The Road Less Traveled Autor: M. Scott Peck Copyright © M ... · O amor não é um sentimento 108...

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Título original: The Road Less Traveled Autor: M. Scott Peck Copyright © M. Scott Peck, M.D., 1978 Introdução © M. Scott Peck, M.D., 1985 Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2018 Tradução: Maria Isabel Cardoso Revisão: Caligrama — Produção Editorial/Editorial Presença Imagens da capa: Shutterstock Capa: Vera Espinha/Editorial Presença Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. 9. a edição, Lisboa, maio, 2018 Depósito legal n. o 440 327/18 Reservados todos os direitos para Portugal à EDITORIAL PRESENÇA Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730‑132 Barcarena [email protected] www.presenca.pt

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Título original: The Road Less TraveledAutor: M. Scott PeckCopyright © M. Scott Peck, M.D., 1978Introdução © M. Scott Peck, M.D., 1985Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2018 Tradução: Maria Isabel CardosoRevisão: Caligrama — Produção Editorial/Editorial PresençaImagens da capa: ShutterstockCapa: Vera Espinha/Editorial PresençaComposição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.9.a edição, Lisboa, maio, 2018Depósito legal n.o 440 327/18

Reservados todos os direitos para Portugal àEDITORIAL PRESENÇAEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730 ‑132 [email protected]

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Índice

Introdução à edição comemorativa do 25.o aniversário 11

Prefácio 15

Secção I — Disciplina 17

Problemas e dor 19

Adiamento da gratificação 22

Os pecados do pai 24

Resolução dos problemas e tempo 28

Responsabilidade 33

Neuroses e perturbações de personalidade 36

Fuga da liberdade 40

Dedicação à realidade 44

Transferência: o mapa ultrapassado 45

Abertura ao desafio 50

Omissão da verdade 56

Manutenção do equilíbrio 61

O lado salutar da depressão 65

Renúncia e renascimento 68

Secção II — Amor 75

O amor definido 77

Apaixonar-Se 79

O mito do amor romântico 85

Mais sobre as fronteiras do ego 88

Dependência 92

Catexia sem amor 99

«Autossacrifício» 104

O amor não é um sentimento 108

O trabalho de atenção 111

O risco da perda 121

O risco da independência 124

O risco do compromisso 129

O risco da confrontação 138

O amor é disciplinado 142

O amor é separação 147

Amor e psicoterapia 154

O mistério do amor 164

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10 O caminho menos percorrido

Secção III — Desenvolvimento e religião 167

Visões do mundo e religião 169

A religião da ciência 175

O caso de Kathy 179

O caso de Marcia 188

O caso de Theodore 190

O bebé e a água do banho 200

Visão científica em túnel 204

Secção IV — Graça 211

O milagre da saúde 213

O milagre do subconsciente 219

O milagre do serendipismo 228

A definição de graça 234

O milagre da evolução 237

O alfa e o ómega 241

A entropia e o pecado original 244

O problema do mal 249

A evolução da consciência 251

A natureza do poder 255

A graça e a doença mental: o mito de Orestes 259

A resistência à graça 266

O acolhimento da graça 274

Posfácio 280

Agradecimentos 284

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Introdução à edição comemorativa do 25.o aniversário

Amanhã, com um bom senso magistral, um desconhecido irá dizer exatamente aquilo que nós pensámos e sentimos durante todo este tempo.

ralph waldo emerson, «A Confiança em Si»

A resposta mais comum nas cartas recebidas pelos leitores quanto a’O Caminho Menos Percorrido foi de gratidão pela minha coragem; não por dizer nada de novo, mas por escrever o tipo de coisas que os leitores pensavam e sentiam já há muito tempo, mas das quais tinham receio de falar.

