Tim Ingold - ‘Gente como a gente’_ O conceito de homem anatomicamente moderno

download Tim Ingold - ‘Gente como a gente’_ O conceito de homem anatomicamente moderno

of 37

Transcript of Tim Ingold - ‘Gente como a gente’_ O conceito de homem anatomicamente moderno

  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    1/37

    Gente como a gente O conceito de homem

    anatomicamente modernoIngold, Tim. The perception of the environment. Essays on livelihood, dwelling and skill.

    London and New York: Routledge, 2000.

    Traduo: Cima Barbato Bevilaqua

    Nota da tradutora:

    H quase meio sculo, em ensaio que se tornaria justamente clssico (O impacto do

    conceito de cultura sobre o conceito de homem, de 1966), Clifford Geertz criticava a

    noo ento corrente de que a capacidade humana de produzir e transmitir cultura s

    emergiu depois que a evoluo biolgica da espcie virtualmente se completou. Com o

    apoio dos conhecimentos paleontolgicos disponveis poca, Geertz sustentava que a

    cultura, ao invs de se acrescentar a um organismo biologicamente pronto, foi um

    ingrediente essencial no prprio processo de produo do Homo sapiens.

    Embora apresentasse uma perspectiva renovada sobre a natureza humana, o

    argumento reintroduzia implicitamente a prpria premissa que pretendia afastar: a

    universalidade biolgica dos seres humanos passava a ser concebida como

    incompletude, tendo como corolrio a inelutvel dependncia de padres culturais

    para dirigir sua existncia e realizar, de formas sempre particulares, as capacidades

    inerentes espcie. Em sntese, todos os seres humanos comeam (biologicamente)

    iguais e terminam (culturalmente) muito diferentes.

    precisamente essa ideia, mais ou menos consensual entre os antroplogos nas

    dcadas posteriores, que Tim Ingold coloca em questo ao argumentar que as prprias

    diferenas culturais so, num sentido muito preciso, biolgicas. No se trata

    obviamente de reviver velhos dogmas racistas, mas de reconectar biologia e cultura de

    forma produtiva, a partir de uma sofisticada crtica teoria evolutiva neo-darwiniana

    (e, no mesmo movimento, concepo da cultura como um sistema de planos,

    receitas, regras, instrues).

    Como mostra Ingold, a reduo contempornea do biolgico ao gentico que tornanecessrio, para escapar ao racismo, insistir na separao entre evoluo e histria,

    http://www.pontourbe.net/edicao9-traducoes/213-gente-como-a-gente-o-conceito-de-homem-anatomicamente-modernohttp://www.pontourbe.net/edicao9-traducoes/213-gente-como-a-gente-o-conceito-de-homem-anatomicamente-modernohttp://www.pontourbe.net/edicao9-traducoes/213-gente-como-a-gente-o-conceito-de-homem-anatomicamente-modernohttp://www.pontourbe.net/edicao9-traducoes/213-gente-como-a-gente-o-conceito-de-homem-anatomicamente-moderno
  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    2/37

    conferindo aos seres humanos um estatuto fundamentalmente ambguo: de um lado,

    organismos da natureza como todos os demais seres vivos; de outro, as nicas criaturas

    que transcenderam de tal modo o mundo da natureza a ponto de fazer dela um objeto

    de sua conscincia.

    Gente como a gente: O conceito de homem anatomicamente

    moderno[1]

    Introduo:

    A viso ortodoxa

    Permitam-me comear com uma pergunta um tanto cmica. Por que o homem de Cro-

    Magnon no andava de bicicleta? Apresento em primeiro lugar a resposta que sem

    dvida parece bvia: no que lhe faltassem os pr-requisitos anatmicos para tal

    proeza, simplesmente ele viveu numa era muito anterior a que algo to engenhoso e

    complexo como uma bicicleta tivesse sido desenvolvido. E mesmo que tivesse,

    considerando-se a natureza do terreno e o modo de subsistncia predominante, uma

    bicicleta provavelmente teria sido muito pouco til para ele. Em outras palavras,

    embora ele estivesse biologicamente preparado para subir no selim, as condies

    culturais para que andar de bicicleta fosse uma opo vivel ainda estavam ausentes.

    Eu pretendo mostrar, entretanto, que esta resposta est seriamente equivocada, e que

    a busca por uma alternativa mais satisfatria obriga a uma reviso fundamental das

    nossas noes mais bsicas de evoluo, de histria e mesmo da prpria humanidade.

    Em especial, quero argumentar que a ideia de homem anatomicamente moderno, o

    piv em torno do qual giram todas essas outras noes, uma fico analtica cuja

    principal funo encobrir uma contradio situada no cerne da biologia evolutiva

    moderna.

    O homem de Cro-Magnon, descoberto por Louis Lartet na vila de Les Eyzies, Frana, em

    1868, adquiriu a aura de moderno prototpico, embora no seja de modo algum o

    mais antigo representante de seu tipo no registro fssil. Comparado a seuspredecessores os Neandertais arcaicos e, ainda antes, o Homo erectus esse tipo

  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    3/37

    era reconhecivelmente diferente: uma espcie de homem, como escreveu William

    Howells, inteiramente como ns (1967: 240). Na paleoantropologia contempornea,

    os Cro-Magnons so includos, juntamente com todas as populaes humanas

    subsequentes e atuais, no txon subespecfico nico Homo sapiens sapiens. E a

    implicao dessa categorizao que, ao menos no que diz respeito a seus dotesbiolgicos, estes indivduos do Paleoltico Superior estavam dentro do espectro de

    variao da subespcie. Se tivessem nascido em nosso tempo, e crescido em uma

    sociedade como a nossa, eles seriam sem dvida capazes de fazer todas as coisas que

    ns fazemos: ler e escrever, tocar piano, dirigir, andar de bicicleta e assim por diante.

    Ou seja, eles tinham o potencial para fazer todas essas coisas, um potencial que,

    contudo, permaneceu irrealizado no decurso de sua existncia.

    Eu gostaria de retornar agora caracterizao de Howells dos Cro-Magnons como gente

    inteiramente como ns, com o propsito, nesta etapa do argumento, de apresentar o

    que acredito ser a posio ortodoxa na antropologia atual. Poder-se-ia objetar que eles

    no eram de modo algum como ns. Afinal de contas, no viviam em cidades, liam

    livros, escreviam monografias cientficas, tocavam piano ou dirigiam carros. A este tipo

    de objeo, duas rplicas surgem imediatamente. Uma delas salientar que a objeo

    se baseia numa viso estreita e etnocntrica de quem somos ns, uma viso que

    excluiria uma grande proporo da prpria humanidade contempornea. Ao se comparar

    populaes do Paleoltico Superior conosco, a referncia deveria ser a humanidade em

    sua distribuio global, independentemente de variaes culturais. A outra resposta

    qualificar o sentido em que se diz que essas populaes foram modernas. Este no

    deveria ser confundido com o uso convencional na antropologia social e cultural, em

    que a modernidade geralmente associada a alguma noo de sociedade Ocidental

    urbano-industrial. Eles eram como ns biologicamente, mas no culturalmente.

    O que separa os humanos anatomicamente modernos de trinta mil anos atrs (e

    anteriores) de seus descendentes contemporneos, de acordo com a teoria ortodoxa,

    um processo no de evoluo, mas de histria ou, como diriam alguns, de evoluo

    cultural em lugar de biolgica. Isto no sugerir que com o advento dos modernos a

    evoluo de nossa espcie tenha literalmente estancado. Mudanas ocorrem

    continuamente, mas so relativamente pequenas, nada que se compare s

    transformaes verdadeiramente colossais das formas de vida que aconteceram aparentemente em ritmo crescente no curso da histria humana. Se, e em que

  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    4/37

    sentido, essas transformaes podem ser consideradas progressivas uma questo

    debatida com vigor: no obstante, parece haver uma concordncia geral de que a

    histria da cultura tem sido marcada por um incremento cumulativo na escala e

    complexidade de seu componente tecnolgico. Contudo, o processo histrico de

    complexificao da esfera tecnolgica da cultura no foi apenas possibilitado por umaconstituio biolgica estabelecida no Paeloltico Superior; ele tambm no afetou essa

    constituio. O veculo a motor uma inveno moderna, mas o homem atrs do

    volante permanece uma criatura biologicamente equipada para a vida na Idade da

    Pedra!

    Desse modo, no que se refere a sua biologia bsica, ciclistas no so diferentes de

    pedestres, e os pedestres de hoje no so diferentes de seus predecessores do

    Paleoltico Superior. em geral aceito que a locomoo bipedal uma caracterstica

    humana universal, cuja evoluo implicou um conjunto especfico de adaptaes

    anatmicas (Lovejoy 1988). Andar de bicicleta, em contraste, uma habilidade

    adquirida, cujo aparecimento foi relativamente tardio em algumas, mas no em todas,

    as populaes humanas. Embora seu advento tenha sido condicionado por uma longa

    cadeia de circunstncias de inveno e difuso (da descoberta da roda manufatura de

    tubos de ao), bem como de modificao ambiental (a construo de estradas e trilhas),

    ele no suscitou nenhuma reconfigurao da anatomia humana. Em sua estrutura e

    propores, afinal, a bicicleta foi concebida para se ajustar a um corpo humano que

    j havia evoludo para andar, e sua funo mecnica essencial converter a

    movimentao bipedal em rotativa.

    Isto nos reconduz resposta convencional para a pergunta do incio. A razo pela qual o

    homem de Cro-Magnon no andava de bicicleta no tem absolutamente nada a ver com

    biologia. Ou seja, a razo histrica, no evolutiva. A mesma distino[2] em geralinvocada para explicar por que os produtores de ferramentas do Paleoltico Superior

    trabalhavam com pedra lascada em vez de complexos equipamentos mecnicos ou

    eletrnicos. E se absurdo postular uma linha direta de continuidade desde as

    primeiras ferramentas de pedra at o maquinrio moderno, ento igualmente absurdo

    postular uma progresso anloga da locomoo quadrpede para a locomoo em duas

    rodas. E isto porque a transio entre andar sobre quatro ou sobre dois ps pertence

    evoluo, enquanto a transio se quiserem de dois ps a duas rodas pertence histria.

