Textos sobre o nordeste

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Uma canoa furada ALEXANDRE E OUTROS HERÓIS • GRACILIANO RAMOS 77 Mestre Gaudêncio curandeiro, homem sabido, explicou uma noite aos amigos que a terra se move, é redonda e fica longe do sol umas cem léguas. — Já me disseram isso, murmurou Cesária. Das Dores arregalou os olhos, seu Libório espichou o beiço e deu um assobio de admiração. O cego preto Firmino achou a distância exagerada e sorriu, incrédulo: — Conversa, mestre Gaudêncio. Quem mediu? Das telhas para cima ninguém vai. Isso é emboança de livro, papel agüenta muita lorota. Cem léguas? Não embarco em canoa furada não, mestre Gaudêncio. — Ora, seu Firmino! exclamou Alexandre. Para que diz isso? Embarca. Todos nós embarcamos, é da natureza do homem embarcar em canoa furada. Tudo neste mundo é canoa furada, seu Firmino. E a gente embarca. Nascemos para embarcar. Um dia arreamos, entregamos o couro às varas e, como temos religião, vamos para o céu, que é talvez a última canoa, Deus me perdoe. Embarca, seu Firmino. Levantou-se, foi acender o cigarro ao candeeiro de folha, voltou à rede. — Embarca. E por falar em canoa furada, vou contar aos senhores o que me aconteceu numa, há vinte anos. Canoa verdadeira, seu Firmino, de pau, não dessas que vossemecê puxou para contrariar mestre Gaudêncio. Ora muito bem. Numa das minhas viagens rolei uns meses por Macururé, levando boiadas para a Bahia. Já andaram por essas bandas? Tenho aquilo de cor e salteado. Ganhei uns cobres, mandei fazer roupa no alfaiate, comprei um corte de pano fino e um frasco de cheiro para Cesária. Demorei-me na capital uma semana. Aí fiz tenção de vender a fazenda e os cacarecos, mudar-me, dar boa vida à pobre mulher, que trabalhava no pesado, ir com ela aos teatros e rodar nos bondes. Refletindo, afastei do pensamento essas bobagens. Matuto, quando sai do mato, perde o jeito. Quem é do chão não se trepa. Ninguém me conhecia na cidade cheia como um ovo. A propósito, sabem que um ovo custa lá cinco tostões? Calculem. Não me aprumo nessas ruas grandes, onde gente da nossa marca dá topadas no calçamento liso e os homens passam uns pelos outros calados, como se não se enxergassem. Nunca vi tanta falta de educação. Vossemecê mora numa casa dois ou três anos e os vizinhos nem sabem o seu nome. Nos meus pastos a coisa era diferente. Lá eu tinha prestígio: votava com o governo, hospedava o intendente, não pagava imposto e tirava presos da cadeia, no júri. Vivia de grande. E quando aparecia na feira, o 78 GRACIUANO RAMOS - ALEXANDRE E OUTROS HERÓIS cavalo em pisada baixa, riscando nas portas, os arreios de prata alumiando, o comandante do destacamento levava

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Uma canoa furada

ALEXANDRE E OUTROS HERÓIS • GRACILIANO RAMOS 77 Mestre Gaudêncio curandeiro, homem sabido, explicou

uma noite aos amigos que a terra se move, é redonda e fica longe do sol umas cem léguas. — Já me disseram isso, murmurou Cesária.

Das Dores arregalou os olhos, seu Libório espichou o beiço e deu um assobio de admiração. O cego preto

Firmino achou a distância exagerada e sorriu, incrédulo: — Conversa, mestre Gaudêncio. Quem mediu? Das telhas para cima ninguém vai. Isso é emboança de livro,

papel agüenta muita lorota. Cem léguas? Não embarco em canoa furada não, mestre Gaudêncio.

— Ora, seu Firmino! exclamou Alexandre. Para que diz isso? Embarca. Todos nós embarcamos, é da natureza do homem embarcar em canoa furada. Tudo neste mundo

é canoa furada, seu Firmino. E a gente embarca. Nascemos para embarcar. Um dia arreamos, entregamos o

couro às varas e, como temos religião, vamos para o céu, que é talvez a última canoa, Deus me perdoe. Embarca,

seu Firmino. Levantou-se, foi acender o cigarro ao candeeiro de folha, voltou à rede.

— Embarca. E por falar em canoa furada, vou contar aos senhores o que me aconteceu numa, há vinte anos.

Canoa verdadeira, seu Firmino, de pau, não dessas que vossemecê puxou para contrariar mestre Gaudêncio. Ora muito bem. Numa das minhas viagens rolei uns meses

por Macururé, levando boiadas para a Bahia. Já andaram por essas bandas? Tenho aquilo de cor e salteado. Ganhei

uns cobres, mandei fazer roupa no alfaiate, comprei um corte de pano fino e um frasco de cheiro para Cesária. Demorei-me na capital uma semana. Aí fiz tenção de

vender a fazenda e os cacarecos, mudar-me, dar boa vida à pobre mulher, que trabalhava no pesado, ir com ela aos

teatros e rodar nos bondes. Refletindo, afastei do pensamento essas bobagens. Matuto, quando sai do mato, perde o jeito. Quem é do chão não se trepa. Ninguém me

conhecia na cidade cheia como um ovo. A propósito, sabem que um ovo custa lá cinco tostões? Calculem. Não

me aprumo nessas ruas grandes, onde gente da nossa marca dá topadas no calçamento liso e os homens passam uns pelos outros calados, como se não se enxergassem.

