Thais Inoue

download Thais Inoue

of 137

Transcript of Thais Inoue

Cap. I - Como Estudar01. Do ensino mdio ao ensino superiorA passagem para o ensino superior deve ser encarada como um marco na vida intelectual do aluno, que, normalmente, acaba de deixar o ensino mdio. Como toda transio, pode ser sentida de um modo positivo ou negativo. H uma diferena essencial entre o ensino mdio e o ensino superior: no primeiro, o professor est, em sua maioria, lidando com crianas que se tornam adolescentes; no segundo, est lidando com adolescentes que se tornam adultos. Ora, o papel do professor deve ser diferente em cada um dos casos. O professor de ensino mdio deve cuidar de todo o processo de aprendizagem do aluno. No basta apresentar os temas em aula, mas deve tambm acompanhar e supervisionar o trabalho individual de estudo do aluno. Isso significa entregar ao aluno material de leitura (livros e apostilas) pr-selecionado, fazer exerccios rotineiros para verificar o aprendizado e interferir constantemente nas atividades. Por que o professor de ensino mdio deve se comportar desse modo? Simples: seus alunos no possuem, ainda, maturidade suficiente para a aquisio do conhecimento. Precisam contar com a superviso de um profissional para fazerem as melhores escolhas. Mas isso no ocorre no ensino superior. Neste momento, os alunos caminham para a maturidade. Ser maduro significa ser capaz de tomar as decises mais importantes de sua vida. O aluno torna-se adulto. capaz de pensar e de fazer escolhas. O papel do professor se modifica. Ao lidar com adolescentes que se tornam adultos, no deve assumir uma posio de controle e de superviso. Sua funo simplesmente indicar os caminhos a serem trilhados. O aluno escolhe como e quando percorrer. Grande parte dos professores do ensino superior limita-se a expor o contedo da matria em sala de aula e a indicar um livro-base que trata do tema. Somente isso. O resto, com o aluno. Ele ter que anotar a aula, ir atrs do texto indicado e estud-lo. Sozinho. Apenas procurando o professor para tirar suas dvidas. A primeira coisa que todo universitrio deve aprender justamente a diferena entre o ensino mdio e o ensino superior. Quanto antes perceber isso, menos traumtica e mais gostosa ser a passagem.

02. Requisitos para o estudo: vontade, tempo, organizaoOs estudantes de direito que desejam adquirir todos os conhecimentos sobre um determinado tema de aula, devem seguir o Roteiro Completo de Estudo. Para tanto, indispensvel possuir duas coisas: 1. vontade e 2. tempo. Quanto ao requisito vontade, devemos constatar que nem sempre o tema estudado despertar o interesse do aluno. perfeitamente normal que, em um curso de introduo ao direito, haja temas que paream mais interessantes ou menos interessantes. Assim, sugerimos que o aluno adote todos os passos para estudo daqueles temas que reputar mais interessantes, e pule alguns passos quando estudar temas de que goste menos. Em outras palavras, diria simplesmente: estude mais aquilo de que voc gosta e menos aquilo de que voc no gosta. sempre mais chato e menos promissor fazer o que desagradvel; mais interessante e estimulante fazer o que agradvel. Por outro lado, o requisito tempo nem sempre to subjetivo quanto o anterior. Muitas vezes o aluno possui vontade de estudar o tema, mas carece de tempo para faz-lo. Na nossa sociedade capitalista, a grande maioria das pessoas depende de um emprego para sobreviver. Ser assalariado em grandes cidades, por exemplo, toma quase todo o tempo do estudante, seja pelos afazeres tpicos da profisso, seja pelo cansao gerado por outros fatores, como o transporte precrio e o desgaste emocional do cotidiano. Com isso, o estudante precisa desenvolver uma habilidade especfica e fundamental: organizao. Por mais que disponha de vontade para estudar um tema, o tempo poder ser curto. Ento, o aluno precisar gerenciar seu tempo, escolhendo quais os passos do Roteiro Completo de Estudo ir seguir e os distribuindo nos perodos disponveis durante a semana. Mas cuidado: consulte o Roteiro Mnimo de Estudo ao gerenciar seu tempo. muito importante que voc no elimine medidas essenciais para seu aprendizado, sem as quais estar gerenciando mal seu tempo, ficando, ao final, desestimulado e sem vontade.

03. Roteiro Completo de EstudoPensando no aluno ideal do ensino superior, apresentamos o Roteiro Completo de Estudo. Tal roteiro pode ser utilizado em quase todas as disciplinas, embora tenha sido elaborado para aquelas de cunho terico. Roteiro Completo: 1. Informando-se sobre o tema (antes da aula)

pesquise na internet sobre o tema a ser estudado (procure definies e conceitos) leia rapidamente artigos de peridicos eletrnicos (jornais e revistas) procure textos sobre o tema na biblioteca (em livros e revistas) anote suas dvidas iniciais formule perguntas sobre o tema

2. Assistindo aula

oua atentamente o discurso do professor interprete o que foi dito anote conforme seu entendimento crie tpicos para organizar seu caderno anote suas dvidas e faa perguntas assim que possvel anote as respostas s perguntas pea sugestes de leitura

3. Estudando (aps a aula)

leia as anotaes de aula busque compreender tais anotaes leia integralmente o texto-base sobre o tema releia, com mais cuidado, o texto-base, grifando as ideias principais fiche o texto (resuma as ideias principais grifadas) leia outros livros, conforme seu interesse pelo tema, e, se for o caso, faa novos fichamentos feche os livros e escreva um texto sobre o tema, usando como referncia o caderno e as fichas anote suas dvidas e consulte o professor pense nos pontos principais e elabore perguntas sobre eles responda, por escrito, s perguntas

4. Consolidando o estudo

antes de estudar o novo tema, releia seu caderno, a ficha do texto-base e seu texto sobre o tema anterior

tente entender os conceitos e as ideias aps cada leitura, feche os olhos e pense no tema repita, pelo menos, uma vez a cada quinze dias os procedimentos deste tpico para todos os temas estudados

LEMBRE-SE: 1. 2. 3. 4. 5. Entenda as aulas Tire suas dvidas Anote sempre que possvel Estude todos os dias Converse com os amigos sobre os temas estudados

04. Roteiro Mnimo de EstudoSeja por falta de vontade, de tempo ou de organizao, o aluno pode ter dificuldades para seguir o Roteiro Completo de Estudos. Quando, excepcionalmente (assim esperamos), isso ocorrer, recomendamos a adoo do presente Roteiro. Roteiro Mnimo de Estudo:

assistir s aulas e anot-las tirar suas dvidas reler, semanalmente, as anotaes de aula escrever um resumo (de cabea) para cada tema estudado ler, se possvel, o texto-base

CUIDADO:

fazer menos do que o roteiro mnimo plantar para colher dificuldades na vspera das provas se for estudar apenas na vspera da prova, limite-se a ler e a resumir as anotaes de seu caderno; NO leia, pela primeira vez, o texto-base neste momento, pois voc ter mais dvidas do que certezas

Cap. II A Introduo ao Direito05. Nomenclatura histrico normativoSe observarmos os livros que pretendem introduzir os alunos ao direito, notaremos, de antemo, que possuem ttulos muito parecidos, porm com uma diferena nos termos utilizados. Qual a razo para essa diferena? Podemos, vasculhando a histria dos cursos de direito, encontrar uma possvel explicao: existem normas que, em diferentes momentos histricos, trazem uma nomenclatura diferente para a disciplina. Chegamos, assim, ao Decreto n. 19.852, de 1931, que exige o oferecimento, nos cursos de Direito, de uma disciplina denominada Introduo Cincia do Direito. Tal nome mantido at a Resoluo n. 3, de 1972, que passa a cham-la de Introduo ao Estudo do Direito. Por fim, a Portaria 1886, de 1994, refere-se, simplesmente, Introduo ao Direito. Curiosamente, a atual Resoluo n. 9, de 2004, que rege o funcionamento dos cursos jurdicos, foi omissa quanto a contedos introdutrios ao direito e/ou sua cincia. De qualquer modo, ficamos com duas possibilidades: Introduo ao Direito ou Introduo Cincia do Direito. Ser que, independentemente das razes histricas, haveria outros motivos para a diferena? Desenvolveremos a questo noutro momento.

06. Introduo Cincia ou ao Direito?Vimos, noutra postagem, que as normas referentes ao funcionamento dos cursos de direito referiram-se a nossa disciplina como Introduo Cincia do Direito, Introduo ao Estudo do Direito e Introduo ao Direito. A partir da, surgiram manuais enfatizando um ou outro dos ttulos. No exterior, uma rpida pesquisa em francs e em ingls seria capaz de revelar que a expresso Introduo ao Direito preferida: Introduction au Droit e Introduction to Law. Mas, ser que a distino revela alguma diferena conceitual? Ou trata-se apenas de uma preferncia terminolgica, sem consequncias prticas? Podemos constatar que existem duas finalidades bsicas de uma disciplina do gnero: 1. Apresentar o aluno a um fenmeno social chamado direito; 2. Apresentar o aluno ao estudo desse fenmeno social. ois bem, a distino pode revelar a preferncia do autor do livro. Os livros que recorrem expresso Introduo Cincia do Direito (e sua variante mais frequente, Introduo ao Estudo do Direito) consideram que a funo bsica da disciplina mostrar ao aluno o modo de se estudar o direito. O fundamental seria, assim, mostrar quais as principais abordagens possveis ao fenmeno social e quais os temas bsicos discutidos pelos estudiosos do direito. J os livros que recorrem expresso Introduo ao Direito enfatizam o fenmeno social. O objetivo bsico descrever, para o aluno iniciante, as caractersticas bsicas desse fenmeno. Em outras palavras, mostrar ao aluno o que o direito, que ser estudado nas inmeras disciplinas dogmticas. Por fim, devemos constatar que, no obstante a diferente postura apontada, os livros escritos no Brasil terminam por apresentar uma semelhana estrutural muito grande, no fugindo a uma mescla bsica de apresentar a cincia que estuda o direito e o direito enquanto fenmeno social ao mesmo tempo.

Cap. III Identificao do direito07. Natureza e CulturaO ser humano destaca-se dos outros animais. Em sua existncia, no se limita a aceitar o mundo natural que o rodeia, mas o modifica, construindo a civilizao. Podemos considerar a natureza como o conjunto de todas as coisas que existem em estado bruto, ou seja, independentemente da interferncia humana. No foram os seres humanos que construram as florestas, os rios, os minerais, as estrelas Todas essas coisas j existiam antes do nascimento do primeiro humano e podero continuar a existir aps o desaparecimento da espcie. O ser humano, porm, destaca-se dos demais primatas justamente pela capacidade de modificar a natureza. No se limita a aceitar aquilo o que dado quando de seu nascimento, mas age no sentido de modificar o seu entorno. Desde cedo aprendeu a utilizar lascas de pedra e pedaos de madeira como instrumentos, construindo lanas e outros utenslios. Aprendeu a manipular o fogo, ocupando lugares at ento inspitos aos primatas. Graas a sua capacidade de transmitir seus inventos e suas modificaes a seus descendentes, o homem passa a produzir cultura. Podemos, assim, definir a cultura como o conjunto de tudo aquilo o que o homem constroi modificando a natureza. Inclumos no conceito no apenas objetos materiais, mas tambm objetos espirituais, como comportamentos, crenas e manifestaes artsticas. Os bens culturais, diferentemente dos naturais, no existem sem a participao humana. Ao contrrio, imprescindvel que o ser humano aja para que se produza a cultura. Assim, em resumo, constatamos que a natureza um DADO, enquanto a cultura um CONSTRUDO. Bibliografia bsica: REALE, Miguel. Lies Preliminares de Direito. So Paulo: Saraiva, cap. III a V.

