Textos sobre o nordeste
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Uma canoa furada
ALEXANDRE E OUTROS HERÓIS • GRACILIANO RAMOS 77 Mestre Gaudêncio curandeiro, homem sabido, explicou
uma noite aos amigos que a terra se move, é redonda e fica longe do sol umas cem léguas. — Já me disseram isso, murmurou Cesária.
Das Dores arregalou os olhos, seu Libório espichou o beiço e deu um assobio de admiração. O cego preto
Firmino achou a distância exagerada e sorriu, incrédulo: — Conversa, mestre Gaudêncio. Quem mediu? Das telhas para cima ninguém vai. Isso é emboança de livro,
papel agüenta muita lorota. Cem léguas? Não embarco em canoa furada não, mestre Gaudêncio.
— Ora, seu Firmino! exclamou Alexandre. Para que diz isso? Embarca. Todos nós embarcamos, é da natureza do homem embarcar em canoa furada. Tudo neste mundo
é canoa furada, seu Firmino. E a gente embarca. Nascemos para embarcar. Um dia arreamos, entregamos o
couro às varas e, como temos religião, vamos para o céu, que é talvez a última canoa, Deus me perdoe. Embarca,
seu Firmino. Levantou-se, foi acender o cigarro ao candeeiro de folha, voltou à rede.
— Embarca. E por falar em canoa furada, vou contar aos senhores o que me aconteceu numa, há vinte anos.
Canoa verdadeira, seu Firmino, de pau, não dessas que vossemecê puxou para contrariar mestre Gaudêncio. Ora muito bem. Numa das minhas viagens rolei uns meses
por Macururé, levando boiadas para a Bahia. Já andaram por essas bandas? Tenho aquilo de cor e salteado. Ganhei
uns cobres, mandei fazer roupa no alfaiate, comprei um corte de pano fino e um frasco de cheiro para Cesária. Demorei-me na capital uma semana. Aí fiz tenção de
vender a fazenda e os cacarecos, mudar-me, dar boa vida à pobre mulher, que trabalhava no pesado, ir com ela aos
teatros e rodar nos bondes. Refletindo, afastei do pensamento essas bobagens. Matuto, quando sai do mato, perde o jeito. Quem é do chão não se trepa. Ninguém me
conhecia na cidade cheia como um ovo. A propósito, sabem que um ovo custa lá cinco tostões? Calculem. Não
me aprumo nessas ruas grandes, onde gente da nossa marca dá topadas no calçamento liso e os homens passam uns pelos outros calados, como se não se enxergassem.
Nunca vi tanta falta de educação. Vossemecê mora numa casa dois ou três anos e os vizinhos nem sabem o
seu nome. Nos meus pastos a coisa era diferente. Lá eu tinha prestígio: votava com o governo, hospedava o intendente, não pagava imposto e tirava presos da cadeia,
no júri. Vivia de grande. E quando aparecia na feira, o 78 GRACIUANO RAMOS - ALEXANDRE E OUTROS HERÓIS
cavalo em pisada baixa, riscando nas portas, os arreios de prata alumiando, o comandante do destacamento levava
a mão ao boné e me perguntava pela família. Tenho
tocado nisso algumas vezes, e os amigos vão pensar que estou aqui arrotando importância. É engano, detesto
pabulagem. Na capital só viam em mim um sujeito que vendia gado. Mas se quiserem saber a minha fama no sertão, dêem um salto à ribeira do Navio e falem no major
Alexandre. Cinqüenta léguas em redor, de vante a ré, todo o bichinho dará notícia das minhas estrepolias. A
história da onça, a do bode, o estribo de prata, este olho torto, que ficou muitas horas espetado num espinho, roído pelas formigas, circulam como dinheiro de cobre, tudo
exagerado. É o que me aborrece, não gosto de exageros. Quero que digam só o que eu fiz. Esse negócio da canoa
entrou num folheto e hoje se canta na viola, mas com tantos acréscimos que, francamente, não me responsabilizo pelo que escreveram. Exatamente o que sucedeu com o
marquesão. Lembram-se? Dr. Silva pegou o marquesão de jaqueira e fez dele o que entendeu, encheu a casa de cortiços.
Não era o meu marquesão, que só deu quatro pés de jaca. O caso da canoa também foi muito aumentado. É
bom prevenir. Se vossemecês ouvirem falar nele em cantoria, fiquem sabendo que as nove-horas são astúcias do poeta. O acontecido foi coisa muito curta, que eu podia
embrulhar num instante. E se converso demais, é porque a gente precisa matar tempo, não sapecar tudo logo
de uma vez. Se não fosse assim, a história perdia a graça. Por isso espichei diante dos amigos a cidade grande, os teatros, os bondes, os ovos e a roupa nova, o corte de pano
fino e o frasco de cheiro que ofereci a Cesária. Ela vestiu o pano fino e botou o frasco de cheiro no lenço, mas
isto não adianta. Sem cheiro e sem pano, a história da canoa seria a mesma, um pouco mais encolhida. Bem, como disse aos amigos, demorei na Bahia, com desejo
de arranjar-me por lá. Quando vi que a intenção era besteira, decidi voltar para casa, amansar brabo, arrematar
caixas de segredo em leilão e animar o cordão azul e o cordão vermelho, no pastoril, que foi para isto que nasci. Sim senhores. Selei o cavalo e atirei-me para o norte.
