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MOOC LISBOA E O MAR – TEMA 3 | MANUEL DIAS E A DIÁSPORA DOS CRISTÃOS NOVOS PORTUGUESES NA ÉPOCA MODERNA 1 Manuel Dias e a diáspora dos cristãos novos portugueses na época Moderna Mª do Carmo Teixeira Pinto MOOC - LISBOA E O MAR TEMA 3

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MOOC LISBOA E O MAR – TEMA 3 | MANUEL DIAS E A DIÁSPORA DOS CRISTÃOS NOVOS PORTUGUESES NA ÉPOCA MODERNA

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MOOC - LISBOA E O MARTEMA 3

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1. Manuel Dias, o sapateiro de Fronteira

Manuel Dias, cristão novo, nasceu em Fronteira, vila alentejana situada a cerca de

cinquenta quilómetros da fronteira entre Portugal e Espanha e a pouco mais do dobro

dessa distância de Lisboa, por volta de 1517-18. Rumou em direção à capital do reino, no

início da década de trinta, para aí ir aprender o ofício de sapateiro e nela permaneceu até

por volta de 1538, altura em que retornou a Fronteira. Quando do seu regresso à vila

alentejana, casou com Isabel Fernandes, natural de Évora-Monte, fixando então residência

na terra de origem da mulher, aonde permaneceu cerca de três anos, aproximadamente

até maio de 1541. Nesse ano, voltou para Fronteira e aí residiu até por volta de 1542,

altura em que partiu novamente para Lisboa, mas com um intuito bem diferente daquele

que o levara até à capital na década de trinta: agora, o seu intento era alcançar a Flandres

a partir de Lisboa1.

2. A política proselitista dos monarcas portuguesas

Como se explica a tomada de decisão de Manuel Dias, o sapateiro cristão novo de

Fronteira? É necessário recuarmos no tempo, para a podermos entender.

Em Portugal, o reinado de D. João II marcou o início de um período de instabilidade

no que respeita à relação entre a maioria religiosa cristã e a minoria judaica, tendo, nesse

momento, o apelo à conversão atingido o seu ponto alto. Assim, a partir de 1484 o clima

de insegurança era uma realidade. A Portugal chegavam os judeus castelhanos, que

1 IAN-TT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Évora, proc. 11304.

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desenraizados, sem profissão e sem casa, grande parte deles em trânsito para outros

lugares, contribuíam de forma significativa para agravar a criminalidade, que era

acompanhada por atos de desrespeito às autoridades, perpetrados por bandos judaicos

ou judaico-cristãos. Desordens, agressões criminosas, jogos ilegais, corrupção, violação

dos lugares e objetos sagrados caracterizam o dia-a-dia da vida comunal. Nas principais

cidades do reino propagou-se “uma onda popular de raiz anti-semita” que apresentava

duas caraterísticas: o ódio ao converso castelhano a que se junta o ódio contra o judeu

português. Esta agressividade resultava "do clima de insegurança física e psíquica, sentida

por toda a sociedade e cuja causa próxima era o ressurgir constante dos focos epidémicos,

atribuídos à entrada dos conversos castelhanos ou ao castigo pelos pecados"2.

Esta situação viria a sofrer um agravamento após os Reis Católicos terem

decretado a expulsão dos judeus dos seus reinos, em março de 1492. Os cronistas e a

própria documentação oficial dão-nos conta que um número significativo de judeus

castelhanos - embora não se saiba exatamente qual - atravessou a fronteira,

clandestinamente e, desprovidos de dinheiro e mercadorias com que pudessem liquidar a

capitação que lhes era exigida, acabaram cativos para a fazenda real, sendo

posteriormente doados pelo soberano a quem lhos pedisse.

Os principais centros urbanos, como Lisboa e Porto, temendo a repercussões da

chegada dos conversos, mormente o despoletar de conflitos, negaram-se a receber os

conversos. D. João II, embora não tenha corroborado esta decisão, proibindo, inclusive, a

expulsão dos conversos, foi ao encontro das preocupações expressas pelos seus súbditos

ao criar um corpo de inquisidores. Este era constituído por religiosos e outras pessoas

incumbidas de percorrer o reino com o objetivo de averiguar como viviam os conversos e

relatar os casos em que “se achar que nom sam boons christãos”3, devendo os Bispos das

várias dioceses do reino ser informados das conclusões alcançadas por este corpo de

2 TAVARES, Maria José Ferro - Judaísmo e Inquisição: Estudos. Lisboa: Editorial Presença, 1987, p. 20.3 Ibidem, p. 113.

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inquisidores. Estávamos em abril de 1487, praticamente meio século antes da criação do

Tribunal do Santo Ofício.

Perante esta realidade, os conversos castelhanos assustados com as semelhanças

com a experiência por eles já vivida em terras dos Reis Católicos, decidiram abandonar o

reino. D. João II proibiu-os de sair de Portugal, de modo a que as inquirições iniciadas

pudessem ser concluídas e os eventuais relapsos castigados. O monarca estava decidido a

acabar com a heresia e a preservar a todo o custo o equilíbrio da sociedade portuguesa.