  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    5/37

    Andar e pedalar

    Creio que esta pode ser considerada uma representao justa da viso ortodoxa. Quero

    mostrar agora por que eu penso que ela est errada. Comeo lanando um novo olharsobre o contraste entre andar e pedalar. Supe-se comumente que andar algo com

    que nascemos, enquanto andar de bicicleta um produto da enculturao; em outras

    palavras, presume-se que a primeira uma habilidade inata, enquanto esta adquirida.

    Mas o fato que crianas recm-nascidas no andam. Elas tm que aprendera andar, e

    a ajuda de pessoas mais velhas, j competentes nessa arte, invariavelmente

    mobilizada nesse empreendimento. Em resumo, andar uma habilidade que emerge

    para cada indivduo no curso de um processo de desenvolvimento, por meio doenvolvimento ativo de um agente a criana em um ambiente que inclui educadores

    qualificados, alm de uma variedade de objetos de apoio e um certo tipo de terreno

    (Ingold 1991: 370). Como podemos continuar sustentando que a habilidade de andar

    vem, por assim dizer, pr-embalada no biograma humano? certo que a ampla

    maioria das crianas humanas aprende a andar, e mais, que elas o fazem num perodo

    definido bastante curto. Assim, embora o beb no exatamente aterrisse no mundo

    sobre dois ps, ele dotado de uma agenda interna de desenvolvimento que garante

    que ele ir andar ereto no devido tempo, desde que certas condies estejam presentes

    em seu ambiente.

    Esta ltima ressalva absolutamente fundamental. Crianas privadas do contato com

    cuidadores mais velhos no aprendem a andar alis, sequer sobreviveriam, e esta a

    razo pela qual todas a crianas que sobrevivem efetivamente andam, a menos que

    incapacitadas por acidente ou doena. Pode-se projetar um cenrio futuro no qual as

    necessidades humanas de locomoo seriam inteiramente supridas por veculos sobre

    rodas, ou imaginar a vida sob condies de ausncia de gravidade no espao csmico,

    em que o andar desapareceria. Tais cenrios so reconhecidamente fantsticos, mas

    imagin-los serve para reforar meu ponto de que a capacidade para a locomoo

    bipedal s pode ser dita inata quando se pressupe a presena das condies ambientais

    necessrias para o seu desenvolvimento. Falando estritamente, portanto, o bipedalismo

    no pode ser atribudo ao organismo humano a menos que o contexto ambiental entre

    na especificao do que o organismo .

  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    6/37

    Com este ponto em mente, passo agora de andar a pedalar. As crianas s se tornam

    proficientes em andar de bicicleta, assim como em caminhar, por meio de um processo

    de aprendizagem em que a assistncia de adultos em geral necessria. Em

    comparao com caminhar, porm, as condies para o desenvolvimento da capacidade

    de andar de bicicleta so bem mais restritivas. Obviamente, ningum pode aprender apedalar sem ter uma bicicleta, e o ambiente tambm deve incluir ruas ou trilhas em

    que se possa transitar em duas rodas. Em sociedades industriais contemporneas essas

    condies esto to ubiquamente presentes que nossa tendncia pensar que natural

    que crianas a partir de certa idade sejam capazes de andar de bicicleta, assim como

    so capazes de caminhar. Em outras sociedades, em contraste, as bicicletas podem ser

    raras ou estar completamente ausentes, ou o terreno pode ser bastante imprprio para

    seu uso. E assim a habilidade de pedalar tem uma distibuio muito mais limitada que ade andar.

    Contudo, esta uma diferena de extenso, no de princpio. Se andar inato no

    sentido e apenas no sentido em que, dadas certas condies, deve emergir no curso

    do desenvolvimento, ento o mesmo se aplica a andar de bicicleta. E se pedalar

    adquirido, no sentido em que sua emergncia depende de um processo de aprendizado

    inscrito em contextos de interao social, ento o mesmo se aplica a caminhar. Em

    outras palavras, to errado supor que pedalar dado de modo exgeno

    (independentemente do organismo humano) quanto supor que andar dado de modo

    endgeno (independentemente do ambiente). Tanto andar quanto pedalar so

    competncias que emergem nos contextos relacionais do envolvimento da criana em

    seu ambiente e, portanto, so propriedades do sistema de desenvolvimento constitudo

    por essas relaes.

    Ademais, essas competncias so literalmente incorporadas, no sentido em que seudesenvolvimento implica modificaes especficas, neurolgicas e musculares, e at

    mesmo em caractersticas anatmicas bsicas. Embora as crianas geralmente

    aprendam a andar antes de pedalar, as modificaes suscitadas por andar de bicicleta

    no so simplesmente acrescentadas a uma anatomia, por assim dizer, pr-fabricada

    para caminhar. O corpo humano no pr-fabricado para coisa alguma, ao contrrio,

    sofre contnuas mudanas ao longo do ciclo de vida medida em que impelido ao

    desempenho de tarefas diversas. Com efeito, as presses e esforos recorrentes da vidacotidiana no afetam apenas o desenvolvimento relativo de diferentes msculos;

  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    7/37

    deixam tambm suas marcas no prprio esqueleto. Transportar cargas na cabea afeta

    os ossos da parte superior da coluna; agachar-se fora os joelhos, o que resulta em

    marcas na patela; tambm andar de bicicleta, sem dvida, deixa vestgios.[3] claro

    que a bicicleta foi projetada para uma criatura j acostumada locomoo bipedal, de

    modo que andar de bicicleta no requer nenhum grande reajustamento da anatomiahumana. Os ciclistas continuam podendo andar a p, e duvidoso que mesmo o

    observador mais perspicaz possa distinguir um ciclista de um no-ciclista, a menos que

    os ponha prova. Mas se nenhum nefito consegue manter o equilbrio e a coordenao

    numa primeira tentativa, ningum jamais desaprende a andar de bicicleta. Esses fatos

    indicam que o exerccio das habilidades sensoriais e motoras necessrias para andar de

    bicicleta deixa uma impresso anatmica indelvel, pelo menos na normalmente

    invisvel arquitetura do crebro. De fato, esta concluso sustentada por pesquisasneurolgicas recentes que mostram, como relatam Kandel e Hawkins, que nossos

    crebros esto constantemente mudando em termos anatmicos, inclusive quando

    aprendemos (1992: 60).

    luz dessas consideraes talvez no seja absurdo, afinal, situar a emergncia,

    respectivamente, de andar e pedalar no interior do mesmo processo geral de evoluo

    isto , de uma evoluo dos sistemas de desenvolvimento que sustentam essas

    capacidades. E uma vez que introduzimos o contexto ambiental de desenvolvimento em

    nossa especificao do que um organismo , segue-se que um ser-humano-no-ambiente-

    A no pode ser a mesma espcie de criatura que um ser-humano-no-ambiente-B. Assim,

    o homem de Cro-Magnon era de fato uma criatura muito diferente do ciclista ou

    motorista urbano de hoje. Ele no era como ns nem mesmo biologicamente. Ele

    pode ter se parecido conoscogeneticamente, mas isso outra questo. De que maneira

    a biologia veio a ser identificada com a gentica um problema na histria das ideias

    ao qual voltarei mais adiante; por ora suficiente dizer que tal identificao j est

    implcita na noo de que cada indivduo dotado de sua constituio biolgica no

    momento da concepo. Antes de discutir essa noo de modo mais detalhado, eu

    gostaria de examinar uma rea na qual surgem questes muito prximas s suscitadas

    em minha comparao entre andar e pedalar, mas que tem sido palco de controvrsias

    muito mais srias: a evoluo da linguagem.

    Fala e escrita

  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    8/37

    Reconhece-se em geral que o homem de Cro-Magnon, como um paradigma da

    modernidade anatmica, possua uma capacidade plenamente desenvolvida para a

    linguagem. Ele podia falar to bem quanto voc ou eu. Mas no podia ler nem escrever.

    Comeo com a comparao entre a fala e a escrita porque ela oferece o paralelo mais

    bvio com a comparao entre andar e pedalar. De acordo com a viso ortodoxa, acapacidade para a linguagem um universal humano, algo que todos ns recebemos

    como parte de uma constituio biolgica comum estabelecida no Paleoltico Superior,

    se no antes (No me preocupo aqui com os debates relativos a datao). A escrita, em

    contraste, uma tecnologia da linguagem que surgiu de modo independente em vrias

    partes do mundo como resultado de eventos especficos de inveno e difuso, e que

    mesmo hoje de modo algum compartilhada universalmente. A capacidade para a

    linguagem, ento, um produto da evoluo; a capacidade de ler e escrever, umproduto da histria. A primeira considerada inata, a segunda adquirida. A

    incapacidade do Cro-Magnon de ler e escrever, assim como sua incapacidade de andar

    de bicicleta, no tem nada a ver com sua biologia. O que ocorre que, na poca em

    que ele viveu, os desenvolvimentos culturais que culminaram na inveno dos sistemas

    de escrita ainda no haviam seguido seu curso.

    Eu penso que esta viso errada, pelas razes que j expus. Bebs humanos no

    nascem falando, assim como no nascem andando. Sua aptido para a linguagem se

    desenvolve, atravs de uma srie de estgios razoavelmente bem definidos. O apoio de

    cuidadores capazes de falar, e a presena no ambiente de um conjunto rico e altamente

    estruturado de caractersticas significativas so essenciais para o desenvolvimento

    normal da linguagem. Como essas condies esto quase invariavelmente presentes, a

    imensa maioria das crianas aprende a falar sem dificuldade, e as excees so aquelas

    cujo desenvolvimento obstado por alguma outra limitao. As condies que devem

    ser preenchidas para que uma criana aprenda com sucesso a ler e escrever so,

    naturalmente, muito mais restritivas. Com efeito, quais so essas condies um tema

    de intensos debates, especialmente em crculos pedaggicos. Uma vez que as

    habilidades e prticas de escrita so de fato extremamente diversas, nada tendo em

    comum alm da representao grfica de palavras, as condies necessrias para sua

    aquisio so, com toda a probabilidade, igualmente variveis (Street 1984). Mas isto

    no afeta meu argumento principal, a saber, que a escrita no acrescentada, pela

    enculturao, a uma constituio humana biologicamente preparada para a fala. Em vez

    disso, tanto a habilidade de falar quanto a de escrever emergem num processo contnuo

  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    9/37

    de modificao corporal, envolvendo tanto uma sintonia fina de habilidades vocais-

    auditivas e manuais-visuais como as mudanas anatmicas correspondentes no crebro,

    um processo que ocorre nos contextos de engajamento do aprendiz com outras pessoas

    e objetos diversos em seu ambiente. Ambas as capacidades, em suma, so propriedades

    de sistemas de desenvolvimento.