Caminhei, caminhei, cheguei ao S. Francisco. Seu Firmino andou no S. Francisco? Não andou. É o maior
rio do mundo. Não se sabe onde começa, nem onde acaba, mas, na opinião dos entendidos, tem umas cem léguas de comprimento. Quer dizer que, se em vez de
correr por cima da terra, ele corresse para os ares, apagava o sol, não é verdade, mestre Gaudêncio? Nunca
vi tanta água junta, meus amigos. É um mar: engole o Ipanema em tempo de cheia e pede mais. Está sempre com sede. Não há rio com semelhante largura. Vossemecês
pisam na beira dele, olham para a outra banda, avistam um boi e pensam que é um cabrito. Por aí podem
imaginar aquele despotismo. Pois eu ia morrendo afogado no S. Francisco, vinte anos atrás. Afogado não
digo que morresse, porque enfim dou umas braçadas,
mas, se não me afogasse, era certo estrepar-me no dente da piranha, o bicho mais infeliz que Deus fabricou.
Já viram piranha? Se não viram, perdem pouco. É uma criatura que não tem serventia e morde como cachorro doido. Onde há sangue aparece um magote delas. En-
tra um vivente na água e em cinco minutos deixa lá o esqueleto. Percebem? Topei o S. Francisco empanzinado,
soprando. Tinha lambido as plantações de arroz, comido as ribanceiras, e a escuma subia, ia cobrindo as catingueiras e as baraúnas. Viajei dois dias para as
cabeceiras, procurando passagem. E, ali pelas alturas de Própria, vi uma canoa cheia de gente que botava para
as Alagoas. — "Seu moço, perguntei ao remador, essa gangorra é segura?" E o homem respondeu, de cara enferrujada: — "Segura ela é. Mas garantir que chegue ao outro
lado não garanto. Se tem coragem de se arriscar, entre para dentro, que ainda cabe um." Fiquei embuchado, com uma
resposta atravessada na goela, pois acho desaforo alguém pôr em dúvida a minha disposição. Que, para usar de franqueza,
o que faço direito é correr boi no campo. Mergulhar e brigar com peixe não é ocupação de gente. Desarreei o animal, amarrei o cabresto na popa da canoa, arrumei
os picuás e embarquei. O cavalo nadou, três mulheres velhas puxaram os rosários e navegamos em paz até o
meio do rio. Aí, quando mal nos precatávamos, o diabo do cocho se furou e em poucos minutos os meus troços estavam boiando. Foi um deus-nos-acuda: os homens
perderam a fala, as mulheres soltaram os rosários e botaram as mãos na cabeça, numa latomia, numa choradeira
dos pecados. — "Então, seu mestre, perguntei ao canoeiro, o senhor não disse que esta geringonça era segura?" E o desgraçado respondeu: "Segura ela era. Mas, como o senhor
está vendo, agora não é." — "Que é que vamos fazer?" gritei desadorado. — "Sei lá, disse o homem. Quem
tiver muque puxe por ele e veja se alcança terra, o que acho difícil." A minha vontade foi dar uns tabefes no sem-vergonha, mas não havia tempo, os amigos vêem
que não havia tempo. — "Está bem, tornei. Nós ajustaremos contas depois. Se escaparmos, será na banda
alagoana. Se formos para o fundo, no céu ou no inferno a gente se encontra e você me contará isso direitinho, seu filho de uma égua." Acocorei-me e pus-me a esgotar
aquela miséria com o chapéu. Os viajantes machos fizeram o mesmo e as mulheres dos rosários, chamadas
à ordem, agarraram cuias e caíram no trabalho. Tempo perdido. Gastávamos forças e o traste cada vez mais se enchia. Desanimei, ia entregar os pontos quando me veio
de repente uma idéia, a idéia mais feliz que Deus me deu. Lembrei-me de que tinha no bolso da carona um
formão e um martelo, comprados para o serviço da fazenda. Muito bem. Veio-me a idéia, dei um salto, fui à
carona, peguei o formão e o martelo, fiz um rombo no
casco da canoa. Os companheiros me olhavam espantados, julgando talvez que eu estivesse doido. Mas o meu
juízo funcionava perfeitamente. Imaginam o que sucedeu? A embarcação se esvaziou em poucos minutos, continuou a viagem e chegou sem novidade a Porto-Real-do-
Colégio. Natural. A água entrava por um buraco e saía por outro. Compreenderam? Uma coisa muito simples,
mas se eu não tivesse pensado nisso, alguns pais de família e três devotas teriam acabado no bucho da piranha. Desembarcamos na terra alagoana. Aí chamei de
parte o canoeiro, sem raiva, e dei-lhe meia dúzia de trompaços, que o prometido é devido. Ele se defendeu (era
um tipo de sangue no olho) e propôs camaradagem: — "Seu Alexandre, vamos deixar de besteira. O senhor é um homem." Ficamos amigos, fomos para a bodega e
passamos uma noite na prosa, bebendo cachaça.
Canto Armorial ao Recife, capital do Reino do Nordeste: Ariano Suassuna
(Nasceu em Taperoá-Pb, em 1927. Poeta, romancista e autor teatral.
Das diversas peças que escreveu, uma – O Auto da Compadecida – já foi encenada em quase todos os países do mundo).