Surgiram, então, os primeiros autos da fé de que os cronistas e os documentos nos

deixaram memória.

Porém, em outubro de 1488, D. João II decidiu autorizar a sua partida, exceto dos

suspeitos de judaizar, impedindo-lhes, contudo, o caminho para o Norte de África onde

lhes seria fácil retornarem à fé antiga, e interditou a entrada dos conversos castelhanos

em Portugal, sob pena de serem entregues aos oficiais de justiça dos Reis Católicos. Tendo

em consideração esta determinação, somos levados a concluir que soberano "tentava

evitar que Portugal se transformasse numa segunda Castela, na perseguição e no ódio ao

converso por parte dos cristãos velhos, e que tal fosse a causa de uma explosão popular anti-

semita. Daí que D. João II tivesse optado pelo mal menor: a permissão de saída, restringindo-

a apenas aos reinos cristãos”4.

Face ao elevado número de imigrantes que permanecia dentro do espaço das suas

fronteiras do reino português, D. João II, "integrado numa linha de pensamento

perfeitamente medieval, defensora do ideal de cruzada contra os infiéis (...) vai promulgar a

19 de Outubro de 1492 uma lei que concede amplos privilégios a todos os que se convertem.

Perante o elevado número de judeus castelhanos em trânsito, o monarca alarga os

privilégios dos conversos numa tentativa de por serviço de Deus e prooll e salvaçam das

allmas dos judeus que sse ora novamene em nossos regnnos qusierem tornar christaãos,

4 Ibidem, p. 21.

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chamar ao cristianismo não só o excedente daquele povo de passagem por Portugal, mas

toda a grei mosaica e permitir a sua existência num dos reinos da Península, integrada

agora no grupo religioso maioritário e dominante. […] Compelere intrare é o princípio

invocado (...) ao afirmar que a todollos prinçepes christaãos pertemçe teer cuidado e poer

pronta deligemçia per todollos moodos e maneiras licitas que a lei permyte pera anymar e

atraer os corações induriçidos dos infiees a verdadeiro conhecimento da nossa ssanata fee

católica e creemça de nosso ssallvador e remidor Jesuu Christo”5.

A ter produzido os efeitos desejados, ou seja, a conversão em massa dos judeus,

esta lei terá certamente originado graves dissensões entre os dois grupos (cristãos e

recém-convertidos) e a rejeição do converso acabaria por se vir a verificar, à semelhança

do que já sucedia no reino vizinho.

É à luz dos eventuais resultados nefastos da aplicação do diploma régio de 1492,

bem como das enormes pressões que os Reis Católicos exerciam sobre o monarca

português, que podemos entender o testemunho deixado por Jerónimo Műnzer sobre a

decisão de D. João II em expulsar todos os conversos até ao Natal de 1494 e os judeus até

ao Natal de 1496. Porém, sobre o fundamento desta informação nada se sabe e a morte do

monarca português, ocorrida antes daquela data, impede-nos de ter conhecimento de qual

teria sido teria a efetiva decisão de D. João II sobre este assunto.

3. A política de integração de D. Manuel

Quando D. Manuel subiu ao trono de Portugal, após a morte de D. João II, a sua

primeira decisão face aos judeus foi conceder carta de alforria aos que eram escravos,

dando-lhes permissão para sair do reino para onde e quando quisessem. Porém, logo no

ano seguinte, em Dezembro de 1496, a sua conduta em relação à minoria religiosa sofre

alterações ao determinar a expulsão da minoria judaica do reino. A explicação para esta

5 Ibidem

5

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atitude do monarca prende-se com o seu desejo de aliança com a casa real do reino

vizinho, que passava pelo seu matrimónio com D. Isabel, filha dos Reis Católicos. Quando

todos os detalhes do matrimónio já se encontravam ajustados, a princesa escreveu ao seu

futuro marido para que o casamento fosse adiado, até que D. Manuel tivesse expulsado os

judeus de Portugal. Evidentemente, que tal imposição teve como mentores os pais de D.

Isabel que pretendiam que o decreto de expulsão de 1492, por eles assinado, tivesse

efeito em toda a Península Ibérica.

Aprazado o casamento, os Reis Católicos não deixaram o seu plano cair no

esquecimento e pressionaram D. Manuel para expulsasse os judeu, que punidos pela

inquisição castelhana tinham vindo procurar abrigo em Portugal, executando, assim, a

cláusula de expulsão expressa no contrato de casamento. O monarca português, segundo J.