Não tenho a certeza no que se referem à coragem. Um certo tipo de esquecimento natural poderá ser um termo mais correto. Durante os primeiros dias do livro, um paciente meu estava numa festa quando ouviu uma conversa entre a minha mãe e outra mulher idosa. Refe‑rindo‑se ao livro, a outra mulher disse, «Deve estar muito orgulhosa do seu filho, Scott.» Ao qual a minha mãe respondeu, da maneira por vezes mordaz dos mais velhos, «Orgulhosa? Não, não particular‑mente. Não teve nada a ver comigo. É a mente dele, sabe. É um dom.» Acho que a minha mãe estava errada ao dizer que não tivera nada a ver com aquilo, mas acho que estava correta ao dizer que a minha autoria d’O Caminho foi o resultado de um dom — a muitos níveis diferentes.

Uma parte desse dom veio de muito antes. Lily, a minha mulher, e eu tornámo‑nos amigos de um homem mais novo chamado Tom, que cresceu na mesma colónia de férias de verão que eu. Durante esses verões, eu tinha brincado com os seus irmãos mais velhos, e a sua mãe tinha‑me conhecido quando eu era ainda criança. Uma noite, alguns anos antes d’O Caminho ter sido publicado, o Tom veio jantar

Introdução à edição comemorativa do 25.o aniversário

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12 O caminho menos percorrido

connosco. Na altura, estava em casa da sua mãe, e na noite anterior ele dissera‑lhe, «Mãe, amanhã à noite vou jantar com o Scott Peck. Lembras‑te dele?»

«Oh, sim», respondeu ela, «era aquele miúdo que estava sempre a falar do tipo de coisas, de que as pessoas nunca devem falar».

Por isso, podem ver que parte desse dom é muito antigo. E também podem compreender que eu era uma espécie de «desconhecido» den‑tro da cultura prevalecente da minha juventude.

Como eu era um autor desconhecido, O Caminho foi publicado sem grandes euforias. O seu espantoso sucesso comercial foi um fenó‑meno muito gradual. Não apareceu nas listas dos bestsellers nacionais. Isso só viria a acontecer em 1978, cinco anos após a sua publicação — algo pelo qual estou extremamente grato. Se tivesse sido um sucesso súbito, duvido muito que eu tivesse sido suficientemente maduro para aguentar uma fama repetina. De qualquer maneira, foi um êxito inesperado e, aquilo que no ramo se chama um livro «boca a boca.» De início, e lentamente, o seu conhecimento espalhou‑se «boca a boca» através de diferentes maneiras. Uma delas foram os Alcoólicos Anónimos. Na verdade, a primeira carta de um fã que recebi começava, «Caro Dr. Peck, o senhor deve ser alcoólico!» O seu autor achou difícil imaginar que eu pudesse ter escrito tal livro, sem ter sido um membro de longa duração dos AA, tornado humilde pelo alcolismo.

Se O Caminho tivesse sido publicado vinte anos antes, duvido que até tivesse tido algum sucesso. Na realidade, os Alcoólicos Anónimos só começaram realmente a meio da década de 1950 (não que a maior parte dos leitores do livro fossem alcoólicos). Ainda mais importante, o mesmo se pode dizer da prática da psicoterapia. O resultado foi que, por volta de 1978, quando O Caminho foi originalmente publicado, um grande número de homens e mulheres nos Estados Unidos eram tanto psicológica como espiritualmente sofisticados, e tinham come‑çado a contemplar profundamente «todo o tipo de coisas de que as pessoas não devem falar.» Quase estavam literalmente à espera que alguém dissesse essas coisas em público.

Assim, a popularidade d’O Caminho cresceu rapidamente, e tam‑bém foi assim que a sua popularidade continuou. Muito perto do fim da minha carreira como conferencista, eu dizia ao meu público,

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13Introdução à edição comemorativa do 25.o aniversário

«Vocês não são uma amostra representativa da América. No entanto, há coisas incríveis que vocês têm em comum. Uma é o espantoso número de vós que durante o curso das vossas vidas se sujeitou — ou ainda se sujeita — à psicoterapia significativa em programas de “Doze Passos” ou às mãos de terapeutas tradicional e academicamente trei‑nados. Duvido que sintam que estou a violar a vossa confidencialidade quando peço que todos vós aqui presentes que receberam ou estão a receber tal terapia levantem a mão».