I Eram sete as Coroas deste Reino,
Sete as Torres sagradas da Cidade, Sete Arcanjos de bronze, fogo e cobre, Sete Clarins de calcedônia e jade,
E o meu Reino-sagrado do Nordeste Luzia, do Recife à claridade.
Eu velava na pedra do Arrecife E vi, nesse repente, uma Visagem:
A esmeralda do Mar se alumiava E o Sertão lhe infundiu sua coragem.
O rubi resplandece na turqueza: Mar e Sol, água e pedras da Pastagem.
A Coroa-de-ferro de Canudos Resplende sobre a Torre-quadrejada.
O Sertãp de Acauhan, da casa-forte, Na do Engenho Pombal, limpa e sagrada. Os clarins de Princesa e Piancó
Reluzem na da torre-ameaçada.
E a colina-sagrada da Batalha Brilha na Conceição-dos-Militares: As quilhas afundadas dos navios
São púlpitos, Cariátides e altares. Estalam tiros secos de mosquetes,
As Espadas rebrilham pelos ares.
Duas torres iguais de Santo Antonio São as Pedras do Reino, as Encantadas, Incrustadas de prata e diamantes,
Ungidas pelo Sangue e consagradas: Torres da Catedral dos sertanejos,
Proibida, luzente e soterrada. O Castelo-roqueiro, em Cinco-Pontas,
É a Casa da Pólvora também: Os Fortes do meu Reino, reluzindo,
Pelas pontas da estrela se detém, Como, na esfera de-ouro do Brasil As moedas de Ourique e Santarém.
Sim! Porque na Colina-consagrada
Onde o leão do Coelho pôs a pata
(Ouro-Velho, Ouro Preto, Pombo Verde do Salvador, das águas e das arcas)
se funde todo o Império do Brasil, o ouro das Minas e o torçal-de-prata.
Por isso aqui, brilham também, fundidos, O clarim do Sertão e o dos Engenhos,
A Lua-moura, a Estrela-da-Judéia, A Onça-negra, a Parda, o rubro Lenho,
a corneta das Quinas e padrões encravados de estrelas e desenhos.
E por isso o Recife era a Esmeralda E a Muralha –de-pedra, a Vastidão:> Pedra-angular do Reino-esverdeado
Rosa-vermelha e Bruna do Brasão, Porta-azul dos Engenhos e do Mar,
Porta-rubra-e-castanha do Sertão. II
Lá vem a frota-ibérica das Naus: Brancas velas, tosões, cruzes, bandeiras!
São Cavalos-marinhos, Bois-azuis, Hipocampos-vermelhos de madeira Ferrados com a Cruz-de-Leopardo,
Do Cachorro-de-Deus-e-da-Roseira!
Vem nelas o assassino, o Mau-poeta, O Fidalgo-judeu blasfemador: Canta o Leão e as quinas-da-nobreza,
Os castelos e o preço do Senhor, Voz dos autos, das trovas e sonetos
Que, para nós, é o Sol-começador!
Pois o Recife é um Cisne sacro e branco, Um Búzio desigual e retorcido Que se sentou na Pedra-cavernosa,
De pérolas e aljôfar guarnecido, De Coral fino, crespo e marchetado,
Depois de o Mar azul ter dividido.
III E a Voz forja a Sereia-nordestina,
A Anfitrite de penas-coloradas: As casas são Guaràzes-escarlates, São penas de Saíra recamadas;
Estrelas e topázios das Jandaias São cachos-de-ouro em Campo de esmeralda
E as heráldicas Flores do meu Reino: O flamejante, ,o cravo, o girassol,
A acácia-de-ouro, e a rainha , a Rosa, E a rosa da paixão-do´Rouxinol
O emblema, a cruz-de-cristo, as chagas roxas, A lança, o sangue e espinhos do meu Sol!
E assim moldou-se o sangue da Cidade,essa fêmea e pantera dos Bruxedos.
Ela entreabre seu Manto e nos revela Seus encantos musgosos e secretos, Seu sangue macho-e-fêmea, seus contrastes,
Seus embruxos, e filtros, e segredos.
Sua tigre-bravura se admira, Seus encantos de F~emea se deseja, A finura da Faca e da coragem,
A nobreza e a Faminta-malfazeja, Essa Gata de graça-florentina
E o Sol dessa muralha-sertaneja. IV
Canta, ó clarim do Teuto-sergipano, A onça-da-nobreza, a Desumana.
Não te enganes: o cheiroi desse Mel (mesmo de prata, mesmo em Massangana) é forjado no sangue que bebeu
a leoa-dos-nobres, a Tirana!
Vai! Chama teu irmão desabusado, Teu irmão sertanejo e brasileiro, Lagarto alumiado pelo sol,
Escorpião da Raça e do braseiro, Gila-do-sangue, Povo-coroado.
Arauto-inicial do Romanceiro.
Que o Nordeste é uma Onça E estão seus ombros Queimados pelo Sol e pelo sal:
As garras de arrecifes, os Lajedos, São seus dentes-de-pedra e ossos-de-cal.
A Liberdade e o sangue da Inumana Precisam de teu Gládio e do Punhal!
V Quanto a ti, canta o Sol nosso e Castanho,
Que esse Golfim de corpo bronzeado Que sai da espuma branca-e-azul do Mar (esse sangue-estanhoso do Sagrado)
é o mesmo da Batalha, ali gravada nesse painel castanho e esbraseado!