Mendes dos Remédios, “não se atreveu por si só a rezolver a questão e decretar a expulsão

dos judeus” e, por isso, reuniu o seu conselho. As opiniões dividiram-se entre os que

consideravam que a partida daqueles se traduziria em prejuízos de vária ordem para

Portugal, nomeadamente de carácter económico, (nobreza e alto clero) e aqueles que

consideravam que D. Manuel devia seguir os mesmos passos já dados por outros

monarcas da Europa e, tal como eles, expulsar os judeus (letrados identificados com a

posição dos concelhos e das ordens mendicantes e pregadores) 6. É de sublinhar que era

do interesse das cidades e da sua burguesia comercial cristã a partida dos judeus, pois

afastariam de vez os grandes mercadores judeus do seu caminho e deixariam de ter de se

confrontar com contrapoder que eram as liberdades, usos e costumes das comunas.

Não restavam muitas saídas ao monarca português e, em 5 de Dezembro de 1496, a

expulsão dos judeus foi decretada, sendo-lhes dado dez meses para abandonar o reino

“sob pena de morte natural, e perder as fazendas, pera quem os acusar…”7. D. Manuel

6 REMÉDIOS, J. Mendes dos - Os Judeus em Portugal. Reimp. Lisboa: Liv. Alcalá, 2004, vol I, p. 287-288 (1ª ed., Coimbra: Edit. F. França Amado, 1895).

7 Ibidem, p. 289.

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assinara o édito, mas não estava efetivamente interessado na partida da população

judaica. Desejava que eles permanecessem no reino e tudo faria para conseguir

concretizar esse objetivo, procurando, assim, evitar o empobrecimento do reino em

dinheiro, metais preciosos e mercadorias e pela perda dos tributos pagos pelos judeus.

Assim, em Dezembro desse mesmo, começou por limitar o embarque dos judeus

aos barcos e comandantes da sua confiança. Na Páscoa do ano seguinte foi mais longe:

tendo reunido o seu conselho, determinou que todas as crianças menores de catorze anos

fossem retiradas aos pais, a fim de ser batizadas e instruídas na fé católica. “Sabia-se, e ao

rei desassombradamente se disse, que não era a violencia, que se devia empregar na

conversão dos judeus; mas D. Manuel não recuou…”8.

Entretanto, aproximava-se o momento em que os judeus deviam abandonar o

reino. Primeiramente, foi determinado que o podiam fazer a partir do Porto, Lisboa e

Algarve, mas depois a capital passou a ser o único local de partida. “D. Manuel preparava-

lhes porém um ardil, afferrado como estava á idéa duma conversão, que elle por todos os

modos suppunha necessaria e indispensavel”9. Assim, em vez das embarcações que os

levassem para outras paragens, os judeus, que se tinham todos concentrados na capital do

reino e se encontravam recolhidos nos Estaus, receberam a visita de dois judeus

convertidos que se dispunham a catequizá-los. Por fim, os judeus foram conduzidos às

igrejas e batizados à força, por altura da Páscoa de 1497.

D. Manuel não ignorava que a coerção não era o melhor caminho para garantir a real

conversão dos judeus, mas não hesitou em determinar, em maio de 1497, que durante

vinte anos ninguém inquirisse sobre o comportamento dos conversos, ficando banido

definitivamente banido o uso de qualquer sinal distintivo. O prazo das duas décadas de

imunidades devia terminar em Fevereiro de 1518, mas, entretanto, “foi chegando a corte a

8 Ibidem, p. 290.9 Ibidem, p. 295.

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propósitos de maior tolerância, de modo que em lei de 21 de Abril de 1512 se prorrogou por

mais dezasseis anos o período de vinte. Deste modo era prolongada a imunidade até

1534…”10, o que revela bem como o monarca não estava interessado na partida dos recém-

batizados.

Os judeus que receberam a água do batismo, em 1497, não estavam seguros de

qual iria ser o seu futuro no reino de O Venturoso e procuram libertar-se, o mais cedo

possível, da teia em que o poder régio os procurava apreender. Assim, muitos reduziram

os seus bens a dinheiro e mercadorias, que enviavam para o exterior, e abandonavam o

reino com as suas famílias em direção a Itália, Flandres e Oriente. Era a primeira vaga da

diáspora cristã nova.

Quando estas fugas começaram a ser protagonizadas pelos elementos mais ricos da

ex-comunidade judaica o poder real compreendeu o rude golpe que a economia do reino

estava prestes a sofrer e tomou medidas de forma a evitar a sangria de capitais. Assim,

entre 1497-1499, a publicação de um conjunto de leis impôs grandes restrições ao êxodo

de pessoas e bens ao:

- proibir os naturais do reino, bem como os estrangeiros, de negociar com os cristãos novos mercadorias ou dinheiro, sob pena de perda de todos os seus bens móveis e de raiz para a coroa;

- impor a rescisão, no prazo de oito dias, dos negócios já realizados, antes ou depois de os judeus terem sido batizados;

- impedir qualquer pessoa de comprar bens de raiz aos conversos sem autorização régia especial;

- interdita a saída dos cristãos novos do reino com a família, sem permissão expressa do monarca, quer por mar, impondo neste caso gravosas sanções a quem os transportasse, quer por terra11.