    Sem tomar partido na controvrsia sobre se os assim chamados humanos arcaicos,

    tipificados pelo homem de Neanderthal, podiam falar, h considervel acordo entre os

    paleoantroplogos modernos de que esta capacidade ao menos em sua forma

    plenamente desenvolvida no era compartilhada por homindeos pr-humanos mais

    antigos como o Homo erectus e o Homo habilis. A questo a que precisamos responder,

    porm, a seguinte: de que maneira, e se, a incapacidade de falar desses primeiros

    homindeos difere da incapacidade de ler e escrever dos caadores-coletores do

    Paleoltico Superior? Para recordar uma distino que introduzi anteriormente[4], no

    contexto de uma comparao entre as capacidades tcnicas de chimpanzs e as de

    humanos caadores-coletores, como podemos justificar a atribuio das primeiras a

    uma incapacidade inata, enquanto estas so atribudas ausncia de condies

    histricas? Se o homem de Cro-Magnon, caso vivesse no sculo XX, seria capaz de

    dominar as habilidades da escrita, por que o Homo erectus, se tivesse vivido no

    Paleoltico Superior, no poderia ter tido o domnio da linguagem?

    Uma questo de certo modo comparvel surge no contexto da pesquisa sobre as

    capacidades lingusticas dos grandes smios, especialmente dos chimpanzs. Criados em

    condies naturais isto , sem contato significativo com humanos , os chimpanzs

    no aprendem a falar. Pesquisas recentes, contudo, indicam de modo convincente que

    chimpanzs criados em um ambiente humano, no convvio com cuidadores que falam,

    so capazes de adquirir espontaneamente uma competncia lingustica sinttica esemntica equivalente de crianas pequenas (Savage-Rumbaugh e Rumbaugh 1993).

    Isto prova que, ao contrrio das expectativas, os chimpanzs e, por analogia, os

    primeiros homindeos tm ou tiveram uma capacidade para a linguagem, ainda que

    limitada? Devemos acreditar que, graas ao legado de sua ancestralidade comum com os

    humanos, tal capacidade pr-instalada, como um dote hereditrio, na mente de cada

    chimpanz individual, aguardando simplesmente circunstncias ambientais propcias

    para vir tona?

    Penso que no, porque a prpria questo se baseia numa falsa premissa, a saber, que a

  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    10/37

    capacidade para a linguagem algo cuja presena ou ausncia pode ser atribuda a

    indivduos de uma espcie, a despeito dos contextos ambientais de seu

    desenvolvimento. Com efeito, no faz nenhum sentido perguntar se chimpanzs ou

    homindeos tm ou tiveram linguagem, como se ela estivesse programada de

    antemo dentro deles. A definio biolgica de espcie depende da possibilidade deuma especificao independente de contexto: um chimpanz um chimpanz, Pan

    troglodytes, seja ele criado entre outros chimpanzs ou entre humanos, na floresta ou

    no laboratrio. Mas o chimpanz-em-um-ambiente-de-outros-chimpanzs no de

    forma alguma o mesmo tipo de animal que o chimpanz-em-um-ambiente-de-humanos:

    a este ltimo pode ser atribuda uma capacidade rudimentar para a linguagem que falta

    ao primeiro. Esta capacidade, como assinalou Dominique Lestel, o resultado de um

    processo de desenvolvimento situado no contexto peculiar da comunidade hbridahumano-animal estabelecida para os fins da pesquisa sobre a linguagem de grandes

    smios (Lestel 1998: 13). E embora este contexto possa parecer deveras excepcional,

    no obstante verdade que qualquer processo de desenvolvimento deve envolver um

    organismo em relaes que atravessam as fronteiras dos agrupamentos taxonmicos

    convencionais. Segue-se que se possvel mostrar que uma capacidade como a

    linguagem surge como uma propriedade emergente de um sistema de desenvolvimento

    composto por essas relaes, ento ela no pode ser atribuda a uma espcie.(Inversamente, atribuir linguagem a espcies automaticamente ter que recorrer a uma

    viso inatista que envolve alguma forma de pr-instalao neural que viria

    miraculosamente pronta.)

    A noo de capacidade para a linguagem em si mesma profundamente

    problemtica. A explicao ortodoxa, que atribui esta capacidade aos humanos

    anatomicamente modernos, requer que ela seja claramente distinguida, como um

    universal humano, da capacidade de falar esta lngua e no aquela. A competncia de

    algum em sua lngua materna tida como um produto da enculturao, no algo dado

    como parte de sua constituio biolgica como membro da espcie humana. Mas as

    crianas humanas no nascem com um programa inato (um dispositivo de aquisio da

    linguagem) para assimilar um programa adquirido (na forma de regras de sintaxe de

    uma lngua particular). E isto porque, quaisquer que sejam os dispositivos utilizados no

    processo de aquisio da linguagem, eles mesmos precisam ser formados num contexto

    de desenvolvimento que o mesmo que aquele no qual a criana aprende a lngua da

    sua comunidade. No existem, em outras palavras, dois processos distintos e sucessivos

  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    11/37

    o primeiro envolvendo a pr-instalao do crebro para a linguagem, o segundo

    provendo um contedo sinttico e semntico especfico , porque ao aprender a falar

    da maneira como as pesoas em seu entorno falam, e com a assistncia e o apoio ativo

    delas, que as conexes neurolgicas que garantem a competncia lingustica da criana

    so forjadas. Consequentemente, falantes de lnguas diferentes, expostos em estgioscrticos de desenvolvimento a padres distintos de estimulao acstica, em ambientes

    diversos, tambm iro diferir nos aspectos de sua organizao neural envolvidos na

    produo e interpretao de enunciados verbais.[5]

    Em suma, somente pela separao artificial dos aspectos mais gerais e mais

    particulares de um sistema total de desenvolvimento, no interior do qual emergem as

    habilidades da fala, que a linguagem pode ser identificada como uma capacidade

    universal, em contraposio capacidade de falar uma lngua e no outra. E, nesse

    sentido, falar muito parecido com andar. No entanto, como Esther Thelen e seus

    colaboradores mostraram numa srie de estudos sobre o desenvolvimento motor

    infantil, no existe uma essncia do andar que possa ser isolada do desempenho da

    prpria ao em tempo real (Thelen 1995: 83). Logo, falar de locomoo bipedal ou

    de linguagem como atributos universais, distintos das mltiplas habilidades de andar

    e falar tal como efetivamente utilizadas na vida cotidiana de comunidades humanas,

    reificar o que , na melhor das hipteses, uma abstrao analtica conveniente. Alm

    disso, falar, assim como andar, uma realizao do organismo humano como um todo,

    no simplesmente a expresso comportamental de um mecanismo cognitivo instalado no

    organismo, para o qual serviria de veculo. Andar e falar so, na expresso de Mauss,

    tcnicas do corpo (1979 [1934]: 97-123). Ns trazemos estas tcnicas conosco,

    conforme o modo como nossos corpos foram formados em e atravs de um processo de

    desenvolvimento.

    O corolrio desta concluso, porm, muito radical. invalidar, de uma vez por todas,

    a presuno profundamente arraigada de que as diferenas de lngua, postura corporal

    e assim por diante, que somos inclinados a chamar de culturais, sejam sobrepostas a um

    substrato pr-constitudo de universais biolgicos humanos. No podemos mais nos

    contentar com a noo superficial de que todos os seres humanos comeam

    (biologicamente) iguais e terminam (culturalmente) muito diferentes. Consideremos,

    por exemplo, esta formulao de Geertz: Um dos fatos mais significativos a nossorespeito pode ser, finalmente, que todos ns comeamos com o equipamento natural

  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    12/37

    para viver milhares de espcies de vidas, mas terminamos por viver apenas uma

    espcie (1973: 45)[6]. Meu argumento, contra Geertz, que os seres humanos no so

    naturalmente pr-equipados para nenhum tipo de vida; em vez disso, o equipamento

    que possuem se constitui, por meio de um processo de desenvolvimento, medida em

    que eles vivem suas vidas. Este processo no seno aquele pelo qual eles adquirem ascompetncias apropriadas para o tipo de vida particular que levam. Aquilo com que

    cada um de ns comea , pois, um sistema de desenvolvimento. Segue-se que as

    prprias diferenas culturais uma vez que elas emergem no processo de

    desenvolvimento do organismo humano em seu ambiente so biolgicas. Antes de

    examinar as consequncias dessa concluso, preciso recuar um passo para mostrar

    como biologia e cultura foram separadas. Com isso, voltarei reconsiderao da noo

    de dotes biolgicos.

    O genoma e o gentipo

    Como j indiquei, supe-se que os humanos anatomicamente modernos sejam

    biologicamente dotados no apenas do bipedalismo, mas tambm de inmeros outros

    atributos, da linguagem a capacidades cognitivas e motoras sofisticadas,

    frequentemente agrupados na rubrica geral de capacidade para a cultura. Permitam-me

    lembrar-lhes do comentrio de Lieberman[7] segundo o qual, a despeito de todos os

    monumentos ao avano tecnolgico humano que grassam a paisagem, os indivduos de

    hoje so essencialmente dotados da mesma constituio biolgica de seus

    predecessores de trinta mil anos atrs. Esse dote, ento, deve ser legado aos indivduos

    a cada gerao sucessiva, independentemente dos contextos ambientais diversos nos

    quais eles crescem como pedestres ou ciclistas, como fabricantes de ferramentas de

    pedra ou operadores de mquinas, como caadores-coletores ou citadinos, e assim por

    diante. Em outras palavras, trata-se de uma especificao do organismo humano

    independente do contexto, conferida a todo e qualquer membro da espcie no

    momento da concepo.

    Na biologia moderna, o termo tcnico para tal especificao independente do contexto

    gentipo. Em contraste, para caracterizar a forma que o organismo efetivamente

    assume em termos de sua morfologia exterior e de seu comportamento, tal como serevela em um contexto ambiental concreto especificar seu fentipo. Uma premissa

  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    13/37

    fundamental da teoria evolutiva, em sua atual roupagem neo-darwiniana, que

    somente as caractersticas do gentipo, e no as do fentipo, so transmitidas atravs

    das geraes. Nesse princpio se baseia a diviso convencional entre ontogenia e

    filogenia, ou entre desenvolvimento e evoluo. Enquanto desenvolvimento se refere ao

    processo pelo qual, na histria de vida do indivduo, o gentipo inicial realizado naforma concreta de um fentipo ambientalmente especfico, evoluo diz respeito

    mudana gradual, ao longo de um grande nmero de geraes sucessivas, do prprio

    gentipo.

