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INSTITUTO SUPERIOR DE CINCIAS DO TRABALHO E DA EMPRESA
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA SOCIAL E DAS ORGANIZAES
Ciganos, Senhores e Galhards: Um estudo sobre percepes e
avaliaes intra e intergrupais na infncia.
Joana Dias Alexandre
Orientadora: Prof Doutora Maria B. Monteiro
Tese de Dissertao de Mestrado em Psicologia Social e Organizacional 2003
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RESUMO
O presente trabalho sublinha a importncia de estudar, no mbito dos estudos em
psicologia social com crianas, (1) as estratgias de aculturao das crianas ciganas e
as emoes e comportamentos que estas expressam em relao s crianas da maioria,
em funo de variveis cognitivo-emocionais e da identidade social (simples e dupla), e
(2) a importncia de estudar comparaes horizontais que se estabelecem entre grupos
minoritrios na hierarquizao de preferncias tnicas e nas atribuies causais para
uma tarefa de sucesso.
De acordo com estes objectivos, foram conduzidos 2 estudos. Um, correlacional, com
61 crianas ciganas, mostrou que as crianas com identidade simples (tnica: cigana)
estereotipizam mais o endogrupo e percebem meta-emoes mais negativas, do que as
crianas com identidade dupla (tnica e nacional: ser cigana e ser portuguesa). A
identidade parece assumir um papel explicativo na adopo das estratgias de
aculturao das crianas ciganas e mais particularmente na adopo de uma estratgia
de separao nos contextos escola e casa. Assim, nestes contextos, as crianas com
identidade simples escolhem mais esta estratgia do que as crianas com identidade
dupla. Relativamente estratgia de assimilao, os resultados so diferentes. Esta
estratgia , principalmente, escolhida pelas crianas com identidade dupla nos
contextos rua e casa. No entanto, a sua adopo no contexto casa moderada
pelos meta-esteretipos e no contexto rua moderada pela percepo de
discriminao.
Decorrente do segundo objectivo, conduzimos um estudo quase-experimental com 60
crianas (brancas vs. negras vs. ciganas), com um desenho factorial 3 (categoria tnica
do alvo: branca vs. negra vs. cigana) X 3 (categoria tnica do participante: branco vs.
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negro vs. cigano), em que o primeiro factor intra-sujeitos e o segundo factor inter-
sujeitos. As variveis dependentes foram as preferncias por contactos com alvos e as
atribuies das causas do sucesso dos alvos. Tal como esperado, num quadro de
comparao complexo, que envolve um grupo maioritrio e outro grupo minoritrio,
quer as crianas ciganas, quer as crianas negras, manifestam preferncias por contactos
mais elevadas pelo endogrupo do que pelo exogrupo minoritrio. Este resultados
indicam, em primeiro lugar, que no existe uma hierarquia de preferncias consensual
entre estes dois grupos. Em segundo lugar, estes resultados sugerem que a comparao
entre minorias que se torna relevante para estabelecer uma distintividade positiva. No
que diz respeito aos resultados das atribuies causais ao sucesso numa tarefa, no
quadro comparativo entre minorias, apenas as crianas negras expressam hostilidade
horizontal. O padro de atribuies causais expresso pelas crianas da maioria, apesar
de estabelecer uma hierarquia tnica menos clara do que em relao s preferncias por
contactos, consensual e coloca a inteligncia como causa distintiva do sucesso entre
brancos e ciganos.
Estes resultados mostram a importncia de variveis cognitivas e emocionais para a
compreenso das estratgias de aculturao no quadro infantil e a importncia do
processo de comparao horizontal nas percepes intergrupais.
Palavras-chave: Identidade social, meta-emoes, auto-esteretipos, meta-esteretipos,
percepo de discriminao, estratgias de aculturao, comparaes horizontais.
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ABSTRACT
The present study highlights the importance of studying in the domain of social
psychology studies with children (1) the acculturation strategies (in different life
contexts) of gypsy children and the emotional and behavioural responses they expressed
toward majority white Portuguese children as a function of cognitive-emotional
variables and of social identity (single and double), and (2) the importance of studying
horizontal comparisons between minority groups in ethnic hierarchy preferences and in
causal attributions for a succeed task.
In agreement with these aims, we conducted 2 studies. One, a correlational study with
61 gypsy children, showed that children with single identity (ethnic) self-stereotype
more the in-group and perceive more negative meta-emotions than children with double
identity (ethnic and national). The results also show that identity has an important role
in the adoption of a separation acculturation strategy, specially in the contexts home
and school, thus in this contexts children with simple identity choose more a
separation strategy than children with double identity. Concerning assimilation, results
evidence a different situation. This strategy is mainly adopted by children with double
identity, specially in contexts street and home. Nevertheless, the adoption of this
strategy on the context home is moderated by their meta-stereotypes and in the
context home is moderated by their perception of discrimination.
Following our second aim, we conducted an experimental study with 60 children
(white, black and gypsy) with a factorial design 3 (ethnic category of the target: white
vs. negro vs. gypsy) X 3 (ethnic category of participants: white vs. negro vs. gypsy); the
first factor is within-subjects and the second is between subjects. The dependent
variables were preferences for contact with the target groups and causal attributions for
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target groups success. As we expected, in a complex setting that involves a majority
group and another minority group, gypsy and black children prefer more contact with
their in-group than with the other minority group. These results show that there is not a
consensual ethnic hierarchy of preferences between these two groups, although majority
group members establish an ethnocentric ethnic hierarchy that places gypsies in the
bottom. They also show that the comparison process between minorities is important for
establishing positive distinctiveness. The results of causal attribution in a comparative
setting between the two minorities show that only black children express horizontal
hostility. The causal attributional pattern expressed by majority children establishes an
ethnic hierarchy less exact than the ethnic hierarchy of preferences and puts intelligence
as the distinctive cause for success between white and gypsy children.
These findings show the importance of cognitive and emotional variables to understand
acculturation strategies in children, and the importance of the process of horizontal
comparison in intergroup perceptions.
Key words: social identity, meta-emotions, self-stereotypes, meta-stereotypes,
perception of discrimination, acculturation strategies, horizontal comparisons.
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NDICE
INTRODUO GERAL 1
1. Reflexes sobre o percurso histrico dos ciganos e das relaes com gadj 1
2. A investigao em Psicologia Social: os processos intergrupais em
adultos e em crianas 7
3. Objectivos gerais do trabalho 9
4. Plano do trabalho 10
ESTUDO 1 12
1. Identidade Social e Estratgias de aculturao 12
1.1. Identidade social 12
1.1.1. Identidades simples e identidades mltiplas: a pertena a um grupo e
a pertena simultnea a diferentes grupos sociais 13
1.1.2. A dimenso avaliativa da identidade social 14
1.2. Estratgias de adaptao sociedade dominante 15
1.2.1. Estratgias de aculturao 15
1.2.1.1. Identidade e estratgias de aculturao 20
1.3. Auto-categorizao, avaliao da(s) pertena(s) categorial(is) e
estratgias de aculturao em crianas 21
2. Identidade social, expresses do preconceito e estratgias de aculturao 26
2.1. Identidade e expresses do preconceito 26
2.1.1. Identidade e preconceito 26
2.1.2. Auto-esteretipos e meta-esteretipos 29
2.1.3. Emoes e meta-emoes intergrupais 32
2.1.4. Percepo de discriminao e comportamentos de discriminao 34
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2.1.5. Meta-esteretipos, percepo de discriminao, meta-emoes e
estratgias de aculturao 36
2.2. Auto-categorizao, expresses do preconceito e estratgias de
aculturao em crianas 36
3. Objectivos 40
4. Mtodo 40
5. Resultados 53
6. Discusso dos resultados 65
ESTUDO 2 70
1. Relaes horizontais, preferncias tnicas ou hierarquias tnicas 70
1.1. O processo de comparao social 70
1.2. Hostilidade horizontal e avaliaes e preferncias grupais em crianas 73
2.Atribuies causais em contexto intergrupal 77
2.1. O processo de atribuio causal e enviesamentos atribucionais 77
2.2. Dimenses das atribuies causais 78
2.3. Atribuies e enviesamentos atribucionais em crianas 80
3. Objectivos e Hipteses 81
4. Mtodo 82
5. Resultados 86
6. Discusso dos resultados 92
CONCLUSES GLOBAIS 94
REFERNCIAS 101
Anexos 123
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NDICE DE FIGURAS
Figura 1. Efeitos da pertena grupal das crianas sobre a quantidade
de contactos com diferentes grupos-alvo 88
Figura 2. Efeitos da pertena grupal das crianas e do grupo-alvo sobre
A atribuio de inteligncia 90
NDICE DE QUADROS
Quadro 1.1: Auto-identificao primria e secundria 44
Quadro 1.2: Identidade simples e dupla 45
Quadro 1.3: Anlise factorial em componentes principais dos atributos
dos auto-esteretipos 46
Quadro 1.4: Anlise factorial em componentes principais dos atributos
dos meta-esteretipos 47
Quadro 1.5: Anlise factorial em componentes principais das estratgias
de aculturao na escola 50
Quadro 1.6: Anlise factorial em componentes principais das estratgias
de aculturao em casa 51
Quadro 1.7: Anlise factorial em componentes principais das estratgias
de aculturao na rua 52
Quadro 1.8: Mdias e desvios-padro dos auto-esteretipos relativos
aparncia dos membros do grupo em funo da identidade das crianas
ciganas 54
Quadro 1.9: Mdias e desvios-padro das meta-emoes em funo da
identidade das crianas ciganas 56
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Quadro 1.10: Mdias e desvios-padro da resposta comportamental
em funo das meta-emoes 59
Quadro 1.11: Mdias e desvios-padro da resposta comportamental
em funo da percepo de discriminao 60
Quadro 1.12: Respostas comportamentais das crianas ciganas em
funo das meta-emoes e da percepo de discriminao 61
Quadro 1.13: Mdias e desvios-padro do efeito da identidade sobre
as estratgias separao cultural na escola e separao em casa 64
Quadro 2.1: Mdias e desvios-padro das preferncias por contactos
com diferentes alvos em funo da pertena tnica das crianas 88
Quadro 2.2: Mdias e desvios-padro das atribuies ao sucesso dos
alvos em funo da pertena tnica das crianas 90
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INTRODUO GERAL
1. Reflexes sobre o percurso histrico dos ciganos e suas relaes com os gadj1
A histria do mundo tem sido escrita atravs das relaes estabelecidas entre a
pluralidade dos grupos sociais que o constituem.
