Toccata - Travessa.com.br · se sentar no parapeito da janela e me fi tava com seus olhos...

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  • Irmãos humanos, permitam-me contar como tudo aconteceu. Não somos seus irmãos, vocês responderão, e não queremos saber. É bem verdade que se trata de uma história sombria, mas também edifi cante, um verdadeiro conto moral, garanto a vocês. Corre o risco de ser um pouco longa, afi nal aconteceram muitas coisas, mas, se calhar de não estarem com muita pressa, com um pouco de sorte arranjarão tempo. Além do mais, isso lhes diz respeito: vocês verão efetivamente que lhes diz respeito. Não pensem que estou procurando convencê-los do que quer que seja; afi nal de contas, cada um tem sua opinião. Se resolvi escrever, depois de todos esses anos, foi para expor as coisas para mim mesmo, não para vocês. Rastejamos por muito tempo nesta terra como uma lagarta, à espera da borboleta esplêndida e diáfana que carregamos dentro de nós. O tempo passa, a ninfose não chega, permanecemos larva, constatação afl itiva, o que fazer? O suicídio, naturalmente, con-tinua sendo uma opção. Mas, para falar a verdade, o suicídio não me atrai muito. Pensei nisso, claro, durante muito tempo, e se tivesse de recorrer a ele, eis como agiria: apertaria uma granada contra o peito e partiria numa viva explosão de alegria. Uma granadinha redonda da qual eu removeria o pino com delicadeza antes de soltar a trava, sorrin-do ao barulhinho metálico da mola, o último que eu ouviria, afora os batimentos do coração nos ouvidos. E depois fi nalmente a felicidade, ou, em todo caso, a paz, e as paredes do meu escritório enfeitadas com retalhos de carne. A limpeza caberá às faxineiras, são pagas para isso, o problema é delas. Mas, como eu disse, o suicídio não me atrai. Não sei por quê, aliás, talvez seja um velho fundo de moral fi losófi ca que me faz pensar que, afi nal de contas, não estamos aqui para nos divertir. Para fazer o quê, então? Não tenho idéia, para durar, provavelmente, para matar o tempo antes que ele nos mate. E, nesse caso, nas horas perdidas, escrever é igual a outra ocupação qualquer. Não que eu te-nha tantas horas assim a perder, sou um homem ocupado; tenho o que chamam de uma família, um trabalho, responsabilidades portanto,

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    tudo isso toma tempo, não sobra muita coisa para evocar recordações. Recordações são coisas que eu tenho, e inclusive em uma quantidade considerável. Sou uma verdadeira fábrica de recordações. Teria passado a vida fabricando recordações, ainda que agora me paguem, em vez disso, para fabricar renda. Na verdade, eu teria sido igualmente capaz de não escrever. Afi nal de contas, isso não é uma obrigação. Depois da guerra, permaneci um homem discreto; graças a Deus, nunca tive necessidade, como alguns dos meus ex-colegas, de escrever memórias como justifi cativa, pois nada tenho a justifi car, nem que fosse com fi ns lucrativos, pois ganho sufi cientemente bem com o que faço. Uma vez eu estava na Alemanha, em viagem de negócios, discutindo com o diretor de uma grande casa de lingerie a quem eu pretendia vender renda. Ele me fora recomendado por velhos amigos; assim, sem fazermos pergun-tas, ambos sabíamos da situação de cada um. Após nossa conversa, que por sinal se desenrolara de forma bastante positiva, ele se levantou para pegar um volume em sua biblioteca e me deu de presente. Tratava-se das memórias póstumas de Hans Frank, governador-geral da Polônia; intitulava-se Diante do cadafalso. “Recebi uma carta da viúva”, explicou meu interlocutor. “Ela pagou para editar o manuscrito, redigido por ele depois do processo, e vende o livro para sustentar os fi lhos. Você ima-gina, chegar a esse ponto? A viúva do governador-geral. Encomendei vinte exemplares para dar de presente. Também sugeri aos meus chefes de departamento que comprassem um. Ela me escreveu uma comovida carta de agradecimento. Você a conheceu?” Garanti-lhe que não, mas que leria o livro com interesse. E assim foi, folheei-o de passagem, tal-vez eu lhes conte mais tarde, se tiver coragem ou paciência. Mas aqui não faria sentido falar nisso. O livro, aliás, era muito ruim, confuso, choramingas, eivado de uma curiosa hipocrisia religiosa. Talvez essas notas também sejam confusas e ruins, mas vou dar o melhor de mim para ser claro; posso lhes garantir que pelo menos elas permanecerão isentas de qualquer contrição. Não me arrependo de nada: fi z meu tra-balho, e ponto fi nal; quanto aos meus assuntos familiares, que talvez eu conte também, dizem respeito apenas a mim; quanto ao resto, lá para o fi nal eu decerto passei dos limites, mas então eu não era mais o mesmo, vacilava e aliás o mundo inteiro estremecia ao meu redor, não fui o único a perder a cabeça, admitam. Além disso, não escrevo para alimentar minha viúva e meus fi lhos, no meu caso sou totalmente ca-paz de prover minhas necessidades. Não, se fi nalmente decidi escrever, tudo indica que foi para passar o tempo e também, é possível, para

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    esclarecer um ou dois pontos obscuros, para vocês e talvez até para mim. Além do mais, acho que vai me fazer bem. É verdade que tenho um péssimo senso de humor. A prisão de ventre, sem dúvida. Problema afl itivo e doloroso, por sinal novo para mim; antigamente, era justa-mente o contrário. Durante muito tempo tive de ir ao banheiro três, quatro vezes por dia; agora, uma vez por semana seria uma felicidade. Limito-me às lavagens, procedimento desagradabilíssimo, mas efi caz. Perdoem-me por entretê-los com detalhes tão escabrosos: tenho todo o direito de me queixar um pouco. E, se não estão agüentando, seria melhor pararem por aqui. Não sou Hans Frank, não faço cerimônia. Quero ser preciso, na medida do possível. Apesar dos meus defeitos, e eles são muitos, ainda sou dos que acham que as únicas coisas indispen-sáveis à vida humana são o ar, a comida, a bebida e a excreção, além da busca pela verdade. O resto é facultativo.