08. Sociedade, valores e controle socialO estudo do Direito deve partir, necessariamente, da constatao de que se trata de um fenmeno SOCIAL. Ou seja, o direito s existe na sociedade. Dito isso, torna-se um requisito definir a sociedade. Numa disciplina de Introduo ao Direito, essa definio corre o risco de ser classificada de superficial. No seu papel problematizar a noo, feito reservado a outra disciplina, a Sociologia. Porm, mesmo correndo o risco da simplificao exagerada, importante apresentar uma definio, pois sua falta acarretaria prejuzos maiores para o aluno que busca compreender o direito. Muitos pensadores concordam que o ser humano naturalmente dotado da sociabilidade, ou seja, tende a constituir sociedades. O mesmo fenmeno seria observvel em outros animais, como as abelhas e as formigas, por exemplo. Mas somente o ser humano capaz de transformar sua sociedade natural em uma sociedade cultural, modificando-a conforme seus objetivos. Podemos definir a sociedade como um conjunto de pessoas que se comportam para atingir determinados objetivos. No existe sociedade com apenas um indivduo, mas, sim, com vrios. No existe sociedade com apenas um comportamento, mas com um conjunto de comportamentos. H de se notar que os comportamentos humanos em sociedade tendem a se pressupor, ou seja, cada comportamento espera outro comportamento de outra pessoa e foi, do mesmo modo, esperado pelos demais. Os comportamentos so marcados, assim, pela previsibilidade. A razo de as pessoas se comportarem de um modo previsvel justamente o fato de a sociedade buscar a realizao de valores. Espera-se que cada comportamento e/ou a soma dos comportamentos permita sociedade transformar alguns valores desejveis em realidade, modificando essa realidade. Podemos afirmar, ainda, que a sociedade natural torna-se uma sociedade cultural a partir dessa busca valorativa. Mas, o que um valor? O valor uma qualidade ideal que se pode atribuir s coisas, constatando-se que, caso essas coisas correspondam ao valor almejado, tornar-se-o satisfatrias. Por exemplo: o respeito um valor. Quando uma pessoa se relaciona com outra e demonstra respeito nesse relacionamento, seu comportamento ser bem visto, pois corresponde a um valor esperado. Do contrrio, se a pessoa demonstra desrespeito, seu comportamento no possui a qualidade valorativa que dele se espera, sendo considerado indesejvel. Ora, os seres humanos se renem em sociedades culturais e se comportam de um modo previsvel porque, precisamente, buscam concretizar nas relaes sociais determinados

valores. Uma sociedade ideal, por exemplo, seria aquela em que os seres humanos, entre outros valores, concretizariam, em todas as relaes com os demais, o valor dignidade da pessoa humana. Infelizmente, todavia, nem sempre fcil identificar quais os valores efetivamente concretizados por uma sociedade. Nem sempre esses valores verificados na realidade correspondem aos valores proclamados pela sociedade como almejados. As sociedades capitalistas, por exemplo, pregam buscar a concretizao de vrios valores mas, na prtica, muitas vezes, apenas buscam concretizar um valor, de natureza econmica, chamado valor de troca. Supondo que se identifiquem os valores efetivamente buscados por determinada sociedade, logo se detecta que existe um risco: as pessoas podem se comportar de um modo que no os realize. A fim de evitar comportamentos indesejveis ou at de corrigi-los, as sociedades desenvolvem mecanismos de controle social. Surgem instrumentos que permitem sociedade padronizar, de antemo, os comportamentos desejveis, geralmente por meio de regras (normas). Os instrumentos mais comuns so: religio, moral, costumes e direito. Chegamos, assim, ao direito. Consiste em um instrumento de controle social que se destaca dos demais, pois procura dirigir as condutas de forma a concretizarem determinados valores por meio de um conjunto de normas preciso e bem estruturado, tornando-se um mecanismo que gera maior segurana e certeza para as pessoas. Recorrendo s normas jurdicas, os membros de uma sociedade sabem exatamente qual o comportamento que devem adotar para a concretizao dos valores sociais.

09. Normas fsicasSe definimos a natureza como o conjunto de objetos que existem independetemente da ao humana, isso no significa que essas coisas sejam imveis ou no se modifiquem ao longo dos tempos. Um olhar mais atento, ao contrrio, revela que a natureza uma soma de fenmenos e processos em constante transformao, que levam criao (natural) de algumas coisas e ao desaparecimento (natural) de outras. Os climas, os relevos, a fauna e a flora transformam-se constantemente, mesmo sem a interferncia dos seres humanos. Alm disso, os objetos naturais relacionam-se entre si continuamente. Corpos se chocam, animais se enfrentam, raios incendeiam florestas Diuturnamente a natureza d provas de seu dinamismo.

Os seres humanos, talvez impressionados pela grandeza natural do globo, talvez movidos pelo esprito curioso que lhe peculiar, buscam, desde os mais remotos dias, compreender as relaes e as transformaes que se desenvolvem na natureza. Observando os objetos naturais, descobrimos que existem algumas constncias em seus comportamentos. Percebemos, por exemplo, que dois corpos que possuem massa tendem a se atrair reciprocamente, movidos por uma acelerao contnua; ou ainda, que algumas substncias, em determinadas condies, alteram seu estado fsico, passando de slido a lquido e de lquido a gasoso. Essas constncias podem ser descritas como normas ou regras fsicas (a palavra grega phsis significava natureza; assim, a palavra fsica equivale a natural). Tais normas enunciam as relaes entre objetos naturais, constatando que, dadas determinadas causas, haver, necessariamente, uma consequncia. Um exemplo a chamada Lei da Gravidade, citada acima. Os homens, como dito, constataram que massa atrai massa. A Terra, dado seu tamanho, atrai todas as coisas com massa para seu ncleo, fazendo com que as coisas caiam. Trata-se, assim, de uma norma fsica ou natural: se soltarmos qualquer objeto com massa, ele cair em direo ao centro da Terra. H uma relao de causa e efeito: se um corpo ficar solto no ar, tende a cair na direo do centro de nosso planeta. Outro exemplo a chamada Lei de Darwin, ou teoria da evoluo das espcies. O renomado cientista, aps observar o comportamento de inmeros animais, formulou uma regra que, conforme sua viso, explica o movimento de extino e de surgimento de espcies. Convm destacar que as normas fsicas contm consequncias dadas pela prpria natureza e no escolhidas pelo homem. No uma escolha do cientista dizer qual ser o resultado de um fenmeno natural; a prpria natureza j ligou ao fenmeno uma consequncia necessria. Ningum escolhe qual ser o resultado de um aquecimento da gua a cem graus Celsius, ou qual ser o resultado do arremesso de uma bola para o alto. A gua, necessariamente, ir evaporar; a bola, necessariamente, ir cair. Como a norma fsica o resultado da observao de um cientista, nada impede que o observador venha a se enganar. Em outros termos, nada impede que seja criada uma norma que pretende explicar todos os fenmenos naturais do gnero, mas no consegue faz-lo, pois est errada. Quando um cientista constata que os fenmenos observados no levam consequncia esperada pela norma, ento pode ser o momento de se reelaborar dita norma. Se, por exemplo, as pessoas constatarem que as espcies no evoluem do modo proposto por Darwin, o erro no est na natureza, que simplesmente existe, mas no modelo normativo criado para explic-la, que deve ser reavaliado.

Costuma-se dizer que, quando a norma natural contrariada pelos fatos, prevalecem os fatos, em detrimento da norma, que deve ser alterada.

10. Normas culturaisO processo de transformao das sociedades humanas naturais em sociedades culturais envolve a busca pela concretizao de alguns valores, colocados como objetivos dessa passagem. As sociedades culturais, assim, movimentam-se em determinadas direes, evoluindo (ou regredindo) constantemente. As transformaes pelas quais passam as sociedades culturais e as foras que operam essas transformaes, ou as impedem, podem ser descritas mediante observaes realizadas por cientistas. Dessas observaes so criadas regras ou normas que tentam explicar a realidade social. Por outro lado, no interior das sociedades culturais nem sempre os comportamentos se manifestam de modo cooperativo, havendo ocasies em que surgem os conflitos. Esses conflitos podem colocar em risco a prpria continuidade do agrupamento humano, levando a sua dissoluo. A fim de evitar esse risco, desenvolvem-se as normas ou regras de controle social. Diferentemente das normas fsicas, essas normas so direta ou indiretamente criadas pelos seres humanos, podendo, assim, ser chamadas de normas culturais. Conforme dividido acima, podem ser de duas espcies: compreensivas (explicativas) ou ticas. As normas compreensivas ou explicativas assemelham-se s normas fsicas, com uma ressalva importante: tentam explicar o funcionamento de fenmenos culturais, ou seja, cuja existncia depende da ao humana, e no se referem a fenmenos naturais. Por tentarem explicar o funcionamento de fenmenos culturais, essas normas, enquanto mecanismos operacionais desses objetos, so, por sua vez, tambm criadas pelos seres humanos, embora indiretamente. Vejamos alguns exemplos dessas normas culturais: 1. As normas sociolgicas derivam da observao dos fatos sociais, realizada pelos socilogos. Tais cientistas buscam formular regras que expliquem os comportamentos sociais, indicando as razes pelas quais as pessoas permanecem vivendo em sociedade, mesmo quando esta no seja capaz de satisfazer suas necessidades bsicas. Com a descoberta das normas sociolgicas, espera-se compreender e explicar o funcionamento das sociedades; 2. As normas histricas, por sua vez, derivam da observao dos acontecimentos histricos, realizada pelos historiadores, que buscam encontrar regras que expliquem as transformaes ocorridas e, quem sabe, antecipem as transformaes futuras;

3. As normas econmicas, por fim, derivam da observao dos fatos econmicos, realizada pelos economistas, cujo objetivo encontrar regras que expliquem o funcionamento global da economia. Uma regra econmica muito famosa a lei da oferta e da procura, que explica a variao de preos em economias liberais. preciso destacar que, tal qual ocorre com as normas fsicas, podemos considerar que as normas culturais compreensivas tambm submetem-se aos fatos. Em outras palavras, quando um cientista percebe que criou uma norma para explicar um fenmeno cultural e que as consequncias previstas pelo cientista na norma no se verificam em concreto, ento surge a necessidade de se refazer dita norma. Os cientistas sociais, historiadores e economistas, para ficarmos em nossos exemplos, explicam seus respectivos objetos culturais de estudo por meio de normas cujo contedo precisa, efetivamente, corresponder aos fatos sociais, histricos e econmicos. Em havendo divergncias, a norma cultural compreensiva descartada ou modificada. Outro gnero de normas culturais o gnero das normas ticas. Diferentemente das compreensivas, seu objetivo no explicar a realidade cultural, mas determin-la ou comand-la. Essas normas correspondem aos mecanismos de controle social criados pelas pessoas para neutralizarem os conflitos, permitindo sociedade sua permanncia e reproduo. Sua estrutura interna revela um comando dirigido aos agentes sociais buscando determinar seus comportamentos obrigatrios, permitidos ou proibidos, estabelecendo o que deve ou pode ser feito por cada um para se concretizarem os valores buscados coletivamente. Assim, so exemplos de normas ticas as normas jurdicas, morais, religiosas e de trato social. Todas estabelecem os limites socialmente tolerveis do comportamento humano. Referncias bibliogrficas: BETIOLI, Antonio Bento. Introduo ao Direito. So Paulo: Saraiva, 2011, lio III. REALE, Miguel. Lies Preliminares de Direito. So Paulo: Saraiva, captulos III a V.