Oriundos da ndia, os primeiros Ciganos comearam a atravessar o Bsforo a partir
do ano 1000, tendo descoberto a Europa entre os sculos XIV e XV, em sucessivos
xodos. Em Portugal a sua entrada deu-se na segunda metade do sculo XV (Benites,
1997). Durante este perodo, os Ciganos tornaram-se nmadas, viajantes. No tendo um
lugar seu, so a-tpicos (Auzias, 1995/2001) e o seu pas , como afirmam, todo o
mundo (SOS Racismo, 2001). A sua bandeira simboliza o seu estado de esprito
nomadismo e liberdade e as designaes de Rom e Manuch reflectem esse
esprito por serem sinnimos de homem livre. A sua organizao social nica, dada
a existncia de leis prprias e de um tribunal prprio (Benites, 1997) e possuem uma
lngua particular, essencialmente grafa o roman ou romani, com diferentes
dialectos, ecos dos diferentes movimentos migratrios.
Os sucessivos xodos deram lugar existncia de trs grandes grupos: os Rom,
oriundos da Europa oriental e mais tradicionalistas, os Sinti ou Manush, marcados pela
longa estadia em Frana e mais ocidentalizados (Nunes, 1981), e os Gitanos ou Cal,
residentes na Pennsula Ibrica e detentores de um dialecto prprio o cal ,
diferenciados dos outros por se terem sedentarizado.
Por todo o mundo existe uma diversidade de designaes para os Ciganos. A
etimologia destes nomes reflecte a existncia de diferentes critrios: um critrio que
1 No ciganos (brancos)
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remete para as regies de onde se julgaram originrios, um critrio associado sua
profisso e um critrio de estigmatizao (Chulvi & Prez, 2003).
De acordo com o primeiro critrio, o termo Cigano poder proceder de diferentes
conceitos, dependendo das regies de onde se julga que os ciganos tm origem: poder
proceder de Egipcio, sendo os ciganos denominados Egipcianos, porque se pensou que
provinham do Pequeno Egipto (sia Menor); derivam deste termo outras
denominaes, como Gypsies, Gypten, Faraoni, entre outros (e.g., Lewy, 1999). A
designao Ciganos (por exemplo, Tsiganer em Frana ou Zigeuner, na Alemanha)
poder derivar tambm de Zincali, ou seja, homens negros do Sind. ainda provvel
que Cigano derive do grego bizantino Athinganos ou Atsinganni (intocveis), por
referncia a uma antiga seita hertica de mgicos ou bruxos vinda da sia Menor para
as Terras do Imprio Bizantino (Nunes, 1981).
Outras designaes para este grupo particular so fruto de um segundo critrio que
remete para a natureza da profisso que exercem. No norte da Europa, por exemplo,
dois dos subgrupos dos Rom os Ursari e os Kalderacha (caldeireiros) so
conhecidos por estes nomes pelo seu trabalho com ossos e com metais, respectivamente.
O terceiro critrio, para ns mais relevante, vincula-os a um grupo social marginal ou
a uma categoria minoritria estigmatizada: so exemplo disso designaes como
Heidens (pagos) em holands, Caramis (ladres) na Arbia Saudita, Cal (escuros) em
Espanha, ou Karachi (negro) na Prsia. Numa anlise retrospectiva, podemos constatar
que desde o sculo XIV que a palavra Cigano utilizada como um insulto (Frazer,
1992), reunindo as conotaes de desprezo e subdesenvolvimento intelectual (Auzias,
1995/2001), estando ainda hoje vinculada a palavras como ladino, trapaceiro ou
ardiloso (Figueiredo, 1991). Ainda como refere Costa (1995), o sentido das palavras
ciganos, ciganar, ciganice, tem por base a ideia de impostura ou burla. A este
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propsito, no podemos deixar de mencionar o provrbio: conta dos ciganos todos
furtamos.
A primeira referncia documentada sobre a permanncia de Ciganos no nosso pas
data do sculo XVI, mais precisamente de 1516, e logo no Cancioneiro Geral de Garcia
Resende (Costa, 1995) ela parece confundir-se com as primeiras reaces de hostilidade
e de discriminao em relao aos mesmos. Especificamente em Portugal, desde que Gil
Vicente fez representar a Farsa das Ciganas perante a corte de D. Manuel I, em 1521,
at ao final da monarquia (1910), a situao dos ciganos foi marcada por constantes
tentativas de erradicao dos ciganos nmadas ou da sua sedentarizao forada, com
carcter repressivo, apontando para a sua dissoluo ou domesticao (Costa, 1995,
p. 19).
Em geral, no quadro europeu, as representaes do Cigano revestiram-se de um
carcter particular. Se, inicialmente, a sua imagem foi romantizada, rapidamente ela deu
lugar a uma imagem pautada por sentimentos de hostilidade, desconfiana e medo,
conduzindo no s rejeio total deste grupo, como tambm elaborao de fortes
medidas persecutrias, culminando no extermnio nazi na Segunda Guerra Mundial.
Ao longo do nosso trabalho, designaremos os indivduos deste grupo por Ciganos ou
Rom, em roman, pelo facto de no existir em Portugal uma outra designao para os
mesmos que seja isenta de conotao negativa, dado serem um grupo minoritrio
estigmatizado, num contexto de relaes sociais assimtricas que os remete para a
condio de grupo socialmente dominado e discriminado.
Embora a populao cigana represente apenas 2% da populao portuguesa (cerca de
21, 831 indivduos, 29% residindo na regio de Lisboa, comparado com 12 milhes em
todo o mundo) (SOS Racismo, 2001), o estudo das relaes intergrupais entre ciganos e
gadj assume particular interesse, dadas as especificidades desta minoria, tendo em
-
conta o peso da sua histria, a sua cultura e a estigmatizao a que foram sendo sujeitos
pelos grupos sociais dominantes, particularmente na Europa, durante os ltimos 600
anos (Ortega, 1994). Apesar da constante estigmatizao e das medidas persecutrias,
assiste-se actualmente, no quadro europeu, a um crescente interesse pelas
particularidades da cultura Rom e pela promoo de medidas de integrao dos ciganos
na sociedade dos gadj. Ao nvel das polticas educativas europeias, os Ministros
Europeus aprovaram, em 1989, uma resoluo para a escolarizao das crianas ciganas
ou viajantes (Ligeois, 1986/2001). Em Portugal, o Secretariado Coordenador dos
Programas de Educao Multicultural do Ministrio da Educao apontava, no ano
lectivo de 1997/1998, cerca de 5500 crianas ciganas distribudas pelas escolas do 1
ciclo do ensino bsico. As novas polticas educativas conduziram implementao de
projectos de educao inter-cultural voltados para esta populao alvo. Um pouco por
toda a Europa, comearam a ser desenvolvidos esforos no sentido de sedentarizar as
populaes nmadas de modo a viabilizar a sua ligao com a escola, nomeadamente
atravs da interveno de mediadores ciganos e da criao, nos pases da comunidade,
de currculos escolares especficos, desenvolvendo materiais pedaggicos multiculturais
e integrando a cultura Rom na educao escolar e extra-escolar, como forma de
diminuio do absentismo. Na Finlndia, por exemplo, as crianas ciganas que vo
escola tm mais duas horas por semana de histria cigana e de roman, existindo j
livros para a aprendizagem desta lngua, outrora unicamente grafa.
Outros programas tm surgido mais voltados para a luta contra o racismo e contra a
xenofobia, como o que foi elaborado pelo Centro de Investigao Cigana da
Universidade Ren Descartes, em Paris, em parceria com associaes ciganas de
diferentes pases, nomeadamente com o Secretariado Coordenador dos Programas de
Educao Multicultural Portugus (Entreculturas) (Scrates Compendium, 2000).
-
Apesar dos esforos dispendidos, essencialmente nos ltimos quinze anos, pela
Comisso Europeia dos Direitos Humanos para o Desenvolvimento e Promoo Activa
da Cultura Cigana e, no obstante o crescente interesse pelo desenvolvimento de
medidas jurdicas de proteco deste grupo particular, desenvolvidas pela Comisso de
Eliminao da Discriminao Racial (CERD) e, mais particularmente, pelo Alto-
comissrio para a Imigrao e Minorias tnicas (ACIME) ou pelo REAPN (rede
europeia anti-pobreza) em Portugal, os grupos nacionais europeus continuam, no
entanto, a desenvolver maioritariamente polticas de converso dos Ciganos para o
sistema de valores sociais dominantes. O estabelecimento de legislao europeia, no
sentido de persuadir os Ciganos a abandonar algumas das suas tradies e o seu estilo
de vida nmada (ONions, 1995), um exemplo da manuteno destas polticas de
assimilao.
Alguns dados sugerem tambm que, apesar da recente implementao de programas
e medidas de combate discriminao racial, no quadro europeu permanece ainda um
continuado enraizamento de esteretipos e de avaliaes particularmente negativas
sobre os ciganos, com incidncia significativa no contexto portugus (SOS Racismo,
2001). Resultados recentes apontam, ainda, para a existncia de racismo flagrante em
relao aos ciganos (Correia, Brito & Vala, 2001), contrariamente ao racismo subtil
(e.g., Meertens & Pettigrew, 1999) a que se tem vindo a assistir nos ltimos anos,
relativamente aos negros e aos asiticos, um pouco por todo o mundo de dominncia
branca.
Os repetidos insucessos das tentativas de converso dos ciganos para o sistema de
valores das sociedades europeias, ao longo dos ltimos 600 anos, bem como o
enraizamento de esteretipos negativos no seio dos grupos dominantes europeus,
conduziram ontologisao deste grupo social (Chulvi & Prez, no prelo), construo
-
de uma representao do Cigano como um grupo a-social, uma raa animal que no
sabe viver em sociedade (Chulvi & Prez, 2003), numa verdadeira tentativa de
aniquilao da sua condio humana.
Face a uma simultnea invisibilidade social dos ciganos, que se encontra subjacente
sua excluso social e excessiva visibilidade negativa dos mesmos, assiste-se, por outro
lado, a um crescente esforo da sua parte, no sentido da adopo de medidas de insero
e de promoo social do seu povo. Existe hoje uma elite intelectual cigana europeia que
organiza e promove congressos e encontros, onde se debatem questes sobre a educao
e o futuro dos jovens ciganos, onde se esbatem sentimentos de medo e desconfiana
sobre a escolarizao das mulheres ciganas, e onde se equaciona a prpria relao com
os gadj.