Nunca vi tanta falta de educação. Vossemecê mora numa casa dois ou três anos e os vizinhos nem sabem o

seu nome. Nos meus pastos a coisa era diferente. Lá eu tinha prestígio: votava com o governo, hospedava o intendente, não pagava imposto e tirava presos da cadeia,

no júri. Vivia de grande. E quando aparecia na feira, o 78 GRACIUANO RAMOS - ALEXANDRE E OUTROS HERÓIS

cavalo em pisada baixa, riscando nas portas, os arreios de prata alumiando, o comandante do destacamento levava

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a mão ao boné e me perguntava pela família. Tenho

tocado nisso algumas vezes, e os amigos vão pensar que estou aqui arrotando importância. É engano, detesto

pabulagem. Na capital só viam em mim um sujeito que vendia gado. Mas se quiserem saber a minha fama no sertão, dêem um salto à ribeira do Navio e falem no major

Alexandre. Cinqüenta léguas em redor, de vante a ré, todo o bichinho dará notícia das minhas estrepolias. A

história da onça, a do bode, o estribo de prata, este olho torto, que ficou muitas horas espetado num espinho, roído pelas formigas, circulam como dinheiro de cobre, tudo

exagerado. É o que me aborrece, não gosto de exageros. Quero que digam só o que eu fiz. Esse negócio da canoa

entrou num folheto e hoje se canta na viola, mas com tantos acréscimos que, francamente, não me responsabilizo pelo que escreveram. Exatamente o que sucedeu com o

marquesão. Lembram-se? Dr. Silva pegou o marquesão de jaqueira e fez dele o que entendeu, encheu a casa de cortiços.

Não era o meu marquesão, que só deu quatro pés de jaca. O caso da canoa também foi muito aumentado. É

bom prevenir. Se vossemecês ouvirem falar nele em cantoria, fiquem sabendo que as nove-horas são astúcias do poeta. O acontecido foi coisa muito curta, que eu podia

embrulhar num instante. E se converso demais, é porque a gente precisa matar tempo, não sapecar tudo logo

de uma vez. Se não fosse assim, a história perdia a graça. Por isso espichei diante dos amigos a cidade grande, os teatros, os bondes, os ovos e a roupa nova, o corte de pano

fino e o frasco de cheiro que ofereci a Cesária. Ela vestiu o pano fino e botou o frasco de cheiro no lenço, mas

isto não adianta. Sem cheiro e sem pano, a história da canoa seria a mesma, um pouco mais encolhida. Bem, como disse aos amigos, demorei na Bahia, com desejo

de arranjar-me por lá. Quando vi que a intenção era besteira, decidi voltar para casa, amansar brabo, arrematar

caixas de segredo em leilão e animar o cordão azul e o cordão vermelho, no pastoril, que foi para isto que nasci. Sim senhores. Selei o cavalo e atirei-me para o norte.

Caminhei, caminhei, cheguei ao S. Francisco. Seu Firmino andou no S. Francisco? Não andou. É o maior

rio do mundo. Não se sabe onde começa, nem onde acaba, mas, na opinião dos entendidos, tem umas cem léguas de comprimento. Quer dizer que, se em vez de

correr por cima da terra, ele corresse para os ares, apagava o sol, não é verdade, mestre Gaudêncio? Nunca

vi tanta água junta, meus amigos. É um mar: engole o Ipanema em tempo de cheia e pede mais. Está sempre com sede. Não há rio com semelhante largura. Vossemecês

pisam na beira dele, olham para a outra banda, avistam um boi e pensam que é um cabrito. Por aí podem

imaginar aquele despotismo. Pois eu ia morrendo afogado no S. Francisco, vinte anos atrás. Afogado não

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digo que morresse, porque enfim dou umas braçadas,

mas, se não me afogasse, era certo estrepar-me no dente da piranha, o bicho mais infeliz que Deus fabricou.

Já viram piranha? Se não viram, perdem pouco. É uma criatura que não tem serventia e morde como cachorro doido. Onde há sangue aparece um magote delas. En-

tra um vivente na água e em cinco minutos deixa lá o esqueleto. Percebem? Topei o S. Francisco empanzinado,

soprando. Tinha lambido as plantações de arroz, comido as ribanceiras, e a escuma subia, ia cobrindo as catingueiras e as baraúnas. Viajei dois dias para as

cabeceiras, procurando passagem. E, ali pelas alturas de Própria, vi uma canoa cheia de gente que botava para

as Alagoas. — "Seu moço, perguntei ao remador, essa gangorra é segura?" E o homem respondeu, de cara enferrujada: — "Segura ela é. Mas garantir que chegue ao outro

lado não garanto. Se tem coragem de se arriscar, entre para dentro, que ainda cabe um." Fiquei embuchado, com uma

resposta atravessada na goela, pois acho desaforo alguém pôr em dúvida a minha disposição. Que, para usar de franqueza,

o que faço direito é correr boi no campo. Mergulhar e brigar com peixe não é ocupação de gente. Desarreei o animal, amarrei o cabresto na popa da canoa, arrumei

os picuás e embarquei. O cavalo nadou, três mulheres velhas puxaram os rosários e navegamos em paz até o

meio do rio. Aí, quando mal nos precatávamos, o diabo do cocho se furou e em poucos minutos os meus troços estavam boiando. Foi um deus-nos-acuda: os homens

perderam a fala, as mulheres soltaram os rosários e botaram as mãos na cabeça, numa latomia, numa choradeira

dos pecados. — "Então, seu mestre, perguntei ao canoeiro, o senhor não disse que esta geringonça era segura?" E o desgraçado respondeu: "Segura ela era. Mas, como o senhor

está vendo, agora não é." — "Que é que vamos fazer?" gritei desadorado. — "Sei lá, disse o homem. Quem

tiver muque puxe por ele e veja se alcança terra, o que acho difícil." A minha vontade foi dar uns tabefes no sem-vergonha, mas não havia tempo, os amigos vêem

que não havia tempo. — "Está bem, tornei. Nós ajustaremos contas depois. Se escaparmos, será na banda

alagoana. Se formos para o fundo, no céu ou no inferno a gente se encontra e você me contará isso direitinho, seu filho de uma égua." Acocorei-me e pus-me a esgotar

aquela miséria com o chapéu. Os viajantes machos fizeram o mesmo e as mulheres dos rosários, chamadas

