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Todos os direitos reservados.

A produção não autorizada

desta publicação, no todo ou

em parte, constitui violação

do copyright (Lei 9.610).

GUILHERME PERES

Do Instituto Histórico e Geográfico de São João de Meriti

Da Arcádia de Letras e Artes

de Nova Iguaçu

Da Academia de Letras e Artes de São João de Meriti

Do Instituto de Pesquisas e Análises Históricas e

Ciências Sociais da Baixada Fluminense

Sócio do “Amigos do Instituto Histórico Vereador Thomé Siqueira Barreto da

Câmara Municipal de Duque de Caxias”

BAIXADA FLUMINENSE ___________________________________________________

UM LUGAR

NO PASSADO

ENSAIO

Editora IPAHB 2006

AGRADECIMENTOS

Quero registrar meus agradecimentos aos amigos e professores que, de algum modo, contribuíram com essa modesta tarefa, indicando leituras, orientando pesquisas, incentivando, etc.

Antonio Lacerda de Menezes

Luzimar Cotta

Maurício Thomaz de Araujo

Milton Cabral Maria Rita

Newton Menezes

Ney Alberto de Barros

Paulo Clarindo

Pedro Marcílio da Silva Leite

Rogério Torres da Cunha

Stélio Lacerda

Tânia Maria da Silva Amaro

Minha gratidão especial aos professores que colaboraram diretamente com esse trabalho:

Arnaldo José de Castro Gênesis Pereira Torres

Aos amigos do IPAHB: Ápio Rodrigues Neto, Mônica Ferreira Barreto, Patrícia Silvia de Campos, Nilce Campos, Carlos Rogério da Silva Brito, Carlos Alberto Azevedo Ferreira, Fábio Francisco de Souza.

Meus agradecimentos.

“Para estudar o passado de um povo, de uma

instituição, de uma classe, não basta aceitar ao pé letra tudo quanto nos deixou a simples

tradição escrita. É preciso fazer falar a multidão imensa dos figurantes mudos, que enchem o

panorama da história e são muitas vezes mais interessantes e mais importantes do que os outros, os que apenas escrevem a história”.

Sérgio Buarque de Holanda

À meus pais, e a minha irmã a quem dedico este modesto trabalho, uma só

palavra: SAUDADE

SUMÁRIO

Apresentação 11

Prefácio 15

Transporte Coletivo 18

Sto. Antônio de Jacutinga 46

Vila de Santo Antônio de Sá 60

Porto da Estrela 82

Epidemias 103

Engenho Gericinó 120

APRESENTAÇÃO Arnaldo José de Castro

Dos 43.907 km² que compõem o Estado do Rio de

Janeiro, cerca de 0,6% do território nacional, 5.000 km² formam o Grande Rio Fluminense, região litorânea de relevo baixo entre elevações que se estendem até às Serras de Tinguá, da Estrela e dos Órgãos e lindes de Japeri e Queimados.

Reduzido às moderadas proporções de uma miniatura, esse espaço bem se trata de expressiva síntese da terra fluminense. Na unidade da geografia continental não há monotonia de paisagem. O território contínuo – visto a começar da Baia de Guanabara, em prossecução até aos seus confins – depara dinamismo em sua fisiografia de quadros alternados – planícies e montes de variada altitude.

O território geopoliticamente indiviso, ocorrido o achamento do Brasil em 1500, assim permaneceu ao longo do tempo, enquanto as configurações institucionais se sucediam. Vem o período pré-colonial, ou de colonização eventual, em que se realiza a exploração geográfica; a colonização sistemática, iniciada em 1530 com Martim Afonso de Souza; a chegada dos escravos, a partir de 1532, fator estruturante da economia exportadora fundada no trabalho servil; a fundação de São Sebastião do Rio de Janeiro, em 1565, por Estácio de Sá ...Por iniciativa estratégica do marquês de Pombal (Sebastião José de Carvalho e Melo - 1699-1782), a capital da Colônia, em 1763, transfere-se de Salvador para o Rio de Janeiro. A orla litorânea marcada por ancoradouros ou portos, torna-se convergência de caminhos de circulação das mercadorias, metais e pedras preciosas.

O espaço do hoje Grande Rio Fluminense, capital do Brasil-Colônia (1763), dos Reinos Unidos – Portugal, Brasil, Algarves (1815), íntegro, sem divisões político-administrativas, foi até à criação do Município Neutro ( Ato Adicional à Constituição – 1834 ), sede da Corte e dos

poderes do Império. Esse ato desincorpora da Província Fluminense a área de 1.171 km².

A criação do Município Neutro, com administração própria, faz de Niterói (1835) capital provincial . Criou-se a vila de Iguaçu (1833), origem do município-mãe da região, desdobrado em unidades politico-administrativas autônomas, anos depois.

Em 1858 o primeiro trecho da estrada de ferro chega a Queimados, sobretudo para o transporte de mercadorias. A começar do Rio de Janeiro, toda a região sempre se pontilhara de sítios, fazendas, chácaras, em produção contínua . Os proprietários, muitos nobilitados (barões, comendadores etc.) pelo monarca, residiam nas casas-grandes ou vivendas e revezavam idas e vindas à Corte onde cuidavam de interesses ou ocupavam cargos de relevo social.

De molde a tais contornos político-administrativos (sumariamente delineados), Guilherme Peres, autor consagrado de “Caminhos do Ouro” (1993) e de “Tropeiros e Viajantes” (2000), formado no humanismo socialista, vai buscar a dimensão humana, a dor e o sofrimento que intercorre os albores de uma sociedade injusta, de senhores e escravos, que em parte não se teme de torturar até à morte. Apoia-se em fontes primárias e aprofunda aspectos das relações sociais, que estão na base da formação metropolitana. Atento ao meio físico põe-se ombro por ombro com geógrafos-historiadores como Alberto (Ribeiro) Lamego em obras capitais – O Homem e o Brejo (1945), e O Homem e a Guanabara (1964) – no desvendamento dos fenômenos de povoação e desenvolvimento.

As densas páginas de “Um Lugar no Passado” abrem-se para as cogitações da história social e da sociologia histórica nesse capítulo da história fluminense. Perpassam os comportamentos da vida religiosa, da vida familiar, os problemas de consciência na hora de testar as últimas vontades, as generosidades e os seus contrários.

A utilização de pesquisa em jornais, na melhor linha

metodológica, de que dá notícia, representa o sucedâneo para a ausência de documentos próprios dos negros (ausência que GP lamenta), a considerar que a escravaria era ágrafa, talvez com raras exceções. Outra saída não há que buscar em cartórios, igrejas, na imprensa abolicionista e nos anúncios sobre escravos o registro dos fatos.

Autoridade sem contraste pela inexcedível contribuição de sua obra, Gilberto Freire ensina: ...“como a história econômica do Brasil é, até a Abolição, em grande parte, a história do trabalhador negro – a significação dos anúncios relativos a escravos torna-se capital. Por algum tempo, chegaram esses anúncios a ocupar 1/3 e até ½ da parte ineditorial dos diários. Sem comparação – a parte mais humana e mais viva dos mesmos diários. A mais ligada à economia da época – a patriarcal e agrária; a mais ligada à vida então vivida pelos brasileiros, tanto nas cidades como, principalmente, nas fazendas, nos engenhos, nas chácaras, - mais ou menos grandes às quais eram indispensáveis senão senzalas, escravos...” (O Escravo nos Anúncios de Jornais Brasileiros do Século XIX – Imprensa Universitária, Recife, 1963.)

Cumpre assinalar que “Um Lugar no Passado” não se desvincula do movimento de dinamização cultural do Grande Rio Fluminense, que data da implantação das instituições universitárias. Fruto desse processo, de que são partes – UERJ, UNIG, UNIGRANRIO FEUDUC, IPAHB, e autores – Gênesis Torres, Ondemar Ferreira Dias, Stélio Lacerda, Alexandre dos Santos Marques, Antônio Lacerda de Menezes, Rogério Torres, Ney Alberto, Selma Chagas de Oliveira, Ercília Coelho de Oliveira et alii – desaparecem as assimetrias culturais.

À bibliografia historiográfica fluminense, em posição de relevo, acede “Um Lugar no Passado” a projetar sobre o futuro o acervo de experiência modeladora da sociedade a que se aspira - justa e fraterna.

Dia de Corpus Christi, 15 de junho de 2006.

PREFÁCIO

Deve-se, em grande parte, ao estudo das

sobrevivência religiosas, ou as culturas que a elas vieram

se integrar, a bibliografia do negro no Brasil. A escassez

de documentação histórica sobre as conseqüências da

escravidão, tendo por objetivo o cativo, relega ao negro

um papel passivo de personagem que, sem ter deixado

um registro histórico de seus conflitos, fica à mercê do

pesquisador, obrigado a valer-se de jornais e

documentação da época, gerados pelo opressor.

Embora o resultado alcançado neste setor constitua

hoje um acervo considerável, é impossível negar que esse

unilateralismo tem prejudicado a avaliação da pesquisa. A

condição de escravo nunca ofereceu, ao negro, a

oportunidade de registrar sua experiência de oprimido

nas senzalas.

Não só os negros que fugiam ao rigor do cativeiro,

mas também os crioulos (negros nascidos no Brasil) mais

adaptados aos costumes do branco e do indígena, no

trabalho diário dos engenhos e na casa do senhor, não

deixaram registrados, de alguma forma, seu sofrimento.

A sociedade definida em duas classes, mantinha

entre si grande distância social, e mesmo entre os

componentes da classe dominante, eram raros os

conhecimentos mais elementares, como ler e escrever,

privilégio monopolizado pelas ordens religiosas.

Seria de esperar que ao menos nos quilombos,

pudessem ser recuperados, através de alguns valores de

sua cultura, denúncias dessa forma de relacionamento.

Entretanto, o exame dessa amostragem, garimpado em

pacientes trabalhos arqueológicos, demonstra que alguns

dos aspectos primitivos foram reconstituídos, ainda assim

com total ausência desses registros, mesmo numa etapa

avançada no processo de aculturação.

Os registros dos livros paroquiais são um dos poucos

recursos para se reconstruir o passado. Os laços familiares,

as relações e os conflitos estão dispersos para serem

garimpados nas entrelinhas dos textos, único auxílio para se

reconstruir o cenário da vida dos cativos, pinçadas de uma

mesma cultura, economia e sociedade. São histórias

coletadas e recuperadas, muitas vezes contadas pelos

próprios protagonistas a partir de fontes originais.

Ao estudar o negro integrado na economia

fluminense, vamos encontrá-lo na Baixada fazendo parte

de pequenos plantéis em torno de engenhos ou

engenhocas, que se espalhavam por toda a orla da Baia de

Guanabara ou em seu interior. Mercadorias socialmente

baratas durante a segunda metade do século XVIII,

constatam o aparecimento de uma camada social entre o

senhor de engenho e os cativos, no processo das relações

pré-capitalistas: a pequena burguesia.

A maioria dos homens livres era proprietária de

pelo menos um escravo, não só pelo baixo preço, mas pela

condição de ser “senhor de escravo”, mesmo que fosse

para a ocupação de pequenas tarefas domésticas.

Descrevendo um pouco os meios e instrumentos de

transportes usados no interior do Estado, afastamo-nos da

faixa litorânea da Baia de Guanabara, freqüentemente

descritas pelos viajantes do século XIX e reproduzida por

historiadores dedicados à história de seus portos fluviais.

Ao contribuir com este pequeno trabalho para o

estudo de uma economia escravista, que durante mais de

trezentos anos dominou também esta região fluminense e

relegou ao negro sua condição nem sempre passiva de

escravo, queremos abrir um caminho para os futuros

pesquisadores se apoiarem em alguns documentos

inéditos publicados neste ensaio.

Guilherme Peres

TRANSPORTE COLETIVO

PIONEIRISMO NA BAIXADA FLUMINENSE

NO SÉCULO XIX

Antecipando-se à era dos bondes de tração animal, ainda

na primeira metade do século XIX o Rio de Janeiro conheceu as primeiras diligências através do Aviso Régio de 18 de

outubro de 1817, assinado pelo príncipe regente D. João, concedendo a Sebastião Fábrigas Surigué “estabelecer a circulação desses veículos entre a Cidade e os palácios da Boa Vista (em São Cristóvão) e a fazenda Santa Cruz”. Sebastião Serigué era proprietário da “Real Fábrica de Tecidos de Santo Agostinho, construída em 1815 pelos índios, às margens do rio Guandu” com mão de obra escrava e livre, onde “havia uma oficina de teares com dez escravos aprendizes fiando o algodão”. Editando no Rio de Janeiro o “Almanaque da Cidade”, Serigué também era ligado aos serviços de iluminação à azeite, empregados na metrópole.

Um ano depois, era autorizado a transportar passageiros Joaquim José de Melo “para o serviço em carros de seis assentos e três parelhas”. Outro nome ligado ao transporte para Santa Cruz foi Nicolau Viegas de Proença, que apesar de não possuir concessão, alugava carros, pois era “Secretário da Intendência de Polícia e corretor da Igreja de Nossa Senhora da Conceição e Boa Morte”. Segundo Fania Fridman, “quando chegavam a Santa Cruz, os passageiros eram alojados em prédio próprio da companhia. Do Paço a Santa Cruz o bilhete custava 8$000”.

A concessão tinha dois objetivos, diz Noronha Santos: “facilitar o transporte de malas do correio e proporcionar uma condução cômoda às pessoas que quisessem ter a honra de beijar a augusta mão de sua

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Alteza”.

Assemelhando-se “a um caixão retangular, com vigias envidraçadas laterais, montados sobre molas e sustentados por quatro rodas sendo as dianteiras de diâmetro menor que as traseiras”, levavam em seu interior os bancos destinados aos passageiros, “e sobre o teto eram acumuladas as bagagens”. Diz Alípio Goulart: “O veículo era puxado por quatro cavalos atrelados por meio de correntes e correias de couro. Pelo caminho havia mudas de animais que iam substituindo aqueles já cansados no trajeto percorrido”. Entretanto, o transporte parecia destinado aos privilegiados e abastados da Corte, pois o preço da passagem era caríssimo.

Em direção à fazenda Santa Cruz, os lugares eram numerados e a passagem custava 8$000. Alguns desses veículo puxado por quatro animais partia do centro da cidade às quatro horas da manhã “e como a Estrada Real de Santa Cruz costumava ser freqüentada por salteadores, a viagem demorava em média de oito a dez horas”, diz Fania Fridman em “Donos do Rio em Nome do Rei”

Durante o trajeto havia quatro paradas para troca de animais, serventia, refeição e descanso dos passageiros nas localidades de Campinho, Realengo, Venda do Santíssimo e Mato da Paciência. Com o início da volta marcada às cinco e meia da tarde, a hora da chegada ficava à mercê dos imprevistos na estrada.

Graças às obras de melhoria executadas nessa estrada pelo intendente geral de Polícia Paulo Fernandes Viana, a estrada recebeu cuidados especiais com a construção das pontes do Piraquara, Bangu e Cabuçu, aumentado em suas margens o número de casas avarandadas de comércio e hospedagem, recebendo tropeiros e viajantes. “A freqüente passagem do séquito real, de tropas a cavalo e a pé, dava ao antigo caminho o aspecto de verdadeira avenida”.

Com o regresso de D. João VI a Portugal e o conseqüente desligamento do cargo em 1821, Paulo

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Fernandes deixou para a posteridade um relatório de prestação de contas, garimpado nos textos de Brasil Gerson:

“Por fora da cidade melhorei todas as estradas, tanto da banda daqui, como dalém d’ela, com aterrados, partes novas e consertos para facilitar a condução de víveres e promover a abundância na Corte. Tive o gosto de ver sua Majestade por esse meio viajar de carruagem por Maricá, São Gonçalo, Engenho Novo, Tambi, e depois fazer a picada com que de Iguaçu pudesse sua Majestade mesma ir em sege e entrar na comarca de São João D’el Rei, província de Minas Gerais; ajustei essas estradas com todas as pontes precisas e cobertas”.

“Antônio Dias Pavão, futuro conde de Itaguaí, proprietário de armazéns na Pedra e em Sepetiba possuía em 1822 uma casa de secos e molhados no Curral Falso, “porta de entrada” e sede do posto de fiscalização da fazenda, local de pouso preferido dos viajantes, também conhecido como Rancho Real”. Em seu trajeto foram fincados “12 marcos de pedra ao longo da estrada, indicando outras tantas léguas, suposta distância entre a cidade e Santa Cruz”.

D. João e sua família por ali transitavam a bordo do coche real acompanhados do séqüito, e descansavam uma vez por outra na fazenda do Bangu, propriedade de D. Anna de Morais e Castro. A velha casa da fazenda Sta. Cruz era pequena para acomodar toda a comitiva que seguia com a corte, ficando ali com a família real só a criadagem. O restante hospedava-se na sede da fazenda do Mato da Paciência, de propriedade de João Francisco da Silva e Sousa. “A generosidade desses abastados fazendeiros chegava ao ponto de darem quartel à guarda da Polícia e a sustentá-la durante meses”, diz Vieira Fazenda em “Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro”.

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ESTRADA REAL DE STA. CRUZ

Ahistória dessa estrada tem inicio no ano de 1725 com o

coronel Rodrigo César de Meneses recebendo da Coroa autorização para abrir uma via de transporte terrestre que

ligasse o Rio de Janeiro a São Paulo, aproveitando a trilha já aberta pelos jesuítas desde São Cristóvão até a fazenda de Santa Cruz, o que suscitou protestos dos inacianos alegando prejuízos. Entretanto o trabalho continuou e a estrada foi concluída em 1754.

Com uma extensão de mais de 60 quilômetros, esse caminho longo e sinuoso começava no atual largo da Cancela em São Cristóvão, e terminava nos “campos alagados de Santa Cruz”. Passando por vários engenhos pertencentes à freguesia de Irajá, era usada para o transporte de produtos da lavoura, e cerca de 500 cabeças de gado transitavam anualmente enviados pelos jesuítas para venda, e destinadas à manutenção do colégio no Rio de Janeiro, pertencente à Ordem.

Na Carta Topográfica do Rio de Janeiro ”Feita por ordem do Conde da Cunha, por Manoel Vieira Leão” em 1767, vê-se o trecho fluminense dessa estrada que, partindo do centro urbano seguia por Campinho, Engenho dos Afonsos e inúmeros outro engenhos. Passando pela freguesia de Santa Cruz (assinalado no mapa por eng. D’el Rei, pois os inacianos haviam sido expulsos em 1759), Guarda, sobre o Rio Guandú, e Itaguaí, deixava o litoral em busca da Guarda do Pouso Frio, Ribeirão das Lages, Pouso do Vigário (Rio Piraí) e a Guarda do Coutinho, entrando no sertão paulista através de florestas.

Em outro mapa datado de 1801 “da Capitânia do Rio de Janeiro oferecido a D. Antônio Roiz de Aguiar”, a

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estrada de Santa Cruz inicia-se no Caminho de Terra Firme entre as terras do Eng. Novo e os “Campos de Irajá”, até atravessar a fazenda, assinalada no mapa com o nome de “Santa Cruz D’el Rei”

No litoral, vários portos serviam de embarque do açúcar e cereais que chegavam através de rios navegáveis e canais artificiais, beneficiando os engenhos de Fora, Novo, do Morgado e da Ilha. Na Freguesia de Guaratiba o porto da Pedra embarcava cereais e animais domésticos.

Evidenciando a dinâmica de Santa Cruz, “foi ali instalada a primeira agencia dos Correios do país em 1842”diz Fania Fridman.

VEÍCULOS

Usada como transporte durante longo período da vida nacional, a sege “consistia em uma carruagem pequena de um só assento e dois varais, com cortina de couro na frente. Com teto, lateralmente fechada e apoiada sobre o jogo de duas ou quatro rodas grandes, puxada por uma besta”. Tradicionalmente usadas nas aldeias portuguesas, um desses modelos foi trazido pelo príncipe regente D. João em 1808 para seu uso, mas já eram conhecidas no Brasil desde o século anterior.

É Luís Edmundo quem nos conta os hábitos de D. João em seus passeios pelos arredores da cidade: “Se a tarde não estava chuvosa ou muito quente, vinha o Conde de Parati anunciar que a sege estava pronta para sair. À frente da carruagem ia um batedor, dentro do seu fardão ganga encarnada. A seguir ia o lacaio no degrau, e mais um outro lacaio na sua dupla função de guarda-comida e criado mudo, levando dois alforges. Num deles, achava-se a malotagem do Príncipe: uns dois frangos tostados ao forno ou ao espeto, pão e água, e no outro alforje, que

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segundo a frase do revelador de tão curiosos detalhes, era igual às que, mesmo nas alcovas, discretamente se escondem.

Em dado momento D. João reclamava o alforje das comesainas. A coisa ia por ordem. Parava-se a sege. O camarista aí tomava conta do protocolo. Por que um Príncipe não come, assim como nós outros. Vinha o lacaio dos alforjes. Desatava os cordões da primeira bolsa. O aio metia a mão até o fundo da mesma, pescando um frango, que era a quem rápido e guloso, o encostava à mancha branca da dentuça forte...Em torno era como se o Príncipe estivesse rezando. Todos punham os olhos no chão, respeitosamente em silencio...E a carruagem partia. Mais adiante, a carruagem estaca. De novo o lacaio dos alforjes, ativo e solícito funcionário. O caso agora é mais complicado. O sítio é um tanto ermo. O objeto retirado do segundo saco é posto sobre uma tripeça em forma de retrete. Há historiadores que vão a detalhes menos elegantes, completando a ignomínia do quadro. Preferimos ficar aí”...

Henderson, cônsul inglês residente no Rio de

Janeiro, citado por Oliveira Lima, também descreve o Príncipe atravessando a cidade “num carrinho aberto que ele próprio guiava, de um feitio único entre o carro de guerra romano com o anteparo para trás, e a tina de banho de que se perdeu o modelo”.

Nos primeiros dias de grande gala passados no Rio, descreve o aniversário da Rainha: “formavam todo o cortejo seis seges abertas puxadas por mulas e guiadas por negros pouco asseados”, poucos anos depois “se viam nas ocasiões de beija-mão rodar muitas carruagens decentes, algumas até esplêndidas, atreladas com cavalos finos e conduzidas por lacaios brancos de libré”.

Oliveira Lima em “Dom João VI no Brasil”

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afirma que nessa época a carestia de vida era uma preocupação constante entre os diplomatas residentes no Rio de Janeiro. Segundo um registro existente no Arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros de França, datado de 1818: “Uma excursão a Santa Cruz, quinze léguas distante da Capital, custava no cálculo de Maler, 400 francos: por isso, não tendo ainda recebido seus ordenados ao tempo do convite de Dom João para que fosse passar alguns dias na antiga fazenda dos Jesuítas, vira-se compelido a declinar a honra”. Registrava ainda que as viagens e o aluguel de cavalos “é de uma carestia inconcebível. Não há cantinho do universo onde se seja pior alimentado, pior alojado e por preços tão excessivos.”

No mesmo registro o cônsul queixava-se que:

“Um carro, ou para melhor dizer uma suja traquitana, custava 26 francos por meio dia e 50 francos pelo dia todo. Nada era barato...a própria água – inútil é observar que não havia canalizada em casa – pagava-se 1 franco o barril”. Descrevendo os veículos usados pela Corte chamando-os de “ridículos, podiam antes chamar-se pobres berlindas. A Princesa Real, mais enérgica e varonil que o marido, preferia muito sair a cavalo, a ser sacudida pelas ruas mal calçadas e pelas estradas esburacadas numa sege incômoda.”

Servidos como táxis no Rio de Janeiro a partir de 1822, eram os veículos preferidos pelos membros da corte e “almofadinhas” da época, fazendo ponto na porta dos teatros e praças da cidade, sofrendo a concorrência das gôndolas, diligências, berlindas e tilburis, pertencentes a inúmeras empresas de transporte que, com a expansão da cidade, serviam à formação de novos bairros e subúrbios.

A intensificação do comércio no centro atraia consumidores principalmente em busca das confeitarias

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sortidas e de artigos finos importados, ponto de encontros literários e boêmios.

O aumento da indústria açucareira fluminense, e a expansão cafeeira no século XIX transformaram o Rio de janeiro no núcleo concentrador de comercio, desencadeando um processo de acumulação mercantil, que reunia grandes comerciantes identificados com o tráfego escravo.

DILIGÊNCIAS

As três primeiras décadas do século XIX ocorreram sem novidades no campo do transporte, até que em 1844 uma autorização a um tal Jacques Bourbousson para o serviço de diligências na corte, permitindo um contrato de cinco anos, foi acompanhado de um anúncio no “Jornal do Comércio” no qual J.B. se declarava inventor de um novo sistema de montar carros e carruagem, com oficina na rua do Lavradio.

Alguns anos depois Theodoro Klett fabricou e pôs em circulação outras diligências, “inaugurando desde logo uma linha de veículos dessa espécie para São Cristóvão”. Tendo como ponto inicial o Largo de São Francisco de Paula, outras empresas surgiram: “a das diligências roxas, de Antonio José Gonçalves; a das amarelas, de Vila Real & C, com cocheiras situadas no campo de São Cristóvão; e das brancas e azuis, de propriedade de Cândido Marques da Cruz”.

Ainda é Noronha Santos que cita o nome do comendador Jerônimo José de Mesquita, capitalista e fazendeiro na Baixada Fluminense, do qual falaremos mais tarde, pedindo permissão ao Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas - “Para estabelecer uma linha que terminasse na Tijuca, a partir do cruzamento das ruas Estácio de Sá e São Cristóvão”.

Com a linha inicial do trajeto entre o centro da cidade 25

e Botafogo, “em janeiro de 1839 trafegaram mais dois carros, com horário muito espaçado – um para Engenho Velho e outro para o bairro de São Cristóvão”.

“OMNIBUS”

Em 1837 desembarcaram no Rio de Janeiro, vindo da Europa, alguns veículos destinados a transportar passageiros denominados “omnibus”. Pintados de vermelho, com quatro rodas e tração animal de dois ou quatro muares causaram sensação na cidade. Era o resultado da organização de uma empresa “para exploração, uso e gozo do novo meio de transporte que, com grande sucesso, ia sendo adotado em cidades européias e na América do Norte”, conhecidos na França com o nome de “omnibus”, “que não passavam de diligências melhoradas no aspecto e no conforto”.