Como acontece com a maioria dos grupos minoritrios, no campo da investigao em
Psicologia Social, os Ciganos tm sido considerados sujeitos passivos, devido
tendncia para incriminar e imputar s minorias a responsabilidade da discriminao a
que so sujeitas (Moscovici & Prez, 1999), fenmeno reflectido nas polticas europeias
que implicam, predominantemente, uma adaptao unilateral dos grupos
estigmatizados. O carcter unilateral desta anlise tem conduzido, assim, a que a
pesquisa se centre maioritariamente nas percepes por parte do grupo dominante,
considerado como nico sujeito activo neste processo (Lorenzi-Cioldi, 2003; Shelton,
2000).
Por outro lado, a pluralizao socio-demogrfica das sociedades europeias,
decorrente dos constantes fluxos migratrios, tem suscitado um crescente interesse pelo
estudo das minorias, o que, por sua vez, atrai o interesse da Psicologia Social, pelo facto
de se levantarem novos problemas e de se equacionarem e analisarem outras variveis,
como o papel da histria e da cultura das prprias minorias (Verkuyten, 2000). Tambm
-
em Portugal a crescente pluralidade da sociedade, sensivelmente desde a dcada de 70,
motivada pelo crescente nmero de imigrantes oriundos, num primeiro momento, de
pases africanos e, mais recentemente, dos pases de Leste, tem conduzido a um cada
vez maior nmero de pesquisas sobre relaes intergrupais, sobretudo com brancos e
negros (e.g., Cabecinhas, 2002; Vala, Brito & Lopes, 1999; Vala, no prelo), sendo, no
obstante, escassos os estudos que analisam as relaes da maioria branca com os
ciganos (e.g., Correia, Brito & Vala 2001).
Pese o facto da histria dos grupos sociais afectar a sua auto-definio e a percepo
da natureza e legitimidade das relaes tnicas na sociedade (e.g., Monteiro, Lima &
Vala, 1994; Verkuyten, 2000), e decorrente daquilo que julgamos ser uma lacuna na
investigao da Psicologia Social no contexto portugus, o presente trabalho procura
inverter a tendncia da pesquisa, ao centrar-se nas percepes de um grupo minoritrio
particular os ciganos e, mais concretamente, das crianas ciganas. Para tal, fomos ao
seu encontro nos bairros onde residem e nas escolas que frequentam, numa tentativa de
dar conta daquilo que elas pensam, daquilo que elas sentem no presente e sobre o
futuro, numa gesto continuada de relaes com diferentes grupos da sociedade onde os
Rom (sobre)vivem.
2. A investigao em Psicologia Social: os processos intergrupais em adultos e em
crianas
No obstante os 60 anos de pesquisa em Psicologia Social sobre os fenmenos
implicados nas relaes intergrupais, nomeadamente sobre processos scio-cognitivos,
como por exemplo a identidade social (e.g., Tajfel, 1978a), os esteretipos, (e.g., Katz
& Braly, 1933), o preconceito (e.g., Allport, 1954; Katz, 1982) e a discriminao (e.g.,
-
Aboud, 1988), a anlise destes fenmenos continua a merecer um lugar central no
campo desta disciplina (e.g., Bennet, Lyons, Sani & Barrett, 1998; Devine, 1989; Hogg
& Abrams, 2001; Vala, 1999). No decorrer deste perodo, alguns modelos de anlise
tericos foram propostos e desenvolvidos a Teoria dos Conflitos Realistas (Sherif,
1967), a Teoria da Identidade Social (TIS) (Tajfel & Turner, 1986) e a Teoria da Auto-
Categorizao (Turner et al., 1987) , dando origem a investigaes, quer
experimentais, quer de grupos sociais naturais, com diferentes posies na estrutura
socio-econmica da sociedade, conduzidas, no entanto, maioritariamente com brancos
e negros.
Um grande nmero de psiclogos sociais tem defendido que os processos
intergrupais so aspectos importantes para o estudo da diferenciao intergrupal, dos
esteretipos e do preconceito, da identidade e das atitudes raciais, no s em adultos,
como tambm nas crianas (e.g, Allport, 1954; Clark & Clark, 1939; Goodman,
1952/1964; Katz, 1982; Powlishta, 1995; Sherif & Sherif, 1965). Foi neste sentido que,
desde a proliferao inicial da investigao sobre as relaes intergrupais com adultos,
um considervel leque de pesquisa tem sido produzido paralelamente com crianas
(Aboud, 1988; Bigler, Jones & Lobliner, 1997; Frana & Monteiro, 2002; Milner, 1983;
Nesdale, 1999; Nesdale & Flesser, 2001; Spencer & Markstrom-Adams, 1990;
Verkuyten & Kinket, 2000).
A conceptualizao do desenvolvimento infantil, no domnio da cognio tnica, tem
sido feita atravs da aplicao de modelos da perspectiva neo-piagetiana (ver Quintana,
Ybarra, Gonzalez-Doupe & De Baessa, 2000). Nesta linha, utilizando a teoria de
Kohlberg (1983), alguns autores tm mostrado que o desenvolvimento moral est
associado com o preconceito intergrupal em crianas (e.g., Davidson, 1976). Tambm
Aboud (1987), aplicando os princpios piagetianos da conservao da substncia
-
(Piaget, 1965/1996), salientou o desenvolvimento da constncia tnica e a sua
importncia no processo de identificao. Ainda, Aboud e Doyle (1995) tm posto em
destaque o modelo cognitivo-desenvolvimentista para a compreenso das mudanas nas
atitudes raciais das crianas e no preconceito, uma vez que enfatizam o papel das
mudanas de desenvolvimento cognitivo no modo como a criana processa informao
social, tnica e racial.
No contexto portugus, a pesquisa com crianas de minorias tem incidido,
essencialmente, sobre a construo da identidade tnica, as percepes de variabilidade
endo e exogrupal (Frana & Monteiro, 2002; Maurcio & Monteiro, 2002; Monteiro,
2001; Mouro, Monteiro & Guinote, 2002) e a reduo do preconceito intergrupal
(Rebelo, Matias & Monteiro, 2002) e ainda a socializao do preconceito (Carvalho,
Mouro, Antnio & Monteiro, 2002).
3. Objectivos gerais do trabalho
O presente trabalho visa, assim, contribuir para a investigao que tem sido feita com
membros de minorias dominadas, e nomeadamente em contexto infantil, tentando
colmatar o que julgamos serem algumas lacunas deste campo de pesquisa. Deste modo,
um dos nossos objectivos consiste em compreender a dinmica psicolgica e relacional
da minoria cigana, numa situao de comparao com crianas da maioria branca e
numa situao de comparao no s com os membros da maioria, mas tambm com
membros de um grupo de igual estatuto minoritrio o grupo de crianas negras.
-
4. Plano do trabalho
A leitura do presente trabalho poder ser feita em trs partes. Numa primeira parte
comearemos por apresentar um breve enquadramento terico ao primeiro estudo que
realizmos, cujo objectivo consiste em testar o papel moderador de variveis cognitivo-
emocionais na relao entre a identidade e as estratgias de aculturao que as crianas
ciganas pretendem adoptar para diferentes esferas da sua vida, e entre a identidade e as
emoes e comportamentos que as crianas ciganas expressam em relao s crianas
da maioria. Nesta primeira parte sero revistos alguns dos conceitos e perspectivas de
anlise do quadro terico da Psicologia Social e da Psicologia Social do
Desenvolvimento, que assumem um papel fundamental no contexto da nossa pesquisa,
sublinhando-se, particularmente, a perspectiva terica da identidade social (Tajfel &
Turner, 1979) e da auto-categorizao (Turner et al., 1987). Sero, tambm, abordadas
algumas das perspectivas tericas que se debruam sobre os conceitos de auto-
esteretipos, meta-esteretipos, meta-emoes, e percepo de discriminao, e sobre as
estratgias de aculturao. De seguida, ser descrito o primeiro estudo, correlacional,
conduzido com crianas ciganas sendo, depois, descritos e discutidos os seus principais
resultados.
Na segunda parte deste trabalho faremos uma breve reviso de literatura sobre duas
temticas fundamentais: (1) o processo de comparao social, estudado inicialmente por
Festinger (1954) e, mais tarde enquadrado nas pesquisas de Allport (1954) e de Tajfel e
Turner (1979), bem como os novos desenvolvimentos tericos deste campo de pesquisa,
que tm salientado o processo de comparao entre grupos minoritrios (Pettigrew,
1979; White & Langer, 1999). Decorrente desta problemtica, analisa-se o papel do
processo de comparao nas avaliaes inter e intragrupais. Outra temtica, revista
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nesta segunda parte, remete para os modelos tericos sobre as atribuies causais e
sobre os enviesamentos atribucionais intergrupais. De seguida apresentado o segundo
estudo, quase-experimental, conduzido com crianas ciganas, negras e brancas, cujos
objectivos consistem em, por um lado, verificar a importncia das comparaes
horizontais entre grupos minoritrios na hierarquizao das preferncias tnicas e, por
outro, verificar o efeito da pertena tnica grupal e da pertena tnica do alvo nas
atribuies causais para uma tarefa bem sucedida, quando esto disponveis
comparaes horizontais entre grupos minoritrios. O final da segunda parte reservado
apresentao e discusso dos resultados do estudo.
Terminamos este trabalho com a apresentao das concluses gerais, apontando
crticas e limitaes, e sugerimos algumas direces que a investigao futura neste
domnio poder tomar.
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ESTUDO 1
1. Identidade Social e Estratgias de aculturao
1.1. Identidade social
A Teoria da Identidade Social (TIS), associada aos nomes de Tajfel e Turner (1986),
uma teoria de fenmenos e processos intergrupais. Apesar de, inicialmente, a TIS no
ter sido formulada para ter em conta os processos grupais em crianas, existem algumas
investigaes que, desde cedo, do conta da importncia da sua aplicao a este grupo
particular (e.g., Deschamps & Doise, 1978; Lemaine, 1974; Milner, 1983; Tajfel,
Flament, Billig & Bundy, 1971; Vaughan, 1978).
Desenvolvido a partir dos anos 70 (Tajfel, 1974, 1978a), o conceito de identidade
social assume, no quadro da TIS, uma posio explicativa privilegiada da diferenciao
e discriminao sociais (Brown, 2000; Deschamps, 1991; Hinkle & Brown, 1990;
Tajfel, 1981/1982;).
De acordo com Tajfel (1981/1982), a identidade social, por oposio identidade
pessoal, deriva do conhecimento que o indivduo detm sobre as categorias sociais s
quais pertence, bem como do valor e significado emocional que atribui a essa pertena.
