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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS CLÁSSICAS TIAGO BENTIVOGLIO DA SILVA Tradução e Comentário à 13ª Olímpica de Píndaro São Paulo 2015 1

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS CLSSICAS

    TIAGO BENTIVOGLIO DA SILVA

    Traduo e Comentrio 13 Olmpica de Pndaro

    So Paulo

    2015

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS CLSSICAS

    Traduo e Comentrio 13 Olmpica de Pndaro

    Tiago Bentivoglio da Silva

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao

    em Letras Clssicas do Departamento de Letras Clssicas

    e Vernculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias

    Humanas da Universidade de So Paulo,

    para a obteno do ttulo de Mestre em Letras.

    Orientadora: Prof. Dr. Paula da Cunha Corra

    So Paulo

    2015

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  • Resumo

    O objetivo deste trabalho apresentar uma traduo e um comentrio textual 13 Olmpica de

    Pndaro, com base nas mais recentes edies e trabalhos crticos acerca do poeta e do gnero desse

    poema, o epincio. Tambm foi composto um ensaio interpretativo que tenta abarcar os temas mais

    importantes da ode e relacion-los com o todo da obra de Pndaro. As imagens do poema desenvolvem

    a contraposio entre medida e excesso, representada tanto nas referncias mitolgicas (Tmis e as

    Horas contra a Soberba e Insolncia; Belerofonte encilhando Pgaso) quanto nas reflexes da primeira

    pessoa (que no deve exceder-se no elogio para no errar o alvo, assim como um arqueiro disparando

    suas flechas; nem deve tentar relatar todas as vitrias da famlia, pois so to numerosas quanto os

    gros de areia etc.). Em anexo, h a traduo dos esclios relativos a essa ode para permitir a consulta

    direta a essa fonte, que no se acha traduzida.

    Palavras-chave: Pndaro; epincio; Olmpicas; mlica coral; poesia grega.

    Abstract

    The objective of this study is to present a translation and a textual commentary of Pindar's

    Olympian 13, based on the most recent editions and critical works about the poet and the genre of this

    poem, the epinician. An interpretative essay was composed in order to cover the most important themes

    of this ode and articulate them with Pindar's other works. The poetical imagens of the poem develop the

    central theme, the opposition between measure and excess, represented by the mithological references

    (Themis and the Hours against the Excess and the Satiety; Bellerophon taming Pegasus etc.) and by the

    first-person's reflections on the laudatory art (the first-person should not exceed in praise in order to not

    miss the target, as an archer with his arrows; nor should try to enumerate all the victories of this family,

    for they are greater than the grains of sand from the sea). There is a translation of the scholia to this ode

    attached, allowing direct consultation, once there is no other version of this text.

    Key-words: Pindar; epinician; Olympics Odes; choral melic; Greek poetry.

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  • Agradecimentos

    Paula da Cunha Corra pela orientao, leituras e correes desta dissertao;

    Ao Jos Marcos Macedo e ao Alexander Sens pela participao na banca;

    A todos meus professores na graduao e na ps-graduao, pelas inmeras epifanias;

    FAPESP pela bolsa de mestrado que viabilizou este trabalho;

    Aos amigos e colegas da Universidade pelo convvio;

    minha famlia, Sergio, Cntia e Gabriela, por tudo.

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  • SumrioApresentao..............................................................................................................................................6Texto...........................................................................................................................................................9Traduo...................................................................................................................................................12Metodologia.............................................................................................................................................15Interpretao.............................................................................................................................................16Comentrio...............................................................................................................................................40Anexo: Traduo dos esclios..................................................................................................................88Bibliografia............................................................................................................................................101

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  • Apresentao

    O objetivo desse trabalho apresentar um comentrio textual e uma traduo da 13 Ode

    Olmpica de Pndaro, bem como um ensaio interpretativo acerca da ode e de aspectos gerais da obra do

    poeta, tanto do ponto de vista lingustico quanto literrio. Tambm so fundamentais outros autores que

    compuseram epincios, como Baqulides e Simonides, bem como os grandes poetas anteriores a

    Pndaro, aos quais o poeta sempre alude, especialmente Homero e Hesodo, mas tambm a Tegnis,

    Safo, lcman etc. Alm dos autores antigos, necessrio recorrer aos autores modernos, como os

    comentrios de Gildersleeve (1885), Fennel (1879), Heyne (1808), Dissen (1843), s edies de Snell e

    Maehler (1980), e aos crticos, como Nagy (1990), Heath (1988), Bundy (1986), Lefkowitz (1980).

    A Olmpica 13 de Pndaro dedicada a Xenofonte de Corinto em homenagem s suas vitrias

    nos Jogos Olmpicos no ano de 464 BC1, na corrida a p e no pentatlo. A mesma ocasio celebrada

    em um encmio (fr. 122), que provavelmente foi apresentado em um banquete no templo de Afrodite

    em Acrocorinto (Ateneu, O Banquete dos sofistas, 573e). possvel que esse encmio tenha servido

    como introduo ou aps o epincio; ou, ainda, que esse tenha sido apresentado em outro lugar, talvez

    em uma celebrao a Zeus, devido s referncias religiosas e diticas. Para alm dessa conquista em

    particular, a ode rememora as numerosas conquistas da 'casa' (, v. 2) e louva de forma geral a

    'fortuna da famlia' (v. 105) Xenofonte visto como o mais recente represente desse '

    '. Seu pai, Tessalo, tambm venceu na corrida nas Olmpicas do ano 504 BC, mas no no

    mesmo tipo de competio, e sim na corrida de duas voltas2. Por isso que a casa nomeada 'Tri-campe

    Olmpica' no primeiro verso. Xenofonte tambm venceu duas vezes, tanto nos Jogos stmicos quanto

    nos Nemeios. Seu pai tambm venceu em vrias outras competies, como diz o poeta nos versos 36 e

    ss., assim como seu av Ptoiodoro.

    Sua famlia, os Oligaitidas, constituiam o poder oligrquico de Corinto junto com outras

    famlias aristocrticas, formando a chamada 'Oligarquia dos 80'. Essa foi a forma de governo vigente

    durante o perodo clssico (quinto e quarto sculos) em Corinto e que suplantou a tirania iniciada por

    Cpselo no ano de 655. Ela durou at 582 a.C com a morte de Psamtico, o terceiro sucessor. A respeito

    do perodo oligrquico, no h muitas fontes que nos forneam informaes sobre a forma de governo.

    1 Referncias externas que comprovam a vitria: Diodoro xi, 70; Dion. Halic. Ix, 61; Paus. Iv, 24.

    2 O stdion, o diaulos e o doliquos so as trs distncias de corridas nos Jogos, em ordem crescente, sendo o diaulos o dobro da distncia do stdion.

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  • O que mais se sabe acerca do quinto sculo de Corinto a respeito de sua participao nas Guerras

    Prsicas, integrando as foras gregas nas principais batalhas (quatrocentos homens na batalha de

    Termpilas Herdoto VII, 202) e sendo a sede da Liga Helnica (Herdoto, VII, 145). No tempo de

    Xenofonte, os principais conflitos em territrio grego j haviam acabado, mas batalhas eventuais ainda

    aconteceram na sia Menor at 449 a. C.

    O perodo mais abundate de fontes histricas o imediatamente anterior oligarquia dos 80, as

    tiranias de Cpselo, seu filho Periandro e Psamtico, que duraram um total de 63 anos. Herdoto (V, 92)

    traz uma verso de como Ation, pai de Cpselo, e sua me Labda evitaram a morte do filho para que

    ele tomasse o poder de Corinto, dando fim oligarquia dos Bquidas. O historiador tambm ressalta as

    atitudes arbitrrias de Cpselo, que exilou e matou cidados. Da mesma forma, seu filho Periandro

    ficou conhecido pela crueldade e centralizao de poder. Herdoto (idem) relata que o tirano de Corinto

    aconselhou-se com Trasbulo, tambm tirano em Mileto, sobre qual seria a melhor forma de governar o

    estado. A resposta de Trasbulo foi eliminar os cidados mais eminentes na cidade e foi o que

    efetivamente fez Periandro. A grande marca do perodo na memria da cidade de Corinto foi a

    crueldade, mas tambm a prosperidade econmica, juntamente com o desenvolvimento das artes como

    a navegao, a cermica e a arquitetura. Houve no mesmo perodo fundao de colnias na Itlia e

    Siclia.

    Corinto uma das cidades mais importantes no perodo arcaico grego, tanto por sua privilegiada

    posio geogrfica, quanto pela mitologia associada a sua histria. A cidade, bem como o stmo, eram

    dedicadas a Poseidon, sendo que Acrocorinto era dedicada a Hlio. Alm disso, era sede de uma das

    mais importantes competies esportivas, os Jogos stmicos. Segundo Pausnias (I, 44, 8; II, 1, 3), os

    Jogos so dedicados a Melicertes, tambm conhecido como Palemon, institudos quando Ssifo

    encontrou o jovem na praia trazido por um golfinho, aps sua me jogar-se de um penhasco com o

    filho. Corinto tambm foi o destino final da nau Argos, onde foi dedicada a Poseidon, e onde

    desenrolou-se a tragdia de Medeia.

    A ode pindrica trata do louvor da cidade, Corinto, na primeira trade; na segunda, o elogio

    direcionado a Xenofonte e sua famlia; nas terceira e quarta trades h a narrativa mtica do

    encilhamento de Pgaso por Belerofonte; na quinta, a finalizao da ode com mais menes a vitrias

    da famlia, frases em primeira pessoa e contedo gnmico. O tema geral da ode gira em torno da

    opulncia mtica de Corinto, tanto em invenes e saberes, quanto em guerras; esse tema explorado

    no elogio atravs das inmeras vitrias mencionadas. A riqueza no deve gerar a insolncia,

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  • individualizada na segunda estrofe, e que representa o oposto de outro tema bastante explorado nessa

    ode, o da medida. A medida ganha sentido moral com as frases gnmicas (v. 47 'A cada situao segue

    justa medida') e potico (vv. 45-6 'Verdadeiramente no saberia dizer o nmero de gros de areia do

    mar'), atravs de diversas imagens criadas pelo poeta. A narrativa mtica central tambm versa sobre o

    campo semntico da 'medida', com o encilhamento de Pgaso.

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  • Texto

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  • Traduo

    A Xenofonte de Corinto, vencedor na corrida e no pentatlo.

    Tricampe Olmpica -louvando a famlia gentil a todo povoe prestativa aos estrangeiros, farei conhecidaa prspera Corinto, portaldo Istmo de Poseidon, cidade de jovens brilhantes. 5Aqui habita a Boa Lei, e sua irm, firme alicerce para os cidados,a Justia, e a Paz, de mesma criao, fonte de riqueza aos homens,ureas filhas da prudente Ordem.