Formada a diretoria encabeçada pelo desembargador Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho, promoveu-se a subscrição de trezentas ações que tiveram aceitação em pouco tempo. “Um vasto terreno foi adquirido nos primeiros anos de funcionamento da Companhia entre as ruas do Lavradio e Inválidos, no qual se fizeram várias instalações”, quando assumiu a presidência o capitalista Jerônymo José de Mesquita, mais tarde barão de Bonfim”.

Um dos grandes fazendeiros do Município de Iguaçu, Jeronymo José de Mesquita além de comerciante fortemente estabelecido na praça do Rio de Janeiro, “foi o primeiro Barão de Mesquita, vereador da Câmara daquela cidade, filantropo, diretor do Banco do Brasil, fundador de inúmeros institutos de beneficência e ordens religiosas”, diz Rui Afrânio Peixoto em “Imagens Iguaçuanas”.

Em 1854, José Francisco de Mesquita, o visconde de 26

Bonfim, comprou a fazenda São Matheus (Nilópolis), de d. Clara Augusta de Bulhões, viuva de Vicente de Souza Coutinho, “que chegou a ser Juiz de Paz na Freguesia de Meriti”, diz Marcus Monteiro em “A Fazenda São Matheus”. Proprietário também da fazenda Cachoeira, fazendo limites com aquelas terras.

“Nove anos depois o visconde passaria a fazenda para seu irmão, Jerônimo José de Mesquita o barão de Mesquita, que possuía também uma feitoria de café na Serra da Chatuba”, tendo construído a casa grande da fazenda em Mutambó, onde existiu à margem da linha férrea a parada Mutambó, hoje Mesquita. Seu filho, Jerônimo Roberto de Mesquita, o 2º. barão de Mesquita, herdou do pai, após o seu falecimento em 1886, os direitos dessa propriedade.

Segundo Brasil Gerson, esses dois grandes nomes estiveram ligados em seus destinos: o visconde, conde e marquês de Bonfim e o barão e conde de Mesquita, ambos proprietários de terras em “Iguassú”. “O primeiro vindo de Minas, homem de negócios, banqueiro, amigo pessoal do imperador, era membro também da Legião de Honra dos franceses, e isso apenas bastaria para que se pudesse fazer uma idéia do papel que representou na vida carioca e brasileira do seu tempo”.

O segundo foi o barão de Mesquita. Ao contrário porém do que se afirma, Mesquita não era filho nem irmão de Bonfim “como geralmente se pensa”, nomeado seu herdeiro universal era apenas seu afilhado ou protegido, como ele mesmo se refere no seu testamento, “aberto depois de seu falecimento, em 1886, no seu solar da Rua Haddock Lobo, hoje Instituto Lafayette”, ao pedir aos seus amigos que o enterrassem sem pompa no carneiro que tinha no cemitério de São Francisco de Paula, no Catumbi “próximo ao meu respeitável amigo e protetor, o finado Sr. Marquês de Bonfim, de saudosa memória”.

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“COMPANHIA DE OMNIBUS”

O “Almanak Laemmert”, do ano de 1851, anotava em suas páginas que uma “Companhia de Omnibus” que dera “princípios aos seus trabalhos no dia 1º de julho de 1838”, estava naquele momento em pleno progresso com o capital de 72:000$000. Divididos em ações de 100$00, registrava com otimismo que fabricava “todo o seu trem em oficinas próprias montadas dentro do seu estabelecimento”.

Distribuiu dividendos de 1% ao mês desde dezembro de 1844, mesmo tendo “grandes despesas que tiveram lugar com a mudança do local do estabelecimento e do grande melhoramento e aumento de todo o material”. O “Almanak” também divulgava que: “emprega nas linhas atuais 10 carros de diversas lotações e tem em reserva outros tantos, com cerca de 300 bestas muares em serviço”. Ocupando os serviços de “40 pessoas livres e 20 a 25 escravos”, suas ações rendiam um “prêmio de 25%”.

Para o biênio 1850 e 1851, a diretoria era composta pelo Presidente: Joaquim José dos Santos Júnior. Secretário: Dr. João Eleutério Garcez e Gralha. Tesoureiro: Barão de Bonfim e Inspetor Geral o Sr. Geraldo Caetano dos Santos. Aqui vemos com o cargo de tesoureiro, Jerônymo José de Mesquita, que continuava fazendo parte da diretoria

Realizando viagens para o interior da Província, servido mais tarde pela Estrada de Ferro D. Pedro II, vários veículos de tração animal eram constantemente solicitados por viajantes a subirem a serra em busca de tratamento de saúde ou “tomar ares”, conforme nos conta Noronha Santos, transcrevendo Francisco Otaviano em sua crônica semanal no Jornal do Comércio, no dia 6 de novembro de 1853, aconselhando o presidente da Província do Rio de Janeiro, conselheiro

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Barbosa a se ausentar da cidade em busca de tratamento: “Se S. Exa. quiser tomar ares em algum município de serra acima, tem hoje a comodidade de poder fazer a

viagem de sege pela excelente estrada da bocaina dos Mendes. Ainda a pouco tempo, no dia 24 do mês passado, a Exma. Sra. marquesa de Baipendi saiu dessa Corte pela madrugada e no dia seguinte, às quatro horas da tarde, estava em sua fazenda de Santa Mônica a vinte léguas de distância, no município de Valença, com excelente viagem, tendo-a feito quase toda de sege, apeando-se em alguns pontos, que ainda inspiravam-se receios”. E acrescentava Otaviano mostrando os benefícios das boas estradas construídas: “Terminados os trabalhos de melhoramentos dessa estrada, pode-se ir daqui até ao Paraíba, por Vassouras, de sege, em dia e meio”.

Segundo Alípio Goulart, Francisco Otaviano cometeu um engano quando se referiu à sege como veículo para viagens de longa duração, principalmente serra acima. Confundindo diligência com sege, esclarece que esta era apenas “veículo citadino; e, no interior, serviu em pequenos percursos ao luxo e ao exibicionismo de seus possuidores”.

Na Baixada Fluminense, vamos encontrar o primeiro registro sobre o surgimento desse tipo de transporte coletivo no porto da Estrela, por H. Raffard em 1844, citado por Regis Bittencourd em “Caminhos e Estradas”: “O sistema de viajar tinha sido transformado para melhor e torna-se interessante mencioná-lo para comparar-se com o de hoje, tão fácil e tão agradável.

Para se ir a Petrópolis tomava-se na praia dos Mineiros, no Rio de Janeiro passagem em uma falua, as 11 horas da manhã e aproava-se ao porto da Estrela em qualquer dos ancoradouros de Francisco Alves Machado Martinho e de Joviano Varela, às 5 horas da tarde, quando o tempo favorecia; aí pernoitava-se em qualquer das casas dessas pessoas que davam franca hospitalidade, ou em uma estalagem do lugar.

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No outro dia, seguia-se a cavalo ou de carro, fornecido pelo cidadão de nome Albino José de Siqueira Fragoso, pela estrada de Minas, até o Fragoso, importante paragem obrigatória de todo o comércio dessa Província. Do Fragoso subia-se a serra velha da Estrela para chegar a Petrópolis, com uma viagem de duas a cinco horas.”

Moacir Silva nos dá detalhes do tipo de veículo usado por José Fragoso, extraído do “Itinerário para Petrópolis” do barão de São Joaquim: “Embarca-se aqui no vapor para o porto da Estrela, cujo vapor se acha todos os dias na praia dos mineiros, que costuma largar às 11 horas. Chegado que seja no porto da Estrela, costuma aí haver um ônibus, o qual admite dez pessoas; porém muitas vezes são tantos os passageiros que não há lugar, e por isso é bom prevenir o dono dos ônibus que mora debaixo da serra, no lugar denominado Fragoso e chama-se Tenente–Coronel Albino José Siqueira Fragoso, também o mesmo Albino tem sociáveis para duas ou quatro pessoas e então manda-se ver um, e nesse caso faz-se a viagem independente de ir com outro.

Logo que chegue abaixo da serra, lugar do Fragoso, e além do mencionado Albino, tem aí de mudar de condução por causa da Serra e portanto tomará cavalgadura ou liteira, e qualquer dessas conduções o Albino manda aprontar. Segue depois para Petrópolis, que é no alto da Serra. Aí tem vários hotéis, e todos bons, logo na entrada da cidade tem o chamado de Bragança e onde se pode hospedar com toda a comodidade.”

O preço do vapor para Estrela em Réis era: 1$500. Para pessoa descalça: $500. De ônibus da Estrela até Fragoso: 2$000. Do sociável da Estrela até o Fragoso: 8$000. Para duas pessoas: 6$000. Uma liteira para subir a serra: 10$000. Em um animal idem idem 4$000: Um preto para levar alguma mala: 1$000

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ESTRADA UNIÃO E INDÚSTRIA

Aquela manhã do dia 23 de junho de 1861 ainda alvorecia, “quando os cocheiros de sobrecasaca azul com botões amarelos e boné com galão de ouro, contavam com o clarão da lua alumiando o caminho que seguiam os viajantes”, conforme descreveu o “Jornal do Comércio do Rio de Janeiro”, seria o cenário de inauguração da primeira estrada de rodagem “macadamizada” do Brasil, ocasião em que D. Pedro II, D. Teresa Cristina, a Princesa Isabel e a comitiva imperial deixaram Petrópolis em “carros especiais” para inaugurar o percurso de 144 km. da Estrada União e Indústria, até Juiz de Fora.

O imperador teria o dia inteiro para percorrer as onze estações de parada ao longo da estrada, em diligências tracionadas por dois pares de cavalos, “levando quatro passageiros na berlinda (bancos internos) e mais dez sobre o teto (sic), com o cocheiro e seu ajudante, fazendo a viagem em nove horas”.

As estações de muda, onde os animais eram trocados, dispunham de edifícios para a administração, depósito de carga e sal para os animais, estrebaria, oficina de reparos e pensão onde os passageiros podiam alimentar-se, descansar e até tomar banho.

Curiosos eram os nomes das diligências como a “Favorita”, “Traviata” e “Mazeppa”, sendo que o último era dado popularmente a esse tipo de transporte, sendo provavelmente originário de um herói cossaco, Ivan Mazeppa.

As ligações terrestres com Minas Gerais através dessa rodovia seria o resultado da iniciativa do mineiro Mariano Procópio Ferreira Lage, que após uma viagem à Europa introduziu no Brasil as novidades tecnológicas aplicadas na época. Conheceu a mistura de cascalho e piche que aplicada ao solo transformava os velhos caminhos carroçáveis em boas estradas para diligências, inventada pelo escocês John Loudon MacAdam.

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Para a União e Indústria cumprir seu papel comercial e industrial, Mariano Procópio montou um verdadeiro complexo assistencial de manutenção com olarias, carpintarias, serralharias, ferradores, marceneiros etc., que formavam uma imensa retaguarda. A Companhia tinha por norma usar o mínimo de escravos em seus serviços, preferindo contratar mão de obra assalariada, sendo a maioria imigrantes alemães.

A exploração da União e Industria foi um êxito financeiro até enfrentar a concorrência da Estrada de Ferro D. Pedro II. À medida que as pontas dos trilhos se aproximavam do Rio Paraíba, caía o transporte de cargas e passageiros, fazendo com que seu acervo fosse entregue ao Governo Imperial em 1864, que passou a administrar um mau negócio.

Em 1865, o naturalista suíço Jean Louis Rodolphe Agassiz, chefiando uma missão científica ao Brasil, deixou esse depoimento: “Esta estrada é célebre pela sua beleza como pela sua perfeita execução... Há doze anos atrás, o único meio de sair de Petrópolis era uma estreita trilha de burros, esburacada, perigosa, onde uma viagem de centenas de milhas exigia uma caminhada de dois ou três dias. Agora se vai de Petrópolis a Juiz de Fora, de carro, do levantar ao pôr-do-sol, numa boa estrada de rodagem que não faz inveja a qualquer outra do mundo. A cada intervalo de dez a doze milhas encontra-se uma muda de animais descansados em elegantes estações em forma quase sempre chalés suíços”.

“COMPANHIA IGUASSUANA”

Em outro volume do “Almanak”, referente ao ano de 1854, vamos encontrar a inédita referência a uma nova “Companhia de ômnibus” denominada “Companhia Iguassuana”, composta de carruagens com tração animal

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transportando de 8 a 12 pessoas por viagem, como predecessora das linhas de transporte regular para o interior da Província, cujos serviços estavam implantados e destinados ao centro da cidade desde 1838.

Essas viagens eram feitas todos os domingos, terças e quintas-feiras com início da partida marcada para as “6:30 horas da manhã”, sendo os “bilhetes” vendidos antecipadamente na “Côrte, na rua do Hospício 32, saindo do Campo da Aclamação defronte do Museu”, com destino a “Vila de Iguassú”, passando por Pavuna. Com uma parada nesse local “de ¾ de hora” para troca dos animais, ao lado do “Hotel do Templo”, cujos proprietários Srs. Souza Amaral & Faria, também vendiam “bilhetes”.

As partidas “de Iguassú” eram pela manhã às 6:30, “todas as segundas, quartas e sextas-feiras”, e os preços das passagens custavam: “Da Côrte a Pavuna 4$000. Da Côrte a Iguassú 6$000”.

No “Almanak“ do ano de 1855 encontramos anúncio dessa mesma Companhia fazendo transporte para Itaguaí. “Preço das Viagens: da Côrte a Itaguahy e vice-versa, 10$000. Da Côrte ao Campo Grande e vice-versa, 5$000”, com venda de passagens e partidas da Corte feitas no mesmo local destinadas a “Iguassú”, e no horário “das 6 horas da manhã”. A venda de passagens em “Itaguahy” eram feitas na casa do “Sr Comendador Azevedo, e no Campo Grande no Hotel da Flôr”.

No ano de 1855, a “Companhia Iguassuana”

continuava funcionado com o mesmo roteiro e horário. Havia porém alterado os preços, e mudado na Corte, o local para a compra dos “bilhetes”; os passageiros deviam “dirigir-se ao Campo da aclamação, 32”, local das partidas.

Nesse anuário, formando a diretoria do biênio 1855/1857, encontramos como presidente o Sr. Victorino José Gonçalves, e como um dos diretores, mais uma vez o nome de Jeronymo José de Mesquita, fazendo crer que a

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“Iguassuana” era a mesma Companhia que se iniciara em 1838, desmembrada posteriormente em uma nova razão social. Provavelmente admitido como sócio e também fazendo parte da diretoria, aparece curiosamente o nome Francisco José Soares, do qual falaremos adiante.

O preço das passagens haviam sido reajustadas: “Da Côrte a Pavuna e vice-versa 5$000. Da Côrte a Iguassú e vice-versa 8$000”. Para Itaguaí também houve aumento: “Da Côrte a Itaguahy e vice-versa 13$000”, divulgando que seria cobrada passagem “nos postos intermediários na razão de 1$000 por légua”. Os “bilhetes” vendidos na Corte, passaram a ser adquiridos na Rua da Quitanda nº.21. Em Itaguaí “na casa do gerente Antônio Rodrigues de Azevedo, e em Iguassú na casa dos Srs. Soares & Mello”.

VILA DE IGUASSÚ

A importância de seu porto no século XIX, com a expansão econômica do café, refletiu em sua elevação condição de Vila em 15 de janeiro de 1833, “compreendendo no seu Termo as Freguesias de Iguassú, Inhomerim, Pilar, Santo Antônio de Jacutinga, São João de Meriti e a parte da Freguesia de Marapicu que fica à margem direita do Guandu e Ribeirão das Lages”.

Daniel Kidder, em suas “Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil”, escritas durante o período que aqui esteve, entre 1837 e 1840, afirmou: “apesar de muito sinuoso é navegável por lanchas grandes até a Vila... Aos poucos, porém os fazendeiros do interior, foram se convencendo de que para eles era mais interessante descarregar em Iguassú o café, o feijão, a farinha de mandioca, o toucinho, e o algodão; daí era mais econômico mandar as mercadorias para os mercado por via marítima que por terra... é agora considerada como a Vila mais

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próspera da Província do Rio de Janeiro, com uma população de cerca de 1200 habitantes”.

Waldick Pereira assim nos conta os aspectos da vila: “descendo pela estrada do Comércio, tinha dois caminhos para o porto; depois de passar pelo riacho do Lava-pés, adjacente a fralda do morro do Vitor (assim chamado, o riacho, por ter um chafariz onde os viajantes refrescavam-se e lavavam os pés para entrar na vila), podia seguir pela rua do Comércio ou contornar pelo caminho dos Velhacos”. O Cel. Alberto de Mello explicou a Waldick que o caminho tinha esse nome “por razões óbvias, pois quem devia aos comerciantes da rua do Comércio... fazia um percurso em curva, desde a entrada da Vila, até o Porto”.

“No centro da Vila, perto do porto, estavam os edifícios da Câmara, Cadeia, Fórum, armazéns e casas comerciais... Ao longo do rio Iguassú, em direção ao “Caminho da Serra”, estavam os portos do Pinto, do Viana e dos Soares de Mello. Atrás da igreja de N. S. da Piedade e em frente ao cemitério de N. S. do Rosário (chamado “dos ricos”), a rua da Igreja se bifurcava: um braço seguia para Machambomba e outro, era o caminho das Palmeiras, atravessava a rua do Cachimbau para se encontrar com a estrada da Olaria”.

“O riacho Lava-pés tinha dois chafarizes”, prossegue o Cel. Alberto de Mello: “um à entrada da Vila, a que já nos referimos, e o outro, mais junto do centro, entre o Largo dos Ferreiros e a rua da Mata. Este ponto vivia constantemente alagado e sujo, em virtude do desperdício d’água e dos porcos que andavam soltos por ali”. O Cel. Alberto afirmava ainda que as únicas ruas calçadas eram as Ruas do Comércio, o Caminho dos Velhacos e a Rua da Igreja. No centro da Vila, a cadeia era composta por quatro celas e, segundo o Relatório da Província de 1874, “todas com sofríveis condições de

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salubridade e segurança, as quais podem acomodar até 50 presos... todas assoalhadas, é segura e salubre, e tem tarimbas”.

ESTRADA DO COMÉRCIO

Iniciando em Vila de Iguaçu sua trajetória de 10 léguas, essa estrada subia a Serra do Tinguá e da Viúva, passava por Pati do Alferes, Vassouras e atravessava o Rio Paraíba do Sul em direção a Minas Gerais.

Com um traçado proposto pelo sargento-mor Inácio de Souza Werneck, três anos após a vinda do príncipe D. João ao Brasil, já era estudada sua abertura aproveitando as trilhas abertas pelos tropeiros, e abraçado pelo também sargento Francisco José Soares de Andréia, “Luminar da Engenharia Militar e Cartográfica do Brasil”, cujos trabalhos duraram de 1813 até 1817.

Esquecida em sua manutenção, a chuva começou a fazer seu estrago natural. Com o aumento da produção cafeeira e gêneros de primeira necessidade, seguindo para o porto do Rio de Janeiro, sede do Império, através de um percurso longo, cansativo e perigoso para as tropas, com os precipícios que surgiam durante a caminhada, começou a pensar-se no seu calçamento, o que foi mais tarde determinado pelo Presidente da Província Fluminense, Conselheiro Paulino Soares de Souza, sua reconstrução e “empedramento”, mediante contrato assinado em 1839 com o cel. de engenheiros Conrado Jacob Niemeyer. Como eixo central de ligação entre o interior e a Corte, essa estrada tornara-se geograficamente estratégica e de vital importância para a economia fluminense, indo ao encontro do seu sistema hidrográfico, com “tropas de carga e passageiros, vindo ou indo para aquelas províncias, forçosamente tinham que se demorar em Iguassú, sede da Vila, ou mais longe dela, como em Sant’Ana das Palmeiras, no alto da serra”.

O assoreamento dos rios, provocando extensas inundações em época de chuvas, fez surgir a malária, e com ela a epidemia de cólera morbos em 1855, assolando todas as freguesias da Baixada.

A construção em 1858 da Estrada de Ferro D. Pedro II, partindo do Rio de Janeiro até Queimados, alcançaria logo a freguesia de N. Sra. de Belém e do Menino Deus (hoje Japeri), em busca do Vale do Paraíba.

Como aconteceu à margem dos rios, à margem da via férrea povoados iam surgindo, entre elas “Maxambomba” (hoje Nova Iguaçu), velha fazenda por onde cargas e passageiros circulando com freqüência, iriam atingir um desenvolvimento tal que “Iguassú” teve sua sede transferida para ali em 1891, e nesse mesmo ano agraciada com foros de cidade.

FRANCISCO JOSÉ SOARES

Detentor da “Ordem de Christo”, oferecida pelo Imperador D. Pedro II, Francisco José Soares foi

durante muito tempo “patriarca de uma numerosa família

de Iguassuanos” e proprietário da fazenda Morro Agudo.

Vindo de Portugal onde nasceu, chegou ao Rio de Janeiro

com 17 anos de idade. Dirigindo-se para “Iguassú”,

dedicou-se ao trabalho da lavoura cujo progresso

evidenciou-se ao abrir um estabelecimento comercial na

“Vila de Iguassú”, quando passou a interessar-se pelo

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movimento político local.

Segundo José Mattoso Maia Forte, Soares foi

eleito vereador da Câmara, atuando como seu presidente

entre os anos de 1837 a 1840. Fez parte de um corpo de

milícias em 1842 e assumindo o posto de tenente-coronel,

partiu para as margens do Rio Preto no comando da

artilharia contra os revoltosos de Minas.

Viajando pela Província em 1848, D. Pedro II

chegou a “Vila de Iguassú” hospedando-se em sua

residência, ocasião em que ofereceu um conto de réis para

a construção do chafariz da Vila.

Casado com D. Carlota Joaquina Soares,

tiveram cinco filhos. Uma de suas filhas “D. Maria

Angélica, casou-se com o comendador Manoel Luiz de

Souza e Mello; a outra, D. Cypriana Maria casou-se com

Bernardino José de Souza e Mello, ambos sobrinhos de

seu sócio, Jacinto Manoel de Souza e Mello, este com

Soares compunham a firma Soares & Mello”. Casa

Comissária que atuou durante muitos anos no comércio

de Café e demais gêneros, estabelecida no porto da Vila,

não é de se estranhar portanto que Francisco José Soares

tenha participado, mesmo por curto período de tempo,

como sócio da “Companhia Iguassuana”.

Aos Souza e Mello deve-se a construção sede

da fazenda São Bernardino (hoje em ruínas), onde se via à

margem da Estrada de Ferro Rio d’Ouro, sua bela casa

assobradada em uma elevação do terreno e sinalizada por

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um caminho que, partindo da estação e ladeado por uma

alameda de palmeiras imperiais, ia terminar à entrada

principal desse palacete.

FIM DA “COMPANHIA IGUASSUANA”

No “Almanak” referente ao ano de 1859, encontramos a “Companhia de Omnibus” ocupando “um vasto terreno de sua propriedade na rua do Senado, entre as ruas do Lavradio e a rua dos Inválidos”, revelando que a partida dos “omnibus” havia mudado para o Largo de São Francisco de Paula, não fazendo referência à “Companhia Iguassuana”, provavelmente extinta após a inauguração da Estrada de Ferro D. Pedro II. Fazendo parte da diretoria como tesoureiro, continuava o Sr. Jerônymo José de Mesquita, e não constava mais o nome do Sr. Francisco José Soares.

ESTRADA DA POLÍCIA

Durante quase cem anos, a Baixada Fluminense viu passar por seus caminhos toda a riqueza mineral que se extraía das Minas Gerais. Esgotados os veios auríferos no final do século XVIII, essas veredas foram preteridas por outras que encurtavam distâncias, facilitavam o transbordo ou levavam as mercadorias diretamente para a Corte, no momento em que se iniciava o ciclo de uma nova opulência: o café.

Antes que as vias férreas deslocassem o eixo comercial desse trânsito; antes que a Estrada do Comércio, ainda na primeira metade do século XIX, tivesse sido

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calçada em grande extensão sobre a Serra do Tinguá, pelo engenheiro militar coronel Conrado Jacob Niemeyer, um novo caminho iria surgir: a Estrada da Polícia.

Caminho de referência aos viajantes que partiam da Corte por terra em direção a Minas Gerais ou ao interior da Província nas primeiras décadas do século XIX, testemunhou a descida “dos cargueiros gemendo ao peso dos algodões, dos açúcares, dos rolos de fumo, dos cafés, dos toucinhos, dos queijos e outros produtos da Capitania, bem como as boiadas do sertão, as récuas de mulas e varas de porcos. Por ele subiam as tropas carregadas de ferramentas e baetas para os escravos empregados na mineração e na lavoura, as bruacas de sal, para o gado, as fazendas e alfaias de luxo, as finas iguarias, os vinhos capitosos. Era um movimento contínuo de grandes comitivas, com a sua escravatura, as suas liteiras, os seus cavalos e bestas ricamente ajaezadas”, registra Daniel de Carvalho em “Estudos e Depoimentos”.

Partindo da Pavuna, atravessava o engenho do Brejo, do marquês de Barbacena, hoje Belford Roxo, engenho de Maxambomba, hoje Nova Iguaçu, freguesia de N. S. de Belém e Menino Deus, atualmente Japeri, contornando a Serra Velha que era a parte mais íngreme da Serra do Tinguá, atravessava a Serra de Sant’Ana e o rio do mesmo nome, descendo a Serra do Botais passava pela região da futura Vila de Vassouras, atravessava o Rio Paraíba no local denominado Desengano, passando pela futura Vila de Valença, atingindo só então, a margem direita do Rio Preto. A abertura desse caminho, projetado e iniciado em 1817, deve-se ao Intendente Geral de Polícia da Corte, Paulo Fernandes Viana, “futuro sogro de Caxias”, que além de dirigir um organismo policial, também era encarregado de cuidar das obras públicas, originando-se daí o nome, “da Polícia”.