Esta conceptualizao tridimensional da identidade social, postulada inicialmente por
Tajfel e evidenciada empiricamente no decorrer das ltimas dcadas (para uma reviso
ver Jackson, 2002; Jackson & Smith, 1999), enfatiza, assim, uma componente cognitiva,
relativa ao conhecimento da pertena ao grupo, uma componente avaliativa, respeitante
ao valor da pertena, e uma componente afectiva, que corresponde ao significado
emocional dessa pertena.
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1.1.1. Identidades simples e identidades mltiplas: a pertena a um grupo e a pertena
simultnea a diferentes grupos sociais
A aquisio de uma identidade social pressupe um processo fundamental anterior: o
processo de categorizao social (Tajfel, 1972). Os indivduos categorizam os estmulos
sociais, da mesma forma que categorizam estmulos fsicos, analisando diferenas e
semelhanas entre as categorias disponveis, mas tambm se colocam dentro de
categorias sociais e, neste sentido, auto-categorizam-se. De acordo com a Teoria da
Identidade Social (Tajfel, 1981/1982), o simples acto de categorizar permite diferenciar
categorias s quais o indivduo pertence endogrupos e categorias s quais o
indivduo no pertence (exogrupos). Numa sociedade pluralista, o processo de auto-
categorizao no pode, no entanto, ser visto como um fenmeno esttico e focalizado
sobre uma s pertena, j que os indivduos podero pertencer, simultaneamente, a
vrias categorias sociais. Especialmente, para as minorias, a categorizao um
processo que exige um considervel grau de complexidade, uma vez que os indivduos
podero pertencer, simultaneamente, a duas categorias sociais: uma que poder remeter
para o grupo tnico, que no nosso caso se poder traduzir na categoria cigano, e outra
relativa nacionalidade, que no nosso contexto poder remeter para a categoria
portugus. A este propsito, Hutnik (1991) postula, em termos tericos, que os
indivduos podero optar por quatro tipos de auto-categorizao: a assimilao, que
remete para uma auto-categorizao por referncia ao grupo maioritrio (e.g., ser
portugus), a dissociao, que se traduz na escolha da categoria tnica (e.g., ser cigano),
a aculturao, que implica a escolha simultnea das categorias nacional e tnica, ou a
marginalizao, que implica a negao de ambas as categorias referidas. Nesta linha de
pesquisa, Maurcio e Monteiro (2002) verificaram, empiricamente, estes quatro tipos de
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auto-categorizao numa amostra de jovens cabo-verdianos de nacionalidade
portuguesa.
Recentemente, Ros, Huici e Gmez (2000) (ver tambm Huici et al., 1997)
propuseram o conceito de identidade comparativa para dar conta da possibilidade de
auto-categorizaes e identificaes simultneas, com pelo menos duas categorias
sociais, que operacionalizam com a regio (categoria de incluso mais baixa) e com a
nacionalidade (categoria de incluso mais alta).
1.1.2. A dimenso avaliativa da identidade social
To importante como a conscincia da pertena a uma ou mais categorias sociais o
valor atribudo a essas categorias de pertena. Apesar do reduzido nmero de autores
que inclui, explicitamente, esta dimenso (para uma reviso ver Jackson, 2002), a
literatura mostra que ela tem sido medida atravs de diferentes indicadores: orgulho
(Tyler et al., 1996) e satisfao com o grupo, atitudes positivas e negativas em relao
ao grupo (Phinney, 1990, p. 504), sentimentos positivos e negativos associados ao
grupo em questo, ou atravs do valor ou importncia atribudos categoria de pertena
(Brown, Condor, Mathews, Wade & Williams, 1986; Monteiro, Lima & Vala, 1994).
Uma consequncia da avaliao positiva da(s) categoria(s) de pertena remete para o
facto dos indivduos poderem incorporar aspectos do grupo no seio do auto-conceito. Os
atributos subjacentes pertena endogrupal, ao tornarem-se parte do auto-conceito,
influenciam as percepes, as avaliaes e os comportamentos do indivduo (Hogg &
Turner, 1987; Smith, Coats & Waling, 1999; Smith & Henry, 1996), e fazem com que
este se torne mais vigilante e manifeste respostas mais reactivas em relao aos
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membros do exogrupo (Postmes, Branscombe, Spears & Young, 1999; Operario &
Fiske, 2001).
1.2. Estratgias de adaptao sociedade dominante
Na generalidade, a nvel mundial calcula-se que existam, quase no final do sculo
XX (mais precisamente em 1997), cerca de oitenta milhes de imigrantes e 18 milhes
de refugiados. Portugal no uma excepo. Nos ltimos dez anos tem-se assistido a
uma intensificao do nmero de estrangeiros no nosso pas: em 1999 surgem-nos
legalmente registados 190 896 estrangeiros, sendo 47% oriundos de frica (Baganha &
Marques, 2001). Estes nmeros implicam que, pela sua complexidade, o fenmeno da
migrao seja uma questo de interesse mundial. Como resultado, muitas sociedades
tornaram-se culturalmente plurais, o que implica uma gesto continuada das relaes
entre mltiplos grupos sociais, uns com estatuto social mais elevado, ou dominantes, e
outros cujo estatuto social mais baixo, ou dominados (Deschamps, 1984; Tajfel,
1981/1982). Os imigrantes que temporria ou permanentemente so acolhidos numa
sociedade, ou as ditas minorias nacionais, como o caso dos ciganos, so claros
exemplos destes ltimos grupos.
1.2.1. Estratgias de aculturao
Quando dois grupos interagem entre si, surge o que Redfield, Linton e Herskovits
(1936) designaram por aculturao. De acordo com estes autores, este processo
compreende os fenmenos que surgem quando grupos de indivduos de diferentes
culturas se encontram em contacto, conduzindo a subsequentes mudanas nos padres
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da cultura de origem de ambos os grupos (...) (p. 153, citado por Berry et al., 1986).
Desta definio decorrem duas consideraes. A primeira que, apesar desta definio
conceptual, na prtica, o processo de aculturao tende a induzir mais mudanas num
grupo do que noutro (Berry, 1997). A segunda considerao consiste em constatar que,
no obstante o conceito de aculturao ser largamente usado na literatura, o mesmo no
deixa de ser criticado por ter perdido o seu significado inicial, sendo cada vez mais
confundido com o conceito de assimilao (Berry, 1997).
Nesta linha, a literatura tem descrito diversos modelos que permitem analisar as
relaes entre os grupos de imigrantes e as sociedades de acolhimento (para uma
reviso ver Liebkind, 1999; Nguyen & Eye, 2002). Alguns autores (e.g., ver Franco,
1983) propem um modelo bipolar, no qual o processo de aculturao considerado
como um processo assimilativo: as minorias adquirem ou no comportamentos e valores
da sociedade de acolhimento, o que conduz existncia de indivduos com elevada
aculturao e indivduos com baixa aculturao, respectivamente. A manuteno da
cultura do endogrupo e os contactos com a maioria dominante so considerados
fenmenos bipolares, de um mesmo continuum.
Contrariamente aos modelos bipolares, outros autores propem um modelo bi-
dimensional de aculturao. A este propsito, Ryder, Alden e Paulhus (2000),
comparando os modelos bipolar e bi-dimensional, em trs estudos distintos, concluram
que estes ltimos possuem maior validade e mostram ser mais teis na
operacionalizao do conceito de aculturao.
No mbito dos modelos tericos bidimensionais, o modelo clssico de Berry (1980)
um dos modelos que tem recebido mais suporte emprico. De acordo com este
modelo, existem diferentes estratgias de aculturao que so formadas a partir da
resposta dada a duas questes distintas: importante manter a identidade e as
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caractersticas do seu grupo?; importante manter as relaes com a sociedade de
acolhimento?. A este propsito, Phinney (1990) sublinha que os membros de minorias
podem ter tanto uma forte como uma fraca identificao com ambos os grupos; uma
forte relao com uma cultura no implica, necessariamente, uma fraca relao ou um
fraco envolvimento com a cultura dominante (p. 502). Trata-se de dimenses
independentes.
A integrao, semelhante ao conceito de biculturalismo (e.g., Cameron &
Lalonde, 1994), consiste numa orientao para a manuteno da integridade cultural do
grupo de pertena, coexistindo em simultneo um movimento para uma relao positiva
com a maioria dominante. Existe alguma evidncia emprica que sugere que as minorias
preferem a estratgia de integrao como estratgia de adaptao (e.g., Berry, Kim,
Power, Young, & Bujaki, 1989; Maurcio & Monteiro, 2002).
A estratgia de assimilao consiste, por outro lado, na perda total ou rejeio da
identidade cultural de origem e na interiorizao das normas da sociedade dominante.
Se, por outro lado, os indivduos evitam o contacto com a sociedade de acolhimento,
rejeitando os seus costumes e valores de modo a manter e preservar a identidade cultural
do seu grupo de pertena, estamos perante uma estratgia de separao. Quando existe
uma situao de dupla negatividade em que ocorre, simultaneamente, uma
desvalorizao da cultura de origem e uma no participao na sociedade mais alargada,
falamos, ento, de uma estratgia de marginalizao.
Apesar de um considervel nmero de estudos, em diferentes pases, validar a
existncia dessas quatro estratgias (e.g., Kosic, 2002; Nguyen & Eye, 2002; van
Oudenhoven, Prins & Buunk, 1998), existem, contudo, outras evidncias empricas que
colocam limitaes a este modelo. Nesta linha, alguns estudos tm sugerido a
impossibilidade de encontrar, em certas populaes imigrantes, essas quatro dimenses
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independentes (e.g., Lopes, no prelo; Khan & Vala, 1999). Estes resultados no so,
todavia, surpreendentes, j que o prprio Berry (1980) tinha sugerido uma anlise
cuidada do seu modelo de aculturao, uma vez que este deveria ser visto como um
modelo ideal.
O modelo clssico de Berry pressupe, ainda, que os grupos dominados,
nomeadamente os grupos de imigrantes, escolhem livremente a estratgia que
pretendem adoptar, o que habitualmente no acontece. As estratgias de relao dos
imigrantes com a sociedade dominante no sero independentes das estratgias que esta
pretende e impe aos mesmos. Nesta linha, um considervel leque de pesquisa tem-se
centrado, no apenas na anlise e compreenso das estratgias de aculturao das
minorias, mas tambm das maiorias dominantes (Berry, 2001). Particularmente,
Bourhis, Moise, Perreault e Sncal (1997) sugerem um outro modelo que enfatiza as
orientaes de aculturao da sociedade de acolhimento e o modo como esta poder
influenciar as orientaes adoptadas pelo grupo de imigrantes. semelhana do modelo
de Berry e colaboradores (1989), esta anlise feita a partir de duas questes: Aceita-
se que o grupo minoritrio adopte a cultura da sociedade de acolhimento? e Pretende-
se que o grupo minoritrio conserve a sua identidade?. A resposta a estas questes d
origem a quatro estratgias da sociedade de acolhimento em relao s minorias: uma
estratgia integracionista, uma estratgia assimilacionista, uma estratgia
segregacionista e uma estratgia de excluso.