    Costumam combater a Soberba, arrogante me da Insolncia. 10Tenho belas conquistas a relatar e uma reta coragemincita-me a lngua a diz-los. impossvel esconder o carter inato.Pois a vs, filhos de Alete, por muitas vezes proporcionaram festa vitoriosapor alcanarem extrema excelncia nas sagradas competies, 15e muitos saberes antigos lanaram

    nos coraes dos homens as Horas florescentes: todo o mrito do descobridor.De onde surgiram as graas de Dionsiocom o ditirambo, guia de bois?Quem imps medida aos freios dos cavalos 20ou aos templos dos deuseso par real das aves? Aqui, a Musa de doce alento, aqui Ares floresce com as lanas destrutivas dos jovens.

    Alto e amplo senhorde Olmpia, que sejas livre de inveja contra minhas palavras 25para todo o tempo, Zeus pai,e guiando este povo sem danosencaminhe os ventos da fortuna de Xenofonte:recebe dele como recompensa pelas coroas este elogio, que traz da plancie de Pisavencendo o pentatlo e a corrida a p 30confrontou o que homem mortal algum jamais.

    Duas ramas de salsacobriram-no quando surgiunos Jogos stmicos. A Nemeia no se opor.O esplendor dos ps de seu pai Tessalos 35est ofertado junto s correntes do Alfeue em Pitos tem a honra da corrida e do diaulos em uma volta do sol;

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  • no mesmo ms, na rochosa Atenas, trs prmios um dia de ps velozes colocou ao redor de seus cabelos,

    e nas Heltias, sete vezes. Nos Jogos de Poseidon, entre os mares, 40com seu pai Ptoiodoro, Terpsias e Ertmoseguiro mais longas canes.Sobre quantas vezes vencestes em Delfose no pasto de lees, discordo da maioriaacerca dessa multido de sucessos, pois verdadeiramente 45no saberia dizer o nmero de gros de areia do mar.

    A cada situao, segue a justa medida:reconhecer o adequado o melhor.Eu, um cidado particular em misso pblica,louvando a astcia dos antepassados 50e a guerra em nome de conquistas heroicas,no mentirei sobre Corinto: nem sobre Ssifo, o mais sagaz em artifcios, como um deus, e Medeia, que contra seu pai fez seu prprio casamento,a salvadora da nau Argos e sua tripulao;

    nem sobre quando, com toda fora, 55lutando ante as muralhas de Drdanos, ganharam a reputaopor determinar a batalha de ambos lados.Uns, junto aliada prole de Atreutentando recuperar Helena, outros impedindo totalmentecada ao. Os Dnaos tremeram perante Glauco, da Lcia. 60Proclamou-lhes que na cidade da Pirene jaziamo poder, sua ampla herana e o palcio de seu pai,

    aquele que muito sofreu por desejo de encilharo filho da ofdica Grgona, Pgaso, junto fonte;at que a ele trouxe o freio de tiras douradas 65a virgem Palas e de um sonho num instante tornou-se presente e disse: 'Dormes, rei elida?Toma, recebe este feitio para os cavalose mostra-o a teu pai, o Domador, e sacrifica um touro branco'.

    Nas sombras, a virgem de gide azul escura 70pareceu falar a ele enquanto dormia:ele pulou ereto sobre seus ps.Tomando aquela maravilha ali deixada,feliz encontrou o adivinho local, filho de Cranos, e revelou-lhe os resultados do acontecimento, como sobre o altar da deusa 75adormeceu noite por causa de seu orculo e comoa filha de Zeus, lanceiro de troves,

    trouxe-lhe ouro, o domador de espritos.

    13

  • Em sonhos, ordenou-o a obedec-lao mais depressa e que, quando sacrificasse ao Move-Terra de ampla fora 80uma vtima de robustas patas,erigisse imediatamente um altar a Atena Hpia.O poder dos deuses facilmente realiza o feito alm da esperana e o que se juraria impossvel.De fato, o forte Belerofonte avidamente capturou,retesando getilmente o encantamento ao redor das mandbulas, 85

    o cavalo alado. Montou armado em bronze e imediatamente tocou canes marciais.Junto dele executou o exrcito feminino de arqueiras Amazonas,atingindo desde o frio seio do cu vazio,a Quimera que expira fogo e os Slimos. 90Quanto a mim, calarei a respeito de seu destino;o outro, as antigas manjedouras de Zeus no Olimpo ainda o acolhem.

    Atirando diretamente um turbilho de dardos,no devo lanar de minhas mosmultido de disparos fora do alvo. 95Pois voluntariamente vim como aliadodas Musas de tronos esplndidos e dos Oligaitidas.Em poucas palavras, as vitrias no Istmo e em Nemeia farei conhecidas de uma vez;meu verdadeiro testemunho ser o grito melfluo de um nobre mensageiroouvido sessenta vezes nos dois locais. 100

    De suas vitrias Olmpicasparece que foram h pouco mencionadas;daquelas por vir, falarei claramente na ocasio.Por ora, espero que em deus esteja de fatoo fim; se a fortuna da famlia seguir, 105deixemos que Zeus e Enalo cumpram-no. As seis vitrias sob o cume do Parnaso;todas em Argos e em Tebas; quantas na Arcdiatestemunhar o altar real do Liceu:

    Pelana e Scion e Megara e o recinto sagrado de belas muralhas dos Ecidas,e Eleusis, a frutfera Maratona 110e as cidades ricamente adornadas ao p do Etna de alta crista,e a Eubeia. Procurando pela Hladeencontrars muito mais do que podes ver.Vamos, nada com ps ligeiros!Zeus Realizador, d-lhes moderao e doce ventura de prazeres. 115

    14

  • Metodologia

    O texto grego que apresento segue aquele da edio de Snell e Maehler, Pindari Carmina cum

    Fragmentis, a mais recente e completa no que diz respeito ao aparato crtico e abrangncia das fontes

    consultadas. Outras edies foram consultadas para comparao, especialmente as de Bowra, Pindari

    Carmina cum Fragmentis; Fennel, The Olympian and Pythian Odes; Gildersleeve, The Olympian and

    Pythian Odes; Dissen, Pindari Carmina e Boeckh, Pindari Opera.

    A traduo foi feita em prosa, mas disposta em versos para melhor visualizao e organizao

    do contedo segundo o texto original. Busquei seguir o mximo possvel a disposio sinttica nos

    versos, mas nem sempre foi possvel devido s diferenas sintticas entre o grego e o portugus. No

    geral, os versos da traduo correspondem aos versos do texto original.

    Traduzi os esclios antigos da Olmpica 13, a partir da edio de Drachman, Scholia Vetera in

    Pindari Carmina. Apresento tal traduo em anexo para permitir a consulta direta a essa fonte, que no

    se encontra traduzida.

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  • Interpretao

    O epincio , antes de tudo, um discurso pblico, o reconhecimento e asseverao de um feito

    nico, a vitria nas competies, perante aquela comunidade. O que d autoridade a esse discurso o

    fato de ser executado por um coro de pares da audincia em uma festa pblica: o coro porta-voz do

    pensamento de todos. Assim tambm funciona com outros gneros de poesia coral grega: no partnio, a

    voz coletiva reconhece o casamento do ponto de vista da cidade; no caso do treno, os mortos so

    homenageados atravs do canto coral para assegurar sua memria. No epincio, a performance pelo

    coro o ato de reconhecimento da conquista atltica, a consequncia esperada da vitria, que

    assegurava que aquele feito particular entraria para a memria coletiva, ou seja, garantia sua

    permanncia e veracidade. Como coloca H. Bacon (1995, p. 18): ' no ato da celebrao,

    compartilhado pelos executantes e pela audincia, que o evanescente momento da vitria alcana

    algum tipo de permanncia e significado'.

    Portanto, a voz que fala nos poema , primeiramente, a voz do coro, que se dirige a um

    interlocutor coletivo, geralmente o povo da cidade ou a famlia do vencedor. o coro que expressa o

    pensamento e o seu ethos ser determinante para entender o discurso do poema. Contudo, esse um

    dos aspectos menos claros da poesia de Pndaro para os leitores modernos. Nota-se que h, alm de

    declaraes que primeira vista parecem pessoais, alternncia entre primeira pessoa do singular e do

    plural, quando seria esperado apenas o pronome 'ns' considerando que se trata de um grupo de

    pessoas. Quando encontramos o pronome plural, podemos entender que h referncia a cada um dos

    membros individualmente expressando seu pensamento, que igual entre todos. Por outro lado, quando

    usado o singular, 'eu', possvel interpretar isso pelo menos de duas formas: pode tratar-se do coro

    enquanto unidade, a voz coletiva, ou pode ser tambm o lder do coro cantando solo e dialogando com

    esse e, caso seja o prprio poeta o corifeu, pode tratar-se da expresso do pensamento desse em

    relao comunidade como um todo. Mary Lefkowitz, em seu artigo de 1963, sustentou a tese

    contrria, de que a performance de todos os poemas era mondica e, portanto, devemos entender as

    declaraes em primeira pessoa, seja singular ou plural, como do prprio poeta. Essa tese leva em

    conta que o elogio e as advertncias no poderiam ser feitas seno pelo prprio poeta, que apresentava

    16

  • seus poemas pessoalmente. Contudo, em artigo mais recente (1980), a mesma autora admite a

    possibilidade de se tratarem de afirmaes tradicionais e impessoais a respeito da funo de laudator, o

    que reabre a possibilidade de diferentes modos de execuo. De todo modo, interessante manter certo

    nvel de incerteza a respeito da primeira pessoa, pois talvez at mesmo para a audincia seria difcil

    perceber em que medida o coro expressava sua opinio ou o poeta insinuava-se atravs da voz desse.

    No possvel determinar com certeza quem fala em cada ocasio, devido falta de

    informaes detalhadas a respeito da performance dos poemas. Podemos comparar a transmisso dos

    epincios dos textos dramticos, que no trazem qualquer indicao de alternncia de fala entre os

    personagens. Igualmente em relao ao epincio poderamos supor que no houvesse um modo nico

    de execuo, se coral ou mondico, mas que variava de acordo com a natureza de cada composio,

    assim como das exigncias das re-performances (como no simpsio, onde era invariavelmente

    mondica). Alm disso, poderamos ter ou no a presena do poeta na performance, o que daria ainda

    mais importncia celebrao. Por isso, devemos levar em conta tanto a constituio do coro (se

    houver informaes a respeito) quanto o ethos do prprio poeta, que sem dvidas est presente na

    construo retrica do poema ainda que, como discutido acima, no houvessem declaraes pessoais.

