ticiana-dissertacao

download ticiana-dissertacao

of 142

Transcript of ticiana-dissertacao

FUNDAO EDSON QUEIROZ UNIVERSIDADE DE FORTALEZA VICE-REITORIA DE PESQUISA E PS-GRADUAO MESTRADO EM PSICOLOGIA

A ATITUDE CLNICA NO PLANTO PSICOLGICO: COMPOSIO DA FOTOGRAFIA EXPERIENCIAL DO TERAPEUTA-SHERPA

Ticiana Paiva de Vasconcelos

Fortaleza/CE 2009

Ticiana Paiva de Vasconcelos

A ATITUDE CLNICA NO PLANTO PSICOLGICO: COMPOSIO DA FOTOGRAFIA EXPERIENCIAL DO TERAPEUTA-SHERPA

Dissertao elaborada sob a orientao do Prof. Francisco Silva Cavalcante Jr, Ph.D., e apresentada ao Programa de Ps-Graduao Universidade em de Psicologia da Fortaleza, como

requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Psicologia.

Fortaleza 20092

_______________________________________________________________________ V331a Vasconcelos, Ticiana Paiva de. A atitude clnica no planto psicolgico : composio da fotografia experiencial do terapeuta-sherpa / Ticiana Paiva de Vasconcelos. - 2009. 136 f. Dissertao (mestrado) Universidade de Fortaleza, 2009. Orientao: Prof. Francisco Silva Cavalcante Jnior, Ph.D. 1. Psicologia clnica. 2. Planto psicolgico. 3. Atendimento de emergncia. I. Ttulo. CDU 159.9:616 _______________________________________________________________________

3

4

Muitas vezes fiquei intimamente comovido ao ver o quanto se pode ajudar algum a ajudar-se a si prprio, deixando que ela descubra a sua prpria verdade, uma verdade cuja riqueza, doura e profundidade jamais havia suspeitado Sogyal Rinpoche5

Agradecimentos

minha me e irm pelo suporte indispensvel; Raquel Wrona pelo incentivo e ateno dispensada; Raquel Rosenberg (in memorian) e Iara Iavelberg (in memorian) por terem sonhado; Aos parceiros de ACP (Andr, Yuri, Paulo, Helton e Lcia) pelos preciosos encontros; Ao Prof. Cavalcante Jr, o maior sherpa que conheo, por todo amor; FUNCAP pelo apoio em parte dessa pesquisa;

Aos mestres de ontem que nos trouxeram at aqui e aos clientes de hoje que nos impulsionaro ao futuro.

6

NDICE

Introduo ............................................................................................ 10 Captulo 1 40 anos de Planto Psicolgico: histrias, contextos e concepes ........................................................................................... 20 1.1 O sonho que se sonha junto: a criao do Planto Psicolgico...... 20 1.2 Planto ou Plantes? ..................................................................... 27 1.3 Afinal, o que o Planto Psicolgico? ........................................... 32 1.4 Concepes de Planto Psicolgico ............................................... 34 1.5 O surgimento do Planto Psicolgico em Fortaleza: o Projeto Florescer ........................................................................................ 39 Captulo 2 Procedimentos Metodolgicos: Mtodo Heurstico... 45 2.1 Fases do Mtodo ........................................................................... 49 Captulo 3 A atitude teraputica na Abordagem Centrada na Pessoa .................................................................................................. 60 3.1 O desenvolvimento da ACP ........................................................... 60 3.2 As seis condies necessrias e suficientes .................................. 69 Captulo 4 Encontrando (com) Althea .................................... 75 Encontro 1 ............................................................................................. 76 Encontro 2 ............................................................................................. 79 Encontro 3 ............................................................................................ 83 Encontro 4 ............................................................................................ 87 Encontro 5 ............................................................................................ 91 Encontro 6 ............................................................................................. 94 Encontro 7 ............................................................................................. 97

7

Encontro 8 ............................................................................................. 99 Captulo 5 A fotografia experiencial do terapeuta-sherpa .... 102 5.1 Intra-subjetivos: a morada pessoal de Althea .............................. 105 5.2 Inter-subjetivos: o bisturi harmnico ............................................. 109 5.3 Transubjetivos: pores formativas em Althea ............................ 118 Abertura ............................................................................................ 122 Referncias Bibliogrficas ............................................................... 126 Anexos .............................................................................................. 138

8

RESUMO

Esta pesquisa objetivou elucidar as atitudes clnicas desenvolvidas e sustentadas pelo psicoterapeuta que atende no Planto Psicolgico. A modalidade clnica denominada Planto Psicolgico, quando praticada sob o referencial da Abordagem Centrada na Pessoa, prope que o plantonista adote a trade de condies facilitadoras ao crescimento (empatia, congruncia e apreo positivo incondicional) e possibilite um campo de atualizao para a pessoa em emergncia emocional. A Atitude Clnica, que seria o conjunto de caractersticas, capacidades e proficincias que so pertinentes ao atendente de Planto, referem-se ao posicionamento global em relao ao outro, ao modo de se inclinar ao sofrimento do outro. Atravs do mtodo heurstico, pode-se adentrar a experincia de ser um terapeuta no universo do Planto, sorvendo sentidos e possibilitando a recriao e apreenso da experincia. Althea, plantonista colaboradora desta pesquisa, foi acompanhada por mim em oito turnos de Planto. Assim, elucidou-se trs dimenses pertinentes a atitude clnica do plantonista: intra-subjetiva (o plantonista em relao a si, descrevendo aspectos da constituio de sua congruncia); inter-subjetiva (a relao dele com o outro, desvelando aspectos da relao de cuidado) e trans-subjetiva (para alm do plantonista, explorando pores formativas pertinentes ao atendimento). Desta forma, pode-se constituir a fotografia experiencial da atitude clnica do plantonista, desbravando as nuances e contornos do terapeuta-sherpa. Conclui-se que necessrio investigar e construir novas fotografias experienciais para uma compreenso global do Planto Psicolgico enquanto uma modalidade de interveno psicolgica, bem como desenvolver novas metodologias para a formao de terapeutas-sherpas. Palavras-chave: 1. planto psicolgico; 2. atitude clnica; 3. mtodo heurstico; 4. abordagem centrada na pessoa; 5. atendimento de emergncia.

9

ABSTRACT This research aimed to elucidate the clinical attitudes developed and supported by the psychotherapist who serves on the Psychological on duty service. The clinical modality called Psychological on duty service, when practiced under the reference of the Person Centered Approach, proposes that the psychotehrapist on duty adopts a triad of conditions that facilitate growth (empathy, congruence and unconditional positive regard) and enables an updated field for the person in emotional emergency. The Clinical Attitude, which is the set of features, capabilities and proficiencies that are relevant to the therapist on duty, refers to the global posture related to the other, to the way of inclining to the suffering of the other. Through heuristic method, one can enter the experience of being a therapist in the world of Attendance, sipping senses and allowing the re-creation and apprehension of experience. Althea, psychotherapist on duty collaborator in this research, was accompanied by me in eight shifts on duty. Thus, three relevant dimensions to the psychotherapists clinical attitude were elucidated: intra-subjective (the psychotherapist on duty in relation to him/herself, describing aspects of the constitution of his/her congruence); inter-subjective (his/her relationship with the other, revealing aspects of the care relation) and trans-subjective (beyond the psychotherapist on duty, exploring formative portions that are relevant to the attendance). Thus, we can compose the experiential photo of the psychotherapists clinical attitude, exploring the nuances and contours of the sherpa-therapist. It follows that it is necessary to investigate and build new experiential photos to a global understanding of the Psychological on duty service as a psychological intervention modality, as well as develop new methodologies for the training of sherpa-therapists. Key words: 1. psychological on duty service; 2. clinical attitude; 3. heuristic method; 4.person centered approach; 5. emergency care.

10

INTRODUO

Observo que utilizo atualmente de forma constante a palavra complexo1. Nada menos apropriado ao me referir minha rea de estudo, a Psicologia Clnica, sempre complexa, exigindo olhares e sentidos complexos. E o ponto de partida dessa empreitada dissertativa , legitimamente, em mim. O caminho da pesquisa um caminhar para si, que implica caminhar com o outro, segundo a metodologia aqui empregada. Ento, j que Descobrindo-se (para dentro) o cientista descobre (para fora) o mundo (Maciel, 2004, p. 31), apresento a seguir uma parte de quem eu sou, pois, mais que influenciar, o que sou define as minhas motivaes e intenes com esta pesquisa. Considero que h trs feixes de luzes preponderantes, trs searas, que me perpassam e, juntas, somam-se e concorrem unissonamente na jornada de tornar-me quem eu sou: o jud, o budismo e a psicologia clnica. Por volta dos meus treze anos, aps uma passagem rpida por outros tipos de atividades fsicas, iniciei na prtica do caminho (D) suave (Ju). Os termos arte marcial, luta, defesa pessoal, atividade fsica, prtica corporal so inadequados, pois no definem integralmente a prtica, nem tampouco contemplam a filosofia do Jud. O jud foi idealizado no Japo h cerca de 120 anos por um homem franzino chamado Jigoro Kano. Como possui um criador, que sistematizou diversas lutas da antiguidade oriental, esta nova modalidade recebeu tratamento e estudo especfico para se tornar o que .

1

No captulo 3, h referncias etimolgicas e semnticas do vocbulo complexo (ver p. 69). 11

Semelhante a todas as modalidades de contato fsico que possuem o kanji (caractere) D (Karate-D, Aikid, Taekwon-D), bem como outras prticas orientais que se revestem em caminhos como o caminho do ch (chad), o caminho das flores (kad), o caminho da caligrafia (shod), o caminho da espada (kend), o caminho do arco (kyd), este no um caminhar toa. Caminha-se seguindo as pegadas de outros que j fizeram esta travessia, trilhando vias j experimentadas. Neste sentido, D tambm um caminho em que se segue uma tradio. O que interessa aqui perceber que caminho no significa um exerccio que se faz desarticulado da vida de quem pratica a arte. O caminhar no um ato isolado, entre tantos outros da vida, mas parte integrante da Vida. Um caminho de sabedoria que deve iluminar toda a vida do caminhante. Apesar de todo o cuidado na criao do Jud (que este fosse, de fato, um caminho de sabedoria), a ocidentalizao (jogos olmpicos, por exemplo) ao mesmo tempo em que difundiu a prtica judosta pelo mundo, causou o desvirtuamento da modalidade. Contudo, o jud que aprendi foi outro. Mantinham um vis altamente competitivo, entretanto os princpios centrais eram resguardados e explorados a cada treino. No ato de cair e levantar, projetando o outro com cuidado e amor sincero, o aprendizado s era plenamente obtido quando nos permitamos e mergulhvamos no fluxo de energia da prtica, cedendo, muitas vezes, nosso lugar confortvel, rgido de segurana e abrindo-nos para o mistrio, incerteza e Vida. Respeito, abnegao, humildade, pacincia, perseverana, eram repassados em cada gesto, cumprimento, gentileza, cuidado com o outro.