Noventa e cinco por cento do meu público levantava as mãos. «Agora, olhem à vossa volta», dizia‑lhes.

«Isto tem implicações maiores», continuava eu. «Uma delas é que vocês são um grupo de pessoas que começaram a transcender a cul‑tura tradicional.» Ao transcender a cultura tradicional eu quis dizer, entre outras coisas, que eles eram pessoas que há muito tinham começado a pensar no tipo de coisas de que as pessoas não devem falar. E concordavam quando eu elaborava aquilo que queria dizer com «transcender a cultura tradicional», e o significado extraordinário deste fenómeno.

Alguns chamaram‑me um profeta. Posso aceitar um título aparente‑mente grandioso só porque porque muitos apontaram que um profeta não é alguém que consegue ver o futuro, apenas alguém que conse‑gue ler os sinais dos tempos. O Caminho foi um sucesso, sobretudo, porque foi um livro do seu tempo; o seu público fez dele um sucesso.

A minha fantasia ingénua quando O Caminho foi originalmente publicado há vinte e cinco anos, foi que o livro seria alvo de recen‑sões críticas nos jornais por todo o país. A realidade é que, por pura sorte, recebeu apenas uma recensão... mas que recensão! No que se refere a uma significativa parte do seu sucesso tenho de dar o devido crédito a Phyllis Theroux. Na altura, Phyllie, uma excelente autora por mérito próprio, também era crítica literária e descobriu por acaso um exemplar de lançamento entre a pilha de livros no gabinete do editor literário do The Washington Post. Depois de ler o índice, levou o livro com ela, regressando dois dias depois exigindo que lhe fosse permitido revê‑lo. Quase relutante o editor concordou, e a partir daí, Phyllie dedicou‑se, nas suas próprias palavras, «a escrever deliberada‑mente uma crítica que tornasse o livro num bestseller.» E assim o fez.

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Passada uma semana da sua recensão crítica, O Caminho encontrava‑‑se na lista de bestsellers de Washington, D.C., anos antes de chegar a qualquer lista nacional. Contudo, foi o suficiente para impulsio‑nar o livro.

Estou grato à Phyllis por outro motivo. Enquanto o livro crescia em popularidade, querendo garantir que eu teria a humildade de manter os meus pés firmemente em terra, ela disse‑me, «Não é o teu livro, sabes».

Compreendi de imediato o que é que ela queria dizer. Nenhum de nós quis de maneira alguma dizer que O Caminho era a palavra literal de Deus, ou material «canalizado» de qualquer outro modo. Eu escrevi‑‑o, e há um certo número de pontos no livro onde gostaria de ter escolhido palavras ou frases melhores. Não é perfeito, e sou totalmente responsável pelas suas falhas. Apesar disso, talvez porque fosse neces‑sário, apesar das suas falhas, não tenho qualquer dúvida que enquanto eu escrevia o livro na solidão do meu pequeno escritório amontoado eu tive ajuda. Não posso explicar essa ajuda, mas essa experiência é intensamente única. Na verdade, tal ajuda é o tema derradeiro do próprio livro.

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15Prefácio

Prefácio

As ideias aqui apresentadas emergem, na sua maior parte, do meu contacto profissional diário com os doentes que lutam por evitar ou alcançar níveis de maturidade cada vez mais elevados. Em conse‑quência, este livro contém partes de muitos casos verdadeiros. A confi‑dencialidade é essencial na prática da Psiquiatria, pelo que, em todos os casos, foram alterados os nomes e outros pormenores para preser‑var o anonimato dos meus doentes, sem distorção da realidade essen‑cial da nossa experiência comum.