10 ALMEIDA, Fortunato de - História da Igreja em Portugal.2ª ed. Porto-Lisboa: Livraria Civilização, 1968, vol. II, p. 353.11 É necessário sublinhar que pouco tempo após a determinação destas medidas restritivas da circulação dos cristãos novos, o poder real começou a abrir exceções e em março de 1507 foi levantado o embargo que não lhes permitia sair livremente do reino, restringindo-se às terras cristãs o destino das suas viagens, tendo sido revogada,

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D. Manuel, uma vez decidido a manter os neófitos nos limites geográficos do seu

reino, tudo iria fazer para assegurar que passassem a fazer parte integrante do Portugal

da época Moderna que pretendia construir, cujos alicerces era a ideia de unidade assente

em três vértices: um rei, um reino, uma religião. Para alcançar esse objetivo havia que

consolidar a integração da ex-minoria judaica na maioria cristã. E como fazê-lo?

A onomástica foi um dos meios encontrados para a concretização desse objetivo.

Assim, os judeus que receberam o batismo tomaram nomes cristãos, embora, por vezes,

tivessem mantido o apelido judaico como alcunha.

Também a vizinhança foi um fator através do qual se pretendeu consolidar o

processo de integração dos cristãos novos na sociedade Quinhentista e que se revestiu de

particular importância nos centros urbanos, como Porto, Évora e Lisboa. Esta nova

situação foi possibilitado pelo facto de os cristãos terem podido recuperar as suas casas e

propriedade e, consequentemente, voltado às antigas judiarias, que tomaram novas

designações (vilas novas ou ruas novas). Reocuparam, assim, o espaço onde

anteriormente tinham vivido, mas sem a existência de qualquer tipo de separação física,

como no passado tinha existido.

Com a proximidade física entre neófitos e cristãos velhos e a consequente relação

de vizinhança daí resultante, D. Manuel pretendia, por um lado, que a efetiva conversão

dos recém batizados viesse a ocorrer com maior rapidez e, por outro, que fosse exercida

uma vigilância sobre estes, por parte dos seus vizinhos cristãos velhos.

A integração da ex-minoria judaica processou, igualmente, de forma legal. Assim,

foi proibido aos cristãos novos contrair matrimónio entre si. Esta medida tinha como

objetivo proceder à integração dos neófitos nas famílias cristãs velhas, por meio do

casamento, permitindo uma assimilação da religião oficial pelo cônjuge que se tinha

igualmente, a proibição de venderem os seus bens. Ao mesmo tempo, D. Manuel derrogava as penas em que tivessem incorrido os que tinham fugido clandestinamente do reino, desde que quisessem viver nele como cristãos.

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“convertido” e assegurando uma educação religiosa dos descendentes nos preceitos da fé

católica. Esperava-se, também, que a família cristã exercesse um controlo sobre os

elementos cristãos novos que passassem a integrá-la, à semelhança do que se pretendia

com a criação das condições que possibilitassem a proximidade física entre cristãos novos

e cristãos velhos.

Mas a integração dos neófitos na sociedade moderna, processou-se também pela

via cultural. Nesse sentido, após o batismo, os cristãos novos foram proibidos de escrever

em caracteres hebraicos e de possuir livros escritos nessa língua, procurando-se, assim,

impedir a divulgação da língua hebraica, importante esteio da religião mosaica.

A política de D. Manuel visava de facto a inserção da ex-minoria judaica na

sociedade cristã, mas para que esse objetivo fosse alcançado não bastava impô-lo de

forma coerciva, através da lei “Era necessário que estes [cristãos novos] sentissem que

algo lhes era dado em troca do muito que se lhes tinha retirado” e, para isso, havia que

lhes permitir o acesso "a tudo o que lhes era vedado anteriormente, quer pelas leis

canónicas, quer pelas ordenações gerais do reino. A nobreza, a Igreja, as magistraturas, os

cargos municipais, o direito de cidadania e de vizinhança, a Universidade, seriam as

concessões, o prémio para a integração total na sociedade portuguesa. O soberano [D.

Manuel] soube-o desde o início e, como tal, os usou"12.

Assim, aos cristãos novos franquearam-se-lhes as portas da nobreza e do clero,

tornando-se escudeiros e cavaleiros da casa real, bem como cónegos ou frades,

respetivamente. Ingressaram nas universidades de Coimbra e Salamanca, formando-se em

leis e medicina, e nas ordens militares. Também passaram a participar de forma ativa na

condução dos destinos da vida concelhia, ocupando cargos municipais.

Poderemos, então, concluir que a política de integração de D. Manuel triunfou

efetivamente? Supomos que não e o próprio monarca pôde aperceber-se disso quando o

12 TAVARES, Maria José Ferro - Op.cit., p. 48-49.

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reino viveu momentos de agitação, que se traduziu em levantamentos contra os cristãos

novos como os que ocorreram em 1504 e, particularmente, em 1506.