    O fato de o compositor da ode ser Pndaro, poeta j renomado durante sua vida, com certeza

    influenciava na valorizao do louvor, da ocasio e, por consequncia, da vitria.

    notvel que o poeta seja um estrangeiro dentro de uma ocasio de reafirmao dos valores de

    uma comunidade. Essa posio tambm parte fundamental de seu ethos, pois o fato de ser de outra

    cidade mostra que um dos objetivos da celebrao fazer a vitria conhecida para alm dessa pequena

    comunidade em que esto inseridos e reforar os valores locais. Como afirma D'Alessio (1980, p. 167),

    as comunidades locais encontravam sua voz coletiva atravs da figura autorizada de um estrangeiro,

    um poeta de renome no caso de Pndaro, e que estaria fora de disputas locais. Esse status do poeta o

    obrigava a louvar o vitorioso na justa medida (nem diminuir nem aumentar o feito), relatar

    verdadeiramente os mitos, de acordo com a verso local, bem como advertir o vitorioso e sua famlia a

    respeito dos perigos decorrentes da grande fortuna que experimentam, a desmedida. H vrios

    exemplos de declaraes em que a primeira pessoa se coloca como enviado para essa ocasio especial,

    como no incio da terceira trade (v. 49: , 'Eu, um cidado particular,

    enviado em misso pblica').

    Outro fator determinante do ethos da primeira pessoa dos epincios sua posio em relao

    tradio potica e aos aedos do passado. Para confirmar sua voz autorizada a conferir o ao

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  • vencedor, a primeira pessoa tenta aproximar-se da figura do aedo pico utilizando amplamente

    expedientes lingusticos da poesia datlica, bem como pelo tom grave que a matria elevada exige. o

    que Quintiliano chama de magnificentia (Inst. 10, 1, 61), a 'grandeza, nobreza' de esprito, de

    pensamento e de figuras poticas que Pndaro tem. Contudo, a primeira pessoa, quando (ou 'se')

    expressa uma posio do poeta, no pode identificar-se totalmente com esse modelo pico, pois o poeta

    pago para compor os elogios. Como vemos na poesia herica e mesmo na mlica at pelo menos

    Simonides, a funo da poesia era difundir o de grandes nomes do passado ou dos mortos de

    maneira herica, sem qualquer relao direta entre a pessoa celebrada e o cantor; no epincio, por outro

    lado, h essa relao e por vezes podemos entrev-la atravs das declaraes da primeira pessoa. Trata-

    se, sim, de uma encomenda paga (que involve um ), mas a inteno de que a relao seja de

    reciprocidade entre laudator e laudandus: o primeiro depende do pagamento, mas este precisa do

    trabalho do primeiro para confirmar sua vitria dentro de sua comunidade e difundir sua fama. Por isso

    que a um conceito to recorrente nos poemas de Pndaro, para criar a impresso de pagamento

    espontneo, um agraciamento, sem necessidade de formalizao. Como no exemplo da Ptica 1, versos

    75-7: ' / , , / ', 'Como pagamento, de Salamina

    ganharei o favor dos Atenienses'.

    Por fim, tratemos do aspecto poltico que envolve as declaraes da primeira pessoa. Devido ao

    grande prestgio que uma vitria nos jogos trazia, tal conquista era buscada por todos, incluindo os

    aristocratatas e tiranos como forma de legitimar seu poder atravs de uma demonstrao de seu 'valor'

    ('') uma vez que as vitrias eram consideradas manifestaes de uma caracterstica inata (como

    vemos no verso ' impossvel esconder o carter inato'). Assim, a celebrao e o prprio canto estavam

    totalmente imersos na situao poltica daquela famlia ou cidade e expressa essas relaes. Nagy

    (1989 p. 142) diz que uma caracterstica geral da poesia de Pndaro ser tambm um meio de crtica

    social: seus 'clientes' eram quase todos aristocratas (com exceo de alguns tiranos) e um dos

    pressupostos dessa forma de governo de que nenhum dos 'melhores' tentar tomar o poder de seus

    pares. Essa tomada de poder seria uma forma de . Assim, Pndaro, ao alertar contra os perigos da

    'inveja' divina ou alertar para a 'justa medida' de todas as coisas, est chamando a ateno de sua

    audincia para a possibilidade de tirania que surge quando um de seus governantes destaca-se demais.

    Da a importncia de todos seguirem uma mesma medida, um meio-termo, para atingir a retido dos

    assuntos pblicos. Por outro lado, temos que considerar que o poeta deveria adequar seu discurso a

    cada laudandus e sua posio na poltica local. Pndaro tambm louva tiranos, mas o faz de maneira a

    18

  • manter-se fiel ao seu pensamento geral. Cito o exemplo da Ptica 2, v. 86-88, dedicada a Hiero, tirano

    de Siracusa:

    ' , , , ''Em toda lei, o homem honesto prospera:na tirania, e sob o exrcito furiosa,e quando os sbios guardam a cidade'.

    Ou seja, no importa a forma de governo (aqui h uma tentativa de amenizar o fato de se tratar

    de uma tirania), desde que o homem seja , ou seja, desde que siga um cdigo moral. A

    expresso, 'homem de reto discurso', remete aos vrios usos do tema '' na Olmpica 13, como

    veremos mais adiante, sempre com sentido moral que abarca tambm o poltico. Esse tipo de

    declarao pode ser encontrada geralmente naquelas em primeira pessoa, reforando sua posio como

    responsvel tanto pelo louvor em si, quanto pelas advertncias ao vencedor e sua famlia contra a

    desmedida que a glria pode causar, atravs do poder e da riqueza que essa traz. Assim, como afirma

    Nagy no mesmo artigo, a poesia de Pndaro tem que transcender esse status que a reputao traz para

    descobrir os sentidos maiores por trs daquele evento particular. Igualmente, tem que transcender a si

    prprio, que tambm busca riqueza e renome por sua poesia, para no cair nos mesmos perigos contra

    os quais adverte: da a grande presena de declaraes acerca de seu prprio ofcio, juntamente com

    inmeros conselhos para seus interlocutores.

    Uma passagem que resume e exemplifica vrios desses aspectos, tanto da posio da primeira

    pessoa como 'estrangeiro', quanto da sua funo de conferidor de , quanto da dimenso poltica do

    contexto, a Nem. 7, 61-3 :

    : , 'Sou um estrangeiro: afastando a censura obscurae trazendo a fama verdadeira para um amigo,como o curso de um rio, louvarei...'

    Aqui o sentido de '' bastante amplo, englobando desde simplesmente 'estrangeiro', at

    'aliado', que parece ser o sentido principal nesse verso. A relao entre laudator e laudandus fica ainda

    mais explcita pelo uso de , que tanto indica a proximidade entre eles, quanto cria a iluso de

    no se tratar de uma comisso que envolve pagamento. Ou seja, a primeira pessoa um par do

    vencedor, uma vez que a relao de xenia no poderia haver entre pessoas de condies diferentes.

    19

  • Como amigo (a um ' '), que no contexto blico pode significar aliado, ir combater a seu

    lado (o verbo traz claro sentido blico, que tambm pode ser entendido politicamente), lutando

    contra aqueles que se opem atravs da 'censura'. A forma como ajudar 'cantando, louvando', pois

    assim pode trazer a glria devida ao vencedor, atravs de um elogio 'verdadeiro'. Ou seja, a primeira

    pessoa coloca-se tanto ao lado do homenageado, com o qual estabelece uma relao de reciprocidade,

    quanto ao lado da 'verdade', da qual um representante autorizado atravs de sua ligao com as

    Musas.

    Uma vez esboado o esquema retrico sobre o qual se organizam os epincios em geral,

    tratemos detalhadamente da Olmpica 13 e como essa ode articula os elementos acima levantados para

    compor um poema nico e, ao mesmo, fiel a seu gnero.

    Na primeira orao, que ocupa os cinco primeiros versos, temos a articulao das principais

    esferas sociais envolvidas na performance do epincio, no somente nesse em estudo, mas de qualquer

    poema desse gnero: a famlia, a cidade, a xenia, a religio. Trata-se da comemorao de uma vitria

    atltica nos Jogos mais importantes da Grcia, o que colocava a famlia do vencedor e sua cidade em

    destaque entre as diversas famlias oligrquicas da Grcia. Essa vitria tambm tornava o vencedor

    matria de louvor por poetas, o que j representava, por si s, uma grande distino recebida somente

    por grandes heris do passado. Alm disso, outro elemento presente nessa primeira orao (atravs da

    meno a Poseidon) o aspecto ritual dos Jogos e da performance desse epincio, como mostra o fato

    de o poema ser dedicado a Zeus (v. 30). Assim, desde o incio do poema, j temos a dimenso do

    evento em questo, que envolve os aspectos pessoal, social, poltico e religioso.

    Essa relao est expressa na prpria estrutura sinttica: 'Louvando a casa tricampe em

    Olmpia, gentil aos cidados e prestativa aos estrangeiros, farei conhecida Corinto, portal do Istmo de

    Poseidon, cidade de jovens brilhantes'. O verbo principal um futuro () coordenado a um

    particpio presente (); ambos so de difcil interpretao devido aos diferentes sentidos que

    trazem. Em relao ao verbo principal, o sentido de 'conhecer, reconhecer'; contudo, tanto pelo sujeito

    quanto pelo objeto da orao, o sentido empregado por Pndaro parece ser um pouco diferente. A

    primeira pessoa no vai 'conhecer' ou 'reconhecer' a cidade Corinto, mas 'faz-la conhecida' atravs do

    canto que se inicia, ou seja, um uso causativo do verbo. evidente que os outros sentidos no deixam

    de existir, mas contribuem para enriquecer a interpretao3. O modo como far a cidade conhecida

    atravs dos mitos que contar; no entanto a cidade j seria conhecida de todos os presentes, assim como

    3 Outra interpretao possvel para essa passagem entender o adjetivo '' como predicativo do objeto '', sendo a traduo 'farei Corinto conhecida (ou 'reconhecerei') como [sendo uma cidade] de jovens brilhantes'.

    20

  • seus mitos. Nesse sentido, h tambm um 'reconhecimento' de Corinto, uma revisita aos lugares-

    comuns do imaginrio mtico da cidade.

    O particpio '' indica o modo de execuo do verbo principal. Cabe discutir os sentidos

    que esse verbo carrega: um derivado de '', substantivo cujo campo semntico muito amplo,

    mas h uma acepo bsica de discurso carregado de importncia ou gravidade, seja 'aprovao',

    'louvao', 'elogio', 'avertncia' etc. muito difcil delimitar qual a definio empregada por Pndaro,

    mesmo em casos particulares como esse. Vemos durante o poema que as funes da primeira pessoa em

    relao famlia so bastante amplas, envolvendo tanto o elogio quanto a advertncia. Na traduo

    mantivemos 'louvando' devido escolha por 'farei conhecida' no verbo principal; contudo, se

    considerarmos que esse tambm pode expressar uma 'revisita' ao passado da cidade, o particpio

    poderia tambm ser entendido como 'advertindo', pois a escolha dos mitos narrados nunca fortuita e

    visa a extrao de uma moral aplicvel ao contexto poltico.