Canta as Flechas no campo de Ouro-verde, As bandeiras, a espada do Latino.
Não cantaste a Onça-negra veludosa, Nem a Parda-castanha (meu destino),
Mas o urucu-vermelho, as áureas-penas, Como escudos, brasões e Paladinos!
Tu viste teus fidalgos em Castelos, E Peri com a cor de sua Dama.
Viste a Loura-fidalga (azule ouro) E a Morena-bastarda em sua cama. Teu Gato-pardo é nosso Cavaleiro,
A corneta-de-tíbia é nossa Fama.
Passa o Capitão-mor das Oiticicas Com seu Gibão dourado de d]fidalgo. É falso? É sertanejo o Cavaleiro:
Vem outro e mostra a fome, o Gibão-pardo! Que é preciso, tambpém, nesta Insensata,
Cantar a prata e o Sonho do sonhado! VI
Tu, Clarim-sertanejo do meu sangue, Canta os Campos, de sangue já laivados,
A arena-rubra, a terra-bem-fadada, Sol dos pulsos-de-ferro venerados, Que, em perpétua Aliança, reluziram
O Reino, o território-consagrado.
E a Rota da cruzada-sertaneja, Teu Reino de Acauhan, o gado-crioulo Com seus tipos de Raça e de nobreza,
Na Malhada-da-Onça, cor-de-ouro, Onde o Sol e o brasido das Estrelas
São esporas-do-céu – Gibão de couro!
VII Soa o quinto Clarim, Cunha de foto, E a pedra, o Espinho, ruge em sua Fala.
A faca. A lazarina de Canudos, No Pajeú-da-raiva, cresce e estala.
O foto é um tabocal se incendiando Ao som das Ladainhas e das balas.
E a Catedral – o antro, o doido templo, Reduto, fortaleza e Santuário,
De fachada sem módulos e regras, Vasto, retangular, desafrontado, Cortado e esburacado de troneiras,
O brutal Hipogeu desenterrado!
VIII
Junto a ti (cunha, fogo, pedra e ferro), Junto a ti(que és mortal e ensolarado),
Sopra o Clarim-augusto-dos engenhos, O noturno Duende enferrujado:
Canta as asas do Corvo e canta a Morte, O Sangue e as coisas podres do Paudarco.
As canas, o homem-sem-conchego-nobre, O musgo-verde, os Bois, o lodo-insonte,
As lagartixas-dos-esconderijos, O doido Sol-ignívomo da Ponte... E a Máquina-do-mundo quiema tudo
Na sua pele-de-rinoceronte!
Se ele cantou o mel de meus Engenhos, Pressentiu meu Sertão com seus segredos: Os Rifles pipocando o som das quedas
De mil lajedos sobre mil lajedos E os Capitães-de-couro se matando
Nas pontas escarpadas dos Rochedos! Ouço na Voz-noturna desse Engenho
Os jambeiros verdosos do Paudarco Chovendo roxa-púrpura no chão
Do Recife do signo-estrelado, E o Dono dos escudos-da-bandeira No Cais-da-aurora canta seu passado.
IX
Ó paudarco, flor- de –ouro! O Corredor, Com seu búzio-de-sonho, sonha e passa: No açafrão, nos vestidos das meninas,
No cheiro de jasmins que ali perpassa, Na argamassa do Tempo impiedoso,
Pedra e cal dos bueiros sem fumaça!
Salvou, assim, o verde de seu Reino E o Pajeú-de-pedra do Sertão: Gemem os Catolés, estrala a bala,
E passa, doido, El_Rei Sebastião, Suja de sangue e pó a real Fronte,
Mas vivo no chapéu do Capitão! E o búzio-decadente troa a Raça
E forja o Cavaleiro-destroçado, E de esporas-quebradas, mas sem freio
Na burra que é castanha e que é sem rabo! E eu bebo o Mel cheiroso dos Engenhos No Pombal que é meu Reino-conquistado!
X
E todo o Reino canta nesse nome,
Pela Dama-de-sangue-coroado: O Sínople, os Pescoços-de-serpente,
A Banda-sanguinosa do Enforcado; Quatro Laivos-de-sangue que meu Sangue
Tinha visto nos campos do Sagrado!
Ela era leve, e tinha os olhos Como o paudarco-âmbar da Acauhan,
E os ouros das acácias do Recife Nos cabelos do sol-pela-manhã: Olhos-andrades, crespos, cor-de-ouro,
Boca, vermelha flor de flamboiã!
E, misturando tudo, o mel do Engenho Mais o mel das abelhas do Sertão. Cana-caiana doce, olhos-estranjas,
Tão bonita, tão boa e tão do chão! Era, mesmo, a Leoa-coroada,
Flecha em meu sangue, anel da solidão! E eu vi que minha Dama era o Recife, O engenho e o sertão do meu Sagrado.
Os clarins já se calam e as Coroas Fulgiam pelo Reino-do-Escampado.
O sol comia o cobre do horizonte: Terminava a viagem do sonhado!