11. Normas ticas: caracteres geraisAs normas ticas so espcies de normas culturais. Sua finalidade no compreender ou explicar os fenmenos culturais, mas determin-los ou control-los no sentido de permitirem a concretizao de valores. Considerando que as normas ticas surgem emsociedades culturais, seu objetivo especificar os comportamentos humanos permitidos, proibidos e obrigatrios, limitando as possibilidades de transformao ou de existncia dos fatos quelas que permitam a concretizao dos valores sociais. Alguns comportamentos humanos podem resultar em situaes indesejveis socialmente, sendo, ento, proibidos pelas normas ticas; outros comportamentos, porm, podem ser indispensveis para a concretizao dos valores sociais, tornando-se, assim, obrigatrios. Embora existam normas ticas de diversas espcies, como as normas jurdicas, religiosas, morais e de trato social, podemos considerar que ambas apresentam caracteres comuns, quais sejam: imperatividade, violabilidade e contrafaticidade. 1. Imperatividade: toda norma tica indica uma direo considerada normal que deve ser seguida pela sociedade possibilitando a concretizao dos valores. Por haver limitao nas possibilidades de ao dos seres humanos, consideramos que as normas ticas sejam imperativas, pois derivam de uma relao de autoridade. Tambm podemos definir a imperatividade em oposio causalidade dasnormas fsicas. Estas indicam uma consequncia necessria a uma condio, representada pela frmula se A , B (ou seja, se ocorre um fenmeno, sua consequncia necessariamente ocorrer tambm). As normas ticas, por sua vez, indicam uma consequncia esperada, mas apenas possvel, para uma condio, sendo representada pela frmula se A , B DEVE SER. Comumente se identifica o mundo das normas ticas como o mundo do DEVER SER, em oposio ao mundo natural, que o mundo do SER. No campo tico, a indicao de um comportamento desejvel no uma garantia de que ele se verificar na prtica. Podemos exemplificar imaginando uma situao na qual algumas pessoas busquem concretizar um determinado valor, como a educao. Podemos supor que essas pessoas estejam reunidas em uma sala de aula na qual o professor ministre sua disciplina. Ora, dada a condio acima (pessoas reunidas em sala de aula buscando a educao), podemos estabelecer uma consequncia tica: deve ser respeitado o silncio, ou, simplesmente, proibido conversar. A norma imperativa, pois deriva de uma autoridade que limita as possibilidades de comportamento dos presentes na sala de aula. Tambm imperativa porque indica limites que DEVEM SER respeitados, no havendo qualquer garantia de que SERO respeitados.

2. Violabilidade: justamente esse carter imperativo da norma tica revela outro carter especfico, que a possibilidade de o comando no ser respeitado, sendo, assim, violado. Toda norma tica considera sempre presente essa possibilidade de no ser cumprida, pois dirigida a seres humanos, que podem escolher um comportamento diferente daquele estipulado. Tendo-se em vista essa possibilidade constante da violao, as normas ticas costumam existir aos pares: uma norma tica limita o comportamento e outra norma tica estipula uma consequncia que estimula o comportamento limitado e/ou cobe o comportamento anormal. Esta segunda norma tica chama-se sano. Voltando ao exemplo acima, um professor, tendo-se em vista o objetivo de concretizar o valor educao, pode criar uma norma dizendo que o silncio deve ser respeitado (proibido conversar) e, sabendo que existe a possibilidade de os alunos no respeitarem sua determinao, pode criar uma segunda norma, dizendo que o aluno conversador deve ser punido com uma advertncia. 3. Contrafaticidade: toda norma tica pode enfrentar uma oposio dos fatos, ou ser desmentida pela realidade. A norma tica criada em nosso exemplo, dizendo que o silncio deve ser respeitado na sala de aula, pode ser desmentida pela verificao ftica de que os alunos conversam. Uma norma tica jurdica pode no corresponder ao comportamento da maioria da populao, que a descumpre impunemente. Nesses casos, porm, no podemos dizer que a norma tica tenha deixado de existir ou no sirva para mais nada. As normas ticas no existem para se adequarem aos fatos, mas, ao contrrio, para adequar os fatos a elas. Caso haja uma oposio entre a realidade e uma norma tica que consagra um valor atual, devemos modificar a realidade, no a norma. A isso chamamos contrafaticidade. Trata-se de uma caracterstica contrria apresentada pelasnormas fsicas e pelas normas culturais compreensivas. Conforme especificado, os caracteres acima so peculiares s normas ticas e, inclusive, as diferenciam de outros tipos de normas. Referncias bibliogrficas: BETIOLI, Antonio Bento. Introduo ao Direito. So Paulo: Saraiva, 2011, lio III.

12. Normas ticas: tridimensionalidadeQuando nos referimos a normas ticas, devemos sempre ter em mente que correspondem a apenas uma das pontas de um fenmeno tridimensional que tambm envolve fatos e valores. Os fatos sociais so aqueles acontecimentos que, por derivarem de aes humanas culturais, concretizam determinados objetivos, aos quais denominamos valores. Os valores so justamente os objetivos perseguidos pelos seres humanos em seus atos culturais. As normas ticas partem da constatao de que nem sempre os fatos sociais realizam os valores mais desejveis para a sociedade. Para evitar que valores indesejveis se concretizem, elas limitam as possibilidades de escolha das pessoas envolvidas nos fatos, direcionando-as a objetivos socialmente aceitos, por meio de permisses, proibies e obrigaes. Os trs elementos, fato, valor e norma, sempre se fazem presentes em situaes envolvendo a conduta tica humana. Tambm no podemos esquecer que ambos se somam para explicar o fenmeno normativo. Podemos ilustrar com um exemplo. Imaginemos uma situao concreta na qual uma pessoa trabalhe muito e receba um salrio pequeno. Podemos avaliar essa situao a partir de um valor, a proporo ou o equilbrio entre as prestaes: como houve um desequilbrio na troca entre o trabalhador e seu empregador, diremos que a situao, sob tal ponto de vista, injusta e indesejvel. O desejvel seria que, se a pessoa trabalha muito, seu salrio fosse elevado. Estudiosos podem constatar que a situao descrita se repita com frequncia em nossa sociedade, descrevendo o fenmeno por meio de normas culturais compreensivas sociolgicas ou econmicas. Inspirados por tais descries, os legisladores podem reputar necessrio dirigir a sociedade para o rumo correto, realizando o valor equilbrio entre as prestaes. Esse direcionamento dar-se- mediante a criao de uma norma tica afirmando que o salrio deve ser equivalente quantidade de trabalho e estabelecendo uma punio para aqueles que a descumprirem. Nosso exemplo fictcio. Ser que poderia ocorrer na prtica? Ser que, numa sociedade capitalista, o valor do salrio de todos os trabalhadores poderia ser equivalente quantidade de trabalho? Economicamente, isso seria impossvel. Sem o desequilbrio entre o valor do salrio e o tempo de trabalho, no h produo de lucro. Sem a produo de lucro, o capitalismo no prospera. Porm, a norma tica pode refletir um grau de desequilbrio que seja o menor possvel dentro da sociedade. A diferena entre o valor do salrio e a quantidade de trabalho pode

ser apenas aquela que permita sobrevivncia lucrativa das empresas. Ento, o valor se concretiza nos limites das possibilidades sociais. A norma tica, assim, corresponde a um equilbrio socialmente possvel entre o valor desejvel e as condies fticas da realidade. No faz sentido pensarmos nela sem pensarmos nos fatos e nos valores a que se referem. Esse equilbrio sempre momentneo. A evoluo social modifica os fatos e os valores ininterruptamente. Tais mudanas exigem que as normas ticas sejam tambm alteradas, a fim de se atualizarem. Nem sempre, entretanto, esse ritmo de atualizao normativa acompanha o ritmo das transformaes sociais, deixando muitas normas ticas defasadas.

13. SanoAs normas ticas so imperativas e suscetveis de serem descumpridas. Elas referem-se a comportamentos que DEVEM SER respeitados, contendo em sua essncia a possibilidade do descumprimento, pois dirigem-se a seres humanos, dotados da liberdade de escolher sua conduta. O ideal seria que todos os membros de uma sociedade compreendessem a importncia de buscarem a concretizao dos valores consagrados pelas normas ticas em seus relacionamentos, manifestando aes de respeito mtuo e solidariedade, aperfeioando cada vez mais a vida comum. Todavia, esse ideal no se materializa. Nem sempre as pessoas se comportam dentro dos limites estabelecidos pelas normas ticas. Para tentar minimizar o ndice de descumprimento das normas ticas que limitam os comportamentos sociais, surgem outras normas (tambm ticas) chamadas sanes. A sano, assim, uma consequncia atribuda observncia ou no de um comportamento previsto em uma norma tica anterior, que pode estimul-lo ou reprimi-lo. Numa sociedade hipottica, pode-se considerar proibido o comportamento de olhar os mais velhos diretamente nos olhos. Como nem todos podem vir a cumprir tal norma tica, cria-se (espontnea ou conscientemente) uma consequncia negativa para aqueles que olharem nos olhos dos mais idosos: uma admoestao. Assim, se uma pessoa olhar nos olhos de outra mais idosa, DEVE SER aplicada a sano, qual seja, uma bronca. Na mesma sociedade, o Estado pode considerar inadmissvel a conduta de um ser humano matar outro. Cria-se uma norma tica jurdica proibindo o homicdio (a vida deve ser respeitada). Para garantir que essa norma seja respeitada, o Estado cria outra norma tica jurdica, a sano, determinando que se algum matar outra pessoa, DEVE SER preso. importante fazer um apontamento: enquanto a norma tica que descreve os comportamentos sociais permitidos, proibidos ou obrigatrios se dirige para todos os membros da sociedade, a norma tica que descreve a sano se dirige apenas queles que