à ordem, agarraram cuias e caíram no trabalho. Tempo perdido. Gastávamos forças e o traste cada vez mais se enchia. Desanimei, ia entregar os pontos quando me veio

de repente uma idéia, a idéia mais feliz que Deus me deu. Lembrei-me de que tinha no bolso da carona um

formão e um martelo, comprados para o serviço da fazenda. Muito bem. Veio-me a idéia, dei um salto, fui à

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carona, peguei o formão e o martelo, fiz um rombo no

casco da canoa. Os companheiros me olhavam espantados, julgando talvez que eu estivesse doido. Mas o meu

juízo funcionava perfeitamente. Imaginam o que sucedeu? A embarcação se esvaziou em poucos minutos, continuou a viagem e chegou sem novidade a Porto-Real-do-

Colégio. Natural. A água entrava por um buraco e saía por outro. Compreenderam? Uma coisa muito simples,

mas se eu não tivesse pensado nisso, alguns pais de família e três devotas teriam acabado no bucho da piranha. Desembarcamos na terra alagoana. Aí chamei de

parte o canoeiro, sem raiva, e dei-lhe meia dúzia de trompaços, que o prometido é devido. Ele se defendeu (era

um tipo de sangue no olho) e propôs camaradagem: — "Seu Alexandre, vamos deixar de besteira. O senhor é um homem." Ficamos amigos, fomos para a bodega e

passamos uma noite na prosa, bebendo cachaça.

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Canto Armorial ao Recife, capital do Reino do Nordeste: Ariano Suassuna

(Nasceu em Taperoá-Pb, em 1927. Poeta, romancista e autor teatral.

Das diversas peças que escreveu, uma – O Auto da Compadecida – já foi encenada em quase todos os países do mundo).

I Eram sete as Coroas deste Reino,

Sete as Torres sagradas da Cidade, Sete Arcanjos de bronze, fogo e cobre, Sete Clarins de calcedônia e jade,

E o meu Reino-sagrado do Nordeste Luzia, do Recife à claridade.

Eu velava na pedra do Arrecife E vi, nesse repente, uma Visagem:

A esmeralda do Mar se alumiava E o Sertão lhe infundiu sua coragem.

O rubi resplandece na turqueza: Mar e Sol, água e pedras da Pastagem.

A Coroa-de-ferro de Canudos Resplende sobre a Torre-quadrejada.

O Sertãp de Acauhan, da casa-forte, Na do Engenho Pombal, limpa e sagrada. Os clarins de Princesa e Piancó

Reluzem na da torre-ameaçada.

E a colina-sagrada da Batalha Brilha na Conceição-dos-Militares: As quilhas afundadas dos navios

São púlpitos, Cariátides e altares. Estalam tiros secos de mosquetes,

As Espadas rebrilham pelos ares.

Duas torres iguais de Santo Antonio São as Pedras do Reino, as Encantadas, Incrustadas de prata e diamantes,

Ungidas pelo Sangue e consagradas: Torres da Catedral dos sertanejos,

Proibida, luzente e soterrada. O Castelo-roqueiro, em Cinco-Pontas,

É a Casa da Pólvora também: Os Fortes do meu Reino, reluzindo,

Pelas pontas da estrela se detém, Como, na esfera de-ouro do Brasil As moedas de Ourique e Santarém.

Sim! Porque na Colina-consagrada

Onde o leão do Coelho pôs a pata

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(Ouro-Velho, Ouro Preto, Pombo Verde do Salvador, das águas e das arcas)

se funde todo o Império do Brasil, o ouro das Minas e o torçal-de-prata.

Por isso aqui, brilham também, fundidos, O clarim do Sertão e o dos Engenhos,

A Lua-moura, a Estrela-da-Judéia, A Onça-negra, a Parda, o rubro Lenho,

a corneta das Quinas e padrões encravados de estrelas e desenhos.

E por isso o Recife era a Esmeralda E a Muralha –de-pedra, a Vastidão:> Pedra-angular do Reino-esverdeado

Rosa-vermelha e Bruna do Brasão, Porta-azul dos Engenhos e do Mar,

Porta-rubra-e-castanha do Sertão. II

Lá vem a frota-ibérica das Naus: Brancas velas, tosões, cruzes, bandeiras!

São Cavalos-marinhos, Bois-azuis, Hipocampos-vermelhos de madeira Ferrados com a Cruz-de-Leopardo,

Do Cachorro-de-Deus-e-da-Roseira!

Vem nelas o assassino, o Mau-poeta, O Fidalgo-judeu blasfemador: Canta o Leão e as quinas-da-nobreza,

Os castelos e o preço do Senhor, Voz dos autos, das trovas e sonetos

Que, para nós, é o Sol-começador!

Pois o Recife é um Cisne sacro e branco, Um Búzio desigual e retorcido Que se sentou na Pedra-cavernosa,

De pérolas e aljôfar guarnecido, De Coral fino, crespo e marchetado,

Depois de o Mar azul ter dividido.