    O sujeito dessa orao a primeira pessoa que dirige todo o poema, desde sua relao com o

    laudandus, com a audincia, at com os deuses invocados. Essa primeira pessoa a voz autorizada a

    conferir a fama ao vencedor; a voz do coro, da coletividade que expressa a vitria de Xenofonte e

    torna pblica sua fama. No devemos confundir a voz da primeira pessoa com a do prprio poeta, que

    deixa-se entrever somente atravs do estilo e da composio em si, mas no atravs de declaraes

    pessoais. Assim, a funo dessa primeira pessoa articular essas diversas esferas sociais para conferir a

    fama ao vencedor. necessrio coloc-lo, antes de tudo, junto aos outros feitos de sua famlia,

    reconhec-lo como altura das conquistas passadas. necessrio, por sua vez, inserir a 'casa' dentre as

    grandes de Corinto e digna de ser parte (compartilhar) do passado mtico da cidade. E tambm

    necessrio situar Corinto no contexto pan-helnico e legitimar sua participao nos principais mitos

    gregos. Assim, um evento particular ganha dimenso geral, pois todas essas esferas esto envolvidas no

    momento da vitria. A primeira pessoa constri o argumento de forma que somos levados a colocar

    lado a lado as conquistas de Belerofonte e Xenofonte; ou ainda, que a vitria recente apenas mais

    uma manifestao do mesmo 'gnio' herico que anima a famlia e a cidade desde Ssifo e Medeia.

    interessante notar como as vitrias comemoradas nessa ode repercutem menos na vida privada do

    atleta, pois esperaramos, do ponto de vista atual, mais destaque individualidade de Xenofonte, suas

    habilidades nicas, aquilo que o fez vencer; e mais no mbito social, isto , sua famlia e cidade.

    Outro aspecto que merece destaque nessa primeira orao a qualificao tanto da casa quanto

    da cidade. A primeira recebe os eptetos de 'tri-campe em Olmpia' (v. 1), 'gentil ao povo' (v. 2) e

    21

  • 'prestativa aos estrangeiros' (v. 3). Com o primeiro atributo, o poeta abre a composio trazendo o tema

    central, a vitria atltica, e a amplitude das conquistas; os outros dois mostram a relao da 'famlia'

    com os outros habitantes da cidade4, j indicando que se trata de um cl oligarca, e com os estrangeiros,

    ressaltando os valores da xenia grega. J a cidade Corinto caracterizada como 'prspera', 'portal do

    Istmo de Poseidon' e '[cidade] de jovens brilhantes'. Tais atributos j ressaltam os elementos que

    constituiro a imagem da cidade nessa ode: um local bem-aventurado, protegido pelos deuses e de

    'jovens brilhantes', ou seja, frtil, abundante. A caracterizao de ambas j inaugura o pensamento que

    percorrer toda a ode, o da prosperidade decorrente da ordenao (divina, no caso da Tmis) e da

    medida.

    A primeira trade basicamente ocupada pelo elogio da cidade. Se na primeira frase tnhamos

    como que uma proposio de todo o poema, a primeira trade funcionar da mesma forma, mas

    ampliando os temas encontrados. Esse desenvolvimento se dar atravs de uma pequena ilustrao

    mtica, que j comea a delinear uma oposio que atravessar toda a ode, entre 'medida' e 'desmedida'.

    A ligao se d atravs de um pronome relativo, recurso muito comum no incio de narrativas mticas e

    que serve muito bem para unir partes relativamente desconexas (o mesmo ocorre no verso 63, incio da

    narrativa de Belerofonte e Pgaso). Ao invs de um pronome pessoal, como o mais comum, aqui

    temos um pronome de lugar, ' ' mostrando que ainda temos Corinto como tema central. Tambm

    aqui o pronome marca o incio de uma narrativa mtica, no caso a aluso hesidica5 a 'Tmis', a Ordem,

    e suas filhas a Lei, a Justia e a Paz, que tentam afastar a Saciedade e a Soberba.

    O sentido bsico de 'Tmis' de 'lei divina', no escrita, a 'ordem' imposta por Zeus no mundo.

    Nessa ode temos alguns exemplos de palavras que vm da mesma raz *dhe-, 'colocar, pr', como no

    verso 29, o poema chamado de ' '. Tal expresso pode ser traduzida por 'elogio usual,

    ordinrio, convencional'. A ideia que o elogio a consequncia da vitria atltica, aquilo que se faz

    costumeiramente, dando a mesma ideia presente em Tmis: de ordem estabelecida. No verso 40 temos

    outro uso: ' ', as 'instuies de Poseidon', ou seja, os Jogos stmicos. Tmis foi

    casada com Zeus (Hesodo, Teogonia, v. 901: ' , ', 'e

    depois casou-se com a rica Tmis, que gerou as Horas'). Por isso, trata-se tambm da lei familiar, da

    instituio patriarcal. Diz Benveniste (1974, vol. 2, p. 103) que, na epopeia, a 'tmis' a prescrio que

    fixa os direitos e deveres de cada um sob a autoridade do chefe do 'genos'. Assim, a invocao de tal

    4 '' difere-se de '' (v. 6) no que diz respeito ao estatuto de cidadania que existia na Grcia desse tempo. O primeiro termo indicaria, de forma geral, todo o povo que vive em uma cidade; j o segundo faria referncia aos membros da organizao poltica da 'plis'.

    5 A aluso hesidica na medida em que esse o texto mais antigo que trata do tema entre os quais temos acesso.

    22

  • divindade refora a ideia de que a instituio do 'genos' est intimamente ligada da 'polis'.

    Tmis geradora do 'Bom-Governo' ou 'Boa-Lei', da 'Justia' e da 'Paz', alicerces inabalveis

    para os cidados. importante que as filhas estejam nessa ordem, pois sugere uma cadeia lgica: a

    ordem divina gera um bom governo, ou boa distribuio, como a raz *nem- sugere. O 'nomos' o

    costume, o uso, e, por consequncia, a lei prtica, as regras de conduta. Quando a Tmis est bem

    estabelecida, h um bom governo, uma boa conduo das coisas, que gera a Justia, a Equalidade, que

    por sua vez d origem Paz.

    Em seguida, temos a 'Justia' (''). A raz indoeuropeia bastante abrangente e os possveis

    sentidos devem ser discutidos luz da construo do poema em anlise. de comum acordo que se

    trata da raz *deik-, a mesma que em grego d origem a '' e, em latim, 'dico'. O verbo grego traz

    o sentido mais prximo ao da raz, 'mostrar, indicar'. J o verbo latino, cujo sentido bsico 'dizer',

    pressupe que se mostre algo atravs da fala, ou seja, no o simples ato de falar, mas de falar

    mostrando, falar carregado de inteno. Desenvolvimento semntico semelhante deu origem a '',

    uma vez que a justia a aplicao da lei a casos particulares atravs do proferimento de sentenas. Ou

    seja, em nvel geral, o ato de fala tambm carregado de inteno, de significado. Outro termo latino

    pode ajudar a esclarecer melhor essa relao entre o ato de dizer e a justia, a 'ius'. Os sentidos so

    quase os mesmos do termo grego, a adequao das condutas particulares lei atravs da enunciao de

    uma sentena.

    Por fim, analisemos os sentidos da ''. A etimologia da palavra obscura (Chantraine, p.

    324), mas o sentido de 'acordo, unio'. So os mesmo sentidos da palavra latina 'pax', cuja raz PIE

    *peh2g-6 traz o sentido de 'fixar, inserir firmemente', sendo a paz um estado artificial fixado pelas

    partes, literalmente um 'pacto', outra palavra derivada da mesma raiz. Logo, a paz o resultado da

    coexistncia harmnica de todos, estado garantido pela justia. Tambm aqui importante analisar as

    qualificaes que as divindades recebem, pois reforam a cadeia lgica que se estabelece entre as filhas

    da Tmis, que chamada de '', 'de bom conselho, boa determinao', pois a partir da lei

    superior que tudo deve ser decidido na cidade. A 'Boa-Lei' qualificada como '

    ', ou seja, o fundamento de toda a sociedade, sem a qual no poder existir nem justia nem

    paz. J essas so referidas como ' ', 'distribuidoras de riquezas aos homens', ou

    seja, existindo o 'bom conselho' e um 'alicerce irresvalvel', a consequncia para todos ser de

    prosperidade7.

    6 a mesma raz do verbo grego '', 'fixar'.7 Como j foi ressaltado com os adjetivos '' e ''.

    23

  • No incio da primeira antstrofe, vemos dois personagens mticos que se opem diametralmente

    s divindades acima citadas (vv. 9 e 10): ' / , '8.

    Enquanto as primeiras deusas so responsvel pela prosperidade da cidade atravs da ordenao, a

    'Soberba' e a 'Insolncia' representam a 'desmedida', o 'excesso'. A escolha do verbo '', 'combater,

    defender, refrear' e no outro verbo que significasse 'derrotar, acabar', tambm significativa, pois

    indica que o perigo da 'soberba' constante ( o mesmo verbo usado para combater o fogo, como na Il.

    9, 347: ' ', 'para defender as naus do fogo destruidor'). Alm disso, o verbo

    tem sentido iterativo, marcando indiscutivelmente o aspecto de repetio da expresso. O

    verbo tem claro tom blico como na Il. 11, 456, quando Menelau exorta Ajax a ajudar Odisseu, que

    est sozinho entre os troianos: ' : ', 'Mas vamos para

    dentro da multido! Defend-lo ser o melhor' e faz contrastar ainda mais com as divindades da

    estrofe, especialmente a Paz. Alm disso, a 'Soberba' qualificada como '', cujo sentido se

    aproxima muito de '', 'insolncia, descomedimento'. Esse ltimo significado bastante

    expressivo, pois salienta a ideia de 'medida' (no caso, o seu contrrio, 'desmedida') e alinha-se com toda

    a construo retrica do poema, que aponta para a oposio entre 'medida' e 'excesso'.

    Aps a meno s personagens mticas, encontramos a primeira orao em que primeira pessoa

    faz declaraes sobre seu ofcio. 'Tenho belos [feitos] a relatar e uma coragem reta incita-me a lngua a

    dizer' (v. 11). O ethos da primeira pessoa j comea a se construir nessa passagem, pois claramente

    ope-se s divindades mencionadas anteriormente, a Insolncia e a Soberba, atravs dos termos

    '' e ' '. Ambos os termos, '' e '', trazem tanto sentido neutro de

    'coragem, ousadia', quanto negativo de 'valentia, atrevimento, audcia'; a diferena entre os sentidos

    est na ideia de que a 'm ousadia, o atrevimento' resultado de um excesso, uma desmedida. Assim, a

    primeira pessoa j se coloca ao lado da Tmis e, por consequncia, de Corinto e dos Oligaitidas, com

    seu 'reto mpeto'. Todo o vocabulrio da passagem remete ao contexto blico, dando a entender que a

    primeira pessoa ser 'aliada' de Xenofonte e sua casa. Com isso, temos a declarao de que a primeira

    pessoa cumprir com retido, isto , justamente, segundo a justa medida, o ofcio que lhe foi

    comissionado. Voltaremos ao tema da 'coragem' mais adiante.