tm, na sociedade, a competncia para tornar concreta a consequncia. So essas pessoas que devem aplic-la. Nos nossos exemplos, a primeira sano se dirige prpria pessoa que foi olhada nos olhos, que deve dar uma bronca no ofensor; a segunda, por sua vez, dirige-se aos funcionrios do Estado que tm a competncia para punir uma pessoa que tenha matado outra, que devem prender o homicida. Nos dois casos, ressalte-se, qualquer pessoa pode ser punida, mas somente algumas pessoas tero a competncia de aplicar a sano. Outro apontamento necessrio diz respeito ao fato de a sano tambm ser, sob todos os aspectos, uma norma tica. imperativa, violvel e contraftica. Isso significa que nada ou ningum pode garantir que a pessoa que DEVE aplicar a sano realmente o faa. O senhor que foi olhado nos olhos pode no dar uma bronca no ofensor; o funcionrio do Estado que deve prender o homicida pode no o fazer. Estamos, novamente, no reino da liberdade. Muitas vezes, porm, a sano se dirige a pessoas especficas e determinadas, que possuem algumas caractersticas que diminuem as possibilidades de no serem aplicadas. Assim, as sanes jurdicas dirigem-se a funcionrios pblicos que, caso no as apliquem s pessoas condenadas, correm srio risco de serem, eles prprios, vtimas de outras sanes e punidos. interessante notar que as sanes no so apenas consequncias ruins dirigidas queles que violam as normas ticas. Podem ser tambm boas consequncias, aplicadas queles que se comportam conforme os padres normais. As sanes ruins so chamadas de negativas. So punies que devem ser impostas queles que descumprirem outras normas ticas. J as sanes boas so chamadas de positivas ou premiais e consistem em consequncias benficas atribudas queles que cumprem outras normas ticas, tendo o objetivo de estimular esse comportamento. H inmeros exemplos de sanes negativas, como a priso, a multa e a perda de cargos. As sanes positivas podem consistir em descontos oferecidos a contribuintes que pagam seus tributos dentro de prazos determinados, em isenes tributrias a empresas que se instalam em determinadas regies ou na concesso de honrarias a pessoas que fazem determinadas coisas. Um aspecto interessante na anlise da sano verificar como ela aplicada. Dissemos que a sano uma norma tica dirigida a determinadas pessoas dentro das sociedades, que tm a competncia para aplic-las. Quem so essas pessoas? H limites quanto ao grau da consequncia? Conforme a sociedade humana, h, sim, diferentes modos de se aplicarem as sanes e diferentes pessoas com a competncia de faz-lo.

Em determinadas sociedades, predomina o sistema da vingana social: quando uma pessoa descumpre uma norma tica de uma comunidade, deve ser aplicada, por toda essa comunidade, a sano. Haver, assim, uma punio coletiva contra o ofensor. Noutros locais, surge a vingana privada: apenas a pessoa ofendida, ou sua famlia, podem aplicar a sano contra o ofensor. A punio, nesse caso, torna-se personalizada, no sendo levada a cabo por todos os membros da coletividade. A vingana privada passa a ser controlada por regras que delimitam o grau de sua abrangncia. Em certos casos, o ofensor ser submetido, pelo ofendido, vontade dos deuses (ordlios); noutros, a vingana seguir as regras dos duelos; ou ainda, a vingana ser controlada pela regra do Talio, determinando que a sano seja proporcional ao dano sofrido (olho por olho, dente por dente). Nas sociedades contemporneas frequente a tentativa de monoplio estatalda sano. Muitas regras estabelecem os critrios para sua aplicao, que se torna exclusividade dos funcionrios do Estado, sobretudo nos casos das normas ticas jurdicas. Em resumo, podemos dizer que a sano consiste em uma norma tica que garante o comportamento previsto em outra norma tica. Ela se dirige a determinadas pessoas, que devem aplic-la. No caso do direito, o Estado monopoliza essa aplicao. Referncias bibliogrficas: BETIOLI, Antonio Bento. Introduo ao Direito. So Paulo: Saraiva, 2011, lio VI.

14. Normas ticas anlise comunicativaAs normas ticas so marcadas pela imperatividade, pela violabilidade e pela contrafaticidade. Os dois primeiros caracteres indicam que existe apenas uma possibilidade de o comando ser cumprido. Pensando nisso, surge uma dvida: sempre que houver uma indicao de um comportamento que DEVE SER respeitado, feita por qualquer pessoa, haver uma norma tica? Em outras palavras, quando um comando possui alguma possibilidade de ser obedecido, transformando-se em uma norma tica? O tema pode ser abordado sob o ponto de vista da teoria da comunicao. Toda comunicao pode ser reduzida a um processo genrico, no qual existe um Emissor que cria e transmite uma Mensagem para um Receptor, que a interpreta (E -> M -> R). Haver comunicao sempre que houver a recepo da mensagem transmitida. Toda norma tica uma mensagem; nem toda mensagem, como bvio, uma norma. Nossa questo descobrir, com base na teoria da comunicao, quando uma mensagem pode ser considerada uma norma. Toda norma tica limita as possibilidades de um fato, estabelecendo o que permitido, o que proibido e o que obrigatrio. Seu comando se manifesta pela expresso DEVER SER, que caracteriza toda norma: o comportamento permitido DEVE SER garantido; o comportamento proibido DEVE SER evitado; o comportamento obrigatrio DEVE SER realizado. Podemos concluir, por ora, que somente poder ser uma norma aquela mensagem que se expressar, direta ou indiretamente, por um DEVER SER. Mas, ser que toda mensagem que indique limitaes ao fato que DEVEM SER respeitadas uma norma? Imaginemos duas situaes muito parecidas: na primeira, um professor afirma que proibido conversar em sala de aula; na segunda, um aluno franzino, na ausncia do professor, afirma que proibido conversar na sala. Em ambos os casos h uma norma tica? No obstante a mensagem, nos dois casos, ser a mesma, com facilidade visualizamos a norma tica no primeiro, mas, dificilmente, no segundo. O que faltaria ao segundo caso? Simples: o emissor da mensagem no possui autoridade para criar uma norma. Um professor uma autoridade em sala de aula, podendo, em virtude da relao contratual entre alunos e Universidade, criar regras disciplinares. Caso um aluno descumpra uma regra disciplinar criada por um professor, ser punido pela Universidade, com respaldo do Estado brasileiro. Por outro lado, o aluno franzino que pediu silncio no possui autoridade previamente reconhecida pelos colegas para criar mensagens normativas. Por mais que sua mensagem parea uma norma, no ser.

Podemos concluir, assim, que o carter normativo de uma mensagem no venha apenas do seu contedo (DEVER SER), mas, principalmente, da existncia de autoridade entre seu emissor e seu receptor. Uma mensagem, para ser norma, deve ser criada por um emissor que possua algum nvel de autoridade (fsica, moral, intelectual) reconhecido pelo receptor. Voltando ao segundo caso, quando o aluno franzino afirmou ser proibido conversar na sala, no criou uma norma, pois no houve o reconhecimento de qualquer autoridade exercida por ele sobre os colegas, receptores da mensagem. Porm, caso o aluno fosse uma pessoa, por qualquer motivo, respeitada pelos demais, ento, sua mensagem poderia vir a se tornar uma norma tica, pois existiria autoridade na relao. O que mudaria, portanto, no seria a mensagem em si, a mesma, mas a relao entre os comunicadores, imbuda ou no de autoridade.

15. Normas ticas: caractersticas distintivasTodas as normas ticas (etiquetas sociais, jurdicas, morais e religiosas) possuem as j citadas caractersticas comuns da imperatividade, violabilidade e contrafaticidade. Representam, alm disso, um ponto de equilbrio entre fatos e valores, limitando os fatos para se atingir o mximo possvel de um valor.Existem, todavia, outras caractersticas que se fazem presentes em algumas das normas ticas e podem, inclusive, servir como critrio para diferenci-las. So elas: 1. Heteronomia: algumas normas ticas so heternomas, ou seja, so elaboradas por outras pessoas que no os prprios destinatrios, os quais devem obedec-las independetemente de aceit-las ou no internamente. Outras normas ticas so autnomas, no sentido de que somente podem ser verdadeiramente obedecidas se houver a convico interna de quem se comporta ou so diretamente criadas por tal pessoa. Uma norma jurdica, assim, heternoma se preencher dois requisitos: a) ser criada por outra pessoa que no seu destinatrio; b) ter imperatividade mesmo que o destinatrio no deseje aceit-la. Podemo citar um exemplo: no importa se a pessoa que paga um tributo criado pelo Estado concorda com ele, acatando interiormente a norma; apenas interessa ao direito que a pessoa manifeste externamente o comportamento de pagar. 2. Coercibilidade: algumas normas ticas so coercveis, ou seja, podem invocar a fora fsica para impor as limitaes que trazem aos fatos. Outras, no.Hoje, uma norma religiosa no pode resultar na priso de um fiel que a descumpra, nem prever um castigo fsico para puni-lo. No h, assim, coercibilidade na religio em nosso pas. Devemos, ainda, distinguir coero de coao. Dissemos que algumas normas ticas so coercvies, palavra derivada de coero, assim comocoercibilidade. Simplificadamente,

podemos definir coero como ameaa. Algumas normas ticas buscam concretizar seu dever ser por meio da ameaa da aplicao da sano negativa. J a palavra coao (cujos derivados e sinnimos so coatividade, coativo e coercitivo) significa o uso concreto da fora, a materializao da ameaa. Quando a norma tica recorre sano e impe uma pena a seu destinatrio, constatamos que houve a coao. Assim, a norma coerciva enquanto ameaa e se torna coativa quando concretiza a ameaa. 3. Bilateralidade: toda norma tica socialmente bilateral, pois refere-se a uma relao que envolve mais de um indivduo; nem toda , contudo, axiologicamente bilateral, pois nem sempre h uma proporo valorativa estabelecida entre as pessoas relacionadas de modo a buscar o bem comum. Uma norma tica somente ser axiologicamente bilateral se determinar os limites das condutas dos envolvidos em um fato sem ignorar a existncia de ambos e a necessidade de se atingir um valor externo a eles, que no pode ser reduzido a qualquer um, qual seja, o bem comum. Se a norma tica busca, em ltima instncia, atingir o bem individual de uma das partes da relao, acima da busca do bem comum, ento ela pode ser classificada como axiologicamente unilateral. As normas religiosas no so axiologicamente bilaterais, pois consideram apenas os indivduos em sua relao com Deus, estabelecendo valores que realizam o sagrado no indivduo, sem consider-lo independentemente disso. J as normas jurdicas, por outro lado, sempre olham os dois envolvidos em uma relao, distribuindo direitos e deveres conforme os valores que devem ser realizados, levando a relao ao bem comum, no se identificando com qualquer deles. 4. Atributividade: h normas ticas que atribuem a uma pessoa o poder de exigir de outra comportamentos em determinada relao. Esse poder garantido por alguma espcie de entidade social, que atuar para proteg-lo. Podemos dizer que tais normas ticas conferem uma exigibilidade garantida a certas pessoas envolvidas em fatos por elas regulados. Uma norma de etiqueta social, por exemplo, no possui atributividade, pois no confere poderes de exigibilidade garantida para as pessoas.Em resumo, podemos distinguir as normas ticas conforme as caractersticas acima: a. normas jurdicas: so heternomas, coercivas, axiologicamente bilaterais e atributivas (possuem todas as caractersticas); b. normas de moral social (etiqueta): so heternomas e axiologicamente bilaterais. c. normas de moral individual e religiosas: no possuem tais caractersticas.