12

Onegai Shimasu2 era repetido em cada incio de sesso de treinamento. Este termo japons significa uma postura de respeito e gratido pelo outro praticante, pela disponibilidade deste em ceder seu prprio corpo para o meu aprendizado, neste ato altrusta de compartilhamento de si em benefcio do outro (Sugai, 2000). Sinto essa admirao, gratido e cuidado pelo outro que cede a si mesmo para a minha evoluo pelas pessoas que nos procuram em sofrimento psquico para um atendimento psicoteraputico. Similarmente ao Jud, nas atividades de aprendizado da psicoterapia utilizo o outro para meu aprendizado. O budismo e o jud so semelhantes. Orientais, eles entraram em minha vida em momentos distintos e de formas diferentes, contudo me conferem contornos imprescindveis de quem eu sou. A prtica budista, dentre inmeros e preciosos ensinamentos, regida pelo legado da motivao pura. Primeiramente, a motivao inicia com a compaixo pelas dificuldades dos seres sencientes e culmina na manifestao iluminada de benefcio espontneo e ininterrupto para estes seres, aspirando alvio do sofrimento onde quer que ele surja. Trabalhar, praticar e desejar o fim do sofrimento dos seres tornou-se, ento, um compromisso maior. A reduo do sofrimento, bem como a realizao ltima de todas as potencialidades inerentes a cada um, aproximou-me de uma abordagem psicolgica que confere cientificidade e possibilidade de atuao minha motivao de vida. Segue, agora, o ltimo feixe de luz que completa e contempla aspectos profundos da minha vida a psicologia clnica. Assim,2

Mais informaes, disponvel em: http://www.aikidonovaera.com.br/shinbun_aiki/Lingua_Japonesa/japones_1.htm. Recuperado em 08 de janeiro de 2009. 13

transporto para c uma poro de mim psicoterapeuta e, primordialmente, pessoa, no ressoar da minha experincia no Planto Psicolgico: Tudo a oferecer pouco: Minha experincia em atender Esmeralda3 Mais um dia de trabalho duro no Planto Psicolgico. No lembro ao certo, mas acho que j havia atendido duas, trs pessoas, nesse dia. Recordo somente de um leve cansao e de uma vontade de ficar alheia do mundo para, em silncio, buscar recobrar minha disposio. Contudo, a misso nesse dia ainda no havia acabado. Algum da recepo perguntou-me se o atendimento prosseguiria e me coloquei disponvel, sentindo-me o soldado que no fugia luta. Esmeralda (pseudnimo), negra, mulher de seus 25 anos. Li seu nome na lista de espera e tive que cham-la em voz alta, quase gritando, devido ao burburinho natural de um espao pequeno com muita gente. Esmeralda lia uma revista, mas seu olhar estava perdido no cho. Ao ouvir seu nome, levantou-se num salto e, com muita dificuldade e com um sorriso no rosto, veio em minha direo. Os seus passos eram bem lentos e ela se apoiava nas paredes, para conseguir se deslocar. Esmeralda tinha uma deficincia nas duas pernas e eu no lembro, ao certo, a forma como caminhava nem recordo se ela utilizava muletas. O que gravei, como se conseguisse revisitar agora, foi aquele corpo mido arrastando-se pelas paredes, para conseguir apoio. Eu no sabia o que fazer. Entramos na sala e indiquei-lhe onde ela poderia sentar-se. Agradeceume com um sorriso sincero e ps-se a falar de sua vida. Em virtude de uma3

Nome fictcio. Atendimento realizado na modalidade de Planto Psicolgico, em meu Estgio Supervisionado de Clnica III por volta de maio de 2007. Conto Experiencial publicado em Cavalcante, Sousa, Correia et al. (2008). 14

queda durante a infncia Esmeralda ficou com dificuldades de andar. Contoume que, nessa ocasio, sua me discutia com seu pai e, por isso, no viram que ela caia da escada. Chorava bastante ao falar de sua vida; da falta de um grande amigo; da dificuldade em estudar e em arrumar emprego. Sua fala delicada, clida, transbordava muito amor por sua vida e por suas conquistas. Eu permanecia em silncio. Havia muita mgoa de sua famlia, principalmente de sua me, que a rejeitava, e, por vezes, usava de violncia (puxes de cabelo, empurres). Aqueles olhos grandes e negros embebiam seu rosto como quem se afoga. Lgrimas em sria abundncia insistiam em correr para sua boca. Eu permanecia em silncio, sentindo a sua dor pulsar dentro da minha pele. Pela primeira vez, eu quis sair da sala e no mais atender. Perguntavame, abismada, como poderia algum maltratar tanto outra pessoa. Sempre que falava das agresses fsicas de sua me, fazia o mesmo gesto: corria uma mo por seus cabelos e os puxava. No! Eu tentava permanecer impvida e oferecer tudo o que me era possvel, naquele momento: minha escuta, minha ateno amorosa, minha presena. Embora a sensao de fracasso preenchesse meu corpo ferido e minhas limitaes clamassem por um basta, eu tinha que acompanh-la nessa empreitada de dor era o mnimo que eu podia disponibilizar. Hoje, quase um ano depois, tenho dificuldades para lembrar-me de determinados detalhes, como se minha memria tivesse selecionado partes especficas para esquecer. Esqueo, talvez, o que mais mexe com algo desconhecido em mim. At hoje, s tenho pequenas certezas com relao ao impacto que essa pessoa e que esse atendimento causaram-me: tenho

15

conscincia somente da ponta do iceberg; contudo, o frio agudo e o sinto por inteiro.

Recordar esse atendimento retornar a um tempo passado. Tempo de descobertas, de aprendizagens significativas, de crescimento, porm tambm um tempo de dvidas e de receios. Eu era uma estudante da Abordagem Centrada na Pessoa (ACP) e adentrava ao contundente ofcio da clnica psicolgica. A palavra Clnica vem do verbo grego klin, que significa inclinar, reclinar, recostar-se sobre um sof, de onde se deriva a palavra deitar-se (Furigo et al., 2006). Assim, o meu klin (sobre o que eu me apoio, recosto-me) era e o arcabouo terico da ACP de Carl Rogers. O incio da minha construo enquanto psicoterapeuta se deu concomitantemente ao meu mergulho na visada de Rogers. Tive o privilgio de ser estudante da primeira turma de Formao em ACP do Prof. Cavalcante Jr., participando de maneira intensa do volume terico ao qual ramos expostos, bem como ao raro nvel de aprofundamento experiencial. Tempos mpares recheados de processos complexos de tornar-se, fossem nas leituras e no horrio formal do curso de formao, ou fossem nos bancos da universidade, nos encontros genunos na hora do lanche e nas trocas de e-mails na calada da noite. O ano de 2007 significou um marco no meu processo de aprendizagem da psicologia clnica, bem como do meu mergulhar na ACP. Tive a oportunidade de participar da criao, planejamento e desenvolvimento do Planto Psicolgico na minha universidade, que somado a outras modalidades comps o Projeto Florescer (que ser melhor descrito no primeiro captulo).

16

Acredito que algumas experincias significativas anteriores facilitem esse novo jeito de fazer pesquisa. Sublinho no somente a minha experincia como estagiria no Planto Psicolgico, mas os exerccios de atendimento que fazamos na Formao (as trades onde um era o cliente, o outro, terapeuta e o terceiro somente observava). Em seus primeiros passos, o Planto Psicolgico causou-me, em intensidades semelhantes, motivao e medo. Motivao para lanar-me nesse desafio de fazer algo novo, e eu me sentia contribuindo para a vida de uma multido de pessoas. dentro desse contexto que o medo brotava, pois em todos os dias de atendimento surgia a indagao: o que estou fazendo? Ao me questionar sobre o meu ofcio, nascia a minha implicao pessoal para esta pesquisa. A peculiaridade em ser atendente do Planto, talvez obtusamente mais danoso que em psicoterapia individual, por toda a exposio e conjunto de incertezas, era o fato de assumirmos um lugar de responsabilidade e, muitas vezes, de salvao na vida das pessoas que nos procuravam em todas as manhs de quinta-feira. Destarte, acredito que a motivao para caminhar nessa temtica de pesquisa perpassa por um senso de compromisso, no somente com minhas arestas e curiosidades pessoais, mas com as mais de 500 pessoas atendidas pelo Projeto Florescer em um nico turno de atendimento em seus dois anos e meio de funcionamento. patente que sempre tive uma relao quase afetiva com o servio de Planto. No somente por ineditismo e pioneirismo de sua implementao no Cear, mas pelo seu alcance junto comunidade. Ligava-se o respeito ao outro (que era atendido no momento de sua necessidade) sensao de

17

ajudar e, de alguma forma, beneficiar muitas pessoas. No era incomum que, s quintas-feiras, houvesse entre 15 e 20 pessoas para atendermos. poca, ramos, por diversas vezes, solicitados a dar esclarecimentos sobre o Planto em aulas e palestras, nas disciplinas da universidade, em outras clnicas-escolas (como na UFC, por exemplo) com o intuito de divulgar a nossa experincia, bem como na prpria universidade, dando justificativas tericas e metodolgicas sobre esse to inovador, para nossas terras, servio. Ento, pertinente refletir sobre quais capacidades e proficincias so esperadas de um psicoterapeuta centrado na pessoa, que se disponibiliza a atender emergncias emocionais, sem hora marcada. Nesta dissertao chamo o conjunto dessas caractersticas de Atitude Clnica, ou seja, a dmarche clnica (Oliveira, Morato e Almeida, 2006) refiro-me ao posicionamento global em relao ao outro, mas tambm em relao ao saber e a sua elaborao, ao modo de se inclinar ao sofrimento do outro. Desta forma, apesar de diversos contextos e formas de atuao como ser discutido ainda no primeiro captulo dessa dissertao cabe anunciar que no possvel a viabilidade do Planto Psicolgico sem o solo da ACP (Cautella, 1999), sem a tendncia ao crescimento e complexidade, pois foi atravs da visada de Rogers que se possibilitou dar estrutura e forma prtica do Planto Psicolgico (Furigo et al., 2006, p. 86). nesse contexto que localizo o Planto Psicolgico da maneira que o concebo, incubadora que fomenta a chama da Vida (Sousa, 2008), pois ela aquece e ressoa com tudo que vida. Apresento no primeiro captulo o meu campo de estudo. A Histria (e as histrias) do Planto Psicolgico compe uma discusso pertinente sobre o

18

solo nutritivo brasileiro que possibilitou a criao dessa modalidade interventiva, bem como o contexto histrico de seu nascimento. Trago ainda as diversas definies e concepes do Planto, de como os autores implementaram e pensaram essa prtica nesses 40 anos. Finalizo este captulo localizando o nosso Planto cearense: a histria da implementao desse servio o Projeto Florescer. O segundo captulo traz a apresentao do caminho dessa pesquisa: o mtodo heurstico. Criado por Clark Moustakas, os procedimentos

metodolgicos que derivaram do movimento humanista norte-americano so descritos e discutidos nesse captulo. Discuto a postura do pesquisador heurstico que sustenta e possibilita todo o desenvolvimento da coleta e anlise dos dados e, conseqentemente, a validao dos elementos da Atitude Clnica da colaboradora. Segue o terceiro captulo abordando o bero terico que ampara o Planto Psicolgico: a ACP. De forma sucinta, trago o percurso histrico dessa abordagem para que se possa explanar o desenvolvimento dos conceitos e posturas da visada de Carl Rogers. Finalizo esse captulo discorrendo sobre as seis condies necessrias e suficientes para a mudana teraputica. O quarto captulo chama-se Encontrando (com) Althea. Caracteriza-se pela descrio e narrao dos oito encontros com o universo clnico da colaboradora e, desta forma, objetiva-se demonstrar, de forma mais ampla, o universo do atendente do Planto Psicolgico. pertinente a afirmativa de Rogers sobre os desafios de se apropriar e descrever a atividade clnica: Somente um romancista ou um poeta poderia dar conta das lutas profundas que somos autorizados a observar de dentro do prprio mundo da realidade do

19

cliente (Rogers, 1995, p. 42). Ento aceito o desafio, propus iniciar a constituio da fotografia experiencial do que foi sentido, percebido nessa pesquisa com a narrativa no estilo de Contos. Finalizando a fotografia experiencial, o captulo seguinte (captulo 5) acopla a imagem obtida anteriormente a uma moldura racional. Assim, trago as discusses e dilogos com a teoria dos elementos intra, inter e trans-subjetivos das atitudes de Althea, fazendo uma endoscopia dos atendimentos de Planto. E, para finalizar, teo consideraes sobre a necessidade de novas fotografias experienciais de outros contornos da modalidade pesquisada, bem como aponto para novas ferramentas metodolgicas para a formao de terapeutas-sherpas.