    Tempos atrás minha mulher trouxe um gato preto para casa, decerto pensando em me agradar. Naturalmente, não pedira minha opinião. Devia desconfi ar que eu o recusaria taxativamente, o fato con-sumado seria mais seguro. E, uma vez ele ali, nada a fazer, as crianças chorariam etc. O gato, ainda assim, era bastante antipático. Quando eu tentava acariciá-lo, para dar mostras de boa vontade, ele corria para se sentar no parapeito da janela e me fi tava com seus olhos amarelos; se tentasse pegá-lo no colo, me arranhava. À noite, ao contrário, vinha se deitar como uma bola no meu peito, uma massa sufocante, e no meu sono eu sonhava que era asfi xiado sob uma montanha de pedras. Com minhas recordações, era parecido. A primeira vez que me decidi a regis-trá-las por escrito, tirei uma licença do trabalho. O que se revelou um erro. As coisas, entretanto, estavam bem encaminhadas: eu comprara e lera uma quantidade considerável de livros sobre o assunto a fi m de refrescar a memória, traçara organogramas, estabelecera cronologias detalhadas e assim por diante. Mas, com aquela licença, eu de repente dispunha de tempo, e comecei a pensar. Além disso, era outono, uma chuva cinzenta e suja despia as árvores, eu soçobrava lentamente na angústia. Constatei que pensar não era uma coisa boa.

    Eu devia ter desconfi ado. Meus colegas consideram-me um homem calmo, estabelecido, ponderado. Calmo, com certeza; mas, durante o dia, volta e meia minha cabeça começa a rugir surdamente como um forno crematório. Falo, discuto e tomo decisões, assim como todo mundo; mas no balcão, diante do meu conhaque, imagino um homem entrando com um fuzil de caça e abrindo fogo; no cinema ou

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    no teatro, visualizo uma granada destravada rolando sob as fi leiras de assentos; na praça pública, em dia de festa, vejo a detonação de um veículo recheado de explosivos, a efusão da tarde transformada em car-nifi cina, o sangue correndo no asfalto, os retalhos de carne grudados nas paredes ou projetados através das vidraças para aterrissarem na sopa dominical, ouço gritos, gemidos de pessoas com membros arrancados como patas de inseto por um garotinho curioso, o pasmo dos sobrevi-ventes, um silêncio estranho como instalado nos tímpanos, o início do longo medo. Calmo: sim, continuo calmo, haja o que houver não trans-pareço nada, continuo tranqüilo, impassível, como as fachadas mudas das cidades destruídas, como o rosto à fl or da água dos afogados jamais encontrados. Romper essa calma terrível seria impossível para mim, por mais que eu quisesse. Não sou daqueles que fazem um escândalo por qualquer coisa, sei me comportar. Entretanto, isso também me oprime. O pior não está necessariamente nas imagens que acabo de descrever; extravagâncias desse tipo me assombram há muito tempo, desde a in-fância provavelmente, em todo caso muito antes de eu também me ver no coração do matadouro. A guerra, nesse sentido, não passa de uma confi rmação, e me acostumei com esses pequenos roteiros, utilizo-os como um comentário pertinente sobre a vaidade das coisas. Não, o que se revelou penoso e difícil foi cuidar apenas de pensar. Refl itam a respeito: em que vocês pensam durante o dia? Em pouquíssimas coisas, de fato. Estabelecer uma classifi cação integral dos pensamentos corri-queiros de vocês seria coisa fácil: pensamentos práticos ou mecânicos, planejamento dos gestos e do tempo (exemplo: colocar a água do café para ferver antes de escovar os dentes, as torradas para tostar depois, porque fi cam prontas mais rápido); preocupações de trabalho; mazelas fi nanceiras; problemas domésticos; devaneios sexuais. Vou poupá-los dos detalhes. No jantar, vocês contemplam o rosto envelhecido da es-posa, tão menos excitante que a amante, mas, por outro lado, aceitável sob todos os aspectos, que fazer, é a vida, daqui a pouco vocês falarão da última crise ministerial. Vocês se lixam para a última crise minis-terial, mas falar de quê? Vocês hão de convir que, se esses tipos de pensamentos forem eliminados, não sobra mais muita coisa. Existem, naturalmente, outros momentos. Inesperadamente, entre dois anúncios de sabão em pó, um tango de antes da guerra, “Violetta”, digamos, e eis que ressurgem o fragor noturno do rio, os lampiões do botequim, o cheiro suave de suor na pele de uma mulher alegre; na entrada do par-que, o rosto sorridente de uma criança faz com que vocês se recordem

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    do fi lho um pouquinho antes de começar a andar; na rua, um raio de sol atravessa as nuvens e ilumina as grandes folhas e o tronco esbran-quiçado de um plátano, e vocês pensam bruscamente na infância, no pátio de recreio da escola onde brincavam de guerra berrando de terror e felicidade. Vocês acabam de ter um pensamento humano. Mas isso é muito raro.

    Ora, se suspendermos o trabalho, as atividades banais e a agi-tação de todos os dias para nos entregarmos com seriedade a um pen-samento, a coisa muda de fi gura. Logo tudo refl ui, em ondas pesadas e escuras. À noite os sonhos se desarticulam, desenrolam, proliferam e, ao despertar, deixam uma fi na camada acre e úmida na cabeça, que leva tempo para dissolver. Não existe mal-entendido: não se trata aqui de culpa nem de remorso. Isso também existe, decerto, não quero ne-gar, mas acho que as coisas são complexas de outra forma. Até mesmo um homem que não participou da guerra, que não teve de matar, sabe do que estou falando. Voltam as pequenas malvadezas, a covardia, a falsidade, as mesquinharias que atormentam todo homem. Logo, não surpreende que os homens tenham inventado o trabalho, o álcool, os falatórios estéreis. Não surpreende que a televisão faça tanto sucesso. Em suma, não demorei a pôr fi m à minha licença inoportuna, era me-lhor assim. Tinha tempo sufi ciente, na hora do almoço ou à noite, de-pois da saída das secretárias, para rabiscar.

    Uma breve pausa para vomitar, e recomeço. É outra das mi-nhas numerosas pequenas afl ições: de tempos em tempos, regurgito minhas refeições, às vezes imediatamente, às vezes um pouco depois, sem motivo aparente. É um problema antigo, data da guerra, começou por volta do outono de 1941 para ser preciso, na Ucrânia, em Kiev, creio, ou talvez em Jitomir. Falarei a respeito disso. Em todo caso, des-de essa época tenho o seguinte hábito: escovo os dentes, desço um co-pinho de álcool e continuo o que estava fazendo. Voltemos às minhas recordações. Comprei vários cadernos escolares, em grande formato e quadriculados, que guardo na escrivaninha em uma gaveta fechada a chave. Antes, eu fazia anotações em fi chas de papel brístol, também quadriculadas; agora, decidi retomar o fi o e não largar mais. Por que faço isso, não sei muito bem. Com certeza não é para a edifi cação da minha descendência. Se eu morresse subitamente neste exato instante, de uma crise cardíaca, digamos, ou de uma embolia cerebral, e minhas secretárias pegassem a chave e abrissem a gaveta, elas teriam um cho-que, coitadas, e minha mulher também: bastariam as fi chas brístol para

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    tanto. Precisarão queimar tudo sem demora para evitar o escândalo. Para mim, tanto faz, estarei morto. E, afi nal de contas, ainda que eu me dirija a vocês, não é para vocês que escrevo.

