Toda Palavra

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TODA PALAVRA É UMA PALAVRA DE ORDEM Cresci sob um teto sossegado, meu sonho era um pequenino sonho meu. Na ciência dos cuidados fui treinado. Agora, entre meu ser e o ser alheio a linha de fronteira se rompeu. (Waly Salomão, "Câmara de ecos", Algaravias: câmara de ecos, Rocco, 2007, p.21) Um velho e erudito dignitário chinês disse certa vez a um mestre zen: 'Chuang-tsé anuncia que o céu e a terra são um cavalo, as dez mil coisas são um dedo; não é uma observação maravilhosa?' O mestre, sem responder à pergunta, apontou para uma flor no pátio e disse: 'A gente do mundo vê a flor como num sonho.' O budismo zen evita a generalização e a abstração. Quando dizemos que o mundo inteiro é um dedo ou que o Monte Sumeru dança na extremidade de um cabelo, isso é uma abstração. É preferível dizer, como o velho mestre zen, que não conseguimos ver a flor tal como ela é porque a nossa visão é como a de um sonho. Vemos a flor como um símbolo e não como a própria realidade. Para os budistas, ser é significar. Ser e significar são uma só coisa inseparável; a separação ou bifurcação resulta da intelecção e é a intelecção que destorce a realidade última das coisas.” (Daisetz T. Suzuki, “Simbolismo budista”, in: Edmond Carpenter & Marshall McLuhan, Revolução na comunicação, Zahar, 1980, p.60) No princípio era o verbo, a palavra, a lei: eu apartado do outro,

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TODA PALAVRA É UMA PALAVRA DE ORDEM

Cresci sob um teto sossegado,meu sonho era um pequenino sonho meu.

Na ciência dos cuidados fui treinado.

Agora, entre meu ser e o ser alheioa linha de fronteira se rompeu.

(Waly Salomão, "Câmara de ecos", Algaravias: câmara de ecos, Rocco, 2007, p.21)

Um velho e erudito dignitário chinês disse certa vez a um mestre zen: 'Chuang-tsé anuncia que o céu e a terra são um cavalo, as dez mil coisas são um dedo; não é uma observação maravilhosa?' O mestre, sem responder à pergunta, apontou para uma flor no pátio e disse: 'A gente do mundo vê a flor como num sonho.'

O budismo zen evita a generalização e a abstração. Quando dizemos que o mundo inteiro é um dedo ou que o Monte Sumeru dança na extremidade de um cabelo, isso é uma abstração. É preferível dizer, como o velho mestre zen, que não conseguimos ver a flor tal como ela é porque a nossa visão é como a de um sonho. Vemos a flor como um símbolo e não como a própria realidade. Para os budistas, ser é significar. Ser e significar são uma só coisa inseparável; a separação ou bifurcação resulta da intelecção e é a intelecção que destorce a realidade última das coisas.”

(Daisetz T. Suzuki, “Simbolismo budista”, in: Edmond Carpenter & Marshall McLuhan, Revolução na comunicação, Zahar, 1980, p.60)

No princípio era o verbo, a palavra, a lei: eu apartado do outro, significante/significado. Nascemos sob um nome: disputa. A palavra aparta. Na visita à maternidade dias antes de minha filha nascer, ouvi sobre um pai que, logo após o parto do filho, esperou a criança e a mãe dormirem e foi ao cartório. Havia uma disputa com a mãe sobre o nome. Depois de registrado, não havia mais nada a ser feito. A palavra aparta.

Nome aos bois. Como bem se sabe, a primeira medida após a revolução será renomear as coisas. Passado, presente, futuro. “Ordem”, ōrdinem, ōrdō, ōrdior: urdir, dispor os fios da urdidura para depois tecer. Tramar: no princípio era a palavra, o verbo, a ordem. O nome atrás do qual o pai correu talvez seja o nome de seu avô, patriarca. Talvez o avô tenha morrido no dia seguinte ao nascimento do filho e a família considere isso tudo um cumprimento divino. Talvez uma estrela tenha recebido o mesmo nome horas após o nascimento. Qual o destino da palavra “árabe” após o 11 de setembro?

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Presente, futuro, passado. Em sua cadeira, o editor ordena a capa do jornal: manchete, leads, fotos etc. No topo, a logomarca do jornal. Uma “cadeira” deixa de ser a soma de suas partes e se torna mercadoria, apartada de todo o processo de produção. Toda palavra é uma palavra de ordem. Futuro, presente, passado.

Ser é significar. No sistema Kegon da filosofia budista, dharmadhatu [dharma: nesse contexto, “fênomenos”; dhatu: “domínio”, “elemento”, “espaço”, “reino”] é o campo em que todas as coisas se interpenetram, interdependentes e impermanentes, além da ilusão de que coisas separadas existem: o universo é uma rede de gemas cintilantes, em que cada joia contém os reflexos de todas as outras. Sob os esforços de ordem, de urdidura, palavras e significados dançam: são sonho. Sob a solidez, são fluidos. Parta uma palavra e sorria; rearranje uma página e gargalhe.

PROPOSTA

“Programa”: do grego πρόγραμμα (prógramma, “uma nota pública escrita, um edito”), de προγράφω (prográphō, "eu anuncio como uma nota pública"), de πρό (pró, “antes”) + γράφω (gráphō, “eu escrevo”). Na década de 1920, Tristan Tzara propôs em um encontro surrealista que se criasse um poema ali, no ato, tirando-se palavras de um chapéu. Em 1958, no Beat Hotel, Paris, e em meio às páginas e páginas de manuscritos do que viria a ser o Naked lunch (William Burroughs, Almoço nu, tradução de Daniel Pellizzari Ediouro, 2005), Brion Gysin e William Burroughs experimentaram sobre técnicas de escrita, cortando, colando, misturando essas páginas e criando novos textos. No século IV d.C., Optatianus Porfyrius compôs o poema “Carmen XXV”:

I Ardua componunt felices carmina MusaeII dissona conectunt diversis vincula metrisIII scrupea pangentes torquentes pectora vatisIV undique confusis constabunt singula verbis.

Nele, todas as palavras impressas na primeira e na quarta coluna e todas as palavras da segunda e terceira coluna formam dois grupos de palavras que podem ser arbitrariamente combinados entre si (1/2/3/4/5; 4/3/2/1/5; 1/3/2/4/5; etc.). As palavras da quinta coluna são fixas, assegurando, assim, que o poema se mantenha hexamétrico apesar das combinações. Há outros diversos exemplos de escritores que, em épocas distintas, investiram na criação de programas para gerarem o que se conhece por “literatura combinatória”: Jean Meschinot, Julius Caesar Scaliger, Georg Philipp Harsdörffer, Quirinus Kuhlmann etc.

Pensando-se “semântica” em sentido amplo, abrangendo não só palavras, pode-se, pensando-se apenas o século XX, listar outros nomes de artistas que trabalham com arranjos de objetos, fotografias etc.: Joan Brossa, Luis Camnitzer, Joaquin Brustenga-Etxauri, Wolf Vostell, entre outros. Na página seguinte, um pandeiro de medalhinhas militares criado Joan Brossa e apresentado em 1986:

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Ser é significar. A proposta da oficina é que, a partir de um programa, criem-se textos, objetos, imagens com os materiais oferecidos na oficina, com materiais trazidos e com materiais coletados durante a oficina. A bel-prazer. Os exemplos acima são explicativos: nada é real, tudo é permitido.