquisa em vrias bases de dados da literatura mdica sobre os efeitos da anfetamina no crebro de animais de laboratrio e pessoas com diagnstico de TDAH; o objetivo foi obter informaes sobre as conseqncias neurolgicas em longo prazo desse tratamento. Destaque-se que o autor em momento algum questiona o diagnstico, nem informa os procedimentos e critrios em que se baseou. Nos estudos iniciais, usando altas doses da droga, as vias dopaminrgicas cerebrais eram lesadas. Estudos mais recentes, usando doses menores, comparveis s teraputicas atuais, os resultados foram contraditrios: um grupo de trabalhos mostrou quedas significantes na dopamina em corpo estriado aps a ingesto oral da droga; outro grupo mostrou sinais de crescimento dendrtico no crebro de primatas aps injees mimetizando uso teraputico. A concluso do autor clara: necessrio aprofundar estudos sobre as conseqncias cerebrais de tratamento crnico com anfetamina. Para elucidar se a droga MPH interfere realmente com o crescimento pnderoestatural, Faraone e cols (2008) realizaram anlise quantitativa de estudos longitudinais sobre dficits no crescimento esperado entre crianas com TDAH, tratadas com psicoestimulantes. Mais uma vez, destaque-se que os autores iniciam o texto afirmando que estimulantes so efetivos no tratamento de TDAH, mas existem preocupaes sobre efeitos no crescimento. A partir de critrios bem definidos para incluso de artigos em seu estudo, os autores relatam que a anlise revelou que o tratamento com psicoestimulantes provoca retardos estatisticamente significantes em altura e peso, com tendncia a atenuao desses dficits com o passar do tempo. Os dados mostraram tambm que no h diferena entre metilfenidato e anfetaminas e que o dficit tende a ser dose-dependente. Aps chegar a especular se o TDAH em si no poderia ser associado a crescimento desregulado hiptese comumente levantada pelos que insistem em tratar crianas e adolescentes com psicoestimulantes os autores concluem que estimulantes na infncia reduzem modestamente o crescimento em estatura e peso e que necessrio pesquisar mais para elucidar os efeitos de tratamento em longo prazo. 30

Roelands e cols (2008) estudaram os efeitos do MPH em atletas, em funo de seu uso crescente na busca de melhor desempenho e maior competitividade, uma vez que a inibio da recaptao de dopamina/noradrenalina nas sinapses melhora significantemente o desempenho e aumenta a temperatura corporal no calor. Foram estudados 18 ciclistas adultos saudveis e bem treinados, recebendo placebo ou metitilfenidato, uma hora antes do exerccio em temperatura ambiente a 18 e a 30C. Os resultados mostraram que o MPH tem efeito ergognico claro a 30C, no aparecendo a 18C. Para os autores, a combinao da inibio da recaptao de dopamina e exerccio em temperatura alta melhora o desempenho e eleva a temperatura corprea, sem que o indivduo perceba o esforo ou o stress trmico, o que aumenta o risco de hipertermia durante exerccio em pessoas que tomem drogas desse tipo. A propsito, lembre-se o grande nmero de mortes sbitas em crianas e adolescentes em tratamento com MPH ou D-anfetamina por uma pretensa doena neurolgica39. Esse fato pode ser encontrado facilmente em revises de literatura, mesmo em autores que preconizam seu uso. O tratamento padro para TDAH em crianas e adultos consiste em estimulantes, como metilfenidato ou dextro-anfetamina. Estes medicamentos so teis para muitas pessoas, mas podem fazer outras com TDAH tpica piorarem. Algumas reaes negativas a estes medicamentos podem ser extremas, como alucinaes, descontroles violentos, temperamento voltil, psicose e comportamento suicida. 40 Ao contrrio do que possa parecer, essa fala de autor que defende intransigentemente o uso de psicotrpicos para pessoas que no se adaptam s normas. de autoria de Daniel Amen, neurologista americano dono de uma rede de clnicas especializada em neuroimagem, tendo o diagnstico e tratamento de TDAH como uma de suas especialidades. A partir da, ele especula que as reaes negativas seriam devidas ao diagnstico inadequado, uma vez que defende que existam seis subtipos de TDAH, que s poderiam ser diagnosticados pela neuroimagem. Partindo de algum com conflito de interesses to evidente, sem comentrios... Porm, ele no pra a, aderindo corrente que no se contenta sem prescrever MPH e D-anfetamina para crianas; seria necessrio o diagnstico correto para o tratamento correto, que seria diferente segundo o subtipo:

Disponvel em www.methylphenidate.net, acesso em 05/03/2009. Esse o endereo eletrnico de uma ONG americana, iniciada por pais de crianas e jovens que morreram pelo uso de MPH. Recomendamos tambm assistir ao vdeo no link http://es.youtube.com/watch?v=SzdGrUcc_bQ 40 Disponvel em www.amenclinics.com, acesso em 26/08/08

39

31

Subtipo1 - TDAH combinado (desateno + hiperatividade) 2 - TDAH desatento 3 - TDA superfocado 4 - TDA de lobo temporal 5 - TDA lmbico 6 - TDA anel de fogo