    Meu escritório é um lugar agradável para escrever, grande, só-brio, tranqüilo. Paredes brancas, quase sem decoração, um móvel en-vidraçado para as amostragens; e no fundo uma grande sacada que dá para a sala das máquinas. A despeito de um vidro duplo, o estrépito incessante dos teares toma conta do recinto. Quando quero pensar, deixo a mesa de trabalho e fi co diante do vidro, contemplo os teares ali-nhados aos meus pés, os movimentos seguros e precisos dos rendeiros, deixo-me embalar. Às vezes, desço para passear por entre as máquinas. A sala é escura, os vidros empoeirados são pintados de azul, pois a renda é frágil, teme a luz, e esse fulgor azulado descansa meu espírito. Gosto de me perder um pouco na batida monótona e sincopada que domina o espaço, aquela pulsação metálica em dois tempos, obsedante. Os teares continuam a me impressionar. São de ferro fundido, foram pintados de verde e cada um pesa dez toneladas. Alguns são muito antigos, faz tempo que não são mais produzidos; mando fazer as peças de reposição por encomenda; depois da guerra, passamos sem percalços do vapor para a eletricidade, mas não mexemos nas máquinas em si. Não chego perto delas, para não me sujar; peças móveis em tal quantidade devem ser constantemente lubrifi cadas, mas o óleo, evidentemente, destruiria a renda, então usamos grafi te, mina de chumbo pulverizado com que o rendeiro polvilha os órgãos em movimento com a ajuda de um funil, como um incensório. A renda sai preta dali, e a grafi te cobre as paredes, bem como o assoalho, as máquinas e os homens que as vigiam. Ainda que não meta a mão com freqüência, conheço bem aqueles grandes mo-tores. Os primeiros teares de tule ingleses, segredo ciosamente guarda-do, entraram como contrabando na França no dia seguinte às guerras napoleônicas, graças a operários que fugiam das taxas alfandegárias; foi um lionês, Jacquard, que os modifi cou para produzir renda, introdu-zindo uma série de cartões perfurados que determinam a padronagem. Cilindros, embaixo, alimentam o trabalho com linha; no coração do tear, cinco mil bobinas, a alma, são comprimidas em um carro; depois um catch-bar (preservamos em nossa língua alguns termos ingleses) vem segurar e chacoalhar esse carro, com um grande estalido hipnóti-co, para a frente e para trás. As linhas, guiadas lateralmente por combs em cobre sobre chumbo, segundo uma coreografi a complexa codifi ca-da por quinhentos ou seiscentos cartões Jacquard, tecem os pontos; um

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    pescoço de cisne faz o pente subir; fi nalmente aparece a renda, aracnídea, vacilante sob sua camada de grafi te, vindo se enrolar lentamente em um tambor fi xado no topo do Leavers.

    O trabalho na fábrica segue uma rigorosa segregação sexual: os homens criam os motivos, perfuram os cartões, montam as séries, vigiam os teares e administram os subsidiários; suas mulheres e fi lhas, por sua vez e ainda hoje, continuam a enrolar, desgrafi tar, reparar, des-fi ar e dobrar. As tradições são fortes. Os rendeiros, aqui, formam algo como uma aristocracia proletária. O aprendizado é longo, o trabalho, delicado; no século passado, os rendeiros de Calais chegavam à fábrica de caleche e de cartola, e tratavam o patrão por você. Os tempos muda-ram. A guerra, apesar de alguns teares usados pela Alemanha, arruinou a indústria. Foi preciso recomeçar tudo do zero; atualmente restam ape-nas cerca de trezentos teares no Norte, onde funcionavam quatro mil antes da guerra. Contudo, durante a retomada econômica, os rendeiros compraram automóveis bem antes dos burgueses. Mas meus operários não me tratam por você. Não creio que gostem de mim. Isso não é grave, não lhes peço que gostem de mim. Além disso, tampouco gosto deles. Trabalhamos juntos, é tudo. Quando um funcionário é consciencioso e aplicado, quando a renda que sai do seu tear exige poucas repetições, dou-lhe uma recompensa no fi m do ano; já aquele que chega atrasado ao trabalho, ou bêbado, castigo-o. Nessas bases, nos entendemos bem.

    Vocês talvez estejam se perguntando como fui parar no ramo do rendado. Eu estava longe de ser predestinado ao comércio. Fiz estu-dos de direito e de economia política, sou doutor em direito, na Alema-nha as letras Dr. jur. fazem legalmente parte do meu nome. Mas é bem verdade que as circunstâncias me impediram de validar o meu diploma depois de 1945. Se realmente quiserem saber da história toda, eu tam-bém estava longe do direito: moço, queria acima de tudo estudar litera-tura e fi losofi a. Mas não deixaram; mais um triste episódio do meu ro-mance familiar, talvez eu volte a isso. Devo contudo admitir que, no que se refere ao ramo das rendas, o direito é mais útil que a literatura. Eis mais ou menos como as coisas se passaram. Quando fi nalmente tudo acabou, consegui vir para a França e me fazer passar por francês; não era muito difícil, considerando o caos da época; voltei com os depor-tados, não faziam muitas perguntas. É verdade, eu falava um francês impecável; é que tive mãe francesa; passei dez anos da minha infância na França, fi z o primário, o ginásio, o curso preparatório e até dois anos de estudos superiores, na ELSP, e como cresci no Sul podia inclusive