III E a Voz forja a Sereia-nordestina,

A Anfitrite de penas-coloradas: As casas são Guaràzes-escarlates, São penas de Saíra recamadas;

Estrelas e topázios das Jandaias São cachos-de-ouro em Campo de esmeralda

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E as heráldicas Flores do meu Reino: O flamejante, ,o cravo, o girassol,

A acácia-de-ouro, e a rainha , a Rosa, E a rosa da paixão-do´Rouxinol

O emblema, a cruz-de-cristo, as chagas roxas, A lança, o sangue e espinhos do meu Sol!

E assim moldou-se o sangue da Cidade,essa fêmea e pantera dos Bruxedos.

Ela entreabre seu Manto e nos revela Seus encantos musgosos e secretos, Seu sangue macho-e-fêmea, seus contrastes,

Seus embruxos, e filtros, e segredos.

Sua tigre-bravura se admira, Seus encantos de F~emea se deseja, A finura da Faca e da coragem,

A nobreza e a Faminta-malfazeja, Essa Gata de graça-florentina

E o Sol dessa muralha-sertaneja. IV

Canta, ó clarim do Teuto-sergipano, A onça-da-nobreza, a Desumana.

Não te enganes: o cheiroi desse Mel (mesmo de prata, mesmo em Massangana) é forjado no sangue que bebeu

a leoa-dos-nobres, a Tirana!

Vai! Chama teu irmão desabusado, Teu irmão sertanejo e brasileiro, Lagarto alumiado pelo sol,

Escorpião da Raça e do braseiro, Gila-do-sangue, Povo-coroado.

Arauto-inicial do Romanceiro.

Que o Nordeste é uma Onça E estão seus ombros Queimados pelo Sol e pelo sal:

As garras de arrecifes, os Lajedos, São seus dentes-de-pedra e ossos-de-cal.

A Liberdade e o sangue da Inumana Precisam de teu Gládio e do Punhal!

V Quanto a ti, canta o Sol nosso e Castanho,

Que esse Golfim de corpo bronzeado Que sai da espuma branca-e-azul do Mar (esse sangue-estanhoso do Sagrado)

é o mesmo da Batalha, ali gravada nesse painel castanho e esbraseado!

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Canta as Flechas no campo de Ouro-verde, As bandeiras, a espada do Latino.

Não cantaste a Onça-negra veludosa, Nem a Parda-castanha (meu destino),

Mas o urucu-vermelho, as áureas-penas, Como escudos, brasões e Paladinos!

Tu viste teus fidalgos em Castelos, E Peri com a cor de sua Dama.

Viste a Loura-fidalga (azule ouro) E a Morena-bastarda em sua cama. Teu Gato-pardo é nosso Cavaleiro,

A corneta-de-tíbia é nossa Fama.

Passa o Capitão-mor das Oiticicas Com seu Gibão dourado de d]fidalgo. É falso? É sertanejo o Cavaleiro:

Vem outro e mostra a fome, o Gibão-pardo! Que é preciso, tambpém, nesta Insensata,

Cantar a prata e o Sonho do sonhado! VI

Tu, Clarim-sertanejo do meu sangue, Canta os Campos, de sangue já laivados,

A arena-rubra, a terra-bem-fadada, Sol dos pulsos-de-ferro venerados, Que, em perpétua Aliança, reluziram

O Reino, o território-consagrado.

E a Rota da cruzada-sertaneja, Teu Reino de Acauhan, o gado-crioulo Com seus tipos de Raça e de nobreza,

Na Malhada-da-Onça, cor-de-ouro, Onde o Sol e o brasido das Estrelas

São esporas-do-céu – Gibão de couro!

VII Soa o quinto Clarim, Cunha de foto, E a pedra, o Espinho, ruge em sua Fala.

A faca. A lazarina de Canudos, No Pajeú-da-raiva, cresce e estala.

O foto é um tabocal se incendiando Ao som das Ladainhas e das balas.

E a Catedral – o antro, o doido templo, Reduto, fortaleza e Santuário,

De fachada sem módulos e regras, Vasto, retangular, desafrontado, Cortado e esburacado de troneiras,

O brutal Hipogeu desenterrado!

VIII

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Junto a ti (cunha, fogo, pedra e ferro), Junto a ti(que és mortal e ensolarado),

Sopra o Clarim-augusto-dos engenhos, O noturno Duende enferrujado:

Canta as asas do Corvo e canta a Morte, O Sangue e as coisas podres do Paudarco.

As canas, o homem-sem-conchego-nobre, O musgo-verde, os Bois, o lodo-insonte,

As lagartixas-dos-esconderijos, O doido Sol-ignívomo da Ponte... E a Máquina-do-mundo quiema tudo

Na sua pele-de-rinoceronte!

Se ele cantou o mel de meus Engenhos, Pressentiu meu Sertão com seus segredos: Os Rifles pipocando o som das quedas

De mil lajedos sobre mil lajedos E os Capitães-de-couro se matando

Nas pontas escarpadas dos Rochedos! Ouço na Voz-noturna desse Engenho

Os jambeiros verdosos do Paudarco Chovendo roxa-púrpura no chão

Do Recife do signo-estrelado, E o Dono dos escudos-da-bandeira No Cais-da-aurora canta seu passado.

IX

Ó paudarco, flor- de –ouro! O Corredor, Com seu búzio-de-sonho, sonha e passa: No açafrão, nos vestidos das meninas,

No cheiro de jasmins que ali perpassa, Na argamassa do Tempo impiedoso,

Pedra e cal dos bueiros sem fumaça!

Salvou, assim, o verde de seu Reino E o Pajeú-de-pedra do Sertão: Gemem os Catolés, estrala a bala,

E passa, doido, El_Rei Sebastião, Suja de sangue e pó a real Fronte,

Mas vivo no chapéu do Capitão! E o búzio-decadente troa a Raça

E forja o Cavaleiro-destroçado, E de esporas-quebradas, mas sem freio

Na burra que é castanha e que é sem rabo! E eu bebo o Mel cheiroso dos Engenhos No Pombal que é meu Reino-conquistado!