Luiz Gonçalves dos Santos, o “Padre Perereca”,

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registra em seu livro de 1817 “Memórias Para Servir a História do Reino do Brasil”: “Tendo El-Rei Nosso Senhor mandado que se abrisse uma nova estrada entre esta província do Rio de Janeiro e a de Minas Gerais, pelas freguesias da Sacra Família, e de nossa senhora da Glória no sertão de Valença, com o interessante projeto de facilitar as comunicações das ditas duas províncias pelo sertão, que medeia entre os rios Preto e Paraíba, a fim de animar o comércio interior, aumentar a lavoura e ampliar a povoação”. Entregues as obras ao major Felipe Ferreira Gularte pelo Intendente Geral, este comunicava o adiantamento das obras: “pouco adiante do alto da Serra da Viúva, e continua até o barranco do Rio Paraíba em distância de três léguas, e três quartos, tendo de largura nove a doze palmos nos sítios”.

Louvando o trabalho de sua majestade o Príncipe D. João, o “padre Perereca” assinala que dentro em breve, se poderia trafegar por essa estrada, “livre de subidas e descidas ásperas... a trote e mesmo a galope como se fosse uma planície... para que hajam de passar muito comodamente carros, seges e carruagens o que geralmente se tinha por impossível”.

Estrada de custosa conservação por atravessar uma planicie freqüentemente alagada, em conseqüência dos trasbordamentos dos rios em tempos chuvosos que esta transpunha: os afluentes do Guandú, o Camboatá, o d’Ouro, o Santo Antonio, o São Pedro e o Sant’Ana, entroncando-se em Mangangá nas proximidades do Riachão, com outra estrada ligada a Vila de Iguassú, que era muito freqüentada pelos tropeiros e moradores da região: “Comunicando-se com a Corte ao rio Preto, era das mais movimentadas, preferida por passageiros”, diz Clodomiro de Vasconcellos na edição do “O jornal” comemorativa ao segundo centenário do café em 1927.

Ali também vamos encontrar referência às estradas dos Fazendeiros e do Rodeio encontrando-se com

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a de Mato Grosso “na zona de Marapicú e por esta seguia até entroncar, logo adiante no lugar denominado Calhamaço, com a da Polícia, indo pelo ramal desta a Iguassú” encaminhando-se também para esse porto “a produção de outras regiões de serra acima, como do Piraí e de Valença”.

Obra empreitada por Custódio Ferreira Leite, o futuro barão de Aiuruoca, durante dois anos, teve suas 21 léguas (140 km.) do trecho básico construído em território Fluminense.

Para conservação dessa estrada, eram freqüentemente publicadas licitações para sua recuperação. Divididas em quatro seções, conforme lemos no Relatório da Província do Rio de Janeiro de 1858, o primeiro trecho ia do “rio Pavuna a S. Antônio do Mato, o 2º e 3º do rio S. Antônio ao Paraíba, e o 4º do Rio Paraíba ao Rio Preto”, em São José do Rio Preto, 1º distrito de Paraíba do Sul.

Em 1876, quando da abertura da Estrada de Ferro Rio d’Ouro, a chamada “ferrovias das águas”, para sua captação nas serras que contornam a Baixada Fluminense, em função do abastecimento da corte, seus trilhos foram assentados sobre esta estrada a partir da Pavuna, até seu entroncamento no Brejo, hoje Belford Roxo. Após o desaparecimento desse trecho, o caminho continuou a ser trafegado, conforme vemos no Relatório da Secretaria de Obras Públicas do Rio de Janeiro, publicado em 1902, “a partir do Brejo, passando por Cava, Rio d’Ouro, São Pedro, Sant’Ana das Palmeiras e terminando na Estrada de Belém ao Pati do Alferes”, desaparecendo assim aos poucos, uma das vias mais movimentadas no “ciclo do café” que abasteciam a Corte diretamente, ou através dos portos de “Iguassú”, Brejo ou Pavuna.

Saindo da cidade em direção à Baixada o

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caminho inicial era seguido pela estrada Real de Santa Cruz, como vemos em Moacir Silva em seu livro “Kilômetro Zero”, descrevendo a construção da “Estrada do Automóvel Club” em 1926: “O trecho até Pavuna pode ser facilmente melhorado, pois é em parte a antiga Est. Real de Santa Cruz, que, bifurcando-se continua à direita em direção ao rio Pavuna, afluente do Meriti”.

Na “Carta Topográfica da Capitania do Rio de Janeiro feita por Manoel Vieira Leão por ordem do Conde da Cunha no ano de 1797”, vemos que a saída do Rio de Janeiro era comum aos dois itinerário: tanto para a Baixada da Guanabara como para a Baixada de Sepetiba. Segundo Noronha Santos, “o caminho tinha início próximo da travessa da Vala, hoje rua Uruguaiana. Passava pela Capela de Catumbi, costeando o “salgado” até a atual praia de São Cristóvão, que figura na Carta com o nome de Lázaros”. Em seguida atingia a matriz de São Tiago de Inhaúma, nas vizinhanças de uma olaria, ponto em que a estrada se bifurcava.

“O galho esquerdo tomava a direção nascente poente, tocava em Campinhos e, em seguida transpunha o “Ingenho dos Afonsos”, Freguesia de N. Sra. do Desterro do Campo Grande, “Ingenho do Lamarão” e “Ingenho Inhuaiba”, atingindo Santa Cruz (fazenda d’El-Rei). Desta propriedade que pertenceu aos jesuítas até a expulsão da Companhia, partiam duas veredas: uma margeava o Rio Guandu, passava pela matriz de “N. Sra. da Conceição do Marapecu” e ia se ligar ao “Caminho da Terra Firme”, na freguesia de Sto. Antônio de Jacutinga, assinalada na Carta com a letra L.

O galho direito se dirigia para Minas, conhecido como “Caminho de Terra Firme”, passando por Irajá e Pavuna sem transpor a Baia de Guanabara, “cuja viagem marítima era temerosa para os mineiros”.

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TEATRO LÍRICO

Em 1854, toda uma companhia de teatro lírico italiano passou por essa estrada a caminho da Vila de Vassouras, já então com um grande teatro, graças a riqueza que ia sendo saboreada no ciclo do café.

Liderados pela “aclamadíssima Signora Augusta Candiani” e o “apreciadíssimo tenor Licori que por tantas vezes arrebatara a platéia do Rio”, veio também o Prof. Orlandini “tão provecto na música como no manejo de línguas”, como nos conta Inácio Raposo no livro “A História de Vassouras”.

Assim, no dia 8 de setembro de 1854, partia do

Rio de Janeiro pela madrugada “acompanhados de

vultoso séquito”, a grande estrela do teatro lírico italiano

em busca da Vila de Iguassú, ponto de referência para a

subida da serra pela Estrada do Comércio.

Imagine a surpresa dos fazendeiros, escravos e

pequenos comerciantes que se espalhavam às margens

das estradas, vendo adentrar por essas terras uma tropa

de mais de duzentos animais de tração, entre carroças e

carroções transportando “uns trinta professores de

orquestra a conduzir consigo imenso instrumental com

baixos, bombardões, violinos, címbalos e rabecões, além

de fardos, embrulhos, cenários e caixotes a atravessar

estradas escabrosas, repousando em pobres estalagens,

dormindo ao tempo e finalmente entrando pela Vila a

dentro, onde seriam poucos os hotéis para acomodar tanta

gente”.

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REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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a Iguaçu” – Apostila, 1993 - RJ CARVALHO, Daniel de – “Estudos e Depoimentos”

– José Olympio Ed. RJ - 1953 FORTE, José Mattoso Maia – “Memória da

Fundação de Iguassú” Jornal do Comércio – 1933 – RJ GERSON, Brasil – “Histórias das ruas do Rio” - 5ª.

Edição Lacerda Editores – 2000 - RJ GONÇALVES DO SANTOS, Luiz –“Memórias para

servir a História do Reino do Brasil” – USP – Editora Itatiaia 1981 – Belo Horizonte - MG

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PERES, Guilherme –45 “Os caminhos do ouro” Consórcio Adm. Edições – 1993 – RJ

PEREIRA, Waldick – “A mudança da Vila” Arsgráfica – 1970 – RJ

RAPOSO, Inácio – “História de Vassouras” – Inst.

STO. ANTONIO DE JACUTINGA

O motivo de havermos escolhido esta freguesia para comentar alguns capítulos de sua história é termos em mãos alguns documentos inéditos sobre a vida social de sua comunidade através das igrejas, engenhos, fazendas, escravos, testamentos, capelas filiais, óbitos, etc., e esta representar em termos gerais, todo o imenso conjunto de freguesias e propriedades produtivas que salpicavam a Baixada Fluminense no final do século XVIII.

Ao exumar os livros de assentamento desta matriz, através dos inventários coloniais, vamos encontrar escravos fazendo parte dos bens que eram deixados para os herdeiros, como gado a ser trocado de curral, e ouvir das entrelinhas rendadas pelas traças, o grito desses esquecidos.

Textos preciosos nos fazem adentrar na casa do senhor de engenho. Ao ranger do tabuado largo do assoalho, nos levam aos cômodos sem luz, e à ausência quase total do mobiliário. No quarto, a cama com colchão de lã, ornada com sobrecéu rendado, guarnecidas de franjas empoeiradas. Ao lado, uma arca de cedro ou jacarandá chapeada de ferro, que ao abrir-se liberta um leve cheiro de mofo, saindo de velhas camisolas bordadas, baetas coloridas e lençóis de cetim. Na cozinha, pratos e talheres de estanho ornamentam o fogão a lenha permanentemente aceso, complementado com panelas de ferro. Alguns talheres de prata fazem parte desses “trens”, metal nobre que também encontramos na estrebaria compondo fivelas, adornos de cela, pedais, etc.

Da janela, vê-se a escravaria que se agita em torno

do velho moinho gemendo sonolento, tangido pela água que brota da montanha, aninhando canaviais. Próximo à casa, um conjunto de portas com paredes de taipa, cobertas de palha, denunciam a senzala.

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Diz Milliet de Saint-Adolphe, ainda na primeira metade do século XIX: “É ao pé desta Igreja Matriz que se acha assentada a povoação, cujas casas são telhadas, e onde se vêem alguns mercadores de retalho”.

O Professor Ney Alberto de Barros, presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Nova Iguaçu, afirma com muita propriedade que a freguesia de Santo Antonio de Jacutinga foi a única do município de Iguassú a incorporar o nome de aldeia indígena, a de Jacutinga (da família dos

Tupinambás). O 1o templo, dedicado a Santo Antonio, foi levantado no lugar chamado JAMBUÍ. Depois, o padroeiro foi transferido para outra “igrejinha” desta vez levantada no

lugar denominado Calhamaço (2o templo). Em seguida foi

transferido para um 3o lugar, cuja construção, com algumas alterações, se conserva até hoje, desde o ano de 1733, com o popular título de Santo Antonio da Prata. Após a entrega ao tráfego da Estrada de Ferro de Dom Pedro II (1858), será mais uma vez transferido para o arraial de Maxambomba (atual Nova Iguaçu), onde a ferrovia plantou insignificante “parada”. Em 1795 esta paróquia foi visitada pelo historiador Monsenhor Pizarro. Limites ao norte: Freguesia de Nossa Senhora da Piedade de Iguassú (em cujo território ficava a Vila de Iguassú, sede do município que, também por causa da ferrovia, será em 1891, transferida para Maxambomba); sul: Freguesia de São João de Miriti; leste: também com Miriti e, a oeste: “separa-se da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Marapicu, ou Maripocu (...) no rumo das terras do Engenho de Madureira, onde principiam as do Engenho de Caboçu” (Pizarro). Em 1795 possuía “350 fogos e mais de 3.500 pessoas adultas” (Obs.: a palavra “fogo” significa residência, com fogão a lenha).

Cinco capelas filiais faziam parte de seu termo: 1o - capela de Nossa Senhora do Rosário do Iguassú (na Fazenda de São Bento, fundada pelos padres beneditinos), 2o - de Nossa Senhora da Conceição, em Sarapuí, supõem-se que

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fundada por Afonso de Gaia; 3o - de Nossa Senhora do

Livramento, erigida por João Ferreira; 4o - de Nossa Senhora da Conceição, no Sítio da Cachoeira por Manoel Correia Vasques, para substituir a que houve na fazenda de Machambomba (às margens do rio da Cachoeira, Serra da Cachoeira - que os angolanos chamavam de Quanza). (Obs.: o rio da Cachoeira é, atualmente, chamado de Canal Dona Eugênia e, nas terras da Fazenda da Cachoeira, junto à mesma dita ferrovia, havia a “parada” Mutambó, atual

Mesquita ; 5o filial de Nossa Senhora Madre de Deus, no atual bairro da Posse, construída por João de Veras Ferreira

com provisão de 1743; 6o - Nossa Senhora da Conceição, no lugar denominado Pantanal, edificada por João Ferreira Quintanilha, com provisão de 1753.

“Onze fábricas de açúcar, uma de aguardente e algumas de barro (...) se cultiva a cana, a mandioca, o café, o milho e legumes. Banham o terreno da Freguesia os rios Cachoeira de Santo Antonio do Mato, Douro e Riachão que, engrossados por outros, desde as serras da Cachoeira e de Tinguá, despejam volumosas águas nos rio Iguaçu, Guandu e Sarapuí, pelos quais navegam barcas, lanchas e canoas carregadas de efeitos do Continente, recebendo-os nos 5 portos dispersos pelo rio Iguaçu e nos 4 espalhados pelo rio Serapuí. Na vizinhança da Matriz tem formado o povo um pequeno arraial com casas cobertas de telha, onde se aloja os seus proprietários, e vivem por todo o ano alguns moradores, por motivo de mercâncias”. (Pizarro 1795)

Nas relações parciais entregues ao marquês do Lavradio, pelos Mestres de Campo dos Distritos milicianos em 1779, durante o governo Luiz de Vasconcellos, compreendendo as diversas freguesias do recôncavo do Rio de Janeiro, vamos encontrar dados estatísticos que servem para avaliar o grau de prosperidade da agricultura das redondezas da capital do Vice-Reinado do Brasil.

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Examinando o número de freguesias pertencentes ao distrito de Guaratiba, identificamos, arroladas pelo seu administrador mestre de campo Ignácio de Andrade Soutomayor Rendon a Freguesia de Sto. Antonio de Jacutinga, juntamente com outras freguesias.

Começa registrando os párocos existentes: Vigário encomendado Reverendo Luiz Ignº de Pinna, e dois sacerdotes anexos; o Reverendo Padre Antonio Maciel da Costa e o Reverendo Padre Manoel Pinto, Capelão da Posse. Seria esse o nosso Padre Manoel Pinto de Pinho, que fomos encontrar nos testamentos registrados nessa paróquia em 1786, e que publicamos nas relações testamentárias em outro capítulo desse livro? Acreditamos que sim!

Em seguida assinala a existência de 7 engenhos nessa

freguesia: o 1o chamado Madureira, de Manoel Luiz de Oliveira

com 70 escravos, fazia 40 caixas de açúcar e 30 pipas de

aguardente; o 2o chamado Posse, dos herdeiros do capitão

Francisco de Veras Nascentes, com 25 escravos, fazia 20 caixas de

açúcar e 5 pipas de aguardente; o 3o chamado Machambomba, do

sargento mor Marinho Corrêa de Sá, com 12 escravos, fazia 15

caixas de açúcar e 4 pipas de aguardente; o 4o chamado do Brejo, o

capitão Apolinário Maciel, e seu irmão o Reverendo Padre Antonio Maciel, com 35 escravos, fazia 25 caixas de açúcar e 8 pipas de

aguardente; o 5o chamado Cachoeira, do capitão Manoel Corrêa

Vasquez com 80 escravos, fazia 60 caixas de açúcar e 30 pipas de

aguardente; o 6o chamado de Sto. Antonio do mestre de campo

Ignácio Soutomayor Rendon com 30 escravos. Assinala o

administrador desse distrito, que esse engenho que pertenceu ao sargento mor Francisco Sanchez de Castilho, faleceu deixando

dívidas e por falência “não moeu mais”, sendo arrematado pelo

“dito mestre de campo em 1778, e que se acha fabricando

inteiramente para moer nesse ano de 1779”; o 7o chamado da

Conceição dos herdeiros de Ignácio Gomes, com 14 escravos, fazia 3 caixas de açúcar e meia pipa de aguardente “por que cuidão mais

em mandioca”.

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TESTAMENTOS

A morte nos tempos coloniais era esperada com serenidade, bastando estar em dia com as irmandades da Igreja local. Organizações religiosas alheia à sua hierarquia, mas que atendia a seus membros na hora da agonia. As irmandades se dividiam em classes sociais formadas por ricos, pobres e até escravos. Para participar dessa confraria, o membro tinha obrigações a seguir: comparecer às missas, ladainhas, procissões, enterros e novenas, contribuindo com esmolas para a reforma da igreja, altar e paramentos, além de pagamento anual.

Na Freguesia de Santo Antônio de Jacutinga, Monsenhor Pizarro assinala a existência de quatro irmandades: a 1a. do santíssimo, criada em 1751; a 2a. das Almas, em 1719; a 3a. da Senhora do Socorro dos Homens Pardos em 1686; a 4a. da Nossa Senhora dos Rosários dos Homens Pretos, em 1724, todas recebendo críticas pelo desleixo com os respectivos altares, e a falta de pagamento das anuidades, registrado durante sua visita pastoral em 1794.

Começa repreendendo a primeira que, “vendo-se isenta da inspeção dos Párocos...tem caído na mais deplorável relaxação, que apenas assiste com azeite para a lâmpada, e cêra para a banqueta do altar”.

Sobre a segunda, lamenta que “depois que passou para a administração Secular, foi descaindo até aniquilar-se, com notável detrimento dos Fiéis Defuntos, e lamentável escândalo dos vivos. Ficou enfim reduzida ao miserável estado de não parecer, que houvera nesta Freguesia tal Irmandade”.

Na terceira, “seguiu a mesma sorte da das Almas: e de forma decaiu que hoje não existe: porque a 4 anos que não congrega à Mesa, não se fazem Eleições, não tem Administradores, e só se dizem algumas poucas Missas pelos vivos, defuntos, por zelo do antigo Escrivão, que procura cobrar algum anual para o dito fim”.

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Na Quarta, referente à Senhora dos Rosários dos Homens Pretos, “decaiu e esfriou de modo que apenas conserva hoje os vestígios do que fôra; e tanto assim que, para fazer pintar de novo a Imagem de sua Padroeira , no ano de 94, foi necessário tirarem-se esmolas fora da Irmandade porque esta, se não achava com a módica quantia do 32$Rs., em que importou a pintura”.

A presença do padre na hora da morte, fazia parte do compromisso da Igreja. Se o doente estivesse moribundo, recebia a confissão, perdoado com a unção dos santos óleos. Se “doente de cama” era solicitado a redigir o texto de seu testamento. “Encomendava-se a alma a alguns santos, eleitos protetores, escolhia-se o tipo e a cor da mortalha, o lugar do sepultamento, os padres e as pessoas que acompanhariam o cortejo fúnebre, determinava-se as missas para a própria alma e para a de outras pessoas”.

O reconhecimento de dívidas era comum para evitar a maldição do lesado, e ajudar na salvação de sua alma. Os devedores também eram citados nominalmente e arrolados no espólio do defunto.

“Os rituais da morte, nos séculos XVII e XVIII, no Brasil, assim como na sociedade ocidental moderna e cristã tem no estilo “barroco” sua principal característica. Tornava-se necessário, estando em perigo de morte, colocar em ordem os bens terrenos e preparar o melhor possível o caminho da alma. Os testamentos, um dos mecanismos essenciais de se “estar em paz com a consciência”, segue padrões homogêneos de redação por todo o século XVIII e XIV, o que possibilita questionar se a fórmula notarial se estaria sobrepondo ao ato individual.”

De uma maneira geral, todos se iniciavam com o mesmo texto:

“Em nome da Santíssima Trindade, Padre, Filho e Espírito Santo, três pessoas distintas em um só Deus Verdadeiro. Saibam quantos este público instrumento virem, que no ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de (...) aos (...) dias do mês de (...) eu (...)”. etc. etc.

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Na freguesia de Jacutinga, encontramos o testamento de Manoel de Souza Costa, datado do ano de 1785 que “Estando em meu perfeito juízo e entendimento que Nosso Senhor me deu, doente na cama temendo-me da morte e desejando por minha alma, no caminho da salvação!”

Manoel devia ser dono de uma roça, (“uns chãos”) com engenhoca, que no leito de morte, querendo a “salvação da alma” recorre a boas ações dando liberdade “ao meu pardo Baltazar pelos bons serviços que me tem feito”.

Declarava também a “Liberdade por cinco doblas ao pardo Gaspar”, que recebera de herança de sua mãe, e recomendava ao testamenteiro, acompanhar o recebimento da venda que fizera de seis escravos que também recebera como herança a saber: “Roque e sua mulher, Faustina, Luiz, Francisco, Xico, Joaquim e mais duas crias, Martinha e Cipriana, filhas da dita Faustina”.

Declarava também que havia vendido “o moleque Joaquim ao padre Alcântara, por cinco doblas” e que não havia recebido. A julgar pelo testamento, o padre Alcântara havia morrido sem pagar a dívida da compra do escravo, e “o resto da fatura que tinha no casco do engenho”. (“Casco”-Diz-se da fazenda que perdendo toda a benfeitoria fica apenas com suas terras - Peq. Dic. Bras. Ling. Port.).

Manoel lembra também que havia muito tempo, dois escravos seus, Antonio e Francisco, serviam a seu sobrinho, Luiz de Souza. Declara a “venda de todas as ferragens do engenho” e reclama o recebimento de “doze mil réis” pela construção de um engenho de mandioca e casa de farinha a Francisco José Sanches.

Rita Maria de Souza em seu testamento datado de 10 de maio de 1787, na “Paragem do Veloso” distrito da freguesia de Sto. Antonio de Jacutinga, “doente de cama”, declarava ser “solteira natural” e “batizada nesta mesma freguesia”, não possuindo “nenhum herdeiro, nem dependente e ascendente”, instituía sua “alma por herdeira”.

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Declarava, também, que possuía um “escravo por nome Cristóvão, o qual meu testamenteiro venderá a quem mais lhe der... em sua casa ou em leilão na porta da igreja aqui, ou em Aguassú”.

Vemos, assim, que leilões de escravos eram comumente realizados nos pátios das igrejas da Baixada Fluminense, provavelmente nos fins de semana, em que era maior o movimento de tropeiros e realização de missas.

Rita Maria recomenda deixar “por esmola” o dinheiro da venda do escravo para “duas sobrinhas: Jacinta, filha de Manoel de Pontes, e Anna filha de Juliana... o qual dividirão entre si!. Porém a parte que tocar a Jacinta não se entregará a seus pais ficando com o testamenteiro até ela se casar, ou não casando ela passar de 24 anos.”

Finaliza dizendo que se este documento “não valer como testamento, valha como codicilo” e “por não saber ler nem escrever, roguei ao Padre Manoel Pinto do Pinho, desta mesma freguesia, que este me fizesse e por mim assinasse.”

O sargento-mor Manoel José de Abreu, estando “doente de cama” mas em perfeito juízo, ditou seu testamento no dia 4 de abril de 1786, na freguesia de Sto. Antonio de Jacutinga.

Português e natural da Vila do Viana, Manoel declara não ter filhos “legítimos nem naturais” portanto, “não tenho herdeiro algum”.

Governou a fazenda do mestre de campo Inácio de Andrade “vendendo os efeitos dela”.

Deixou a seu “afilhado de crisma” Bonifácio, uma carta de liberdade, e uma dobla para ajuda na pintura de uma urna da igreja de Sto. Antonio, e que “se mande dizer dez missas pelas almas de meus escravos falecidos”.

Na freguesia de Sto. Antonio de Jacutinga, em 1786, Dona Inácia Maria Tavares, “natural deste bispado” e batizada na “freguesia de Na. Sra. da Ajuda de Guapy” nomeava seus dois filhos e seu sobrinho “testamenteiros,

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procuradores e administradores” de seus bens, para poderem “vender, cobrar e arrecadar”.

Declarava a viúva ter sido casada com o sargento-mor Francisco Sanches de Castilho, de cujo matrimônio tiveram quatro filhos, registrando os seguintes bens: “umas terras em Guapy” e “um quarto das casas de trás do Carmo”.

Anotava também que “dei liberdade a um preto chamado Manoel Gago, por preço e quantia de três doblas, que recebi do dito preto em moeda corrente, este mesmo escravo era de minha filha Ignácia Francisca, que lhe deixou seu tio, o reverendo Antonio Vaz Tavares”.

Finaliza pedindo a Francisco Manoel Monteiro, que “por mim escrevesse e também assinasse por me achar com o braço direito quebrado”.

Agostinho Alves de Carvalho, “estando molesto em uma cama”, em junho de 1787 na “paragem do Baby desta freguesia de santo Antônio de Jacutinga casado nesta mesma freguesia com Thereza de Jesus, de cujo matrimônio tenho seis filhos...” todos maiores de vinte e cinco anos.

Declarava entre os seus bens “uma sorte de terras citas no Baby” que recebera por herança de seu sogro, “pedidas por sesmarias.”

“Dentro da dita data, tenho minha moradia com casas de telhas, e mais bem feitorias... e assim mais os escravos seguintes: José Maria e sua mulher. Joaquim mulatinho, Margarida Crioulinha, Florência Crioulinha, filhas da dita Maria, Romana, Antonia, Manoel, e os demais trastes da casa”.

Declarava que “fiz doação de um mulatinho de menor de idade por nome André a meu filho Francisco José de Carvalho, por preço de cinqüenta e hum mil e duzentos em que foi avaliado”.

Agostinho também revelava a existência de uma filha que tivera com uma escrava: “que Quitéria Parda, que está em minha companhia é minha filha, que a tive depois de casado, e dita Quitéria, a deixo forra e liberta como se livre nascesse, tanto pela razão de ser minha filha, com bons

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serviços que sempre tive dela, e meu testamenteiro lhe passe sua carta de liberdade sem condição alguma.”

Lembrava também no testamento que sua filha Anna Maria possuía três escravos que ele havia comprado com “uma esmola que lhe deu seu tio José da Foncequa Dorea: Sebastiana Crioula, Feliz Cabra” e “uma negrinha por nome Thereza”.