20

Captulo 1 40 anos de Planto Psicolgico: histrias, contextos e concepes

Na primeira parte desse captulo descreverei o contexto do surgimento da modalidade psicoteraputica Planto Psicolgico. Seu nascimento, em 1969, reveste-me de fascnio, pois a histria nos mostra que nosso pas passava por uma de suas fases mais obscuras. Desta forma, por diversas vezes, me veio a pergunta: como foi possvel a criao de um servio to inovador, revolucionrio no seio da ditadura militar?

1.1 O sonho que se sonha junto: a criao do Planto Psicolgico

O que foi feito, amigo, de tudo que a gente sonhou O que foi feito da vida, o que foi feito do amor (...) Falo assim com saudade, falo assim por saber Se muito vale o j feito, mais vale o que ser E o que foi feito preciso conhecer para melhor prosseguir Falo assim sem tristeza, falo por acreditar Que cobrando o que fomos que ns iremos crescer,21

outros outubros viro Outras manhs, plenas de sol e de luz (O que foi feito Dever. Milton Nascimento e Fernando Brant)

Os dias vindouros apontavam com uma luz diferenciada. Havia cheiro de mudana, sabor pressentido de diviso, menos tronos e mais assentos. Mas aos que se acostumam com o muito e com o poder que isso oferece, no significam nada momentos de sorrisos amplos e largos. Para eles, a claridade no para todos. Que se apaguem as luzes! Assim, em maro de 1964, os militares depem Joo Goulart, o presidente de ameaadoras tendncias comunistas e subversivas do poder. Nas ruas, tanques se opunham s idias. Planos destrudos com armas de fogo, mentes cerceadas pela dura represso. Todo o sonho de construo de um pas mais justo e igualitrio estava diante da mira infalvel, da estratgia de guerra, montada com fins destrutivos, como fosse preciso, para garantir a ordem (Campos, 2003; Carmo, 2001). Naquela escurido, alguns alvos pareciam reluzir diante dos militares, que os tomavam violentamente, buscando eliminar as ameaas, aquelas ervas daninhas que pareciam naquele momento querer tomar conta do verde pasto dos senhores do poder. Estudantes, sindicalistas, intelectuais, artistas, operrios, encabeavam a lista de vozes a serem sumariamente caladas. A mo-de-ferro militar se constituiu num corpo forte, com o olhar atento americano4 que no somente vigiava, mas instrumentalizava e instrua, com o

4

O que antes era uma suspeita, hoje a histria j confirma: a participao norte-americana no golpe militar brasileiro. Disponvel em: http://www.terra.com.br/istoe/edicoes/1971/artigo576321.htm. Recuperado em 10 de abril de 2009. 22

temor de que uma nova Cuba surgisse. A Igreja Catlica abenoou. Grande parte da classe mdia, travada em seu histrico medo de perder suas benesses, tambm abraou. A imprensa foi calada. Proprietrios rurais e importantes governos se mantiveram na posio de defesa, que naquele momento nada mais significava que o puro ataque (Carmo, 2001). Era preciso estar atento e forte5. Muitos no tinham tempo de temer morte. Endurecia-se o regime, dissolviam-se os direitos. Crescia o poder do Governo Militar, mas de um outro lado crescia tambm o exrcito dos que estavam dispostos a doar suas vidas em nome da liberdade. De um lado, a guerra. Do outro lado, a luta. As armas de fogo militar pareciam insuficientes para sufocar, fazer calar. O regime teve assim que fazer uso de outras munies. O Servio Nacional de Informaes foi o instrumento mapeador daqueles que ameaavam o estado, investigando e detendo informaes, utilizando medidas arbitrrias de confisco de informaes, quebras de sigilo, entre outras. Bandeiras de luta foram rasgadas. As mos cerradas que davam fora s palavras-de-ordem, acorrentadas. A Unio Nacional dos Estudantes extinta em outubro de 64 (Amaral, 2005). A educao brasileira tambm fora vitimada sob a desculpa de uma reformulao necessria, empurrando garganta abaixo os ditames americanos educacionais. Nada se podia falar, mas obrigaram a aprender ingls. Invadiram a escola, o terreno mais frtil e digno para o germinar democrtico da construo dos direitos. Os jardins do conhecimento foram esmagados pelos duros ps das tropas da intolerncia.

5

Trecho da msica de Gilberto Gil, Divino Maravilhoso, com letra de Caetano Veloso. 23

Mas como beber dessa bebida amarga6 sem demonstrar a necessidade de expeli-la? Inevitavelmente protestos comearam a explodir por todos os cantos, nas escolas, nas ruas, campos, construes7. Greves operrias, atos do Movimento Estudantil multiplicavam-se pelas ruas gritando aos que quisessem ouvir que amanh haveria de ser outro dia (Amaral, 2005). Mas muitos dias ainda nasceriam escuros, visto que a represso endurecia, combatendo duramente s idias ditas subversivas e aos seus representantes. E nesse momento frvido, beira do colapso da liberdade humana, certos personagens grandiosos da Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), bem como do Planto Psicolgico e da Psicologia, surgiram: Oswaldo de Barros, Raquel Lea Rosenberg e Iara Iavelberg. Em 1968, por iniciativa de Raquel Rosenberg e Iara Iavelberg, e sob a coordenao do ento professor da disciplina de Aconselhamento Psicolgico da USP, Prof. Oswaldo de Barros (primeiro estudioso a promover cursos sobre as psicologias humanistas em So Paulo), estabeleceu-se um acordo entre os departamentos de Psicologia da FFCL (Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras) e o curso para Vestibular do Grmio para a organizao do Servio de Psicologia do Departamento de Cursos para Vestibular do Grmio da FFCL da USP, no qual os alunos de 5o ano de psicologia estagiavam (Rosenberg, 1987; Schmidt, 2006). Os alunos se voluntariavam em turnos de atendimento, ininterruptos, e atendiam quem os procurasse, disponibilizando uma escuta emptica e respeitosa, objetivando a expresso dos sentimentos e o esclarecimento das necessidades e demandas do cliente (Camargo, 2002; Eisenlohr, 1999; Messias, 2001; Morato, 1999; Palmieri e Cury, 2007;Trecho da msica smbolo da resistncia Clice (de Chico Buarque em parceria com Gilberto Gil). 7 Pra no dizer que no falei das flores, de Geraldo Vandr. 246

Rosenberg, 1987; Tassinari, 2003; Zanoni, 2008). poca constitua-se como um servio de Aconselhamento No-diretivo, tendo o objetivo de escutar a queixa e indicar o melhor encaminhamento, ou seja, sugerir qual servio seria adequado demanda daquela pessoa. Um ano antes, neste mesmo cursinho, a psicloga Raquel Wrona se preparava para o vestibular. Eram tempos horrveis, Tici relata em correspondncia pessoal. Descreve sua professora, Iara Iavelberg, a quem tanto admirava, como magra, possuindo olhos grandes e claros. Eltrica, fumava muito, falava sem parar. Mulher forte, opinativa. Em suas aulas, andava de um lado para o outro sobre um tablado. Seus comentrios crticos, firmes e, por vezes, irnicos, faziam Raquel vibrar. Raquel no desconfiava que os constantes atrasos e faltas de sua professora eram devido sua militncia poltica. Iara Iavelberg participou de quatro organizaes clandestinas de combate ditadura militar: Polop (Poltica Operria), VAR-Palmares

(Vanguarda Armada Revolucionria), VPR (Vanguarda Popular Revolucionria) e MR-8 (Movimento Revolucionrio 8 de outubro). Panfletava em porta de fbrica e pichava muros. Nas reunies clandestinas, ajudava na cozinha. Muito inteligente, tornou-se rapidamente um quadro poltico, ensinando Lnin para outros militantes. O caminho seguido era arriscado e por ele pagava-se um alto preo: as prises, as torturas e mortes. Iara ligou-se apaixonadamente a Carlos Lamarca, capito do exrcito que aderiu luta armada, sendo sua amante at o final da vida. A morte de Iara foi controversa e j teve seu desfecho revelado: torturada e morta aos 27 anos, no ano de 1971, em Salvador-BA. Embora seja dodo

25

lembrar, preciso. H coisas que no se deve esquecer nos recomenda Raquel Wrona. Mergulhar na trajetria de Iara adentrar no somente no contexto do surgimento do Planto, mas especificamente no brao social (Rosenberg, 1987) que influenciou o surgimento desse servio. Almejava-se no somente responder pluralidade e diversidade de demandas por ajuda psicolgica, nem tampouco somente resolver os problemas das clnicas-escola (e suas longas filas de espera para atendimento), mas proporcionar um contexto para a formao de psiclogos comprometidos com a sade pblica da comunidade (Rosenthal8, 1999; Schmidt, 2004), construindo, assim, uma Psicologia Clnica mais prxima das exigncias da sociedade brasileira. Neste momento histrico ditatorial, as psicoterapias representavam uma espcie de refgio psquico dos descontentes com o sistema (Campos, 2003, p. 98). Protegiam os que tinham tido sua liberdade usurpada e proporcionavam um dos poucos espaos privados (e seguros) do perodo. Destarte, vivia-se o boom das psicoterapias, onde era cultivado um espao de subjetividade individual, num contexto predominantemente poltico (Campos, 2003). O ntimo, o particular, o familiar ganhavam espao de contestao do regime, tornandose refgios derradeiros contra os terrores sociais (Ferreira Neto, 2002, citado por Campos, 2003, p. 100). Em um setting teraputico, desse modo, havia a possibilidade de serem geradas novas formas de percepo do mundo, novas maneiras de freqentar, enfrentar e viver melhor nesse contexto. Era um espao de liberdade de expresso integral, liberdade de ser.