16. Relaes entre o Direito e a MoralH relaes necessrias entre o Direito e as normas morais de uma sociedade? Ser que as normas jurdicas precisam ser consideradas boaspela populao? Ou inexiste qualquer ponto de contato entre o direito e a moral? Uma primeira resposta a tais indagaes trazida pela Teoria do Mnimo tico, delineada pelo jurista Georg Jellinek (1851-1911). Tal teoria afirma que todas as normas jurdicas so normas morais. Especificamente, considera-se que as normas morais mais importantes da sociedade so transformadas, pelo Estado, em normas jurdicas. Nesse sentido, a sociedade sempre considera corretas as normas jurdicas, no podendo existir tais normas que sejam vistas como imorais. H normas morais que no se convertem em normas jurdicas, pois no so consideradas as mais importantes da sociedade. Por exemplo, a proibio ao homicdio uma norma moral que a sociedade, por meio do Estado, dada sua importncia, transformou em jurdica. Por outro lado, existem regras de etiqueta social como, por exemplo, um cavalheiro abrir a porta para uma dama, que no so transformadas em jurdicas pelo Estado. Mas nem todos concordam com a teoria do Mnimo tico. Muitos afirmam que existem normas jurdicas imorais (contrrias moral) e normas jurdica amorais (indiferentes moral). A norma que define o valor do salrio mnimo, por exemplo, , inegavelmente, jurdica. Muitos, todavia, argumentam que seja imoral, tendo-se em vista o baixo valor especificado. H normas, ainda, amorais. So normas de carter meramente tcnico, cujo contedo no pode ser avaliado nem de modo positivo nem de modo negativo pela moral. Por exemplo, a norma jurdica que especifica que os carros devem parar na luz vermelha do semforo. Por que a cor vermelha para parar? Por que no outra? Essa escolha no envolve questes morais, mas uma mera conveno tcnica. Uma ltima objeo ainda pode ser levantada: ser que existe uma nica moral na sociedade? Ou ser que a sociedade possui vrias morais que convivem simultaneamente? Se esta segunda pergunta puder ser respondida afirmativamente, ento no podemos dizer que o direito sempre seja visto como moral por todos os membros da sociedade, pois existem vrias morais sociais. Outra teoria busca explicar essas relaes, mas de um modo diametralmente oposto: a Teoria da Separao entre o Direito e a Moral. Thomasius (1655-1728) afirma que no h ponto de contato entre as esferas analisadas. A Moral um conjunto de regras que regula a esfera ntima dos seres humanos, sendo aplicvel apenas no nvel da conscincia. O Direito, por sua vez, um conjunto de regras

que apenas regula a esfera externa dos comportamentos humanos, ou seja, a manifestao e a concretizao desses comportamentos. A teoria de Thomasius no explica satisfatoriamente, contudo, as regras da chamada moral social (costumes, etiqueta etc.), que se referem a comportamentos externos, sem grandes preocupaes com a esfera ntima. Tambm no explica os casos em que o direito se preocupa com a esfera ntima das pessoas, como no caso da verificao de dolo ou culpa na prtica de um crime ( necessrio saber se o autor teve ou no a inteno de pratic-lo). Assim, no parece ser um critrio adequado para justificar a separao entre os campos. Ainda afirmando a separao entre Direito e Moral, podemos apontar o jurista Hans Kelsen (1881-1973). Sua viso, contudo, difere da de Thomasius. Para Kelsen, no h qualquer diferena essencial entre as esferas. As regras morais so em tudo idnticas s normas jurdicas, salvo por um aspecto, por assim dizer, externo: as normas jurdicas so as normas morais com maior condio de se impor socialmente de modo eficaz. A diferena estaria no grau da fora coercvel por detrs da norma: o emissor da norma jurdica mais forte, no sentido de poder concretizar socialmente sua ameaa, do que o emissor de uma norma moral. Alm disso, ele adota o princpio da relatividade da moral, admitindo que toda sociedade possui mais de um conjunto de regras morais, que podem julgar o direito de modos diversos. Um grupo social, que adota sua moral prpria, pode considerar uma regra jurdica justa; outro grupo, da mesma sociedade, mas adotando outra moral, pode reputar tal regra jurdica injusta. O fato de os grupos sociais poderem julgar o direito, todavia, no interfere no seu funcionamento. Em outras palavras, as normas jurdicas so criadas pelo prprio direito e somente deixam de existir se revogadas por ele. Enquanto existem, independentemente da opinio dos destinatrios, podem impor seu comportamento. No momento em que uma nova norma jurdica criada, basta que ela siga os procedimentos do prprio direito, sem precisar referir-se s outras normas morais, para passar a existir. A viso de Kelsen afasta do direito a pretenso de estar preso, necessariamente, a um contedo superior ou distinto dele. Revela, com enorme preciso, que o direito moderno pode servir a diversas moralidades ao mesmo tempo, sem, contudo, ser reduzido a qualquer delas. Enquanto a fora que impe o direito (no caso, o Estado) for socialmente mais eficaz do que outras, suas regras devero ser cumpridas independentemente das avaliaes morais que possam receber. Alguns autores, porm, perplexos ante a revelao kelseniana, refutam a possibilidade de relativismo moral e de o Direito no possuir qualquer ponto de contato com a Moral. Adotando a Teoria dos crculos secantes, elaborada por Claude du Pasquier, afirmam simplesmente que o conjunto das normas morais parcialmente coincidente com o conjunto das normas jurdicas.

Assim, para tais autores, haveria regras morais no jurdicas e regras jurdicas amorais e imorais. Alm disso, ambos os conjuntos possuiriam regras comuns, que so ao mesmo tempo morais e jurdicas. O exemplo outrora citado da proibio ao homicdio pode ser resgatado, estando, simultaneamente, em ambos os conjuntos. Podemos filiar Miguel Reale teoria dos crculos secantes. Para ele, embora possam existir normas jurdicas fora do universo da moral, seria desejvel que o maior nmero possvel delas estivesse de acordo com a moral. Trs teorias, em sntese, tentam explicar as relaes entre as normas jurdicas e as normas morais. A Teoria do Mnimo tico defende que as normas morais mais importantes so transformadas em normas jurdicas. A Teoria da Separao do Direito e da Moral afirma que no h ponto de relao necessrio entre ambos os campos. Thomasius afirma que o objeto das normas morais um (esfera ntima) e das normas jurdicas outro (comportamento externo); Kelsen, por sua vez, afirma que existem diversos grupos de normas morais e o direito no se prende necessariamente a qualquer deles, sendo um campo prprio e autnomo. Por fim, a Teoria dos crculos secantes estabelece que h um ncleo comum entre a Moral e o Direito, composto por normas simultaneamente morais e jurdicas. Referncias: Betioli, Antonio Bento. Introduo ao Direito. So Paulo: Saraiva, 2011. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6 edio. Coimbra: Armnio Amado, 1984, pp. 48-55 e 93-107. (itens I.5 e II)

17. Direito: etimologiaO fenmeno jurdico, ao longo da histria, vem sendo designado por duas palavras derivadas de radicais distintos: Direito e Jurdico. Podemos apresentar uma breve etimologia dessas palavras (ou seja, buscar as palavras originrias que se transformaram nelas). A palavra direito no foi utilizada pelos romanos para designar o fenmeno que hoje recebe seu nome. Apenas no final da Idade Mdia os estudiosos passam a utiliz-la. Seu radical latino rectum e directum, que significam, basicamente, reto e em linha reta. Podemos dizer que uma coisa est directum se estiver conforme uma regra (reta). Se pensarmos nas principais lnguas ocidentais, todas possuem um termo derivado dessas palavras latinas: em alemo, Rechts e, em ingls, right, derivadas de rectum; em portugus, direito, em espanhol, derecho, em italiano,diritto e, em francs, droit, derivadas de directum. A palavra Jurdico, por sua vez, deriva daquela palavra usada pelos romanos para designar o fenmeno do direito: jus. Uma srie de palavras hoje utilizadas tambm derivam desse mesmo radical: jurisconsulto, judicial, judicirio, jurisprudncia

Conforme dito, jus significava, em latim, direito. H, contudo, controvrsias quanto a sua origem remota. Alguns autores derivam-na de jussum, particpio passado de jubere, que significa mandar, ordenar (significando, assim, mandado, ordenado). A palavra jus, nessa viso, reforaria o aspecto da garantia atribuda pelo direito aos envolvidos numa relao, destacando sua fora ordenatria. Outros autores, porm, defendem que a palavra derivaria de justum, que significa justo, em conformidade com a justia. Nesse caso, o aspecto valorativo do direito reforado, considerando-se o fenmeno como um caminho para a realizao do bem comum. interessante notar que a incerteza quanto origem etimolgica de jus revela a tenso prpria da palavra em seu sentido contemporneo: nosso direito , ao mesmo tempo, uma fora que ordena (manda) e busca realizar a justia (o bem comum). Referncia: MONTORO, Andr Franco. Introduo Cincia do Direito. So Paulo: RT. (cap. 1 O conceito de direito)

18. Direito: simbologiaComumente se representa o direito ou o Poder Judicirio por meio de uma balana, colocando-se ambos os pratos em um mesmo nvel, indicando que h um equilbrio ou uma igualdade de pesos. Podemos nos perguntar: o que estaria em cada prato? O que deve estar em uma situao de equilbrio? No seria equivocado supor que em cada lado da balana possa estar uma das partes envolvidas em uma relao social. A norma jurdica distribui, a partir dos valores que levam ao bem comum, uma medida de poderes e deveres s pessoas. Se elas se comportam conforme essa medida, a balana permanece em equilbrio. Se uma das partes faz o que no pode (o que proibido) ou deixa de fazer o que deve (o que obrigatrio), ento haver um desequilbrio na balana, subindo-se um prato e descendo-se o outro. Por exemplo, suponhamos que uma pessoa seja proprietria de um relgio de ouro. Enquanto proprietria, ela possui o direito de que outras pessoas no danifiquem seu objeto, ou seja, todas as outras pessoas, que no so proprietrias do relgio, esto proibidas de fazerem algo que o danifique. Se uma pessoa, movida por desgnios misteriosos, resolve derreter a pulseira de ouro do dito relgio, ter violado a norma proibitiva e causado um dano ao proprietrio. A balana ficar desequilibrada. Caber ao juiz encontrar uma medida judicial que possa reequilibrar a balana. No caso exemplar, ele poder condenar a pessoa que derreteu a pulseira de ouro a pagar um valor indenizatrio, reparando os prejuzos materiais. Se o relgio, alm disso, tivesse algum valor sentimental, o juiz tambm precisaria conden-la a reparar esse dano moral.