X

E todo o Reino canta nesse nome,

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Pela Dama-de-sangue-coroado: O Sínople, os Pescoços-de-serpente,

A Banda-sanguinosa do Enforcado; Quatro Laivos-de-sangue que meu Sangue

Tinha visto nos campos do Sagrado!

Ela era leve, e tinha os olhos Como o paudarco-âmbar da Acauhan,

E os ouros das acácias do Recife Nos cabelos do sol-pela-manhã: Olhos-andrades, crespos, cor-de-ouro,

Boca, vermelha flor de flamboiã!

E, misturando tudo, o mel do Engenho Mais o mel das abelhas do Sertão. Cana-caiana doce, olhos-estranjas,

Tão bonita, tão boa e tão do chão! Era, mesmo, a Leoa-coroada,

Flecha em meu sangue, anel da solidão! E eu vi que minha Dama era o Recife, O engenho e o sertão do meu Sagrado.

Os clarins já se calam e as Coroas Fulgiam pelo Reino-do-Escampado.

O sol comia o cobre do horizonte: Terminava a viagem do sonhado!

Soltou-se a Onça-negra da estrelada E o meu Recife, ali, na escuridão,

Era, agora, o Fortim-iluminado, O baluarte, a Nau, o bastião, Colocado entre o Reino-azul do mar

E o meu Reino-castanho do Sertão!

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trecho:OS TAMBORES DE SÃO LUÍS Capítulo 1 Josué Montello

Até ali os Tambores da Casa-Grande das Minas tinham seguido seus passos, e ele via ainda os

três tamboreiros, no canto esquerdo da varanda, rufando forte os seus instrumentos rituais, com

o acompanhamento dos ogãs e das cabaças, enquanto a nochê Andreza Maria deixava cair o

xale para os antebraços, recebendo Toi-Zamadone, o dono do lugar. Por vezes, no seu passo firme pela calçada deserta, deixava de ouvir o tantantã dos tambores,

calados de repente no silêncio da noite, com o vento que amainava ou mudava de direção. Daí a

pouco Damião tornava a ouvi-los, trazidos por uma rajada mais fresca, e outra vez a imagem da

nochê, cercada pelas noviches vestidas de branco, lhe refluía à consciência, magra, direita, porte

de rainha, a cabeça começando a branquear. Fora ela que viera buscá-lo, à entrada do querebetã. A intenção dele era apenas ouvir um pouco

os tambores e olhar as danças, sentado no comprido banco da varanda, de rosto voltado para o

terreiro pontilhado de velas. Já o banco estava repleto. Muitas pessoas tinham sentado no chão

de terra batida, com as mãos entrelaçadas em redor dos joelhos; outras permaneciam de pé,

recostadas contra a parede. Mas a nochê, que o trouxera pela mão, fez sair do banco um dos

assistentes, e ele ali se acomodou, em posição realmente privilegiada, podendo ver de perto os

tambores tocando e as noviches dançando, por entre o tinir de ferro dos ogãs e o chocalhar das

cabaças. Vez por outra sentia necessidade de ir ali, levado por invencível ansiedade nostálgica, que ele

próprio, com toda a agudeza de sua inteligência superior, não saberia definir ou explicar. O

certo é que, ouvindo bater os tambores rituais, como que se reintegrava no mundo mágico de

sua progênie africana, enquanto se lhe alastrava pela consciência uma sensação nova de paz, que

mergulhava na mais profunda essência de seu ser. Dali saía misteriosamente apaziguado, e era

mais leve o seu corpo e mais suave o seu dia, qual se voltasse a lhe ser propício o vodum que

acompanha na Terra os passos de cada negro. Embora só houvesse no céu uma fatia de lua nova, por cima da igreja de São Pantaleão, uma

tênue claridade violácea descia sobre a cidade adormecida, com a multidão de estrelas que

faiscavam na noite de estio. Em cada esquina, a sentinela de um lampião, com seu bico de gás

chiante. Todas as casas fechadas. Perto, para os lados da Rua da Inveja, o apressado rolar de um

carro, com o ruído do cavalo a galope nas pedras do calçamento. E sempre o baticum dos

tambores, ora fugindo, ora voltando, sem perder a cadência frenética, muito mais ligeira que o

retinir das ferraduras. No canto da Rua do Passeio com a Rua do Mocambo, antes de passar para a calçada fronteira,

Damião parou um momento, batido em cheio pela claridade do gás. Resguardado do sereno pelo chapéu de feltro inglês, presente do Governador Luís Domingues

no último Natal, parecia mais comprido, a espinha dorsal direita, o corpo seco e rijo, os ombros

altos. Aos oitenta anos, dava a impressão de ter sessenta, ou talvez menos, com muita luz nos

olhos, o passo seguro, a cabeça levantada. Até o começo do século, não dispensava a bengala de

castão de prata com que entrou pela primeira vez no sobrado do Foro, sobraçando a sua pasta de

solicitador, para defender outro negro. Agora, trajava com simplicidade, muito limpo, a barba

escanhoada, o paletó abotoado acima do peito, um alfinete de ouro junto ao laço da gravata. - Faça favor... Damião assustou-se com a voz rouca que lhe vinha por trás do ombro direito, do lado da Rua do

Mocambo. Não tinha sentido rumor de passos. E deu de frente com o Sátiro Cardoso,

pequenino, enxuto, metido na sua sovada casaca de mágico, o colarinho alto, o rosto encovado,