8

A referida autora Rosenthal o sobrenome de casada da psicloga Raquel Wrona, citada anteriormente nesse trabalho. 26

Podemos afirmar que a modalidade psicoteraputica chamada Planto Psicolgico nasceu e se desenvolveu no contexto brasileiro. Todavia, alguns autores (Bartz, 1997; Furigo, et al, 2006; Palmieri e Cury, 2007; Rosenthal, 1999) afirmam que a Profa. Rosenberg teve inspirao nas experincias das walk-in clinics, uma modalidade institucional com auge na dcada de 70 e 80, nos EUA onde mdicos e psiclogos se disponibilizavam para o atendimento emergencial do cliente (Dyck e Azim, citado por Palmieri e Cury, 2007). De toda forma, o Planto Psicolgico tem suas razes nas deficincias e nutrientes (Wood, 1999) da cultura brasileira, pois se enquadra perfeitamente no perodo histrico em que foi criado, constituindo-se como uma alternativa para o atendimento psicolgico individual, como preconiza Campos (2003),[...] a resistncia ao regime e opresso, assim como as insatisfaes e o questionamento to vivos nos anos 60 colocavam, para os psiclogos, de um modo geral, a necessidade de buscar formas alternativas voltadas para o fortalecimento do indivduo, de modo a reforar sua capacidade de resistncia (p. 106).

Ao final do ano de implementao do Servio de Psicologia do Grmio, em decorrncia dos acontecimentos polticos envolvendo o pas e,

particularmente, a Universidade de So Paulo, o convnio ficou impedido de prosseguir e os cursos de psicologia foram, em grande parte, transferidos para a Cidade Universitria. Em duas pequenas salas do Prdio da Histria, atendimentos psicolgicos continuaram a ocorrer at a formao do Instituto de Psicologia da USP (Rosenberg, 1987; Schmidt, 2006). Em 1975/76, Raquel Wrona integrou o curso de Aconselhamento da USP, e nos conta que se observou uma modificao importante nos objetivos iniciais do Planto. Almejado primeiramente enquanto um momento de triagem,27

este espao revelou-se altamente mobilizador e gerador de mudana e que, muitas vezes, uma sesso era suficiente para atender demanda do cliente, no necessitando mais de um atendimento sistemtico. Assim, o Planto deixou de ser um horrio, para ser uma modalidade de escuta (Wrona, 1999).

1.2 Planto ou Plantes?

Mais tarde, j na dcada de 80, Raquel Wrona implementou o servio de Planto fora da universidade, no Instituto Sedes Sapientiae (Rosenthal, 1999), sendo o primeiro Planto aberto comunidade (Campos, 2008). Outro plantonista de destaque formado pelo SAP/USP foi o Prof. Miguel Mahfoud que coordenou o primeiro servio de Planto em uma escola particular de So Paulo. Seu trabalho rendeu inmeras publicaes que abordavam

especialmente a importncia desse tipo de assistncia aos adolescentes e pde, posteriormente, organizar a primeira publicao destinada

exclusivamente a discutir a modalidade do Planto Psicolgico (Mahfoud, 1999). Aps este marco, o servio tem se espalhado por diversos locais e contextos, desenvolvendo tipos de plantes prprios, em praticamente todas as regies do pas. A maior incidncia est no sudeste e no nordeste brasileiro, O estado de So Paulo registra a maior concentrao deste servio, bem como o maior nmero de pesquisas. Em levantamento feito no incio de 2008, pela lista de discusso virtual da ACP (RedeACP-Brasil), podemos elencar alguns locais onde funcionam o planto atualmente no Brasil: creches, penitencirias, delegacias, tribunais de justia, FEBEM, grmios, condomnios residenciais, centros de formao,28

universidades, empresas, abrigos, hospitais (de emergncia e psiquitricos), centros acadmicos, de promoo da cultura e do esporte, associaes de grupos minoritrios, ONGs e centros comunitrios. O pblico para o qual direcionado perpassa todas as faixas etrias, sendo muitas vezes generalista (atende qualquer cliente, como ocorre na maioria das clnicas-escola) ou bastante especfico (somente mulheres vtimas de violncia, como no Rio Mulher, ou ainda os idosos da clnica de geriatria da Universidade Federal Fluminense). O Planto Psicolgico uma modalidade exaustivamente submetida investigao cientfica, para que se possa viabilizar a compreenso e interpretao de todos os elementos de ordem psicolgica pertinentes gerao de novas hipteses tericas a consolidar a rea da ateno psicolgica clnica (Palmieri e Cury, 2007, p. 479). Ao se mergulhar na literatura do Planto Psicolgico, observa-se a pluralidade de contextos no qual esse servio desenvolvido e implementado. mediante a pulverizao desta inovadora modalidade de atendimento que podemos ter a dimenso dos impactos e repercusses atingidos, e o que possvel almejar enquanto perspectiva de ampliar seu alcance. Sabemos que em cada contexto onde o Planto oferecido, nos deparamos com diferentes objetivos, formas de atuao, de demandas, ou seja, o quo diverso o contexto, diverso tambm o prprio servio. A seguir, identificamos na reviso de literatura (livros, revistas, anais de congressos) diversos contextos de aplicao do Planto Psicolgico (PP): PP na Polcia Militar de SP: implementado na 3. Companhia do 16 Batalho da PM, trs plantonistas enfrentavam dificuldades quanto rigidez e

29

hierarquia da instituio (Pereira, 2006). Essa experincia tem como marco a utilizao de um setting no-convencional: a cozinha. Inicialmente chamadas de conversas de cozinha (p. 17), colaborava para a desmistificao da imagem de psiclogo que aqueles policiais mantinham. Assim, as estagiriasplantonistas puderam estabelecer uma escuta ao sofrimento do outro, em qualquer lugar que fosse solicitado, pois o que nos faltava no era o lugar, mas sim uma postura clnica (p. 17). H ainda uma pesquisa de mestrado (Oliveira e Morato, 2006) que objetivou avaliar os impactos da experincia de planto psicolgico com policiais paulistas. Os resultados apontam para uma repercusso positiva desse tipo de servio, a partir do qual muitos alcanaram modificaes importantes na forma de lidar com a prpria vida. PP com meninos da FEBEM: atravs de uma proposta de ateno psicolgica aos jovens do programa de Liberdade Assistida (L.A.) da FEBEM de So Paulo, objetivou oportunizar um espao de interveno psicolgica, individualizada e pontual. A partir de procura espontnea, buscou-se trazer o jovem de volta a nveis suportveis de angstia, possibilitando, se possvel, a dissoluo de seu conflito emergencial e tir-lo momentaneamente da crise (Ballalai e Furigo, 2006, p. 30). Devido aos entraves institucionais e falta de tradio de atuao psicoteraputica com esses jovens, foi dificultada a adeso de uma forma mais significativa. H uma segunda experincia, descrita numa pesquisa de mestrado (Aun et al., 2006), que investigou o planto e sua utilidade para as questes do adolescente infrator, para que este possa ter um espao facilitador para se apropriar de sua histria. Esta pesquisa se deu com internos da FEBEM/SP e repensa a prtica da psicologia clnica para alm da fronteira tradicional.

30

PP na Clnica Comunitria: o servio fora implementado em 2005, contando com uma equipe de cinco psiclogos que se disponibilizavam por um turno na semana. Os atendimentos eram realizados por um ou dois plantonistas com o intuito de ampliar olhares (Saraiva et al., 2006, p. 37) do atendimento e como uma forma de cuidar do cuidador ao se dividir a exposio extrema do terapeuta, os autores afirmam que ameniza a vulnerabilidade do mesmo. PP em Hospital Geral: este servio de planto fora destinado aos funcionrios de um Hospital Geral. A pesquisa (Palmieri e Cury, 2007), feita com os clientes do servio, apontou que as atitudes mais importantes dos terapeutas naquele contexto seriam o sigilo e a iseno. PP em Hospital Psiquitrico: primeiro servio de planto em hospital psiquitrico do Brasil, desenvolvido desde 1992 (Braga e Cautella, 2006). No contexto da internao psiquitrica de curta permanncia, o planto objetiva oferecer atendimento psicolgico no momento mesmo da emergncia de uma dificuldade ou crise, intensificando as possibilidades de cuidado de paciente durante o perodo de internao. Afirma-se (Cautella, 1999) que os clientes que passaram pelo planto aderiram e se engajaram melhor em outros tratamentos psicoteraputicos, como em grupos, por exemplo. H o fenmeno da desmistificao do setting tradicional, pois atendimentos ocorriam em diversos locais (alas de internao, salas de espera). PP numa unidade de cuidados paliativos: o servio foi implementado na Unidade de Terapia da Dor e Cuidados Paliativos do Hospital Amaral Carvalho (Ja-SP), que atende pacientes portadores de cncer avanado e seus familiares. O servio possibilitou o esclarecimento das necessidades,

31

acolhimento da demanda, expresso dos sentimentos e facilitao da comunicao (entre paciente e familiar, entre paciente e equipe mdica etc.) (Kovcs et al., 2001) PP na creche: servio realizado com crianas de trs a seis anos no contexto de uma creche, em Campinas-SP. Os encontros emergiam de forma espontnea a partir das crianas, que estruturavam o tipo de encontro que desejavam, aproximando-se da interveno clnica chamada Planto

Psicolgico (Campos, 2008). Os encontros se davam em um setting noconvencional: sob a sombra de uma frondosa rvore. A pesquisadora conclui seu trabalho explanando sobre a potencialidade de atualizao das crianas ao se disponibilizar as condies necessrias e suficientes da ACP. Este estudo evidenciou tambm a capacidade de crianas pequenas comunicarem sentimentos a respeito de si mesmas e de seus problemas. PP no programa de Aprimoramento Profissional: esta pesquisa (Zanoni, 2008) discute a pertinncia da formao de psicoterapeutas clnicos atravs da prtica destes no planto psicolgico. A pesquisa concluiu que o Planto contribui para o desenvolvimento de uma escuta diferenciada, de uma percepo clnica mais aguada, alm de suscitar um senso de

responsabilidade ampliado aos clientes e comunidade. PP na escola: experincia emblemtica na histria do Planto, pois estabeleceu a expanso da pluralidade, evidenciando contextos onde este servio poderia (e pode) ser implantado. Na escola (Mahfoud, 1987), o Planto elucidou um espao de formao humana para os alunos, que crescem com a conscincia de si e da realidade. H ainda outras experincias, como o Planto em curso pr-universitrio (Bastides et al., 2006), cuja demanda para os

32

atendimentos

perpassam

por

dvidas

quanto

escolha

profissional,

dificuldades de estudo e problemas pessoais diversos. PP na instituio judiciria: como proposta de extenso de um grupo de alunos da USP, implementou-se em 1995 o servio de planto no hospital de uma instituio judiciria, objetivando acolher os altos ndices de suicdio e alcoolismo de sua clientela: funcionrios da instituio e seus dependentes (Barbanti e Chalom, 1999). PP na delegacia: servio criado em 1999 na Delegacia da infncia e da juventude de Santos-SP, objetivando oferecer suporte psicolgico clientela (crianas, jovens e familiares) em situao de crise, atravs do acolhimento e da escuta (Alves, 2006). Ainda na dcada de 80, houve a pulverizao do Planto Psicolgico em abordagens tericas diversas (como a cognitivista na PUC-Campinas) que passaram a utilizar a funcionalidade do Planto para as intervenes clnicas (Cury, 1999). O planto psicolgico surgiu como tentativa de contemplar a necessidade de confluncia entre as exigncias e as necessidades da populao e a formao acadmica (Paparelli e Nogueira-Martins, 2007). A formao do psicoterapeuta que atende no planto psicolgico exige determinadas caractersticas e que, devido sua complexidade, chamada de vivncia de um desafio (Mahfoud, 1999).