Nesse ano grassava a peste em Lisboa e, por isso, faziam-se preces públicas

implorando a misericórdia de Deus. No dia 15 de Abril de 1506, uma procissão recolheu-

se à igreja de S. Domingos, no meio de grande fervor religioso, quando alguém afirmou ver

um clarão estranho em torno de uma hóstia consagrada que repousava num pequeno

recetáculo, junto a um crucifixo, o que foi imediatamente considerado um milagre. Causou

o facto alvoroço e prolongou-se durante vários dias, continuando as pessoas a afirmar que

viam perfeitamente o singular clarão. Num domingo, depois da celebração dos ofícios

divinos, muitas pessoas examinavam o suposto prodígio e um cristão novo presente terá

manifestado alguma incredulidade acerca do milagre. Tanto bastou para que a multidão se

exaltasse e o matasse, queimando o seu cadáver no Rossio. Ao alvoroço acudiu muito

povo, a quem um frade incitou contra os cristãos novos, no que foi apoiado por outros

frades que gritavam “Heresia! Heresia!” A multidão começou então assassinar os

conversos com que se cruzavam nas ruas da capital e os tumultos continuaram por mais

dois dias, saldando-se num elevado número de mortos.

A justificação os tristes episódio ocorridos no início do século XVI não deve ser

procurada no sentimento religioso, mas sim na rejeição por parte da sociedade cristã do

elemento cristão novo, baseada em questões de ordem económica e social. No entanto, o

facto dos próprios cristãos novos nem sempre terem revelado verdadeiro interesse em se

integrar na sociedade portuguesa terá certamente contribuído para exacerbar uma efetiva

rejeição, por parte dos cristãos velhos.

“A fusão num só corpo da sociedade cristã não seria conseguida pelas medidas

coercitivas de D. Manuel, nem pelos privilégios por ele outorgados. Tínhamos agora uma

comunidade marcada pela diferença, e onde uma minoria cristã dificilmente se integrava na

maioria cristã (…). Os cristãos novos seriam a gente de “nação”; a religião transmitia-se por

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“sangue”. Os cristãos-velhos não se esqueciam de que eles tinham sido judeus e continuavam

a assinalá-los. Por outro lado, os cristãos-novos preferiam a diferença, como sobrevivência.

Casavam entre si com ou sem autorização real; habitavam na antiga judiaria; mantinham

os seus costumes e tradições religiosas (…). Por medo iam às igreja, confessava-se e

comungava quando mandava a Igreja, baptizavam os seus filhos; eram membros das

confrarias. No seu íntimo e no interior das suas casas, comunicando uns com os outros,

continuavam a praticar o descanso sabático, com as orações, feitas agora em sinagogas

clandestinas; festejavam a Páscoa (…). Cristãos, no exterior, judeus, no seu íntimo, os

cristãos-novos, mal-educados nos preceitos da nova fé, cedo viriam a cair na acusação de

hereges”13.

Terá sido o motivo que levou D. Manuel, em 1515, a requerer ao Papa o

estabelecimento da Inquisição em Portugal. A intenção do monarca não se chegou a

concretizar, mas o seu filho, D. João III, levá-la-ia avante.

À data da morte de D. Manuel, em 1521, comunidades cristãs viviam momentos de

grande insegurança e medo, que a instalação da Inquisição em Portugal, em 1536, apenas

veio aumentar. A promessa feita por D. João III, filho do monarca falecido, de não se

inquirir sobre o comportamento religioso dos cristãos novos até 1538, esvaziava-se de

sentido com estabelecimento do Tribunal do Santo Ofício.

A bula Cum ad nihil magis, de 17 de dezembro de 1531 (será uma outra de teor

praticamente idêntico, datada de 23 de maio de 1536 que instituirá a Inquisição moderna

portuguesa), determina, em primeiro lugar, que o que haveria a inquirir seriam "os ritos e

cerimónias de caráter judaico, alguns dos quais são antes superstições pagãs". Ao propor-se

levar a cabo esta averiguação e punir aqueles cujo comportamento pudesse ser

relacionado com aquelas práticas, a Inquisição recolocava a dúvida que há vários anos

13 Ibidem, p. 53-54.

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existia no seio da sociedade portuguesa: era a conversão dos cristãos novos real ou

aparente?

A verdade é que à teoria não correspondeu uma prática real de "bom cristão" e

tornava-se difícil determinar até que ponto o "novo cristão" vivia e sentia efetivamente a

fé cristã, tanto mais que, não raras vezes, o seu comportamento se revelava ambíguo e

comprometedor. Além disso, o peso da sua herança cultural e religiosa funcionava como

um estigma, que não havia desparecido com o batismo, e que levantava suspeitas

constantes sobre o seu comportamento. O Bacharel Gramaxo, cristão novo, afirmava que

sua mulher lhe dizia que "por muyto christão se fizesse [ele, Bacharel Gramaxo] nam aviam

de deixar de lhe chamar judeu e telo por judeu"14.