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    impingir uma pitada de sotaque meridional, de toda forma ninguém prestava atenção, era realmente uma bagunça, recebiam-me em Orsay com uma sopa, alguns insultos também, convém dizer que não tentei me fazer passar por um deportado, mas por um trabalhador da STO, e disso eles não gostavam muito, os gaullistas, então me maltrataram um pouco, os outros pobres coitados também, depois nos soltaram, nada de Lutetia para nós, mas a liberdade. Não fi quei em Paris, conhecia mui-ta gente lá, e do tipo irrelevante, fui para o interior, vivi de pequenos expedientes aqui e ali. Depois as coisas se acalmaram. Logo pararam de fuzilar as pessoas, mais um pouco e sequer se davam o trabalho de levá-las para a prisão. Então fi z umas buscas e acabei encontrando um conhecido meu. Ele tinha se saído bem, passara de uma administração à outra sem choques; homem precavido, tivera grande cuidado em não alardear os favores que nos prestava. No início, não queria me receber, mas quando fi nalmente compreendeu quem eu era viu que não tinha realmente escolha. Não posso dizer que foi uma conversa agradável: reinava uma nítida sensação de desconforto, de constrangimento. Mas ele percebia muito bem que tínhamos interesses em comum: eu, em ar-ranjar um posto, e ele, em manter o seu. Ele tinha um primo no Norte, um ex-despachante que estava tentando montar uma pequena empresa com três Leavers recuperados junto a uma viúva falida. Esse homem me contratou, eu tinha que viajar, ir de porta em porta vendendo seus ren-dados. Eu tinha horror àquele trabalho; fi nalmente consegui convencê-lo de que poderia ser mais útil no plano da organização. É verdade que eu tinha uma boa experiência nesse domínio, ainda que não pudesse aproveitá-la, como no caso do meu doutorado. A empresa cresceu, so-bretudo a partir dos anos 50, quando reatei laços na República Federal e consegui abrir o grande mercado alemão para nós. Poderia ter voltado para a Alemanha na época: vários dos meus ex-colegas viviam lá na maior tranqüilidade, alguns haviam cumprido uma pena curta, outros sequer foram perturbados. Com meu currículo, eu poderia ter recupe-rado meu nome, meu doutorado, reivindicado uma pensão de ex-com-batente e de invalidez parcial, ninguém teria notado. Teria encontrado trabalho rapidamente. Mas, eu pensava, que interesse havia naquilo? O direito, no fundo, motivava-me tão pouco quanto o comércio, e depois eu acabara tomando gosto pela renda, essa deslumbrante e harmoniosa criação do homem. Quando compramos teares sufi cientes, meu patrão decidiu abrir uma segunda fábrica e me entregou sua direção. É esse posto que ocupo desde então, à espera da aposentadoria. Nesse período casei-me, com certa repugnância, é verdade, mas aqui, no Norte, isso

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    era mais que necessário, uma forma de consolidar minhas conquistas. Escolhi-a de boa família, relativamente bonita, uma mulher como con-vém, e dei-lhe imediatamente um fi lho, um pouco para ocupá-la. In-felizmente ela teve gêmeos, deve ser coisa da família, da minha, quero dizer, para mim um pirralho teria sido mais que sufi ciente. Meu patrão me adiantou um dinheiro, comprei uma casa confortável, não muito longe do mar. Foi assim que fui parar no meio da burguesia. Em todo caso, era melhor daquele jeito. Depois de tudo que aconteceu, eu pre-cisava sobretudo de calma e regularidade. Meus sonhos de juventude, o curso da minha vida lhes quebrara a espinha e minhas angústias ha-viam se dissipado lentamente, de uma ponta da Europa alemã à outra. Saí da guerra um homem vazio, apenas com amargura e uma vergonha infi nita, como areia rangendo nos dentes. Assim, uma vida de acordo com todas as convenções sociais me calhava: um casulo confortável, ainda que o contemple freqüentemente com ironia, às vezes com ódio. Nesse ritmo, espero um dia alcançar o estado de graça de Jerónimo Na-dal e não infl uir em nada, apenas não infl uir em nada. Eis que me torno livresco; é um dos meus defeitos. Para azar da santidade, ainda não me livrei das necessidades. Ainda satisfaço minha mulher de tempos em tempos, conscienciosamente, com pouco prazer mas tampouco sem re-pulsa excessiva, a fi m de garantir a paz doméstica. E, muito raramente, em viagens de negócios, dou-me o trabalho de reatar com meus antigos hábitos; mas, na prática, é apenas por uma questão de higiene. Tudo isso perdeu muito do interesse para mim. O corpo de um belo adoles-cente e uma escultura de Michelangelo são iguais: já não me sinto mais sem fôlego. É como depois de uma longa doença, quando os alimentos fi cam sem gosto; qual a importância, então, de comer carne ou frango? É preciso alimentar-se, ponto fi nal. A bem da verdade, não existe mais muita coisa que me interesse. A literatura, pode ser, ainda assim não es-tou convencido de que não seja por hábito. Talvez seja por isso que redi-jo essas recordações: para chacoalhar meu sangue, ver se ainda consigo sentir alguma coisa, se ainda sei sofrer um pouco. Exercício curioso.

    No entanto, eu deveria conhecer o sofrimento. Todos os euro-peus da minha geração passaram por ele, mas posso dizer sem falsa mo-déstia que vi mais que a maioria. E depois as pessoas esquecem rápido, constato isso todos os dias. Mesmo aqueles que lá estavam em geral só fazem uso, para falar disso, de pensamentos ou frases clichês. Basta ver a prosa lamentável dos autores alemães que abordam os combates no Les-te: um sentimentalismo putrefato, uma língua morta, horrenda. A prosa

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    de Herr Paul Carrell, por exemplo, autor de sucesso nos últimos anos. Acontece que conheci esse Herr Carrell, na Hungria, na época em que ainda se chamava Paul Carl Schmidt e escrevia, sob a égide de seu minis-tro Von Ribbentrop, o que pensava de verdade em uma prosa vigorosa e cheia de estilo: A questão judaica não é uma questão de humanidade, não é uma questão de religião; é unicamente uma questão de higiene política. Agora, o honorável Herr Carrell-Schmidt conseguiu a façanha consi-derável de publicar quatro volumes insípidos sobre a guerra na União Soviética sem mencionar uma única vez a palavra judeu. Sei disso, li: é árduo, mas sou teimoso. Nossos autores franceses, os Mabire, os Lande-mer e outros do gênero, não valem mais que isso. Quanto aos comunis-tas, é a mesma coisa, só que do ponto de vista oposto. Onde se meteram aqueles que cantavam Filhos, amolem suas facas no meio-fi o das calçadas? Ou estão calados, ou mortos. Tagarela-se, careteia-se, chafurda-se em uma turba insossa modelada pelas palavras glória, honra e heroísmo, é cansativo, ninguém fala disso. Talvez eu esteja sendo injusto, mas ouso esperar que me compreendam. A televisão nos entope com números, números impressionantes, uma fi la de zeros; mas quem de vocês pára às vezes para pensar realmente nesses números? Quem de vocês tentou ao menos uma vez na vida contar quantas pessoas conhece ou conheceu até hoje e comparar esse número ridículo aos números que vê na televisão, os famosos seis milhões ou vinte milhões? Vamos à matemática. A matemáti-ca é útil, oferece perspectivas, refresca o espírito. É um exercício às vezes muito instrutivo. Tenham então um pouco de paciência e concedam-me sua atenção. Vou considerar que os dois teatros em que desempenhei um papel, ainda que ínfi mo, foram: a guerra contra a União Soviética e o programa de extermínio ofi cialmente designado em nossos documen-tos como “Solução Final da Questão Judaica”, Endlösung der Judenfrage, para citar tão belo eufemismo. No que se refere às frentes de batalha no Ocidente, de toda forma, as perdas foram relativamente menores. Meus números de partida serão um pouco arbitrários: não tenho esco-lha, não há consenso. Para o conjunto das perdas soviéticas, opto pelo número tradicional, citado por Khrutchev em 1956, de vinte milhões, ao mesmo tempo observando que Reitlinger, reputado autor inglês, en-contra apenas doze, e Erickson, autor escocês tão reputado quanto, se não mais, por sua vez atinge um total mínimo de vinte e seis milhões; os números ofi ciais sovié ticos, assim, cortam muito nitidamente a maçã em duas, com a diferença de um milhão. Para as perdas alemãs — apenas na URSS, entenda-se —, podemos nos basear na cifra mais ofi cial e germa-