Assim, em cada prato da balana est uma das pessoas envolvidas em uma relao social. Quando ocorre um comportamento que desrespeita uma norma jurdica, h um desequilbrio. Cabe ao direito, por meio dos juzes, encontrar uma medida que reequilibre a relao. Devemos destacar que a medida deve ser precisa, no sentido de que no pode haver um excesso nem uma falta. Se o juiz encontra uma medida que no repara todo o dano causado por uma pessoa a outra, essa medida ser insuficiente para o equilbrio; se a medida, por outro lado, for exagerada, ento haver outro desequilbrio, dessa vez causado pelo juiz. Desde a Antiguidade o smbolo da balana aparece nas mos de uma deusa. No caso dos gregos, a deusa Dik, filha de Zeus e Themis. Originariamente, ela possui os olhos abertos, carrega a balana na mo esquerda e uma espada na mo direito. Quando os pratos atingem o equilbrio (son), a deusa encontrou a medida a ser tomada e profere o direito (dkaion). Os romanos criaram sua representao original para a deusa Iustitia, depois modificada ao longo da histria. Essa deusa, ao contrrio da grega, possui os olhos vendados e segura a balana com as duas mos, sem ter uma espada. H um fiel na balana que atinge a posio reta quando a deusa encontra a medida a ser adotada (de + rectum), levando a deusa a manifestar-se, declarando o direito (jus). Comparando-se as deusas, notamos que os olhos abertos de Dik revelam uma preocupao com a busca especulativa e abstrata da justia (os olhos simbolizam o pensamento). Ao mesmo tempo, a existncia da espada revela a importncia dada pelos gregos ao uso da fora para concretizao do direito. J a deusa romana revela outras concepes. Os olhos vendados mostram que a deusa no v os fatos nem os conflitantes, exigindo, por outro lado, que ambos narrem para ela os acontecimentos. A deusa somente conhecer aquilo o que lhe for trazido pelas partes, ignorando toda a profundidade do conflito. Isso exigir dela prudncia, a virtude romana dos juristas: deve equilibrar a necessidade de refletir sobre o que ouviu com a necessidade premente de uma deciso que solucione o problema. Deve refletir o suficiente para no cometer uma injustia; esse tempo no pode ser to longo a ponto de tornar a deciso intil. Alm disso, a deusa Iustitia no possui espada. Isso revela que seu mero pronunciamento j suficiente, na cultura romana, para revelar o direito. Execut-lo outra questo, fora da alada divina. Em concreto, o estado romano limitava-se, por meio de um processo, a declarar o direito, concedendo ao particular o poder de agir, por conta prpria, para assegur-lo. Para finalizar estas reflexes sobre a simbologia que envolve o direito, no podemos deixar de apontar uma extraordinria alterao no modo como a deusa representada. Consolidouse uma imagem de deusa que possui os olhos vendados, a balana na mo esquerda e a espada na mo direita, fundindo as duas deusas anteriores.

Pois essa representao, no caso do direito brasileiro e de grande parte do direito ocidental, no fortuita. Nossos juzes esto com os olhos fechados para os conflitos, exigindo que as partes os narrem e s reconhecendo os fatos que forem previamente trazidos nas peties. Possuem a balana para tentar encontrar a medida exata que permite o equilbrio da situao desequilibrada, sem faltas ou excessos. E possuem a espada, revelando a primazia do Estado no uso da violncia e das medidas para garantir o direito. No h direito sem essa garantia. Referncia: FERRAZ JNIOR, Trcio Sampaio. Introduo ao Estudo do Direito. So Paulo: Atlas. (item 1.1 e item 1.2)

19. O Direito: a impreciso da palavraUm problema sempre enfrentado pelos juristas consiste na impreciso do vocbulo direito. Trata-se de uma palavra polissmica, ou seja, com muitos significados. Nesse sentido semntico (a semntica busca os significados dos signos, das palavras), portanto, intil buscar um nico significado denotativo que defina direito. Em um sentido prprio, a palavra pode significar coisas diversas, como norma, faculdade, justia, cincia ou fato social. A fora desses significados , muitas vezes, equivalente. Sob a perspectiva sinttica (a sinttica analisa as palavras combinadas entre si, quanto s funes que cumprem umas em relao s outras) verificamos a mesma impreciso. De um lado, podemos usar a palavra direito como substantivo (o direito brasileiro prev), como adjetivo (no um homem direito) ou, at mesmo, como advrbio (Ele no agiu direito). De outro, notamos que o vocbulo pode ser conectado a palavras sintaticamente diferentes, como verbos (meus direitos no valem), substantivos (o direito uma cincia) ou adjetivos (o direito injusto). Como se no bastassem as imprecises semntica e sinttica do termo, ainda convm destacar que, pragmaticamente (a pragmtica enfoca a relao estabelecida entre os comunicadores e a funo da mensagem nessa relao), o direito uma palavra de forte carga emotiva. Normalmente usado em contextos de reivindicaes, de lutas sociais, de desiluses. Assim, pensando na teoria da comunicao, constatamos que sob todos os enfoques a palavra direito imprecisa. Por isso afirmamos que defini-la torna-se um problema. Referncia: FERRAZ JNIOR, Trcio Sampaio. Introduo ao Estudo do Direito. So Paulo: Atlas.

20. O Direito: significadosPor se tratar de um termo impreciso, definir o direito requer a apresentao de mais de um significado. Muitas vezes utilizamos a palavra direito para designar uma norma ou um conjunto de normas. Ao afirmarmos, por exemplo, o direito brasileiro probe o furto, podemos considerar que o significado do termo, no caso, a legislao brasileira, ou seja, o conjunto de normas legais do pas. No mesmo sentido poderamos dizer o direito obriga ao pagamento de impostos ou, ainda, o direito permite o uso da propriedade. Novamente, em ambos os casos, referimo-nos s normas jurdicas ou, especificamente, s leis. Pelo fato de as normas situarem-se fora dos indivduos envolvidos nas relaes a que elas se referem, muitos, no sentido estudado, utilizam a expresso direito objetivo. O direito objetivo, portanto, a norma jurdica ou o conjunto de normas jurdicas. Ainda podemos destacar outras expresses em que a palavra direito surge no significado conjunto de normas: direito positivo (conjunto de normas criadas, ou postas, por deciso), direito natural (conjunto de normas que deriva da natureza), direito costumeiro (conjunto de normas que deriva dos hbitos), direito estatal (conjunto de normas positivado pelo Estado), direito no-estatal (conjunto de normas no positivado diretamente pelo Estado). Outro significado da palavra poder ou faculdade. No caso, a palavra usada para indicar o poder que pertence a uma pessoa individual ou coletiva. Utilizamos o termo nesse sentido, por exemplo, nas seguintes frases: o comprador tem o direito de receber a coisa comprada, o credor tem o direito de cobrar a dvida, o ru tem o direito de apresentar a contestao. Pelo fato de o poder sempre pertencer a uma pessoa, a um sujeito, utiliza-se a expresso direito subjetivo. Convm destacar que, no presente, tende a haver uma complementaridade entre o direito subjetivo e o direito objetivo: o Estado, por meio da norma jurdica (direito objetivo) estabelece limites a uma situao ftica, atribuindo poderes aos sujeitos e garantindo o exerccio desses poderes (direito subjetivo). Conclui-se, assim, que a razo ltima da existncia do direito objetivo (conjunto de normas jurdicas) distribuir poderes garantidos aos membros de uma sociedade (direitos subjetivos). Por outro lado, a garantia mxima que um direito subjetivo pode possuir aquela conferida pelo Estado, por meio das normas jurdicas (direito objetivo). Em alguns momentos histricos que suscitaram revolues como a Francesa (1789) ou a Russa (1917) houve um gritante descompasso entre o direito objetivo e o direito subjetivo. Muitos poderes subjetivos que a maioria da sociedade gostaria de ver garantidos pelo Estado no o eram. Durante as revolues citadas, novos direitos subjetivos foram reconhecidos pelo direito objetivo, graas ao dos revoltosos.

Outro significado de extrema importncia da palavra direito conforme a justia ou devido por justia. Quando afirmamos que no direito viver na misria ou no direito roubar, simplesmente expressamos o sentimento de que a situao est em desconformidade com a justia, ou no justo; j se dizemos que pagamento direito do credor ou educao direito das crianas, sem pensarmos em um caso concreto, trazemos a ideia de que os bens pagamento e educao so devidos, por justia, s pessoas mencionadas. Convm deixar claro, assim, que, no sentido de justia, podemos usar a palavra direito para: 1. avaliar um fato conforme o critrio do justo; 2. indicar que um bem devido a uma pessoa como exigncia da justia. Torna-se difcil estabelecer, dos trs significados j apresentados, qual o mais importante. Se dissemos que o direito-norma e o direito-poder so dois pares que se complementam, no podemos omitir que essa complementaridade tem em vista o terceiro significado do direito, qual seja, a justia. Em termos ideais, uma sociedade deve reconhecer, por meio do direito objetivo, todos os poderes que permitiro aos indivduos uma vida justa, transformando-os em direitos subjetivos. As normas jurdicas devem, assim, distribuir poderes para os sujeitos, de tal forma que conduzam as situaes fticas ao ideal valorativo do justo. Durante os anos em que uma pessoa estuda direito, por outro lado, talvez no haja outro significado mais importante para a palavra do que o cientfico. comum os alunos afirmarem que fazem direito. O direito feito pelos alunos no a norma ou a justia, mas a cincia. Existe, assim, uma cincia que estuda o fenmeno jurdico. Essa cincia busca sistematizar o conhecimento sobre tal fenmeno, a fim de torn-lo compreensvel e manipulvel. O nome dessa cincia, como destacado, tambm direito. Por fim, h um significado sociolgico da palavra direito. Entre os fatos sociais estudados pelo socilogo, existem fatos religiosos, econmicos, polticos e, tambm, os jurdicos. Trata-se de um setor da vida social, com caractersticas prprias, tambm chamado de direito. Os significados aqui apresentados no esgotam as possibilidades de definies do direito. Em outros campos do saber, a palavra indica reta (segmento direito), perfeio aritmtica (clculo direito), perfeio moral (homem direito) ou, simplesmente, um dos lados de qualquer coisa (lado direito, oposto ao esquerdo). Referncias: BETIOLI, Antonio Bento. Introduo ao Direito. So Paulo: Saraiva. (Lio VIII) MONTORO, Andr Franco. Introduo Cincia do Direito. So Paulo: RT. (cap. 1 o conceito de direito)

21. O Direito: definio de Miguel RealeSegundo Miguel Reale, o direito a ordenao tica coercvel, heternoma e bilateral atributiva das relaes sociais, na medida do bem comum. Sua definio, portanto, apresenta a soma dascaractersticas gerais e distintivas das normas ticas. Analisando-se os termos utilizados pelo autor na definio, verificamos, primeiro, que o direito uma ordenao. A palavra ordenao pode ser entendida como o conjunto de normas que organizam alguma coisa. Por ser uma ordenao tica, essas normas organizam a esfera tica da cultura humana. O direito, assim, um conjunto de normas ticas (uma ordenao tica). Todas as normas ticas compartilham de determinadas caractersticas gerais, como dito acima: so imperativas (impem uma conduta; regem-se pelo princpio da imputao dever ser), violveis (a conduta pode ser respeitada ou no) e contrafticas (ainda que sejam desrespeitadas, as normas ticas no perdem seu valor). Alm disso, o direito possui todas as caractersticas distintivas das normas ticas, conforme especificado por Miguel Reale: 1. coercvel, ou seja, busca minimizar o ndice de violabilidade mediante ameaas de recurso fora; 2. heternomo, pois as normas jurdicas so elaboradas pelo Estado e devem ser cumpridas independentemente da aceitao ntima do destinatrio; 3. axiologicamente bilateral pois busca concretizar valores que no esto reduzidos a uma das partes da relao ftica, e sim valores que levam ao bem comum; 4. atributivo pois atribui poderes garantidos aos destinatrios das normas jurdicas. Convm destacar, por fim, que tal definio congrega os trs elementos da tridimensionalidade tica: fato, valor e norma. O direito busca valores ligados ao bem comum (bilateralidade axiolgica) por meio da criao de normas ticas heternomas que limitam os fatos de modo coercvel e atributivo.