    Figura 1 Representao esquemtica da distino ortodoxa entre evoluo e

    desenvolvimento. G1 G4 so gentipos sucessivos ligados em uma sequncia ancestral-

    descendente. P1 P4 so os respectivos fentipos gerados sob condies ambientais E1

    E4. As setas verticais representam um percurso filogentico intergeracional, as setas

    horizontais representam processos ontogenticos circunscritos a cada gerao.

    Mais exatamente, a frequncia dos elementos constitutivos do gentipo em

    populaes de indivduos que sofreria mudana evolutiva, atravs de um processo devariao pela seleo natural.

    http://www.pontourbe.net/images/edicao9/ingold1.jpg
  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    14/37

    Para fazer essa teoria funcionar, preciso haver um veculo que sirva para transportar

    os elementos da especificao formal do organismo a saber, os traos genticos de

    um local de desenvolvimento a outro, anunciando o incio de um novo ciclo de vida.

    Com a descoberta do DNA, acreditou-se que tal veculo, h muito tempo previsto, tinha

    sido afinal encontrado. A molcula de DNA formada por uma cadeia muito longa debases nucleotdicas (em torno de trs bilhes nos seres humanos, dentro dos vinte e trs

    cromossomos de cada clula do corpo), cada uma das quais de um tipo entre apenas

    quatro possveis. Essa molcula tem duas propriedades crticas. Primeiro, ela est

    associada a uma cadeia complementar que, tal como um negativo fotogrfico, fornece o

    modelo para um processo de replicao qumica que resulta na sntese de novas cadeias

    de DNA com exatamente a mesma sequncia de bases do original. Em segundo lugar,

    segmentos da molcula, de comprimento da ordem de dez mil bases, orientam a sntesede protenas especficas cuja composio determinada pela sequncia linear de

    bases no segmento correspondente. Essas protenas, por sua vez, so os componentes

    fundamentais do organismo vivo. Assim, o complemento total de DNA na clula, tambm

    conhecido como genoma, codificaria em sua sequncia de bases uma especificao

    completa do organismo ao qual a clula pertence.

    Para explicar essa codificao, os geneticistas frequentemente recorrem linguagem da

    teoria da informao (Medawar 1967: 56-7). O genoma, dizem, carrega uma mensagem

    que, traduzida aproximadamente, significa construa um organismo de tal-e-tal tipo

    isto , conforme as especificaes formais do gentipo. Mas, de fato, a teoria da

    informao, tal como desenvolvida nos anos de 1940 por Norbert Wiener, John von

    Neumann e Claude Shannon, empregava a noo de informao num sentido

    especializado que tem pouco a ver com o modo como o termo comumente entendido

    isto , para se referir ao contedo semntico de mensagens trocadas entre emissores e

    receptores. A informao, para esses tericos, no tinha qualquer valor semntico; ela

    no significava nada. Nos termos deles, uma sequncia aleatria de letras poderia ter o

    mesmo contedo informacional que um soneto de Shakespeare (Kay 1998: 507). Este

    ponto, entretanto, perdeu-se inteiramente para os bilogos moleculares que, tendo

    compreendido que a molcula de DNA poderia ser considerada como uma forma de

    informao digital no sentido tcnico da teoria da informao, saltaram imediatamente

    para a concluso de que ela se constitui como um cdigo com um contedo semntico

    especfico. Entretanto, o ponto no se perdeu para os prprios tericos da

    comunicao, que repetidamente alertaram para a confuso entre o sentido tcnico de

  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    15/37

    informao e seu correlato genrico, e assistiram consternados consagrao das

    metforas de mensagem, linguagem, texto e assim por diante numa biologia

    aparentemente intoxicada com a ideia do DNA como um livro da vida.[8]

    O resultado dessa confuso foi que o modelo terico da informao, tal comoreencarnado no contexto da cincia biolgica, passou a girar em torno de mensagens e

    sua transmisso. uma exigncia do modelo, assim concebido, que a mensagem a ser

    transmitida seja primeiramente fragmentada em seus elementos constitutivos mnimos

    de significado, cada um dos quais ento representado, de forma codificada, num meio

    fsico apropriado. Na comunicao verbal, por exemplo, diz-se que os conceitos so

    representados por combinaes distintas de sons (no caso da fala) ou de traos grficos

    (no caso da escrita). Nesta forma fsica, eles so apreendidos por um receptor que, por

    meio de um processo inverso de decodificao, recupera os significados originais e os

    combina para reconstituir a mensagem. No caso da transmisso gentica, os elementos

    mnimos de significado corresponderiam a caracteres ou traos, cada um deles

    representado por um segmento de DNA com uma sequncia de bases distinta. Assim

    como o signo lingustico compreendido como a unio entre um conceito particular e

    um padro sonoro particular, o gene veio a ser concebido como a unio entre um trao

    particular e o seu segmento correspondente da molcula de DNA.

    Trao Gentipo

    Gene

    http://www.pontourbe.net/images/edicao9/ingold2.jpg
  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    16/37

    Segmento de DNA Genoma

    Conceito Representaes mentais

    Palavra

    Padro sonoro Mundo fsico

    Figura 2 Uma representao esquemtica da analogia entre genes e palavras comosignos.

    Deixo para mais tarde a questo de at que ponto este modelo de transmisso de

    informao descreve de forma adequada o que ocorre mesmo no discurso verbal

    ordinrio. Por ora basta dizer que o modelo est fundado em uma separao ontolgica

    entre mente e mundo. Com efeito, esta separao intrnseca prpria noo de

    informao em seu sentido original ideia de que a forma introduzida nos contextos

    de interao do mundo real. Supe-se que a mensagem ou instruo a ser transmitida

    preexista na mente do emissor e seja traduzida em um meio fsico a partir de um

    conjunto de regras de codificao inteiramente independentes dos contextos nos quais

    ela emitida ou recebida. claro que o modo como uma mensagem, uma vez recebida,

    ser interpretada, pode depender da situao, mas a prpria mensagem deve ser

    especificada de forma no ambgua. Da mesma maneira, se devemos supor que o

    genoma transporta informao codificada de um contexto de desenvolvimento a outro,

    ento a mensagem isto , a especificao genotpica deve preexistir a sua

    representao no DNA e conectar-se a ele por meio de regras de codificao

    independentes do contexto. Em outras palavras, deve ser possvel ler cada elemento

    do gentipo cada trao contido em determinado segmento de DNA,

    independentemente das condies locais de desenvolvimento. Contudo, assim comouma mensagem recebida pode ser interpretada de modo diferente em circunstncias

    diferentes, tambm o gentipo ser materializado de diferentes maneiras conforme o

    contexto ambiental, conduzindo s variaes observadas na forma fenotpica.

  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    17/37

    MENSAGEM

    Codificao independente do contexto

    MENTE

    ---------------------------------------------------------------------------------------

    Contexto MUNDO

    VECULO

    INTERPRETAO

    (dependente do contexto)

    GENTIPO

    MENTE

    -----------------------------------------------------------------------------

    Contexto MUNDO

    GENOMA

    http://www.pontourbe.net/images/edicao9/ingold3.jpg
  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    18/37

    FENTIPO

    Figura 3A relao entre mensagem, veculo e interpretao (acima) e seu anlogo no

    domnio biolgico (abaixo).

    O problema inerente a esse tipo de explicao pode ser colocado sob a forma de uma

    questo simples: onde est o gentipo? Onde, em outras palavras, est a especificao

    formal que de acordo com o modelo seria importada com o genoma para o contexto

    de inaugurao de um novo ciclo de vida, como um dote biolgico? Podemos admitir

    que o organismo recm-concebido vem a existir com seu complemento de DNA; tomado

    em si mesmo, porm, o DNA no especifica nada. Afinal, ele apenas uma molcula,e uma molcula consideravelmente inerte. Na realidade, o DNA nunca existe em si

    mesmo, exceto quando isolado artificialmente no laboratrio. Ele existe dentro de

    clulas, que so partes de organismos, eles prprios situados em ambientes mais

    amplos. E somente em virtude de sua incorporao na maquinaria viva da clula que

    as molculas de DNA tm os efeitos que tm. Sozinhas, elas no produzem cpias de si

    mesmas nem constroem protenas, muito menos organismos inteiros (ver Lewontin 1992:

    33, para uma exposio excepcionalmente lcida deste ponto). Logo, o DNA no umagente, mas um reagente, e as reaes particulares que ele pe em movimento

    dependem do contexto total do organismo no qual ele est situado. somente

    pressupondo tal contexto que podemos dizer para que qualquer gene particular

    (Ingold 1991: 368). Dito de outro modo, a maquinaria celular que l o DNA, e essa

    leitura parte integrante do prprio desenvolvimento do organismo em seu ambiente.

    No existe, portanto, decodificao do genoma que no seja em si mesma um

    processo de desenvolvimento; no existem atributos de forma que no sejam originadosno interior desse processo; no existe uma especificao do organismo que seja

    independente do seu contexto de desenvolvimento.

    Assim, retomando a questo proposta acima onde est o gentipo? , s pode haver

    uma resposta: na mente do bilogo. O gentipo, eu diria, o produto das tentativas

    dos bilogos de escrever um programa ou algoritmo do desenvolvimento do organismo,

    na forma de um sistema coerente de regras epigenticas. Essas regras so derivadas por

    abstrao das caractersticas observadas no organismo, de maneira anloga ao modo

    como um linguista derivaria as regras da sintaxe, por abstrao, a partir de uma

  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    19/37

    amostra de enunciados registrados uma analogia explicitamente reconhecida na noo

    de biograma. Ademais, o mesmo truque aplicado: como diz Bourdieu (1977: 96), ao

    se transferir ao objeto de estudo a exterioridade da relao do observador para com

    ele, esse objeto aparece como um simples veculo para um sistema interiorizado de

    princpios racionais, uma espcie de inteligncia instalada no corao do organismo,dirigindo sua atividade a partir de dentro. Assim como o linguista considera a fala como

    a aplicao de estruturas sintticas localizadas na cabea dos falantes, o bilogo

    considera o desenvolvimento e o comportamento do organismo como tendo sua fonte

    generativa em um biograma inato. Em ambos os casos aspectos de forma, abstrados dos

    contextos em que eles surgem, so convertidos em elementos de um programa que

    supostamente precede e governa os processos de sua produo. Como uma explicao

    da gnese da forma, a circularidade deste argumento no requer mais nenhumaelaborao.