    Continuando com o elogio da cidade nessa primeira trade, temos um pequeno catlogo de

    invenes e conhecimentos associados a Corinto e que funciona como exemplo da fertilidade que h

    8 interessante notar a ambiguidade que a supresso do sujeito causa: '' pode tanto se referir s Horas, filhas de Tmis, quanto 'casa' no sentido de famlia (v. 2). Cria-se, assim, um paralelo entre a famlia do vencedor e as deusas, ambos sendo responsveis por evitar o 'excesso' na plis.

    24

  • nessa cidade decorrente da ordem de Zeus (Tmis). Como transio entre essas passagens, h um

    pronome de segunda pessoa seguido da partcula, , 'pois a vs', contrastando com a primeira

    pessoa do singular dos versos anteriores. um recurso comum na mlica coral, funcionando como

    transio entre partes do poema atravs da evocao de elementos da performance, seja as pessoas

    presentes, seja o local ou o tempo atuais. Um exemplo interessate desse uso pode ser encontrado na Ol.

    1, 36, onde a segunda pessoa evocada o prprio Ganimedes, que ser o tema da narrativa mtica

    introduzida: ' , , , ', 'A ti, filho de Tntalos, cantarei,

    contrrio aos [poetas] anteriores'. A expresso tambm introduz o que ser a ampliao do pensamento

    do verso anterior (' inevitvel esconder o carter inato') no catlogo que segue.

    As filhas de Tmis, agora agrupadas sob o nome de Horas, so responsveis tanto pelas festas

    das vitrias atlticas, quanto pelos diversos saberes que os Corntios tm desde antigamente, a arte

    potica, a arquitetnica, a atltica/blica. Todos os inventos tm a ideia de 'medida' subjacente: a

    poesia, enquanto msica, depende do uso dos diferentes metros; as rdeas impem medida fora dos

    cavalos; a arquitetura totalmente baseada em mensuraes. Ou seja, as Horas trazem a 'medida' de

    diferentes formas aos que vivem sob a Tmis. Como o objetivo ressaltar os feitos dos corntios, as

    duas perguntas so feitas de forma que as respostas sejam, respectivamente, 'Corinto' e 'os corntios',

    ressaltando a mesma ideia duas vezes sem mencion-la. O poeta passa praticamente sem destaque pelo

    tema que mais adiante se tornar o mito central da ode, a 'inveno' das rdeas de cavalos por

    Belerofonte.

    Alm de fazer o elogio da cidade, o argumento construdo de forma mostrar que a associao

    entre conquistas atlticas e poesia encontra lugar favorvel em Corinto. Esse pensamento expresso

    nos dois ltimos versos do epodo: tanto a Musa, a poesia, quanto Ares, a guerra, florescem com as

    'lanas' dos jovens. A metfora de 'florescer' como 'prosperar' abrange inclusive os deuses que, por isso,

    so bastante cultuados no local, que prospera com as conquistas de seus jovens. O fragmento 199 de

    Pndaro usa imagem semelhante a respeito de Esparta:

    ' ''Aqui destaca-se o conselho dos anciose as lanas dos jovense as danas, as Musas e o esplendor'.

    Na mesma passagem de Plutarco (Lic. 21, 2-3) onde esse fragmento foi preservado, vemos

    outro elogio cidade que usa imagem semelhante, o que talvez seja um recurso tradicional na poesia

    25

  • laudatria. Plutarco atribui o trecho a Terpandro, tambm em louvor a Esparta:

    ' ''Aqui floresce a lana dos jovens e a Musa de clara voze a Justia de amplas ruas'

    A ideia por trs de todas as passagens de que as virtudes, tanto as guerreiras quanto a justia,

    so desenvolvidas atravs da msica, devido ao sentido de ordem que esta desperta.

    Nota-se a repetio de , mais um uso ditico para enfatizar que o local mencionado o

    mesmo em que todos esto no momento da performance. a funo que os diticos tm na mlica

    coral, enfatizar que aquele canto refere-se ao tempo e lugar atuais da performance; o efeito aproximar

    mais a audincia do canto e da dana, faz-la participar da execuo do poema e, por consequncia, ser

    tambm testemunha da vitria atltica. Um exemplo claro, que usa um pronome com funo ditica,

    est na primeira antstrofe, 'E a vs, filhos de Aletes...': a primeira pessoa dirige-se a audincia para

    inseri-la nas relaes estabelecidas entre poeta, coro e vencedor.

    Com o fim da primeira trade, termina tambm o elogio direto cidade do vencedor. Comea

    ento uma estrutura retrica que ocupar todas as quatro trades restantes do poema, a emulao de um

    hino, a dedicao do poema a Zeus, que ser finalizada na invocao final (vv. 114-5). Assim, o elogio

    da cidade acaba funcionando como um prlogo antes da dedicao do poema, especialmente pela

    presena da proposio inicial, que d o tom de abertura passagem, e por ser possvel identificar nele

    a presena dos principais elementos retricos do poema que sero desenvolvidos mais adiante: a ideia

    de 'medida' como fonte da prosperidade, o encilhamento como imagem do domnio da medida sobre a

    fora, a expresso da primeira pessoa em cumprir justamente seu dever. possvel afirmar que se trata

    da emulao de um hino devido aos conhecidos elementos desses, tais como a invocao () e

    os pedidos diretos aos deus ().

    A Olmpica 14 um dos vrios exemplos possveis de usos dos expedientes poticos dos hinos

    religiosos. Essa pequena ode tambm evoca esse tipo de composio, fazendo com que todo o poema

    funcione como uma invocao s Graas para relatar a vitria de Asopico de Orcomenos, ou seja,

    coloc-la como um dos grandes feitos que devem ser celebrados nas canes. H uma invocao s

    Graas no incio (vv. 3-4: ' / ', ' Graas, cantoras

    rainhas da rica Orcomenos') com os verbos geralmente presentes nesse contexto (v. 5 ',

    ', 'escutai, pois oro'). Mais adiante encontramos o mesmo recurso com a nomeao de algumas

    das Musas, Aglaia, Eufrosina e Tala (v. 13-6), mais uma vez com um pedido direto (' ',

    26

  • 'ouvi-me agora'). Essas ltimas divindades, responsveis pelas festas, pelo esplendor e pelo deleite que

    acompanham as canes, so invocadas para trazer quela celebrao suas caractersticas e aumentar a

    glria do vencedor. Dessa forma, os recursos da poesia religiosa grega so trazidos para compr o

    argumento geral de que aquela situao particular passa a ganhar significao geral, reverberando

    inclusive no plano divino.

    Em seguida, h um pedido a Zeus para que 'seja livre de inveja contra [minhas] palavras'. Aqui

    h referncia a mais um elemento da economia do epincio, o '', a 'inveja', geralmente divina,

    responsvel por punir os humanos excessivamente afortunados. Tambm nesse conceito h uma

    equalizao entre atleta e primeira pessoa: aquele destaca-se pelo grande feito alcanado; a primeira

    pessoa, porque deve estar altura tanto da conquista atltica quanto da poesia anterior, especialmente

    da poesia pica que celebrava grandes heris. Assim, ambos podem ser vtimas da 'inveja' divina.

    necessrio que a primeira pessoa alerte o vencedor sobre os perigos dessa inveja, pois, como diz nos

    versos 30-1: 'Confrontou-se com o que homem mortal algum jamais'. O feito alcanado nico, duas

    vitrias em uma mesma edio dos jogos Olmpicos e, portanto, a tarefa de louvar esse feito ser

    tambm nica e sujeita aos mesmos perigos da inveja aos quais o prprio atleta est sujeito. A funo

    de aconselhar que a primeira pessoa do epincio tem decorre da mesma autoridade conferida a essa voz

    (novamente, seja do poeta ou do coro) para fazer o elogio da vitria. Essa autoridade para louvar e

    aconselhar est presente na palavra (cf. verso 2) com o verbo ''.

    Nessa passagem, na dedicao do poema, que corresponde basicamente segunda estrofe, mais

    uma vez fica evidente a funo de mediador que a primeira pessoa tem no epincio entre as vrias

    esferas socias envolvidas. Aqui, alm de articular a conquista particular de um atleta ao contexto maior

    da comunidade em que est inserido, conferindo signficado geral para aquele evento, h tambm uma

    intermediao entre o mundo divino e o humano. Nesse caso, essa funo expressa atravs de uma

    invocao e vrios pedidos de boa-fortuna para o vencedor, sua famlia e o povo de Corinto. O que

    mais chama a ateno so os verbos usados: '' e ''. O primeiro tem como objeto 'esse

    povo', referindo-se ao povo de Corinto, e traz a mesma raz do termo j analisado '', ou seja,

    Zeus alm de responsvel pela Tmis tambm aquele que guia, que conduz o povo. E esse particpio

    ganha ainda mais significado quando analisado em conjunto com o verbo principal, '', de mesma

    raz que '' no verso 12: ao conduzir o povo desta cidade (''), Zeus dever 'corrigir' a fortuna

    de Xenofonte, quer dizer, 'encaminhar' retamente, 'corretamente'. Mais uma vez, a ideia de 'medida'

    organiza o pensamento; a conduo dos assuntos, polticos e pessoais, deve ser 'reta', 'justa'.

    27

  • Em seguida, h o ltimo pedido direto a Zeus, a dedicao do poema propriamente dita. O fato

    de a ode ser dedicada a esse deus explica-se pelo fato de ser Zeus o patrono dos jogos Olmpicos, e no

    devido a alguma relao do deus com Corinto que est mais ligada a Poseidon. O verbo refora a

    imagem da dedicao como se o poema fosse literalmente entregue, tal como oferendas eram

    depositadas nos altares. Esse poema 'usual, ordinrio', quer dizer, que sua composio e performance

    seguiam o costume de se celebrar as conquistas atlticas e mesmo faziam parte da significao dessa

    vitria para a comunidade do vencedor, como j foi discutido acima. Outro aspecto digno de nota nessa

    passagem a orao relativa 'que traz da plancie de Pisa': trata-se de linguagem figurada, pois o que

    Xenofonte trouxe de Olmpia foi a coroa, e no os elogios pela coroa. Essa imagem refora a ligao

    direta que havia entre a vitria e o louvor atravs da msica, uma vez que possvel confundi-los em

    uma nica expresso.

    interessante notar que o poema denominado , sendo que esperaramos 'epincio' de

    acordo com uso atual. No perodo clssico a denominao dos epincios era 'encmio'; o nome

    moderno surgiu no perdo alexandrino, uma vez que nos esclios de Pndaro os poemas so chamados

    'epincios', mas tal nome no encontrado nos autores clssicos. Plato distingue o 'encmio' de outros

    gneros poticos: 'uns [compem] ditirambos, outros encmios, outros hiporquemas, outros pica,

    outros jambos' (Ion 543c). Assim, temos o termo 'encmio' como um gnero potico; contudo, tambm

    h um sentido retrico, que o distingue de , 'elogio', e , 'panegrico'. De acordo

    com a classificao de Aristteles (Et. Eu. 1219b), o deve versar sobre um feito em

    particular, enquanto o 'elogio', sobre o conjunto de feitos alcanados por algum. O poema em anlise

    encaixa-se na categoria 'encmio', por se tratar de um feito nico, assim como todo epincio; no

    entanto, essa ocasio particular abre espao para o elogio da famlia de Xenofonte e de sua cidade,

    aparentemente servindo a mais interesses do que somente a celebrao da vitria. Pndaro parece usar a

    palavra no sentido tcnico literrio, mas talvez em sentido amplo, como poema 'laudatrio'.