Por outro lado, importante salientar que a adopo das diferentes estratgias de
aculturao est, tambm, dependente de outras variveis, tais como a do estatuto
geracional do indivduo em causa. Acrescente-se ainda que, apesar de no existir uma
sequncia ou idade para adoptar cada uma dessas estratgias, a sua adopo parece
poder variar no decorrer do desenvolvimento (Berry, 1997).
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Dado o carcter relacional ou contextual das estratgias de aculturao (e.g.,
Horenczyk, 1997; Verkuyten, 2002) e com base no modelo de aculturao de Berry e
colaboradores (1989), outros autores tm desenvolvido modelos paralelos voltados para
a identificao das estratgias de relao com a maioria, reais e ideais e em diferentes
esferas da vida (Navas, Snchez, Garcia, Molero, Cuadrado, 2002). Krishnan e Berry
(1992) sublinham que em domnios mais privados, tal como em casa, no seio da
comunidade ou da famlia alargada, existe maior probabilidade de os indivduos
optarem por estratgias de manuteno da cultura do seu grupo e por uma menor
valorizao dos contactos intergrupais.
O peso da histria das relaes (hostis) entre as maiorias europeias e os Ciganos,
bem como a existncia de alguns dados que sugerem que os Rom, em geral, no
querem integrar-se, se isso significar perder os sinais de identidade (SOS Racismo,
2001), conduzem-nos, necessariamente, a uma reflexo mais aprofundada sobre a
relao que os ciganos pretendem manter com os gadj. Neste sentido, os modelos de
compreenso dessa relao sero os mesmos que so utilizados para estudar a relao
entre os imigrantes e as sociedades de acolhimento, uma vez que, apesar dos Ciganos
no serem considerados verdadeiros imigrantes, pelo facto de no terem um pas de
origem, a sua condio tem sido, no entanto, sempre associada a um sentimento de
estranheza que lhes confere um estatuto de estrangeiros nos prprios pases de
residncia.
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1.2.1.1.Identidade e estratgias de aculturao
As estratgias de aculturao adoptadas pelos imigrantes tm sido vistas enquanto
estratgias de adaptao sociedade dominante, ou como reflectindo uma identidade
grupal experienciada pelos imigrantes e que reflecte maior ou menor identificao com
a cultura de origem e com a cultura dominante (Griffiths, 2002). Deste modo,
semelhana de Berry, a identidade tnica e a identidade enquanto membro de uma
sociedade de insero tm sido pensadas como duas dimenses independentes da
identidade social dos grupos imigrados, o que d origem a uma identidade integrada e a
uma identidade separada (Bourhis et al. 1997). Neste sentido, muitas vezes a pesquisa
que feita no faz uma diferenciao clara entre as estratgias de aculturao e o
conceito de identidade tnica (Tajfel, 1978b; Phinney, 1992). O prprio conceito de
aculturao tem sido integrado no conceito de identidade tnica (ver Neto, 2000) e,
neste sentido, as quatro estratgias individuais de auto-categorizao (assimilativa,
aculturativa, dissociativa e marginal) postuladas teoricamente por Hutnik (1991), so
tambm usadas para medir as estratgias de adaptao cultural.
No nosso estudo pretendemos diferenciar claramente o conceito de identidade social
do conceito de estratgias de aculturao, tentando averiguar, semelhana de outros
autores, a relao existente entre estes dois fenmenos. Nesta linha, alguns estudos
sugerem uma relao positiva entre as estratgias de aculturao de Berry,
particularmente a separao e a integrao, e a identidade social dos indivduos. Por
exemplo, num estudo com participantes das vrias regies autnomas espanholas, Ros,
Huici e Gmez (2000) verificaram que os indivduos com identidade nacional e regional
elevadas mostram uma preferncia pela estratgia de integrao, enquanto que os
indivduos com identidade nacional baixa e identidade regional elevada escolhem mais
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uma estratgia de separao. Tambm Verkuyten (2002) constatou que, quanto maior
for a identificao com o endogrupo, maior a probabilidade dos membros pretenderem
preservar a sua cultura de origem.
Apesar da escassez de pesquisa centrada sobre as estratgias de aculturao e da
relao destas com a identidade dos indivduos, no contexto portugus, recentemente,
Neto (2000) averiguou as estratgias de aculturao em adolescentes timorenses que
vivem em Portugal e verificou uma relao entre a identidade e as estratgias de
aculturao. Mostrou, nomeadamente, que quanto mais os indivduos escolhem uma
estratgia de separao, maior o grau de identificao com o grupo timorense.
Apesar da pertinncia terica e prtica subjacente ao estudo da identidade social e
das estratgias de aculturao, bem como da relao que estas variveis mantm entre
si, grande parte da pesquisa que tem sido conduzida com crianas tem-se centrado,
apenas, ao nvel da identidade social (Griffiths, 2002), descurando-se o estudo das
estratgias de aculturao com esta populao especfica e da relao desta varivel com
a identidade. O seguinte ponto rev, de forma sucinta, alguns dos tpicos de pesquisa
analisados no quadro infantil.
1.3. Auto-categorizao, avaliao da(s) pertena(s) categorial(is) e estratgias de
aculturao em crianas
Na sequncia dos primeiros trabalhos de Goodman (1952/1964), datados dos anos
50, sobre a construo da identidade social ou tnica em crianas, um considervel
nmero de pesquisas foi produzido em torno da mesma problemtica (Holmes, 1995).
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Numa perspectiva da Psicologia Social do Desenvolvimento, a auto-categorizao
corresponde aquisio, feita pela criana, de uma etiquetagem precisa e consistente,
baseada na percepo e concepo de si como pertencente a um ou mais grupos (Lange,
1989; Rotheram & Phinney, 1987). Baseia-se, tambm, em juzos de valor que nos so
transmitidos no incio do desenvolvimento moral e cognitivo (Aboud, 1988).
Essa etiquetagem torna-se mais elaborada e diferenciada com a idade, implicando,
nesse sentido, um conjunto de aquisies cognitivas, nomeadamente a reversibilidade, a
descentrao, a generalizao, a organizao e a constncia (Aboud, 1988; Milner,
1983). Esta aquisio parece estar completa, habitualmente, entre os 6 e os 8 anos de
idade (e.g., Aboud, 1988; Brown, 1995). Mackie, Hamilton, Susskind e Rosselli (1996)
referem, especificamente, os 7 anos como a idade significativa, em termos
desenvolvimentistas, para a aquisio dos processos cognitivos relacionados com a
comparao social e com a categorizao.
Mas, apesar da aquisio dos referidos processos parecer estar completa por volta
dos 8 anos de idade, isso no significa que as crianas mais novas no sejam capazes de
se auto-categorizar. Com efeito, alguns dos primeiros estudos sobre a categorizao,
realizados com negros e brancos nos EUA (e.g., Clark & Clark, 1947; Horowitz &
Horowitz, 1938), verificaram que a dimenso tnica da categorizao social
percepcionada desde muito cedo; Clark e Clark (1947), especificamente, constataram
que aos trs anos 60% das crianas se auto-categorizam correctamente e aos cinco anos
de idade essa percentagem sobe para 90%.
Alguns resultados tm, contudo, evidenciado diferenas na auto-categorizao em
crianas de grupos de estatutos diferentes (e.g., Aboud, 1977, 1980). Um dos estudos
clssicos ilustrativos desta realidade foi conduzido por Milner (1973), em Inglaterra,
com 100 crianas inglesas, 100 paquistanesas e 100 indianas dos 5 aos 8 anos,
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verificando-se que a totalidade das crianas inglesas se auto-categorizava
correctamente, enquanto nas crianas de origem paquistanesa e indiana essa
percentagem foi de 52% e de 76%, respectivamente. Tambm Vaughan (1964), num
estudo realizado na Nova Zelndia com crianas brancas (da maioria) e Maori (da
minoria), constatou que 60% das crianas da minoria se auto-categorizavam
correctamente, contrastando com os 90% nas crianas da maioria branca.
Pese o facto da criana se auto-categorizar correctamente dentro de uma ou mais
categorias sociais ou tnicas, isso nem sempre significa que essa ou essas categorias
sociais sejam importantes para o seu auto-conceito (e.g., Kinket e Verkuyten, 1997).
semelhana de Tajfel, alguns autores (Clark & Cook, 1988; Goodman, 1952/1964;
Kinket & Verkuyten, 1997) tm enfatizado que o processo de auto-categorizao nas
crianas tambm acompanhado por uma vertente avaliativa.
A avaliao da pertena das crianas a uma ou mais categorias sociais tem sido
medida atravs da auto-estima, da percepo de semelhana, do desejo de mudar de
categoria social, da fantasia de poder voltar a nascer numa outra categoria social (Frana
& Monteiro, 2002; Hutnik, 1991; Milner, 1983; ver Monteiro, 2002), ou do valor
associado pertena categorial (e.g., Monteiro & Castro, 1996). Essa avaliao da
pertena tnica feita com base num processo de comparao entre a sua categoria e
outras categorias sociais. Decorrente do processo de comparao social, as crianas
podero apresentar uma identidade tnica positiva quando avaliam positivamente o
endogrupo, ou uma identidade tnica negativa se essa avaliao apresentar valncia
negativa.
A conscincia e avaliao da pertena categorial dificilmente so feitas sem se ter
tambm em conta um conjunto de emoes, de conflitos e desejos decorrentes do valor
que a sociedade atribui a essa ou essas categorias (Milner, 1983). Neste sentido, se por
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um lado as crianas de estatuto elevado e de grupos dominantes avaliam positivamente
a sua pertena, o que consistente com o valor que a sociedade, em geral, lhe atribui, o
mesmo poder no acontecer com as crianas pertencentes a minorias (ver Ramsey,
1987). A avaliao da pertena categorial constitui-se, assim, como um processo
complexo, que poder despoletar um conflito avaliativo sempre que a criana avaliar
positivamente a sua pertena, apesar de ter conscincia que a avaliao que a sociedade
faz dessa categoria , em geral, negativa ou desfavorvel (ver Frana & Monteiro,
2002).