1.3 Afinal, o que o Planto Psicolgico?

33

No dicionrio Houaiss (2004), a palavra planto definida como o perodo em que o profissional fica disponvel para um determinado servio, em determinado tempo, na expectativa de que possa atender a qualquer solicitao no contexto em que est inserido. Ainda no dicionrio encontramos que planton, francs, possivelmente a origem da palavra planto, significava a pessoa que ocupa uma posio fixa, alerta dia e noite, no meio militar. No sentido figurado, aborda Tassinari (2003), estar plantado fixar-se na terra, aguardando disponvel e, ainda, estar vivo, como uma planta, que se desenvolve e cresce firme. O planto, tradicionalmente, um servio desenvolvido por profissionais da medicina, e assume na psicologia uma funo de atender a quem se encontrar em sofrimento emergente, que ocorre naquele momento. A expresso planto est associada a certo tipo de servio, exercido por profissionais que se mantm disposio de quaisquer pessoas que deles necessitem, em perodos de tempo previamente determinados e ininterruptos. Atualmente o Planto Psicolgico reconhecido pelo Conselho Federal de Psicologia, constituindo-se como uma nova modalidade clnica (Furigo e Sampedro, 2006). Acredito que a crescente disseminao do Planto em contextos de cuidado teraputicos, nas primeiras dcadas de seu surgimento, contriburam para a necessidade de mais pesquisas e reflexes acerca desse servio. imprescindvel pontuar que a pluralidade de contextos onde se desenvolve o Planto Psicolgico, permite que haja uma diversidade tambm plural de tipos de plantes (Tassinari, 2003), ou seja, diferentes concepes tericas, prticas e funcionais das caractersticas desse servio. Ento, objetivamos atravs

34

dessa reviso bibliogrfica distinguirmos os tipos de Planto Psicolgico, diferenas muitas vezes sutis, mas fundamentais para caracterizar como a prtica realizada. Embora esse tipo de caracterizao possa parecer excludente e discriminatria, gostaria de clarificar que a diviso feita para fins didticos, obedecendo a minha percepo da literatura do Planto Psicolgico.

1.4 Concepes de Planto Psicolgico:

Planto-Burocrtico O Planto Burocrtico (Oliveira, Morato e Almeida, 2006) foi bastante comum na gnese desse servio, pois no havia pesquisas e nem experincias para se investigar a potencialidade de espaos como este. Esta concepo de Planto aquela que enfatiza o fator tempo e espao para sua definio, reunindo assim caractersticas distintas da psicoterapia tradicional. Desta forma, o Planto definido como um espao onde profissionais da psicologia esto disponveis, em determinado tempo (normalmente turnos de

atendimento), para quem os procurar, sem necessidade de marcao de consulta prvia (Cury, 1999; Mahfoud, 1987; Oliveira, Morato e Almeida, 2006; Rosenberg, 1987). No h, neste caso, uma elaborao terica mais aprofundada da postura do plantonista e do que este pode fomentar na relao com o cliente. Este vis burocrtico permeia praticamente toda a bibliografia sobre o Planto Psicolgico, demonstrando como esta modalidade clnica praticada como uma tcnica (Oliveira, Morato e Almeida, 2006) enfatizando sua

35

operacionalidade. Melhor dizendo, o Planto Psicolgico refere-se ao dia e ao horrio no qual um Servio oferece seus servios comunidade (p. 184, grifos do autor), sem haver referncia ou modo de debruar-se (numa referncia clnica, inclinar-se) ao sofrimento humano.

Planto-Triagem Esta concepo de Planto herda o vis burocrtico, que contribui para um possvel automatismo de ao, engendrando uma prtica com

procedimentos previamente determinados: plantonista disponvel por um espao de tempo em um determinado lugar, compreendendo disponibilidade como presena fsica. (p. 184) H trabalhos que estimulam o Planto Psicolgico para desenvolver psicodiagnsticos e triagens (Ancona-Lopez, 1996; Yehia, 2004) to comum nas clnicas-escola. Ancona-Lopez (1996) discute as entrevistas de triagem propondo torn-las um momento significativo em si, para o cliente, independentemente do eventual encaminhamento para outro tipo de

atendimento e cita o Planto como meio de tornar a triagem mais humanizada. Nesses casos, a autoridade do psiclogo sobrepujada, deixando em seu poder o significado e a explicao da experincia do cliente (Yehia, 2004), caracterizando esse tipo de atendimento dentro de uma tica biomdica.

Planto-Focal O foco na demanda do cliente, para alm de ser uma postura de solucionar problemas ou dar conselhos, uma prtica que estipula ao Planto objetivos a respeito da demanda, queixa do cliente. Atualmente, uma das

36

concepes

mais

recorrentes

na

literatura

de

Planto

Psicolgico,

principalmente na escola uspiana e por quem diretamente influenciado. Diversos autores (Camargo, 2002; Cury, 1999; Eisenlohr, 1999; Furigo, et al., 2006; Messias, 2002; Morato, 1999; Palmieri, 2005; Schmidt, 1999) afirmam que o objetivo final do Planto problematizar, clarificar, esclarecer as demandas dos clientes, auxiliando na expresso de sentimentos e auxilia na resoluo de conflitos psicolgicos focando em questes emergentes (Furigo et al., 2006, p. 87), no se constituindo numa psicoterapia (Cury, 1999) e nem provocando mudanas profundas na personalidade (Belas, 1998). Para este grupo, o Planto um espao de ajuda pontual, para o cliente clarificar a natureza de seu sofrimento psquico (Schmidt, 1999) e depois encaminh-lo para um servio (psicoterapia individual, de grupos etc.) da clnica tradicional, eventualmente tendo alta.

Planto-Interventivo Tassinari (2003) aponta a dcada de 80 como um marco para a crise profissional dos plantonistas, pois havia a necessidade de se compreender o Planto Psicolgico como possuindo em si mesmo um carter de ajuda. Destarte, a classificao do Planto como um tipo de interveno psicolgica (tendo uma atitude clnica peculiar e assim configurando-se enquanto modalidade psicoteraputica) (Oliveira, Morato e Almeida, 2006; Tassinari, 1999) com potencial de resolutividade e atualizao do cliente, demonstrando[...] o poder transformador da escuta atenciosa, no diretiva, centrada no cliente, confiante na tendncia ao desenvolvimento das potencialidades inerentes pessoa (tendncia atualizante), e na possibilidade dessa tendncia ser estimulada, mesmo atravs de um nico encontro com o 37

profissional, desde que esse ltimo possa oferecer sua presena inteira (Rosenthal, 1999, p. 16).

Desta forma, o Planto aqui descrito no meramente um servio, mas uma modalidade psicoteraputica que possui uma atitude clnica especfica. A palavra atitude denota uma postura de disponibilidade experiencial que exerce influncia direta e dinmica no processo teraputico. Rogers (1980) define a sua terapia como uma atitude, um modo de agir, uma postura bsica que desemboca num ethos de vida. Desta forma, Wood (citado em

http://www.apacp.org.br/acp.htm) preconiza que a ACP exatamente o que as palavras sugerem, uma abordagem, que consiste de atitudes, crenas, intenes da parte da pessoa do terapeuta para com a pessoa atendida (ou as pessoas). uma postura. da investigao e constituio/construo dessa Atitude Clnica no Planto-Interventivo que se ocupa esta pesquisa. O Planto Psicolgico caracteriza-se por um tipo de interveno psicolgica, que acolhe a pessoa no exato momento de sua necessidade, ajudando-a a lidar melhor com seus recursos e limites, na medida em que o plantonista se coloca disponvel a acolher a experincia do cliente em determinada situao, ao invs de enfocar o seu problema (Mahfoud, 1987). A funo do psiclogo no solucionar problemas, mas estar presente de maneira a acolher a pessoa numa escuta ativa, possibilitando a mobilizao frente a uma situao conflituosa (Tassinari, 2003). Diferentemente do servio de triagem que, a grosso modo, visa avaliar a adequao entre o servio que se presta e a demanda do cliente (Schmidt, 2004) o Planto preconiza a resposta demanda, explorando todo o potencial curativo e de

resolutividade consagrados nesse tipo de atendimento (Rosenthal, 1999;38

Tassinari, 2003), como o que era proporcionado nas sesses nicas, demonstrativas, de C. Rogers, pois a Psicoterapia Centrada na Pessoa (Rogers, 1997) sempre foi breve, ainda que no fosse focal (Tassinari, 2003). Foco denota direcionamento, um caminho, um produto ou um objetivo a ser alcanado, caractersticas estas que no condizem com o preceitos da referida abordagem. Desta forma, afirma-se ser breve, pois acredita-se na capacidade criativa de atualizao da pessoa, desde que as condies facilitadoras para tal estejam reunidas. E o fator tempo no condio facilitadora, podendo esta ocorrer num encontro nico, por exemplo (Farber, 2001). H ainda dois pontos importantes para serem discutidos nesta reviso de literatura. H nas publicaes um ponto em comum, usualmente observado, principalmente nos servios de Planto fora das clnicas-escola, que consiste na questo da emergncia. Emergere vem do latim e significa mostrar-se, situao crtica ou acontecimento perigoso que aparece subitamente (EstellitaLins, Oliveira e Coutinho, 2006). Refere-se muitas vezes demanda do cliente a emergncia emocional emoo sbita, que oferece risco, perigo. Desta forma, h um encontro nas definies de Planto em contextos diversos, pois os mesmos esto comprometidos com o momento da crise: situao na qual o sofrente, tocado pelo seu sofrimento, ainda se encontra mobilizado para cuidar daquilo que emergiu (Oliveira, Morato e Almeida, 2006, p. 185). Ainda observando as semelhanas do Planto em contextos diversos, observamos a ausncia de um setting teraputico clssico como uma caracterstica usual. Com o advento dos plantes fora das universidades, o plantonista passa a circular em lugares cada vez mais diversos, tornando-se diretamente acessvel queles que o procuram. A desmistificao do setting

39

uma experincia rica, pois viabiliza um movimento de flexibilidade, de acordo com a necessidade da localidade onde se presta o servio. Exemplos encontrados na literatura: PM SP (3. Companhia do 16. Batalho da PM), onde os atendimentos aconteciam na cozinha, conseguindo assim maior aproximao (desmistificao) com os policiais (Pereira, 2006); experincia em um Hospital Psiquitrico, cujos atendimentos davam-se nas alas de internao, prximo sala de espera e rea de visita (Braga e Cautella, 2006); atendimentos a egressos da FEBEM (SP), onde a formalidade de aspectos estruturais de tempo e espao foi transformada (Oliveira, Morato e Almeida, 2006); atendimentos a crianas pequenas em uma creche, onde o espao escolhido por estas para os atendimentos foi sob uma frondosa rvore (Campos, 2008).