    Nada ilustra melhor a transferncia, para o organismo, dos princpios da relao externa

    do observador para com ele, que o destino do prprio conceito de biologia. Referindo-se

    inicialmente aos procedimentos envolvidos no estudo cientfico de formas orgnicas, a

    biologia veio a ser vista como uma estrutura de princpios racionais literalmente um

    bio-logos supostamente situada nos prprios organismos, e orquestrando sua

    construo. Para qualquer organismo particular, este bio-logos , naturalmente, o

    gentipo. Aqui reside, pois, a explicao para a identificao, assinalada acima, entre

    biologia e gentica. Em ltima anlise, esta identificao trai um logocentrismo que a

    biologia compartilha com todo o empreendimento da cincia natural Ocidental: o

    pressuposto de que os fenmenos manifestos do mundo fsico so obra da razo. Mas a

    razo que a cincia v em operao neles a sua prpria, refletida no espelho da

    natureza.

    Forma e desenvolvimento

    Se os organismos no recebem sua forma, com o genoma, como um dote biolgico,

    ento como explicar a estabilidade da forma atravs das geraes? A resposta est na

    observao de que a vida de qualquer organismo inaugurada com muito mais que seu

    complemento de DNA. De um lado, como aponta Lewontin, o DNA est contido em umvulo que, antes mesmo da fertilizao, est equipado por meio do seu prprio

  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    20/37

    desenvolvimento com os pr-requisitos essenciais para promover o crescimento futuro.

    Ns herdamos no apenas genes feitos de DNA, mas uma intrincada estrutura de

    maquinaria celular feita de protenas (Lewontin 1992: 33). De outro, esse vulo no

    existe no vazio, mas em um ambiente j estruturado. A vida comea, pois, com o DNA,

    em um vulo, em um ambiente. Ou, como Oyama coloca sucintamente, de modo muitoliteral, o que transmitido ou disponibilizado na reproduo um genoma e um

    segmento do mundo (1985: 43, nfase minha). Juntos eles constituem um sistema de

    desenvolvimento, e no funcionamento dinmico desse sistema nas interaes

    complexas entre componentes internos ao organismo (incluindo o genoma) e situados

    alm de seus limites que a forma gerada e mantida (Ho 1991: 346-7).

    Segue-se que nenhum componente particular como o DNA pode ser privilegiado como

    aquele que contm a forma que os outros expressam, uma vez que a prpria forma

    uma propriedade emergente do sistema total que consiste nas relaes entre eles.

    Uma mudana em qualquer componente do sistema, seja no genoma ou em algum

    aspecto do ambiente interior ou exterior ao organismo, na medida em que altera os

    parmetros de desenvolvimento, pode produzir uma mudana significativa na forma; as

    possibilidades de mudana, porm, no so ilimitadas, restringem-se gama de formas

    que podem ser geradas pelas propriedades da organizao dinmica do sistema. Desse

    modo, a explicao para a estabilidade intergeracional da forma no se encontra na

    fidelidade da replicao do DNA, mas nas potencialidades de auto-organizao de todo

    o campo de relaes no qual o desenvolvimento ocorre (Goodwin 1988)[9].

    importante precisar em que esta concluso difere daquilo que geralmente aceito na

    biologia evolutiva. A questo de saber se os organismos so determinados por sua

    natureza [nature] ou por seu desenvolvimento [nurture], pela constituio inata ou pelo

    condicionamento ambiental, h muito foi declarada obsoleta, tendo dado lugar a umaperspectiva interacionista segundo a qual cada organismo, em qualquer momento de

    seu ciclo de vida, o produto de uma complexa e contnua interao entre fatores

    genticos e ambientais. Naturalmente, argumenta-se, os organismos assumem

    aparncias diferentes em ambientes diferentes. Pressupe-se, contudo, que essas

    diferenas ambientalmente induzidas revelam to somente o potencial de variao

    daquilo que essencialmente o mesmo organismo, e que apenas as diferenas

    atribuveis modificao gentica atestam a mudana evolutiva do prprio organismo.E precisamente nesta pressuposio, com seu privilgio implcito do genoma como o

  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    21/37

    verdadeiro portador da forma orgnica, que se permitiu que repousassem as distines

    convencionais entre gentipo e fentipo, e entre evoluo e desenvolvimento.

    Para a teoria ortodoxa, estas distines so crticas. Evoluo, como vimos, referir-se-ia

    a mudanas intergeracionais no gentipo; desenvolvimento, traduo, em cadagerao, do gentipo no fentipo (ver Figura 1). Isto no dizer que esses processos

    sejam concebidos como no estando relacionados. Reconhece-se, por um lado, que as

    circunstncias do desenvolvimento na medida em que incidem na replicao gentica

    podem exercer uma influncia na evoluo e, por outro, que o gentipo modificado

    pela evoluo que estabelece a programao para o desenvolvimento (Hinde 1991: 585).

    Mas a teoria exclui qualquer possibilidade de que a prpria histria de vida do

    organismo possa constituir uma parte intrnseca do processo evolutivo. Da perspectiva

    evolutiva, no o que os organismos fazem, mas as consequncias reprodutivas de sua

    atividade que so significativas. Consideraes relativas a agncia e intencionalidade

    no tm lugar na explicao evolutiva: so atribudas aos mecanismos imediatamente

    envolvidos na efetivao de estratgias cuja lgica ltima j est estabelecida pela

    seleo natural. Por essa razo, habitual se falar dos organismos como locais onde a

    evoluo ocorre, mas no como agentes da mudana evolutiva. Diz-se assim que as

    mudanas acontecem em, mas no so ocasionadasporpopulaes de organismos.

    Mas se a forma, como eu argumento aqui, no uma propriedade dos genes, e sim de

    sistemas de desenvolvimento, para explicar a evoluo da forma precisamos entender

    como estes sistemas so constitudos e reconstitudos ao longo do tempo. Vimos que

    aquilo que um organismo inicialmente recebe de seus predecessores inclui, alm de sua

    carga de material gentico, o ambiente no qual este material est disposto. Essa

    disposio configura relaes especficas inscritas na forma em desenvolvimento.

    medida em que se desenvolve, porm, o organismo tambm contribui, por meio de suasaes, para as condies ambientais, no apenas para o seu prprio desenvolvimento

    posterior, mas para o desenvolvimento de outros organismos de seu prprio tipo e de

    tipos diferentes com os quais ele se relaciona. Ele pode faz-lo diretamente, por sua

    presena imediata no ambiente de outro, ou indiretamente, na medida em que suas

    aes conservam, modificam ou transformam o ambiente da experincia de outro. Por

    exemplo, a criana humana pode crescer cercada por pais e irmos, em uma casa

    construda h muito tempo por predecessores que ela nunca conhecer. Contudo, todasessas pessoas, e sem dvida muitas outras mais, desempenham ou desempenharam sua

  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    22/37

    parte no estabelecimento das condies para o desenvolvimento da criana.

    Inversamente, medida em que ela cresce e seus poderes de agncia se expandem, ela

    ir contribuir por seu turno para as condies de desenvolvimento de seus prprios

    contemporneos e sucessores.

    No que se refere aos seres humanos, usual falar do processo pelo qual as pessoas de

    cada gerao conformam, atravs de suas aes, os contextos nos quais seus sucessores

    vivero, como histria. Meu ponto, porm, que a histria humana no seno uma

    parte de um processo que acontece em todo o mundo orgnico (ver Ingold 1990: 224).

    Neste processo, os organismos figuram no como os produtos passivos de um mecanismo

    a variao sujeita seleo natural situado fora do tempo e da mudana, mas como

    agentes ativos e criativos, ao mesmo tempo produtores e produtos de sua prpria

    evoluo (Ho 1991: 338). E isto porque cada organismo no apenas se desenvolve num

    campo mais amplo de relaes, como tambm contribui atravs de sua atividade para a

    perpetuao e a transformao desse campo. Assim, o que ele faz ao longo da sua vida

    no consumido na reproduo de seus genes, mas incorporado aos potenciais de

    desenvolvimento de seus sucessores. No pode haver, portanto, nenhuma separao

    entre ontogenia e filogenia, desenvolvimento e evoluo. A ontognese, longe de ser

    acessria mudana evolutiva, a prpria fonte a partir da qual o processo evolutivo se

    desdobra.

    Para prevenir qualquer possvel mal-entendido, deixem-me ser claro em relao ao que

    estou defendendo. Eu no nego a existncia do genoma ou sua importncia como um

    regulador do processo de desenvolvimento. Tambm no nego que mudanas podem

    ocorrer e ocorrem na composio do genoma, como resultado da mutao,

    recombinao e replicao diferencial de seus segmentos constituintes atravs das

    geraes. O que eu nego, porm, que o genoma contenha uma especificao da formaessencial do organismo, ou de suas capacidades para a ao e, portanto, que um

    registro de mudana gentica seja em qualquer sentido equivalente a uma explicao

    de sua evoluo. Boa parte da mudana gentica ocorre sem nenhum corolrio ao nvel

    da forma ou do comportamento; inversamente, transformaes morfolgicas e

    comportamentais significativas podem ocorrer sem quaisquer mudanas

    correspondentes no genoma. Vimos que, uma vez que os organismos, em suas

    atividades, podem modificar as condies de desenvolvimento das geraessubsequentes, sistemas de desenvolvimento e as capaciades neles especificadas

  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    23/37

    podem continuar a evoluir sem exigir nenhuma mudana gentica. Em nenhum lugar

    isto mais evidente que na evoluo da nossa prpria espcie. A fim de explicar como a

    mudana pode ocorrer na ausncia de modificao gentica significativa, a teoria

    evolutiva ortodoxa teve que conceber uma segunda via, a histria da cultura,

    sobreposta base de uma herana gentica resultante da evoluo. Contudo, uma vezque se reconhece que as capacidades se constituem no interior de sistemas de

    desenvolvimento, ao invs de serem transportadas com os genes como um dote

    biolgico, podemos comear a ver como as dicotomias entre biologia e cultura, e entre

    evoluo e histria, podem ser descartadas. Esta a questo da qual passo a me ocupar.