4. Os percursos da diáspora: histórias de vida

Retomemos, agora, a história da nossa personagem - Manuel Dias, o sapateiro de

Fronteira - e façamo-lo procurando precisamente integrá-lo no ambiente de grande

agitação, que marcou o período que antecedeu o estabelecimento da Inquisição e os

primeiros anos de funcionamento do Tribunal. Esta nova realidade marcou a vida dos

cristãos novos portugueses e a fuga foi a forma que muitos encontraram para ultrapassar

o controlo exercido pela Inquisição. Tornava-se necessário encontrar um espaço físico

onde lhes fosse possível continuar a perpetuar os valores da cultura e religião judaica sem

quaisquer receios de vir a ser descobertos e punidos. Manuel Dias foi precisamente um

cristão novo, entre muitos outros, que seguiu este caminho e a sua história é a história de

muitos cristãos novos no Portugal de Quinhentos.

O desejo de alcançar a liberdade, através da fuga, perpassa todo o processo

inquisitorial de Manuel Dias. Após o seu regresso a Fronteira, em 1538, depois de ter

14 IAN-TT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Évora, proc. 5176, f. 35.

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passado alguns anos na capital do reino, Manuel Dias restabeleceu os laços familiares e de

amizade que tinha na vila. Aí terá praticado na Lei de Moisés com vários membros da

comunidade cristã nova de Fronteira, tendo presenciado a guarda de sábados e a

celebração da Páscoa do pão ázimo por parte deles. Associou-se aos cristãos novos da vila

para jejuar o quipur, com o objetivo de alcançarem a libertação do cativeiro em que

consideravam encontrar-se, o qual só terminaria com a vinda do Messias que os

conduziria à terra da promissão.

Estas constituíam algumas das práticas e ritos que marcavam o quotidiano das

comunidades cristãs novas portuguesas quinhentistas, essencialmente vividas no espaço

privado da casa, entendido como espaço familiar por excelência. Porém, outras práticas e

cerimónias preenchiam o dia-a-dia da gente de nação: a preparação e confeção dos

alimentos, a observância de jejuns, as orações, a higiene, as celebrações ligadas aos

principais ciclos da vida (a circuncisão, o casamento, o amortalhamento)15. Tornava-se

difícil efetuar estes ritos de forma contínua e, por isso, se explica que tenha começado a

surgir entre os criptojudaizantes a ideia que bastava a intenção de guarda de alguns deles.

Na verdade, a clandestinidade implicou o desaparecimento do local de culto - a sinagoga -

e a perda de muitos de muitos dos conhecimento da lei mosaica.

Apesar das comunidades cristãs novas portuguesas não serem estanques a

influências vindas do exterior verificou-se, na prática, que o judaísmo que tentaram a todo

o custo manter vivo já pouco tinha a ver a essência do verdadeiro judaísmo. Esta realidade

não deixou de causar espanto aos cristãos novos portugueses que tiveram oportunidade

de viver no exterior ou que fugiram de Portugal, quando desenvolveram contactos com

comunidades que continuam a praticar o judaísmo num ambiente de total liberdade.

15 RUNA, Lucília; PINTO, Maria do Carmo Teixeira - Vivências de uma comunidade cristã nova no século XVI: Castelo de Vide. Patrimonia. Identidade, Ciência Sociais e Fruição Cultural. Cascais: Patrimonia, associação de projectos culturais e formação turística, nº 3 (Nov. 1997) p.19-22.

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MOOC LISBOA E O MAR – TEMA 3 | MANUEL DIAS E A DIÁSPORA DOS CRISTÃOS NOVOS PORTUGUESES NA ÉPOCA MODERNA

Havia, pois, que alcançar a "terra da promissão", onde quer que ela se situasse, através da

fuga, de modo a obter a tão desejada liberdade.

Manuel Dias perseguia esse objetivo e não hesitava em confiar a muitos cristãos

novos de Fronteira o seu intento de fugir para a Flandres. Deles recebia apoio,

encorajamento e até promessas de auxílio monetário para a concretização do seu plano de

fuga. Havia mesmo quem o pressionasse, lembrando-lhe a urgência em partir.

No início de 1542, Manuel Dias abandona Fronteira em direção a Lisboa, cidade de

"muitas gentes" e porto de mar, dando assim o primeiro passo na concretização do seu

plano de fuga. Faz-se acompanhar da mulher, mãe, irmãs e cunhado e de um casal cristão

novo, também residente na vila alentejana. Em Lisboa, estabelece contactos com membros

da comunidade cristã nova de Fronteira, que se encontravam na cidade com o mesmo

objetivo que ele, e auxilia-os a concretizar os seus planos de fuga, como fez com Gonçalo

Sanches. Em frente à Torre de Belém, Manuel Dias ajudou a embarcar Gonçalo Dias, a sua

mulher, os seus quatro ou cinco filhos, assim como uma sua cunhada, que tinham

abandonado Fronteira em direção a Lisboa, tendo estabelecido residência na capital,

primeiro na Calçada Velha e depois na Cutelaria. A nau em que a família de Gonçalo

Sanches embarcou - Nossa Senhora da Graça - tinha saído de Vila do Conde carregada de

azeite com destino a Antuérpia.