Soltou-se a Onça-negra da estrelada E o meu Recife, ali, na escuridão,
Era, agora, o Fortim-iluminado, O baluarte, a Nau, o bastião, Colocado entre o Reino-azul do mar
E o meu Reino-castanho do Sertão!
trecho:OS TAMBORES DE SÃO LUÍS Capítulo 1 Josué Montello
Até ali os Tambores da Casa-Grande das Minas tinham seguido seus passos, e ele via ainda os
três tamboreiros, no canto esquerdo da varanda, rufando forte os seus instrumentos rituais, com
o acompanhamento dos ogãs e das cabaças, enquanto a nochê Andreza Maria deixava cair o
xale para os antebraços, recebendo Toi-Zamadone, o dono do lugar. Por vezes, no seu passo firme pela calçada deserta, deixava de ouvir o tantantã dos tambores,
calados de repente no silêncio da noite, com o vento que amainava ou mudava de direção. Daí a
pouco Damião tornava a ouvi-los, trazidos por uma rajada mais fresca, e outra vez a imagem da
nochê, cercada pelas noviches vestidas de branco, lhe refluía à consciência, magra, direita, porte
de rainha, a cabeça começando a branquear. Fora ela que viera buscá-lo, à entrada do querebetã. A intenção dele era apenas ouvir um pouco
os tambores e olhar as danças, sentado no comprido banco da varanda, de rosto voltado para o
terreiro pontilhado de velas. Já o banco estava repleto. Muitas pessoas tinham sentado no chão
de terra batida, com as mãos entrelaçadas em redor dos joelhos; outras permaneciam de pé,
recostadas contra a parede. Mas a nochê, que o trouxera pela mão, fez sair do banco um dos
assistentes, e ele ali se acomodou, em posição realmente privilegiada, podendo ver de perto os
tambores tocando e as noviches dançando, por entre o tinir de ferro dos ogãs e o chocalhar das
cabaças. Vez por outra sentia necessidade de ir ali, levado por invencível ansiedade nostálgica, que ele
próprio, com toda a agudeza de sua inteligência superior, não saberia definir ou explicar. O
certo é que, ouvindo bater os tambores rituais, como que se reintegrava no mundo mágico de
sua progênie africana, enquanto se lhe alastrava pela consciência uma sensação nova de paz, que
mergulhava na mais profunda essência de seu ser. Dali saía misteriosamente apaziguado, e era
mais leve o seu corpo e mais suave o seu dia, qual se voltasse a lhe ser propício o vodum que
acompanha na Terra os passos de cada negro. Embora só houvesse no céu uma fatia de lua nova, por cima da igreja de São Pantaleão, uma
tênue claridade violácea descia sobre a cidade adormecida, com a multidão de estrelas que
faiscavam na noite de estio. Em cada esquina, a sentinela de um lampião, com seu bico de gás
chiante. Todas as casas fechadas. Perto, para os lados da Rua da Inveja, o apressado rolar de um
carro, com o ruído do cavalo a galope nas pedras do calçamento. E sempre o baticum dos
tambores, ora fugindo, ora voltando, sem perder a cadência frenética, muito mais ligeira que o
retinir das ferraduras. No canto da Rua do Passeio com a Rua do Mocambo, antes de passar para a calçada fronteira,
Damião parou um momento, batido em cheio pela claridade do gás. Resguardado do sereno pelo chapéu de feltro inglês, presente do Governador Luís Domingues
no último Natal, parecia mais comprido, a espinha dorsal direita, o corpo seco e rijo, os ombros
altos. Aos oitenta anos, dava a impressão de ter sessenta, ou talvez menos, com muita luz nos
olhos, o passo seguro, a cabeça levantada. Até o começo do século, não dispensava a bengala de
castão de prata com que entrou pela primeira vez no sobrado do Foro, sobraçando a sua pasta de
solicitador, para defender outro negro. Agora, trajava com simplicidade, muito limpo, a barba
escanhoada, o paletó abotoado acima do peito, um alfinete de ouro junto ao laço da gravata. - Faça favor... Damião assustou-se com a voz rouca que lhe vinha por trás do ombro direito, do lado da Rua do
Mocambo. Não tinha sentido rumor de passos. E deu de frente com o Sátiro Cardoso,
pequenino, enxuto, metido na sua sovada casaca de mágico, o colarinho alto, o rosto encovado,
bigode, nos negros olhos uma faísca de loucura, e que logo lhe disse, com um pedaço de papel
impresso na ponta dos dedos: - É o convite para o meu próximo espetáculo. - Outra vez A queda da Bandeira? - É. O pessoal pede sempre. E o público é quem manda. Damião quis ainda saber por que o velho mágico preferia aquela hora da noite, com as casas
fechadas, para distribuir os seus convites. - De dia - redargüiu ele, dando-lhe outro convite - os moleques vêm atrás de mim, me chamando
de Troíra. Chegam a atiçar cachorros para me morder. De noite é mais calmo: os moleques estão
dormindo. E lá se foi, Rua do Mocambo abaixo, a enfiar o papelucho por baixo das portas, sem ruído,
apenas roçando o chão da calçada com seu passo macio. Já fazia alguns anos que Damião vira aparecer na cidade aquela figura caricata, debaixo de uma
cartola preta, casaca, sapatos cambados, a andar acima e abaixo, com uma pasta de couro,
também preta, e apresentando-se no Largo do Carmo, no Palácio do Governo, na redação dos
jornais, no Liceu, no Paço Episcopal, e também à porta das igrejas, nas missas dominicais e nos
casamentos, como - o Ilusor Maranhense. Dias depois, apenas por curiosidade, tinha ido assistir,
no Teatro São Luís, ao seu primeiro espetáculo, que daí em diante se repetia todos os anos: a
caprichada mágica intitulada A queda da Bandeira. Sátiro subia uma escada, até o último
degrau, bem no centro do palco, e dali, com uma bandeira desfraldada, recitava comprido
bestialógico, cheio de palavras abstrusas, numa suposta língua de sua invenção, o gramazino, da