    A segunda trade (vv. 24-46), aps essa passagem, ser ocupada pelo catlogo das diversas

    vitrias que atingiram Xenofonte, seu pai Ptoiodoro e alguns outros familiares em vrios jogos pela

    Grcia, focando nos mais prestigiosos: os stmicos, os Nemeios, os Pticos (em relao aos Olmpicos,

    j foram citados no primeiro verso) e os em Atenas. O recurso do catlogo, j utilizado na primeira

    estrofe, serve para desenvolver a ideia da abundncia de temas para serem tratados, especialmente pela

    imagem dos versos finais do epodo, que expressam a aporia da primeira pessoa em relatar exatamente

    quantas conquistas a famlia teve nos jogos Pticos e Nemeios, comparando a tarefa de narrar de

    28

  • contar os gros de areia do mar (nota-se os dois sentidos possveis do verbo , os mesmos do verbo

    portugus 'contar': significa tanto 'relatar, narrar', quanto 'computar, calcular'). notvel a imagem

    martima, pois remete ideia de viagem que ser retomada no penltimo verso do poema (114)

    ('Vamos, nada com ps ligeiros!) - e de que h muito para ser visto pela Grcia, tanto quanto h vitrias

    para serem conquistadas nos diversos jogos. A imagem ressalta que a lista poderia seguir

    indiscriminadamente, sem medir o nmero de versos necessrios para cont-las todas. Por isso a

    importncia dessa primeira pessoa como 'moderadora', isto , 'medidora', entre diversas esferas opostas:

    entre a instncia divina e terra, entre o passado herico e o presente atltico, entre o louvor desmedido e

    conselho moderado.

    A passagem central para a interpretao do poema est no incio da terceira trade com uma

    frase de contedo gnmico e por mais um trecho em primeira pessoa (vv. 47-8). possvel afirmar que

    essa gnome a passagem central do poema por dois motivos: primeiramente, pelo pensamento

    expresso, 'Cada [situao] encontra sua justa medida; reconhec-la o melhor oportunidade', e que

    resume todas as imagens que vinham sendo construdas at esse ponto, bem como antecipa a ideia que

    articula o mito central com a retrica do poema. Alm disso, sua posio de grande destaque, tanto

    por estar no incio da terceira estrofe, mais ou menos no centro do poema, quanto por estar emoldurado

    por duas passagens em primeira pessoa, que expressam a medida como valor fundamental para o ofcio

    potico/laudatrio. Nota-se mais uma vez o uso da frmula de transio ' ', que refora que o que

    segue uma ampliao do pensamento que veio antes (como na transio dos versos 13 e 14).

    A respeito da 'medida' como conceito central desta ode, cabe discutir os diversos sentidos que a

    palavra grega traz, especialmente considerando sua raz indo-europeia, *med-, que d origem a diversos

    vocbulos em vrias lnguas, sempre dentro de um campo semntico compartilhado com os outros

    termos j mencionados aqui (*dhe-, *nem-, *deik-). Entre os derivados, encontramos em latim

    'medeor', 'medicus' ('curar, sarar') tambm 'meditor', 'modus' ('meditar, refletir'); em grego temos ''

    ('protejer, dominar, reinar sobre'), '' (prximo de 'meditor': 'pensar, refletir, planejar'), ''

    ('pretender, planejar, conceber') e seus vrios derivados como '' ('conselheiro'), '' ('planos,

    conselhos, artifcios') e '' ('inteligncia, sagacidade'). E, naturalmente, ''. O sentido primeiro

    da raz pode ser encontrado no latim 'medeor': o mdico aquele que reestabelece a ordem, a medida

    ao corpo (que fica claro no termo 'remedium'). Contudo, nos outros derivados esse sentido fica menos

    claro. Chantraine (p. 675) diz que tais termos 'exprimem a noo de um pensamento ordenado que

    regra, ordena, modera'.

    29

  • Assim, os vrios derivados dessa raz podem ser relacionados com os outros termos j

    discutidos quando tratamos das filhas de Tmis. Primeiramente, tratemos do sentido de Tmis em

    relao ao conceito de 'medida': a palavra grega traz o tema do verbo 'colocar, pr', de onde decorre o

    sentido de lei instituda, ordem imposta por uma fora superior. No caso grego, essa imposio tem

    origem no poder real e em Zeus, em ltima instncia. A comparao com outras lnguas indo-europeias

    mostra como esse conceito est sempre associado a lei e a imposio (sem o sentido negativo que essa

    palavra traz em portugus) de uma determinada ordem.

    O verbo '' traz o ponto de contato entre os dois campos semnticos, o da medida e o da

    poltica. Em Homero, encontramos a frmula ' ', 'lderes e governantes'. Mas qual

    seria a relao da raz com o significado de ''? Essa relao passa necessariamente pelo campo

    semntico da 'deciso', como explica Benveniste (1974, vol. 2, p. 127): 'expressa-se uma medida

    imposta s coisas, uma medida em que algum o mestre, que supe reflexo e escolha, que supe

    tambm deciso'. Tal uso se aproxima muito do verbo '', cujo primeiro sentido 'distribuir,

    partilhar', referindo tanto a comida e bebida, quanto de forma mais geral fortuna que Zeus distribui

    entre os mortais (Od. 6, 188-9): ' /

    ', 'Zeus distribui ele mesmo a bem-aventurana aos homens / bons e

    maus, como deseja para cada um'. A partir desse sentido de 'dividir', vem o sentido de 'habitar' a terra,

    'comandar' a cidade. Em Herdoto (1.59), h uma passagem que exemplifica esse uso: acerca de

    Pisstrato, diz o historiador: ' ', 'governou a cidade

    ordenando[-a] belamente e bem'. notvel que o particpio usado junto com o verbo seja '',

    que refora o sentido de 'ordem' j presente em '', '', que, portanto, a diviso bem ordenada,

    o bom arranjo dos assuntos da cidade.

    Igualmente importante para a compreenso do ethos da primeira pessoa a orao que segue,

    na qual h claramente um posicionamento da persona loquens em relao ao contexto social em que

    est inserida (vv. 49-52): ' () (...)

    ()', 'Eu, um cidado particular em misso pblica (), louvando a astcia

    e a guerra dos antepassados (...) no mentirei a respeito de Corinto ()'. Toda a estrofe pode ser lida

    como uma ampliao do que foi dito nos versos 11 e seguintes: a reafirmao do dever de louvar

    atendo-se verdadeira verso dos eventos (essa obrigao moral j pode ser entrevista no verso '

    impossvel esconder o carter inato'). Assim, o ncleo desse pensamento est no verso 51 ('no mentirei

    a respeito de Corinto'). A posio do laudandus de submisso queles que o comissionaram a compr

    30

  • o poema e, por isso, de dever moral com o discurso que pronuncia. Especialmente no momento do

    poema em que aparece, logo antes da narrativa mtica principal, essa declarao de que no dir

    mentiras importante, pois o mito tem valor de verdade no perodo arcaico e, logo, o poeta deve ser o

    porta-voz desse discurso verdadeiro. O mito a fala especial, carregada de significados, e que por isso

    no pode conter mentiras. Esse pensamento representa um grau desenvolvido no processo de pan-

    helenizao, pois os mitos foram perdendo seu carter local com o passar do tempo e foram ganhando

    verses mais gerais atravs da difuso cada vez maior das tradies poticas no perodo arcaico9. Assim

    como no poeta pico, em Pndaro a autoridade da primeira pessoa vem, em ltima instncia, de sua

    associao s Musas, filhas da memria que garantem a veracidade do discurso (vv. 96-7).

    Os particpios coordenados com o verbo principal expressam a causa desse compromisso, tanto

    por ser um enviado em misso pblica, quanto por tratar de grandes temas do passado a astcia e a

    coragem dos antepassados. um duplo dever: por um lado, compor um elogio na justa medida, isto ,

    nem valorizar demais o feito, nem trat-lo como um evento comum; por outro, estar altura dos temas

    mticos que tratar e relatar a verso 'correta' da histria Pndaro em vrias ocasies deliberadamente

    escolhe outra variante para narrar, como no clebre exemplo da Olmpica 1, v. 52, onde decide omitir

    detalhes que, a seu ver, so horrendos ou baixos. Aqui na Olmpica 13 tambm teremos uma passagem

    semelhante, quando no final da quarta trade a primeira pessoa decide no relatar o fim da vida

    Belerofonte ('Calarei a respeito de seu destino', v. 91). O pensamento de que seria uma forma de

    considerar os deuses glutes ou expressar o destino miservel do heri e, assim, uma desmedida por

    parte da primeira pessoa.

    De todos os conceitos discutidos acima, a ideia que atravessa a todos a de medida, mas como

    j foi dito, no se trata da medida concreta, a mensurao, mas da medida moral, a moderao. esse

    conceito que estrutura todo o discurso do poema, desde a escolha do mito principal, at a construo do

    ethos da primeira pessoa. A 'moderao' , portanto, o mote de todo o elogio ao vencedor, sendo

    considerada uma virtude daqueles que se destacam entre os mortais.

    Assim, a Hbris, que por si s j traz o sentido de 'excesso', caracterizada pela 'audcia em

    palavras'; enquanto a 'coragem, o mpeto' da primeira pessoa, reto, direito. O adjetivo usado d

    dimenso moral declarao: essa retido de carter ('') ao proferir o elogio ser fundamental para

    o valor de verdade associado ao poema, como discutido acima. Por isso h nfase na oposio entre a

    'audcia do Excesso' e a 'ousadia' da primeira pessoa, que deve construir seu ethos de porta-voz

    9 Nagy, G. Pindar's Homer, p. 66.

    31

  • autorizado da celebrao da vitria atltica. Por isso que, desde o incio, h essa preocupao para

    definir a posio do laudator dentro da economia do discurso, colocando-se como verdadeira, reta.

    Uma passagem similar a Olmpica 9, vv. 80-3, onde a primeira pessoa tambm evoca a como

    necessria para a composio/execuo do poema:

    ' : ''Que eu seja um inventor-de-palavrasapropriado ao avanar com o carro das Musas;que a coragem e a grande fora [capacidade]acompanhem-me'.