As práticas da lei mosaica que Manuel Dias afirma ter levado a cabo com elementos

da comunidade cristã nova lisboeta não diferem daquelas que declara ter realizado em

Fronteira. Também em Lisboa, aqueles com quem contacta induzem-no a fugir e, após a

família de Manuel Dias ter sido presa pela Inquisição de Lisboa, reforçam junto dele a

premência que existe na sua partida. Assim, Gil Fernandes, parente do cunhado do

sapateiro de Fronteira, não hesita em colocar dispor de Manuel Dias 4.000 réis para o

caminho, quantia que recolhera juntos dos cristãos novos da cidade de Lisboa.

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A fuga revestia-se de perigos e dificuldades de vária ordem e, por isso, muitos dos

que a procuravam concretizar sujeitavam-se a viajar em condições precárias. Um holandês

da Flandres, que se encontrava em Lisboa, testemunha perante o Inquisidor e dá-lhe conta

de que uma família de três membros, que pretendia fugir, havia feito um contrato com um

alemão no qual ficara estabelecido que iriam metidos em pipas, sob o porão de sal, até

alto-mar, e depois dar-lhe-iam a câmara do mestre da embarcação16.

Porém, Manuel Dias nem se chegou a confrontar com a situação que os seus

correligionários viveram, pois a sua tão deseja fuga em direção à Flandres acabaria por se

revelar um malogro. Tal como a nau Nossa Senhora da Graça em que embarcara a família

de Gonçalo Sanches, Mondragão, a nau escolhida por Manuel Dias para abandonar

Portugal juntamente com a sua família, tinha saído de Vila do Conde carregada de azeite e

o seu destino final era Antuérpia. O custo do frete, por cabeça, custou a Manuel Dias três

cruzados, o que era uma quantia muito avultada se tivermos em conta que "...oito cruzados

constituíam quasi a fortuna dum homem rico..."17.

Encontrando-se Manuel Dias dentro da referida nau e a restante família em terra

todos os seus familiares foram presos, tendo o sapateiro de Fronteira conseguido fugir.

Entre o momento em que estes acontecimentos têm lugar - início de 1542 - e a prisão de

Manuel Dias - fevereiro de 154518 - o itinerário de fuga do sapateiro de Fronteira leva-o a

percorrer o Alentejo, a fazer uma breve incursão em Castela e a passar por Aiamonte, na

Andaluzia, possivelmente no regresso de Mazagão, no Norte de África.

16 BAIÃO, António - Inquisição em Portugal e no Brazil: Subsídios para a sua história. Lisboa: Archivo Historico Portuguez, 1908, vol VI, 170.17 REMÉDIOS, J. Mendes dos - Op. cit., p. 268.18 Desconhecemos a razão que terá levado Manuel Dias a regressar a Portugal, onde veio a ser preso quando se encontrava na feira de Vila Viçosa, no Alentejo. Manuel Dias abjurou no auto público da fé que se realizou em Évora, em 1 de julho de 1548. Foi reconciliado, atendendo ao perdão geral do Papa concedido aos cristãos novos. IAN-TT, Inquisição Évora, nº 11304.

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À semelhança de tantos outros cristão novos protagonistas da diáspora cristã nova

portuguesa, nos séculos XVI e XVII, Manuel Dias contou com uma importante rede de

apoio e conivência, constituída por familiares e amigos, neste seu itinerário de fuga.

É importante sublinhar que embora a Flandres tenha sido eleita pelos cristãos

novos portugueses, quando decidiram partir, como um dos principais destinos, essa

escolha não teve por base apenas razões de ordem religiosa económica, mas também o

facto de a Flandres servir de ponto de passagem para outras paragens mais longínquas,

como a Itália, Salónica ou o Império Otomano.

Foi precisamente em direção a Itália, Roma, que um número considerável de

elementos da comunidade cristã nova de Castelo de Vide (Alentejo) embarcou numa nau,

em Lisboa, na sequência da prisão de Manuel Lopes Chaves, cristão novo, mercador na vila

alentejana19. Na verdade muitos dos que partiam sonhavam em chegar a Itália. Desde

1540, aproximadamente, cidades como Ferrara, Veneza, Turim e Génova acolheram

cristãos novos provenientes de várias comunidades do reino português. Mais uma vez, o

motivo desta escolha prende-se com questões de ordem económica, já que, como é sabido,

a Itália desempenhava, à época, um importantíssimo papel no mundo dos negócios, mas

também com a liberdade religiosa que os cristão novos podiam usufruir nessas paragens.