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bigode, nos negros olhos uma faísca de loucura, e que logo lhe disse, com um pedaço de papel

impresso na ponta dos dedos: - É o convite para o meu próximo espetáculo. - Outra vez A queda da Bandeira? - É. O pessoal pede sempre. E o público é quem manda. Damião quis ainda saber por que o velho mágico preferia aquela hora da noite, com as casas

fechadas, para distribuir os seus convites. - De dia - redargüiu ele, dando-lhe outro convite - os moleques vêm atrás de mim, me chamando

de Troíra. Chegam a atiçar cachorros para me morder. De noite é mais calmo: os moleques estão

dormindo. E lá se foi, Rua do Mocambo abaixo, a enfiar o papelucho por baixo das portas, sem ruído,

apenas roçando o chão da calçada com seu passo macio. Já fazia alguns anos que Damião vira aparecer na cidade aquela figura caricata, debaixo de uma

cartola preta, casaca, sapatos cambados, a andar acima e abaixo, com uma pasta de couro,

também preta, e apresentando-se no Largo do Carmo, no Palácio do Governo, na redação dos

jornais, no Liceu, no Paço Episcopal, e também à porta das igrejas, nas missas dominicais e nos

casamentos, como - o Ilusor Maranhense. Dias depois, apenas por curiosidade, tinha ido assistir,

no Teatro São Luís, ao seu primeiro espetáculo, que daí em diante se repetia todos os anos: a

caprichada mágica intitulada A queda da Bandeira. Sátiro subia uma escada, até o último

degrau, bem no centro do palco, e dali, com uma bandeira desfraldada, recitava comprido

bestialógico, cheio de palavras abstrusas, numa suposta língua de sua invenção, o gramazino, da

qual proporcionava antes um pano de amostra com esta explicação: "O A do alfabeto gramazino

é a mesma coisa que o A do alfabeto em português, com a diferença de que se escreve de cabeça

para baixo e tem o som de bé." Em seguida, enrolava-se na bandeira. Um tiro de pólvora seca

estrondava, assustando a platéia. E eis que o mágico se atirava lá do alto, em arremesso, como

se fosse voar, e caía pesadamente cá embaixo, nas tábuas do chão. - Bis, bis - gritavam-lhe da torrinha. E Sátiro repetiu o monólogo, uma, duas, várias vezes, com o mesmo tiro e a mesma queda, até

que Damião, compadecido de sua insânia, começou a reclamar - Chega! Chega! - e o mágico

afinal se retirou, manquejando, uma das mãos no quadril machucado, enquanto o pano do teatro

vinha descendo, debaixo de gritos e assobios. Antes que ele desaparecesse, sempre a enfiar o impresso por baixo das portas, Damião mudou

de calçada, ainda ouvindo o baticum dos tambores. Para trás, em linha reta, ficava o Cemitério

do Gavião, com o Padre Policarpo, a Genoveva Pia, a Aparecida, o Dr. Celso de Magalhães, a

Dona Bembém, a Dona Páscoa, a Dona Calu, o amigo Barão, cada qual no seu jazigo ou na sua

cova rasa, na santa paz do Senhor. À frente, era o Largo do Quartel; em seguida, torcendo para a

direita, a Rua das Hortas, o Largo da Cadeia, a Praia do Jenipapeiro e por fim a Gamboa, com a

casa de sua bisneta, num cômoro verde que escorregava para o mar. O próprio Tião, no mesmo carro em que fora buscar a parteira, viera dar-lhe a notícia de que,

antes do anoitecer, a Biá começara a sentir fisgadas fortes, no alvoroço de dar à luz do primeiro

filho. - Deixei sua bisneta gemendo. A casa já está cheia de parentes. É bom que o senhor também

esteja lá, para receber o seu trineto. - Sim, irei - concordara. - Mas não já. O primeiro parto dá muito rebate falso. Isso é coisa para o

meio da noite. E antes do Tião sair: - Eu sou do tempo em que os mais moços esperavam pelos mais velhos. - Hoje, tá tudo mudando - emendou o Tião. E como o tinham deixado só, no rebuliço do primeiro trineto da família, apenas com a criada

que lhe servira apressadamente o jantar (e também se fora para a casa da Biá). Damião se vestiu

Page 13: Textos sobre o nordeste

devagar, sabendo que não adiantava ter pressa, e ainda passou por um cochilo, na cadeira de

balanço da varanda, antes de deixar a casa entregue ao Veludo, que andava na fase de latir e

correr, próprio do cio insatisfeito.

Levara bom tempo na esquina da Rua das Cajazeiras, a ver se aparecia um carro que o

transportasse à Gamboa. Terminara reconhecendo que, se dependesse mesmo de um carro, só

iria conhecer o trineto depois de grande. O jeito era ir a pé, aproveitando a fresca da noite. Ao entrar na Rua de São Pantaleão, já distante do Cemitério dos Ingleses, experimentou de

repente uma sensação de frio, que lhe desceu da cabeça aos pés, como se um sopro gelado o

tivesse apanhado por trás, em toda a extensão do corpo. Respirou fundo, e prosseguiu no seu

caminho, sem aumentar nem diminuir o passo, ao mesmo tempo que procurava convencer-se de

que a rajada viera da Rua da Cotovia. Parou adiante, apalpando os bolsos da calça, à procura do

maço de cigarros. Tinha trazido os cigarros, mas esquecera a caixa de fósforos. - Velho é assim mesmo: quando se lembra de uma coisa, esquece outra. Paciência. Senhor de si, voltou a caminhar, procurando espairecer os olhos no ermo da rua longa. De novo

o vento soprou, agora mais forte, como se o tempo fosse mudar. O céu limpo tranqüilizou