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    nicamente precisa de 6.172.373 soldados perdidos no Leste entre 22 de junho de 1941 e 31 de março de 1945, cifra contabilizada em um relató-rio interno do OKH (o Alto-Comando do Exército) encontrado depois da guerra, mas englobando os mortos (mais de um milhão), os feridos (quase quatro milhões) e os desaparecidos (ou seja, mortos, prisioneiros e prisioneiros mortos, cerca de 1.288.000). Digamos então, para abreviar, dois milhões de mortos, os feridos não nos interessam aqui, incluindo os cerca de cinqüenta e poucos mil mortos suplementares entre 1º de abril e 8 de maio de 1945, principalmente em Berlim, a que devemos acrescentar ainda o milhão de civis mortos estimado durante a invasão do Leste alemão e deslocamentos subseqüentes de populações, ou seja, no total, digamos, três milhões. Quanto aos judeus, podemos escolher: a cifra consagrada, ainda que poucas pessoas saibam sua origem, é de seis milhões (foi Höttl quem disse a Nuremberg que Eichmann lhe dissera; mas Wisliceny, por sua vez, afi rmou que Eichmann mencionara a cifra de cinco milhões aos seus colegas; e o próprio Eichmann, quando os ju-deus fi nalmente puderam lhe fazer a pergunta pessoalmente, respondeu entre cinco e seis milhões, mais possivelmente cinco). O Dr. Korherr, que compilava estatísticas para o Reichsführer-SS Heinrich Himmler, chegou a pouco menos de dois milhões em 31 de dezembro de 1942, mas reco-nhecia, quando pude discutir com ele em 1943, que seus números de par-tida eram pouco confi áveis. Enfi m, o respeitabilíssimo professor Hilberg, especialista na questão e que difi cilmente teria pontos de vista sectários, pró-alemães pelo menos, chega, ao fi m de uma demonstração cerrada de dezenove páginas, à cifra de 5.100.000, o que corresponde grosso modo à opinião do fi nado Obersturmbannführer Eichmann. Aceitemos então os números do professor Hilberg, o que dá, para recapitular:

    Mortos soviéticos .................20 milhõesMortos alemães ...................3 milhõesSubtotal (guerra no Leste) ...23 milhõesEndlösung ............................5,1 milhões

    Total ...................................26,6 milhões, considerando que 1,5 milhão de judeus foram con ta bilizados como mortos sovié ticos (“Cidadãos soviéticos mor tos pelo invasor ger ma-no-fascista”, como indica muito dis-cretamente o extraordinário monu-mento de Kiev).

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    Agora, a matemática. O confl ito com a URSS durou das três horas da manhã de 22 de junho de 1941 até, ofi cialmente, as 23h01 de 8 de maio de 1945, o que perfaz três anos, dez meses, dezesseis dias, vinte horas e um minuto, ou seja, arredondando, 46,5 meses, 202,42 semanas, 1.417 dias, 34.004 horas, ou 2.040.241 minutos (contando o minuto suplementar). Para o programa dito da “Solução Final”, fi care-mos com as mesmas datas; antes, nada fora decidido nem sistematiza-do, as perdas judaicas são fortuitas. Associemos agora um conjunto de cifras ao outro: para os alemães, isso dá 64.516 mortos por mês, ou seja, 14.821 mortos por semana, ou 2.117 mortos por dia, ou 88 mortos por hora, ou 1,47 morto por minuto, isto em média para cada minuto de cada hora de cada dia de cada semana de cada mês de cada ano, tudo durando três anos, dez meses, dezesseis dias, vinte horas e um minuto. Para os judeus, incluindo soviéticos, temos cerca de 109.677 mortos por mês, ou seja, 25.195 mortos por semana, ou 3.599 mortos por dia, ou 150 mortos por hora, ou 2,5 mortos por minuto para um período idêntico. No lado soviético, fi nalmente, isso nos dá uns 430.108 mortos por mês, 98.804 mortos por semana, 14.114 mortos por dia, 588 mor-tos por hora, ou 9,8 mortos por minuto, período idêntico. Ou seja, para o total global no meu campo de atividade, médias de 572.043 mortos por mês, 131.410 mortos por semana, 18.772 mortos por dia, 782 mor-tos por hora e 13,04 mortos por minuto, todos os minutos de todas as horas de todos os dias de todas as semanas de todos os meses de cada ano do período dado, ou seja, para memorizar, três anos, dez meses, dezesseis dias, vinte horas e um minuto. Que os que zombaram desse minuto suplementar de fato um pouco pedante considerem que isso dá assim mesmo 13,04 mortos a mais, em média, e, se forem capazes, imaginem treze pessoas de seu círculo mortas em um minuto. Pode-mos também efetuar um cálculo defi nindo o intervalo de tempo entre cada morte: isso nos dá em média um morto alemão a cada 40,8 se-gundos, um morto judeu a cada 24 segundos e um morto bolchevique (incluindo os judeus soviéticos) a cada 6,12 segundos, ou seja, isso para o conjunto do mencionado período. Agora vocês estão em condições de efetuar, a partir desses números, exercícios concretos de imaginação. Peguem por exemplo um relógio e contem um morto, dois mortos, três mortos etc. a cada 4,6 segundos (ou a cada 6,12 segundos, a cada 24 segundos ou a cada 40,8 segundos, se tiverem uma preferência defi -nida), tentando imaginar, como se estivessem à sua frente, alinhados, estes um, dois, três mortos. Vocês verão, é um bom exercício de medi-

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    tação. Ou peguem outra catástrofe, mais recente, que os tenha afetado intensamente, e façam a comparação. Por exemplo, se forem franceses, considerem a pequena aventura argelina, que tanto traumatizou seus concidadãos. Vocês perderam ali 25.000 homens em sete anos, incluin-do os acidentes: o equivalente a pouco menos de um dia e treze horas de mortos na frente do Leste; ou cerca de sete dias de mortos judeus. Não estou contabilizando, evidentemente, os mortos argelinos: como vocês não tocam no assunto, digamos, nunca em seus livros e programas, eles não devem signifi car muito para vocês. Entretanto vocês mataram dez para cada um de seus próprios mortos, esforço respeitável mesmo comparado ao nosso. Paro por aqui, poderíamos continuar por muito tempo; convido-os a prosseguirem sozinhos, até que o chão se abra sob seus pés. Quanto a mim, não preciso de nada disso: há muito tempo o pensamento da morte está mais próximo de mim que a veia do meu pescoço, como diz essa belíssima frase do Corão. Se um dia vocês conse-guissem me fazer chorar, minhas lágrimas desfi gurariam seu rosto.