    Biologia e culturaComeo retomando a comparao entre andar e pedalar. A locomoo bipedal, de

    acordo com a teoria ortodoxa, parte da constituio biolgica humana ou seja,

    tida como uma propriedade do gentipo anatomicamente moderno. Vimos, porm,

    que o gentipo o produto dos esforos dos bilogos para atribuir as capacidades do

    organismo a um programa interno, que consistiria num conjunto de regras ou algoritmos

    capazes de gerar respostas apropriadas sob quaisquer circunstncias ambientais. Se a

    capacidade de andar compete ao gentipo, ento deve ser possvel compreender o

    andar como expresso de um programa desse tipo, desenvolvido pela seleo natural e

    introduzido com o genoma em diversos contextos de desenvolvimento. O que fazer com

    a capacidade de andar de bicicleta? pouco provvel que se possa aprender alguma

    coisa sobre as origens e o desenvolvimento dessa capacidade por meio do exame de

    mudanas nas frequncias de genes entre os ciclistas! Admite-se consensualmente que

    andar de bicicleta no faz parte do gentipo humano e, por essa razo, no se considera

    em geral que tenha evoludo no sentido biolgico. Contudo, andar de bicicleta

    claramente uma habilidade que, em algum sentido, transmitida de uma gerao a

    outra. No pode, portanto, ser atribuda ao fentipo, uma vez que os caracteres

    fenotpicos no so transmitidos atravs das geraes.

    Para acomodar o tipo de transmisso no-gentica que parece estar em operao aqui,

    prope-se frequentemente que, em populaes humanas, um segundo modo de herana

    opera em paralelo com a gentica. Os seres humanos, como afirma Durham, estode posse de dois grandes sistemas de informao, um gentico, o outro cultural (1991:

  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    24/37

    9). A capacidade de andar de bicicleta, ento, estaria compreendida em um anlogo

    cultural do gentipo um culturtipo [culture-type] (Richerson e Boyd 1978: 128)

    cujos elementos ou traos constitutivos se encontrariam igualmente codificados em

    meios simblicos. Este modelo de enculturao se baseia exatamente nas mesmas

    premissas expostas acima em relao transmisso gentica. Ele pressupe que amensagem cultural que o indivduo recebe de seus coespecficos preexiste a sua

    representao simblica, que a mensagem pode ser lida dessa representao por

    meio de regras de decodificao independentes do contexto, e que essa leitura precede

    a aplicao do conhecimento cultural recebido nos cenrios da prtica. Desse modo,

    uma distino clara tem que ser traada entre a transmisso intergeracional da

    informao cultural e sua expresso na carreira de cada indivduo, exatamente paralela

    distino que a teoria ortodoxa da biologia evolutiva traa entre a transmisso doselementos que constituem o gentipo e a concretizao deste ltimo, na vida de cada

    organismo, sob a forma do fentipo. A primeira dessas distines tem sido feita

    convencionalmente por meio de um contraste entre aprendizado individual e

    social.

    Figura 4Aprendizado individual e social. As setas verticais representam a transmisso

    intergeracional da informao cultural pelo aprendizado social na sequncia ancestral-

    descendente C1 C4. As setas horizontais representam os processos de aprendizado

    individual atravs dos quais, em cada gerao, os esquemas culturais recebidos sotraduzidos em comportamento (B1 B4) em condies ambientais dadas (E1 E4).

    http://www.pontourbe.net/images/edicao9/ingold4.jpg
  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    25/37

    Comparar com a Figura 1.

    Aprendizado individual, aqui, refere-se ao modo como o comportamento adquirido,

    tal como a morfologia, atravs da direo ambiental de um desenvolvimento que

    culmina no fentipo maduro. Sob este aspecto, cada organismo aprende por si mesmo,pela experincia, e o processo de aprendizado coextensivo a sua prpria vida. O

    aprendizado social, por outro lado, refere-se transmisso, atravs das geraes, de

    um corpo de conhecimentos culturais sob a forma de uma tradio. Esta tradio

    consiste no no prprio comportamento, mas em um sistema de esquemas planos,

    receitas, regras, instrues (Geertz 1973: 44)[10] para ger-lo. No caso de andar de

    bicicleta, por exemplo, o que um indivduo adquire de outros mais experientes so os

    elementos de um programa, anlogo ao programa codificado geneticamente que

    supostamente assegura a competncia em andar, e que concretizado por meio da

    prtica e da experincia em um ambiente. Note-se como esta diviso entre os

    componentes sociais e individuais do aprendizado efetivamente divorcia a esfera de

    envolvimento do aprendiz com outrem dos contextos do seu engajamento prtico no

    mundo. Ela pressupe que o que passado adiante, no aprendizado, uma

    especificao para o comportamento independente do contexto, e que tal especificao

    est disponvel para transmisso, em forma codificada, fora das situaes de sua

    aplicao. Em conformidade com isso, acredita-se que a estabilidade intergeracional da

    forma cultural reside na fidelidade com que esta informao replicada de uma mente

    a outra.

    Como uma descrio do que acontece quando se aprende a andar de bicicleta, ou, alis,

    na aquisio de qualquer outra habilidade prtica, isto altamente artificial. Primeiro,

    porque a arte de pedalar como alis a de andar desafia a codificao em termos de

    qualquer sistema formal de regras e representaes. Mesmo que fosse possvel criar umprograma para andar de bicicleta, pouco provvel que uma criatura dotada de tal

    programa, e equipada com uma mquina para pedalar, fosse capaz de adquirir a

    destreza do praticante competente. Alm disso, a assistncia dos adultos necessria

    acima de tudo para fornecer demonstrao e apoio isto , para criar situaes nas

    quais o aprendiz tenha oportunidade de pegar o jeito por si. O mesmo verdadeiro no

    aprendizado da linguagem, descrito adequadamente como um processo de reinveno

    dirigida (Lock 1980) no qual a contribuio dos adultos no ambiente da criana fornecer interpretaes contextualmente especficas de suas emisses vocais, que

  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    26/37

    conduzem a criana descoberta de como as palavras podem ser usadas para exprimir

    significados. A contribuio de cada gerao para a seguinte, pois, no so regras e

    esquemas para a produo do comportamento apropriado, mas as condies especficas

    de desenvolvimento nas quais os sucessores, crescendo num mundo social, adquirem

    suas prprias habilidades e disposies incorporadas.

    Palavras e atos, naturalmente, so cheios de significado, e em qualquer situao de

    aprendizado o nefito ir ouvir o que as pessoas dizem e assistir ao que elas fazem. Mas

    no existe nenhuma leitura de palavras ou atos que no seja parte da orientao

    prtica do prprio nefito ao seu ambiente. Palavras ditas, por exemplo, tomadas em si

    mesmas, no servem, assim como os genes, para alguma coisa. Elas no introduzem

    significado nos contextos de interao, como requer o modelo de transmisso de

    informao. Em vez disso, e novamente tal como os genes, elas retiram seus signficados

    dos contextos de atividades e relaes nos quais elas esto em uso[11]. Desse modo, a

    cultura, como um corpo de conhecimento tradicionalmente transmitido, independente

    do contexto, codificado em palavras ou outros meios simblicos, no pode existir em

    parte alguma exceto na mente do observador antropolgico. Ela derivada por

    abstrao do comportamento observado, exatamente da mesma forma que o bilogo

    deriva o gentipo por abstrao das caractersticas observadas do organismo, e o

    linguista deriva uma gramtica do registro de enunciados. E, pelo mesmo artifcio que

    j observamos nos campos da lingustica e da biologia, imagina-se que esta abstrao

    esteja implantada nas mentes dos prprios atores, como a fonte geradora de suas

    condutas.

    Na direo oposta, argumentei que, quer nossa ateno se volte a andar ou pedalar,

    falar ou escrever, fabricar ferrramentas ou operar mquinas, o que as pessoas fazem

    no pode ser compreendido como expresso comportamental de um programa interno,mas somente como atividade intencional do organismo humano inteiro em seu

    ambiente. Assim, para reiterar minha concluso precedente, no h nenhum

    fundamento em distinguir capacidades para a ao devidas biologia daquelas

    devidas cultura. verdade que h coisas que os seres humanos podem fazer que so

    aparentemente impossveis para quaisquer outras criaturas, mesmo que tenham sido

    criadas em um ambiente humano. E razovel supor que esses potenciais no teriam

    emergido se no fosse por certas mudanas no genoma que poderiam, em princpio, serrastreadas em populaes ancestrais. Mas o genoma, sozinho, no especifica nenhum

  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    27/37

    tipo de capacidade. Desse modo, buscaremos em vo uma capacidade para a cultura,

    cuja emergncia evolutiva teria marcado o que algumas vezes chamado de revoluo

    humana. E isto porque no existe tal coisa, separadamente das capacidades diversas

    de seres humanos que crescem em diferentes ambientes. Essas diferenas de

    experincias de desenvolvimento, como mostrei, so incorporadas anatomicamente, demodo a fazer de cada um de ns um organismo de um tipo diferente.

    Evoluo e histria

    Onde ficam os Cro-Magnons nisso tudo? Sua entrada em cena realmente marcou o

    surgimento de gente inteiramente como ns? claro que no somos de modo algum

    perfeitos; no obstante observa Howells no injusto dizer que o Homo sapiens

    parece ter concludo o progresso humano que o Pleistoceno deixara inacabado (1967:

    242). Em outro sentido, contudo, o progresso humano mal tinha comeado. Estes dois

    sentidos de progresso correspondem, como vimos, ao que costumeiramente

    distinguido como evoluo e histria. Esta uma distino que, em geral, no seria

    feita para qualquer outra espcie. Em outras palavras, assume-se que no pode haver

    mudanas cumulativas ou progressivas nas capacidades comportamentais de espcies

    no-humanas que no estejam ligadas a mudanas evolutivas em suas formas essenciais,

    especficas da espcie. Por essa razo, ningum acha necessrio falar, por exemplo, dos

    chimpanzs anatomicamente modernos ou de elefantes anatomicamente modernos.