Declarava uma dívida de “dezesseis mil réis” a seu genro Manoel Ignácio, e “quarenta e três alqueires de farinha, que soma vinte mil, seiscentos e quarenta réis”.

A preocupação com os pagamentos de dívidas era ponto de honra; “e se lhe ficar restando alguma coisa, se lhe pague”.

Por ocasião do casamento, era comum as filhas receberem escravos como dote; Agostinho confirmava a doação: “declaro que dei a cada uma de minhas filhas casadas, duas escravas como dote.”

Dona Maria Rosa de Menezes, no seu testamento datado de dezembro de 1790, em seu “sitio chamado Pedreira” na freguesia de Sto. Antonio de Jacutinga, declarava que era casada com Euzébio Manoel Ferreira e desse matrimônio tivera quatro filhos, e que haviam forrados “liberalmente” as escravas Fabiana e Thereza “com a condição de nos acompanharem enquanto fossem vivos.”

Anotava também que “sobejando de minha terça alguma coisa” se repartiria entre seus filhos e “a mulatinha Joaquina pelos bons serviços que me tem feito”. Que “o ouro que tenho e a minha roupa deixo a meus netos”.

O ouro de Dona Maria era o seguinte: “uns brincos de diamantes, duas meadas de aljôfares, dois pares de botões de ouro dos punhos grandes.”

Deixava liberta a “mulatinha Joaquina” por “gratidão de piedade” pedindo ao testamenteiro “passar sua carta de liberdade sem condição alguma.”

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Testamento feito na fazenda da Posse, “com casas e sítios”, freguesia de Sto. Antonio de Jacutinga em novembro de 1786, pelo vigário Pe. Manoel Pinto do Pinho, “estando com saúde completa e em meu perfeito juízo”, deixa transparecer que era fazendeiro nessa freguesia, e possuía além de numerosa escravaria, um valioso patrimônio considerável para a época: “dezesseis bois de carro, dois carros ferrados, seis vacas, um engenho, um garrote, três vitelas” e declarando “que tudo se venderá pelo melhor modo que for possível”, após a sua morte, naturalmente.

Declara também, que ficará “com o testamenteiro um rol por mim feito, e assinado com os nomes e clareza do dito gado, alguns bens e trastes da casa”.

Quanto aos escravos, o padre Manoel deixava para 13 cativos “deste engenho...” “Quatro varas de algodão de Sam Paulo a cada um que importa em cinqüenta e duas varas” e nomeava os escolhidos, alguns com o nome das nações de origem: “Simão Angola, Joana Benguela sua mulher, Antonio Rebolo, Vicente Joaquim, Thomas Crioulo, José Crioulo, Gervázio, Basílio Crioulo, Agostinho, Joaquim Crioulo, Anna Crioula, Izabel Angola, Maria Filha, Miguel Filho, Joaquim Banguella.”

As cartas de liberdade eram concedidas com parcimônia. Neste texto o padre Manoel faz referência a dois escravos, Simão e Antonio Rebolo: “desejando fazer-lhes algum bem pelo amor de Deus...” “lhes concedo depois do meu falecimento o prazo de três anos para neste tempo ganharem cada um a quantia de três doblas”, recomendando ao testamenteiro que ao receber este valor” lhe passará logo as cartas de liberdade”.

Recomendava ainda, a não vender “meus escravos por empenho nem contra a sua vontade, senão as pessoas que eles escolherem...” “porque por caridade, desejo que eles acertem um bom cativeiro”.Em seguida, determina ao testamenteiro que “poderá logo sem mais figura, vender a quem der mais e melhor cobrir as suas avaliações, o que

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poderão fazer em praça, na porta da igreja, ou em sua casa, amigavelmente, fazendo sempre pelos respeitar sem que sejam obrigados a levá-los as (...) praças da cidade”.

A “uma escrava velha por nome Graça”, o vigário deixava-a “forra e liberta”.

Também a “mulatinha Joaquina”, por “gratidão e piedade”, dava liberdade pedindo ao testamenteiro passar “sua carta, sem condição alguma.”

Preocupado com algumas dívidas, lembrava procurar José Fernandes “ao pé da Candelária” onde “costumo comprar vinho, azeite, e vinagre por bilhetes.” Também a “João Barboza de Azevedo, na rua Direita, perto dos contos”, onde “costumo quando vou a cidade pousar.”

Participante das festas na freguesia da Posse, padre Manoel não se negava a contribuir com “meia arroba de carne fresca”, ou algum “quarto de carne de porco” que comprava com crédito “a vários sujeitos” e “se alguém disser que lhe devo alguma coisa, informando se meu testamenteiro dos meus escravos, achando ser certo, e o sujeito de boa nota, se lhe pague tudo sem mais justificação”.

Livrando-se da doença que o acamara, viveu mais seis anos depois de ter elaborado este testamento. O padre Manoel Pinto do Pinho, vigário da dita Freguesia, estando “doente de cama” nos primeiros dias de setembro de 1792, ditava um novo testamento conhecido como codicilo, alterando alguns parágrafos e acrescentando outros ao texto anterior.

CODICILO

O dote de cinco doblas que ele deixaria à Narciza “para casar”, é suprimido e “como já está casada, e também satisfeita da dita esmola prometida, ordeno a meu testamenteiro lhe dê somente a meia dobla para uma capa e mais nada.”

Declarava algumas dívidas que fizera a João

Marques Barboza, com a compra de “três bois que lhe 57

comprei, que logo sem trabalharem, morreram dois”, e

reclamava algum desconto por esse motivo: “se quiser

abater alguma coisa, muito bem.” Também registrava uma dívida com a viúva

Joaquina Roza de Torres, moradora no “morro azul da

Sacra Família”, pela compra de “dois bois que comprei

sem preço, que um valia meia dobla, e o outro, quatro mil

réis, que este logo me morreu, e sem fazer serviço algum”. Quanto aos escravos, dois já haviam sido vendidos ou

falecidos, “já estão de menos dois”, e se alegrava com o nascimento

de uma “cria”: “mas de presente tenho uma crioulinha de ano e

meio chamada Anacleta, filha de minha escrava Joana”, e que seria

entregue a seu sobrinho Manoel dos Santos, “pois lha deixo por

esmola por ser esta minha última vontade”.

O escravo Antonio, cotado em três doblas no

testamento anterior, era agora desvalorizado, por estar velho

e cansado, “e só dará uma dobla por ser preto idoso, e me

compadecer dele”, o mesmo fazendo com o escravo Thomaz

“em uma dobla, e que lhe faço por esmola”. Era a oportunidade oferecida ao escravo para a

compra de sua alforria, com trabalhos feitos fora de sua

obrigação, cujo pagamento teria que ser efetuado ao

testamenteiro, “e dado que seja a dita dobla cada um, o mesmo

meu testamenteiro lhes passará as suas cartas de alforria”. Com o agravamento da doença, padre Manoel falecia

aos oitenta anos, no dia 10 de setembro do mesmo ano “com

todos os sacramentos... e foi encomendado e amortalhado, a

maneira de sacerdote, e sepultado em cova dos vigários.” No “Livro de Visitas Pastorais”, fontes primárias

de Monsenhor Pizarro feitas em 1794, vamos encontrar o

nome desse sacerdote no trabalho de recuperação da

igreja Matriz de Sto. Antônio de Jacutinga. Descrevendo a

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decadência em sua arquitetura, assinala a rachadura no

frontispício de pedra “ameaçando ruína próxima”.

Registra que a “Capela Mór é nova, e acabada de pedra no

ano de 1785”, assim como a “Sacristia que é do mesmo

tempo”. A ”Torre muito mais moderna por ser obra do

tempo do R. Vigário também encomendado Manoel Pinto

do Pinho, que a fez de pedra e cal com muita fortaleza, e

duração, e a concluiu no ano de 1791, igualmente com a

casa da Fábrica, e muro que tem hoje o cemitério”. Em relação aos altares, também vamos encontrar seu

nome ligado ao N. 1, “O maior”, em que estava a imagem do

Santo Padroeiro e o Sacrário. “O seu ornato que corre por conta

da Irmandade, e a fábrica é decente e por zelo ativo do atual

Vigário, acha-se hoje pintado, e doirado o seu retábulo com

gosto, tendo sido feita a sua talha em madeira, pelo R. Vigário

antecessor, Manoel Pinto do Pinho”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

PIZARRO e Araújo, José de Souza Azevedo – “Memórias

Históricas do Rio de Janeiro” – I. N. L. Imprensa Nacional,

1945 – Rio MAIA FORTE, José Mattoso —“Memória da Fundação de

Iguassú” Tip. Jornal do Comércio – 1933 – RJ. GONÇALVES

DE BARROS, Ney Alberto - “Assentamentos de Óbitos,

seguidos de Testamentos no livro da Matriz da Freguesia de

Santo Antônio de Jacutinga – Apostila 1972 - RJ LAVRADIO,

Marquês do – “Relatório apresentado a D. Luiz de

Vasconcelos” – Revista do IHGB - Tomo 76 Imp. Nacional -

RJ FARIA, SHEILA DE CASTRO — “A Colônia em

Movimento” Editora Nova Fronteira – 1998, RJ

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UMA VIAGEM AO PASSADO

HISTÓRICO, ECONÔMICO, SOCIAL E POÉTICO DA

VILA DE SANTO ANTONIO DE SÁ

As primeiras sesmarias concedidas em terras do recôncavo da Baia de Guanabara, referentes à bacia do Rio Macacu, o foram por Mem de Sá, atendendo, a pedido de

Cristóvão de Barros, à Miguel de Moura em 1567, obtendo este “9.000 braças de largo em meio do Rio Macacu e doze mil para

o sertão”. Em 1571, o mesmo Moura “doou-a aos padres jesuítas”, diz Monsenhor Pizarro, “em carta lavrada a seis de dezembro do mesmo ano” e confirmada por El Rei D. Sebastião.

Parte dessas terras foram vendidas mais tarde, pelo Colégio, a Manoel Fernandes Ozouro e sua mulher Izabel Martins, onde

fundaram a capela mais antiga da região, por volta de 1592 “com permissão do Prelado Aborim, em suas terras do

Cassarebu” sob o orago de Santo Antônio. Entregue aos cuidados da Cúria do Rio de Janeiro,

juntamente com 100 braças em quadra por detrás da Igreja, mais os ornamentos e as imagens com a condição “de nela fazer Freguesia Curada”. Segundo Frei Basílio Rower a capela recebeu seu cura em 1624, sendo elevada a Freguesia em 1644, confirmada pela carta régia vinda de Portugal, três anos depois.

Outras concessões se seguiram destinadas aos que ajudaram a combater os franceses e a dizimar as tribos Tupinambás, entre elas também foram “concedidas” terras aos índios que restaram do massacre, e estavam reunidos na aldeia de São Lourenço em 1579 “de 12.000 braças além do Macacu, e para o sertão além da Serra dos Órgãos”.

Nesse primeiro século de ocupação trataram os sesmeiros de plantarem cana de açúcar e mandioca, para abastecerem os engenhos que começavam a fumegar. São esses engenhos que fixaram o homem na Baixada. A zona

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rural periférica à Cidade do Rio de Janeiro já iniciava a função de produzir alimentos para seu consumo, e açúcar para a exportação.

Essa dependência entre os engenhos da Baixada e a cidade eram favorecidas pela imensa bacia hidrográfica do recôncavo e a própria baía, concentrando nela toda a atividade urbana e impedindo que até o final do século XVII outro aglomerado rural se desenvolvesse. Os numerosos portos fluviais que salpicavam os rios do recôncavo, permaneceram nessa fase canavieira apenas núcleos de embarque e desembarque, sem que o seu crescimento formasse um povoado.

Após a criação do curato, estes aumentaram a “doação de mais 100 braças em quadro atrás do pequeno templo” e ofereceram as alfaias para o mesmo, segundo a “escritura lavrada em 11 de agosto de 1624, quando ainda era prelado do Rio de Janeiro Monsenhor Mateus da Cunha Aborim”. Foi elevada à categoria de paróquia, “confirmada por alvará régio de 10 de fevereiro de 1647”, por Monsenhor Antônio Marins loureiro.

Este Monsenhor era filho de Antônio de Marins Loureiro e Izabel Velho, cujo irmão Diogo de Marins Loureiro sucedeu ao pai na provedoria da cidade do Rio de Janeiro, e no mesmo ano também criou as freguesias de Irajá e São João de Trairaponga (Meriti).

Segundo Monsenhor Pizarro, “sendo pouco própria a capela erecta pelos fundadores, o povo deliberou levantar uma nova com paredes de pedra e cal, concorrendo a Fazenda Real com a metade das despesas, como determinou uma Ordem de 5 de dezembro de 1697”. Em 1704, um grande templo estava pronto para receber a torre sineira. “Medindo cerca de 19 ms. de comprimento desde a porta principal até o arco do Cruzeiro, por 8,5 ms. de largura. Do arco ao fundo media 15 ms. de comprimento por 5,5 ms. de largura mais ou menos. Possuía quatro altares, além do altar-mór”.

As normas administrativas municipais que vigoraram no Brasil a partir de sua descoberta, obedeceram aos códigos

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chamados Ordenações, sujeitos à vontade dos monarcas, dos ministros e das Ordens religiosas. Após as Ordenações Afonsinas que vigoraram até 1521, Portugal governou suas colônias sob a tutela das Ordenações Manuelinas até 1603, período em que Estácio de Sá fundou a Cidade do Rio de Janeiro em 1565. Mas foram as Ordenações Filipinas de 1603 a 1828, as de mais longa duração, que regularam o ordenamento municipal com a criação de vilas e cidades.

Artur de Sá e Menezes, governador da Capitania do Rio de

Janeiro com a patente de capitão general, elevou este povoado à

categoria de Vila em 5 de agosto de 1697, com sede no lugar da

igreja matriz da Freguesia de Santo Antônio de Cacerebú. Na casa em que estavam hospedados nesse dia “na

freguesia de Casarabú, junto ao Rio Macacu” o governador Artur de Sá “sentado à cabeceira da mesa” com autoridades locais, segundo a ata da solenidade registrada por José Mattoso Maia Forte, “tendo a sua direita o Ouvidor Geral Manoel de Souza Lobo. “A sala estava cheia de homens nobres e cidadãos da Cidade do Rio de Janeiro, da qual até então era termo o referido lugar e Freguesia”, quando o governador declarou “por ordens de Sua Majestade” que fora ali para a erigir em Vila com seu Distrito e Termo.

Em seguida foi proposta a retirada do nome da nova Vila, argumentando-se que o nome de Macacu, até então corrente, “era menos curial”, concordando todos com a denominação de “Santo Antônio” que era o orago da freguesia. Foi também prestado uma homenagem ao representante de Sua Majestade a qual ficou registrada em Ata: “que em obséquio e gratulação do trabalho que o Governador tivera em ir formar a Vila, por ser a primeira que ilustrava com a sua presença, pela excelência dessa primazia, queriam condecorar mais o dito nome com o apelido de “Sá’, por ser o primeiro com que se ornava o próprio dele Governador”.

À nova Vila de Santo Antônio de Sá anexou ao seu termo, desde a entrada da barra do Rio Macacú, e segundo Pizarro “em volta das freguesias de Itambi, e Tapocorá, todo

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o sertão sem limite da mesma freguesia de Santo Antônio e de Cernambitiba até o Rio Magepe ou Magepe-Guapi, como consta dos documentos lançados no livro 1.º da Câmara da mesma Vila”. Ficou também estabelecido que todo o termo de Magé, se transferisse para o termo da Vila de Santo Antônio de Sá. Esses limites permaneceram até que se erigiu em Vila, a freguesia de N. Sra. da Piedade de Magé em 1789.

Nomeado o Ouvidor Geral, este fez “levantar e formar as insígnias e demonstração da República que eram pelourinho e praça, casa de cadeia e Conselho, forca e curral do Conselho”, nomeando Baltazar da Costa “para as funções da Vila que criara”.

Para se construir a cadeia e a Casa da Câmara, uma carta régia de 1710 autorizava conceder “um imposto de 20 reis em cada medida ou camada de aguardente da terra ou do Reino, e do vinho que se consumisse, como havia ofertado os moradores”.

Segundo o Prof. Ondemar Dias, o termo de criação dessa Vila se encontra no Arquivo Nacional, e pelo documento seus limites compreendiam “o rio Macacu, fazendo cabeça da República no povoado da dita Freguesia onde está situado o convento de São Boa Ventura”

No final do século XVIII, inúmeros engenhos e engenhocas absorviam o canavial que se estendia pelos vales e colinas da bacia do Rio Macacu e seus afluentes, que além da freguesia sede, inúmeras outras cresciam, com seu povoado aglomerado em torno da igreja e das capelas, fundadas nos primeiros dois séculos do descobrimento.

CONVENTO DE SÃO BOAVENTURA

Próximo da igreja Matriz existia um grande convento

dos padres capuchos, iniciada sua construção em 1649 e inaugurada em 1670 “com a dedicação de São Boaventura”, e denominado Convento de São Boaventura de Macacu.

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Recebendo 90.000 réis anuais “de El Rei D. João IV, com a obrigação de conservar duas aulas das primeiras e segundas letras, mas essa condição não se cumpre há muitos anos”. Junto à igreja do convento está a “capela dos Terceiros de São Francisco, que o prelado da Casa dirige em conformidade dos seus presumidos e fantásticos privilégios”, diz Pizarro.

Afastado a 5 Km. de Porto das Caixas, esse santuário foi celeiro de nomes que se destacaram nas ciências e na poesia. Nesse convento estudou durante alguns anos o ilustre Frei Francisco de São Carlos, preparando-se “para imortalizar-se como orador e como poeta”. Outro notável pregador foi frei Manoel do Desterro que ali faleceu em 1706. Frei Francisco Solano Benjamim, ilustrador emérito da obra “Flora Fluminensis”, de autoria de frei Mariano Veloso, cujos dados biográficos damos a seguir, por ali passou.

Frei José Mariano da Conceição Veloso, entrou para o convento aos 19 anos. Nascido em 1742 na comarca do Rio Grande das Mortes, Minas Gerais, dedicou-se ao estudo da teologia e da filosofia, porém sua inclinação era a “história natural”, da qual tornou-se especialista sem nunca haver freqüentado a Universidade de Coimbra.

Ligado a uma pequena comunidade científica que atuava no Horto Botânico do Rio de Janeiro, teve o incentivo dos vice-reis marquês do Lavradio e depois Luís de Vasconcelos, que o convidou para viajar e se estabelecer no reino, levando sua coleção de insetos, peixes e borboletas, e especialmente de plantas, coletadas para publicação no livro “Flora Fluminensis”, e mais tarde serem oferecidos ao museu da Ajuda, em Portugal.

Aperfeiçoando sua obra dedicada à botânica, graças ao relacionamento com a comunidade européia, encaminhou seu trabalho para ser editado pela Academia de Ciências, quando teve o mesmo recusado sob a alegação dos altos custos que envolviam a edição.

Mesmo atuando na direção da Tipografia do Arco do Cego em Lisboa, entre 1799 e 1801, não teve o seu livro

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publicado. Durante a invasão de Portugal por tropas francesas em 1808, voltou com a comitiva real para o Rio de Janeiro, onde faleceu no convento Santo Antônio em 1811. Homenageado pelo novo governo imperial brasileiro, frei Mariano teve sua obra “Flora Fluminensis” postumamente publicada entre 1825 e 1827, redimindo para a posteridade, esse personagem que se destacou como referência na história da pesquisa botânica no Brasil.

A criação do convento deve-se a Frei João Batista, primeiro “Custódio” da Província Fluminense, durante sua visita em 1649 aos conventos do Sul, “percorreu a área em companhia de outros frades naquela oportunidade, nomeando seu primeiro Superior, Frei Gerardo de São Boa Ventura, e dando início as obras do recolhimento”.

Com a imagem de seu padroeiro no altar-mor, ostentava em seus nichos laterais “as imagens de N. Sra. da Conceição e São Francisco, e entre as colunas, Santo Antônio e São Benedito”, conforme registro de Frei Basílio Rower “é possível que a pequena imagem desse último santo, hoje na capela de Porto das Caixas seja a mesma que pertencia ao convento”.

No final do século XVIII (1784), as paredes do prédio estavam ameaçadas de ruir, principalmente a igreja, quando foi demolida em parte tendo sido ampliadas e “eretas a nova igreja da Ordem e a igreja da Ordem Terceira, toda formada por pessoas de fora por não existirem em Macacu moradores que pudessem estar na Ordem”. A grandiosidade da torre sineira, integrada ao conjunto arquitetônico, foi aumentada durante sua restauração e até hoje impressiona, apesar das ruínas.

É ainda Frei Basílio Rower quem nos conta em sua “História da Província Franciscana” que a reforma desse convento foi planejado pela Mesa Provincial, confirmando o estado em que se achava, mandando “alguns oficiais que todos opinaram pela reconstrução a “fundamentis”. À vista disso, reuniu-se a Mesa no dia 20 de fevereiro de 1784 “e deram-se as necessárias ordens a Frei Inácio da Anunciação

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recomendando que se acostasse aos votos de oficias inteligentes e segundo o risco que fosse conforme aos preceitos da arte”.

Desenvolvendo intensa atividade, Frei Inácio “conseguiu levantar de pedra e cal as paredes da frente, não obstante de reunir o material preciso, que lá perto não há. Custou mais quatro anos até o acabamento de todo o lanço da frente do Convento e da Igreja. Foi dito que o Prelado obedecesse aos preceitos da arte. É o que se fez, resultando daí o belo frontispício da igreja e da torre, estilo barroco, que ainda hoje aparece nas ruínas”

Com uma porta e três janelas, situada à esquerda do observador, a igreja da Ordem Terceira “ligava-se à Igreja do convento por uma parede com arco”. Essa igreja principal que ostentava a torre tinha três portas de entrada, encimadas por três janelões do andar superior. O mosteiro completava o conjunto num corpo de dois andares vazados de janelas.

Localizado às margens do Rio Macacu, facilitava o intercâmbio comercial e cultural com esse mosteiro franciscano, que abrigava entre “25 a 30 religiosos”, rivalizando-se com Porto das Caixas que, numa febril agitação de embarque e desembarque, tornara-se o empório comercial da Velha Província, recebendo centenas de caixas de açúcar e tonéis de aguardente

Sendo a primeira das freguesias criada no recôncavo, Santo Antônio de Sá tinha seu território estendido por uma vasta extensão de terras, cortadas pelos Rios Macacu, Aguapei-açu, Cassarebu e seus afluentes, da qual se desmembraram mais tarde, as freguesias de Itambí, Itaboraí, Trindade, Maricá e Sernambetiba

Desenvolvendo uma agricultura de subsistência e de exportação, esses núcleos de povoamento, representavam um papel importante no desenvolvimento econômico do Rio de Janeiro. Situados à margem dos rios, constituíam a principal via de comunicação por onde se conduziam “os

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efeitos da lavoura para a cidade”.

Além de açúcar e aguardente, eram numerosos os engenhos de farinha. Com a fuga da população do Rio de Janeiro no início do século XVIII, para as “minas de ouro”, as lavouras “ficaram ao abandono” e a população assolada pela fome. “Em 1702 a câmara da Vila de Santo Antônio de Sá, era convocada para remeter farinha com toda a brevidade”.

Conta o prof. Ondemar Dias que quando da invasão do Rio

de Janeiro por Duguay Trouin em 1711, “coube a Vila participar do

pagamento do resgate com uma parcela correspondente a 50.000

cruzados”. Só que os vereadores e o “povo” resistiram e

reclamaram dizendo-se multados e apelaram para o rei. Até 1715, pelo menos, não tinham pago nada.

CAMINHO NOVO

Durante o início da mineração no final do século XVII, ao partir do centro da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, para se alcançar o caminho Velho das Minas que começava em Parati, o viajante tinha duas opções: atravessar a Baia de Sepetiba em direção a Parati e subir a trilha dos Guaianazes, ou alcançar a mesma baia em busca dessa trilha, pelo caminho de terra através da futura estrada Real de Santa Cruz, até o embarque na Ilha da Pescaria à sua margem, pertencente aos padres da Companhia.

Transferindo a sede administrativa do Rio de Janeiro para a região mineradora, segundo a carta régia de 1696 “para ficar mais próximo às minas”, o governador Artur de Sá e Menezes, percorreu esse caminho “longo, penoso e temerário”, mas até então o único existente.

Durante seu regresso em 1699, o governador contratou com Garcia Rodrigues Pais, “na Borda do Campo”, explorar a possibilidade da abertura de um novo caminho que partindo dali, alcançasse as margens do Rio Paraibuna, e

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subisse a Serra das Abóboras, atravessando o Rio Paraíba em busca de uma saída para o mar. Segundo proposta do próprio Garcia Pais, “em vez de três meses, tempo que até então se gastava, se poriam apenas quinze dias” entre a capital do sul e o longínquo interior do ouro.

No período de 18 meses, o filho do “Caçador de Esmeraldas” internou-se na floresta seguindo antigas trilhas indígenas, “com alguns homens brancos e mais de 40 negros (dos quais lhe morreram cinco) e fizera despesas consideráveis, saídas exclusivamente do seu próprio bolso”.

A ENTRADA DE FELIX MADEIRA

Preocupado com a demora em receber informações sobre a difícil diligência a cargo de Garcia Pais, e tudo

lavando a crer que esse problema da ligação Rio-Minas era

uma das tarefas mais importantes para os governantes da

época, o governador D. Álvaro da Silveira de Albuquerque

(1702–1705), optou por uma segunda solução, encarregando

Félix Madeira e Gusmão e seu filho Félix Gusmão Mendonça

y Bueno, “tidos e havidos por homens nobres” a abrirem um

caminho em direção às minas partindo da Vila de Santo

Antônio de Sá, às margens do Rio Macacu.

Segundo Enéas Martins Filho, o mapa da América

Portuguesa reproduz essa trilha que corresponde “grosso

modo, ao traçado que ligam Sant’Ana de Japuíba-Nova

Friburgo-Sumidouro-Carmo no Estado do Rio, a São José

de Além Paraíba, em Minas”.