Mas também o Império Otomano e o Estado da Índia portuguesa receberam muitos

cristãos novos portugueses, entre 1530-1560, que beneficiaram, sem dúvida, das redes

judaicas comerciais que ligavam o Índico ao Mediterrâneo e que desempenhavam um

papel importante no comércio de especiarias e pedras preciosas20.

19 IAN-TT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Évora, proc. 803120 CUNHA, Ana Cannas da Cunha, A Inquisição no Estado da Índia: Origens (1539-1560). Lisboa: Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, 1995, p. 18-19.A Inquisição portuguesa viria a estabelecer-se de forma efetiva e duradoura no Estado da Índia precisamente no 1560, com a fundação do Tribunal de Goa.Sobre a presença cristã nova no Estado da Índia veja-se José Alberto Rodrigues da Silva Tavim , Judeus e cristãos-novos de Cochim. História e Memória (1500-1662). Braga: APPACDM Distrital de Braga, 2004, p. 167-278.

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De Salónica chegavam notícias, através de cristão novo natural de Vila Flor (Trás-

os-Montes), apelidado de "homem de Salónica", do grau de liberdade que os judeus

usufruíam naquela cidade, o que lhes permitia praticar a religião judaica, ir à sinagoga,

ouvir o rabi e ler as escrituras.

As redes de fuga e a respetiva organização não eram aspetos que os cristãos novos

descurassem, pois delas dependia em grande medida a concretização dos seus objetivos.

Existiam para esse efeito redes pré-definidas e os elos que as compunham, com os quais

se podia estabelecer contacto, podiam ou não fazer parte da comunidade de origem

daqueles que abandonavam o reino. No entanto, apesar da existência desta estrutura os

cristãos novos em fuga confrontavam-se com problemas diversos, como a impossibilidade

de levar dinheiro para fora do reino. Esta situação fez com que muitos tivessem escolhido

permanecer em Portugal: eram as fazendas, eram os embaraços das rendas, eram as

casas...

Os cristãos novos portugueses serviam-se de uma das suas atividades principais - o

comércio - e dos muitos contactos que tinham na Europa, como forma de contornar essas

mesmas dificuldades. Assim, através do recurso a letras de câmbio, por exemplo, os

cristãos novos evitavam, por meio de mecanismo de compensação, as grandes

transferências de moeda. Para as principais feiras de câmbio da Europa podia ser enviado

dinheiro convertido em letras, que depois eram colocadas num determinado local - a

Flandres, por exemplo - e aí as letras de câmbio eram convertidas novamente em dinheiro.

Outras vezes convertiam o dinheiro em mercadorias, a enviar para fora do reino,

recorrendo-se para o efeito, por exemplo, aos panos da Índia, altamente cotados nos

mercados italianos.

A história de vida Manuel Dias, o sapateiro cristão novo de Fonteira, é uma história

igual à de tantos outros cristãos novos portugueses que no Portugal de Quinhentos

decidem abandonar o reino, face às perseguições contra eles movidas pelo do Tribunal do

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Santo Oficio. Esses homens e mulheres serão os protagonistas de um movimento de

diáspora, que embora não seja inédito ganhou no século XVI um renovado ímpeto e levou

os cristãos novos portugueses até aos "quatro cantos do mundo".

BIBLIOGRAFIA

ALMEIDA, A. A. Marques de - O Zangão e o Mel. Uma metáfora sobre a diáspora sefardita e a formação das elites financeiras na Europa (séculos XV a XVIII). Oceanos. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, nº 27 (1997), p. 25-35.

ALMEIDA, Fortunato de - História da Igreja em Portugal. 2ª ed. Porto-Lisboa: Livraria Civilização, 1968, vol. II.

AZEVEDO, J. Lúcio de, História dos cristãos-novos portugueses. 3ª ed., Lisboa: Liv. Clássica Editora, 1989.

BAIÃO, António - Inquisição em Portugal e no Brazil: Subsídios para a sua história. Lisboa: Archivo Historico Portuguez, 1908, vol VI.

CUNHA, Ana Cannas da Cunha, A Inquisição no Estado da Índia: Origens (1539-1560). Lisboa: Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, 1995

REMÉDIOS, J. Mendes dos - Os Judeus em Portugal. Reimp. Lisboa: Liv. Alcalá, 2004, vol I (1ª ed., Coimbra: Edit. F. França Amado, 1895).

RUNA, Lucília; PINTO, Maria do Carmo Teixeira - Vivências de uma comunidade cristã nova no século XVI: Castelo de Vide. Patrimonia. Identidade, Ciência Sociais e Fruição Cultural. Cascais: Patrimonia, associação de projectos culturais e formação turística, nº 3 (Nov. 1997).

TAVARES, Maria José Ferro - Judaísmo e Inquisição: Estudos. Lisboa: Editorial Presença, 1987.

TAVIM, José Alberto Rodrigues da Silva, Judeus e cristãos-novos de Cochim. História e Memória (1500-1662). Braga: APPACDM Distrital de Braga, 2004-

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