    A conclusão de tudo isso, se me permitem outra citação, a últi-ma, prometo, é, como dizia muito bem Sófocles: O que se deve preferir a tudo é não ter nascido. Schopenhauer, por sinal, escrevia claramente a mesma coisa: Seria melhor que não existisse nada. Como há mais so-frimento que prazer sobre a terra, toda satisfação é apenas transitória, criando novos desejos e novas afl ições, e a agonia do animal devorado é maior que o prazer do devorador. Sim, eu sei, isso dá duas citações, mas a idéia é a mesma: na verdade, vivemos no pior mundo possível. Tudo bem, a guerra terminou. E depois aprendemos a lição, não vai aconte-cer mais. Mas vocês estão mesmo seguros de terem aprendido a lição? Têm certeza de que não acontecerá de novo? Têm mesmo certeza de que a guerra terminou? De certa maneira, a guerra nunca terminou, ou então só terminará quando a última criança nascida no último dia de combate for enterrada sã e salva, e mesmo assim ela continuará, em seus fi lhos e depois nos deles, até que fi nalmente a herança se dilua um pou-co, as recordações sejam desfi adas, e a dor, amenizada, ainda que nesse momento todos já tenham há muito esquecido e tudo esteja relegado ao lote das histórias de antigamente, boas sequer para assustar as crianças, e ainda menos os fi lhos dos mortos e daqueles que houverem desejado sê-lo, mortos, esclareço.

    Estou adivinhando o pensamento de vocês: Eis um homem muito cruel, estão dizendo, um homem mau, em suma, um cafajeste sob todos os aspectos, que devia mofar na prisão em vez de nos atirar

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    sua confusa fi losofi a de ex-fascista arrependido pela metade. Quanto ao fascismo, não vamos confundir as coisas, e, quanto à questão da minha responsabilidade penal, não prejulguem, ainda não contei minha histó-ria; no que se refere à questão da minha responsabilidade moral, permi-tam-me algumas considerações. Os fi lósofos políticos assinalaram fre-qüentemente que em tempos de guerra o cidadão, macho pelo menos, perde um de seus direitos mais elementares, o de viver, e isto desde a Revolução Francesa e a criação do alistamento, princípio agora univer-salmente aceito ou quase. Mas eles raramente observaram que esse ci-dadão perde ao mesmo tempo outro direito, igualmente elementar e para ele talvez ainda mais vital no que diz respeito à idéia que faz de si mesmo como homem civilizado: o direito de não matar. Ninguém pede sua opinião. O homem em pé no alto da vala comum, na maioria dos casos, não pediu para estar ali tanto quanto o homem deitado, morto ou moribundo, no fundo dessa mesma vala. Vocês me objetarão que matar outro militar no combate não é a mesma coisa que matar um civil desarmado; as leis de guerra permitem uma das ações, não a outra; a moral comum também. Um bom argumento abstrato, decerto, mas que não considera em absoluto as condições do confl ito em questão. A distinção totalmente arbitrária estabelecida depois da guerra entre, de um lado, as “operações militares”, equivalentes às de outro confl ito qualquer, e, de outro, as “atrocidades”, promovidas por uma minoria de sádicos e desequilibrados e, como espero mostrar, uma fantasia conso-ladora dos vencedores — vencedores ocidentais, devo esclarecer, pois os soviéticos, não obstante sua retórica, sempre souberam o que estava em jogo: Stalin, depois de maio de 1945 e das primeiras encenações para a galeria, zombava terrivelmente de uma ilusória “justiça”, queria consis-tência, concretude, escravos e matéria-prima para reerguer e recons-truir, nada de remorsos ou lamentações, pois ele sabia tão bem quanto nós que defuntos não ouvem lágrimas e que remorsos nunca puseram carne no caldo de ninguém. Não defendo a Befehlnotstand, a coerção pelas ordens tão prezada por nossos bons advogados alemães. O que fi z, fi z com pleno conhecimento de causa, julgando ser meu dever e neces-sário que fosse feito, por mais desagradável e infausto que fosse. A guer-ra total também é isto: o civil não existe mais, e entre a criança judia asfi xiada no gás ou fuzilada e a criança alemã morta sob as bombas incendiárias, existe apenas uma diferença de meios; as duas mortes eram igualmente vãs, nenhuma das duas abreviou a guerra em um se-gundo sequer; mas nos dois casos o homem ou os homens que as mata-

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    ram acreditavam que aquilo era justo e necessário; se estavam engana-dos, a quem devemos recriminar? O que afi rmo continua sendo verdade mesmo se distinguirmos artifi cialmente da guerra o que o ad-vogado judeu Lempkin batizou como genocídio, observando que no nosso século, pelo menos, nunca houve genocídio sem guerra, que o genocídio não existe fora da guerra e que, como a guerra, trata-se de um fenômeno coletivo: o genocídio moderno é um processo infl igido às massas, pelas massas e para as massas. É também, no caso que nos ocu-pa, um processo segmentado pelas exigências dos métodos industriais. Assim como, segundo Marx, o operário é alienado em relação ao pro-duto de seu trabalho, no genocídio ou na guerra total sob sua forma moderna o executor é alienado em relação ao produto de sua ação. Isso também vale para o caso em que um homem coloca um fuzil na cabeça de outro homem e aciona o gatilho. Pois a vítima foi levada ali por ou-tros homens, sua morte foi decidida por outros ainda, e o atirador tam-bém sabe que não passa do último elo de uma longuíssima corrente e que não deve fazer mais perguntas que um membro de um pelotão que na vida civil executa um homem devidamente condenado pelas leis. O atirador sabe que é um acaso que faz com que ele atire, que seu colega cuide do cordão de isolamento e que um terceiro dirija o caminhão. No máximo poderá tentar mudar de lugar com o guarda ou o motorista. Um outro exemplo extraído da abundante literatura histórica, mais que de minha experiência pessoal: o do programa de extermínio dos defi -cientes físicos e dos doentes mentais alemães, dito programa “Eutaná-sia” ou “T-4”, implantado dois anos antes do programa “Solução Final”. Nesse caso, os doentes selecionados no âmbito de um dispositivo legal eram recebidos em um prédio por enfermeiras profi ssionais, que os re-gistravam e despiam; médicos os examinavam e conduziam para uma câmara fechada; um funcionário administrava o gás; outros limpavam; um policial estabelecia a certidão de óbito. Interrogadas depois da guer-ra, todas essas pessoas disseram: Eu, culpado? A enfermeira não matou ninguém, apenas despiu e acalmou os doentes, atitudes comuns em sua profi ssão. O médico tampouco matou, simplesmente confi rmou um diagnóstico segundo critérios estabelecidos por outras instâncias. O trabalhador que abre a torneira do gás, portanto aquele mais próximo do assassinato no tempo e no espaço, executa uma função técnica sob o controle de seus superiores e dos médicos. Os operários que esvaziam a câmara fazem um trabalho necessário de desinfecção, bem repugnan-te, a propósito. O policial segue seu procedimento, que é o de constatar