Entretanto com a notícia da chegada de Garcia Pais ao

alto da Serra do Couto, que segundo o padre Antonil “em

dia claro se descobre o Rio de Janeiro, e inteiramente o

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seu recôncavo”, e continuava acompanhando a descida do

Rio Pilar um dos formadores do Iguaçu, o governador

expediu uma ordem a Félix Madeira, para que “não faça a

entrada que intentava fazer no sertão e a suspenda até

nova ordem minha”.

Estava assim suspensa oficialmente a abertura dessa

trilha, mas que provavelmente foi usado pelos

“descaminhos” durante a primeira metade do século

XVIII, até que em 1765, atendendo às ordens de Sua

Majestade, o Conde da Cunha expediu um “aviso”: “que

se extinguisse até a memória do que se intentara”.

O regime de clausura a que ficou submetido o Brasil

durante o período da mineração aurífera, foi tratado com

rigor na fiscalização dos caminhos a partir da descoberta

dos diamantes em 1728, atingindo o isolamento quase

total do Distrito Diamantino.

No mapa feito pelo sargento-mor Manoel Vieira

Leão em 1767, por ordem do próprio conde da Cunha,

vice-rei do Brasil, a passagem desse caminho é assinalado

com uma legenda lacônica; “Fazendas que se demoliram”.

Estava assim extinto para a história, mais uma variante do

caminho de Garcia Pais, que partindo de Santo Antônio

de Sá, buscaria o caminho das Gerais.

A INVASÃO DOS “SERTÕES DO MACACU”

Com a distribuição de sesmarias aos que participaram do massacre aos Tupinambás, a bacia do rio

Macacu e seus afluentes foram ocupadas já no final do século

XVI, surgindo no século seguinte, pequenos núcleos de

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povoamento como “São João de Itaborahí, Nossa Senhora do Desterro de Thambi, Santana de Japuhíba e Porto das Caixas”. Criada a Vila de Santo Antônio de Sá, cuja extensão pertencia “aos desconhecidos”, além da serra do Mar, os cursos d’água ali existentes foram invadidos por garimpeiros clandestinos, sofrendo rigorosa perseguição por parte da Coroa.

A carta régia de 27 de abril de 1727 proibindo a abertura de picadas para as minas, era confirmada pelo Alvará de 23 de outubro de 1733, determinando aos que ousassem penetrar nas “Areas Prohibidas” (compreendendo os sertões do leste e do Macacu,) que fossem interditadas, “e o descobrimento de novas jazidas sem prévia autorização, além de instituir o confisco do ouro”.

Estimulando a delação, premiava com metade do produto arrecadado “todos aqueles que denunciassem a prática do descaminho”, e mantivessem sigilo absoluto sobre as novas fontes de mineração.

A organização das tropas regulares, compostas de soldados fardados pagos pelo Império, foi instituída a partir dessa data. “As variantes” que surgiram após a abertura dos caminhos novo do Pilar e do Inhomirim, eram percorridos diariamente pelos “regimentos de Bragança, Moura e Extremós, no Rio, e os Dragões de Vila Rica, na região das minas”, além dos “Registros”, postos de fiscalização que revistavam as tropas e seus condutores.

A vertente interior das serras que contornam Macabu, Boa Vista, Macaé e Subaio, “com uma área de quase seis mil quilômetros quadrados, hoje pertencente aos municípios de Cantagalo, Cordeiro, São Sebastião do Alto, Itaocara, Carmo, Sumidouro, Nova Friburgo, Duas Barras, Bom Jardim, Trajano de Morais, Santa Maria Madalena e Teresópolis”, permaneciam no mais denso mistério até quase o final do século XVIII, apesar do Rio de Janeiro ter se transformado na Capital da Colônia em 1763.

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Conhecido como os “Sertões de Macacu”, a região do

médio Paraíba situada atrás da serra do Mar, mesmo estando

longe da bacia desse rio, e sendo registrado em 1767 no

mapa de Vieira Leão como “sertão ocupado por índios

brabos”, continuava a ser invadido por garimpeiros

sequiosos de ouro e pedras preciosas. Informado dessas

ocupações, de homens que faiscavam na aba da serra e no

seu interior, o governo da metrópole determinou “por Carta

de Ofício de 31 de janeiro de 1765” ao Vice-Rei Conde da

Cunha, “que proibisse tais incursões”.

JOHN MAWE

Especializado em pedras preciosas e aventuras, esse inglês chegou ao Brasil em 1809 logo após o decreto de D. João VI concedendo visto de entrada a estrangeiros. Percorreu as principais regiões mineradoras, e voltando em seguida para seu país, publicou um livro com o relato dessa viagem. Em um dos capítulos pinçamos suas observações durante passagem por Santo Antônio da Sá. Observador atento, John Mawe partiu do Rio de Janeiro com destino a Cantagalo, no dia 10 de abril de 1809 acompanhado do Dr. Gardner, professor de química de um colégio local.

Navegando em um barco a vela tipo falua tripulado por remadores, “favorecido por forte brisa, rumamos para a entrada do belo rio Macacu”, que após cessar o vento durante sua subida, foram impelidos pelos remos, até chegar em “uma casa denominada Vila Nova, onde inúmeros barcos de carga destinados ao Rio, aguardavam o vento da terra e a maré alta”. Depois do descanso continuaram a viagem até a estreiteza do rio “que o barco freqüentemente tocava nas margens, obrigando os homens a afastá-lo com paus”. Acreditamos que Mawe viajou durante a madrugada, pois descreve a chegada a Porto das Caixas ao amanhecer.

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“Lugar muito procurado pelos viajantes do interior, por ser o posto onde as mulas descarregam suas cargas, oriunda de muitas plantações dos arredores”.

Aqui ele registra vários armazéns servindo de depósito para produtos a serem embarcados, em torno de arruamentos salpicados de habitações pobres. A viagem prosseguiu atravessando um grande pântano em direção a Vila de Macacu “erguida sobre pequena elevação, no centro de bela planície”. Ali, um tal coronel José, “comandante” local, recebeu-os com atenção, “o mesmo fazendo os irmãos do convento que visitei”.

Estranhamos a maneira rápida com que Mawe se refere ao conjunto arquitetônico do mosteiro, pois a grandiosidade deveria surpreendê-lo, e levá-lo a tecer algum comentário sobre sua construção no fundo daquele vale distante. È provável que sua crença religiosa contrária a religião católica a tenha discriminado, ignorando o registro da presença de uma Ordem Franciscana.

Digno de comentário são suas anotações sobre o caminho aberto por Félix Madeira no início do século XVIII descrito no capítulo anterior, e que seria usada para alcançar “os sertões de Cantagalo” pelos tropeiros no transporte do café. Apesar da falência das minas de ouro, essas veredas continuavam a ter seus viajantes e tropeiros fiscalizados pelas diversas patrulhas que se estabeleciam em suas margens, conforme comenta Mawe: “Depois de atravessar o rio pela segunda vez, chegamos ao que denominam o primeiro registro ou casa de investigação, a duas milhas da fazenda. Este posto é guardado por um cabo e um praça, encarregado de cobrar as taxas e com poderes para revistar os viajantes, visando impedir o contrabando do ouro.”

Ao entardecer, chegaram num segundo registro onde resolveram passar a noite. “Um lugar miserável, habitado por cinco ou seis soldados, sob o comando de um sargento. Este bom homem acolheu-nos afetuosamente e, com auxílio

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de seus camaradas preparou-nos galinhas, regalando-nos

com tudo que a sua escassa dispensa podia proporcionar”.

IMIGRANTES

Em fins de 1820, Santo Antônio de Sá assistiu a uma das últimas cenas dramáticas da viagem dos primeiros imigrantes destinados à colonização na Província do Rio de Janeiro. Originários da Suíça, do cantão de Fribourg, viajaram para este país centenas de famílias dispostas a “fazer a América”, em direção aos assentamentos de Morro Queimado, mais tarde Nova Friburgo. Durante oitenta dias atravessando o oceano, sofreram na companhia “do enjôo, da diarréia e da morte! Nos sete veleiros que partiram da Holanda, conduzindo de início um total de 2013 passageiros, sucumbiram e tiveram o oceano por túmulo 311 deles”, diz Rafael Luiz de Siqueira Jaccoud em seu livro “Os Colonos”.

Ao desembarcarem no Rio de Janeiro, foram transportados em pequenos barcos até Itamby, “pequeno porto fluvial, próximo à foz do Rio Macacu, onde havia sido improvisado um hospital para receber os colonos doentes”. Em seguida foram transferidos para o convento de São Boaventura na Vila de Santo Antônio de Sá, já sendo desativado quer pela decadência da construção que ameaçava desabar, quer pelas febres palustres que começavam a fazer suas primeiras vítimas.

Ali o anjo da morte continuou estendendo suas asas “sobre aquela pobre gente durante seis meses. As doenças contraídas na Holanda, a bordo dos navios e na baixada paludosa do Macacu, ainda fizeram várias vítimas. Naquele interregno morreram mais 131 colonos, fora os 35 que foram sepultados na Vila de Macacu, inclusive o padre Joseph Aeby que se afogou no rio quando nele se banhava”, registra Rafael Jacoud.

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PORTO DAS CAIXAS

Nos primeiros anos de ocupação, a rede hidrográfica determinou a expansão desses povoamentos. Itaboraí tinha seu território cortado por vários rios e a sua produção era transportada através do Porto das Caixas. Nossa Senhora da Piedade do Iguaçu possuía ao longo do seu território dezenas de portos dispersos pelos Rios Iguaçu, Mantiquira, Bananal, Saracuruna, Pilar, Meriti e Sarapuí, todos navegáveis.

Em suas visitas pastorais a partir de 1794 às freguesias do recôncavo, Monsenhor Pizarro registrava em seus apontamentos: “A maior parte dos habitantes desse distrito se exercita na lavoura da cana para açúcar, trabalhada em quinze fábricas e para aguardente em duas engenhocas, na mandioca para farinha, milho, feijão e arroz, entretanto que outros se aplicam pelos matos ao trato de madeira de falquejo e de serra, e ao comércio de lenha e de carvão, cujos efeitos são transportados por canoas desde as origem dos rios principais, Aquapeí-açu, Aquapeí-mirim e Cassarebu, até algumas léguas acima do lugar da freguesia, onde chegam as barcas a carregar madeiras, se conduzem os sobreditos efeitos, dali ou continuam as canoas com as suas cargas até a cidade”.

Surgido no mesmo período da criação da Vila de Santo Antônio de Sá, um porto surgido à margem do Rio da Aldeia, afluente do Macacu, era o ponto de referência do aglomerado urbano que crescia em torno da igreja, tornando-se lugar de descanso dos tropeiros que desciam as serra em busca desse porto. “Suficiente número de casas, quase todas térreas, fazem aparatoso o lugar da vila, que pudera ser mais brilhante se com perfeição se executasse o delineamento das propriedade e se calçassem as ruas; mas

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a falta de polícia tem atrasado o adorno público, satisfazendo-se a Câmara com o cuidado de conservar desimpedidas e sempre limpas as estradas, a benefício de quem as cultiva até as Minas Novas de Cantagalo”, diz Pizarro, beneficiando também os lavradores e tropeiros que desciam a produção pela estrada do “Quebra Frascos” na Serra dos Órgãos passando por Teresópolis.

O açúcar era embalado em caixas destinados ao embarque “onde embarcações de até quarenta toneladas içavam velas, proporcionando significativo elemento de composição da paisagem”. Ruas calçadas facilitavam o trânsito das mulas em volta dos armazéns que surgiam, para se destacarem na província do Rio de Janeiro como significativo entreposto comercial, durante a expansão da cafeicultura fluminense.

Itaboraí, distrito sede ao qual pertencia Porto das Caixas, orgulha-se de ali ter nascido o escritor Joaquim Manoel de Macedo. Segundo sua descrição, a “Vila se assentava sobre graciosa colina pouco elevada mas em situação tão feliz que do alto dela se domina e aprecia o mais belo quadro de natureza campestre”.

Além da igreja Matriz, completava o seu conjunto arquitetônico a Câmara Municipal, o mercado público e um teatro, além de um prédio “que havia hospedado D. João VI e D. Pedro II, quando em visita ao município”.

DECADÊNCIA

Depois de um longo ciclo de esplendor, essa região voltou

ao estado de insalubridade e abandono. Com a fúria que se atacou as florestas, transformadas em lenha para alimentar os fornos domésticos e os engenhos, a natureza cobrou seu preço. As precipitações intensas na Serras do Mar determinando grandes chuvas, concorreram para a inundação da várzea onde lençóis de vegetação aquática impediam as correntes retardando o escoamento. Com o leito do rio assoreado e a conseqüente

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diminuição da lâmina d’água, inundaram-se os campos adjacentes transformando-se em focos de malária e impossibilitando seu aproveitamento agrícola.

Navegável de sua foz até o porto num percurso de 34 quilômetros, o Rio Macacu continuava servindo ao trânsito da produção de açúcar embalado em caixas, razão da qual deu o nome ao porto, recebendo também no início do século XIX a produção do café dos “sertões de cantagalo”, exportados para a Corte pelo Rio da Aldeia, afluente do Macacu.

É desse período a decadência em virtude das febres palustres que assolavam a região e ficaram conhecidas como “febres de Macacu”, constituídas da malária, cólera morbus e febre amarela. Despovoaram-se as fazendas. Vilas e freguesias ficaram desertas ocasionando a falência da produção, que aos poucos vinha definhando desde o início desse século graças às endemias, sem que nenhuma providência fosse tomada e agravada ainda mais com a falta do braço escravo, devido à proibição do tráfego em 1850.

Moreira Pinto, no seu “Dicionário Geográfico”, registra a

tese do Dr. Antônio Martins de Azevedo Pimentel apresentada à

Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1884 relatando que

“Tornou-se Macacu célebre pela mortífica epidemia de frebres

paludosas, conhecidas nos anais da medicina sob o título de “febres

de Macacu”, a qual se originou em suas margens no princípio de

1830, depois da grande seca dos últimos meses de 1829. Desolou a

Vila de Macacu, levou a devastação e a morte a Magé. Transpôs a

baia, acometendo o Rio de Janeiro; chegou ao sul, à cidade de

Santos e ao norte da Província do Espírito Santo”. Praticamente durante todo o restante do século XIX, o surto

diminuía em certos períodos, para voltar mais tarde ceifando vidas.

Em 1839 o Presidente da Câmara comunicava ao Governo da

Província que as febres palustres “devastavam o Município por

falta de socorro”, confirmado três anos depois por Honório

Hermeto Carneiro Leão, Presidente da Província, que dizia em seu

relatório anual: “A vila de Santo Antônio de Sá quase

completamente abandonada de habitantes, tendo ser sujeita a

jurisdição do Juiz Municipal de Itaboraí, conviria extinguir-se,

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reunindo duas de suas freguesias à Vila de Itaboraí e uma à

Magé”. Apesar de todo o mal causado pelas “febres” à lavoura

e ao comércio, seus portos continuavam recebendo através de tropas, a produção de café que descia de Nova Friburgo, Cantagalo e regiões periféricas além da Serra do Mar, destinado à capital do Império, e recebendo também cargas e viajantes com destino serra acima, transportados nos barcos a vapor a partir de 1850, quando estes começaram a trafegar. “com o comércio de madeira, lenha, carvão, farinha e cereais, procedentes das zonas não alagadas, e com a produção de seus engenhos de açúcar e aguardente, que chegaram a ser, em 1850, em número de 38”.

Em 1855, uma nova epidemia representada pelo cólera morbus chegou à região espalhando-se por toda a província. Multiplicaram-se os túmulos do cemitério local já quase totalmente ocupado pelas vítimas das “febres de Macacu”, obrigando que os sepultamentos, “se fizessem em terrenos pertencentes ao convento de Boaventura, abandonado e já em princípio de ruínas, o que motivou protestos dos Franciscanos, sendo necessária uma composição entre estes e o Governo Provincial, que os indenizou”.

No relatório da província do Rio de Janeiro do ano de 1855,

encontramos essa afirmação de abandono feito por Mattoso Maia

Forte, em que se encontrava o mosteiro: “Os religiosos

Franciscanos possuem na Vila de Sto. Antônio de Sá um convento,

sob a invocação de São Boaventura, mas esse convento a muito se

acha abandonado e em ruínas. Tinha ele um patrimônio em terras

na mesma Vila, as quais estão ocupadas por pessoas que pagam

renda aos religiosos do convento da Corte”. No dia 23 de abril de 1860, em meio a discursos de

autoridades locais e a presença do presidente da Província, dava entrada em Porto das Caixas com um apito estridente agredindo o vale do Macacu, uma locomotiva “chaminé balão” puxando dois vagões e inaugurando o tráfego ferroviário entre aquela estação e Cachoeiras do Macacu.

A chegada do trem de ferro a Porto das Caixas trouxe um

novo ânimo econômico e social à Vila, escoando para o Rio de

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Janeiro através do Rio da Aldeia, todo o café produzido em Nova

Friburgo e Cantagalo, entretanto, diz Noronha Santos “dos trinta e

oito armazéns que ali existiram poucos restaram em 1866”. Santo Antônio de Sá, entregue ao isolamento devido

às doenças, sofria um novo revés comercial. As tropas que desciam a serra evitavam alagadiços e brejais embarcando suas mercadorias em Cachoeiras, transportadas por via férrea até Porto das Caixas, à margem do Rio da Aldeia afluente do Rio Macacu, “pejado de barcaças, ondulado de frotas mercantes, numa trama de mastros e cordames”.

O progresso seria efêmero repetindo o que aconteceu com a

Vila de Macacu. Porto das Caixas conheceria o abandono com a

inauguração em 18 de agosto de 1866 de um novo trecho da estrada

de ferro direto do litoral destinada a Friburgo, Cantagalo e Santa

Maria Madalena, importantes centros de produção cafeeira. Elevada à condição de Vila em 15 de janeiro de 1833,

Itaboraí desmembrou-se de Santo Antônio de Sá, anexando a seu território grande parte da antiga Vila da qual fizera parte como Freguesia.

GUILHERME DE ALMEIDA

O chamado “Príncipe dos Poetas Brasileiros”, membro da Academia Brasileira de Letras, Guilherme de

Almeida, teve, sua vida ligada à Porto das Caixas, berço

natal de seu pai e tios, deixando interessante descrição sobre

sua visita a esse distrito. Publicada em 1934 no livro: “O café

no 2º Centenário de sua introdução no Brasil”, se constitui de

extrema beleza literária, razão pela qual não poderia deixar

de transcrever o seu texto para finalizar esta crônica.

“Foi numa terça feira enlameada deste último junho

que eu vi Porto das Caixas, cidade de meu pai. Ambos

morreram. Tantas vezes o homem santo, que fez o meu

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corpo e o meu espírito, quis rever e nunca reviu a sua

cidadezinha esquecida! Eu guardei com cuidado nos meus

olhos, a imagem suave de meu pai, para trazê-la um dia, à

terra em que nasceu. Aí naquela terça feira enlameada de

junho, abri sobre o cenário de morte os meus olhos: e, numa

lágrima, entreguei à terra o que era seu.

Será verdade que eu vi Porto das Caixas? – Não vi, revi.

O passado a gente revê. E Porto das caixas é só um pedacinho

do passado. Revi a cidade que tantas vezes eu já tinha visto nas

palavras e no olhar da minha gente, quando, durante as simples

conversas de família, a saudade batia as asas naqueles lábios e

punha uma alma líquida naqueles olhos.

Ao entrar na pequenina Vila, senti pedras sob a relva

brava da estrada, onde meu passo incerto cantou com um

ritmo de geração: - E aquelas lajes contaram-me que aquilo

fora uma rua onde faiscaram cascos de cavalos de estirpe

conduzindo grandes senhores de numerosa escravatura e

barcos muitos. Toquei farrapos de paredões espessos,

pesados de granito britado e terra socada, apegados ainda

com terror a largos portais talhados numa só pedra:- e

aqueles paredões contaram-me a glória e o brilho da chácara

de meus avós, dos nobres casarões hospitaleiros, acessos de

vida rica, num tempo feliz que desmoronou com eles.

Desdobrei o olhar sobre um úmido capinzal espetado de um

verde tenro: - e aquela ervas narraram-me a história

irrequieta do Rio da Aldeia, pejado de barcaças, ondulado de

frotas mercantes, numa trama de mastros e cordames, que

levavam a riqueza do altiplano à Guanabara.

Procurei à margem do rio extinto um vestígio de cais:

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- e as pedras enormes que vi falaram-me de um porto

onde as caixas de açúcar se empilhavam de mil em mil,

depois barganhadas pelo café que descia no lombo das

tropas tributárias de Friburgo, Cantagalo, Santa Maria

Madalena...Olhei de olhos admirados para os doze portais

graníticos, intactos de um trapiche; e aqueles arcos de

pedra, e aqueles argolões de ferro, pendurados entre os

pilares, disseram-me da importância antiga de um grande

armazém... todo atulhado de gente e mantimentos, com

barcas ariscas oscilando na água, atadas aos anéis de

metal; tropas inquietas escouceando às portas entre gritos

roucos de tropeiros nus, ativos, contando pratas; vozes de

feitos, ásperas, rápidas como chicotadas estalando sobre

filas fulas de escravos...Porto das Caixas.

Naquela rua Santo Antônio, à esquerda, entre a trama

verde e brava de uma capoeira alta, qualquer coisa de ouro

brilhou para os meus olhos. Rompi o mato e vi. Vi os restos – a capela-mor de uma igreja rica. A igreja de Santo

Antônio. Nos altares ainda intactos, os santos coloridos

velavam. Mas as imagens tinham os olhos apagados e os

dedos descarnados. E nas suas órbitas vazias os

marimbondos fizeram ninhos, e entre as suas mãos

plangentes a aranha felpuda esticou a teia hipócrita. E no

meio de toda aquela desolação, como que prosseguindo

no seu exemplo de amor, de abnegação, de martírio, um

Cristo mutilado, caído de sua cruz, morria mais uma vez

sobre a pedra santa do altar. Pareceu-me um símbolo. Era

o símbolo daquela cidade tão desgraçada e tão só...“.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTONIL, André João – “Cultura e opulência do Brasil” Ed. Melhoramentos – 1976 – S.P. DIAS, Ondemar – “Itaboraí – Pesq. Arqueológicas do Projeto SAGAS e seu Contexto Histórico” – IAB – CEG

2003, RJ DUNLOP, Charles J. – “Petrópolis Antigamente”

2ª. Edição – ERCA Ed. e Graf. – 1986

FILHO, Enéas Martins – “Os três caminhos para as Minas Gerais” Revista do IHGB – Imp. Nac. 1963 – RJ JACCOUD, Rafael Luiz de Siqueira – “Os Colonos” – Friburgo – 1998, RJ MAIA Forte, José Mattoso – “Vilas Fluminenses desaparecidas” Pref. Munic. de Itaboraí – 1984, RJ PACHECO, Jacy “Paisagem Fluminense” – Imp. Oficial de Niterói 1969 RJ PIZARRO e Araújo, José de Souza Azevedo – “Memórias Históricas do Rio de Janeiro” – I.N.L. – Imprensa Nacional, 1945 – Rio JACCOUD, Raphael Luiz de Siqueira – “Os Colonos” – Múltipla Cultural Nova Friburgo – 2001 - RJ MAWE, John – “Viagens ao Interior do Brasil”- Ed.Itatiaia/USP-1978-SP

81

PORTO DA ESTRELA

IMIGRANTES E COLONOS NO SEU CAMINHO DE PEDRAS

Beneficiada com a criação de diversos órgãos no serviço público a partir de 1835, a Província do Rio de

Janeiro, através de seu primeiro presidente Joaquim José

Rodrigues Torres, o visconde de Itaboraí, estabeleceu

secretarias a fim de planejar os trabalhos de

administração. Foi, porém, seu segundo presidente,

Paulino José Soares de Souza, o visconde do Uruguai,

quem criou, dentro desse contexto a Diretoria de Obras

Públicas destinada à construção e reconstrução de

caminhos e estradas, facilitando o transporte de

mercadorias para os portos de embarque e desembarque

dessa Província, principalmente o café transportado em

lombo de mulas organizadas em “tropas”, circulando em

número cada vez maior.

Em carta aos deputados fluminenses em março de

1836, assim se expressava:

“Vós não ignoreis, senhores, que recebemos esta

Província das mãos da Administração Geral do País,

carecedora de melhoramentos em todos os ramos, e

unicamente com algumas estradas feitas sem sistema, a

medida que o clamor da necessidade as pedia,

abandonadas pouco depois de construídas como a de

Itaguaí e a do Comércio, ou inteiramente entregue à ação

do tempo, depois de imperfeitamente concluída, com

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poucos meios, como a da Polícia. O pouco que estava

feito recebemo-lo nós em ruínas”.

No restante da mensagem Paulino José faz um

roteiro do início desses caminhos abertos em várias

direções, premidos pelo aumento da população e a

necessidade de comunicação, “à medida que iam

tornando indispensáveis para o trânsito, sem métodos e

pouco duradouras, para satisfazer as necessidades do

momento e sem previdências do Futuro”.

Transformado em Lei de 19 de dezembro de 1836, esse

projeto foi referendado por Paulino José, já na Presidência da

Província, que ultimou as obras de reparo da estrada que,

partindo de Porto da Estrela seguia até o Rio Paraibuna.

Com a instalação desse novo órgão público, Paulino

encarregou “O muito ativo engenheiro e tenente Júlio

Frederico Koeler, que já vinha a alguns anos trabalhando

empregado na Província, na chefia da segunda seção”.

OS FARÓIS

Durante a primeira metade do século XIX, os “viandantes para as Minas” a partir do Rio de Janeiro, embarcavam na Praia dos Mineiros (Praça Mauá) em saveiros, fuluas ou canoas, e atravessavam a Baia de Guanabara rumo à foz do Rio Inhomirim, em busca do Porto da Estrela.

Navegável numa extensão de quase 15 quilômetros com qualquer maré, esse rio apresentava uma grande vantagem sobre os outros da Baixada, pois atingia seu porto principal sem a necessidade de transbordo de passageiros ou mercadorias, além da vantagem de situar-se na linha do

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vento, que da Baia sopra para o interior diariamente a partir das 11 horas, fazendo com que esses barcos chegassem rapidamente ao seu destino.