    Tambm nessa passagem da Olmpica 9, a primeira pessoa coloca-se como subordinado s

    Musas e ao vencedor que celebra e por isso necessrio que a '' e a '' lhe ajudem, pois

    uma responsabilidade e um desafio celebrar atravs do canto uma conquista to importante quanto as

    Olmpicas. O tom dessa passagem, e de quase todas os trechos em primeira pessoa e metalingusticos,

    pico: aquele que canta quer representar-se como herdeiro dos rapsodos, um instrumento pelo qual a

    Musa celebrar o feito extraordinrio. No caso da poesia pica, trata-se de conquistas hericas; j no

    epincio, atlticas. Por que, ento, a 'coragem' ou 'ousadia' necessria? Pois a primeira pessoa parte

    ativa na celebrao, ela que conduz o carro das Musas e 'descobre' ('inventa') um caminho novo para

    o louvor.

    A primeira pessoa da poesia pica (que insinua-se atravs da evocao direta segunda pessoa,

    s Musas) identifica sua voz com a das Musas, ou seja, no se descola do prprio ato de cantar e louvar

    os feitos hericos na guerra e, assim, no cria uma reflexo direta sobre o fazer potico. No epincio,

    por outro lado, h distanciamento, h como que uma conscincia dessa primeira pessoa de que est

    comissionada a uma grande tarefa: colocar esse evento particular na sequncia de grandes eventos

    passados, equalizando o atleta com o heri. Alm disso, possvel destacar que os Jogos e a guerra

    esto intimamente ligados pelo fato de o treinamento atltico ser concebido como preparo para as

    batalhas.

    Da mesma forma, a '' necessria ao atleta, como vemos na Ptica 10, vv. 21-4:

    : ,

    32

  • '

    'Que o deus seja livre de opresses em seu corao;Venturoso e louvvel esse homem torna-se aos sbios,aquele que com as mos ou a excelncia dos ps superoue conquistou as maiores competies com coragem e fora'.

    A coragem, portanto, necessria para superar o desafio de vencer uma competio olmpica,

    da mesma forma que a sabedoria necessria para executar o ofcio potico e laudatrio. Voltando a

    Olmpica 13, temos a equiparao entre o esforo do atleta na competio com o esforo do laudandus

    em compr um elogio a altura da tradio e do feito conquistado. O conceito em comum o de

    'esforo, trabalho', expresso em grego atravs das palavras , , , 10: ambos tm

    que passar pelas dificuldades do trabalho imposto para atingir o fim almejado, seja a vitria, seja o

    louvor dessa. Nos dois casos poderamos resumir esse fim em um s conceito: a obteno, por parte do

    atleta, e o conferimento, por parte da primeira pessoa, de . Esse outro ponto de contato entre a

    poesia pica e o epincio: tanto heris quanto atletas buscam o renome, a fama por seus feitos; tanto

    rapsodo quanto o coro do epincio so conferidores de fama. A diferena entre as duas prticas poticas,

    como j foi ressaltado, que, nas odes de Pndaro, parece haver um distanciamento maior da primeira

    pessoa que fala em relao s Musas, isto , o fazer potico, gerando conscincia da sua funo de

    propagador da fama do atleta, enquanto na poesia homrica, a (pressuposta) primeira pessoa identifica-

    se totalmente com a voz das Musas, criando uma moldura quase invisvel para os eventos narrados em

    terceira pessoa, criando a iluso de objetividade plena. A voz que nos fala nos poemas de Homero est

    distante dos eventos que motivaram o canto e talvez por isso seja necessria essa iluso de

    objetividade , enquanto Pndaro est mais prximo do aqui e do agora, com o evento e as pessoas

    envolvidas nesse contexto, com as quais dialoga.

    Uma passagem que articula os mesmos elementos aqui discutidos a segunda estrofe da

    stmica 5, vv. 22-7:

    ' , . , 10 Nagy (Pindar's Homer, p.138) d vrios exemplos do uso desses termos em contexto mtico, como a corrida de Plops e

    Enomeu (Ol. 1, 84) chamada de .

    33

  • '

    'Se voltar-seao caminho puro dos trabalhos divinos,no inveje misturar o elogio ao cantoadequado como recompensa pelos esforos.Pois, de fato, excelentes heris guerreirosconquistaram fama e so celebrados em liras e nas multi-tonais vozes de flautaspelo tempo sem fim'.

    O pensamento o mesmo da Olmpica 13, articulando os mesmos elementos: necessrio

    dedicar-se aos trabalhos divinos para obter como recompensa pelo esforo a glria, que vem atravs

    das canes dos poetas. As conquistas atlticas so equiparadas com as conquistas hericas dos

    antepassados e o ofcio dessa primeira pessoa com o do rapsodo pico, o de celebrar essas conquistas.

    A narrativa mtica ocupa, grosso modo, as terceira e quarta trades (vv. 70 - 92). Aps o trecho

    em primeira pessoa analisado acima, temos uma pequena enumerao de possveis personagens do

    passado de Corinto que poderiam ser tema da narrativa. Essa estrutura funciona como elo entre aquela

    passagem anterior e a narrativa central, expandindo os versos 50-1 ('louvando a inteligncia dos

    antepassados e a guerra por virtudes heroicas') e introduzindo Belerofonte atravs da meno de seu

    filho, Glauco. As menes so a Ssifo e Medeia, pela sua astcia, e a Euquenor e Glauco, pela

    excelncia na guerra. Essa diviso ressalta os dois aspectos que tero destaque na narrativa do

    encilhamento, a astcia e a fora, e coloca Belerofonte em posio privilegiada em relao aos outros

    heris da cidade, representando o pice das duas caractersticas encontradas na cidade.

    O primeiro par o da astcia, a , que representada como a inteligncia prtica, ativa. o

    atributo de Odisseu ( ), aquele que contra todas as circunstncias conseguiu

    perfazer seu objetivo, quase sempre atravs da esperteza, da astcia. Ssifo descrito como 'o mais

    hbil com as mos, como um deus'. As mos so imagem da ao, como na Ol. 10, 21, onde com a mo

    do deus ( ) um homem instiga, pe em movimento () sua reputao.

    A outra figura mtica mencionada em relao mtis Medeia. Sua histria amplamente

    conhecida e abordada de diversas formas por diferentes autores. O que cabe notar como Pndaro

    resume essa narrativa em dois versos e como enfoca a personagem. Medeia aquela que, contra a

    vontade de seu pai, arranjou seu prprio casamento e salvou a nau Argos e sua tripulao. Pndaro

    ressalta os aspectos ativos da herona em sua histria, inclusive usando a forma mdia do verbo

    34

  • () e o sufixo de agente no substantivo () para enfatizar como ela agiu em seu prprio

    interesse e por conta prpria ao favorecer Jaso e fugir com ele.

    Ambos so figuras marcantes do passado da cidade e sua meno certamente teria um efeito na

    audincia contribuindo para engrandecer o elogio. Ssifo foi o rei de Corinto que incentivou o comrcio

    e a navegao, bem como o responsvel pela fundao dos jogos stmicos, o que ressalta sua

    importncia para o estabelecimento da cidade como importante centro da Grcia. Medeia tambm

    figura de projeo pan-helnica e sua associao com Corinto usada pelo poeta com o mesmo fim que

    a de Ssifo, para mostrar que a cidade tem um passado que justifica sua posio atual. Contudo, o mais

    interessante notar que ambos so dispensados como tema central da narrativa talvez pelos aspectos

    negativos, para a concepo pindrica, que esses personagens tambm traziam, um demonstrado por

    sua eterna punio no Hades, a outra pela marca do assassinato dos filhos e da feitiaria. At mesmo a

    histria de Belerofonte ser sujeita a uma releitura.

    Os outros personagens mencionados nesse preldio ao mito, agora caracterizados pela fora,

    virtude herica, so Euquenor e Glauco, ambos relacionados a Corinto. Glauco lutou ao lado dos

    Lcios, aliado dos Troianos, e Euquenor ao lado dos Argivos. Pndaro evoca um dos episdios mais

    famosos da Ilada, do canto 6, o encontro de Glauco e Diomedes no campo de batalha em Tria,

    quando reconhecem-se xenoi e, ao invs de lutarem, trocam as armas como sinal da antiga amizade

    entre as famlias. O poeta tebano enfatiza o fato dos heris corntios terem conquistado reputao em

    lados contrrios, o que demonstraria como so virtuosos todos os filhos de Corinto, igualmente. No h

    meno a vencedores ou vencidos. Por acaso, tanto Euquenor quanto Glauco morreram em Troia: o

    primeiro pelas mos de Pris, conforme seu pai Poliido havia previsto; o segundo, por jax. Contudo,

    h um destaque maior a Glauco, que ser a ligao narrativa com Belerofonte, e que mesmo em

    Homero heri de mais proeminncia que Euquenor.

    O episdio narrado o do encilhamento de Pgaso por Belerofonte, histria bastante conhecida,

    especialmente pelos feitos que juntos atingiram (derrotar as Amazonas, a Quimera e os Slimos). A

    narrativa segue basicamente a ordem cronolgica, mas o poeta parece dar mais destaque para alguns

    aspectos e apenas menciona ou indica outros, conforme o interesse para a composio do elogio.

    Considerando o nmero de versos usados para relatar cada evento, vemos que a maior parte da

    narrativa ocupada pela epifania de Atena e os desdobramentos dessa apario, especialmente do

    ponto de vista religioso, sendo que o encilhamento e as batalhas recebem pouca evidncia. O tema

    principal continua sendo a submisso do cavalo alado, considerando que as duas menes ao

    35

  • encilhamento (, v. 64, e , v. 84) formam como que uma moldura para a epifania de Palas.

    Assim como no incio do terceiro epodo tivemos um pronome relativo (, v. 63) para marcar o comeo

    do mito, encontramos novamente, dois versos abaixo, um recurso semelhante ( ) para

    introduzir a deusa. No fim da quarta antstrofe (v. 83), h uma frase de contedo gnmico que

    geralmente marca uma transio entre partes distintas nas odes de Pndaro seguida pela partcula

    , 'verdadeiramente, de fato', que liga o que foi afirmado no verso anterior com o exemplo particular

    que vem em seguida, a confirmao da captura de Pgaso.

    A narrativa caminha rapidamente para a apario da deusa e sua fala. H um claro contraste

    entre dois tempos distintos: aquele em que Belerofonte sofreu muito desejando jungir o cavalo, quando

    o heri caracterizado pela passividade () e pela falta de ao; a partir da epifania, o tempo

    passa a ser rpido, tanto da narrativa quanto da narrao, e Beleronfonte, ativo. Os eventos se sucedem

    sem mediao: de um sonho, a deusa torna se viso lcida e em seguida fala. O advrbio e a

    orao somente com o verbo e a partcula, , reforam essa ideia de rapidez. Mais do que os

    freios, Atena confere ao heri a caracterstica da ao, da atividade, que ser fundamental para domar

    Pgaso.

    Um aspecto notvel que o prprio Belerofonte narra a Poliido o ocorrido no templo da deusa,

    como dormiu prximo ao altar e como ela lhe trouxe as rdeas; com isso, temos narrado no poema todo

    o episdio da epifania, que havia sido ignorado no incio, quando o poeta passa rapidamente do

    sofrimento do heri para a fala da deusa. Esse trecho relativamente longo (vv. 70-82) dedicado ao

    detalhamento de tudo que se passou no templo, bem como das ordens de Atena, mostra que o foco da

    narrativa a participao divina no episdio.