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    um óbito e registrar que ele aconteceu sem violação das leis em vigor. Quem é culpado, então? Todos ou ninguém? Por que o operário que trabalha com o gás seria mais culpado que o operário que trabalha nas caldeiras, no jardim, nos veículos? O mesmo se dá para todas as facetas dessa imensa empresa. O controlador de tráfego ferroviário, por exem-plo, é culpado pela morte dos judeus desviados por ele para determina-do campo? Esse operário é um funcionário, faz o mesmo trabalho há vinte anos, orienta os trens segundo um plano, não é obrigado a saber quem está lá dentro. Não é culpa dele se aqueles judeus estão sendo transportados de um ponto A, por meio de seu desvio, para um ponto B, onde são mortos. Da mesma forma, o funcionário encarregado de confi scar apartamentos para as vítimas dos bombardeios, o impressor que prepara os avisos de deportação, o fornecedor que vende cimento ou arame farpado à SS, o subofi cial da intendência que fornece gasolina para um Teilkommando da SP, e Deus lá em cima que permite tudo isso. Podemos naturalmente estabelecer níveis de responsabilidade pe-nal relativamente precisos, que permitem condenar alguns deles e en-tregar os outros à própria consciência, por menos que a tenham; isso é muito mais fácil que redigir as leis após os fatos, como em Nuremberg. Mas mesmo nesse caso a coisa saiu capenga. Por que ter enforcado Streicher, aquele caipira impotente, e não o sinistro Von dem Bach-Ze-lewski? Por que ter enforcado meu superior Rudolf Brandt, e não o dele, Wolff? Por que ter enforcado o ministro Frick, e não seu subordi-nado Stuckart, que fazia todo o trabalho para ele? Um homem feliz, esse Stuckart, que nunca sujou as mãos a não ser de tinta; sangue, nun-ca. Mais uma vez, sejamos claros: não estou tentando dizer que não sou culpado deste ou daquele fato. Sou culpado, vocês não, combinado. Mas ainda assim vocês deveriam admitir que o que eu fi z vocês tam-bém teriam feito. Talvez com menos zelo, mas talvez também menos desespero, em todo caso de uma maneira ou de outra. Julgo poder con-cluir como um fato estabelecido pela história moderna que todo mun-do, ou quase, num dado conjunto de circunstâncias, faz o que lhe di-zem para fazer; e, me desculpem, há poucas chances de vocês serem a exceção, assim como eu. Se você nasceu em um país ou uma época em que não apenas ninguém vem matar sua mulher e seus fi lhos, como ninguém vem lhe pedir para matar as mulheres e os fi lhos dos outros, agradeça a Deus e vá em paz. Mas nunca tire isso da cabeça: pode ser que você tenha mais sorte que eu, mas não é melhor. Pois se tiver a ar-rogância de pensar assim, aí começa o perigo. É agradável opor o Esta-

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    do, totalitário ou não, ao homem comum, canalha ou bom-moço. Mas se esquece então que o Estado é composto de homens, todos mais ou menos comuns, cada um com sua vida, sua história, a série de acasos que fez com que um dia ele se encontrasse do lado bom do fuzil ou da folha de papel, enquanto os outros encontravam-se no mau. Esse per-curso é raramente fruto de uma escolha, até mesmo de uma vocação. As vítimas, na ampla maioria dos casos, não foram torturadas ou mor-tas porque eram boas, assim como seus carrascos não as torturaram porque eram maus. Seria um pouco ingênuo acreditar nisso, bastando conhecer uma burocracia qualquer, até mesmo a da Cruz Vermelha, para se convencer disso. Stalin, aliás, procedeu a uma demonstração eloqüente do que afi rmo ao transformar cada geração de carrascos em vítimas da geração seguinte, sem com isso provocar uma escassez de carrascos. Ora, a máquina do Estado é feita da mesma aglomeração de areia friável que é por ela pulverizada, grão a grão. Ela existe porque todo mundo concorda com sua existência, inclusive, e não raro até o último minuto, suas vítimas. Sem os Höss, os Eichmann, os Goglid-ze, os Vychinski, mas também sem os controladores de tráfego ferrovi-ário, os fabricantes de cimento e os amanuenses dos ministérios, um Stalin ou um Hitler não passam de um odre estufado de ódio e terrores impotentes. Dizer que a vasta maioria dos administradores dos proces-sos de extermínio não era composta de sádicos ou anormais é agora lugar-comum. Houve sádicos e desequilibrados, naturalmente, como em todas as guerras, e eles cometeram atrocidades inomináveis, é ver-dade. Também é verdade que a SS poderia ter intensifi cado seus esfor-ços para controlar essas pessoas, ainda que tivesse feito mais do que geralmente se supõe, o que não é evidente: vá perguntar isso aos gene-rais franceses, cheios de problemas, por sua vez, na Argélia, com seus alcoólatras e estupradores, seus matadores de ofi ciais. Mas o problema não é esse. Desequilibrados sempre existiram e estão por toda parte. Nossos subúrbios tranqüilos pululam de pedófi los e psicopatas, nossos albergues noturnos, de destrambelhados megalômanos; alguns deles tornam-se efetivamente um problema, matam dois, três, dez, até mes-mo cinqüenta pessoas — depois esse mesmo Estado que se serviria de-les sem pestanejar durante uma guerra os esmaga como mosquitos em-papados de sangue. Esses homens doentes não são nada. Mas os homens comuns de que o Estado é constituído — sobretudo em épocas instá-veis —, eis o verdadeiro perigo. O verdadeiro perigo para o homem sou eu, é você. E, se não está convencido, inútil prosseguir na leitura. Você

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    não entenderia nada e se aborreceria, sem lucro nem para você nem para mim.