qual proporcionava antes um pano de amostra com esta explicação: "O A do alfabeto gramazino
é a mesma coisa que o A do alfabeto em português, com a diferença de que se escreve de cabeça
para baixo e tem o som de bé." Em seguida, enrolava-se na bandeira. Um tiro de pólvora seca
estrondava, assustando a platéia. E eis que o mágico se atirava lá do alto, em arremesso, como
se fosse voar, e caía pesadamente cá embaixo, nas tábuas do chão. - Bis, bis - gritavam-lhe da torrinha. E Sátiro repetiu o monólogo, uma, duas, várias vezes, com o mesmo tiro e a mesma queda, até
que Damião, compadecido de sua insânia, começou a reclamar - Chega! Chega! - e o mágico
afinal se retirou, manquejando, uma das mãos no quadril machucado, enquanto o pano do teatro
vinha descendo, debaixo de gritos e assobios. Antes que ele desaparecesse, sempre a enfiar o impresso por baixo das portas, Damião mudou
de calçada, ainda ouvindo o baticum dos tambores. Para trás, em linha reta, ficava o Cemitério
do Gavião, com o Padre Policarpo, a Genoveva Pia, a Aparecida, o Dr. Celso de Magalhães, a
Dona Bembém, a Dona Páscoa, a Dona Calu, o amigo Barão, cada qual no seu jazigo ou na sua
cova rasa, na santa paz do Senhor. À frente, era o Largo do Quartel; em seguida, torcendo para a
direita, a Rua das Hortas, o Largo da Cadeia, a Praia do Jenipapeiro e por fim a Gamboa, com a
casa de sua bisneta, num cômoro verde que escorregava para o mar. O próprio Tião, no mesmo carro em que fora buscar a parteira, viera dar-lhe a notícia de que,
antes do anoitecer, a Biá começara a sentir fisgadas fortes, no alvoroço de dar à luz do primeiro
filho. - Deixei sua bisneta gemendo. A casa já está cheia de parentes. É bom que o senhor também
esteja lá, para receber o seu trineto. - Sim, irei - concordara. - Mas não já. O primeiro parto dá muito rebate falso. Isso é coisa para o
meio da noite. E antes do Tião sair: - Eu sou do tempo em que os mais moços esperavam pelos mais velhos. - Hoje, tá tudo mudando - emendou o Tião. E como o tinham deixado só, no rebuliço do primeiro trineto da família, apenas com a criada
que lhe servira apressadamente o jantar (e também se fora para a casa da Biá). Damião se vestiu
devagar, sabendo que não adiantava ter pressa, e ainda passou por um cochilo, na cadeira de
balanço da varanda, antes de deixar a casa entregue ao Veludo, que andava na fase de latir e
correr, próprio do cio insatisfeito.
Levara bom tempo na esquina da Rua das Cajazeiras, a ver se aparecia um carro que o
transportasse à Gamboa. Terminara reconhecendo que, se dependesse mesmo de um carro, só
iria conhecer o trineto depois de grande. O jeito era ir a pé, aproveitando a fresca da noite. Ao entrar na Rua de São Pantaleão, já distante do Cemitério dos Ingleses, experimentou de
repente uma sensação de frio, que lhe desceu da cabeça aos pés, como se um sopro gelado o
tivesse apanhado por trás, em toda a extensão do corpo. Respirou fundo, e prosseguiu no seu
caminho, sem aumentar nem diminuir o passo, ao mesmo tempo que procurava convencer-se de
que a rajada viera da Rua da Cotovia. Parou adiante, apalpando os bolsos da calça, à procura do
maço de cigarros. Tinha trazido os cigarros, mas esquecera a caixa de fósforos. - Velho é assim mesmo: quando se lembra de uma coisa, esquece outra. Paciência. Senhor de si, voltou a caminhar, procurando espairecer os olhos no ermo da rua longa. De novo
o vento soprou, agora mais forte, como se o tempo fosse mudar. O céu limpo tranqüilizou
Damião. Uma janela bateu; por cima de um muro, estalou um galho de árvore, que resvalou
para a calçada; adiante, uma vidraça partiu, no bater violento de outra janela; uma lata vazia
rolou pelo meio-fio. Antes de alcançar o fim do quarteirão, ele teve a impressão de que algo estranho, que se
associava à sua pessoa, estaria ocorrendo naquele momento. Tentou sacudir de si a impressão
aborrecida, e esta retornou, insidiosa, opressiva, com a teimosia de um mau presságio. Pensou
na Biá. Não, não seria nada com ela: o médico tinha-a visto pela manhã, e assegurara que seu
parto seria normal. Tudo bem, e a criança no seu lugar; era só esperar agora pela reação da
natureza, sob a vigilância experiente da Comadre Ludovina. - E a Comadre Ludovina já está lá. Foi então que escutou o romper dos tambores, ali perto, na Casa-Grande das Minas. Quase no
mesmo instante tiniram os ogãs e sacudiram as cabaças, mas não suplantaram os tambores, que
iam acelerando o tantantã nervoso que obriga as noviches a girarem sobre si mesmas. Dir-se-ia
que uma batida queria alcançar a seguinte, sem que um tamboreiro destoasse dos outros na
vertigem do compasso. E só esse baticum frenético se impunha agora, apagando o som dos
outros instrumentos, e também só ele o vento levava, rua abaixo e rua acima, dispersando-o na
grande noite de agosto que se fechava sobre a cidade. Depois de passar para o outro lado da rua, Damião deu consigo na calçada do querebetã, e ali
retardou a caminhada, querendo entrar. Era uma casa baixa, de beiral saliente, caiada de novo,
na esquina do Beco das Crioulas, com janelas de rótulas e porta de duas folhas, sobre a Rua de
São Pantaleão. Só uma banda da porta estava aberta. Parado na soleira, ele olhou para dentro e
viu o corredor e a varanda já repletos, com as noviches dançando em volta da nochê Andreza
Maria. E ia dar o primeiro passo no corredor, quando a nochê subiu o xale para os ombros,
compelindo os tamboreiros a uma pausa brusca, logo interrompida por um bater mais forte, em
outro ritmo, e veio caminhando para a porta, no espaço que se ia abrindo para lhe dar passagem.