Naquele período, a sinuosidade e o grande tráfico de embarcações pelo crescente transporte do café, o Inhomirim recebeu cuidados especiais para facilitar a sua navegabilidade desde a sua embocadura até o porto. Em 1836 por determinação do presidente da Província, “em atenção ao comércio e a freqüência do Porto da Estrela” determinava em seu relatório de 7 de novembro daquele ano, a colocação de lampiões que sinalizassem à noite “os lugares onde demoram as pedras, que lhe são perigosas e, as vezes fatais”.

Responsável pela segunda seção das obras de recuperação da Estrada da Estrela iniciadas no mesmo ano, o então primeiro tenente Júlio Frederico Koeler recebeu a tarefa de providenciar os lampiões que atendessem à necessidade da navegação. Por recomendação, comprou de um francês chamado Duprat, um lampião por quarenta mil réis, cuja bonita aparência era enganadora “e não prestava senão nas primeiras noites, em que depois de consertado e arranjado pelo vendedor, se acendia”, convencido da deficiência do sinalizador, ficou o tenente-coronel Bento José Veloso de arranjar outro lampião “a fim de indicar a pedra sobre a qual estava posto e não de servir de farol”.

Era necessário porém mantê-lo suspenso e iluminar o obstáculo, por isso foi recomendado ao mesmo Bento Veloso “construir uma barra de ferro de 25 palmos de altura com três roldanas” e colocar bóias de cobre “no lugar verdadeiro”, ficando a sinalização desse rio a cargo do citado tenente-coronel que era também vereador em Magé.

Em um relatório assinado por Frederico Koeler em janeiro de 1840 sobre o farol e as bóias do Rio Inhomirim, relata: “Continuou a ser aceso com regularidade todo o ano o lampião que serve de farol aos navegantes do Porto

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da Estrela, em substituição das bóias de cobre que marcavam o

canal da Barra do Inhomirim ou da Estrela, colocaram-se bóias

de madeira, fabricadas e fornecidas pelo arsenal de Marinha à

requisição de V. Exª. (o presidente da Província). Essas bóias

são bem feitas e preenchem atualmente o seu fim”. Durante muitos anos, da entrada da Barra até o

Porto, os obstáculos que ofereciam perigo para a navegação noturna estiveram iluminados, guiando os navegantes na faina incansável dos transportes de mercadorias e passageiros.

REFORMA DA ESTRADA

Tratando-se da principal via de comunicação entre a Corte e Minas Gerais, e segundo o próprio Koeler revelava nos “assentos”, colhidos nos registros e barreiras, “constava a passagem de 150.000 animais, contada ida e volta. Vinham de Minas Gerais pela ponte do Paraibuna 100.000. Pelo ramal do Sumidouro mais 30.000”. Em seu relatório afirmava que “é a mais freqüentada da província, de maneira que nela só transitam mais viandantes que nas outras do centro reunidas”.

No final de seu relatório Koeler apresenta o orçamento

da Seção compreendida entre Porto da Estrela e o Itamaratí,

fixando o preço de 2:000$000, para os trabalhos realizados

nesse trecho, “algumas calçadinhas a fazer, para o esgoto das

águas, e 400 braças de terreno pantanoso a corrigir por meio

de faxina”. Relaciona também a calçada da Serra com “120

braças arruinadas” e roçar em ambos os lados da estrada.

Autorizando o Governo a contratar uma companhia

para realização da obra, a Assembléia determinava que na

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redação do contrato em seu artigo 2º., a estrada prestasse

“cômodo serviço para o trânsito de carro e carruagens e se

conserve sempre livre de atoleiro. A ponte do rio Paraíba

será edificada de pedra”.

Sem a presença de empresas que executassem a

obra, modificou-se o plano anterior, desmembrando-se a

construção da ponte sobre o Rio Paraíba do resto da

estrada, ficando ambas sob a responsabilidade de Koeler

que aproveitou um projeto por ele elaborado alguns anos

antes. “É de se notar que fora intentada desde 1818 a

construção das pontes sobre o Paraíba, que se iniciava em

1936, dezoito anos depois, e sobre o paraibuna, mais feliz

do que a outra, pois construída, foi queimada em 1842

pelos revoltosos e reconstruída pouco depois. No decreto

de 20 de fevereiro de 1818, referiu-se D.João VI aos

incômodos que sofriam os viajantes na passagem dos rios

Paraíba e Paraibuna, sendo esta feita em barcos ou canoas,

principalmente nos tempos das cheias destes rios”.

Havia interesse dos produtores mineiros e

fluminenses na reconstrução dessa estrada principal, para

circulação de suas tropas de bestas no transporte não só

do café, mas ainda de “gêneros de consumo” destinados à

Corte.

A mão de obra escrava alugada, criava dificuldades

para a continuidade das obras dos caminhos, pois seus

senhores não permitiam que esses se afastassem muito do

local de trabalho temendo que facilitasse sua fuga, tendo o

empreiteiro que ensinar o serviço a outro plantel alugado

mais à frente, com perda de tempo “e a prática do trabalho,

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que já haviam os primeiros, adquiridos”, com isso o

serviço tornava-se vagaroso e imperfeito.

IMIGRANTES ALEMÃES

Em 1836, era criada na Corte a Sociedade Promotora de Colonização do Rio de Janeiro com a participação de diversos acionistas, tornando-se idônea graças a sua boa situação financeira e exemplo de organização, com o objetivo de promover a “vinda de colonos brancos úteis”. Entretanto essa promoção nunca foi efetuada pois era grande a chegada de imigrantes na sede do Império, bastando apenas pagar-lhes a passagem e albergá-los com alimentação, depois naturalmente da assinatura de um contrato, cuja Organização se comprometia a arranjar-lhes emprego.

“Instalara-se a Sociedade na rua do Passeio 34, onde funcionava a sua secretaria”, Possuindo, “no Largo da Lapa, um depósito para alojar os colonos”. Segundo uma estatística de 1836, entraram cerca de 9.000 imigrantes no Rio de Janeiro.

Entretanto, o transporte de escravos continuava abarrotando o mercado dessa Província. Segundo a mesma estatística, cerca de 150 navios aportaram na cidade trazendo 40.000 negros vindos da África, a maior parte destinados às fazendas de café.

Quanto aos imigrantes, o “Jornal do Commércio”, de 15 de novembro de 1837, trazia um anuncio que é exemplo dos muitos que essa Sociedade publicava durante todo o ano nessa cidade: “Pela Sociedade Promotora de Colonização se hão de contratar os serviços de alguns colonos, vindos diretamente das Ilhas dos Açores, dos ofícios de carpinteiros, pedreiros, sapateiros, calceteiros, serrador e tanoeiro, assim como mulheres de todas as idades, próprias para o serviço doméstico; as pessoas que os

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quiserem tomar a contrato ou a jornal, podem dirigir-se ao depósito no Largo da Lapa”.

Passagem obrigatória dos navios que se dirigiam às possessões européias na África ou Austrália, o porto do Rio de Janeiro recebia anualmente centenas de embarcações conduzindo imigrantes ou condenados destinados a essas colônias. Um desses navios, o “Justine”, entrou na Barra no dia 13 de novembro de 1837, comandado pelo mestre J. Bernard Lucas, originário do porto francês de Havre, trazendo a bordo 238 passageiros de nacionalidade alemã que seguiam para Sidney, na Austrália.

Esses imigrantes não eram simples passageiros indigentes, mas famílias que haviam fretado o “Justine” para ir ao encontro dessas novas terras. Depois de várias divergências com o Comandante, “pelo mau tratamento que este lhes dispensara”, resolveram desembarcar e permanecer no Rio de Janeiro, aceitando a oferta da Sociedade em alojá-los e arranjar-lhes emprego.

Sabedor da chegada à Corte desses patrícios, Koeler desceu a serra buscando conhecê-los, e oferecer-lhes trabalho na estrada da futura Colônia de Petrópolis. Comunicando ao presidente da Província, Paulino de Souza e, segundo o relatório de 8 de fevereiro de 1838, foi autorizado a contratar “29 famílias dos alemães existentes no depósito da Lapa”.

Em relatório redigido pelo próprio Koeler endereçado ao Presidente, relatava: “recebi e coloquei na estrada da Estrela 29 famílias alemães, e entre elas 32 trabalhadores. À distância de uma légua do porto da Estrela ficaram seis que se empregaram em consertar e aperfeiçoar os importantes aterros na vizinhança”. Koeler segue descrevendo a distribuição dos obreiros ao longo da estrada, finalizando com a colocação de “cinco trabalhadores e três carpinteiros” próximos à fábrica de pólvora, aqueles empregados no aterro do Fragoso, e estes em fazer “portas e janelas para os

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ranchos que para todos eles se estão construindo no Itamarati”.

Animado com os bons resultados dessa experiência, Koeler solicitou à Sociedade de Colonização do Rio de Janeiro mais trabalhadores, perfazendo um total de 51 famílias sempre elogiadas por Koeler em seus relatórios, “sobre a maneira com que todos esses colonos trabalham, sujeitando-se pacificamente em aceitar alimentos estranhos aos seus costumes”. Provavelmente nasceria aí, as raízes da colonização de Petrópolis, com imigrantes europeus.

Mas nem tudo foi bonança na recuperação dessa estrada. As febres palustres dominavam a região, e vários trabalhadores foram acometidos do mal, tendo sido prestado toda a assistência necessária por Koeler, “Vi-me obrigado a remeter um homem e uma mulher para a Misericórdia”, ficando os remédios e demais despesas a cargo da Sociedade. Do presidente da Província, foi dirigida ao ministro da Guerra, Sebastião do Rego Barros, solicitando uma autorização “para que os colonos alemães, empregados nas obras da Serra da Estrela, possam nas suas moléstias serem tratados no Hospital da Fábrica de Pólvora”.

Em um relatório de 1838 escreveu Koeler: “Um dos 24 africanos livres empregados nesta obra, de nome Félix, caiu gravemente doente e se remeteu, na forma das ordens, para o hospital da Fábrica, onde tem ido a melhor”.

A construção de ranchos que estavam sendo erguidos no Itamarati para residência dos alemães eram feitas “de madeira branca e cobertas de palha de ouricana” construídos ao lado da habitação de 24 africanos livres e operários escravos”.

Satisfeita com o rendimento dessa pequena colônia de trabalhadores, que faz parte dessa história de recuperação da Estrada da Serra da Estrela, nasceria a idéia de se recrutar imigrantes europeus. A Assembléia Legislativa por solicitação de seu presidente, apresentou projeto de lei

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autorizando estabelecer “colônias agrícolas e industriosas na província”, sendo aprovada em 30 de maio de 1840. Em virtude dessa lei, chegaram em 1845 por intermédio da Casa Delrue, os primeiros imigrantes que deram início a colonização de Petrópolis.

COLONOS FRANCESES

A passagem do brigue francês “Curieux” pelo porto

do Rio de Janeiro em abril de 1843, destinando-se à colônia

do Saí em Santa Catarina, com 127 colonos a bordo, trouxe

mudança aos planos daquele objetivo. O desembarque dos

passageiros para conhecer a cidade, os colocou em contato

com velhos amigos e patrícios, já adaptados à vida social e

econômica da Capital do Império.

Motivados pelo movimento cultural envolvendo a

comunidade francesa, com uma “sociedade de beneficência

em pleno apogeu, um teatro de comédias no São Januário, e

a rua do Ouvidor ostentando imponentes rótulos franceses”,

parte desses colonos se recusaram a prosseguir viagem.

Ao continuar o seu destino, o “Corieux” deixava no

porto do Rio de Janeiro 59 franceses dispostos a iniciarem

suas vidas em terras fluminenses. Aproveitando a carência

de trabalhadores livres (mais produtivos e especializados),

em substituição à mão de obra escrava, a administração da

Província agilizava a contratação de colonos recém-

chegados, dispostos a trabalhar nas obras das estradas.

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COLONIA DO AÇAÍ

Antes de seguirmos relatando o destino desses franceses, e fugindo do nosso tema central, queremos contar um pouco da curiosa história dessa colônia do Açaí em Sta. Catarina, e considerarmos esses desistentes que ficaram na sede do Império verdadeiros felizardos.

Em novembro de 1840, atracou no porto do Rio de Janeiro o navio “Eole”, trazendo os porões abarrotados de fazendas, e entre os passageiros o médico francês Dr. Benoit Mure, hospedando-se no Hotel Europe. Com a idade de 32 anos “Estatura alta, côr clara, olhos azuis, nariz e boca regulares, rosto redondo e barba regular”, diz sua ficha de Registro de Estrangeiros, era acompanhado por mulher, filha e criada.

Demorou-se pouco na Corte. Em dezembro do mesmo ano embarcou no navio “Pernambucana” com destino a Santa Catarina. Na ficha de embarque mudou-se um pouco as informações fisionômicas e pessoais: “Usa óculos e possui cerrada barba ruiva e olhos grandes. A francesa designada por sua mulher, chama-se Anabelle Cretiat. A filha, da lista de passageiros do “Eole”, transforma-se na sobrinha Camille Lallement e a criada continua acompanhando”.

Adepto da escola de Hahnemann e diplomado em medicina pela Universidade de Paris, o Dr. Mure fundou na capital francesa o Instituto Homeopático, ingressando “nas hostes de Charles Fourier, e participa do nascimento da “Union Industrielle”, destinada a criar no Brasil, uma colônia societária, segundo a ideologia falansteriana”.

Com a intenção de fundar naquela Província do Sul uma “Colonia Industrial Francesa”, entre os Rios Saí-Guaçu e Saí-Mirim, “o profeta de barbas ruivas” havia conseguido do governo a doação de 4 léguas de terras, e

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um substancioso auxílio financeiro de 60 contos de réis, se comprometendo a introduzir 500 colonos no primeiro ano de existência da colônia do Açaí.

Nos planos estavam as construções de grandes prédios

que abrigassem além do edifício sede, oficina, celeiro, cozinha,

restaurante, biblioteca, teatro, adega e “um museu de física”.

Também uma siderurgia, construção de máquinas a vapor,

navios e mecanização da lavoura. Através do “Jornal do

Comércio”, deixou artigos escritos para serem divulgados,

propagando seus projetos e idéias, amealhando “milhares de

adeptos que apenas aguardavam sua chamada” Em janeiro de 1842 chegam a bordo do navio

“Caroline” os primeiros cem colonos, acompanhado meses depois dos brigues “Virginie” e “St. Paul” transportando mais 117 colonos. Nessa ocasião em Recife, seu correligionário Eng. Louis Léger Vauthier, planejando também fundar seu “falanstério caboclo”, no Nordeste, ao saber que Mure havia conseguido terras e dinheiro com o governo imperial, comentou: “Mure é um Charlatão, mas enfim sabe usar a língua e palavras melífuas”.

Sucessivos desentendimentos e brigas com os patrícios iludidos com falsas promessas, levaram ao fracasso o tão sonhado paraíso social imaginado pelo falante francês, resultando em debandada geral. “Aliás, o charlatanismo do médico francês surge denunciado na correspondência de Manoel Araújo Porto Alegre acrescentando: “A Colônia não sei se prosperou; sei que muitos coloristas de litografias, cabeleireiros, sirgueiros, etc. abandonaram as matas do Saí e vieram para a cidade”.

Voltando ao Rio de Janeiro em março de 1844, o Dr.

Mure exerceu a medicina e fundou o Instituto Homeopático do

Brasil, causando polêmica e ressentimentos entre a classe médica

local. Editou a revista “A Ciência”, circulando apenas os primeiros

25 números. Viajando no ano seguinte para a França, encerrou de

forma melancólica sua carreira de aventureiro no Brasil.

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Firmado o contrato desses colonos franceses que ficaram no Rio de Janeiro, foram transferidos para a Serra da Estrela. Em maio do mesmo ano, em um ofício administrativo dirigido ao subdelegado Francisco Alves Machado, o presidente da Província Caldas Viana afirmava: “Envio cópia a Vossa Mercê do contrato celebrado pelo Govêrno da Província com os colonos franceses empregados nas obras da Estrela; e ordeno-lhe que a estes lhe pagará todos os sábados o jornal que venceram na semana, e bem assim as suas diárias durante um ano”.

Acelerada as obras com a chegada de mais esse grupo de trabalhadores, o presidente da Província recomendou em maio do mesmo ano, a “criação de uma enfermaria nos ranchos formados na Estrela, para o tratamento de doenças ligeiras que não exceda 5 dias”. A existência da mão de obra escrava entre os trabalhadores imigrantes e africanos livres é revelado no mesmo relatório dizendo que “Os gastos com os curativos, remédios e dietas seriam descontados nas férias dos operários e dos senhores de escravos empregados nas obras”.

Entretanto, esse tipo de trabalho estranho a suas profissões, precipitaram o abandono desses franceses em fuga “para as vilas e cidades, próximas sem ao menos indenizar a Província das despesas efetuadas adiantadamente”. José Antonio Soares, na revista do IHB, cita o registro de suas profissões em seus passaportes, concedidos no consulado do Brasil em Paris: homem de negócios, cozinheiros, carpinteiros, sapateiros, talhadores de mármore, professor, jardineiros e cozinheira.

Muitos acompanhados de mulher e filhos e profissão definida, tratava-se de pequenos artesãos e comerciantes “mais ou menos aburguesados, com tendências ou aspirações a donos de negócios”. Estranho também o número de “costureiras” que se apresentaram para embarque, levando a crer que essa profissão encobria “outras atividades”, e não a relacionada nos passaportes.

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AÇORIANOS

O início dos trabalhos de construção da Estrada Normal da Estrela no começo de 1844, em conseqüência da edificação do palácio imperial em Córrego Seco (Petrópolis) mandado erguer por D. Pedro II e planos de sua colonização, coincidiu com a oferta do vice-cônsul do Brasil em Dunquerque M. Charles Delrue, também armador e negociante, propondo colocar à disposição do Governo suas embarcações “para o transporte de quaisquer colonos que a província quisesse introduzir.

O Presidente da Província Caldas Viana aceitou o

oferecimento contratando 135 açorianos, empregando a

metade nas obras da matriz de São João em Niterói, e a

outra metade na Serra da Estrela, entre a Fábrica de

Pólvora e Petrópolis. Note-se que “antes de chegarem os

colonos alemães, a 29 de junho de 1845, já existiam

açorianos, empregados nas obras de Petrópolis e aí

instalados com o título de colonos”.

REFORMA DO PORTO

A nova Estrada designada Normal da Estrela, em 1843, era o começo de uma outra etapa com a reconstrução do Porto, em decorrência do início da colonização de Córrego Seco (Petrópolis). Desde então passou a figurar nos relatórios da Diretoria das Obras Públicas em duas referências: Estrada Velha da Estrela, e Estrada Normal da Estrela. A publicação do edital para a concorrência de suas obras no governo de Honório Hermeto registra no seu artigo 1º. que “A Estrada principia no Porto da Estrela a beira do

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rio Inhomirim , no lugar do atual embarque, e segue pelo trilho da estrada atual até Paraibuna”.

Esse relatório faz referência aos trabalhos dos imigrantes alemães chegados no Rio de Janeiro em 1837 pelo barco francês “Justine”, contratados pelo major Julio Frederico Koeler, então responsável pelas obras de recuperação da Estrada Velha. O parágrafo 3º relata que “Toda a estrada será empedrada; a largura desse empedramento será de 25 palmos... feito de pedras quebradas e de tal modo socadas, que sua superfície pareça unida, e formada de pedras menores de uma polegada, conforme o sistema seguido entre a ponte de João Cândido Fragoso e a fazenda do Itamarati”.

Iniciados os trabalhos nesse mesmo ano em ritmo acelerado, foi dado especial atenção ao cais de desembarque do Porto da Estrela com obras de infra-estrutura, mandando demolir o telheiro pertencente ao subdelegado Francisco Alves Machado e denominando a praça em frente ao porto de Praça Santo Honório, justificando a escolha para “honrar a memória do conselheiro de Estado, ex-presidente dessa Província, nos seus importantes serviços e profícuos trabalhos para a construção da Estrada da Estrela e com especialidade a do cais de desembarque do arraial do Porto da Estrela”.

Segundo o “Correio Oficial da Província”, em uma portaria assinada por Caldas Viana, assinalava “notável incremento no arraial da Estrela”, devido o início da “construção da Estrada Normal da Estrela e a fundação da povoação de Petrópolis no alto da serra”, atraindo “para esse ponto grande população”, e ordenando ao engenheiro Campo Belo que “levante a planta e o orçamento de um cais de pedra ou cantaria com cem braças de extensão para ser colocado na praça santo Honório, do referido arraial ao longo do rio Inhomirim, no lugar do projetado de madeira, tendo além dele duas formosas rampas”.

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No final do relatório Caldas Viana prevê a breve

transformação do arraial em vila, recomendando que seu novo

projeto de remodelação seja abrangente “dada ao plano da

futura vila, que nesse lugar, tem necessariamente de fundar-se”. Antevisão confirmada, pois três anos depois, mesmo

sem estar pronto o prédio para abrigar a câmara e a cadeia, a Lei Provincial de 20 de maio de 1846 elevou à Vila, o arraial da Estrela, abrangendo em seu termo as freguesias de Guia de Pacopaiba, Pilar, Inhomirim e o curato de Petrópolis.

COLONOS ALEMÃES

Em 13 de junho de 1845, atracava no porto do Rio de Janeiro, o primeiro dos 13 barcos que se ocuparam do transporte dos colonos alemães, o brigue francês “Virginie”, trazendo a bordo 161 colonos contratados pelo Governo da Província para serem assentados e trabalharem nas obras de Petrópolis, dando início à sua colonização. O “Diário do Rio de Janeiro”, citado por Soares de Souza, relata: “O número destes colonos, transportados numa só embarcação é de 161 homens, mulheres e crianças; todos são robustos e de bela aparência, não havendo nem um só falecido durante a viagem, por terem vindos suficientemente acomodados e bem tratados”.

Alojados em Niterói, onde aguardaram alguns dias para embarcarem em direção à serra, tiveram a visita de D. Pedro II. “Sua Majestade o Imperador, sempre solícito pela prosperidade e engrandecimento do seu Império, logo que chegou de Dunquerque o primeiro navio “Virginie”, trazendo a seu bordo 160 colonos, não só autorizou o seu mordomo a oferecer ao Governo da Província as suas terras de Petrópolis para logo se estabelecerem os novos colonos visto que eram destinados aos trabalhos de Serra da Estrela como mesmo se dignou vê-los no Arsenal de Marinha, quando, vindo de Niterói, partiram para Petrópolis, e lhe assegurou a sua proteção por meio de alocuções, que lhes

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mandou fazer, e de donativos pecuniários”.

Os transportes até Porto da Estrela foram feitos em faluas, onde descansaram. Prosseguindo o caminho em cima de carroças e lombo de mulas, fizeram uma segunda parada na Fábrica de Pólvora: “O tempo que aí permaneceram devera ser maior: um ou dois dias. Da Fábrica subiram a serra pela estrada velha até Petrópolis, onde chegaram a 29 de junho de 1845”.

Antecipando a chegada desses colonos, em um ofício dirigido ao diretor da Fábrica de Pólvora, o major Koeler solicitava: “...rogo a V. Exa. se digne mandar os carros, carretas e a tropa da Fábrica para o Porto, coadjuvar não só o transporte de crianças, velhos e doentes que hajam, como das roupas e objetos mais precisos desta pobre gente”.

E em outro ofício: “Venho pedir a V. Exa. se digne coadjuvar por todos os meios ao alcance de V. Exa. e nominalmente com o carroção da Fábrica a condução dos colonos alemães do Porto da Estrela à Fábrica; e de novo peço a V. Exa. não só mandar dar quartéis mais suficientes aos ditos colonos, como com especialidade um cômodo para neles se recolherem os doentes”.

De acordo com o contrato celebrado entre a presidência da Província e a Casa Delrue, chegaram ao Rio de Janeiro nos meses seguintes em cinco navios, mais de mil colonos. O primeiro dessa série foi o navio francês “Marie”, que o “Jornal do Comércio” registrou: “Chegaram ontem a bordo do Marie, 160 colonos alemães. É a Segunda expedição feita pela Casa Delrue, em conformidade com o contrato celebrado entre ela e a presidência do Rio de Janeiro. Esses colonos são na maior parte lavradores, carpinteiros, ferreiros, ferradores, pedreiros, cavouqueiros e oleiros”.

O segundo a atracar foi o “Marie Louise”, trazendo 200

colonos. Seguiu-se a barca prussiana “Leopold” com 245. O brigue

francês “Curieux” com 180 e a barca inglesa “Agrepinne” com 210.

Os passageiros desembarcados dos navios “Curieux” e “Marie

Louise”, foram transportados diretamente para o Porto

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da Estrela, os demais “alojaram-se nos depósitos da Rua da Glória e no Quartel do Corpo Policial em Niterói”.

Algumas dessas famílias que não seguiram para a serra, fizeram uma petição ao Imperador “pedindo-lhe a graça de serem enviados para São Leopoldo” pois eram lavradores acostumados com a cultura do arroz e “onde eles já têm seus parentes e conhecidos”.

Em fins de 1845 era tal o número de colonos chegados no porto do Rio de Janeiro e transferido para a serra, que achando-

se esgotada a capacidade de “hospedagem” na região, amontoavam-se nos vários pousos da estrada, conforme

assinalado no relatório de Koeler, que só no porto da Estrela achavam-se arranchados esperando acomodações cerca de 400

alemães, acrescentando mais 300 na Fábrica de Pólvora; 550 no Meio da Serra, 140; na Volta do Conselheiro, 550; em Munginagens, perto da Vila Real, 100; em Sciência, 215.

PETRÓPOLIS

No “Relatório da Província” que temos em mãos, datado de 1853, referindo-se à colônia de Petrópolis, afirma que esta “não apresenta uma perspectiva de uma grande riqueza, nem possa ser considerada agrícola”, entretanto “os colonos em geral continuam mostrar-se satisfeitos, e a respeitar as leis do país, sendo quase todos dotados de boa índole e ânimo pacífico”.