Pode, no entanto, ocorrer alguma distorção em virtude da forma resumida como os casos são apresentados. A psicoterapia raramente é um processo breve, mas como tive necessariamente de focar os pontos mais relevantes de cada caso, o leitor pode ficar com a impressão de que o processo é de drama e esclarecimento. O drama é real e o escla‑recimento pode eventualmente ser alcançado, mas deve considerar‑se que, para facilitar a leitura, os relatos dos longos períodos de confu‑são e de frustração, inerentes à maior parte da terapia, foram omitidos nestas descrições.

Gostaria também de pedir desculpa pelas constantes referências a Deus na imagem masculina tradicional, mas fi‑lo a bem da simpli‑cidade e não devido a qualquer conceito rígido de género.

Como psiquiatra, penso ser importante referir logo de início dois pressupostos em que este livro assenta. Um é que não faço distinção entre a mente e o espírito nem, portanto, entre o processo de conse‑cução de desenvolvimento espiritual e o de consecução de desenvol‑vimento mental. É o mesmo e um só.

O outro pressuposto é que este processo constitui uma tarefa com‑plexa, árdua e para toda a vida. A psicoterapia, para contribuir subs‑tancialmente para o processo de desenvolvimento mental e espiritual,

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não é um procedimento rápido nem simples. Não pertenço a nenhuma escola de psiquiatria ou de psicoterapia em particular; não sou sim‑plesmente um freudiano, um junguiano, um adleriano, um behavio‑rista ou um gestaltista. Não acredito que existam respostas únicas e fáceis. Penso que há formas curtas de psicoterapia que podem ser úteis e não devem ser menosprezadas, mas a ajuda que proporcionam é inevitavelmente superficial.

A jornada do desenvolvimento espiritual é longa. Quero agradecer aos meus doentes, que me deram o privilégio de os acompanhar na maior parte da sua jornada. Porque a sua jornada tem sido também a minha e muito do que é aqui apresentado foi aprendido em conjunto. Quero também agradecer a muitos dos meus professores e colegas. Entre eles, principalmente, à minha mulher, Lily. Tem‑me dado tanto que quase não é possível distinguir da minha a sua inteligência como cônjuge, mãe, psicoterapeuta e pessoa.

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19Problemas e dor

Problemas e dor

A vida é difícil. Esta é uma grande verdade, uma das maiores verdades1. É uma grande verdade porque, uma vez aceite realmente esta ver‑dade, transcendemo‑la. Quando sabemos verdadeiramente que a vida é difícil — quando o compreendemos e aceitamos verdadeiramente — a vida deixa de ser difícil. Porque assim que é aceite, o facto de a vida ser difícil deixa de ter importância.

A maior parte das pessoas não vê inteiramente esta verdade de que a vida é difícil. Em vez disso, lamenta‑se mais ou menos incessan‑temente, ruidosa ou subtilmente, da enormidade dos seus problemas, encargos e dificuldades, como se a vida fosse fácil de um modo geral, como se a vida devesse ser fácil. Proclamam a sua crença, ruidosa ou subtilmente, de que as suas dificuldades representam uma espécie única de atribulação que não deveria mas de algum modo lhes foi espe‑cialmente dirigida, ou às suas famílias, à sua tribo, à sua classe, à sua nação, à sua raça ou até à sua espécie, e não a outros. Eu conheço esta lamentação porque já fiz a minha parte.

A vida é uma série de problemas. Queremos lamentar‑nos ou resolvê‑los? Queremos ensinar os nossos filhos a resolvê‑los?

A disciplina é o jogo de ferramenta essencial para resolver os pro‑blemas da vida. Sem disciplina nada podemos resolver. Com apenas alguma disciplina, resolvemos só alguns problemas. Com disciplina total, podemos resolver todos os problemas.

