Texto - Domésticas - Gabriel Mascaro

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DOMÉSTICA – GABRIEL MASCARO É através da criação de um novo protocolo formal que o diretor Gabriel Mascaro em seu documentário Doméstica escapa da já banalizada prática da entrevista como forma de inclusão da palavra – e agora porque não do olhar – do outro. É também por meio da instabilidade e ambiguidade das imagens que Mascaro passa a pôr em questão a relação entre o espectador passivo que deve apreender o que a atividade da cena lhe passa, colocando, portanto, em questão a passividade do espectador, já que quem detém a câmera é preocupação constante no filme. Trata-se de um antecampo que é também campo, de um enunciador que é também espectador, de um documentarista que é também personagem. O filme conta a história autônoma de seis empregadas domésticas e um empregado doméstico que com a montagem de Eduardo Serrano passam a tecer relações entre si. O protocolo formal engendrado por Mascaro foi o recebimento de um kit de gravação (contendo uma câmera, um tripé e um microfone) e apenas uma semana para que sete adolescentes, entre 15 e 16 anos de seis capitais do Brasil, acompanhassem a rotina de suas empregadas domésticas. É através de uma constante exigência por parte das domésticas da presença do antecampo, demonstrando um também constante transbordamento de afetos entre os dois lados da câmera, é o olhar de quem está completamente inserido em tal relação que faz com que a fala do outro seja incluída. E é por esse meio que ao mesmo tempo o diretor cria um dispositivo novo e continua a operar com a dinâmica própria do documentário, ou seja, Mascaro sai do já banalizado dispositivo de entrevista como acesso a fala do outro para engendrar um novo mecanismo. Não à toa, tal procedimento causa também um reposicionamento do espectador até então passivo a atividade da cena, já que há uma

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Invenção de um olhar

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DOMÉSTICA – GABRIEL MASCARO

É através da criação de um novo protocolo formal que o diretor Gabriel Mascaro em seu

documentário Doméstica escapa da já banalizada prática da entrevista como forma de inclusão

da palavra – e agora porque não do olhar – do outro. É também por meio da instabilidade e

ambiguidade das imagens que Mascaro passa a pôr em questão a relação entre o espectador

passivo que deve apreender o que a atividade da cena lhe passa, colocando, portanto, em

questão a passividade do espectador, já que quem detém a câmera é preocupação constante no

filme. Trata-se de um antecampo que é também campo, de um enunciador que é também

espectador, de um documentarista que é também personagem.

O filme conta a história autônoma de seis empregadas domésticas e um empregado

doméstico que com a montagem de Eduardo Serrano passam a tecer relações entre si. O

protocolo formal engendrado por Mascaro foi o recebimento de um kit de gravação (contendo

uma câmera, um tripé e um microfone) e apenas uma semana para que sete adolescentes, entre

15 e 16 anos de seis capitais do Brasil, acompanhassem a rotina de suas empregadas domésticas.

É através de uma constante exigência por parte das domésticas da presença do antecampo,

demonstrando um também constante transbordamento de afetos entre os dois lados da câmera, é

o olhar de quem está completamente inserido em tal relação que faz com que a fala do outro

seja incluída. E é por esse meio que ao mesmo tempo o diretor cria um dispositivo novo e

continua a operar com a dinâmica própria do documentário, ou seja, Mascaro sai do já

banalizado dispositivo de entrevista como acesso a fala do outro para engendrar um novo

mecanismo. Não à toa, tal procedimento causa também um reposicionamento do espectador até

então passivo a atividade da cena, já que há uma exigência que o filme nos imprime: a todo

momento ter um olho na cena e outro na construção.

É por meio dessa intima relação entre campo e antecampo, por exemplo, que

podemos conhecer a história de Helena (a Lena) e Sérgio. No caso de Lena sua história é

totalmente enviesada, inclusive na apresentação do seu quarto, feita por Julia e também na

apresentação do nascimento de sua filha, contada pela mãe de Julia. Sérgio também tem sua

história contada por Jenifer e por sua mãe, mas ele ainda apresenta o seu quarto. As últimas

cenas de ambos é também o único momento em que vemos por parte de Lena uma fala dirigida

a sua filha e por parte de Sérgio um de seus momentos de solidão ao pegar o prato de comida e

ir para frente do portão – o que nos faz pensar em sua família, já que se comemora o natal. E é

por esse meio que Mascaro nos mostra como não é somente através do conteúdo narrativo

colocado em cena que nos chama a participar do filme, mas sim um algo de fora, um antecampo

que é também campo, é por meio desse jogo de múltiplas variações do campo e do antecampo

como figura estética e política que o diretor irá tirar também espectador de sua passividade e

colocá-lo em cada cena em constante atividade e é por essa confusão que o diretor irá também

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transformar o enunciador também em espectador – o que aqui chamarei também de ator-

espectador.

Vanuza (a Vavá) protagoniza a doméstica inicial porque é ela a responsável por

tomar o poder que é filmar para si – era Valdomiro Neto que até então detinha o antecampo, era

ele que possui o poder de filmar. Logo, ao tomar a câmera, um dispositivo de poder, e passar a

se auto gravar, Vavá nos insere de vez no filme e consequentemente na proposta de Mascaro

que é também a de revelar certa relação assimétrica entre documentarista e personagem, aliás

essa relação assimétrica que é muito comum no documentário fica patente no filme, ou seja,

uma assimetria entre quem filma e quem é filmado, nas relações econômicas e sociais, na

relação patrão empregado, mas isso sem deixar de ser confusa porque há um misto de amor e

alegria com relações de trabalho muitas vezes opressivas e marcadas por histórias tristes. E se

até então, o estranhamento de imagens tão impregnadas de não-cinema, nos incomodavam, isso

já não ocorrerá. Ao som de Reginaldo Rossi (o mal pela raiz), Vavá e Mascaro passam a nos

convidar a mergulhar na história dessas domesticas e domésticos tipicamente brasileiros.