Referindo-se à falta de mercado de trabalho, relata que “vão-se empregando utilmente nas obras da casa imperial, nas da Província e nas particulares, já como oficiais de diversas artes mecânicas, já como jornaleiros, e empreiteiros de serviços de aterro e escavação; aplicam-se também ao corte de madeiras, de que fazem não pequena exportação, ao transporte de cargas e de passageiros por meio de carros e de seges, de que muitos são proprietários”.

Lamenta que apesar da ajuda do governo, poucas

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fábricas “foram estabelecidas” para o emprego dos colonos e “com especialidade as crianças onde encontrem trabalho”. Uma fábrica de sapatos que tanta esperança trouxe à comunidade, “que já havia mais de 30 crianças trabalhando, acha-se atualmente fechada por embaraços ocorridos”. Além dessas, duas fábricas de cerveja trabalhavam em ritmo irregular. Uma ocupava 5 operários, a outra produzia em tempos alternados. Uma fábrica de “tecer algodão” operava com 20 operários, “todos livres, e quase todos colonos”.

Aqui vemos que a falta de planejamento do Governo Imperial em recrutar colonos, aliado a interesses econômicos do vice-cônsul do Brasil em Dunquerque, o armador e negociante M. Charles Delrue, trouxe conseqüências desastrosas à nascente colônia de Petrópolis. Sabendo-se que a maioria exercia a profissão de lavrador, foi também a própria Sociedade Promotora da Colonização sediada no Rio de Janeiro, “quem propôs a locação dos serviços dos alemães, inculcando alguns como práticos na construção de estradas”.

Preocupados em substituir a mão de obra escrava, e apressados em ocupar os espaços daquela região serrana em conseqüência de sua escolha para residência de verão da família imperial, esses homens foram atirados ao trabalho braçal das estradas e “brindados” com pedaços de terra fria cobertas de matas, sem nenhum planejamento.

Aliado ao excessivo número de famílias que chegavam em prazos sucessivos, as acomodações eram escassas e sem infra-estrutura para atendimento coletivo. Porto da Estrela, Fábrica de Pólvora e Petrópolis pareciam abrigos de refugiados de guerra. Em setembro de 1845 anotava Koeler: “Todos os quartéis de Petrópolis estão literalmente entupidos de colonos e trabalhadores”.

Em solicitação ao presidente da Província, também reclamava da falta de acomodações na Fábrica de Pólvora: “Entender-me pela vigésima vez com o diretor da fabrica, a

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fim de que os colonos alemães sejam prontamente removidos do Porto para a fábrica, onde apesar da multiplicidade dos edifícios, estão pessimamente acomodados”.

Alugando carroças e tropas disponíveis na estrada da Estrela, demonstrava sua preocupação também com o deslocamento dos patrícios: “todas as tropas que querem por dinheiro pegar nas cargas dos colonos, se empregam nesse serviço”. E mais adiante comunicava: ”todos os carros alugáveis nas vargens da Estrela estão por minha ordem alugados”. Em um desabafo ao Presidente da Província, Koeler demonstra sua irritação ao denunciar o chefe da Primeira Seção, ao qual havia pedido o uso dos quartéis de obras na Serra Nova, para aquartelamento temporário dos colonos e lhe foi negado: “Eu queria que neles ficassem os colonos que estão mal na Fábrica, e determinar que os doentes fossem ali reunidos e tratados”.

Escrevendo ao brigadeiro diretor da fábrica, Koeler mostra sua decepção ao encontrar em suas dependências, famílias totalmente desassistidas: “Em quanto as providências que V. Exa. declara que deu para bem acomodar os colonos alemães, julgo francamente declarar a V. Exa. que elas me parece mais que insuficientes. No dia que fui ver os colonos, fiquei horrorizado em ver como eles estavam amontoados em localidades estreitas e sem tarimbas”. O brigadeiro explicou em uma mensagem, que fez o que podia para não “estorvar os trabalhos da fábrica”. Koeler sentiu a falta de vontade desse senhor e, desanimado escreveu-lhe que: “só me resta descobrir quartéis melhores em outra parte”.

Preocupado com a dieta dos colonos doentes alojados na Fábrica, que foi suspensa por economia, Koeler dirigiu-se ao Dr. Guilherme Boedeker assinalando que “A economia e a humanidade podem muito bem andar de par, sem prejuízo uma da outra”.

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FAMÍLIA BECK

É Francisco de Vasconcellos quem nos conta, na Revista do Instituto Histórico de Petrópolis, a epopéia de uma família de alemães que viajaram a bordo da barca inglesa “George”. “Tratava-se de um navio de três mastros com 283 toneladas comandado pelo capitão Tood”. Foi o oitavo dos treze navios que chegaram ao Brasil em 26 de agosto de 1845, trazendo colonos alemães. “Os Beck, em número de quatro (o casal e dois filhos) pagaram 250 francos de luvas, ao contratador. Chegaram a Petrópolis entre outubro de 1845 e janeiro de 1846. Receberam a gratificação de 20$000 e o prazo 1211 no quarteirão Bingen”, cerca de 38.000 m2, onde construíram um rancho e uma roça para sua subsistência.

“Em terreno acidentado onde jamais vingaria uma videira, onde as terras uma vez desmatadas e em razão da violência do trópico, não corresponderiam em termos de produção por muito tempo”. Assim, esgotado o trabalho nas estradas, o colono via-se obrigado a exercer inúmeras outras atividades adaptados à sua habilidade manual: carpinteiro, pedreiro, pintor etc, se oferecendo nas raras obras públicas ou privadas, que se iniciavam na região, além da concorrência do grande número de “profissionais”. Lavouras e os poucos estabelecimentos fabris da periferia também absorviam essa mão de obra disponível.

As fábricas construídas ao pé da serra na região de Magé, envolvidas na produção de cerâmica e tecidos, contribuíram de forma decisiva para a sobrevivência desses colonos. Soares de Souza afirma ser grande a quantidade de alemães que aparecem trabalhando nos arredores de Petrópolis, “e até na fábrica de Santo Aleixo, onde em 1849, de 116 operários ali existentes, 84 eram alemães”.

A história da colonização de Petrópolis e seu caminho de pedras, vai aos poucos sendo contada, com a contribuição

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de José Antônio Soares de Souza publicada na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, de quem garimpamos alguns tópicos neste modesto resumo. Com a história admirável do Porto da Estrela, suas faluas e o intenso movimento dos tropeiros, vão-se completando o mosaico dos caminhos e portos fluviais que fizeram da Baixada o ponto de referência para o progresso que viria a seguir com as ferrovias. Portos que ficaram nos escritos dos viajantes como o botânico francês Saint-Hilaire que em 1819 dizia sobre Estrela: “lugar nenhum lhe havia apresentado tanto movimento”, ou monsenhor Pizarro no mesmo ano registrava: “um arraial belíssimo e acomodavam notável porção de habitantes por todo o ano, sem o menor embaraço de pousadas”.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AULER, Guilherme – “Registro de Estrangeiros – 1840/ 1842” Min. Just. Neg. Int. 1964 – RJ SOARES DE SOUZA, José Antonio – “A Estrada da Estrela e os Colonos Alemães” Revista do IHGB – Volume 322 Janeiro/Março 1979 – DIM – RJ VASCONCELLOS, Francisco de – Revista do Instituto Histórico de Petrópolis V 4 – 1985 – Petrópolis – RJ BITTENCOURT, Edmundo Regis – “Caminho e Estradas na Geografia dos Transportes” Ed. Rodovia – 1958 – RJ RELATÓRIO DA PROVÍNCIA – “Colônia de Petrópolis” – Tip. do Diário – 1853 – RJ PONDÉ, Francisco de Paula Azevedo - “O Porto da Estrela” – Revista do IHGB Volume 293 – 1971 – RJ SAINT-HILAIRE, Auguste de – “Viagem pela província do Rio de Janeiro e Minas Gerais” – 1938 – SP

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EPIDEMIAS

CAUSAS E CONSEQÜENCIAS NA

BAIXADA FLUMINENE

DURANTE O SÉCULO XIX

Desde tempos imemoriais, as epidemias têm dizimado populações inteiras que decidiram invadir zonas pantanosas em busca de sua ocupação. Somente a evolução do conhecimento de suas causas e os meios de defesa permitiram ao homem superar essa adversidade através do saneamento, eliminando a formação de brejais, tornando as habitações higiênicas e conseqüentemente reduzindo o foco do elemento transmissor.

No Rio de Janeiro, em torno da Baia de Guanabara, ainda no século XVI, transformaram latifúndios em campos de criação e de plantio, atraindo para seu porto grandes produções de açúcar e aguardente, base econômica inicial do colonizador, graças à facilidade permanente do transporte por via fluvial e marítima, ali estabelecendo nos séculos seguintes um grande centro consumidor e exportador.

Ao lado das primeiras capelas fundaram-se fazendas e arraiais. Aos poucos o homem foi vencendo o ambiente hostil que se apresentava na vastidão dos pântanos. O esgotamento dessas águas feito através de canais permitiu ao homem conquistar a terra, dominando a impermeabilidade dos brejos, onde o solo fértil do massapé recebia as mudas de cana e mandioca.

As primeiras grandes obras visando ao aproveitamento do solo para a lavoura, e a facilitar o escoamento das águas, foram empreendidas pelos jesuítas em Santa Cruz, na Baixada de Sepetiba. Parte da fazenda situada quase ao nível do mar era constantemente inundada,

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dificultando o escoamento dos rios Guandu e Gandu-mirim, tornando-a depois do enxugamento, ainda na primeira metade do século XVIII, o celeiro que também abastecia o Rio de Janeiro de mercadorias para exportação.

Expulsos os jesuítas em 1759, a conservação tornou-se precária voltando os campos a se alagar, favorecendo a proliferação das febres palustres com graves conseqüências para a produção da então Fazenda Imperial.

Após a Independência, a prosperidade alcançava o apogeu. Multiplicaram-se as moendas, alastraram-se os rebanhos, cresceram as lavouras. Freguesias humildes ascenderam à dignidade de vilas, transformando-se em empórios de riquezas representadas pelo café, que descia a serra do Mar no lombo das tropas em busca de seu destino. Porto das Caixas, Magé, Estrela e Iguaçu transformaram o recôncavo da Guanabara em uma colméia permanente.

“AS FEBRES DE MACACU”

Sendo a primeira das freguesias criadas no recôncavo, Santo Antônio de Sá tinha seu território estendido por uma vasta extensão de terras, cortadas pelos Rios Macacu, Aguapei-açu, Cassarebu e seus afluentes, da qual se desmembraram mais tarde, as freguesias de Itambí, Itaboraí, Trindade, Maricá e Sernambetiba.

Desenvolvendo uma agricultura de subsistência e de exportação, esses núcleos de povoamento representavam um papel importante no desenvolvimento econômico do Rio de Janeiro, quase sempre localizados à margem dos rios que constituíam a principal via de comunicação, por onde se conduziam “os efeitos da lavoura para a cidade”.

Navegável de sua foz até o porto num percurso de 34 quilômetros, o Rio Macacu continuava servindo ao trânsito da produção de açúcar embalado em caixas, razão pela qual deu o nome ao porto, recebendo também no início do século

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XIX a produção do café dos “sertões de Cantagalo”, exportados para a Corte pelo Rio da Aldeia, afluente do Macacu.

É desse período o início da decadência em virtude das febres palustres que assolavam a região, e ficaram conhecidas como “febres de Macacu”, constituídas da malária, cólera-morbo e febre amarela. Despovoaram-se as fazendas. Vilas e freguesias ficaram desertas ocasionando a falência da produção, que aos poucos vinha definhando desde o início desse século graças às endemias, sem que nenhuma providência fosse tomada.

Moreira Pinto, no seu “Dicionário Geográfico”, registra a Tese do Dr. Antônio Martins de Azevedo Pimentel apresentada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1884 relatando que: “Tornou-se Macacu célebre pela mortífica epidemia de febres paludosas, conhecidas nos anais da medicina sob o título de “febres de Macacu”, a qual se originou em suas margens no princípio de 1830, depois da grande seca dos últimos meses de 1829. Desolou a Vila de Macacu, levou a devastação e a morte a Magé, transpôs a Baia, acometendo o Rio de Janeiro; chegou ao sul, à cidade de Santos e ao norte da Província do Espírito Santo”.

Praticamente durante todo o restante do século XIX o surto diminuía em certos períodos, para voltar mais tarde ceifando vidas. Em 1839, o Presidente da Câmara dessa Vila comunicava ao Governo da Província que as febres palustres “devastavam o Município por falta de socorro”, confirmado três anos depois por Honório Hermeto Carneiro Leão, Presidente da Província, que pedia em seu relatório anual a extinção da Vila: “A vila de Santo Antônio de Sá quase completamente abandonada de habitantes, tendo de ser sujeita a jurisdição do Juiz Municipal de Itaboraí, conviria extinguir-se, reunindo duas de suas freguesias à Vila de Itaboraí e uma a Magé”.

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Apesar de todo o mal causado pelas “febres” à lavoura e ao comércio, seus portos continuavam recebendo através das tropas a produção do café, que descia de Nova Friburgo, Cantagalo e regiões periféricas além da Serra do Mar, destinado à Capital do Império. Recebam também cargas e viajantes com destino serra acima, que chegavam até ao porto transportados em barcos a vapor a partir de 1850, quando estes começaram a trafegar. “havia o comércio de madeira, lenha, carvão, farinha e cereais, procedentes das zonas não alagadas, e com a produção de seus engenhos de açúcar e aguardente, que chegaram a ser, em 1850, em número de 38”.

Atacada por essa “doença endêmica” em 1829 e após um ano de seca “um exame profunctório como permitiam os conhecimentos da época” diz Mattoso Maia Forte, “atribuiu a origem do mal invasor ao costume, em que estavam os moradores da Vila, de se servirem, para beber, da água estagnada de um pântano que havia por trás da povoação, de preferência da água do rio que a banhava. Pouco teria aquela que invejar, em pureza, as águas do Macacu.

Ambas corrompidas, malsãs, nas proximidades da Vila onde os rios chegavam, depois de grande curso, levando detritos vegetais e animais de toda a espécie”.

Segundo um Relatório da Câmara Municipal, em 1836 houve novos surtos assinalando “o aparecimento em alguns indivíduos, de simples febres precedidas de calefrios de curta duração, cedendo com pequeno tratamento”. Entretanto em março já o mal era maior, não atendendo às medicações. E descrevia a sintomatologia: “celfagia hemicrania, delírios, prisão de ventre, língua crostosa...vômitos biliosos e secos. Uma erupção cutânea por todo o corpo do doente, sintoma que era funesto”.

Um apelo dramático feito em 1839 pelo Presidente da Câmara ao Governo provincial, declarava que por falta de

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socorro o “surto endêmico” devastava o município, e que a própria Câmara “deixa de se reunir por que os vereadores haviam sido cometidos de febres, e o próprio médico também estava grandemente enfermo”.

BACIA DO RIO MACACU

Localizado às margens do Rio Macacu, no fundo da Baia de Guanabara, a freguesia de Santo Antônio de Sá facilitava através de seu porto o intercâmbio comercial e cultural com o Mosteiro Franciscano de São Boaventura, abrigando entre “25 a 30 religiosos”, rivalizando com Porto das Caixas, numa febril agitação de embarque e desembarque, tornara-se importante empório comercial da “Velha Província”, recebendo anualmente centenas de caixas de açúcar e tonéis de aguardente.

Em 1855, a epidemia representada pelo cólera morbus chegou à região espalhando-se por toda a província. Multiplicaram-se os túmulos do cemitério local já quase totalmente ocupado anteriormente pelas vítimas das “febres”, obrigando que “os sepultamentos, se fizessem em terrenos pertencentes ao convento de São Boaventura, abandonado e já em princípio de ruínas, o que motivou protestos dos Franciscanos, sendo necessária uma composição entre estes e o Governo Provincial, que os indenizou”.

No relatório da Província do Rio de Janeiro do ano de 1855, encontramos esse relato de abandono feito por Mattoso Maia Forte, em que se encontrava o mosteiro: “Os religiosos Franciscanos possuem na Vila de Sto. Antonio de Sá um convento, sob a invocação de São Boaventura, mas esse convento há muito se acha abandonado e em ruínas. Tinha ele um patrimônio em terras na mesma Vila, as quais estão ocupadas por pessoas que pagam renda aos religiosos do convento da Corte”.

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IMIGRANTES

Em fins de 1820, Santo Antônio de Sá assistiu a uma

das últimas cenas dramáticas da viagem dos primeiros imigrantes destinados à colonização na Província do Rio de Janeiro. Originários da Suíça, do cantão de Fribourg, viajaram para este país centenas de famílias dispostas a “fazer a América”, em direção aos assentamentos de Morro Queimado, mais tarde Nova Friburgo. Durante oitenta dias atravessando o oceano, sofreram na companhia “do enjôo, da diarréia e da morte! Nos sete veleiros que partiram da Holanda, conduzindo de início um total de 2013 passageiros, sucumbiram e tiveram o oceano por túmulo 311 deles”, diz Rafael Luiz de Siqueira Jaccoud em seu livro “Os Colonos”.

Ao desembarcarem no Rio de Janeiro, foram transportados em pequenos barcos até Itamby, “pequeno porto fluvial, próximo à foz do Rio Macacu, onde havia sido improvisado um hospital para receber os colonos doentes”. Em seguida foram transferidos para o convento de São Boaventura na Vila de Santo Antônio de Sá, já sendo desativado, quer pela decadência da construção que ameaçava desabar, quer pelas febres palustres que começavam a fazer suas primeiras vítimas.

Ali o anjo da morte continuou estendendo suas asas “sobre aquela pobre gente durante seis meses. As doenças contraídas na Holanda, a bordo dos navios e na baixada paludosa do Macacu, ainda fizeram várias vítimas. Naquele interregno morreram mais 131 colonos, fora os 35 que foram sepultados na Vila de Macacu, inclusive o padre Joseph Aeby que se afogou no rio quando nele se banhava”, registra Rafael Jacoud

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CÓLERA-MORBO

Surgida no Rio de Janeiro Capital do Império em 1855, trazida pela galera portuguesa “Defensor” e se espalhando para o interior, a epidemia de cólera-morbo ceifou milhares de vidas em sua passagem por essa Província, invadindo as vilas de comércio da Baixada Fluminense. Iguaçu, Estrela, Magé e Sto. Antônio de Sá tiveram seus movimentos comerciais reduzidos com essa tragédia que enlutou lares de ricos fazendeiros e seus escravos. Atingindo no início “quase que exclusivamente aos pretos, cabras, caboclos e pardos”, em breve infectaria indiscriminadamente toda população.

Na Vila de Iguaçu, segundo o relatório apresentado à Assembléia Legislativa pelo presidente da Comissão Sanitária, Dr. Francisco de Paula Cândido, “um escravo empregado na cabotagem entre aquela Vila e esta Corte, em torna-viagem, sentia na altura da Ponta do Galeão - Ilha do Governador – as primeiras ameaças do cólera, e foi morrer ao chegar à Vila. Outros companheiros foram em seguida afetados ...a epidemia declarou-se em diferentes pontos”.

No mesmo Relatório, o Dr. Francisco relata ao “Exmo. Sr. Ministro do Império” sua visita a Vila, descrevendo-a como um “novo teatro de devastação”, e relatando “a grande importância de médicos dedicados e inteligentes, de autoridades que cumprem gloriosos deveres de cidadãos. Os jovens doutores Luiz Alves de Souza Lobo, J. A. Gomes, Saião Lobato, um aluno da Escola de Medicina, o subdelegado Nascimento Faria e numerosos cidadãos da Vila haviam em harmoniosa e exemplar cooperação tomado mui profícuas e acertadas medidas”

Por esse tempo levado ao Iguaçu desta Corte, ou de outros lugares, difundia-se também a epidemia por Macacu, Magé, Marapicú, Jacotinga e Merity”, especialmente nas

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fazendas da Cachoeira (Mesquita) e São Matheus (Nilópolis) ambas do visconde de Bonfim

No início de setembro de 1855, Bento Rodrigues Viana, fazendeiro da Vila, assiste a um de seus escravos “que se torce em dores com os olhos esbugalhados”, ser atingido com o mal que se espalhava por toda a região. “Os grandes casarões de sobrados, os armazéns alpendrados e o colorido das casas já não são palco do reboliço, da agitação nervosa, do estonteante comércio de Iguaçu. Tudo é sossego, tudo é tristeza”. De 11 a 24 daquele mês, 41 escravos morrem atacados de cólera-morbo, diz o Professor Ruy Afrânio Peixoto em seu livro “Imagens Iguaçuanas”.

Apesar do pronto atendimento médico com a chegada também do acadêmico Francisco Potella, acompanhado de “três irmãs da Congregação do Santíssimo Coração de Maria,” só na Vila “de 11 a 24 de setembro, 41 escravos haviam pago com a morte o seu tributo ao mal” diz Mattoso Maia Forte.

A extensão da epidemia trouxe em conseqüência a ameaça de fome, com o abandono do porto e das lavouras fazendo com que o governo imperial providenciasse a remessa de víveres para serem vendidos a preço de custo em todas as freguesias da Baixada, “acompanhado do Dr. Paula Cândido, a fim de verificar a extensão do mal”.

O Dr. Souza Lobo ofereceu sua residência “para nela instalar-se um hospital”. Mobilizaram-se os comerciantes locais se cotizando a favor da pobreza, tendo à frente “o presidente da Câmara Municipal de Iguassú, Ignacio Antônio de Souza Amaral”.

A chegada a São Matheus e Cachoeira do então acadêmico de medicina Luiz de Queiroz Mattoso Maia, “onde ocorreram 51 casos, sendo 21 graves além de nove mortos” veio minorar o sofrimento daquela gente. Mesmo assim, registrou-se em todo o município “338 casos, dos quais 121 fatais”.

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Nessas fazendas, os mortos foram sepultados no cemitério junto à capela São Matheus (Nilópolis), “devido a quantidade e por serem escravos, foram sepultados em grupos, em grandes valas, envoltos apenas por uma mortalha bastante parecida com sacos de estopa, de cor roxa, conforme pesquisa arqueológica de 1987”, diz Marcus Monteiro em seu livro “A Fazenda São Matheus”.

Nessa ocasião foram registrados em Meriti e Jacutinga “mais de 64 óbitos” e em Marapicu “mais 46”, todos vitimados pelo cólera. Segundo o Dr. Couto Ferraz “foi nos barcos e margens dos rios onde primeiro fez explosão a moléstia. A esclarecedora dedicação das autoridades, o exemplar comportamento dos médicos, e a rigorosa execução das medidas tomadas para extinguir o excitador epidêmico, acabou ali repentinamente com a mais ameaçadora calamidade. O rio entretanto foi o caminho”.

No porto de Iguaçu diminuiu a navegação. Barcos vazios balançavam ao sabor das àguas enquanto os trapiches estavam abarrotados de café, “acumulando-se mais de 30.000 arrobas”. A ausência do braço escravo devido às mortes ou doenças fez-se sentir durante o resto daquele aquele ano. No porto dos saveiros a epidemia “acometera dois terços dos escravos empregados no serviço fluvial”, segundo Maia Forte.

VARÍOLA

No dia 28 de novembro de 1882, o subdelegado de polícia de Jacutinga notificava a Câmara que haviam surgido os primeiros casos de varíola em seu distrito, solicitando na mesma nota que “os variolosos sejam tratados em uma casa longe da povoação, com os recursos necessários. O livro da Câmara Municipal de Iguassú do dia 24 de setembro de 1883, segundo Waldick Pereira, assinala que as verbas votadas no ano 1878 foram “insuficientes para o socorro

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aos indigentes atacados de varíola”, e o mal voltava novamente a se alastrar.

A carência de socorro fez com que o Ministério do Império autorizasse a despesa “com os variolosos até a quantia de 1.000,000” recomendando “a mais severa economia nessas despesas”; no ano de 1884 com o fantasma da varíola presente em toda a extensão do município, ocasionando um apelo da Junta do 1º. Distrito “No intuito de impedir que a invasão da terrível enfermidade que está assolando em ponto não muito distante providenciasse a imediata remoção dos presos que se encontravam na cadeia e a continuação assídua de desinfetantes”.

O mesmo pedido assinalava ainda uma “ordem terminante ao médico da Câmara para comparecer diariamente nesta cidade onde aconselhará o que for conveniente”, autorizando a “obtenção de uma casa que sirva para isolar-se pessoas atacadas do mal, se porventura tivesse a desgraça de vir aqui a terrível peste”.

Atendendo às exigências da Câmara, os fiscais tomaram as providências necessárias ordenando a todos os moradores que “caiassem suas casas interna e externamente removendo o lixo dos quintais, e por conta da Câmara, o das ruas e praças para pontos distantes e em seguida incinerados”. Ordenava também que “comprasse barricas de alcatrão para serem queimados na rua”.

Para atender as pessoas pobres que eram maioria, a Câmara fez contratar os serviços do Dr. Bernardo Xavier Rabelo mediante gratificação como forma de pagamento “até que se vote o orçamento”.

As medidas profiláticas se arrastaram durante os anos seguintes, até que em dezembro de 1895 uma providência mais eficaz de combate à varíola se efetuasse em Meriti “quando José Manoel de Santa Rita, farmacêutico e juiz de paz naquele distrito comunicava haver aplicado em 113 pessoas os seis tubos de “lympha” enviados pela Câmara, e

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21 particularmente pelo dr. Presidente e não haver caso algum de varíola no distrito”.

As remessas de “lympha” continuaram a ser enviadas para esse distrito e “acusadas como recebidas” no início de 1889, a maioria pela iniciativa da Diretoria de Assistência Pública do Estado. Destinadas ao lazareto instalado ali desde 1895, distribuiu-se também por toda a região de “Maxambomba e Riachão”.

Com a desistência da maioria dos médicos que eram nomeados para o serviço de “consulta e profilaxia” apesar da remuneração tentadora, um médico sobressaiu em sua tarefa: o Dr. Heitor Murat. Indicado “para prestar serviços mediante a gratificação mensal de cem mil reis (100$000), estabeleceu um consultório em Maxambomba com designação de dia e hora e atender os chamados de qualquer parte”.

No último ano do século XIX o surto de varíola estava controlado, e o dr. Murat “dispensado dos seus serviços médicos por não haver necessidade deles”, confirmado pela Junta Distrital de Iguaçu anunciando “Ter-se extinguido completamente a varíola” e pedindo o reembolso das despesas “despendidos com os lazaretos de Salto d’Agua e Cachoeira”.