O que torna a vida difícil é que o processo de confrontação e resolu‑ção de problemas é doloroso. Os problemas, consoante a sua natureza, evocam em nós frustração, ou desgosto, ou tristeza, ou solidão, ou culpa, ou remorso, ou ira, ou medo, ou ansiedade, ou angústia, ou desespero. Estes sentimentos são desconfortáveis, frequentemente muito descon‑fortáveis, muitas vezes tão dolorosos como qualquer tipo de dor física, por vezes igualando o tipo mais extremo de dor física. Na verdade, é devido à dor que os acontecimentos ou conflitos geram em nós aquilo que chamamos de problemas. E uma vez que a vida coloca uma infindável série de problemas, é sempre difícil e plena de dor, assim como de alegria.

1 A primeira das «quatro verdades nobres» dos ensinamentos de Buda diz que «viver é sofrer».

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20 O caminho menos percorrido

No entanto, é neste processo de confrontação e resolução de proble‑mas que a vida adquire significado. Os problemas são o fio de distinção entre o sucesso e a falha. Os problemas apelam à nossa coragem e sabe‑doria. Na verdade, criam a nossa coragem e a nossa sabedoria. É unica‑mente devido aos problemas que crescemos mental e espiritualmente. Quando queremos fomentar o crescimento do espírito humano, desa‑fiamos e encorajamos a capacidade humana de resolver problemas, tal como na escola apresentamos deliberadamente problemas para as crianças resolverem. É através da dor de confrontar e resolver proble‑mas que aprendemos. Como disse Benjamin Franklin, «as coisas que magoam ensinam‑nos». Esta é a razão pela qual as pessoas sábias aprendem a não temer mas, de facto, a encarar positivamente os pro‑blemas e até a encarar positivamente a dor dos problemas.

A maior parte de nós não é assim tão sábia. Receando a dor, quase todos nós, em maior ou menor grau, tentamos evitar os problemas. Procras tinamos, esperando que desapareçam. Ignoramo‑los, esque‑cemo‑los, fingimos que não existem. Chegamos a tomar drogas que nos ajudam a ignorá‑los para que, anestesiando‑nos contra a dor, possamos esquecer os problemas que causam a dor.

Tentamos rodear os problemas em vez de os encarar de frente. Tentamos sair deles em vez de sofrermos o seu percurso.

Esta tendência para evitar problemas e o sofrimento emocional que lhes é inerente é a base primária de toda a doença mental humana. Uma vez que a maior parte de nós tem esta tendência em maior ou menor grau, a maior parte de nós está mentalmente doente em maior ou menor grau, não dispondo de saúde mental total. Alguns de nós irão a extremos para evitar os problemas e o sofrimento que causam, ultrapassando tudo o que é claramente bom e aconselhável para encontrar uma saída fácil, construindo as mais intrincadas fantasias para viverem, por vezes com total exclusão da realidade. Nas palavras sucintamente elegantes de Carl Jung, «a neurose é sempre um substi‑tuto do sofrimento legítimo»2.

Mas o próprio substituto acaba por se tornar mais doloroso do que o sofrimento legítimo que se destinava a evitar. A neurose em si

2 Collected Works of C.G. Jung, Bollingen Ser., N.° 20, 2.a ed. (Princeton, N.J.: Princeton Univ. Press, 1973), trad. R.F.C. Hull, Vol. II, Psychology and Religion: West and East, 75.

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21Problemas e dor

torna‑se o maior problema. De acordo com o padrão, muitos tentarão evitar essa dor e esse problema, construindo camada após camada de neuroses. Felizmente, no entanto, alguns têm a coragem de enfrentar as suas neuroses e começam — com a ajuda da psicoterapia — a aprender a suportar o sofrimento legítimo. Em todo o caso, quando evitamos o sofrimento legítimo que resulta do confronto com os problemas, também evitamos o crescimento que os problemas nos exigem. É esta a razão pela qual, nas doenças mentais crónicas, deixa‑mos de evoluir, ficamos bloqueados. E sem se curar, o espírito humano começa a mirrar.