Damião tinha dado outro passo, e ali esperou que ela o levasse. Quando saiu, ele não saberia dizer ao certo quanto tempo ali permanecera. Vinte minutos? Meia
hora? Ou mais ainda? Mais ainda, certamente. O importante é que, depois de ouvir os
tamboreiros e assistir às danças rituais, se sentia preparado para ir ao encontro de seu trineto.
Sentado no banco, a olhar as noviches dançando rodeadas de velas, era outra vez o negro puro,
filho de sua raça, em contato com as remotas raízes africanas. E assim entrou na Rua do Passeio,
descendo pelo Beco das Crioulas, sempre acompanhado pelo tantantã dos tambores. A Rua do Passeio, longa, retilínea, parecia não ter fim. Casas de azulejos de um lado e de outro,
com grades de ferro rendilhadas, vidros coloridos no leque das janelas, um ou outro portal de
pedra. Sem relógio para ver as horas (o seu andava na loja do Maneco Ourives, para limpeza
geral da máquina, já fazia uma semana), era debalde que Damião consultava de vez em quando
a posição da lua, que ora se escondia por trás dos mirantes mais altos, ora repontava adiante,
curva e pontuda como um chavelho de bumba-meu-boi entrando no terreiro. No canto da Rua de Santana, o bico de gás do lampião estava prestes a apagar, reduzido a uma
chamazinha débil, que se encolhia no bocal empoeirado, com medo da noite, a escuridão a se
fechar à sua volta. E outra vez Damião se assustou, agora com a zoada de uma lata de lixo, que
ia sendo arrastada nas pedras do chão. Era um cão magro, só pele e osso, com uma pata traseira
pendurada, que arrastava com o focinho, enquanto o lixo se esparramava na calçada escura. Ao
pressentir os passos de Damião, já bem perto, o cão assustou-se também retirou depressa a
cabeça de dentro da lata, e correu para o outro lado da rua, capengando, com um osso na boca. Um pouco além, Damião ouve o som de um piano mal tocado, para os lados da Rua do Oiteiro.
E enquanto apura a orelha, tentando identificar os compassos da valsa, uma carruagem dispara
pela Rua do Passeio, à altura do Hospital Português, e é tão próximo o tropel dos cavalos e o
estrondo das rodas, que ele fica esperando que ela passe ao seu lado, seguindo a toda brida na
direção do Largo do Quartel. Como demore passar, ele se volta para trás, e não vê: na rua
deserta, só o cão rói o seu osso, à luz de outro lampião. A carruagem dobrou a Rua do
Mocambo, e seu rumor se afasta no sentido da Praça da Alegria, ao mesmo tempo que o piano
se cala, e volta a ressoar, um pouco mais distante, o baticum dos tambores, na Casa-Grande das
Minas. Damião se lembrou que Donana Jansen saía de seu túmulo, nas noites de sexta-feira, e dava uma
volta comprida pela cidade, numa carruagem puxada por duas parelhas de cavalos sem cabeça,
com um esqueleto na boléia brandindo o chicote. Só se ouvia o ruído das rodas e das ferraduras,
despencando ladeia abaixo. - Bobagem - reagiu Damião. - História inventada pelos inimigos políticos da velha. Quem
morreu quer sossego. E apalpando novamente o bolso da calça, tirou fora um cigarro, que deixou no canto da boca.