A escolha de adolescentes de diferentes classes econômicas, no entanto, não faz

com que a relação entre o corpo e o poder esteja de fora, ou seja, tais adolescentes possuem

corpos investidos de poder que muitas vezes esses nem se dão conta, toda relação é uma relação

de poder e nem todo poder é coercitivo, ele também pode ser produtivo, mas a escolha de Dilma

que trabalha na casa de judeus, onde vemos por um enquadramento de câmera que a casa possui

mais de uma doméstica, a escolha de Maria das Graças (a Gracinha) que volta para casa de 15

em 15 dias e de Flávia que cuida do irmão deficiente de Ana Beatriz, pois sua mãe também é

empregada doméstica, não deixa que esquecemos a todo instante de quem é o poder de filmar e

quem é filmado, quem é patrão e quem é empregado, enfim de diversas relações assimétricas, já

tão comuns na dinâmica do documentário e que Mascaro nos mostra por outro protocolo formal,

sem deixar, é claro de incluir o outro, a sua fala e mais que isso seu olhar.

Essa relação de poder é mais viva e presente na última doméstica, a Lucimar,

vemos, logo de início, uma figura que parece um tanto quanto autoritária Luis Felipe que fala

que vai gravar um documentário e [que precisaria de sua autorização, ao qual Lucimar

prontamente assina.] É interessante notar aqui, a constante confusão das posições – como os

corpos desses adolescentes emanam um poder que ainda é confuso – entre o adolescente

documentarista e patrão – e como Mascaro torna tais enunciadores em espectadores de “suas

histórias”, ou seja, como ao fazer do antecampo um campo e com isso também um personagem,

os adolescentes que enunciam algo acabam por nessa dinâmica “confusa” virando espectadores

das próprias experiências que ouvem de suas domésticas, de seu próprio enunciado –, o filme

se faz dessa constante confusão dos adolescentes que são antecampo, mas são também campo,

que são próximos e distantes de suas empregadas domésticas e é também dessa criação de uma

linha tênue entre proximidade e distância que Mascaro também se afasta, deixando a gravação

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para quem está completamente inserido na relação, para que assim posso melhor fundir ou

melhor, para se confundir com o universo filmado. Mas o interessante a observar de Luis Felipe

é que por meio da montagem, vemos um certo tipo de tomada de consciência da situação, da sua

relação com a empregada que é ambígua, quando não dicotômica.

É por meio de uma pergunta direcionada a sua mãe – e após a Lucimar – que Luis

Felipe tem consciência e toma parte de um processo investigativo, a saber: como era a relação

entre você e Lucimar na infância? As respostas não deixam de ser curtas ou respondidas com

reticencias, mas o contraste das respostas da mãe de Luis Felipe e de Lucimar revelam algo

muito intrigante. A mãe de Luis Felipe responde que no início era complicada a relação patrão

empregada, já que ela via Lucimar como uma amiga que ela brincava quando ia para o sítio da

família no interior do Rio de Janeiro, já a resposta de Lucimar é que a “relação foi

amadurecendo”, o que talvez revele que mesmo quando criança ela por conta de sua família já

trabalhar para a família da mãe de Luis Felipe, teria desde aquela época uma certa relação

assimétrica, talvez nunca notada pela própria mãe quando criança. O que deixa a revelar que por

mais simples e pequenos, tais corpos, ainda crianças e adolescentes, carregam consigo um poder

que muitas vezes eles próprios não notam, uma relação confusa.

Luis Felipe, por um momento, nos deixa a sensação do se colocar no lugar do outro

e isso através de um olhar do outro porque o antecampo que é Luis Felipe e que acaba se

tornando ao mesmo tempo campo porque inserido totalmente nessa relação familiar patrão

empregada que faz parte de sua família e, por isso mesmo, o próprio enunciador acaba sendo

também espectador, mas nesse caso ativo porque ele é que de certa forma constrói tal dinâmica

do filme. Muito mais do que incluir a fala do outro, dar voz ao outro – o objetivo final de um

documentário –, Gabriel Mascaro nos deixa a sensação de em vários momentos do “se colocar

no lugar do outro”, Luis Felipe é esse ator-espectador que nos dá a sensação de se colocar no

lugar de Lucimar, ou ao menos pensar sobre a relação de sua família com a família empregada e

isso através da música do Bob Dylan (blowin’ in the Wind) – onde temos as fotos da infância de

sua mãe com Lucimar e após ele cantando um pequeno trecho bem significativo a saber: “the

answer, my friend, is blowin’ in the win/ the answer is blowin’ in the wind”, e um momento de

reflexão antes da cena final – e sua pergunta final para Lucimar: você se considera livre?

Muito mais que uma nova proposta de inclusão da palavra e do olhar do outro,

Mascaro acaba por fazer com que o próprio corpo do espectador – e aqui inclui-se o ator-

espectador – exija algo de novo, uma inquietação a cada cena, uma passividade do olhar

espectador para uma atividade de um olhar desse espectador. Não à toa é por essa constante

confusão que Mascaro nos propõe que ator se torne espectador e que o espectador e se torne ator

ou ainda, porque não, documentarista se tornar ator e vice-versa, o que importa é que tal

dinâmica exige do corpo do espectador uma inquietação àquela experiência.