Vamos, portanto, inculcar em nós próprios e nos nossos filhos os meios para conseguir a saúde mental e espiritual. Quero com isto dizer, ensinemos a nós próprios e aos nossos filhos a necessidade do sofrimento e do seu valor, de enfrentar diretamente os problemas e passar pela dor que acarretam. Afirmei que a disciplina é o jogo de ferramentas de base de que necessitamos para resolver os pro blemas da vida. Tornar‑se‑á claro que estas ferramentas são técnicas de sofri‑mento, meios através dos quais experimentamos a dor dos proble‑mas de forma a analisá‑los e resolvê‑los com sucesso, aprendendo e evoluindo ao mesmo tempo. Quando ensinamos a nós próprios e aos nossos filhos a disciplina, estamos a ensinar‑lhes e a nós próprios a sofrer e também a crescer.

Que ferramentas são estas, estas técnicas de sofrimento, esta forma construtiva de passar pela dor dos problemas a que chamo disciplina? Há quatro: o adiamento da gratificação, a aceitação da responsabili‑dade, a dedicação à verdade e o equilíbrio. Como é evidente, não são ferramentas complexas cuja utilização requeira um treino aprofun‑dado. Pelo contrário, são ferramentas simples e quase todas as crian‑ças estão aptas a utilizá‑las quando chegam aos dez anos. No entanto, presidentes e reis muitas vezes se esquecem de as utilizar, causando a sua própria queda. O problema não está na complexidade destas fer‑ramentas mas na vontade de as usar. Porque são ferramentas em que a dor é enfrentada e não evitada e, se se procura evitar o sofrimento legítimo, evita‑se a utilização destas ferramentas. Portanto, depois de analisar cada uma destas ferramentas, examinaremos no próximo capítulo a vontade de as utilizar, que é o amor.

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22 O caminho menos percorrido

Adiamento da gratificação

Não há muito tempo, uma analista financeira com cerca de trinta anos queixava‑se‑me, durante alguns meses, da sua tendência para pro‑crastinar na sua função. Tínhamos analisado os seus sentimentos em relação aos patrões e como se relacionavam com os sentimentos sobre a autoridade em geral e especificamente com os pais. Examinámos as suas atitudes face ao trabalho e ao sucesso e como se relacionavam com o seu casamento, a sua identidade sexual, o seu desejo de com‑petir com o marido e os seus receios dessa competição. No entanto, apesar de todo este trabalho psicanalítico minucioso, ela continuava a procrastinar na mesma medida. Finalmente, um dia, atrevemo‑nos a encarar o que era óbvio. «Gosta de bolo?», perguntei‑lhe. Respondeu‑‑me que sim. «De que parte do bolo gosta mais?», continuei, «Da massa ou da cobertura?» «Oh, da cobertura!», respondeu com entusiasmo. «E como é que come uma fatia de bolo?», inquiri, sentindo‑me o mais pateta dos psiquiatras. «Como primeiro a cobertura, claro», respondeu ela. Dos hábitos de comer bolo passámos para os hábitos de trabalho e, como era de esperar, descobrimos que, diariamente, ela dedicava a pri‑meira hora à metade mais gratificante do seu trabalho e as outras seis horas ao restante, de que não gostava. Sugeri‑lhe que, se se forçasse a executar a parte desagradável do trabalho na primeira hora, ficaria livre para tirar partido das restantes seis. Parecia‑me, disse‑lhe eu, que uma hora de dor seguida de seis de prazer era preferível a uma hora de prazer seguida de seis de dor. Ela concordou e, sendo basicamente uma pessoa dotada de força de vontade, deixou de procrastinar.

O adiamento da gratificação é um processo de programação da dor e do prazer da vida de forma a aumentar o prazer, enfrentando e vivendo primeiro a dor e acabando com ela. É a única forma decente de se viver.