1.5 O surgimento do Planto Psicolgico em Fortaleza: o Projeto Florescer

O Projeto Florescer iniciou suas atividades no SPA (Servio de Psicologia Aplicada da UNIFOR) em fevereiro de 2007. No incio de suas atividades, integravam o Projeto um professor supervisor-orientador, uma cosupervisora, quatro psiclogos voluntrios, trs estagirios curriculares e sete graduandos assistentes voluntrios. Em dezembro de 2006, por uma solicitao minha e de alguns assistentes de pesquisa voluntrios da RELUS, (Rede Lusfona de Estudos da Felicidade, laboratrio de pesquisa, poca vinculado ao mestrado em Psicologia da UNIFOR), e considerando a oferta limitada de vagas para estgio40

curricular em Clnica sob a orientao da ACP9, o Prof. Cavalcante Jr. considerou a abertura de um grupo de interveno clnica. Integrando o 2. andar do NAMI (Ncleo de Assistncia Mdica Integrada) a clnica-escola da UNIFOR, chamada de SPA, presta atendimento psicolgico de forma ampla, para todas as faixas etrias crianas, adolescentes e adultos. O SPA um espao estratgico e de alcance social expressivo no atendimento em Psicologia do Estado, especialmente

considerando a associao do NAMI aos quadros do Sistema nico de Sade (SUS). Neste enquadre, diferentes servios de interface na sade (CRAs, CAPs, Hospital e Clnicas-Dia, Clnicas Psicolgicas, Escolas etc) recomendam e encaminham, freqentemente, clientes e usurios para as modalidades de atendimento e acompanhamento no SPA. O Projeto Florescer como um todo se configurou como uma estratgia de insero do psiclogo nas prticas de promoo de sade coletiva e metodologias integrativas de sade. Considerando o SPA como setor do NAMI, e a participao do NAMI no SUS, o Planto Psicolgico do SPA/NAMI foi o servio pioneiro no Estado. Ao longo do ano, a equipe revezava-se em modalidades e horrios de atendimento, ocupando quatro salas individuais (as quatro mais prximas da recepo, com o intuito de facilitar o acesso de clientes com dificuldade de locomoo) e trs salas de grupo. Durante as supervises e atendimentos dos estagirios ao pblico externo, o supervisor e a co-supervisora estiveram

Apesar de haver outros supervisores oferecendo estgio em outras perspectivas humanistas, nenhum atuava dentro dos preceitos da Abordagem Centrada na Pessoa, visto que o termo abordagem fora cunhado por Rogers em 1977, com a publicao do livro Sobre o Poder Pessoal (1986, na ltima verso em portugus) e posteriormente ampliada em Um Jeito de Ser (1983, na ltima edio em portugus). Desta forma, antes do Projeto Florescer no havia nenhum grupo orientando a ACP nessa perspectiva de sua ltima fase, e sim da TCC (Terapia Centrada no Cliente). 41

9

presentes ao longo de todos os turnos e horrios de atendimento, disposio dos estagirios e clientes. A necessidade premente de novos estagirios para trabalho em Psicologia no SPA e a rica aprendizagem supervisionada para psiclogos em formao e jovens terapeutas, que entravam em contato com campos e pblicos distintos ao exerccio da prtica de uma psicologia clnica, fomentou o desenvolvimento, especificamente, de um leque de grupos e enfoques destinados psicoterapia de grupo. Os atendimentos no Planto foram feitos por um psiclogo ou estagirio curricular e um assistente voluntrio (estudante de psicologia). Os assistentes prestavam apoio ao plantonista, s recepcionistas e, em alguns casos, ao prprio cliente, quando, por exemplo, oferecia companhia ldica s crianas trazidas por clientes em atendimento. Toda a equipe, do supervisor aos assistentes, utilizava camisa branca com o nome do Projeto visivelmente identificado, alm de uma ilustrao colorida alusiva ao florescimento humano. De maneira que, s quintas-feiras, qualquer estagirio do Projeto podia ser facilmente identificado na recepo ou nos corredores. Os atendimentos perfaziam durao mdia de 50-70 minutos, vindo, ainda, conforme a necessidade e demanda do cliente, a alcanar os 120-150 minutos. O atendimento de Planto poderia estender-se a duas consultas posteriores, perfazendo trs sesses no total. Na superviso que ocorria na quarta-feira seguinte (de 8h s 12h) ao atendimento, estagirios, psiclogos e assistentes apresentavam suas discusses e questionamentos, informando aos supervisores dos seus42

procedimentos prticos e tericos, realizando-se um balano dos casos e atendimentos da semana anterior e promovendo grupos de estudos em temticas e textos especficos. As tabelas e dados abaixo so pertencentes ao Relatrio TcnicoGerencial do Projeto Florescer 2008 (Cavalcante, Branco, et. al., 2008). Objetiva ilustrar, enquanto panorama geral, o que foi oferecido como servio de Planto Psicolgico nos anos de 2007 e 2008. A primeira tabela mostra a quantidade de clientes, retornos e o total de atendimento das quatorze pessoas (estagirios, psiclogos voluntrios e supervisor) que foram plantonistas entre 2007.1 e 2008.1. Total de atendimentos e retornos do Planto Psicolgico (2007.1 a 2008.1)

Equipe (a)*Althea (a) I** (b) II (c) III (b) IV (b) V (b) VI (a) VII (a) VIII (a) IX (a)X (a)XI (a)XII (a)XIII Total:

Clientes 57 25 9 20 33 20 3 30 33 9 29 18 3 8 297

Retornos 19 4 3 3 10 8 1 1 18 3 15 6 1 1 93

1 Retorno 14 1 1 1 8 4 1 11 2 13 5 1 1 63

2 Retorno 5 3 2 2 2 4 1 6 1 2 2 30

Atendimentos 81 32 14 25 43 32 4 32 53 12 41 26 4 9 408

* Legenda: (a) Estagirio curricular, (b) Psiclogo voluntrio ** Legenda: Para preservar a identidade dos estagirios curriculares, psiclogos voluntrios e supervisor, seus nomes foram substitudos por algarismos romanos, deixando em destaque apenas a estagiria curricular colaboradora desse estudo (Althea). 43

O primeiro nome da equipe do Projeto Florescer, Althea, (do grego aquela que veio para curar) representa os nmeros de nossa colaboradora que atuou no Planto de 2007.1 a 2008.2, sendo, no perodo supracitado, a mais experiente em nmero de atendimentos (81), bem como em clientes atendidos (57). A prxima tabela discrimina a atuao do Projeto Florescer em relao quantidade de retornos (31% dos clientes atendidos retornaram) e os nmeros de atendimentos nicos (69% dos clientes no necessitaram ou no retornaram). Importante observar que nossa colaboradora nessa pesquisa, Althea, manteve um percentual similar ao conjunto do Projeto Florescer (67% de Atendimento nico e 33% de retorno)

Total de atendimentos e retornos do Planto PsicolgicoClientes Atendimento nico Projeto Florescer 297 100% 57 100% 204 93 31% 19 33% Retornos

Porcentagem Geral Althea* Porcentagem

69% 38 67%

* Estagiria colaboradora desse estudo.

E, por fim, para onde os clientes foram encaminhados? A seguinte tabela demonstra o total de encaminhamentos realizados para determinada modalidade de servio, disponvel na clnica-escola (SPA). Somente a coluna externo remete a servios fora da psicologia (fonoaudiologia, neurologia etc.),44

bem como extra-universidade (CAPS, Hospitais psiquitricos, outras clnicas de psicologia).

Total de encaminhamentos aos clientes de Planto (2007.1 a 2008.1)

Desligados Projeto Florescer *Althea 103 15

Individual 86 13

Grupos 96 23

Triagem 05 -

Externo 12 6

Total 302 57

* Estagiria colaboradora desse estudo.

oportuno registrar que, durante o ano de 2007, outros grupos de Planto foram iniciados em diferentes turnos, tendo como abordagens tericas a Psicoterapia Breve Focal e Gestalt-terapia (numa perspectiva

fenomenolgica mundana). No ano posterior, houve ainda implementao desse servio na clnica-escola da Universidade Federal do Cear (UFC), sob orientao da Profa. Dra. Vilma Barreto Paiva e em uma escola de ensino mdio da cidade, como parte do estgio em psicologia escolar, sob a superviso da Profa. Terezinha Teixeira Joca, co-coordenadora do Projeto Florescer. Ambos os servios se revestiam do referencial da ACP.

45

Captulo 2 Procedimentos Metodolgicos: O Mtodo Heurstico

A criao no uma compreenso, um novo mistrio." Clarice Lispector Para iniciar este captulo metodolgico, cabe uma discusso que permeia os pesquisadores mais acurados da psicologia clnica: como o cientista pode estudar as nuances de uma relao psicoteraputica ou uma relao que promova mudana? Ou ainda, como um terapeuta pode apreender esta relao cientificamente? Atualmente, observa-se a tendncia de que cada disciplina busque seus prprios mtodos de aquisio de dados e verificao de resultados (Zaslavsky, 2005). Nesse sentido, h a necessidade da psicologia clnica imprimir esforo para achar e/ou definir sua prpria metodologia de pesquisa, e no tentar simplesmente se adaptar a mtodos extrados de outras cincias, como da filosofia e das cincias sociais, por exemplo. Rogers (1997), pioneiro na pesquisa em psicoterapia, j se deparava com essas indagaes e buscava respostas que ressoassem entre a minha objetividade rigorosa como cientista e a minha subjetividade quase mstica como terapeuta (p. 229). Assim, desenvolveu as primeiras pesquisas utilizando gravaes de sesses, que se tornaram um divisor de guas nesse tipo de estudo. Contemporneo de Rogers (Moustakas, 1995), e tendo vivido a mesma efervescncia do Movimento Humanista norte-americano, Clark E. Moustakas desenvolveu o mtodo para pesquisa em psicoterapia que ser aqui

46

apresentado: Mtodo Heurstico. Dr. Moustakas, professor da Universidade de Columbia, co-fundador da Associao de Psicologia Humanista e Presidente Emrito da Michigan School of Professional Psychology, iniciou sua carreira trabalhando com psicoterapia infantil (Maciel, 2004), abordando depois temas como a solido e o mtodo de pesquisa. Antes de entrarmos no Mtodo abraado por essa pesquisa, necessrio frisar que esta se baseia numa orientao qualitativa (Denzin e Lincoln, 2006), cujo ponto central encontra-se no compromisso humanista do pesquisador qualitativo de estudar o mundo sempre a partir da perspectiva do indivduo (...) em interao (p. 389). Como bricoleur ou confeccionador de colchas (Denzin e Lincoln, 2006), o pesquisador qualitativo utiliza as ferramentas estticas e materiais de seu ofcio, empregando efetivamente quaisquer estratgias, mtodo ou materiais empricos que estejam ao seu alcance. A inveno no apenas fruto da necessidade, uma exigncia da incansvel arte (p. 403, grifos no original), pois devido escassez de ferramentas e um pequeno nmero de peas adequadas, torna-se necessrio inventar, reciclar tecido e panos, transformando-os em lindas e significativas colchas. Concordo com Polanyi (citado por Szymanski e Cury, 2004) quando afirma: costume atualmente representar o processo de investigao cientfica como o estabelecimento de uma hiptese cientfica seguido por sua subseqente testagem. No posso aceitar esses termos. Toda pesquisa verdadeiramente cientfica comea com um esbarrar [do pesquisador] em um profundo e promissor problema e isto em si j a metade da descoberta (p. 357, grifo meu).