Mais além, talvez ainda estivesse aberto o botequim da esquina da Rua Grande. Como fora
esquecer de trazer a caixa de fósforos? Logo ele que, depois de velho, não dispensava os
cigarrinhos da noite, para esperar o sono... E nisto se viu saindo do quarto da Maria Quitéria, nos baixos de um sobradinho da Rua da
Estrela, já querendo amanhecer. Na subida da Rua de Nazaré, estranhou uma zoada ressoante de
louça quebrada, a poucos passos, adiante da escadaria da Rua do Giz. Retardou o andar,
intrigado. Era uma louça atrás da outra, e muitas a um só tempo, debaixo das mesmas pancadas
firmes, que faziam voar para todos os lados os cacos partidos. Do patamar da escadaria, estendeu o olhar para baixo. Ao pé do último socalco, à porta do sobrado do Comendador Antônio Meireles, na claridade do
dia que ia rompendo, um bando de negros em ação, cada qual com seu porrete de pau-roxo,
quebrava depressa pilhas e pilhas de vasos de louça empilhados na calçada. Damião desceu os socalcos quase a correr, e antes de chegar cá embaixo começou a rir,
adivinhando o que se passava. Dias e dias, já fazia alguns meses, era o assunto de São Luís inteira, nas rodas do Largo do
Carmo, nas conversas do Passeio Público, no cochicho das sacristias. Inimigo de Donana
Jansen, com quem vivia às turras, o Comendador Meireles tinha mandado preparar na
Inglaterra, para vendê-los quase de graça, um milheiro de belos penicos de louça, com cara da
velha no fundo do vaso. Donana Jansen soube do fato e suportou com paciência o riso da
cidade. Não reagiu logo: deu tempo ao tempo, enquanto ia mandando comprar, aos dois, aos
três, às dezenas, na loja do Comendador, os penicos com seu retrato, até ter a certeza de que,
agora, sim, só ela os possuía. Apenas por perguntar, mal contendo o frouxo de riso, Damião perguntou a um dos negros:
- De quem vocês são escravos? - De Donana Jansen. Eram mais de trinta negros, todos fortes, espadaúdos, e iam quebrando os urinóis com uma fúria
divertida, repetindo as cacetadas rijas, que desfaziam a louça apenas com uma pancada. A
vizinhança ia despertando com a zoadaria estranha. Caras estremunhadas entreabriam as rótulas,
nas janelas dos sobrados, e já algumas pessoas se debruçavam das sacadas, enquanto outras, na
rua, em chinelos, no chambre de dormir, riam alto, vendo as matanças dos penicos. Um cheiro
insuportável de mijo podre desprendia-se de um vaso à parte, por sinal que maior que os outros,
quase o triplo, e coberto com uma tampa também de louça. - E esse aí? - quis saber Damião. - Minha sinhá deu ordem pra despejar o mijo dele na cabeça do Comendador, se ele aparecer pra
tomar satisfação. E sem interromper as pancadas seguras, o negro abriu para Damião a dentadura farta, que lhe
encheu a boca feliz, rematando com este comentário, entre um penico e outro: - Donana Jansen não é gente. Tou cansado de dizer. Quem se mete com ela tem sarna muita pra
se coçar. Ora se tem! Ainda com o cigarro apagado no canto da boca, Damião aproximou-se da Rua Grande,
pensando onde ia encontrar, ali perto, uma caixa de fósforos para comprar. E não tinha chegado
à esquina, defronte de um casarão de altas janelas ogivas, quando viu entreaberta a porta do
botequim. Sempre o ruído dos tambores seguindo-lhe os passos, com a lua nova a se esconder e a brilhar,
na faiscação do céu estrelado. E agora o assobio do vento, que disparava na rua deserta,
varrendo as calçadas, para se desfazer no giro doido de um remoinho. Dentro do botequim, a única luz era a chama de um candeeiro a óleo, suspenso da parede
esfumaçada por um suporte de metal. Essa luz mortiça, por trás do bocal enegrecido, caía por
cima do balcão, mal dando para clarear uma parte da saleta pontilhada de mesas vazias. Dentro
do balcão, ninguém. Damião subiu o degrau da porta, avançou uns passos, bateu palmas. Enquanto esperava que o
atendessem, olhou em volta, aproximando-se do balcão. E foi aí que viu por terra, entre as duas
primeiras mesas à sua direita, o vulto de um negro magro, comprido, bem trajado, caído de
bruços numa poça de sangue, com uma facada nas costas, à altura do coração. Parado, ficou um
momento a fitá-lo, de olhos crescidos. Não lhe podia ver o rosto, só a nuca e uma parte do
pescoço. Pela roupa, era gente de fora. Empurrou-o de leve, para ver se lhe restava um alento de
vida, mas o corpo permaneceu imóvel, com o busto achatando o braço direito, na posição em
que tinha caído. Na claridade que ia esmorecendo, Damião olhou em volta, de sobrancelhas travadas. Numa das
mesas, mais para o fundo da saleta, acumulavam-se garrafas de bebida, quase todas tombadas
sobre o tampo de mármore, juntamente com um copo quebrado e um cinzeiro atulhado de cinza
e pontas de cigarro. Cacos de vidro rangeram debaixo da sola de suas botinas, assim que deu
outro passo, na direção do candeeiro. E ali, com uma suspeita, espiou para dentro do balcão.
Outro morto jazia no ladrilho do piso, com a cabeça fendida por uma paulada. Estava de frente,
com o busto maio apoiado no ângulo entre o balcão e a prateleira. E a luz que descia sobre ele,
muito tênue, levemente avermelhada, permitiu que Damião prontamente identificasse, pelo
rosto coberto de sangue pisado, o senhor gordo, de bigode em ponta, que, dias antes, ali mesmo,
lhe tinha vendido um maço de cigarros.
____ Fonte: Montello, Josué. Os tambores de São Luís: romance. 5ª ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1985. Cap. 1. p. 11-20.