22. Historicidade do DireitoO direito um fenmeno histrico. Afirmar isso significa, primeiramente, que no existe o direito, enquanto conceito absoluto, eterno e imutvel. Buscar-se uma definio universal para o direito, vlida em todos os momentos e em todas as sociedades humanas, seria esforo intil e pouco produtivo. Na Grcia Antiga, o direito possua caracteres muito peculiares, ligando-se ao exerccio da cidadania e delimitao do espao poltico por meio das normas. No era um campo autnomo, pois pressupunha a poltica e concretizava a tica. Durante o Imprio Romano, o

direito torna-se um mecanismo de resoluo de disputas, com rituais prprios e relativa autonomia dos outros campos. Avanando para a Idade Mdia, o direito passa a confundir-se como os poderes dos nobres, ligados propriedade privada da terra. No Absolutismo, o direito transforma-se em uma decorrncia do poder divino dos reis, derivando da vontade real. Apenas no capitalismo recente o direito identificado com a norma jurdica, em especial a lei, o contrato e a sentena. O direito de um povo passa a ser entendido como o conjunto de normas jurdicas criado ou reconhecido pelo Estado que o representa. Mais precisamente, passamos a chamar direito ao processo contnuo de criao de normas jurdicas. Algo, portanto, bem diferente daquilo o que j foi o fenmeno jurdico.

23. Positivao do Direito e Cincia DogmticaO direito Contemporneo, tpico das sociedades capitalistas, transforma-se em uma tecnologia de resoluo de conflitos com um mnimo de perturbao social. Seu elemento fundamental a norma jurdica positiva, revestida da forma de lei, contrato e sentena. A ideia de direito positivo significa que as normas jurdicas so criadas de um modo especfico, em detrimento de outros. De modo genrico, podemos reconhecer trs modos pelos quais uma norma criada: revelao, costume ou positivao. As normas reveladas so aquelas cuja autoria se atribui a um ser divino e, no mais das vezes, transcendente, que escolheria algumas pessoas a quem transmiti-las (revel-las). As normas costumeiras so criadas por fora de hbitos sociais reiterados, no se podendo identificar uma vontade que as estabelecem. Por fim, as normas positivas so aquelas criadas por fora de uma deciso, individual ou coletiva. O direito contemporneo torna-se positivo recentemente. Um marco dessa passagem a Revoluo Francesa, que traz a noo de que o poder jurdico emana do povo, sendo exercido por representantes e pelo Estado. A manifestao mxima desse poder a norma jurdica, especialmente na forma da lei, mas tambm na forma de contratos e sentenas. O direito ps Revoluo Francesa um direito criado por fora de decises estatais (a lei e a sentena de modo direto; o contrato de modo indireto). Ele torna-se positivo, portanto. Cumpre notar que cada nova deciso que cria uma nova norma jurdica (positiva), para ser aceita, deve derivar de outras decises que criaram previamente outras normas jurdicas, as quais conferem autoridade para a nova criao. Falar de direito positivo, pois, significa falar de uma teia de decises que so pressupostas para a positivao de uma nova norma. Assim, para que o juiz possa criar uma sentena, antes j foram tomadas decises que criaram as leis que lhe deram competncia e fundamentos; tais leis, por outro lado, pressupem outras decises que criaram outras normas que possibilitaram sua existncia.

O fenmeno jurdico transforma-se numa constante produo de decises que criam normas. Podemos, inclusive, afirmar que esse direito transformou-se de uma praxis em uma poiesis. Aristteles classificou a ao humana com os termos acima, adotando o critrio de analisar o resultado ou o fim dessa ao. A praxis aquela modalidade de ao cujo resultado um bem (no sentido valorativo do termo). A poiesis aquela modalidade de ao cujo resultado um produto, elaborado durante a ao. Se um conjunto de alunos se rene para reivindicar, por meio de um abaixo-assinado, um direito da sala, essa ao no tem como resultado o documento em si, mas a busca de um bem por meio desse instrumento. Trata-se depraxis. Quando uma pessoa resolve fazer um bolo, o resultado de sua ao o alimento finalizado, tratando-se, portanto, de poiesis. A classificao aristotlica da praxis tambm especifica o bem buscado pela ao. Quando se busca um bem individual, ele chama a ao de tica; quando se busca um bem coletivo, a ao chamada de poltica. O direito corresponderia s normas derivadas da ao poltica que especificam, limitam, o espao tico de cada indivduo, dentro da cidade. Seria, portanto, uma modalidade de praxis. Com a positivao do direito, ele transformar-se-ia, hoje, em uma poiesis. A ao jurdica realizada pelo profissional do direito deixa de preocupar-se, fundamentalmente, com o bem, e passa a centrar-se no processo de produo das decises que criam as normas. Pensando no exemplo do abaixo-assinado, imaginemos uma situao em que uma sala de aula se especializasse na elaborao desses documentos. Toda a turma passaria a fazer, imprimir e distribuir textos de abaixo-assinados para outras salas de aula. Para essa turma, o documento em si transformar-se-ia no objetivo de sua ao; essa ao, portanto, de praxis tornar-se-ia poiesis. Pois exatamente isso o que ocorreu com o direito. Os profissionais especializaram-se de tal modo na elaborao das chamadas peas processuais (note-se o termo pea, dando a entender que algo ser montado ou produzido), que sua atividade cotidiana pode ser reduzida mecnica produo desses documentos. Se voltarmos praxis da Antiguidade, notaremos que havia uma condio absoluta para que um ser humano a praticasse: ele deveria ser minimamente virtuoso. A ao fundamental da praxis a poltica. Somente as pessoas mais virtuosas de uma cidade podem participar dessa ao e, por consequncia, criar o direito. Conforme o regime de governo, modifica-se a abrangncia de pessoas virtuosas: democracia (com abrangncia mxima, pois considerava-se que todos os cidados, cerca de 10 a 20% das pessoas de uma cidade, eram virtuosos o suficiente para participarem da poltica), aristocracia (somente alguns cidados so virtuosos o suficiente) e monarquia (apenas uma pessoa possui virtudes suficientes para criar as normas).

Se, na Antiguidade grega, o cidado que participava da criao do direito e das discusses pblicas que condenavam ou absolviam os acusados era, necessariamente, uma pessoa virtuosa, hoje no h essa necessidade. A poiesis uma ao que no demanda qualquer requisito espiritual de seu praticante. Em linhas gerais, toda poiesis exige, apenas, que se domine sua tecnologia. A tecnologia um conjunto de matrias-primas e procedimentos necessrios para a feitura do produto. Voltando ao exemplo do bolo, sua receita a tecnologia que traz os ingredientes e os procedimentos para sua elaborao. O direito contemporneo transforma-se na tecnologia que permite a produo das decises que criam as normas jurdicas (leis, contratos e sentenas, para falar de modo geral). incrvel notar que os profissionais do direito preocupam-se apenas com o domnio dessa tecnologia, pretendendo manusear os ingredientes e os procedimentos que permitem a criao do direito, sem buscar os significados do bem jurdico. A esmagadora maioria dos escritrios de advocacia converte-se em uma fbrica de peas processuais. Os advogados e seus estagirios passam os dias redigindo tais documentos e os conduzindo at o processo. Este, por sua vez, transforma-se em uma linha de montagem da qual participam outros profissionais e que termina na produo concreta de uma sentena (some-se ao termo os possveis recursos e acrdos). Em ltima instncia, os profissionais do direito (advogados, juzes e promotores) convertem-se em tcnicos que adaptam os modelos (as matrias-primas) de peties, contestaes, recursos e sentenas, aos casos concretos, numa atividade nem sempre realizada com a devida ateno, devido, muitas vezes, ao desinteresse decorrente de seu carter repetitivo e ao volume excessivo de trabalho. O direito convertido em tecnologia estudado e manipulado por uma cincia diferente daquela que lidava com o direito em outras sociedades. Enquanto o direito, na Antiguidade, podia ser considerado uma atividade que buscava a converso do bem comum no espao tico de ao, seu estudo era uma investigao filosfica dessa noo de bem. Podemos, aproveitando-se de terminologia tambm aristotlica e consagrada hoje pela filosofia do direito brasileira, afirmar que a cincia desse direito era zettica. Uma cincia zettica caracteriza-se pelo rigor terminolgico e investigativo, buscando encontrar a verdadeira representao de um objeto. Para tanto, no adota pressupostos ou pontos de partida fixos (dogmas), problematizando a si prpria e a seus objetos iniciais. Se o fenmeno jurdico contemporneo ainda fosse uma praxis, seu estudo universitrio seria muito diferente. Os cursos de direito no possuiriam tantas matrias tcnicas como direito civil, penal, trabalhista e seus processos, mas quase exclusivamente apenas matrias filosficas e sociolgicas. Sua preocupao seria estudar a noo de Justia e situ-la histrica e filosoficamente. A partir do momento em que o direito converteu-se em uma poiesis, sua faceta tecnolgica torna-se fundamental. Pois a cincia do direito torna-se dogmtica, convertendo-se nessa

tecnologia que permite a fcil e rpida compreenso e manipulao do direito no sentido da produo de novas normas jurdicas que decidam conflitos sem perturbar a ordem social. As cincias dogmticas preocupam-se com a resoluo de problemas prticos e no, fundamentalmente, com a obteno de um conhecimento verdadeiro sobre seu objeto. No caso do direito, seu raciocnio parte de um ponto no problematizvel (um dogma, no caso, a Constituio) e busca encontrar os contedos materias e procedimentais para solucionar um conflito social. Seu objetivo, portanto, no filosfico ou meramente cientfico, mas concreto: converter as normas existentes (decises que j foram tomadas) em uma nova norma (deciso que ser tomada), por meio de um processo que exige peas a serem tambm produzidas. A Cincia Dogmtica do Direito, assim, no se aprofunda no entendimento do conflito a que precisa tratar. Realiza um mero recorte na realidade, extraindo do conflito uma compreenso fcil e assimilvel pelos tcnicos do direito, a qual permite a produo de uma deciso que silencie os conflitantes. H, portanto, uma escolha da fatia de realidade que ser apreendida pelos juristas. Essa escolha no coincide com a viso do conflito apresentada por cientistas no dogmticos, sendo reputada superficial e incapaz de penetrar nas verdadeiras razes do problema. Um exemplo ntido dessa postura pode ser verificado no tratamento dado pelo direito ao conflito trabalhista. Para a Cincia Dogmtica do Direito, interessa apenas a anlise da relao sob o ponto de vista de um contrato, e da perspectiva individual de um empregado e seu empregador. A deciso silencia ambos e no se aprofunda nas razes sociais e econmicas da questo. Notamos, portanto, que o direito contemporneo marcado pelo fenmeno da positivao, transformando-se, basicamente, em uma produo de peas processuais e decises jurdicas. A Cincia Dogmtica do Direito a tecnologia que permite essa produo. Para ser um bom jurista, hoje, basta dominar essa tecnologia: saber peticionar, elaborar pareceres e redigir contratos. Referncias: FERRAZ JNIOR, Trcio Sampaio. Introduo ao Estudo do Direito tcnica, deciso e dominao. 4 edio. So Paulo: Atlas, 2003, p. 75 e seguintes. FERREIRA, Adriano de Assis. Linha de Montagem Judicial.