Tratamento

Estimulantes: metilfenidato ou D-anfetamina

Estimulantes + Anticonvulsivantes Estimulantes + Antidepressivos

a) Antidepressivo + Anti-convulsivante b) Antipsictico

Sandler e Bodfish (2008) realizaram estudo piloto comparando eficcia em curto prazo, efeitos adversos e aceitabilidade de dois tratamentos de crianas e adolescentes com TDAH: com psicoestimulante na dose usual e com placebo em desenho para reduzir a dose de psicoestimulante a 50%. O desenho do estudo foi adequado, prospectivo; foi realizado em jovens acompanhados em uma clnica para tratamento de TDAH, estveis, sem qualquer questionamento sobre a pretensa doena, o diagnstico e necessidade de tratamento. A cada semana, os jovens recebiam um de trs esquemas teraputicos diferentes (dose total, dose 50% + placebo ou apenas placebo); pais e mdicos sabiam o esquema, porm os professores no (duplo cego); avaliaes eram feitas semanalmente. Os resultados mostraram que para os pais, que sabiam o que o filho tomava a cada momento, o comportamento manteve-se quando a dose de estimulante foi reduzida a 50% e associada a placebo, piorando quando foi dado apenas placebo. Para os professores, que ignoravam totalmente o que seus alunos estavam recebendo no momento das avaliaes semanais, no houve diferenas significantes entre os trs esquemas teraputicos. Os dados sobre efeitos adversos foram coletados semanalmente pela Escala Pittsburgh de Efeitos Colaterais (PSERS) e eram estatisticamente mais intensos e freqentes no esquema de dose total do que com dose 50% + placebo. Os autores concluram que, mesmo quando o paciente e seus pais sabem o que est sendo tomado, o uso de doses menores acompanhadas de placebo eficaz e tem boa aceitao. A relevncia desse trabalho mostrar que mesmo profissionais e pesquisadores que no questionam diagnstico e necessidade de tratamento esto preocupados com as reaes adversas do metilfenidato e da anfetamina e que, quando se usa o mtodo adequado duplo cego os propalados efeitos benficos so iguais aos de placebo; a diferena est nas reaes adversas. Pelz e cols (2008) publicaram artigo de reviso da literatura, comentando as vantagens da apresentao comercial do MPH de ao retardada, vendida no Brasil pela Janssen-Cilag 32

com o sugestivo nome Concerta.

Entre os benefcios apresentados pelos autores, a

possibilidade de dose nica diria e maior tempo de efetividade da droga. Entretanto, fazem pequena advertncia, alertando que os efeitos colaterais causados por um perodo prolongado de nvel sanguneo da droga e de ao sobre o crebro ainda precisam ser estudados. Em outras palavras, uma nova formulao de um psicotrpico do qual j se conhece graves reaes adversas lanada no mercado, saudada e ainda no se estudou os reais prejuzos que pode provocar no crebro e na vida de milhes de crianas e adolescentes. Na mesma linha de inconseqncia, Stopper e cols (2008), aps afirmarem que pesquisadores do Texas encontraram maior risco de dano genmico e de potencial carcinognico aps trs meses de uso de MPH, relatam que em estudo semelhante no encontraram tal efeito; sua concluso digna de registro: no parecem justificadas mudanas no tratamento atual, especialmente porque mais estudos esto em andamento e h esperanas de que eliminaro qualquer resqucio de dvida acerca das consequncias potenciais genotxicas ou carcinognicas do metilfenidato. Enquanto isso, nossos jovens devero continuar tomando a droga que ainda merece mais estudos?? Os pretensos efeitos benficos do uso dessas drogas em crianas e jovens tm sido amplamente alardeados. Sulzbacher (1973) reviu os trabalhos publicados entre 1937 e 1971 a respeito do uso clnico de psicotrpicos em crianas, com o objetivo de mudana de comportamento, avaliando o desenho da pesquisa e a forma de medir a mudana de comportamento. Dos 756 estudos publicados, 548 (72,5%) eram trabalhos no controlados segundo o mtodo experimental: faziam uso de apenas uma droga, sem comparao com grupo controle (placebo) e/ou no utilizavam o modelo duplo-cego (em que observador e paciente no sabem qual droga est sendo administrada). Portanto, sem qualquer contribuio cientifica real. Os 123 trabalhos restantes foram analisados relacionando a forma de medir o comportamento e os resultados apresentados. Encontrou-se uma relao inversa, altamente significante, entre o grau de rigor na medida de resposta e a porcentagem de estudos relatando uma diferena com o uso de drogas. Enquanto 88% dos trabalhos que empregaram impresso clnica como avaliao relataram efeitos benficos das drogas, apenas 17% reportaram esses efeitos quando foram usados testes psicolgicos, com toda a ressalva s avaliaes psicolgicas padronizadas. Esses dados so muito diferentes do que se divulga. Desde ento, nada mudou. Pelo menos, no para melhor... Reviso recente de literatura encontrou que a postura anti-cientfica no apenas se mantm, mas se amplifica.

33

Thomson e cols (2009) publicaram uma reviso sobre o uso de anfetamina para TDAH no Cochrane Database System Rev.41. Os autores partem do dado de que o diagnstico de TDAH crescente tambm em pessoas com deficincia intelectual, embora o tratamento ainda no tenha sido amplamente testado nesse