Ser membro de um grupo minoritrio desvalorizado no significa, pois, que a
avaliao que a criana faz do seu grupo seja sempre, ou habitualmente, negativa. Nesta
linha, Kinket e Verkuyten (1997) verificaram que as crianas turcas que vivem na
Holanda, com idades compreendidas entre os 10 e os 13 anos, se auto-categorizam
como turcas e avaliam esta categoria social de modo positivo, embora percebam que a
sociedade holandesa discrimina os membros da sua comunidade. Este resultado poder
ser lido luz da TIS (Tajfel & Turner, 1986). De acordo com esta teoria, ser membro de
um grupo minoritrio constitui uma ameaa para o auto-conceito, o que poder conduzir
a uma acentuao da distintividade positiva. Por outro lado, os membros de minorias
podero avaliar a sua pertena de modo mais positivo, em situaes onde as fronteiras
so percebidas como impermeveis e o estatuto como relativamente estvel (e.g., Tajfel,
1978b), ou quando existe uma elevada percepo de discriminao. Consequentemente,
num quadro de assimetrias de estatuto, quando as relaes entre grupos esto
associadas a sentimentos muito fortes, o atributo central que determina uma clivagem
intergrupal (nomeadamente a raa nos ciganos), aumenta a importncia na definio
da identidade e d lugar a atitudes e comportamentos mais extremos (Monteiro, 2002,
p. 281).
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No que diz respeito s crianas ciganas, o papel da cultura e da Lei cigana parece
ser habitualmente enfatizado e lembrado, o que poder tornar a sua identidade tnica
mais saliente. De facto, de acordo com o Grupo de Trabalho para a Igualdade e Insero
dos Ciganos (1998), na generalidade, os ciganos portugueses continuam a reconhecer-
se numa identidade cultural assente num cdigo de honra especfico, numa lngua, o
cal, na procura de manuteno de uma identidade prpria face aos no ciganos (p.
17).
Dada a inexistncia de uma caracterizao inicial da(s) identidade(s) das crianas
ciganas, no contexto portugus, este aspecto constitui-se como um primeiro objectivo
que nos propomos no presente trabalho. Como foi sublinhado, a possibilidade que pode
ser dada aos indivduos no sentido de se auto-categorizarem em mais de uma categoria
social, deve ser um aspecto a ter em conta quando se pretende medir a sua identidade.
Neste sentido e semelhana de outros autores (Liebkind, 1999; Maurcio & Monteiro,
2002; Phinney, 1990; Ros et al., 2000), no presente trabalho procurmos possibilitar um
processo de categorizao alargado a mais do que uma categoria social, com o intuito de
averiguar a que categoria ou categorias sociais as crianas ciganas recorrem para se
auto-categorizar.
A caracterizao psicossocial das dimenses tnica e nacional da identidade social
das crianas ciganas, , simultaneamente, ponto de partida para uma anlise da relao
existente entre essas identidades e as estratgias de aculturao que as crianas ciganas
pretendem adoptar na sua relao com a sociedade maioritria, fenmeno que no foi
ainda analisado no contexto portugus, nem com membros desta minoria e nem dentro
de um quadro infantil. E dado o carcter contextual das estratgias de aculturao,
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propomo-nos tambm verificar se a adopo dessas estratgias varia em funo de
diferentes esferas de vida.
2. Identidade social, expresses do preconceito e estratgias de aculturao
Um outro tpico de pesquisa, amplamente estudado no mbito da Psicologia Social,
remete para a relao entre a auto-categorizao e o preconceito. Os trabalhos de
pesquisa nesta rea comearam a surgir em meados da dcada de 70, conduzindo
posteriormente a um vasto leque de investigao que mais recentemente englobado no
campo da cognio social.
2.1. Identidade e expresses do preconceito
2.1.1. Identidade e preconceito
De acordo com o modelo da diferenciao categorial postulado por Doise (1978), a
categorizao dos indivduos em grupos mutuamente exclusivos conduz acentuao
das semelhanas percebidas dentro dos grupos e percepo de diferenas entre grupos.
semelhana de Doise (1978), o trabalho inicial de Tajfel (1969) incidiu sobre os
aspectos cognitivos do preconceito e, neste sentido, postula igualmente que a
categorizao social, per se, suficiente para gerar discriminao intergrupal devido ao
princpio de acentuao: a categorizao de estmulos produz um efeito de acentuao
perceptiva que se traduz na percepo de semelhanas intracategoriais e na percepo
de diferenas intercategoriais (Tajfel, 1981/1982). Ou seja, para Tajfel os esteretipos
surgem a partir do processo de categorizao. Tajfel associa, ainda, a discriminao
-
intergrupal a aspectos motivacionais: a categorizao social faz despoletar um processo
de comparao social; uma vez que os indivduos esto motivados para a aquisio ou
manuteno de uma auto-estima e de uma distintividade intergrupal positivas, uma das
estratgias para a sua aquisio ou manuteno consiste em favorecer mais o endogrupo
do que o(s) exogrupo(s), traduzindo o que habitualmente designado por
enviesamentos endogrupais.
O estudo da conscincia e valorizao da pertena a mltiplos grupos tem mostrado
ser um tpico de pesquisa importante, em termos tericos e empricos, no s pelo facto
de reflectir melhor a dinmica cognitiva e emocional dos indivduos (Crisp &
Hewstone, 2001), mas tambm pelo seu potencial em termos de reduo dos
enviesamentos intergrupais (Gaertner & Dovidio, 2000; Hewstone, 2000).
Particularmente, no decorrer dos ltimos vinte anos um certo nmero de pesquisas,
conduzidas essencialmente com indivduos adultos, tem estudado, para alm da
categorizao simples, a categorizao mltipla enquanto processo bsico para a
compreenso do seu papel na reduo da discriminao intergrupal. Os estudos iniciais
de Deschamps e Doise (1978) sobre a categorizao cruzada (tomando como
categorias o sexo e a idade em crianas) mostraram que a categorizao simultnea em
duas categorias reduzia a discriminao intergrupal, enquanto que a categorizao
simples a mantinha. Vanbeselaere (1987), replicando o estudo inicial de Deschamps e
Doise (1978), com algumas reformulaes decorrentes das crticas apontadas por Brown
e Turner (1979) a esse mesmo estudo, encontrou resultados semelhantes. Tambm
Commins e Lockwood (1978), num estudo levado a cabo da Irlanda do Norte com
grupos religiosos, observaram que a discriminao intergrupal diminua nos grupos
onde havia uma categorizao cruzada.
-
No seguimento dos trabalhos iniciais sobre categorizao cruzada (e.g., Brown &
Turner, 1979; Deschamps & Doise, 1978), outros modelos tericos reflectem as
tentativas que a investigao tem feito no sentido de activar, intencionalmente,
identificaes com grupos de pertena diferentes, com base na manipulao de duas
dimenses categoriais (activao simultnea de uma identidade grupal nacional, e de
uma identidade subgrupal regional ou tnica, por exemplo), e analisar os efeitos dessa
manipulao sobre o aumento ou reduo do favoritismo endogrupal. Nestes modelos
postulada a possibilidade de escolha de diferentes identidades, ou de identidades em
diferentes graus de inclusividade. Os modelos das identidades duais hierarquizadas
(ver Brewer & Gaertner, 2001) ou da identidade dual (e.g., Gaertner & Dovidio,
2000) so um exemplo daqueles. Estes modelos sublinham a possibilidade de,
simultaneamente, os indivduos se perceberem como membros de grupos diferentes (o
que conduz a uma maior percepo de diferenciao) e como membros de uma entidade
supra-ordenada (o que conduz a uma maior percepo de inclusividade e de
semelhana).
Recentemente, Ros, Huici e Gmez (2000), nas suas pesquisas sobre a identidade
comparativa, verificaram que a identificao alta em ambas as categorias (regio e
nacionalidade), torna cada uma delas menos saliente, o que conduz reduo de
enviesamentos pr-endogrupo.
O facto do conceito de auto-categorizao estar teoricamente associado ao estudo das
cognies, atitudes e comportamentos intra e intergrupais (Tajfel & Turner, 1986),
torna-o um importante ponto de partida para compreender os enviesamentos
intergrupais. nesta linha que devemos sublinhar que os modelos referidos
anteriormente enfatizam que a reduo da salincia das categorias de pertena diminui
os julgamentos baseados nas representaes do endogrupo e do exogrupo o que,
-
consequentemente, diminui os enviesamentos intergrupais e a discriminao
intergrupal, minimizando a importncia da informao estereotpica sobre o exogrupo
(Messick & Mackie, 1989; Miller, Brewer & Edwards, 1985; Vanbeselaere, 1991).
Apesar da importncia das variveis cognitivas para a compreenso da emergncia
de esteretipos intergrupais e da discriminao, inicialmente evidenciadas por Tajfel
(1978a) e por Turner e colaboradores (1987), estudos posteriores tm, tambm,
demonstrado a importncia de variveis como o estatuto dos grupos e a percepo da
sua estabilidade e legitimidade e permeabilidade intergrupal (Tajfel & Turner, 1979)
para a explicao desses fenmenos.
2.1.2. Auto-esteretipos e meta-esteretipos
Lippman (1922) introduziu o conceito de esteretipos no mbito das cincias
sociais e, por isso, considerado como o iniciador da sua concepo contempornea e
das suas funes psicossociais. Anos mais tarde, retomando Lippman, Katz e Braly
(1933), Allport (1954) e tambm Tajfel, na dcada de 70, lanaram as bases do estudo
dos esteretipos no mbito da psicologia social.
Poderemos considerar os esteretipos como um sistema de crenas acerca dos traos
e atributos psicolgicos que caracterizam um grupo (Vala, 1999), construes sociais
(Tajfel, 1981/1982) que agem como teorias, ou representaes sociais dos atributos de
outros grupos (ver Farr & Moscovici, 1984). Os esteretipos fornecem uma perspectiva
comum da realidade que regula a percepo e a avaliao quando a identidade social
est saliente (Verkuyten, Drabbles & van Den Nieuwenhuijzen, 1999). Os esteretipos
dos dominantes sobre os dominados, quando negativos, tm como funes sociais a
legitimao das desigualdades sociais, a explicao dessas desigualdades e a
-
diferenciao positiva do endogrupo (Tajfel, 1981/1982). Especificamente, os
esteretipos que a maioria detm sobre os ciganos tendem a legitimar e a justificar a
situao de excluso de que estes tm sido alvo (Alcalde, 1997).