24. Direito Pblico x Privado histrico e critriosUma grande dicotomia uma classificao capaz de dividir o conjunto classificado em duas partes exaustivas e mutuamente excludentes. Nesse sentido, os elementos do conjunto nunca obtero as duas classificaes ou nenhuma delas ao mesmo tempo. Um exemplo a classificao dos nmeros naturais em pares e mpares. Seguindo esse critrio, dividiremos o conjunto em duas esferas independentes. Distribuiremos todos os nmeros em uma ou outra dessas esferas. E no restar qualquer nmero sem classificao. No caso do direito, podemos classificar as normas jurdicas em normas de Direito Pblico e normas de Direito Privado. Trata-se de uma grande dicotomia, pois cria dois grupos exaustivos e excludentes. Como cada um desses grupos regido por princpios diferentes, verificar a qual deles pertence uma norma jurdica indispensvel para a operacionalizao do direito.J os juristas romanos, como Tubrio e Pompnio, recorreriam a tal classificao para estudar o direito. Ulpiano, sculos mais tarde, nos seus estudos relativos ao Digesto, apresentaria um critrio para a diferenciao dos grandes ramos: o critrio do interesse. Segundo o jurista, as normas de Direito Pblico seriam aquelas que protegeriam os negcios romanos, ou seja, do Estado de Roma; as normas de Direito Privado, por sua vez, protegeriam os interesses particulares. Convm salientar que nos sculos posteriores queda do Imprio Romano, durante o feudalismo, desaparece a esfera pblica e, com ela, os interesses pblicos que fundamentam o direito pblico. Durante o Absolutismo, o poder pblico identifica-se com a pessoa do rei, esvaziando, tambm, o significado desse ramo jurdico. Tal panorama somente modifica-se, salvo no caso da Inglaterra, com a Revoluo Francesa, a partir de 1789. O levante consagra a ideia de que o poder deriva do povo e deve ser exercido, pelo Estado, em seu nome. O direito pblico, assim, volta a ser aquele ramo cujas normas buscam concretizar os interesses coletivos, renascendo a dicotomia com o direito privado. Com esse ressurgimento, constata-se que o critrio do interesse exclusivo, historicamente utilizado para justificar a diviso, seria inadequado. Percebe-se que o ser humano um ser social, no havendo diviso ntida entre aes que concretizam valores pblicos e privados. Em ltima instncia, toda relao jurdica satisfaz, ao mesmo tempo, interesses das duas naturezas. Quanto ao direito, toda norma protegeria interesses pblicos e privados, apenas variando a preponderncia de uns e de outros. Assim, por exemplo, as normas que protegem a propriedade pensam, primeiramente, no bem individual do proprietrio, mas, secundariamente, como mostra o conceito de funo social, nos interesses coletivos.

A partir dessas crticas, o critrio do interesse exclusivo transforma-se nointeresse dominante. As normas de direito pblico seriam aquelas que protegem, de modo imediato, os interesses pblicos e, de modo mediato, os interesses privados; as normas de direito privado, ao contrrio, protegem os interesses privados de modo imediato e os interesses pblicos, de modo mediato. Todavia, no obstante a alterao no critrio, ele ainda continua um tanto vago para delimitar as esferas com preciso. Sabendo-se que a classificao em anlise deve ser til para o profissional do direito, permitindo a ele manipular as normas de modo eficaz, seu critrio deve possibilitar uma rpida distino e no causar dvidas. No o caso do interesse dominante. H situaes jurdicas em que se torna impossvel afirmar com segurana quais os interesses predominantes. Normas de direito de famlia, por exemplo, buscam de modo equilibrado a concretizao de ambos. Normas que protegem a educao de uma criana, por exemplo, preocupam-se, ao mesmo tempo, com seus interesses e com os interesses coletivos de todos serem educados, levando a um mundo melhor. Outro critrio a tentar consumar a distino enfoca a coercibilidade das normas. As normas de direito pblico seriam cogentes, ou seja, estabelecem comportamentos obrigatrios ou proibidos nas relaes que regulam; as normas de direito privado seriam dispositivas, ou seja, estabelecem comportamentos permitidos nas relaes entre particulares. Analisando-se as normas jurdicas, tal critrio criaria uma indesejvel diviso das tradicionais disciplinas jurdicas. O Direito Civil, dessa forma, seria fraturado, pois possui normas cogentes e normas dispositivas. At mesmo as normas de Direito Penal precisariam ser distribudas entre os grandes ramos pblico e privado, pois existem crimes, como o Estupro, cuja aplicao da pena depende de um ato de escolha da vtima, tendo, portanto, natureza dispositiva. Convm lembrar que o direito privado, desde os tempos imemoriais, sempre foi marcado pela presena de normas cogentes, chamadas, no mais das vezes, de normas de ordem pblica. So normas que traam os limites objetivos dentro dos quais a autonomia privada pode ser exercida, no podendo, portanto, justificar a diviso. Outro critrio a enfrentar o problema o critrio da fora das partes. Tendo-se em vista que as normas jurdicas trazem limitaes a situaes fticas a fim de concretizar valores, as normas de direito pblico referem-se a relaes em que h desigualdade entre as partes, havendo subordinao entre elas; as normas de direito privado tratam de relaes em que h igualdade entre as partes, buscando coorden-las. Tal critrio levaria a problemas semelhantes ao anterior, dividindo as normas de disciplinas tradicionais, como o Direito Civil, entre as esferas. As relaes de direito de famlia, por exemplo, ficariam fraturadas entre o direito pblico e o privado: no primeiro caso, estariam as normas que regulam as relaes entre os pais e os filhos, nas quais h desigualdade; no segundo caso, estariam as normas que regulam as relaes entre os cnjuges, em que h igualdade.

H, ainda, o critrio da renunciabilidade, que divide as esferas conforme a possibilidade de o titular de um direito renunciar a ele. O direito pblico no permitiria ao titular renunciar ao direito a ele atribudo; o direito privado permitiria ao titular a renncia. No podemos admitir esse critrio como dos mais teis, pois tambm dificulta a diferenciao. H normas renunciveis e irrenunciveis em muitas das disciplinas tradicionais do direito. J trouxemos o exemplo do crime de Estupro, que pode ser considerado, de certa forma, como renuncivel. A grande maioria das outras normas de Direito Penal, porm, estaria no direito pblico. O ltimo critrio a ser apresentado, por fim, o critrio subjetivo, segundo o qual devemos verificar quais os sujeitos da relao regida pela norma. Se a norma rege uma relao em que o Estado uma das partes, ento se trata de norma do direito pblico; se o Estado no parte da relao, ento a norma do direito privado.Podemos imaginar relaes sociais de trs espcies: particular-particular; Estado-particular; Estado-Estado. Conforme o critrio subjetivo, apenas a primeira seria de direito privado e as outras duas seriam de direito pblico. H uma vantagem nessa abordagem: dificilmente uma disciplina tradicional do direito dividida. O Direito Civil, o Direito Empresarial, o Direito do Trabalho e o Direito do Consumidor so alocados no direito privado, pois regulam relaes entre particulares. Praticamente todas as outras disciplinas (Constitucional, Administrativo, Tributrio, Penal, Processual) so alocadas no direito pblico, pois regulam relaes em que o Estado parte. Para o critrio ficar mais preciso, devemos acrescentar que, no caso brasileiro, o Estado pratica uma atividade que no deve ser considerada como de direito pblico: a atividade econmica, prevista no artigo 173 da Constituio Federal. Em situaes justificadas pelos imperativos de segurana nacional ou por relevante interesse pblico, o Estado pode transformar-se em empresas pblicas ou sociedades de economia mista e agir regido por normas do direito privado.Podemos retomar a diviso acima, acrescentando que as normas de direito pblico sempre possuem o Estado como sujeito. As normas de direito privado possuem particulares como sujeitos, salvo em um caso, quando o Estado sujeito, mas presta atividade econmica. A diversidade de critrios revela que a distino entre o direito pblico e o direito privado no precisa. Muitas crticas podem ser direcionadas a todos esses critrios. Ainda assim, lembrando que a cincia do direito uma cincia dogmtica, cuja preocupao fundamental consiste na decidibilidade de conflitos e no na preciso terminolgica, a distino til em um sentido operacional, pois permite a organizao inicial das normas jurdicas e sua utilizao pelo profissional respeitando os princpios bsicos de cada esfera. Referncias: FERRAZ JNIOR, T. S. Introduo ao Estudo do Direito Tcnica, Deciso e Dominao. 4 edio. So Paulo: Atlas, 2003. (4.2.3 e 4.2.4) SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Pblico.

25. Direito Pblico x Privado princpiosA diviso do conjunto de normas jurdicas a que chamamos Direito em dois grandes ramos, o pblico e o privado, importante sob dois pontos de vista: possibilita uma organizao sistemtica dessas normas e facilita seu manejo pelo jurista. Cada uma dessas grandes divises constituda por normas que limitam as possibilidades de um fato a partir de princpios diferentes. As normas que compem o ramo direito pblico, assim, so elaboradas e interpretadas conforme regras gerais (princpios) diversas daquelas utilizadas nesse processo pelas normas de direito privado. Sem esgotarmos o assunto, escolhemos dois pares de princpios que regem cada um dos ramos e levam a questes que envolvem dois dos ideais mais elevados de nossa era: a igualdade e a liberdade. Se adotarmos o critrio subjetivo, podemos afirmar que o direito pblico rege relaes em que o Estado parte e o direito privado rege relaes em que apenas particulares so partes (ressalvemos o caso do art. 173 da Constituio Federal, no qual o Estado age praticando atividade econmica e regido pelo direito privado). Pensando nas relaes de direito pblico, as normas jurdicas que compem esse ramo esto sujeitas ao princpio da autoridade pblica; no caso das relaes de direito privado, as normas jurdicas esto sujeitas ao princpio da igualdade das partes. Assim, se verificarmos as relaes sociais regidas pelas normas, constatamos que o princpio da igualdade no universal no direito.