Damião. Uma janela bateu; por cima de um muro, estalou um galho de árvore, que resvalou

para a calçada; adiante, uma vidraça partiu, no bater violento de outra janela; uma lata vazia

rolou pelo meio-fio. Antes de alcançar o fim do quarteirão, ele teve a impressão de que algo estranho, que se

associava à sua pessoa, estaria ocorrendo naquele momento. Tentou sacudir de si a impressão

aborrecida, e esta retornou, insidiosa, opressiva, com a teimosia de um mau presságio. Pensou

na Biá. Não, não seria nada com ela: o médico tinha-a visto pela manhã, e assegurara que seu

parto seria normal. Tudo bem, e a criança no seu lugar; era só esperar agora pela reação da

natureza, sob a vigilância experiente da Comadre Ludovina. - E a Comadre Ludovina já está lá. Foi então que escutou o romper dos tambores, ali perto, na Casa-Grande das Minas. Quase no

mesmo instante tiniram os ogãs e sacudiram as cabaças, mas não suplantaram os tambores, que

iam acelerando o tantantã nervoso que obriga as noviches a girarem sobre si mesmas. Dir-se-ia

que uma batida queria alcançar a seguinte, sem que um tamboreiro destoasse dos outros na

vertigem do compasso. E só esse baticum frenético se impunha agora, apagando o som dos

outros instrumentos, e também só ele o vento levava, rua abaixo e rua acima, dispersando-o na

grande noite de agosto que se fechava sobre a cidade. Depois de passar para o outro lado da rua, Damião deu consigo na calçada do querebetã, e ali

retardou a caminhada, querendo entrar. Era uma casa baixa, de beiral saliente, caiada de novo,

na esquina do Beco das Crioulas, com janelas de rótulas e porta de duas folhas, sobre a Rua de

São Pantaleão. Só uma banda da porta estava aberta. Parado na soleira, ele olhou para dentro e

viu o corredor e a varanda já repletos, com as noviches dançando em volta da nochê Andreza

Maria. E ia dar o primeiro passo no corredor, quando a nochê subiu o xale para os ombros,

compelindo os tamboreiros a uma pausa brusca, logo interrompida por um bater mais forte, em

outro ritmo, e veio caminhando para a porta, no espaço que se ia abrindo para lhe dar passagem.

Damião tinha dado outro passo, e ali esperou que ela o levasse. Quando saiu, ele não saberia dizer ao certo quanto tempo ali permanecera. Vinte minutos? Meia

hora? Ou mais ainda? Mais ainda, certamente. O importante é que, depois de ouvir os

tamboreiros e assistir às danças rituais, se sentia preparado para ir ao encontro de seu trineto.

Sentado no banco, a olhar as noviches dançando rodeadas de velas, era outra vez o negro puro,

filho de sua raça, em contato com as remotas raízes africanas. E assim entrou na Rua do Passeio,

descendo pelo Beco das Crioulas, sempre acompanhado pelo tantantã dos tambores. A Rua do Passeio, longa, retilínea, parecia não ter fim. Casas de azulejos de um lado e de outro,

com grades de ferro rendilhadas, vidros coloridos no leque das janelas, um ou outro portal de

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pedra. Sem relógio para ver as horas (o seu andava na loja do Maneco Ourives, para limpeza

geral da máquina, já fazia uma semana), era debalde que Damião consultava de vez em quando

a posição da lua, que ora se escondia por trás dos mirantes mais altos, ora repontava adiante,

curva e pontuda como um chavelho de bumba-meu-boi entrando no terreiro. No canto da Rua de Santana, o bico de gás do lampião estava prestes a apagar, reduzido a uma

chamazinha débil, que se encolhia no bocal empoeirado, com medo da noite, a escuridão a se

fechar à sua volta. E outra vez Damião se assustou, agora com a zoada de uma lata de lixo, que

ia sendo arrastada nas pedras do chão. Era um cão magro, só pele e osso, com uma pata traseira

pendurada, que arrastava com o focinho, enquanto o lixo se esparramava na calçada escura. Ao

pressentir os passos de Damião, já bem perto, o cão assustou-se também retirou depressa a

cabeça de dentro da lata, e correu para o outro lado da rua, capengando, com um osso na boca. Um pouco além, Damião ouve o som de um piano mal tocado, para os lados da Rua do Oiteiro.

E enquanto apura a orelha, tentando identificar os compassos da valsa, uma carruagem dispara

pela Rua do Passeio, à altura do Hospital Português, e é tão próximo o tropel dos cavalos e o

estrondo das rodas, que ele fica esperando que ela passe ao seu lado, seguindo a toda brida na

direção do Largo do Quartel. Como demore passar, ele se volta para trás, e não vê: na rua

deserta, só o cão rói o seu osso, à luz de outro lampião. A carruagem dobrou a Rua do

Mocambo, e seu rumor se afasta no sentido da Praça da Alegria, ao mesmo tempo que o piano

se cala, e volta a ressoar, um pouco mais distante, o baticum dos tambores, na Casa-Grande das

Minas. Damião se lembrou que Donana Jansen saía de seu túmulo, nas noites de sexta-feira, e dava uma

volta comprida pela cidade, numa carruagem puxada por duas parelhas de cavalos sem cabeça,

com um esqueleto na boléia brandindo o chicote. Só se ouvia o ruído das rodas e das ferraduras,

despencando ladeia abaixo. - Bobagem - reagiu Damião. - História inventada pelos inimigos políticos da velha. Quem

morreu quer sossego. E apalpando novamente o bolso da calça, tirou fora um cigarro, que deixou no canto da boca.