Os esteretipos aumentam, tambm, a ateno que dada aos comportamentos
negativos e extremos de membros de exogrupos (ver Fiske, 1980) e, por isso, interferem
na percepo que construda acerca daqueles. Quando, habitualmente, os grupos
minoritrios so associados a comportamentos negativos e a comportamentos extremos,
surge aquilo que se designa por correlaes ilusrias (Hamilton & Sherman, 1989).
Dados recentes (SOS Racismo, 2001) do-nos conta de alguns dos esteretipos e de
avaliaes particularmente negativas dos portugueses brancos sobre os ciganos: so
vistos como sujos, parasitas e com m aparncia fsica; so acusados de suscitar medo,
desconfiana e agressividade em situaes de interaco com outros grupos; as suas
actividades so associadas ao trfico de droga, furto, negcios ilcitos e ocupao de
terrenos privados.
Como foi j referido, existe uma tradio de pesquisa para analisar as percepes dos
dominantes sobre os dominados, particularmente os hetero-esteretipos que os
primeiros detm sobre os segundos, sendo escassos os estudos sobre os auto e hetero-
esteretipos dos grupos dominados. Esta , no entanto, uma questo pertinente dentro
do quadro terico da Psicologia Social, uma vez que alguns resultados sugerem que,
desde muito cedo, as minorias se tornam conscientes da estigmatizao e discriminao
de que o endogrupo alvo (Operario & Fiske, 2001).
Esta conscincia das minorias sobre a estigmatizao a que esto sujeitas, condu-las
a questionarem a possibilidade de o seu grupo apresentar, efectivamente, determinadas
caractersticas e traos negativos (Vorauer, Main & OConnell, 1998; Vorauer, Hunter,
Main & Roy, 2000).
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Porque a relao entre diferentes grupos um processo dinmico, uma situao de
interaco com a maioria dominante, na qual a identidade das minorias est mais
saliente, poder activar aquilo que alguns autores designam por meta-esteretipos
(Vorauer, Main & OConnell, 1998; Vorauer, Hunter, Main & Roy, 2000). Os meta-
esteretipos designam as crenas que os membros de um determinado grupo apresentam
acerca do esteretipo que outros grupos detm sobre eles (Rodrguez-Bailn, Gmez &
Puertas, 2002) e que, por sua vez, conduzem construo de uma determinada meta-
imagem (Lopes, no prelo).
Existe alguma evidncia emprica sobre o impacte dos meta-esteretipos nas
respostas de carcter afectivo e comportamental emitidas em relao a membros de
exogrupos (Vorauer et al., 1998), ou na imagem que construda acerca do exogrupo
(Rodriguz-Bailn et al., 2002). De acordo com Vorauer e col. (1998), pensar que os
outros tm esteretipos negativos em relao ao seu prprio grupo poder constituir
uma ameaa para o auto-conceito, podendo conduzir a uma auto-estima mais baixa, o
que, por sua vez, poder levar, de acordo com alguns resultados, a facilitar a
discriminao (e.g., Fein & Spencer, 1997; Wills, 1981). Assim, quando o indivduo
suspeita que o outro o v negativamente, desenvolve uma reaco de evitamento do
contacto com membros do exogrupo ou, quando tal inevitvel, reaces hostis e
sentimentos negativos para com esse membro do exogrupo, antecipando ainda emoes
negativas aquando da interaco (Vorauer et al., 1998). Recentemente, Lopes (no prelo)
verificou que os jovens negros residentes em Portugal expressam mais emoes
positivas relativamente aos portugueses quando consideram que estes tm uma imagem
positiva do seu grupo.
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Apesar da importncia da pesquisa recente sobre os meta-esteretipos, pelas suas
implicaes no mbito das relaes integrupais, ela tem, no entanto, sido escassa no
seio das minorias e dentro de um quadro infantil, uma vez que os estudos realizados tm
sido conduzidos, principalmente, com adultos pertencentes a maiorias (ver Vorauer et
al., 2000).
2.1.3. Emoes e meta-emoes intergrupais
Num contexto multi-tnico, a experincia directa e o contacto com diferentes grupos
conduz conscincia e ao desenvolvimento de diferenciaes e de atitudes intergrupais,
activando, simultaneamente, um conjunto de reaces de carcter emocional e
comportamental. A este propsito, Brown (1995) sugere que o preconceito poder ser
visto enquanto () expresso de afectos negativos, ou a manifestao de
comportamentos hostis ou discriminatrios face a membros de um dado grupo pela sua
pertena a esse grupo (p. 8).
A conceptualizao do preconceito, como correspondendo apenas a uma avaliao
negativa de um dado grupo, tem-se mostrado limitativa para a compreenso de algumas
reaces negativas em relao aos exogrupos (e.g., Leyens & Dsert, 2003; Mackie &
Smith, 1998; Smith, 1997; Vala, 1999). nesta linha que o papel dos processos
afectivos nas relaes intergrupais tem merecido um maior interesse, nomeadamente
durante os ltimos dez anos de pesquisa (e.g., Brewer & Miller, 1996; Leyens et al.,
2000; Mackie & Hamilton, 1993; Vala, 1999).
Smith (1993) sublinha que as pessoas reagem emocionalmente no apenas enquanto
indivduos, mas tambm como membros de um grupo social e, neste sentido, prope
(Smith, 1997) que o preconceito possa corresponder a uma reaco emocional
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geralmente negativa face a um exogrupo, baseada na relao percebida desse exogrupo
com o endogrupo. Este autor distingue cinco emoes principais associadas interaco
com o exogrupo: medo, raiva, inveja, repugnncia e desprezo. Tambm Dijker (1987),
num estudo sobre as emoes que trs grupos de imigrantes despertam nos holandeses,
distingue quatro emoes bsicas: ansiedade, que implica uma tendncia para manter a
distncia social, irritao, que implica uma tendncia para a agresso, preocupao, que
implica o desejo de que o exogrupo se mantenha distante, e humor positivo, que implica
uma tendncia para uma aproximao.
Por sua vez, nas crianas, as emoes negativas mais habituais em relao a outros
grupos correspondem desconfiana, ao medo e tristeza (Aboud & Amato, 2001).
Em relao aos ciganos, Alcalde (1997) sublinha que, em geral, as maiorias sentem
medo dos ciganos, existindo diferentes expresses desse medo, uma vez que se encontra
associado a diferentes aspectos, nomeadamente agresso fsica, ao contgio de
algumas doenas e destruio de espaos pblicos.
Stephan e Stephan (1985), por seu lado, desenvolveram um modelo sobre a
ansiedade intergrupal definida como uma ansiedade decorrente do contacto com
membros do exogrupo (p.158). Esta ansiedade decorre de trs tipos de factores:
natureza das relaes intergrupais prvias (quantidade e condies prvias de contacto),
factores situacionais e cognies intergrupais prvias, como os esteretipos em relao
aos membros do exogrupo. Os autores sugerem que a ansiedade intergrupal poder
conduzir a avaliaes negativas, ou polarizao das avaliaes sobre os membros do
exogrupo, e a sentimentos de incerteza quanto ao comportamento apropriado a ter na
interaco. Concretamente, verificaram que elevados nveis de ansiedade intergrupal
esto associados a baixos nveis de contacto com membros do exogrupo e
estereotipizao dos mesmos.
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Tal como acontece no mbito dos esteretipos, a literatura tem-se centrado nas
emoes, geralmente negativas, que as maiorias expressam em relao s minorias (e.g.,
Leyens et al., 2000), no valor preditivo dessas emoes sobre a avaliao de exogrupos
minoritrios (Esses, Haddock e Zanna, 1993), e sobre as atitudes em relao a diferentes
grupos minoritrios (Stangor, Sullivan & Ford, 1991). Nesta linha, Vala, Brito e Lopes
(1999) verificaram que, comparativamente aos esteretipos, as emoes so um melhor
preditor das atitudes em relao aos imigrantes negros em Portugal. Estudos recentes
tm sublinhado tambm o efeito mediador das emoes em contextos intergrupais.
Mackie, Devos e Smith (2000) verificaram que o efeito da percepo do endogrupo
como um grupo forte, sobre a inteno de agir contra um dado exogrupo, mediado
pela raiva sentida contra este ltimo.
Como foi j sobejamente sublinhado, a situao de interaco activa um conjunto de
meta-esteretipos. Nesta linha, poderemos tambm equacionar a possibilidade de
activao do que poderemos designar por meta-emoes integrupais, e que podero
corresponder a crenas que os membros de um determinado grupo apresentam acerca
das emoes que outros grupos detm sobre eles.
2.1.4. Percepo de discriminao e comportamentos de discriminao
Wilder e Simon (2001) sugerem que as emoes activam um conjunto de cognies
e estas, por sua vez, um conjunto de comportamentos coerentes com essas cognies.
Assim, emoes positivas podero conduzir construo de cognies e aces
positivas, enquanto que emoes negativas podero levar emergncia de cognies e
de aces mais negativas. A discriminao poder corresponder, assim, a um
comportamento orientado por uma reaco emocional negativa.
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No que diz respeito discriminao que a maioria expressa sobre a minoria cigana,
em geral, e no quadro europeu, no ser difcil encontrar casos exemplificativos. Como
j tivemos oportunidade de sublinhar, o carcter discriminatrio e racista das medidas
persecutrias adoptadas para com os ciganos foi uma constante durante os ltimos cinco
sculos. Em 1985 subsistia ainda, no nosso ordenamento jurdico, um preceito que
determinava que a GRN exercesse uma especial vigilncia sobre os nmadas, isto ,
sobre os ciganos (Costa, 1995)2. Tambm em Espanha, o caso Valdemingomz perto
de Madrid, que envolveu a deportao de famlias ciganas para uma lixeira de produtos
qumicos, ou na Hungria, o facto de algumas crianas ciganas terem sido proibidas de
frequentar o bar das escolas, so exemplos dos continuados comportamentos
discriminatrios para com este grupo social particular.
Tendo em conta, uma vez mais, o peso da histria entre ciganos e gadj, no
podemos deixar de nos questionar acerca das prprias percepes de discriminao dos
ciganos. Por outro lado, pese o facto da pesquisa se ter debruado fundamentalmente
sobre a discriminao que a maioria expressa sobre a minoria cigana, parece-nos
importante averiguar tambm o papel da percepo de discriminao, dos meta-
estretipos e das meta-emoes que os ciganos percepcionam por parte da maioria, no
apenas sobre os comportamentos que os ciganos expressam em relao maioria, mas
tambm sobre emoes que so despertadas aquando dessa interaco.