MALÁRIA

Os surtos endêmicos da malária iam e vinham em ondas acompanhando as grandes chuvas seguidas de estiagem.

No ano de 1897, segundo registro de Waldick, Pereira, o mal

voltou tão forte que durante a construção de pontes no distrito

de Pilar as obras foram paralisadas ”visto a epidemia de febres

ter obrigado o pessoal a abandonar o trabalho”. Dando prosseguimento ao trabalho de minorar a

doença, foi nomeada “uma Comissão especial de hygiene para em cada distrito proceder ao exame dos quintaes”,

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distribuídas nos seguintes distritos: Marapicu, Merití e Jacutinga, “não sendo nomeada para o Distrito de Pilar, por estar vago o cargo de vereador distrital”, e Palmeiras, “por não haver povoação”.

Segundo a Comissão, as chácaras e os quintais de

maxambomba “com honrosas exceções, encontramos absoluta

falta de hygiene, tal é a aglomeração de lixo, matérias deletérias,

provenientes em quase totalidade de pequenas valas sem o

indispensável asseio, o que é fácil de vencer-se, se os

respectivos moradores quiserem se compenetrar, de que um

pequeno serviço de pedreiro, lhes dará um meio de trazerem

sempre limpas as dependências de suas casas”.

PESTE BUBONICA

Em 1899, junto com a República chegava ao Rio de Janeiro a epidemia de peste bubônica, espalhando-se pela

Baixada Fluminense. Essa mesma Comissão deixou registrado:

“Encontramos logo órfãos e viuvas deixado pelo cólera, varíola

e malária”, acrescentando que um novo alarma era dado: “a

peste bubônica assolava Santos e a Capital Federal”.

A Comissão aconselhava ao Governo obrigar a

população para a “profilaxia da peste”, acrescentar às

“construções das casas, um assoalho de concreto ou

asfalto a fim de isolar da contaminação feita pelos ratos”,

naturalmente evitando o uso de porões, tão em moda nas

casas de alvenaria.

A Câmara de Iguaçu adiantou-se em desfazer o mal

que se anunciava “votando uma verba de 300$00 Rs”, a ser

distribuída por todas as pessoas que apresentarem ao fiscal

do Distrito, nas respectivas sedes, os cadáveres desses

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animais, a razão de 100 Réis cada um, os animais referidos

eram ratos”, diz Waldick Pereira.

FREGUESIA DE N. S. DO PILAR

Ponto de referência para a partida e chegada através do “Caminho Novo das Minas”, aberto por Garcia Pais em 1704, Pilar conheceu momentos de opulência econômica com a ampliação de seu porto, recebendo e despachando embarcações que escoavam produtos agrícolas e riquezas minerais, merecendo cuidados especiais em seu controle, tendo a Corte mandado construir ali, um “registro” para fiscalização dos “quintos”.

Os engenhos de cana de açúcar e aguardente dominavam a região. Liderados pelo capitão Luciano Gomes Ribeiro “que todos os anos faz 40 caixas de açúcar, entre branco e mascavo, e 17 pipas de aguardente, ocupando 74 escravos”. Seguiam-se mais três engenhos: o de Matheus Chaves e dos capitães Pedro Gomes de Assunção e João Carvalho de Barros, produzindo aguardente e “16.274 alqueires de farinha”.

“Em 1789”, diz Mattoso Maia Forte, “o povoado do Pilar contava com 3.895 habitantes sendo 2727 livres e 1168 escravos, apresentando assim, maior densidade demográfica em relação aos demais distritos constituídos por Piedade de Iguassú, Jacutinga, Marapicu e Meriti”. Segundo também o mestre de campo Fernando Dias Pais Leme, no final do século XVIII “a Freguesia de N Sra. do Pilar contava com 283 fogos”(casas).

O início da decadência deu-se ainda no período da regência, “para depois enterrar todo o seu opulento passado, agravado com a insalubridade de suas terras, nas quais reina endemicamente desde 1833 o impaludismo”, diz Noronha Santos. Com o desmatamento, o assoreamento dos rios fez-se presente, formando pantanais causadores de febres palustres que ceifaram centenas de vítimas.

Espalhando-se pela bacia hidrográfica do Iguaçu, “as

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febres intermitentes, vulgarmente chamadas de Macacu, atingiram centenas de vítimas nas freguesias de Irajá, Iguaçu e Pilar, notadamente nesse arraial que era dos mais prósperos e contava maior população”.

Apesar da desobstrução dos rios e a abertura de canaletas para dessecamento do solo diminuindo os “miasmas da terra”, grande parte dos moradores mais abastados se afastaram para as serras, considerada até então as mais salubres. No cemitério da velha matriz “onde se faziam os sepultamentos, foi naquele ano interditado, proibindo-se a abertura de novas catacumbas”.

Pertencente à Vila de Iguaçu conforme o Ato de sua criação em 1833, passou-se para Vila da Estrela em 1846. Com a extinção desta, volta ao termo de Iguaçu em 1892, junto com a freguesia de N Sra. da Piedade do Inhomirim.

Em um fragmento de jornal, encontramos o depoimento do escritor Magalhães Corrêa registrando um passeio feito a esse distrito em 1936, dizendo que em volta da igreja, caiada de branco “como uma garça pousada, casas assobradadas em ruínas e outras em terrenos desabitados resistiam ao abraço mortal das figueiras centenárias”.

Outrora morada de José Pedro da Motta Saião, à o barão do Pilar, filiado a Irmandade da igreja e rico proprietário de portos, barcos e fazendas, deixava para o esquecimento os últimos vestígios de uma época faustosa, onde o alarido constante dos tropeiros anunciavam a nobiliarquia que se formava, saboreando a riqueza do café.

O ocaso da monarquia desfez o que restou da opulência do recôncavo e da aristocracia rural que a explorava. A lei áurea desmantelou a organização agrícola, eliminando o trabalho escravo na limpeza dos rios e córregos, ocupados por extensos lençóis de vegetação aquática que os obstruíam, transformando a planície em pântanos e lodaçais.

As construções das estradas de ferro e de rodagem, concentrando aterro em suas vias, transformaram-se em longas barragens por falta de escoamento, agravado por estreitas pontes sobre córregos que entupiam em dias de chuva, ampliando-se as áreas de alagamento. Depois de um

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longo ciclo de esplendor, a República veio encontrar a Baixada

Fluminense em pleno estado de abandono e insalubridade.

MANTIQUEIRA

No inverno de 1912, um repórter da “Gazeta de Notícias”, tradicional jornal que circulava no Rio de Janeiro, visitou a região da Mantiqueira, último baluarte a ser vencido na guerra de abastecimento das águas para a Capital, e deixou registrado o sofrimento de centenas de trabalhadores e dirigentes, atacados pelas febres palustres que grassavam naquele território.

Atravessando o Rio Iguassú, o repórter anota a presença de imensos pântanos a margear os trilhos, resultado da devastação sofrida durante séculos de exploração. “Às 4:40 o lastro chegou ao lugar denominado ponta dos trilhos, quilometro 27”.

Em Mantiqueira, posto central do imenso exército de operários que trabalhava na serra, registrou: “uma centena de ranchos de sapé dispostos sem simetria”. Em um armazém onde os trabalhadores faziam compras “e o proprietário deve enriquecer antes de nós termos água”, dirigido por “um tal, seu Peixoto”. “Os operários sem dinheiro, compram ali pelo sistema de vales ao portador assinados pelo chefe da turma. O troco é dado por meio de fichas, que só tem valor na mesma casa”.

Em frente ao armazém, um grande barracão coberto de sapé servia de hospital, onde encontramos um médico sanitarista já famoso trabalhando no “Serviço de Saúde Pública”: o Dr. Carlos Chagas, junto com o Dr. Arthur Neiva “a cargo dos quais está a profilaxia da febre palustre”. Construído para abrigar 40 enfermos, só contava com 12 leitos. “Inaugurado no dia 20 de março, quarenta dias depois, isto é, no dia 30 de abril, tinham dado entrada nesse

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barracão necessário 119 enfermos, todos, absolutamente todos, de febre palustre”.

Dos mais de mil homens contratados para captarem água na serra do Mantiqueira, mais de uma centena lutava para salvar a vida, vítimas dos desmatamentos que transformaram charcos e pantanais no celeiro da febre amarela. Recolhidos ao “hospital”, com o número reduzido de leitos, o repórter deve ter visto homens semimortos envolvidos em lençóis deitados no solo. “Olhando as janelas, tapadas de telas de arame, para evitar a entrada dos mosquitos, verdadeiros enxames pelo ar”.

“O volume de água captado é de 150 milhões de litros... acham-se nesse serviço 1400 operários distribuídos da maneira seguinte: 500 operários para a construção da João Pinto, que dista 6 kilômetros do Mantiquira, sob a direção dos Drs. Lima e Silva e Gonçalves Novaes; 300 operários para a canalização das águas, sob a direção do Dr. Borges Fortes; 500 operários em Mantiqueira, Galrão e Mato grosso sob a direção dos Drs. Galdino Faria e Imbuzeiro. O chefe do prolongamento da estrada até o quilometro 37 é o Dr. João Silva, ao cargo dos qual estão as obras de arte da estrada”.

O repórter, obrigado a pernoitar no acampamento por

falta de transporte registrou: “foram armadas em frente de cada

tenda, grandes fogueiras para espantar os mosquitos,

verdadeiras nuvens de pernilongos”. De onde estava observa o

paredão da Serra dos Órgãos “tocado ao luar o negro áspero da

serra, nós estávamos nas fraldas dos Órgãos, a pegar entre os

horrores da morte, a água para a civilização”. No delírio da febre, alguns gritavam vozes

desconexas, que agrediam o silêncio do “hospital”, a poucos metros de onde estavam acampados: “- jacarés! Há muitos jacarés! Vivem nos charcos os jacarés.. Os jacarés e os mosquitos nesta terra nascem dos pauis como o capim na terra, e eu tenho medo dos jacarés”.

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Nossa homenagem a esses trabalhadores anônimos, e ao repórter da “Gazeta de Notícias”, que em 1912 transitou pela história, deixando registrado para a posteridade, o único depoimento que temos notícia em forma de reportagem, hoje transformado em um fragmento de jornal. Descreveu a desdita desses homens em frangalhos. Mortos-vivos perdidos na imensidão da serra, desafiando a morte na captação de água potável tão necessário à vida. Relatou a epopéia da luta de conquista do solo na Baixada Fluminense, em busca de melhores condições sociais, e nos orgulharmos hoje de transmitir esse conhecimento às novas gerações.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROS, Ney Alberto Gonçalves – “Estrada de Ferro Rio D’Ouro” Apostila – 1999 – RJ JACCOUD, Rafael Luiz de Siqueira – “Os Colonos” – Múltipla Cultural Nova Friburgo, 2001 - RJ MAIA FORTE, José Mattoso – “Memória da Fundação de Iguaçu” Tip. Jornal do Comércio – 1933 - RJ MAIA FORTE, José Mattoso – “Vilas Fluminenses Desaparecidas” Prefeitura Municipal de Itaboraí - 1984 MONTEIRO, MARCUS – “A Fazenda São Matheus” - Ed. Autor – 1987 GAZETA DE NOTÍCIAS – (Recortes) RJ- 1912 GERSON, Brasil – “O Ouro, o Café e o Rio” Editora Brasiliana, 1970 – Rio GÓES, Hildebrando de Araújo – “Relatório da Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense” – 1934 -RJ PEIXOTO, Ruy Afrânio – Imagens Iguaçuanas Edição do autor - PEREIRA, Waldick – “Endemias em Iguaçu” In. Revista News, Ano II, N. 15 - 1970 RJ RIO DE JANEIRO – “Relatório da Província” - Pres. Luiz Antônio Barboza Niterói – RJ – 1855 SANTOS, Noronha – “Crônicas da Cidade do Rio de Janeiro” Livraria Padrão – 1981 - RJ VASCONCELOS, Max – “Vias Brasileiras de Comunicação” Imprensa Nacional – 1935 – RJ

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ENGENHO GERICINÓ

Pertencente à freguesia de São João Baptista de Meriti, e relacionado na estatística realizada no Rio de Janeiro durante o governo do marquês de Lavradio entre os anos de 1769 e 1779, o engenho de açúcar da fazenda Gericinó ou (Jerexinó) era propriedade de D. Maria de Andrade que, com seus 37 escravos, produzia 7 caixas de açúcar e 2 pipas de aguardente.

Situado na serra que deu origem a seu nome, esse engenho fazia parte da grande sesmaria doada a Braz Cubas, provedor da Fazenda Real em 1568, de “3.000 braças de testada pela costa do mar, e 9.000 de fundos, pelo Rio Meriti, correndo pela piassaba da aldeia de Jacotinga”.

Grandes latifúndios conforme o de Christovão de Barros, governador do Rio de Janeiro e “comandante das três naus que Portugal enviou em auxílio à Mem de Sá”, também recebeu imensas doações de terras na região de Magé, sendo posteriormente retalhadas e transformadas em fazendas, para atender à crescente população da cidade, no abastecimento de víveres: açúcar, cereais, frutas, farinha de mandioca, aguardente etc.

Sua história se inicia com as terras recebidas com os sobejos que se formaram “entre o Engenho na Pavuna (ou Pabuna) e Gericinó por José Pereira Sarmento em 1680”, anexando ainda uma fração de terra, doada em 1603 ao vigário Martins Fernandes.

Solo rico e humoso, o colonizador venceu as intempéries e os pântanos para plantar aqui, na Baixada Fluminense, um “cinturão verde”, que durante três séculos, contribuiu de modo significativo com o longo ciclo econômico da cana de açúcar.

Estendendo-se da Baia de Guanabara até a serra, diz Mattoso Maia Forte, “havia magníficos engenhos de açúcar

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e aguardente, servido por numerosa escravatura com esplêndidas residências, entre eles o da Covanca, Pavuna, São Matheus, Palmeiras e Gericinó”.

Ao situar-mos esta fazenda ao pé da Serra de Gericinó, vamos encontrá-la na carta topográfica da Capitania do Rio de Janeiro “Feita por ordem do Conde da Cunha, Capitão General e Vice Rey do Estado do Brasil, por Manoel Vieira Leão, Sargento Mor e Governador da Fortaleza do Castelo de São Sebastião da Cidade do Rio de Janeiro em o ano de 1767”, início de uma série de engenhos que se estendiam nas fraldas desta serra, a partir das nascentes do Rio Pavuna, e que segundo monsenhor Pizarro, nascia “entre charcos e pantanais” existentes “entre as fazendas do Retiro e Gericinó”, seguindo-se o de São Matheus (hoje parte de Nilópolis), da Cachoeira ou “Caxueira” (Mesquita) e Machambomba (Nova Iguaçu).

Após o domínio de d. Maria de Andrade, vamos descobrir o engenho de Gericinó, segundo Maia Forte, nas mãos do visconde de Barbacena, Felisberto Caldeira Brant, revelando durante sua gestão uma visão mais ampla das atividades desse engenho.

O marquês de Barbacena, Felisberto Caldeira Brant, neto de Felisberto Caldeira Brant, contratador de diamantes em São João d’El-Rei, era filho de Gregorio Caldeira Brant e d. Anna Francisca de Oliveira Horta ambos de Minas Gerais, cujo consórcio geraram o marquês e seu irmão Ildefonso Caldeira Brant, o visconde de Gericinó.

Este não deixou descendente, mas o marquês casou-se com D. Anna Constança de Souza Menezes Cardoso, natural da Bahia, e tiveram três filhos: Dona Anna Constança Caldeira Brant, Pedro Caldeira Brant, o conde de Iguassú, que, se casou com d.. Cecília Rosa de Araujo Vahia, filha dos condes de Sarapuhí e, tendo enviuvado, casou-se com D. Maria Isabel de Bragança, filha de D. Pedro I com a marquesa de Santos, e finalmente o “nosso” viconde

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de Barbacena Felisberto Caldeira Brant possuia nessa

região “uma área de 18,7km2”. Nos registros de uma data de terra em 1854,

pertencentes ao Padre Inácio Coelho Borges e seus irmãos, com 180 braças de frente e 1500 nos fundos, “no lugar chamado engenhoca”, vamos encontrar essas terras, “ao norte com a fazenda Gericinó, ao sul com as terras realengas, a leste com a fazenda do Engenho Novo da Piedade, e a oeste com as terras de Eugênia Theodoro de Araujo. Dona Eugênia era “senhora e possuidora” de uma data de terras com 60 braças de frente e 1500 de fundos herdada de seu pai, o Alferes Joaquim Alves de Araujo”. Seria esta senhora herdeira do engenho da “Caxueira”, hoje em Mesquita, e deixada na lembrança de suas águas formadoras do Rio Sarapuí, o canal Dona Eugênia?.

Segundo Noronha Santos, a fazenda Gericinó possuía “vastas pastagens, muitas qualidades de madeiras, confortável casa de moradia e na Serra do Gericinó uma cachoeira. D. Pedro I costumava frequentá-la, e vimos há tempos uma carta que lhe dirigiu o primeiro marquês de Barbacena sobre o projeto de viagem ao local e providencias dadas por Antonio Félix. Este Antonio Felix, de que trata o documento guardado no Arquivo Municipal, foi de certo o progenitor do comendador e capitão Antonio Félix Cabral e Mello, proprietário da fazenda do Cabral”.

CONTRATO

Ao consultar os registros provenientes do arquivo publicado pelos Anais da Biblioteca Nacional, vol. 108, encontramos através do arrolamento de seus bens, parte do patrimônio existente nesta fazenda, através de um contrato com validade de 6 anos, feito entre o visconde, como dono da fazenda de Gericinó e Geraldo Antônio Pimentel, na

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qualidade de administrador, no ano de 1860. Esse contrato demonstra que o visconde, ao fazer uma viagem para fora do Brasil, nomeia para administrador o sr. Pimentel, deixando como seus procuradores o cunhado, sr. visconde de Barbacena e seu sobrinho, sr. capitão José Tomas de Almeida Pereira Valente.

Além do engenho “moente e corrente”, foram arrolados noventa e quatro escravos de ambos os sexos, noventa cabeças de gado vacum, trinta e seis ovelhas, três cavalos e mulas, obrigando-se o contratante a pagar ao contratador o valor de 10% sobre o faturamento líquido durante um ano.

À firma José Antônio Pinheiro Bastos & Cia., estabelecida

à Rua das Violas n. 2, na Cidade do Rio de Janeiro, “deixa

ordens” para abastecer a fazenda com “mantimentos, ferragens,

remédios, pano de algodão, baeta, mantos, e tudo aquilo que for

preciso para seu custeio”, ficando também encarregado de

pagar aos “empregados assalariados”. O contrato previa ainda que, se por fatalidade, “um

surto de cólera atacar os escravos”, ou o “mal do gado”, “que Deus tal não permita”, o visconde levaria em consideração esta calamidade no reajuste anual com o sr. Pimentel, obrigando entretanto o administrador a tratar a escravatura, “o melhor que puder” e usar uma rígida disciplina, para evitar perdas “devidas e fugidas”.

ESCRAVOS

Ao arrolar o patrimônio referente aos cativos, ao gado e demais criações, vemos que os bens do visconde eram opulentos para os padrões da época, especialmente na Baixada Fluminense onde proliferavam os pequenos engenhos de açúcar, e engenhocas produtoras de aguardente, cujo número de escravos não passava de quarenta. Com um plantel de 94 escravos, e mais

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trabalhadores assalariados, podemos ter uma idéia da grande atividade econômica que esta fazenda desenvolvia

na região. Possuindo uma área de 18.7km2, “para esse engenho já eram alugados, em 1862, escravos da Fazenda Santa Cruz”.

Antes de comentar o contrato que temos em mãos, queremos lembrar que a situação do escravo no início do século XIX representava aproximadamente 50% da população brasileira, na segunda metade diminuía para 16 %, e em 1888, ano da abolição, apenas 5 %.

No final do século XVIII, a produção mineradora encontrava-se em total declínio e os grandes produtores de açúcar voltam-se para o plantio do café. Com o mercado consumidor em expansão na Europa e nos Estados Unidos, a elite escravocrata brasileira da região sudeste investiu nesse novo produto que exigia apenas terra e mão de obra desqualificada, representada pelos cativos, transformodo em altos rendimentos.

Apesar da pressão inglesa para a extinção do tráfico à partir de 1810, interessada em substituir o trabalho escravo pelo trabalho livre, criando assim um mercado consumidor para seus produtos industrializados, o governo brasileiro deu pouca atenção a essas exigências. O trabalho escravo era mais lucrativo e a longa herança cultural escravocrata era aceita como instituição nacional.

Considerado pirataria, qualquer navio encontrado que transportasse cativos para o Brasil, a Lei Bill Aberdeen votado pelo Parlamento inglês em 1845, trouxe conseqüências desastrosas para esse comércio. À partir de então, o valor dos escravos subiu de preço a cada ano, premido também pela necessidade de atender a expansão das lavouras cafeeiras, e agravado pela Lei Eusébio de Queiroz, que a partir de 1850 extinguiu definitivamente o tráfico internacional de escravos.

O valor de um escravo do sexo masculino, com idade

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entre 15 a 30 anos, passou a valer a partir dessa lei entre 500 a

600 mil réis. Dez anos mais tarde, como veremos na relação de

escravos pertencentes ao visconde, esse valor oscilava entre

1500 e 2000 contos de réis, dependendo da idade e profissão. A possibilidade de empregar mão de obra livre

encontrou forte resistência, entretanto, sem opção para atender

à produção nos engenhos e lavouras, o fazendeiro foi buscar

nos escravos alforriados, mulatos, índios e brancos pobres, a

opção de dar continuidade à produção como assalariados,

sendo a eles destinados as tarefas mais perigosas, onde seu

afastamento por acidente ou morte, minimizaria o prejuízo,

resguardando o escravo por seu valor. As regiões do país que apresentavam uma economia

em decadência, como o nordeste açucareiro ou o sudeste minerador, após a Lei Eusébio de Queiróz contribuíram para o tráfico interno, vendendo para as lavouras de café, a mão de obra escrava ociosa, o que não ajudou diminuir o preço do escravo em contínua ascensão.

Voltando a comentar o contrato feito pelo visconde de Santo Amaro que temos em mãos, especialmente em relação ao preço dos escravos, vemos que este valor dependia da idade, e sua profissão. As “crias”, ao alcançar o primeiro ano de vida, eram cotadas em 100 mil réis, e assim iam dobrando a cada ano.

Os diversos ofícios vão desfilando diante dos nossos olhos, assim como a idade, acompanhados dos respectivos valores. Enfadonho seria citar todos os 94 nomes, idades e suas profissões, detendo-nos apenas nos cativos que mais nos chamaram a atenção.

Entre os escravos de maior valor temos Zacarias, 25 anos com a profissão de “carreiro falquejador”(carpinteiro), cujo preço alcançava a quantia de 2.000$000. Segue-se na relação em ordem decrescente uma mulher: Justiniana, com a idade de 18 anos, dominando os ofícios de costureira e “roça”, cotada em 1.800$000. Augusta, 24 anos, “mucama,

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cozinha, lava”: 1.800$00. E assim os valores vêm decrescendo de acordo com a atividade produtora e, a partir dos 30 anos quando a força de trabalho já não correspondia à expectativa do rendimento, pois a duração média de vida era de 50 anos. Romana, 24 anos, “faz manteiga e queijos”, 1.700$00. Manoel Nagô, com a mesma profissão de Zacarias: falquejador (carpinteiro) e serrador, alcançava apenas o valor de 500$00, em conseqüência, talvez, da idade de 40 anos. Bernardo de 12 anos “campeiro”, devia ser vigia e tocador de gado, valia 800$00.

Os servos envelheciam prematuramente devido à rudeza do trabalho. Expostos diariamente às intempéries do campo e subalimentados, contraiam freqüentemente doenças que os deixavam com seqüelas. Encontramos aqui Josefa Mina, com a idade de 50 anos, destinada ao “serviço do paiol”, sem cotação de preço, pois era cega. José Maria, 50 anos, “serviço do paiol”, cego. Domingos, “penhor e fole”, 45 anos, cego. Antonia, com idade desconhecida, pois a relação menciona apenas, “velha”, sem cotação, se refere apenas a sua atividade: “criadeira de perús”.

A Lei dos Sexagenários, só votada em 1885, às portas da Abolição, é mais uma página de crueldade gerada pela elite escravocrata do que um benefício. Concedia a libertação de todos os escravos com mais de sessenta anos, devendo estes trabalharem mais três anos, ou pagar em uma indenização a seus senhores de 100 mil réis. Nessa idade, mesmo liberto, cansado e doente, não teria condições de sustentar-se fora da fazenda, onde deixara toda sua vida. Nessa época o insuspeito Rui Barbosa escrevia: “O velho cativo, pela debilidade do corpo enfermo, pela tendência irresistível de costumes inveterados, por laços de família, pelas infinitas relações impalpáveis que afeiçoam a velhice à terra... está preso à fazenda onde encaneceu. Em regra, portanto, o liberto sexagenário, não deixa nem deixará a casa do senhor”.

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Além dos cativos citados no relatório, o visconde relaciona um grande número de bois de carro, gado, carneiros, animais de montaria e carga, formas de barro e de madeira para açúcar, pipas para transporte de aguardente, balsas, enxadas, machados peças de carpinteiro, mesas de jogo, quadro de santos, relógio, louças etc. Deixa também para cobrança, sob a responsabilidade do administrador, o aluguel “dos pretos que andam trabalhando na estrada de Iguassú” a soldo do Governo da Província: “sendo os cabouqueiros a 24$000 e os outros a 15$000 por mês, cuja cobrança deve-se realizar logo que o Governo Provincial, efetive o pagamento”.

Segundo Noronha Santos, parte do local em que existiu a fazenda de Gericinó é hoje propriedade do Exército, que o adquiriu em 1907 a Alexandrino Pires Coelho por 600 contos de réis, destinando-a juntamente com a de Sapopemba (Deodoro), incluída na compra, “para a construção de uma Vila Militar e um campo de treinamento”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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