O mtodo heurstico (do grego heursko que significa descoberta), norteador mestre desse caminho de descobertas, foi pensado, sentido e47

desenvolvido dentro da matriz psicoteraputica, mais especificamente na psicoterapia humanista com crianas (Maciel, 2004). Ao longo das dcadas de 1960 e 1970, Dr. Moustakas avana numa proposta de um mtodo dentro da cincia, que objetiva resgatar a experincia subjetiva como tal. Vale acrescentar que mtodo e metodologia aqui so pensados dentro de uma fluidez terminolgica, que se aproxima de uma busca, uma postura diversas vezes citada por Moustakas (1990, 2001). Assim, assume papel de retroalimentao do processo de pesquisa, ocasionado pela tomada de conscincia de aspectos e fatores da experincia humana (eurekas), tematizada a partir da experincia do prprio pesquisador (Gamio e Henrquez, 2005; Maciel, 2004), ou seja, descobrindo-se (para dentro) o cientista descobre (para fora) o mundo (Maciel, 2004, p. 31). Portanto, este mtodo foi cunhado como uma investigao cientfica em primeira pessoa, pois[...] produzir (sic!) conhecimento cientfico implica na disposio pessoal, do prprio cientista em primeira pessoa, para essa busca. Disposio pessoal est ancorada em convices humanas profundas, tcitas, de que existe algo que merece a ateno e os fundos de uma comunidade de pessoas, e a imolao de parte da vida de um pesquisador. Neste sentido, o trabalho cientfico uma constante postura de busca (p. 91, grifos do autor).

Incorporar uma postura heurstica uma investida integrao pessoal, pois no se perde o sujeito da pesquisa chamado de pessoa ou copesquisador (Maciel, 2004) no curso da investigao. Configura-se como posio especial para a cincia do humano que galgada pela escola de acepo positiva, que seria uma postura compreensiva. Primeiramente, a partir de uma considerao emptica do individual como individual, e o favorecimento de sua singularidade como ponto de focalizao de onde se privilegiar a construo de perguntas na gerao do conhecimento48

(Gamio e Henrquez, 2005). Busca-se a compreenso. Com-prehendere abraar a existncia humana na sua totalidade (Maciel, 2004). A imerso na tarefa heurstica, como acertadamente afirmou Gadamer (citado por Gamio e Henrquez, 2005), elucidar o milagre da compreenso, que no uma comunho misteriosa de almas, mas uma participao em um significado comum (p. 242).Apesar de todos os avanos em testes e medidas e na anlise do comportamento humano, entender a pessoa desde o seu prprio ponto de vista, luz da sua prpria nica experincia, a maneira mais real de conhec-la. Mais e mais ns estamos descobrindo que a auto-expresso do indivduo na sua experincia verdadeira completa em si mesma. Ver a pessoa como ela mesma se v a maneira mais profunda para conhec-la e respeit-la (Moustakas citado por Maciel, 2004, p. 121).

A metodologia heurstica que foi empregada nessa pesquisa necessita do engajamento do pesquisador para conviver com a experincia (Maciel, 2004, p. 181) pessoal e do outro, um estar-com (Moustakas, 1990), ou seja, adentrar a morada (Polanyi, 1958) do colaborador da pesquisa. Essa postura imprime uma marca peculiar de psicoterapia ao mtodo, pois, similarmente, o terapeuta algum que espera, acolhe e fomenta a manifestao do outro. Esta no se caracteriza por uma postura de passividade, mas se articula num esforo contnuo no sentido de empaticamente acompanhar o outro em sua experincia. Desta forma, pode-se afirmar que psicoterapia, vida e pesquisa se unem profundamente, exigindo a mesma postura, a mesma estratgia heurstica: descobrir novos sentidos, abraar um significado sensvel e global (Gamio e Henrquez, 2005). De acordo com Epstein (2008), vrias pesquisas heursticas foram conduzidas nos ltimos 25 anos, como, por exemplo: Snyder (1989) pesquisou o sentimento de conexo com a natureza; Lusseyran (1987) descreveu a experincia de toque entre cegos; Varani (1985) investigou a experincia de49

mistrio no dia-a-dia; McNally (1982) explorou a experincia da sensibilidade; Rourke (1984) conduziu uma investigao sobre a natureza e o significado da inspirao; Cheyne (1989) descreveu a experincia de crescer numa casa sem pai; MacIntyre (1983) explorou a experincia da introverso e Clark (1988) pesquisou o homem psicologicamente andrgino. 2.1 Fases do Mtodo De acordo com Moustakas (1990), o mtodo heurstico divide-se nas seguintes fases: engajamento inicial, imerso no tpico ou questo, incubao, iluminao, explicao e sntese criativa da pesquisa. A seguir explanaremos de forma sucinta cada fase do mtodo e descreveremos os passos percorridos por esta pesquisa. Engajamento Inicial: a primeira fase da busca heurstica, definido com a abertura e descoberta do pesquisador para o seu foco. Nesse primeiro momento, o mtodo tem incio com o interesse do pesquisador pelo tema, prossegue com uma explorao pessoal e culmina nas implicaes do estudo na literatura, por exemplo. No percurso dessa pesquisa, correspondeu aos seis primeiros meses do programa de mestrado, que eu chamei de passeio horizontal no universo da psicologia clnica. Durante o segundo semestre de 2007, pude adentrar as modalidades do Projeto Florescer de forma ampla. s quintas-feiras, eu permanecia na sala de observao e entrava em contato com os grupos facilitados por estagirios curriculares. Numa semana eram os grupos de ludoterapia com crianas (um grupo de crianas menores at 06 anos, e o outro de maiores at 10 anos) e na outra o grupo de adolescentes e o grupo de adultos. Assim, pude totalizar quatro sesses em cada tipo de grupo.

50

Utilizei como suporte para as minhas impresses o Dirio Experiencial, no qual eu anotava aquilo que eu percebia, via e ouvia no momento em que experienciava. Essa atitude visava preservar a organicidade provocada pela experincia em ato, e no a racionalizao ou a rememorao do vivido. Posteriormente esses dados foram transcritos. A minha postura nessa atividade de coleta de dados no era de mera observadora. No somente a minha ateno era voltada para as falas e os gestos dos clientes e terapeutas e dinmica das sesses, mas eu procurava adentrar morada desse organismo grupo, numa postura de psicoterapeuta j desenvolvida por mim. Entendia que assim seria a melhor maneira de sentir e perceber de forma mais profunda e sensvel a dinmica desses atendimentos. Importante apontar s atribulaes desse tipo de observao, no somente pela dificuldade tcnica (a aparelhagem sonora bastante ruim, gerando rudos e incompreenses das falas), mas por ter exigido uma flexibilidade organsmica para acessar a experincia do outro, mesmo estando e talvez por isso fora do organismo grupo. Sentia-me engessada, sem mobilidade, plastificada. No conseguia me aproximar a contento do que se passava ali naqueles grupos. No sentia o calor, as cores dos fluxos de experincias que ocorriam no outro lado do espelho da sala de observao. Talvez seja extremamente limitante (ou talvez impossvel) para o estabelecimento e apreenso de uma relao teraputica, a qual se pretende emptica, estar isolado em uma sala de observao. Comprovei de fato a diferena quando, em uma manh, tive que assistir a uma sesso do grupo de crianas de dentro da sala de atendimento (na ocasio, haviam perdido s chaves da sala de observao). Desta vez, o fluxo, os sentidos, as impresses

51

me atravessaram de forma mais lmpida e intensa, sem o tamanho esforo que eu empregava quando me encontrava separada na sala de espelho. Devido s limitaes enfrentadas poca, sugeriram-me que

conversasse com os estagirios que facilitavam esses grupos. Assim, alm das observaes s quintas-feiras, fiz algumas entrevistas gravadas que

posteriormente transcrevi (uma com cada estagirio, perfazendo sete entrevistas ao longo desse semestre). As entrevistas eram encontros noestruturados, onde eu questionava algum aspecto observado no grupo, focalizando normalmente no jeito de ser do terapeuta, ou seja, na forma como este estagirio percebia e refletia a sua prtica. O material coletado ainda era somado a uma pesquisa ampla orientada pelo Prof. Cavalcante10. Parte da superviso (duas horas por semana) era gravada por um bolsista que depois tambm transcrevia esse material. Ao final do semestre, somando-se todas as supervises transcritas, as anotaes do meu Dirio Experiencial e as transcries das entrevistas com os estagirios, contabilizaram-se mais de 800 pginas de dados brutos. Tive a oportunidade de ler todo esse material e mergulhar nesse passeio panormico pelas modalidades psicoteraputicas, pela superviso e pelo mundo dos terapeutas em formao. Muitas questes foram compreendidas e muitas outras se tornaram ainda mais complexas. Contudo acredito que o objetivo inicial dessa fase do mtodo foi alcanado, pois a partir do geral me engajei na questo principal dessa pesquisa: O que constitui a atitude clnica do estagirio no Planto Psicolgico?10

Cavalcante, F. S., Jr. (2007). Prticas Psicoeducativas Integradoras (VRPPG0443):

Aprendizagem de tornar-se psicoterapeuta humanista experiencial. Fortaleza: Vice-Reitoria de Pesquisa e Ps-Graduao da Universidade de Fortaleza. 52

Imerso: constitui-se como a segunda fase da minha coleta de dados que, para Moustakas, corresponde mobilizao efetiva da vida e das foras do pesquisador ao redor da questo (Maciel, 2004, p. 186). o momento em que o processo assume a forma de vivncia da questo, mantendo-a de modo constante na mente. Muitas situaes oferecem oportunidades de

aprofundamento, como nesta pesquisa correspondeu ao momento de estar na experincia (Cavalcante, 2008c) com o outro, colaborador ou co-pesquisador, um estagirio de Clnica III, atendente do Planto Psicolgico do Projeto Florescer. Optei por um aprendente da clnica do ltimo semestre de estgio, pois este j possui uma experincia de atendimento de um ano, caracterizando um plantonista em final de formao acadmica. Acredito que o estagirio com mais tempo atuando na clnica pode apreender de forma mais integral a sua experincia e assim possibilitar relatos mais consistentes e profundos para esta pesquisa. O motivo de ser apenas um justificado, primeiramente, pela relao emptica (Rogers, 1976) que foi construda entre pesquisador e copesquisador, necessitando o desenvolvimento da confiana, sintonia e abertura para o desdobramento de sentidos. Por estas razes, nossa co-pesquisadora foi Althea, selecionada dentro dos critrios. Ela foi voluntria e se engajou pessoalmente para participar desta pesquisa. O locus da coleta ocorreu no Servio de Psicologia Aplicada (SPA/NAMI/UNIFOR) onde acontece desde o incio de 2007 o servio de Planto Psicolgico do Projeto Florescer projeto de extenso e interveno clnica coordenado poca pelo extinto laboratrio RELUS (Rede Lusfona de Estudos da Felicidade), sob a superviso do Prof. F. S. Cavalcante Jr., Ph.D.