    O que o conceito de modernidade anatmica faz, com efeito, reconhecer um sentido

    alternativo em que as pessoas podem ser modernas, mas to somente para coloc-lo

    alm dos limites, como algo que no interessa ao estudioso da evoluo biolgica

    humana. Este segundo sentido de modernidade, contudo, fundado como em um

    compromisso com a supremacia da razo, est contido no prprio projeto da cincia

    contempornea e sustenta sua pretenso de ser capaz de fornecer uma explicao

    autorizada das operaes da natureza. Eis a contradio a que me referi no incio. O

    processo histrico, que pretensamente eleva a humanidade a um nvel de existncia

    superior ao puramente biofsico, tido pela cincia como aquilo que fornece a

    plataforma a partir da qual seus praticantes que, claro, so tambm seres humanos

    podem lanar suas declaraes de que os humanos so apenas mais uma das espcies da

    natureza (Foley 1987).

  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    28/37

    As razes da contradio precedem consideravalmente o surgimento da teoria evolutiva

    em sua forma moderna darwiniana, remontando a um dualismo bsico no pensamento

    do sculo XVIII entre natureza e razo. Em seu Systema Naturae de 1735, Lineu

    reconheceu o estatuto do homem como uma espcie no interior do reino animal, sob a

    designao Homo. Diferentemente de todas as outras espcies animais, contudo, noera por suas caracteristicas fsicas que ele deveria ser conhecido. Com efeito, Lineu

    declarou sua enorme dificuldade em encontrar qualquercritrio definitivo pelo qual os

    seres humanos pudessem ser distinguidos anatomicamente dos grandes primatas, e

    acabou optando por apresentar a distino humana sob a forma de uma recomendao:

    Nosce te ipsum (conhece por ti mesmo). em sua sabedoria, pensava Lineu, no em

    sua forma fsica, que o homem difere essencialmente dos macacos. Em virtude de nossa

    singular faculdade intelectual da razo, somos os nicos seres que podem buscarconhecer, pelos nossos prprios poderes de observao e anlise, que tipos de seres ns

    somos. No h cientistas entre os animais.

    Os grandes tericos da evoluo social e cultural do sculo XIX homens como Edward

    Tylor e Lewis Henry Morgan situaram suas narrativas do progresso humano num quadro

    igualmente dualista. Enquanto todas as espcies animais eram ordenadas, conforme sua

    forma fsica, em uma cadeia do ser culminando na humanidade, supunha-se que esta

    ltima havia sido singularmente dotada pelo Criador com uma conscincia incorprea

    que, atravs da histria, tem avanado progressivamente sob a direo de suas prprias

    leis de desenvolvimento, nos limites de um corpo que no sofreu alterao (Ingold 1986:

    58-60). Desse modo, todos os seres humanos eram tidos como iguais em sua natureza

    essencial e potenciais de desenvolvimento, mas supunha-se que as populaes diferiam

    no grau em que esses potenciais haviam sido realizados na passagem da selvageria

    civilizao. Com a publicao, em 1871, de The descent of man de Darwin, a doutrina

    do potencial humano comum ou, como era ento conhecida, da unidade psquica da

    humanidade foi posta em questo, desafiada pela ideia de que diferenas

    interpopulacionais na escala de civilizao poderiam ser atribudas a variaes

    anatmicas, sobretudo no tamanho e complexidade do crebro. Thomas Huxley chegou

    ao ponto de declarar que a superioridade do europeu em relao ao selvagem portador

    de um crebro supostamente pequeno no era diferente, em princpio, da superioridade

    do selvagem em relao ao macaco portador de um crebro ainda menor. Sucedeu-se

    um perodo de racismo desenfreado do qual a antropologia s comeou a se recuperar

    na segunda dcada do sculo XX. E ela o fez reafirmando a universalidade da natureza

  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    29/37

    humana, e insistindo em que quaisquer que sejam as diferenas entre populaes

    quanto a suas caractersticas biolgicas, elas no tm nenhuma consequncia para a

    histria e para o desenvolvimento cultural.

    Com efeito, quando se assume que a constituio biolgica dos organismos humanos dada como um dote gentico, no possvel escapar do racismo a menos que a variao

    cultural seja desconectada da biolgica. Claramente, no h nenhum fundamento

    factual para a crena raciolgica de que diferenas culturais tm uma base gentica.

    Meu ponto, porm, que, ao virar as costas ao dogma racista, a teorizao subsequente

    sobre a evoluo humana reconstituiu a viso do sculo dezoito em todos os seus

    aspectos essenciais. Mais uma vez os seres humanos aparecem de forma dual, de um

    lado como uma espcie da natureza, de outro como criaturas que de modo nico entre

    os animais conquistaram uma tal emancipao do mundo da natureza a ponto de fazer

    dela um objeto de sua conscincia. verdade que, diferentemente de Lineu, os

    estudiosos contemporneos da evoluo humana so capazes de apontar com alguma

    preciso um conjunto de caractersticas anatmicas pelas quais os seres humanos

    podem ser distinguidos no apenas de primatas no-humanos atualmente existentes

    como tambm de seus antepassados homindeos pr-humanos. Estas so as

    caractersticas diagnsticas para o reconhecimento da modernidade anatmica. Mas

    humanos deste tipo reconhecivelmente moderno no evoluram como cientistas,

    muito menos com uma teoria pr-fabricada da evoluo. A cincia e suas teorias so

    tidas amplamente como produtos de um processo cultural ou civilizacional muito

    distinto do processo da evoluo biolgica: um crescimento cumulativo do

    conhecimento que manteve inalterada nossa natureza bsica.

    Temos assim dois continua distintos, um evolutivo, conduzindo de formas pongdeas e

    homindeas ancestrais at o Homo sapiens sapiens anatomicamente moderno, o outrohistrico, conduzindo do nosso passado presumido de caadores-coletores at a cincia

    e a civilizao modernas (Ingold 1998: 89-93). A interseo desses continua configura

    um ponto de origem, sem paralelo na histria da vida, quando nossos ancestrais se

    encontravam no limiar da cultura e, pela primeira vez, viram-se face a face com o

    significado.

  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    30/37

    CULTURA

    HISTRIA -- Cientistas ocidentais

    EVOLUO BIOLGICA -- Cro-Magnons

    Australopitecneos Origem dos humanos modernos

    H. Habilis

    H. Erectus

    Neandertais

    Figura 5A origem da verdadeira humanidade, concebida como situada na interseo

    entre o continuum da evoluo biolgica, desde as formas ancestrais pongdeas e

    homindeas at os humanos anatomicamente modernos, e o continuum da histria dacultura, desde a caa e a coleta do Paleoltico at a cincia e a civilizao modernas.

    Acredita-se que este ponto marca a emergncia do que por vezes chamado de

    verdadeira humanidade (ver, por exemplo, Botscharow 1990: 64), ou a chegada, nas

    palavras de Howell, da nova espcie nossa espcie de homem (1967: 242). Este

    tipo de homem, equipado anatomicamente para a vida como caador-coletor, possua

    uma mente que o capacitaria, no devido tempo, a raciocinar como um cientista. Ohomem de Cro-Magnon, ao que parece, tinha todo o potencial biolgico necessrio para

    http://www.pontourbe.net/images/edicao9/ingold5.jpg
  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    31/37

    fazer dele um cientista: seu crebro era to grande, e to complexo, como o de

    Einstein. Mas o tempo ainda no havia chegado, em sua poca, para que esse potencial

    pudesse vir tona. Distendida entre os plos da natureza e da razo, epitomizada,

    respectivamente, pelas figuras contrastantes do caador-coletor e do cientista,

    encontrar-se-ia toda a histria da cultura humana, uma histria que teria sedesenrolado nos parmetros de uma forma corporal essencialmente estvel. E essa

    forma, que todos os homens supostamente recebem como um dote biolgico comum, a

    despeito de circunstncias culturais ou histricas, nada mais , naturalmente, que o

    gentipo do homem moderno.

    Tal como na doutrina da unidade psquica do sculo XVIII, diz-se que o gentipo humano

    embora configurado pela seleo natural e no por interveno divina estabelece

    uma base universal para o desenvolvimento cultural. Como uma representao ideal da

    forma essencial da humanidade, o humano moderno , em si mesmo, uma criatura do

    pensamento Ocidental moderno. Ele (ou ela) concebido como uma sntese de tudo o

    que um ser humano poderia ser, um compndio de capacidades universais abstradas das

    mltiplas formas de vida que efetivamente apareceram na histria, e retroprojetadas

    no passado Paleoltico como um conjunto de potenciais de desenvolvimento

    geneticamente inscritos, que sustentariam sua realizao.[12] Desse modo, o curso da

    histria aparece como o desdobramento progressivo das capacidades latentes de nossos

    ancestrais, fixadas biologicamente na evoluo ainda antes do incio da histria. H

    certa ironia aqui. Os bilogos, que h muito tempo cooptaram a noo de evoluo para

    descrever o processo que Darwin havia originalmente chamado de descendncia com

    modificao, tm sido severos em sua crtica aos cientistas sociais que continuaram a

    usar a noo, com referncia histria humana, em seu sentido original de

    desenvolvimento progressivo. No entanto, esta viso da histria humana como a

    atualizao gradativa de potenciais inatos est implcita em sua prpria teoria!

    Argumentei que a distino entre evoluo e histria, tal como estabelecida na viso

    ortodoxa, no pode ser sustentada. Vista como um processo pelo qual as pessoas, em

    suas atividades, modelam os contextos de desenvolvimento para seus sucessores, a

    histria reaparece como a continuao, com outro nome, de um processo de evoluo

    que est em curso em todo o mundo orgnico. No Dezoito Brumrio, Marx escreveu que

    os homens fazem sua prpria histria, mas no a fazem como querem; no a fazem sobcircunstncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente,

  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    32/37

    legadas e transmitidas pelo passado[13] (Marx 1963 [1869]: 15). exatamente da

    mesma maneira que os organismos em geral fazem sua prpria evoluo. No existe,

    portanto, um ponto de origem no qual a histria comeou; nenhum momento de

    emergncia da verdadeira humanidade. Logo, no precisamos de uma teoria para

    explicar como os macacos se tornaram humanos, e de uma outra para explicar como(alguns) homens se tornaram cientistas. A evoluo humana no terminou com a

    chegada dos Cro-Magnons, prosseguiu at o presente embora agora a chamemos de

    histria. Procurei mostrar que as diversas formas e capacidades que emergiram neste

    processo no so nem dadas de antemo como uma dotao gentica, nem transmitidas

    como componentes de um corpo separado de informao cultural; so antes geradas em

    e atravs do funcionamento dinmico de sistemas de desenvolvimento constitudos em

    virtude do envolvimento dos seres humanos em seus diversos ambientes.