2 Em Maio de 1993 a Cmara Municipal de Ponte de Lima ordenou aos indivduos de etnia cigana que abandonassem o concelho no prazo de oito dias e que de futuro apenas permanecessem 48 horas; no entanto, esta ordem foi impedida por reaco do Procurador da Repblica e do Provedor da Justia.
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2.1.5. Meta-esteretipos, percepo de discriminao, meta-emoes e estratgias de
aculturao
Existe alguma evidncia emprica que aponta tambm para o valor preditivo da
percepo de discriminao e de hostilidade em relao ao endogrupo sobre uma fraca
adaptao a longo prazo (ver Berry, 1997), bem como a uma maior relutncia quanto
adopo de uma estratgia de assimilao (Berry, Kim, Power, Young & Bujaki, 1989).
Recentemente, Lopes e Vala (no prelo) verificaram que, quer a percepo de
etnicizao, quer a percepo de racializao por parte dos jovens negros residentes em
Portugal, podero facilitar a adopo de uma estratgia de separao.
Uma vez que a pesquisa sobre os auto e meta-esteretipos se tem mostrado relevante
pelas suas implicaes no mbito das relaes integrupais e dada a possibilidade, que
colocamos, de activao, em situao de interaco, de meta-emoes integrupais,
poderemos questionar-nos tambm acerca do papel, no s da percepo de
discriminao, mas tambm destas duas variveis sobre as estratgias de aculturao.
De que modo que estas variveis tm sido estudadas no quadro infantil? a esta
questo que pretendemos responder de seguida.
2.2. Auto-categorizao, expresses do preconceito e estratgias de aculturao em
crianas
As crianas, tal como os adultos, constroem uma descrio de si e do mundo,
tentando dar sentido ao que as rodeia, o que conduz emergncia do preconceito
intergrupal. No que diz respeito ao preconceito anti-ciganos em crianas da maioria,
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alguns estudos apontam para uma imagem anti-social e agressiva dos ciganos, associada
a uma crescente falta de tolerncia para com as crianas ciganas (Alcalde, 1997). Estas
representaes negativas dos ciganos so tambm difundidas nos livros, o que faz com
que se reforce a aquisio de esteretipos pelas crianas, desde o incio da escolaridade
(Ligeois, 1986/2001).
Algumas variveis parecem contribuir para a construo de esteretipos em crianas,
nomeadamente o processo de auto-categorizao, a pertena grupal das crianas (Aboud
& Amato, 2000), o desenvolvimento de processos scio-cognitivos, que so adquiridos
em diferentes fases do desenvolvimento infantil (Aboud, 1988), e a aprendizagem de
um conjunto de crenas acerca dos grupos sociais (Mackie, Hamilton, Susskind &
Rosselli, 1996).
semelhana do que acontece com os adultos, o processo de auto-categorizao nas
crianas parece ser suficiente para gerar a percepo de diferenas entre grupos e
semelhanas (ou homogeneidade) intragrupais (e.g., Doise, Deschamps & Meyer,
1978), o que, por sua vez, conduz a enviesamentos endogrupais, que se traduzem num
maior favoritismo endogrupal e em comportamentos de discriminao em relao aos
exogrupos. Um dos estudos iniciais que incidiu sobre esta problemtica foi realizado
por Tajfel, Flament, Billig e Bundy (1971), mas estudos recentes tm continuado a
mostrar resultados semelhantes. Bigler, Jones e Lobliner (1997) mostraram que a mera
salincia de diferenas perceptivas entre grupos despoleta atitudes estereotpicas e
enviesamentos intergrupais em crianas.
Em geral, as crianas com 3-4 anos parecem exibir j atitudes intergrupais negativas.
No entanto, o desenvolvimento destas atitudes difere consoante a sua pertena
categorial. As crianas da maioria parecem expressar um crescente favoritismo
endogrupal e preconceitos em relao s minorias, atingindo um nvel elevado por volta
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dos 5-6 anos (e.g., Yee & Brown, 1992). Um considervel nmero de estudos tem
mostrado, no entanto, que por volta dos 7 anos cerca de metade das crianas da maioria
comea a expressar uma tendncia inversa (ver Aboud & Doyle, 1995), e que esta
diminuio parece prevalecer at por volta dos 12 anos ou mais (ver Aboud, 1988; ver
Brown, 1995). Por sua vez, os estudos conduzidos com crianas de diferentes minorias
tm mostrado que a expresso de atitudes ou avaliaes tnicas por parte destas crianas
parece sofrer uma grande variabilidade, particularmente at aos 7 anos de idade (Aboud,
1988).
Contrariando a viso tradicional, a pesquisa actual tem mostrado, assim, que as
crianas no se tornam gradualmente mais preconceituosas, e assiste-se a uma relao
em U invertido entre a idade e o preconceito (ver Aboud & Amato, 2001). O
desenvolvimento de determinados processos scio-cognitivos durante o estdio
operatrio, parece contribuir tambm para a reduo do preconceito em idades
superiores a 7 anos. Nomeadamente por volta dos 8-10 anos, as crianas comeam a dar
maior ateno aos indivduos e no aos grupos (como acontece numa fase anterior), o
que reflecte a aquisio de processos cognitivos mais flexveis, que permitem minimizar
as diferenas intergrupais, apreciar as diferenas individuais e usar categorias cruzadas.
Nesta linha, recordamos o estudo inicial de Deschamps e Doise (1978) sobre a
categorizao cruzada com 12 crianas de 9 e 10 anos, que mostra a importncia deste
tipo de categorizao na reduo da discriminao intergrupal.
Os estudos com crianas em Portugal vieram, no entanto, pr em causa, quer a viso
tradicional, quer a recente proposta de Aboud e Amato (2001), ao introduzirem nessa
investigao medidas indirectas de discriminao intergrupal. Esses estudos mostraram
que no h qualquer recesso nessa discriminao a partir dos 8 anos (Frana &
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Monteiro, 2002), e que ela pode mesmo mostrar-se bastante intensa num quadro de
acentuao categorial e de interaco competitiva (Rebelo, Matias & Monteiro, 2002).
Apesar da importncia da pesquisa sobre os esteretipos, os meta-esteretipos e a
percepo de discriminao, constatamos que ela se tem centrado, essencialmente, nos
esteretipos que as maiorias detm sobre as minorias (e.g., Devine, 1989; Vorauer et al.,
2000) e no papel das emoes intergrupais sobre as avaliaes que as maiorias fazem
sobre as minorias. Poucos so, contudo, os estudos que se centram na compreenso
destas variveis no seio das minorias e, ainda menos, os que se centram nas percepes
das crianas ciganas, no existindo estudos desta natureza, com esta populao
especfica, no contexto portugus.
Por outro lado, apesar dos inmeros trabalhos sobre discriminao e preconceito em
crianas, algumas variveis parecem no ter sido ainda estudadas dentro de um quadro
infantil. Deste modo, pretendemos averiguar o grau de correspondncia entre auto e
meta-esteretipos, bem como a relao existente entre meta-esteretipos, meta-emoes
intergrupais e percepo de discriminao e as emoes e comportamentos que as
crianas ciganas expressam relativamente s crianas da maioria branca. Neste sentido,
espera-se que meta-esteretipos e meta-emoes mais positivos devam estar mais
associados a emoes e comportamentos mais positivos em relao aos membros do
grupo dominante.
Tendo ainda em conta a discriminao e a hostilidade a que as crianas ciganas so
sujeitas, e decorrente dos novos modelos do preconceito intergrupal, dentro dos quais as
emoes se assumem como uma nova expresso daquele (Smith, 1993), parece-nos
relevante averiguar o papel dos auto-esteretipos, dos meta-esteretipos, das meta-
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emoes e da percepo de discriminao na escolha das estratgias de aculturao das
crianas ciganas.
semelhana do que acontece com os adultos, tambm nas crianas a categorizao
cruzada permite reduzir a discriminao intergrupal. Nesta linha, pareceu-nos
igualmente importante averiguar o papel da identidade (simples ou dupla) no apenas na
percepo de discriminao, mas nos meta-esteretipos e nas meta-emoes.
3. Objectivos
Tendo em conta as perspectivas tericas apresentadas, este estudo pretende verificar
o papel moderador de variveis cognitivo-emocionais (meta-esteretipos, meta-emoes
e percepo de discriminao) na relao entre a identidade social das crianas ciganas
e os comportamentos e emoes que estas emitem em relao s crianas da maioria, e
na relao entre a identidade social e as estratgias de aculturao.
4. Mtodo
Participantes
Participaram neste estudo 61 crianas ciganas, 30 rapazes e 31 raparigas, com idades
compreendidas entre os 9 e os 14 anos (M= 10.56, DP= 1.46) e a frequentarem o 3 e 4
anos de escolaridade do primeiro ciclo do ensino bsico pblico portugus3. Do total
das crianas da nossa amostra 86.9% situa-se entre os 9 e os 12 anos. Em todas as
escolas participantes, as crianas brancas constituem a maioria, seguindo-se as minorias 3 Dois motivos concorrem para a frequncia de crianas ciganas mais velhas nos primeiros quatro anos do 1 ciclo do ensino bsico: o absentismo escolar e a entrada tardia para a escola que ocorre, muitas vezes, entre os 7 e 8 anos de idade.
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negra e cigana. As escolas encontram-se localizadas em bairros ou zonas de classe
mdia-baixa e baixa da regio de Lisboa, onde as mesmas residem e, como tal, trata-se
de crianas ciganas pertencentes a famlias sedentarizadas.
Estudo qualitativo prvio
Com vista a um primeiro contacto com as crianas ciganas e preparao do
material que serviu de base para o estudo 1, foram realizadas 13 entrevistas com
crianas ciganas de ambos os sexos (6 meninas e 7 meninos), com idades
compreendidas entre os 8 e os 10 anos de idade. As crianas foram entrevistadas
individualmente numa escola do ensino bsico de um bairro social da zona da grande
Lisboa. A entrevista, de carcter semi-estruturado, teve como objectivo inventariar as
designaes que as crianas ciganas utilizam para se referirem ao grupo branco,
identificar atributos auto-estereotpicos e meta-estereotpicos, e verificar a presena de
orientaes de relao com a maioria.
Foram escolhidos para o questionrio do Estudo 1 (Anexo 2), nomeadamente para as
medidas de auto-esteretipos e de meta-esteretipos, os atributos mais frequentes
referidos pelos participantes deste estudo exploratrio (Anexo 1)4.
4 Algumas consideraes adicionais decorrem deste estudo inicial: verificmos que existem vrias designaes para as crianas do grupo dominante: senhor