Esta ferramenta ou processo de programação é aprendida pela maior parte das crianças numa fase precoce da vida, por vezes até por volta dos cinco anos. Por exemplo, ocasionalmente, uma criança de cinco anos, ao jogar com um companheiro, sugerirá ao companheiro que seja o primeiro a jogar para poder ter o prazer de jogar mais tarde. Aos seis anos, as crianças poderão começar a comer o bolo primeiro e a cober‑tura depois. Em todo o percurso escolar primário, esta capacidade pre‑coce de adiar a gratificação é exercitada diariamente, particularmente

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23Adiamento da gratificação

através dos trabalhos de casa. Por volta dos doze anos, as crianças já conseguem, ocasionalmente e sem ser por ordem dos pais, sentar‑se e fazer os trabalhos de casa antes de verem televisão. Pelos quinze ou dezasseis anos, este é o comportamento esperado do adolescente e considerado normal.

Torna‑se evidente para os educadores que, nesta idade, um número substancial de adolescentes fica aquém desta norma. Enquanto muitos detêm uma capacidade bem desenvolvida de adiamento da gratificação, alguns, na casa dos quinze ou dezasseis anos, pare‑cem quase não ter desenvolvido essa capacidade; de facto, alguns pare cem nem a ter de todo. Estes são os estudantes problemáticos. Apesar de possuírem uma inteligência média ou mais elevada, têm notas baixas simplesmente porque não se esforçam. Faltam às aulas ou mesmo à escola por capricho momentâneo. São impulsivos e a sua impulsividade reflete‑se também na sua vida social. Envolvem‑se fre‑quentemente em lutas, nas drogas, e começam a ter problemas com a polícia. Goza agora, paga depois, é o seu lema. Aí, entram os psicólogos e os psicoterapeutas. Mas a maior parte das vezes, parece demasiado tarde. Estes adolescentes reagem negativamente a qualquer tentativa de interferência no seu estilo de vida de impulsividade e, mesmo quando essa reação consegue ser ultrapassada com uma atitude calo‑rosa e amigável e não de julgamento por parte do terapeuta, a sua impulsividade é frequentemente tão forte que os impede de partici‑par no processo de psicoterapia de uma forma significativa. Faltam às consultas. Evitam todas as questões importantes e dolorosas. Portanto, habitualmente estas tentativas de intervenção falham e estas crianças abandonam a escola, prosseguindo um padrão de insucessos que os leva frequentemente a casamentos desastrosos, a acidentes, a hospitais psiquiátricos ou à cadeia.

Porquê isto? Por que razão a maioria desenvolve a capacidade de adiar a gratificação, enquanto uma minoria substancial não conse‑gue, muitas vezes irrecuperavelmente, desenvolver essa capacidade? A resposta não é absoluta nem cientificamente conhecida. O papel dos fatores genéticos não é claro. As variáveis não são suficientemente con‑troláveis para servirem de prova científica. Mas a maior parte dos sinais aponta claramente para a qualidade do acompanhamento parental como determinante.

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24 O caminho menos percorrido

Os pecados do pai

Não é que em casa destas crianças autoindisciplinadas não exista qual‑quer espécie de disciplina parental. Na maioria dos casos, estas crianças são frequente e severamente punidas durante a infância — recebem bofetadas, murros, pontapés, pancada e chicotadas dos pais, até por infrações menores. Mas esta disciplina não tem signi ficado. Porque é uma disciplina indisciplinada.