Mais além, talvez ainda estivesse aberto o botequim da esquina da Rua Grande. Como fora

esquecer de trazer a caixa de fósforos? Logo ele que, depois de velho, não dispensava os

cigarrinhos da noite, para esperar o sono... E nisto se viu saindo do quarto da Maria Quitéria, nos baixos de um sobradinho da Rua da

Estrela, já querendo amanhecer. Na subida da Rua de Nazaré, estranhou uma zoada ressoante de

louça quebrada, a poucos passos, adiante da escadaria da Rua do Giz. Retardou o andar,

intrigado. Era uma louça atrás da outra, e muitas a um só tempo, debaixo das mesmas pancadas

firmes, que faziam voar para todos os lados os cacos partidos. Do patamar da escadaria, estendeu o olhar para baixo. Ao pé do último socalco, à porta do sobrado do Comendador Antônio Meireles, na claridade do

dia que ia rompendo, um bando de negros em ação, cada qual com seu porrete de pau-roxo,

quebrava depressa pilhas e pilhas de vasos de louça empilhados na calçada. Damião desceu os socalcos quase a correr, e antes de chegar cá embaixo começou a rir,

adivinhando o que se passava. Dias e dias, já fazia alguns meses, era o assunto de São Luís inteira, nas rodas do Largo do

Carmo, nas conversas do Passeio Público, no cochicho das sacristias. Inimigo de Donana

Jansen, com quem vivia às turras, o Comendador Meireles tinha mandado preparar na

Inglaterra, para vendê-los quase de graça, um milheiro de belos penicos de louça, com cara da

velha no fundo do vaso. Donana Jansen soube do fato e suportou com paciência o riso da

cidade. Não reagiu logo: deu tempo ao tempo, enquanto ia mandando comprar, aos dois, aos

três, às dezenas, na loja do Comendador, os penicos com seu retrato, até ter a certeza de que,

agora, sim, só ela os possuía. Apenas por perguntar, mal contendo o frouxo de riso, Damião perguntou a um dos negros:

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- De quem vocês são escravos? - De Donana Jansen. Eram mais de trinta negros, todos fortes, espadaúdos, e iam quebrando os urinóis com uma fúria

divertida, repetindo as cacetadas rijas, que desfaziam a louça apenas com uma pancada. A

vizinhança ia despertando com a zoadaria estranha. Caras estremunhadas entreabriam as rótulas,

nas janelas dos sobrados, e já algumas pessoas se debruçavam das sacadas, enquanto outras, na

rua, em chinelos, no chambre de dormir, riam alto, vendo as matanças dos penicos. Um cheiro

insuportável de mijo podre desprendia-se de um vaso à parte, por sinal que maior que os outros,

quase o triplo, e coberto com uma tampa também de louça. - E esse aí? - quis saber Damião. - Minha sinhá deu ordem pra despejar o mijo dele na cabeça do Comendador, se ele aparecer pra

tomar satisfação. E sem interromper as pancadas seguras, o negro abriu para Damião a dentadura farta, que lhe

encheu a boca feliz, rematando com este comentário, entre um penico e outro: - Donana Jansen não é gente. Tou cansado de dizer. Quem se mete com ela tem sarna muita pra

se coçar. Ora se tem! Ainda com o cigarro apagado no canto da boca, Damião aproximou-se da Rua Grande,

pensando onde ia encontrar, ali perto, uma caixa de fósforos para comprar. E não tinha chegado

à esquina, defronte de um casarão de altas janelas ogivas, quando viu entreaberta a porta do

botequim. Sempre o ruído dos tambores seguindo-lhe os passos, com a lua nova a se esconder e a brilhar,

na faiscação do céu estrelado. E agora o assobio do vento, que disparava na rua deserta,

varrendo as calçadas, para se desfazer no giro doido de um remoinho. Dentro do botequim, a única luz era a chama de um candeeiro a óleo, suspenso da parede

esfumaçada por um suporte de metal. Essa luz mortiça, por trás do bocal enegrecido, caía por

cima do balcão, mal dando para clarear uma parte da saleta pontilhada de mesas vazias. Dentro

do balcão, ninguém. Damião subiu o degrau da porta, avançou uns passos, bateu palmas. Enquanto esperava que o

atendessem, olhou em volta, aproximando-se do balcão. E foi aí que viu por terra, entre as duas

primeiras mesas à sua direita, o vulto de um negro magro, comprido, bem trajado, caído de

bruços numa poça de sangue, com uma facada nas costas, à altura do coração. Parado, ficou um

momento a fitá-lo, de olhos crescidos. Não lhe podia ver o rosto, só a nuca e uma parte do

pescoço. Pela roupa, era gente de fora. Empurrou-o de leve, para ver se lhe restava um alento de

vida, mas o corpo permaneceu imóvel, com o busto achatando o braço direito, na posição em

que tinha caído. Na claridade que ia esmorecendo, Damião olhou em volta, de sobrancelhas travadas. Numa das

mesas, mais para o fundo da saleta, acumulavam-se garrafas de bebida, quase todas tombadas

sobre o tampo de mármore, juntamente com um copo quebrado e um cinzeiro atulhado de cinza

e pontas de cigarro. Cacos de vidro rangeram debaixo da sola de suas botinas, assim que deu

outro passo, na direção do candeeiro. E ali, com uma suspeita, espiou para dentro do balcão.

Outro morto jazia no ladrilho do piso, com a cabeça fendida por uma paulada. Estava de frente,

com o busto maio apoiado no ângulo entre o balcão e a prateleira. E a luz que descia sobre ele,

muito tênue, levemente avermelhada, permitiu que Damião prontamente identificasse, pelo

rosto coberto de sangue pisado, o senhor gordo, de bigode em ponta, que, dias antes, ali mesmo,

lhe tinha vendido um maço de cigarros.

____ Fonte: Montello, Josué. Os tambores de São Luís: romance. 5ª ed. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1985. Cap. 1. p. 11-20.

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