    Como a maioria, nunca pedi para me tornar um assassino. Se pudesse, como disse, teria feito literatura. Escrever, se tivesse tido o talento, ou talvez ensinar, em todo caso viver no seio das coisas belas e calmas, das melhores criações da vontade humana. Quem, por vontade própria, exceto um louco, escolhe o assassinato? E também queria ter estudado piano. Um dia, no concerto, uma senhora de certa idade diri-giu-se a mim: “O senhor não é pianista?” — “Infelizmente não, senho-ra”, tive de responder a contragosto. Ainda hoje, quando não toco pia-no, e nunca tocarei, isso me sufoca, às vezes até mais que os horrores, o rio negro do meu passado que me carrega pelos anos. Fico literalmente pasmo. Ainda pequeno, minha mãe comprou um piano para mim. Era pelo meu nono aniversário, acho. Ou oitavo. Em todo caso, antes de irmos morar na França com aquele Moreau. Fazia meses e meses que eu lhe suplicava por um piano. Sonhava ser pianista, um grande pianista de concerto: sob meus dedos, catedrais, leves como bolhas. Mas não tínhamos dinheiro. Meu pai partira havia algum tempo, suas contas (eu soube disso bem mais tarde) estavam bloqueadas, minha mãe tinha que se virar. Mas então ela arranjou o dinheiro, não sei como, deve ter economizado, ou então pego emprestado; talvez inclusive tenha se prostituído, não sei, isso não tem importância. Provavelmente forjara ambições para mim, queria cultivar meus talentos. Assim, no dia do meu aniversário, deram-nos esse piano, um belo piano vertical. Em-bora de ocasião, deve ter custado caro. No início, eu estava fascinado. Tive aulas; mas minha falta de progresso me enfastiou rapidamente, e logo desisti. Fazer escalas não era o que eu tinha imaginado, eu era como todas as crianças. Minha mãe nunca se atreveu a criticar minha leviandade e preguiça; mas concebo muito bem que a idéia de todo aquele dinheiro desperdiçado deve tê-la afl igido. O piano fi cou largado acumulando poeira; minha irmã se interessava por ele tanto quanto eu; eu não pensava mais nele, e mal reparei quando fi nalmente minha mãe o revendeu, decerto com prejuízo. Nunca amei minha mãe de verdade, inclusive a detestei, mas esse incidente me deixa triste por ela. Foi tam-bém um pouco culpa dela. Se ela tivesse insistido, se tivesse conseguido ser severa quando precisava, eu poderia ter aprendido a tocar piano, o que teria sido uma grande alegria para mim, um refúgio seguro. Tocar apenas para mim, em casa, teria me alegrado. Naturalmente, escuto muita música e tenho grande prazer nisso, mas não é a mesma coisa,

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    é um substituto. Assim como meus amores masculinos: a realidade, não me envergonho ao dizê-lo, é que provavelmente eu teria preferido ser uma mulher. Não necessariamente uma mulher viva e atuante no mundo, uma esposa ou mãe; não, uma mulher nua, deitada, de pernas abertas, esmagada sob o peso de um homem, agarrada nele e atravessa-da por ele, afogada como o mar sem limites em que ele próprio se afoga, prazer sem fi m, e também sem início. Ora, não foi assim. Em vez disso, vi-me jurista, funcionário da segurança, ofi cial SS, depois diretor de uma fábrica de renda. É triste, mas é assim.

    O que acabo de dizer é verdade, mas também é verdade que amei uma mulher. Uma só, mas mais que tudo no mundo. Ora, ela era justamente aquela que me era proibida. É bastante concebível que, so-nhando ser uma mulher, sonhando um corpo de mulher para mim, eu ainda a buscasse, quisesse me reaproximar dela, quisesse ser como ela, quisesse ser ela. Isso é totalmente plausível, mas não muda nada. Dos caras com quem fui para a cama, nunca amei um único sequer; servi-me deles, de seus corpos, isso é tudo. O amor dela teria bastado para minha vida. Não zombem de mim: esse amor é provavelmente a única coisa boa que fi z. Tudo isso, segundo vocês, pode parecer um pouco estranho para um ofi cial da Schutzstaffel. Mas por que um SS-Obers-turmbannführer não poderia ter tido uma vida interior, desejos, pai-xões como qualquer outro homem? Houve centenas de milhares como nós que vocês também consideram criminosos: entre eles, como entre todos os humanos, havia homens banais, claro, mas também homens pouco comuns, artistas, homens cultos, neuróticos, homossexuais, ho-mens apaixonados pela mãe, sei lá que mais, e por que não? Nenhum deles era mais típico que qualquer outro homem em qualquer outra profi ssão. Há homens de negócios que apreciam o bom vinho e os cha-rutos, homens de negócios obcecados por dinheiro, e também homens de negócios que enfi am um consolo no ânus antes de irem para o escri-tório e escondem, sob seus ternos de três peças, tatuagens obscenas: isso nos parece óbvio, por que seria diferente com a SS ou a Wehrmacht? Nossos médicos militares descobriam, mais do que se imagina, lingerie feminina quando recortavam os uniformes dos feridos. Afi rmar que eu não era típico não signifi ca nada. Eu vivia, tinha um passado, um passado opressivo e oneroso, mas isso acontece, e eu o administrava à minha maneira. Depois veio a guerra, eu servia e me vi no coração de coisas pavorosas, atrocidades. Eu não mudara, continuava o mesmo homem, meus problemas não estavam resolvidos, ainda que a guerra

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    me colocasse novos problemas, ainda que aqueles horrores tivessem me transformado. Existem homens para quem a guerra, ou mesmo o as-sassinato, é uma solução, mas eu não sou desses; para mim, como para a maioria das pessoas, a guerra e o assassinato são uma pergunta, uma pergunta sem resposta, pois, quando se grita à noite, ninguém responde. E uma coisa puxa outra: comecei no âmbito do serviço militar, depois, sob a pressão dos acontecimentos, acabei indo além desse âmbito; mas tudo isso está ligado, estreitamente, intimamente ligado: dizer que, se não tivesse havido a guerra, eu teria de toda forma chegado a esses ex-tremos, é impossível. Isso poderia ter ocorrido, talvez não, talvez eu ti-vesse encontrado outra solução. Não podemos saber. Eckhart escreveu: Um anjo no Inferno voa na sua própria nuvenzinha de Paraíso. Sempre compreendi que o inverso também devia ser verdade, que um demônio no Paraíso voaria no seio da sua própria nuvenzinha de Inferno. Mas não me julgo um demônio. Para o que fi z havia sempre razões, boas ou más, não sei, em todo caso razões humanas. Aqueles que matam são homens, assim como os que são mortos, é isso o terrível. Não podemos nunca dizer: Não matarei ninguém, isso é impossível. No máximo: Espero não matar. Eu também esperava isso, eu também queria viver uma vida boa e útil, ser um homem entre os homens, igual aos outros, eu também queria adicionar minha pedra à obra comum. Mas minha esperança foi frustrada, usaram minha sinceridade para realizar uma obra que se revelou má e doentia, transpus as fronteiras sombrias, todo esse mal entrou na minha própria vida, e nada disso jamais poderá ser reparado, jamais. As palavras não servem mais para nada, desaparecem como água na areia, e essa areia enche minha boca. Vou vivendo, faço o que é possível, é assim com todo mundo, sou um homem como os outros, sou um homem como vocês. Vamos, estou dizendo que sou um homem como vocês!

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