    O mito encerrado no quarto epodo (vv. 86 92), aps a captura do cavalo que representa o

    clmax da narrativa. Temos uma rpida meno s batalhas que juntos lutaram contra as Amazonas, os

    Slimos e a Quimera. Nesse epodo parece que o centro da histria passa a ser Pgaso: as primeiras

    palavras, assim como as ltimas, so dedicadas ao cavalo alado, o que sugere uma estrutura em anel;

    alm disso, o poeta ressalta que seus feitos foram alcanados atirando 'desde o frio seio do cu vazio',

    isto , no seriam possveis sem Pgaso; e principalmente porque Belerofonte abandonado como tema

    para a narrativa, devido ao seu trgico destino causado por suas prprias aes, e o cavalo recebe o

    destaque final, que est de acordo com seu fim elevado.

    O mito, dentro dessa ode, simboliza o vitria da medida sobre a fora bruta. Como j vimos, a

    medida aqui entendida mais no sentido moral, de 'moderao', e aparece em todos os momentos do

    36

  • poema articulando todas imagens. o que a primeira pessoa recomenda ao vitorioso, para que no

    exceda sua condio que, apesar de aproxim-lo da ventura divina, tambm pode ser origem de hybris e

    runa; o laudator tambm adverte a famlia do vencedor, agora com tom poltico, para manter o

    comedimento e no cair no perigo da tirania; a primeira pessoa tambm precisa de medida ela mesma

    em seu ofcio laudatrio para dar a real dimenso daquela vitria, reconhecendo o tamanho daquela

    conquista e os seus limites. A fora bruta tambm est presente em outros momentos do poema, seja

    nas figuras mticas do 'Excesso' e da 'Saciedade', seja nas imagens de descontrole as quais a primeira

    pessoa lana mo (os gros de areia do mar, o turbilho de setas), ou no 'reto mpeto' que a move. A

    ideia geral de que a fora necessria, especialmente na forma de 'coragem', para enfrentar os

    trabalhos (seja a guerra, os Jogos ou o fazer potico), mas sob o domnio da medida, da moderao.

    Mais adiante no poema (vv. 93 e seguintes), em outro momento de transio entre trades e

    estruturas retricas (da narrativa mtica para a parte final da ode), h uma passagem muito semelhante

    em que a primeira pessoa volta mais uma vez ao tema da medida em relao ao fazer potico,

    articulado com sua posio enquanto comissionado a louvar a conquista atltica:

    ' '.

    'Atirando diretamente um turbilho de dardos,no devo lanar de minhas mosmultido de disparos fora do alvo.Pois voluntariamente vim como aliadodas Musas de tronos esplndidos e dos Oligaitidas'.

    Novamente a primeira pessoa teme perder a medida e no acertar o alvo do elogio. A imagem

    das flechas remete passagem discutida acima (v. 48, 'Reconhecer o adequado [] o melhor'),

    pois extender-se demasiadamente na narrativa ou no elogio propriamente seria perder o 'alvo, o

    objetivo'. Alm disso, mais uma vez a imagem remete ao descontrole ao qual o poeta est exposto ao

    ter tantas vitrias para mencionar. Nota-se o verbo , que ressalta a obrigao, o compromisso em

    fazer o louvor na medida certa. A contraposio entre a desmedida em que a primeira pessoa quase

    incorreu (mas sem falta moral, pois apesar de atirar ' ', o modo como o faz '', assim

    como no verso 12 sua '' '') e o seu dever de louvar segundo o esperado, devido ao seu

    compromisso com a famlia e as Musas.

    37

  • Logo em seguida, h mais uma passagem onde o laudandus expressa sua relao com a famlia

    do vencedor (aquela que o comissionou) e com as Musas, das quais 'aliado'. Outro aspecto

    interessante dessa passagem a palavra que a primeira pessoa escolhe para qualificar sua relao com

    as Musas e os Oligaitidas, ''. Seu sentido bsico de 'aliado', como encontrado na Ilada, por

    exemplo no segundo canto, vv. 804-5: ' /

    ' ('Pois h na grande cidade de Pramo muitos aliados e outras lnguas

    de outros homens disseminados pela terra'). Contudo, no tempo de Pndaro o uso mais comum de

    'soldado mercenrio', em oposio aos soldados cidados da prpria cidade. Assim encontramos em

    Hertodo, livro 1, 154, a respeito de Ciro na ocasio do cerco a Sardis: '

    ' ('E contratou mercanrios e persuadiu

    os homens da costa a marchar com ele'). Assim, o '' est em uma categoria inferior ao soldado

    comum da mesma cidade; Pndaro coloca-se como subordinado s Musas e os Oligaitidas. Alm disso,

    mais uma vez temos uso de lxico de guerra para aproximar o universo do epincio e da poesia pica.

    Uma comparao interessante pode ser feita com o primeiro fragmento de Safo, onde a poetisa invoca

    Afrodite para ser novamente sua aliada na conquista da amada, mas a palavra usada '' o que

    d a ideia de igualdade entre os aliados. uma concepo diferente daquela encontrada em Pndaro:

    esse poeta deve em primeiro lugar servir situao social em que est inserido, tanto para construir seu

    ethos prximo ao do poeta pico (por isso a submisso s Musas), quanto pela comisso da famlia do

    vencedor. Talvez por tratar-se supostamente de poesia mondica, Safo no estaria sujeita mesma

    conveno dando nfase ao aspecto pessoal enquanto Pndaro privilegia o social.

    O poema finaliza retomando vrios elementos que j encontramos durante a ode. Aps esse

    passo analisado acima, h mais uma declarao em primeira pessoa em que se reafirma seu

    engajamento com a veracidade do discurso, no caso com os elogios futuros, bem como seu

    compromisso em louv-las quando acontecerem. a ltima vez que se dirige famlia do vencedor

    para reiterar sua posio como subordinado ao ofcio laudatrio e a posio da famlia como patronos.

    Em seguida, h mais uma pequena lista de vitrias dos Oligaitidas. Por isso que a primeira pessoa

    menciona os sucessos resumidamente, organizados por competio. Assim como nas outras listas de

    conquistas, h aporia ao tentar relat-las todas: a primeira pessoa conclui exortando a audincia a

    conhecer as diversas cidades e competies gregas, onde conheceria todas as vitrias daquela famlia.

    Outro expediente retomado nesses versos a invocao a Zeus, finalizando a estrutura iniciada na

    segunda estrofe (vv. 24 e ss.). O pedido aqui mais geral do que na primeira ocasio, quando a

    38

  • primeira pessoa ora ao deus para encaminhar o destino de Xenofonte e de sua casa. Agora, a prece

    para que Zeus d moderao (respeito) e doce ventura dos prazeres a todos, presentes e no presentes

    na performance.

    Aps o estudo detalhado sobre a construo do poema, do ponto de vista retrico bem como

    literrio, possvel concluir que o poema de Pndaro serve-se amplamente de recursos tradicionais dos

    gneros corais gregos, tais como: narrativas mticas, preces e invocaes aos deuses, frases gnmicas,

    declaraes a respeito da funo da primeira pessoa, o laudator. Atravs da comparao com poetas

    como Baqulides e Simonides, percebemos que se tratam expedientes tradicionais que serviam para dar

    sentido performance do poema, quer dizer, eram constituintes esperados num contexto de celebrao

    das vitrias. So essas passagens que ligam o vencedor ao panorama de vitrias anteriores de sua

    famlia; que colocam sua famlia entre as grandes da cidade, equalizando suas conquistas com as de

    heris do passado daquela comunidade; que fazem o elo entre o mundo dos mortais e dos deuses,

    dedicando a vitria aos imortais, pedindo a esses a proteo ao vencedor e a sua famlia para que no

    incorram nos excessos que a glria pode trazer. E so esses elementos de dico tradicional tambm

    responsveis por posicionar a primeira pessoa, seja o coro ou o poeta falando atravs desse, na

    economia do discurso, isto , na sua postura em relao aos seus patronos, cidade e aos deuses. Essa

    primeira pessoa cumpre uma dupla funo: de testemunha e arauto da vitria celebrada. 'Testemunha'

    para garantir a veracidade do relato e da conquista; 'arauto' devido a sua funo de propagador da fama

    do vencedor.

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  • Comentrio

    Primeira estrofe. A ode inicia-se por uma trade que emula um pequeno hino em homenagem cidade

    do vencedor Xenofonte, Corinto. A primeira orao do poema nos explica qual a pertinncia em louvar

    a cidade em um poema em homenagem ao vencedor: louvando a casa vencedora, o poeta vai fazer

    conhecida a cidade. Tanto louvar quanto aconselhar caberiam nesse caso como traduo de

    , pois ambas as funes cabem ao poeta nessa situao social. O objetivo estabelecer

    paralelos entre o passado e o presente, para colocar o vencedor no mesmo patamar dos heris (e atletas,

    no caso) que merecem entrar para as canes. Esta vitria particular celebrada nesse poema deve ser

    entendida como mais uma manifestao da excelncia de sua famlia e de sua cidade. Ou seja,

    louvando a cidade e a famlia, o poeta est louvando o vencedor.

    Assim o poeta passa por todas as esferas sociais envolvidas j na primeira estrofe. O tom pico dado

    pela aluso Teogonia de Hesodo e pela mudana de metros elicos para datlicos no meio da estrofe,

    fenmeno nico em Pndaro.

    v1. . Verso de somente uma palavra composta, um hapax, dando o tom elevado que

    a ocasio pede. Outra abertura igualmente elevada a da Ol. 2 ' ' ('Hinos lderes

    de liras'), onde h tambm uma palavra composta no encontrada em nenhum outro texto, quase

    dominando toda uma unidade mtrica. Xenofonte venceu duas vezes nos Jogos em questo, na corrida

    a p e no pentatlo (464 a.C.), como encontramos em Pausnias 4, 24, 5: '()

    , ', '() durante a septuagsima nona

    Olimpada, a qual Xenofonte de Corinto venceu'. Outro registro encontrado em Diodoro da Siclia,

    11, 70: ' , ', 'foi

    celebrada a septuagsima nona Olimpada, na qual Xenofonte de Corinto venceu a corrida a p'. Seu

    pai, Tssalo, j havia vencido em Olmpia em 504 a.C. Eusbio, Crnicas I, 70, traz uma lista dos

    vencedores nos jogos Olmpicos, mas exclusivamente das corrida a p, a primeira competio que

    surgiu e, por isso, aquela considerada a mais importante. Segundo esse relato, a 79 Olimpada foi

    vencida por Xenofonte de Corinto, na corrida a p, mas a 69 foi vencida por Ismaco de Croto e no

    pelo pai de Xenofonte. Somente nos esclios Tssalo dado como vencedor nessa competio. A

    famlia , portanto, tricampe.

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  • v2. . 'Louvar, aprovar', mas tambm 'recomendar, advertir' (sen