53

Para a coleta de dados, participei, por oito encontros (s quintas-feiras, dia do funcionamento do Planto Psicolgico do Projeto Florescer), nas seguintes atividades: (1) Atendimento em conjunto: atendemos um total de nove (09) clientes em oito semanas, perfazendo o total de treze atendimentos (13) atendimentos. Os clientes procuraram espontaneamente o servio de Planto e foram atendidos de acordo com a lista de chegada. No havia escolha de clientes (atendamos o prximo da lista, exceto quando aguardvamos um retorno) e nem limite de tempo da sesso. As sesses duraram, em mdia, 60 a 80 minutos. Nos atendimentos, Althea assumiu sua posio de plantonista facilitando o processo do cliente e eu permanecia na posio de assistente, em silncio. Os clientes constituram um pblico heterogneo: a maioria do sexo feminino (somente trs do sexo masculino); com idades diversas (a maioria entre 25 a 40 anos, contudo houve duas crianas at 10 anos e uma mulher com mais de sessenta anos). (2) Encontro Heurstico: aps os atendimentos, nos reunamos numa sala isolada, por cerca de uma hora ou at a estagiria-plantonista solicitar o trmino. Ocorreram momentos de 25, 30 minutos e outro de 50. Os encontros eram gravados e posteriormente transcritos na ntegra por mim. Significou um momento mpar para o

desdobramento dessa pesquisa, pois, sem questes previamente elaboradas, nos disponibilizvamos em nos encontrar (Rogers,1997) uma a outra para desvelar sentidos, impresses, percepes do que fora vivido no momento anterior. Estar na experincia (Cavalcante,

54

2008c) de ser um plantonista, adentrando a sua morada (Polanyi, 1958) e atravs da experincia do outro, compartilhada e retroalimentada (Maciel, 2004) pela minha, corroborou para o desenho final do meu estudo. Portanto, a postura heurstica do pesquisador fomenta as descobertas de sentido do psicoterapeutaplantonista. (3) Dirio Experiencial: momento no qual era feito o registro da minha experincia nos dois momentos anteriores. Ferramenta metodolgica j descrita no momento anterior.

Os oito encontros com a plantonista em formao (Althea) ocorreram sem tema pr-determinado, pois fora necessrio para esta pesquisa manter e fomentar a expresso da experincia quando estas acontecem, objetivando preservar a organicidade (Rogers, 1997) provocada pela experincia e no a racionalizao ou rememorao do vivido. Os encontros eram facilitados por mim, numa atitude de aceitao e acolhimento (Maciel, 2004), estabelecendo uma escuta emptica (Moustakas, 1990; Rogers, 1983), e galgando a promoo de um ambiente propcio (Rogers, 1997) para a construo de sentidos da estagiria-plantonista em sua atuao no servio de Planto Psicolgico. O ato decorrente do exerccio constante de experienciao sensvel pela estagiria, ao refletir sobre seu aprendizado, possibilitou matria viva no s pesquisa como prpria voluntria, que se percebeu enquanto instrumento humano de trabalho promotor de florescimento humano e compreendeu de forma sistemtica sua experincia de aprendizagem vivenciada durante os atendimentos,

55

A privacidade da identidade do colaborador da pesquisa fora resguardada com a utilizao de codinome, Althea, no tendo sido facultada a utilizao do nome verdadeiro para resguardar o princpio tico do sigilo aos clientes atendidos por ela no Planto Psicolgico. Essa etapa do processo heurstico inclui dilogo pessoal, contemplao e intuio. preciso disponibilizar formas de apreender e compreender a experincia. No mtodo heurstico eu me disponibilizo (o que eu sou, o que eu penso, as minhas marcas experienciais) enquanto anteparo para registrar, marcar, a experincia. Desta forma, ao criar situaes como os atendimentos, os encontros, as conversas oportunizo o meu organismo enquanto anteparo-suporte, com o intuito de marcar e registrar a experincia de Althea.

Incubao: o momento de remover a questo da conscincia. Moustakas (1990) explica que nessa fase a questo no est presente o tempo todo. A intuio trabalha sozinha no sentido de acessar os conhecimentos tcitos. Isso necessrio, pois os elementos e nuances que vo sendo encontrados pelo pesquisador podem satur-lo. Essa exausto do tema da pesquisa pode prejudicar a qualidade ou frescor necessrio e comprometer a sua compreenso mais profunda. Desta forma, necessrio desviar o olhar por algum tempo, deixar o espao para que germine a dimenso tcita por si s (Epstein, 2008; Maciel, 2004). Esta etapa do processo heurstico correspondeu aos dois meses de recesso aps o final das oito semanas de coleta de dados. Foi o momento de no abordar os dados brutos j coletados e transcritos, mas pensar em outros

56

aspectos mais amplos da temtica, como o resgate histrico do Planto Psicolgico (captulo 1). Ao manter-me afastada dos dados da pesquisa, pude ampliar minha viso para os aspectos macros do Planto e, assim, apreender elementos inditos at ento para a literatura existente dessa modalidade de atendimento.

Iluminao: esse estgio do mtodo heurstico consiste na interpretao dos significados do fenmeno, e alcanado atravs da intuio e de conhecimentos tcitos. Interpretao aqui significa mais que sobrepor experincias vividas para uma moldura racional. possvel conceber a interpretao como uma execuo musical, onde os aspectos pessoais medeiam e conduzem o conjunto de notas, dando vida singular melodia. Moustakas (1990) diz que necessrio o pesquisador focar-se na experincia interna, analisando pensamentos, sentimentos e impresses, pois a

determinao de significados da experincia nica em cada pessoa. Tendo sido o organismo utilizado enquanto aparato para marcar as experincias, agora ele fomentar eurekas mediante a postura do pesquisador de espera e suporte (Maciel, 2004). Por intermdio da iluminao, elaboram-se as essncias e as qualidades da experincia. necessrio examin-las bem, tendo um olhar muito acurado, para que se obtenham o desvelamento das marcas experienciais. Nesta pesquisa, esta fase correspondeu ao perodo de anlise do material j transcrito. Observei, ao iniciar a leitura dos meus encontros com Althea, que aquelas pginas no me demonstravam a riqueza dos encontros compartilhados. Era algo frio, distante. Os dilogos no me rememoravam o

57

que ns havamos vivido naqueles oito encontros. Ento, resolvi ler o material ao mesmo tempo em que re-escutava as gravaes. Percebi que desta forma era possvel uma reaproximao do que eu realmente sentia, pensava, compreendia naquele dia do encontro. Todos os sentimentos, dvidas, emoes que eram compartilhados, estavam novamente disponveis no meu organismo e eu poderia fomentar e ampliar as percepes das marcas registradas advindas da nossa relao. Esta foi a forma mais fiel e complexa que encontrei para apreender a experincia.

Explicao e Sntese Criativa: quinta fase do mtodo, correspondente ao momento de descrever os elementos que surgiram e tambm entender e explicar os diversos nveis ou camadas de significado do problema, questo ou tema da pesquisa (Maciel, 2004, p. 189). A pesquisa heurstica uma postura de abertura para a descoberta dos significados e sentidos da experincia humana. Assim, exige um processo subjetivo de refletir, analisar e elucidar a natureza do fenmeno sob investigao. Seu objetivo final o de lanar luz sobre um problema, pergunta, ou tema (Douglass e Moustakas, 1985). Na etapa final, o pesquisador organiza os significados da experincia num resumo compreensivo do que foi a essncia dela (Epstein, 2008). A postura heurstica nessa fase (Maciel, 2004) enfatiza a busca por descobertas, que, de forma simples, seria a tomada de conscincia de aspectos da experincia humana dentro do tema proposto, ou seja, iluminar sentidos (Cavalcante, 2008c). Recomenda-se que o pesquisador deve imprimir esforo de dilogo consigo, com a literatura, com outras pessoas, ou seja, com todos os

58

interlocutores possveis, para que se produza um retrato compreensivo (Comprehensive Depiction) (Maciel, 2004, p. 189), que chamaremos de fotografia experiencial. A constituio da fotografia experiencial inicia-se na descrio narrativa dos oito encontros captulo 5 e finalizada no captulo subseqente, onde a fotografia ganha uma moldura conceitual. A postura heurstica empregada nesta pesquisa a de suporte (Maciel, 2004), como um par numa dana. A finalidade da pesquisa cientfica anloga ao ato de limpar um dado de interpretaes, e devolv-lo refinado pessoa que fez a experincia. Dado significa literalmente (Maciel, 2004) algo entregue, confiado num contexto interpessoal. Ento, oferecer suporte, auxiliando e fomentando a experincia do colaborador. Para Moustakas (1990) o essencial para o processo da anlise heurstica atingir o conhecimento profundo e detalhado dos materiais coletados de cada participante e do grupo envolvido na pesquisa (p. 49). Este processo de anlise envolve processos algumas vezes longos de identificao com o enfoque da pesquisa, autodilogo, conhecimento tcito, intuio, um perodo de reflexo solitria, enfoque em uma determinada questo para elucidar os seus componentes, reflexo sobre os quadros de referncias internos (seus conceitos ou corpos de significados) trazidos pelo pesquisador para o processo da pesquisa. Portanto, sinto a imensa responsabilidade de relatar tais dados com toda a preciso possvel, de forma clara e convidativa ao leitor. Sei que a partir da minha compreenso que poderei dar sentido pesquisa e, sabendo disso, utilizarei o recurso da descrio densa, sendo o trabalho final lido e somente finalizado aps o consentimento da minha colaboradora.

59

Documentar o no documentado, sentir o no relatado, significar o que no foi interpretado, so alguns elementos destacados nessa viagem heurstica, que tem minha presena total e escuta plenas oferecidas (Maciel, 2004) ao encontro, em um esforo contnuo para descrever e compreender o mundo perceptual do outro. Em Moustakas, ocorre uma explicitao de um movimento que j aparece esboado em Rogers (Maciel, 2004; Rogers, 1997), onde o psicoterapeuta transforma-se em pesquisador e no investiga para algum, nem algum, mas com: um empreendimento de auto-investigao da o nome do mtodo heurstico, que significa que a busca est includa no fluxo da investigao (Maciel, 2004, p. 111). Isso deve ilustrar como em Moustakas psicoterapia, vida e pesquisa se unem profundamente num processo psicodinmico. E esse foi o movimento almejado por este trabalho.

60

Captulo 3

Atitude Teraputica da Abordagem Centrada na Pessoa

Esta abordagem se realiza quando algum dirige a melhor parte de si mesmo melhor parte do outro e, assim, pode emergir algo de inestimvel valor que nenhum dos dois faria sozinhos. Jonh K. Wood O Planto Psicolgico, motivo e locus dessa pesquisa, localiza-se no corpo terico da Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), erguida por Carl R. Rogers e avanada por seus colaboradores tendo, para mim, em John K. Wood seu interlocutor de maior destaque. imprescindvel adentrarmos a tessitura corpo resultante do entrelaamento ou ligao de partes (Michaelis, 2007) terica que compe esta abordagem, tendo clareza que estamos numa poro especfica das Psicologias Humanistas, bem como da prpria ACP; uma vez que nos referimos na clnica a uma das fases da visada de Rogers (1983), esta obtusamente experiencial.

3.1 O desenvolvimento da ACP

O desenvolvimento da Abordagem Centrada na Pessoa traz implcito o modo pelo qual vai se concebendo e se aprimorando o que Rogers desenvolveu como o relacionamento entre cliente e terapeuta. Este desenvolvimento do seu pensamento conferiu ao campo psicoteraputico uma preocupao com a cientificidade de seu modus operandi (Holanda, 1998, p.

61

100), bem como esteve sempre cercado de uma preocupao filosfica, chegando mesmo a discutir a respeito da natureza da cincia (p.101). A maioria dos comentadores da obra de Rogers a dividem em trs grandes etapas (p. 101), e so eles: Puente (1970), Hart e Tomlinson (1970), Wood (1994), Huizinga (1984) e Bastos (1985).

A Primeira Etapa: A Psicoterapia No-Diretiva

Nesta fase, Rogers mantm a noo firme de que seu esforo era uma tentativa de desarticular a conotao de autoridade relacionada ao terapeuta. Todo o seu percurso de dese