Uma das razões por que não tem significado é que os próprios pais são autoindisciplinados e servem, portanto, de modelos de indisci‑plina para os filhos. São os pais «Faz como eu digo, não faças como eu faço». Provavelmente, embebedam‑se frequentemente na presença dos filhos. Discutem em frente às crianças sem comedimento, digni‑dade ou racionalidade. São desleixados. Fazem promessas que não cumprem. As suas próprias vidas estão óbvia e frequentemente em desordem e desarranjo e as suas tentativas de ordenar as vidas dos filhos são por eles vistas como sem sentido. Se o pai espanca a mãe regularmente, que sentido faz para um rapaz a mãe bater‑lhe porque ele bateu na irmã? Faz sentido quando lhe dizem que tem de aprender a controlar‑se? Se não temos o benefício da comparação enquanto pequenos, os nossos pais são semelhantes a deuses aos nossos olhos. Quando os pais fazem as coisas de determinada maneira, para a criança essa é a maneira de as fazer, a maneira como devem ser feitas. Se a criança vê os pais comportarem‑se no dia a dia com autodisci‑plina, comedimento, dignidade e capacidade de ordenar as suas vidas, sentirá nas mais íntimas fibras do seu ser que essa é a maneira de viver. Se a criança vê os pais viverem o dia a dia sem autodomínio ou autodisciplina, virá a acreditar no mais íntimo do seu ser que essa é a maneira de viver.

Ainda mais importante do que os modelos é o amor. Porque mesmo em lares caóticos e desordenados, o amor está por vezes presente, e desses lares podem resultar crianças autodisciplinadas. E, não poucas vezes, os pais com profissões liberais — médicos, advogados, mulheres dirigentes de associações e filantropos — que levam vidas rigidamente ordenadas e decorosas, mas onde falta o amor, trazem ao mundo crianças que são tão indisciplinadas, destrutivas e desorganizadas como uma criança de um lar pobre e caótico.

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25Os pecados do pai

No limite, o amor é tudo. O mistério do amor será objeto de exame mais adiante neste trabalho. No entanto, por uma questão de coerên‑cia, poderá ser útil fazer‑lhe uma referência breve, ainda que limitada, bem como à sua relação com a disciplina, neste ponto.

Quando amamos alguma coisa, ela tem valor para nós, e quando algo tem valor para nós gostamos de passar tempo a tê‑lo connosco, a apreciá‑lo e a tratá‑lo. Observe‑se um adolescente apaixonado pelo seu carro e repare‑se no tempo que ele gasta a admirá‑lo, poli‑‑lo, repará‑lo e afiná‑lo. Ou uma pessoa mais velha com um roseiral amado e o tempo passado a podar, a adubar, a fertilizar e a estudá‑lo. Assim é quando amamos as crianças; passamos tempo a admirá‑las e a tratar delas. Damos‑lhes o nosso tempo.

A boa disciplina requer tempo. Quando não temos ou não estamos na disposição de dar tempo aos nossos filhos, nem sequer os observa‑mos suficientemente de perto para perceber quando a necessidade que têm da nossa ajuda disciplinar é subtilmente expressa. Se a sua neces‑sidade de disciplina for tão flagrante que colida com a nossa cons‑ciência, podemos ainda ignorar essa necessidade com o argumento de que é mais fácil fazer‑lhes a vontade — «Hoje não estou com energia para os confrontar». Ou, finalmente, se somos compelidos a agir pelo seu mau comportamento ou pela nossa irritação, imporemos a disci‑plina, muitas vezes brutalmente, mais pela ira do que por deliberação, sem analisar o problema ou sequer perder tempo a considerar que forma de disciplina é a mais adequada àquele problema em particular.

Os pais que dedicam tempo aos filhos, mesmo quando não é soli‑citado por notório mau comportamento, apercebem‑se de neces‑sidades de disciplina subtis, a que responderão com insistência, reprimenda, crítica construtiva ou elogio, ministrados com sensatez e afeto. Observam como os filhos comem bolo, como estudam, quando dizem pequenas mentiras, quando fogem dos problemas em vez de os enfrentar. Dedicarão tempo a fazer estas pequenas correções e ajustes, ouvindo os filhos, respondendo‑lhes, apertando um pouco aqui, alar‑gando um pouco ali, fazendo‑lhes pequenas preleções, contando‑lhes histórias, dando‑lhes pequenos abraços e beijos, pequenos ralhetes, palmadinhas nas costas.

A qualidade da disciplina ministrada por pais que amam é superior à disciplina de pais que não amam. Mas isto é apenas o princípio.

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