    Para os humanos, assim como para quaisquer outros organismos, tal envolvimento uma

    condio inescapvel de existncia. Eu acredito que precisamos reformular

    inteiramente o modo como pensamos sobre evoluo, tomando esta condio de

    envolvimento como nosso ponto de partida. A teoria ortodoxa, que atribui a mudana

    evolutiva a modificaes subjacentes no gentipo, requer que os seres humanos sejam

    completamente especificveis, independentemente dos contextos relacionais de seu

    desenvolvimento. Mas uma tal especificao, como mostrei, existe somente na mente

    do observador e, portanto, introduz uma diviso entre mente e mundo, ou entre razo e

    natureza, como um a priori ontolgico. Na verdade, no existe nenhuma forma

    essencial da humanidade, especfica da espcie, nenhuma maneira de dizer o que um

    humano anatomicamente moderno independentemente das mltiplas maneiras que

    os humanos efetivamente se tornam (Ingold 1991: 359). Essas variaes de circunstncia

    de desenvolvimento, no de herana gentica, fazem de ns organismos de tipos

    diferentes. Desse modo, minha concluso de que as diferenas que chamamos culturais

    so de fato biolgicas no traz consigo nenhuma conotao racista. Ao reenquadrar o

    ser-humano-em-seu-ambiente, podemos prescindir de uma caracterizao da

    humanidade em termos da especificao da espcie, assim como da oposio entre

    espcie e cultura. As pessoas habitam um mundo, no porque suas diferenas so

    sustentadas por universais da natureza humana, mas porque elas esto inseridas

    juntamente com outras criaturas em um campo contnuo de relaes, em cujos

    desdobramentos toda diferena gerada.

  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    33/37

    Referncias

    Botscharow, L. J. 1990. Paleolithic semiotics: behavioral analogs to speech in Acheulean

    sites. In The life of symbols, eds M. L. Foster and L. J. Botscharow. Boulder, Colorado:Westview Press.

    Bourdieu, P. 1977. Outline of a theory of practice, trans. R. Nice. Cambridge:

    Cambridge University Press.

    Brown, D. E. 1991. Human universals. New York: McGraw Hill.

    Darwin, C. 1871. The descent of man, and selection in relation to sex. London: JohnMurray.

    Durham, W. H. 1991. Coevolution: genes, culture and human diversity. Stanford:

    Stanford University Press.

    Foley, R. 1985. Optimality theory in anthropology. Man (N.S.) 20: 22242.

    Geertz, C. 1973. The interpretation of cultures. New York: Basic Books.

    Goodwin, B.C. 1988. Organisms and minds: the dialectics of the animalhuman interface

    in biology. In What is an animal?, ed. T. Ingold. London: Unwin Hyman.

    Hinde, R. A. 1991. A biologist looks at anthropology. Man (N.S.) 25: 583608.

    Ho, M-W. 1991. The role of action in evolution: evolution by process and the ecological

    approach to perception. Cultural Dynamics 4(3): 33654.

    Howells, W. 1967. Mankind in the making: the story of human evolution.

    Harmondsworth: Penguin.

    Ingold, T. 1986. Evolution and social life. Cambridge: Cambridge University Press.

    _____ 1990. An anthropologist looks at biology. Man (N.S.) 25: 20829.

    _____ 1991. Becoming persons: consciousness and sociality in human evolution. Cultural

    Dynamics 4: 35578.

  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    34/37

    _____ 1998. Evolution of society. In Evolution: society, science and the universe, ed. A.

    C. Fabian. Cambridge: Cambridge University Press, pp. 7999.

    Kandel, E. R. and R. D. Hawkins 1992. The biological basis of learning and individuality.

    Scientific American 267: 5360.

    Kay, L. E. 1998. A book of life? How the genome became an information system and DNA

    a language. Perspectives in Biology and Medicine 41: 50428.

    Lestel, D. 1998. How chimpanzees have domesticated humans: towards an anthropology

    of humananimal communication.Anthropology Today14(3): 1215.

    Lewontin, R.C. 1992. The dream of the human genome. The New York Review, May 28th

    1992, pp. 3140.

    Lieberman, P. 1985. Comment on S. T. Parker, A socio-technical model for the evolution

    of language. Current Anthropology26: 628.

    Lock, A. J. 1980. The guided reinvention of language. London: Academic Press.

    Lovejoy, C. O. 1988. Evolution of human walking. Scientific American 259: 829.

    Marx, K. 1963 [1869]. Eighteenth Brumaire of Louis Bonaparte. New York: International

    Publishers.

    Mauss, M. 1979. Sociology and psychology: essays. London: Routledge & Kegan Paul.

    Medawar, P. 1967. The art of the soluble. London: Methuen.

    Molleson, T. 1994. The eloquent bonus of Abu Hureyra. Scientific American 271: 60-65.

    Oyama, S. 1985. The ontogeny of information: developmental systems and evolution .

    Cambridge: Cambridge University Press.

    Richerson, P. J. and R. Boyd 1978. A dual inheritance model of the human evolutionary

    process, I: Basic postulates and a simple model. Journal of Social and Biological

    Structures 1: 12754.

    Savage-Rumbaugh, E. S. and D. M. Rumbaugh 1993. The emergence of language. In

  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    35/37

    Tools, language and cognition in human evolution, eds K. R. Gibson and T. Ingold.

    Cambridge: Cambridge University Press.

    Street, B. V. 1984. Literacy in theory and practice. Cambridge: Cambridge University

    Press.

    Thelen, E. 1995. Motor development: a new synthesis.American Psychologist 50: 7995.

    [1] Ingold, Tim. People like us. The concept of the anatomically modern human. In

    The perception of the environment. Essays on livelihood, dwelling and skill. London and

    New York: Routledge, 2000. Captulo 22, pp. 373-391.

    [2]N.T.: O autor faz referncia neste ponto anlise desenvolvida no captulo anterior,

    intitulado The dynamics of technical change (The perception of environment, p. 362-

    372).

    [3] Com base em seus estudos de restos de esqueletos provenientes da aldeia neoltica

    de Abu Hureyra, no atual Norte da Sria, Theya Molleson deduziu que as mulheres

    residentes na aldeia passavam longas horas ajoelhadas no cho moendo gros em um

    triturador manual. Padres de desgaste nos dedos grandes dos ps e nos joelhos, e

    protuberncias nos ossos do brao e antebrao, nos pontos de insero de msculos que

    teriam sido muito desenvolvidos, so inteiramente consistentes com essa interpretao.

    tentador considerar as marcas produzidas no esqueleto por essa atividade como

    deformidades ou anomalias (Molleson 1994: 62-3). Contudo, os ossos do esqueleto s

    podem crescer e tomar forma num corpo ativo no mundo; assim, s possvel definir o

    esqueleto normal em relao a atividades normais. Por que a patela estriada que

    resulta do agachamento prolongado deveria ser considerada anormal quando, para a

    grande maioria da populao humana, esta a posio usual de descanso? Ela s

    percebida por ns como uma anomalia porque, tendo crescido em uma sociedade em

    que usual sentar em cadeiras, consideramos ter que nos agachar, por qualquer lapso

    de tempo, terrivelmente cansativo. Logo, no pode existir uma forma padro do

    esqueleto humano.

    [4] N.T.: Ingold se refere ao captulo anterior (The dynamics of technical change), emparticular s pginas 364-5.

  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    36/37

    [5] Desenvolvo este argumento no prximo captulo (pp. 397-98).

    N.T.: Ingold se refere ao captulo 22 de The perception of environment, intitulado

    Speech, writing and the modern origins of language origins.

    [6] N.T.: Cf. a edio brasileira deA Interpretao das Culturas, captulo 2, O impacto

    do conceito de cultura sobre o conceito de homem (Rio de Janeiro: Editora Guanabara,

    1989), p. 57.

    [7] Citado no captulo anterior, The dynamics of technical change, p. 363 da edio

    em ingls.

    [8] A histria dessa confuso, que na verdade mais preponderante hoje que no

    excitante perodo em que a estrutura do DNA foi esclarecida pela primeira vez,

    documentada de forma soberba por Lily Kay (1998), em cujo relato me baseio.

    [9] N.T.: Ingold tambm remete o leitor neste ponto ao captulo 18 do livro, On

    weaving a basket, p. 345-6 da edio em ingls.

    [10] N.T.: Cf. a edio brasileira de A Interpretao das Culturas, captulo 2, O

    impacto do conceito de cultura sobre o conceito de homem (Rio de Janeiro: EditoraGuanabara, 1989), p. 56.

    [11] N.T.: Conforme indicao do autor, este ponto retomado no captulo 23 (The

    poetics of tool use: from technology, language and intelligence to craft, song and

    imagination), p. 409 da edio em ingls.

    [12] Um dos exemplos mais bizarros dessa forma de pensar vem de um livro recente de

    Donald E. Brown, saudado amplamente como uma obra-prima nos crculos da psicologiaevolutiva. Intitulado Human universals, o livro oferece uma descrio detalhada do que

    Brown chama de Pessoa Universal (PU). A PU caracterizada por um compndio de

    traos que todas as pessoas, todas as sociedades, todas as culturas e todas as

    linguagens tm em comum (Brown 1991: 130). Esses traos seriam acrescentados ao

    que popularmente conhecido como natureza humana, cuja evoluo confiantemente

    atribuda seleo natural, e cujo fundamento ltimo estaria nos genes. Uma vez que

    jamais existiu nenhuma populao humana remotamente parecida com a PU, difcilver como teriam evoludo. Com efeito, o que Brown apresenta, sob a aparncia de uma

  • 7/30/2019 Tim Ingold - Gente como a gente_ O conceito de homem anatomicamente moderno

    37/37

    sntese de caractersticas universais, uma mal disfarada verso do modelo Ocidental

    da pessoa.

    [13] N.T.: Cf. a edio brasileira de O 18 Brumrio e Cartas a Kugelmann (Rio de

    Janeiro: Paz e Terra, 1974), p. 17.