TOLENTINO, Célia a. Ferreira. Canudos No Cinema e as Metáforas Da Nacionalidade

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35 Célia A. Ferreira Tolentino Canudos no cinema e as metáforas da nacionalidade Walnice Galvão, estudiosa da obra de Euclides da Cunha, observa em As formas do falso que “o homem do sertão sempre impôs dificuldades à consciência urbana e civilizada que sobre ele se debruça a fim de estudá-lo. A perplexidade de Euclides da Cunha, um exemplo, vinca Os Sertões do começo ao fim, numa trama de expressões ambíguas e antíteses marcantes.” (Galvão, 1986: 18-19). Segundo Galvão, o escritor dessa obra se divide entre o que entende ser o sertanejo “em geral, como tipo humano” e o sertanejo real. À visão idealizada corresponde a definição de que o sertanejo, é, antes de tudo, um forte. Ao homem real, ou com existência histórica, para usar os termos de Galvão, “essa admiração aparece mesclada de repulsa”. Esses dois aspectos ocupam lugar nos corações e mentes do país desde 1897, ano em que Canudos oferece matéria de primeira página para os jornais de todo o Brasil, como esta mesma autora aponta em sua pesquisa publicada em No calor da hora (1974). Os estudiosos da literatura brasileira demonstram que, finda a Campanha de Canudos, o tema da guerra santa é reclamado para dar substância a diferentes projetos literários e políticos, revelando o sentimento contraditório que o povo de Antônio Conselheiro provocava nos contemporâneos. Canudos construía a metáfora da nacionalidade para o monarquista Afonso Arinos, a da nossa vendéia para os adeptos da recém-inaugurada República –cujos cérebros pensavam e às vezes escreviam em francês–, e não faltou quem a visse como o germen de uma comuna socialista, como Fábio Luz com o romance O ideólogo, publicado em 1903 (cf. Martins, 1978: 220). Canudos serviria ainda para afirmar a modernidade da capital federal contra Os Sertões do Brasil, mas ao mesmo tempo para oferecer elementos “autóctones” para a afirmação

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TOLENTINO, Célia a. Ferreira. Canudos No Cinema e as Metáforas Da Nacionalidade

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    Clia A. Ferreira Tolentino

    Canudos no cinema e as metforas da nacionalidade

    Walnice Galvo, estudiosa da obra de Euclides da Cunha, observa em As formas do falso que o homem do serto sempre imps dificuldades conscincia urbana e civilizada que sobre ele se debrua a fim de estud-lo. A perplexidade de Euclides da Cunha, um exemplo, vinca Os Sertes do comeo ao fim, numa trama de expresses ambguas e antteses marcantes. (Galvo, 1986: 18-19). Segundo Galvo, o escritor dessa obra se divide entre o que entende ser o sertanejo em geral, como tipo humano e o sertanejo real. viso idealizada corresponde a definio de que o sertanejo, , antes de tudo, um forte. Ao homem real, ou com existncia histrica, para usar os termos de Galvo, essa admirao aparece mesclada de repulsa. Esses dois aspectos ocupam lugar nos coraes e mentes do pas desde 1897, ano em que Canudos oferece matria de primeira pgina para os jornais de todo o Brasil, como esta mesma autora aponta em sua pesquisa publicada em No calor da hora (1974).

    Os estudiosos da literatura brasileira demonstram que, finda a Campanha de Canudos, o tema da guerra santa reclamado para dar substncia a diferentes projetos literrios e polticos, revelando o sentimento contraditrio que o povo de Antnio Conselheiro provocava nos contemporneos. Canudos construa a metfora da nacionalidade para o monarquista Afonso Arinos, a da nossa vendia para os adeptos da recm-inaugurada Repblica cujos crebros pensavam e s vezes escreviam em francs, e no faltou quem a visse como o germen de uma comuna socialista, como Fbio Luz com o romance O idelogo, publicado em 1903 (cf. Martins, 1978: 220). Canudos serviria ainda para afirmar a modernidade da capital federal contra Os Sertes do Brasil, mas ao mesmo tempo para oferecer elementos autctones para a afirmao

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    da nacionalidade brasileira, da raa mestia, em oposio influncia estrangeira. Mas nada se compara ao xito do relato de Euclides da Cunha com Os Sertes, que parecia emprestar substncia no somente literatura nacional, mas tambm, e sobretudo, construo de uma identidade nacional, eterna busca, sempre acentuada em perodos de importantes transformaes como nas ltimas dcadas do nosso sculo XIX.

    O grande legado de Euclides da Cunha para a memria nacional, entretanto, a idia de que o serto, com suas condies inspitas, produzira um homem semibrbaro, forte mas desengonado, cuja imagem o autor sintetizaria em um Hrcules/Quasmodo. Ncleo de nossa raa em estado puro e no aperfeioado pela evoluo, este sujeito bruto seria pleno do estgio mstico que lhe renderia um fanatismo desmesurado:

    O crculo estreito da atividade remorou-lhe o aperfeioamento psquico. Est na fase religiosa de um monotesmo incompreendido, eivado de misticismo extravagante, em que se rebate o fetichismo do ndio e do africano. o homem primitivo, audacioso e forte, mas ao mesmo tempo crdulo, deixando-se facilmente arrebatar pelas supersties mais absurdas (Cunha: 1987: 113-4).

    O sertanejo, portanto, seria o ncleo original de nossa identidade, mas tambm a parte menos desenvolvida dessa mesma raa mestia, conformada pela miscigenao de ndio, portugus e negro, qual sobraria fora fsica e faltaria a fora moral e psquica. Ao contrrio dos homens do litoral, que, mais frgeis, estavam plenos de elementos de uma civilizao importada (Cunha, 1987: 477).

    Em consonncia com as idias naturalistas e positivistas de sua poca, o pensamento de Euclides reverbera tambm na inteligncia nacional de muitas dcadas seguintes, chegando mesmo a contribuir para a composio de uma espcie de imaginrio, do qual muito se alimenta nossa arte cinematogrfica.

    O cinema brasileiro ainda no nos brindou, com a saga de Canudos propriamente dita, uma promessa que dever cumprir-se neste ano de 1997. Entretanto, o sertanejo na condio de jaguno, messinico ou cangaceiro recebeu a mais destacada ateno da stima arte brasileira e, como tentaremos demonstrar, a partir de idias e questes que nos foram legadas desde o sculo passado. Estas se repetem na filmografia nacional como se apresentaram para

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    a literatura de cem anos atrs, com a condio de legitimar os mais distintos projetos.

    Examinemos o tema a partir de O Cangaceiro de 1953, dirigido por Lima Barreto, onde a idia herdada a respeito de Canudos reverbera na forma da abordagem que o cineasta faz do sertanejo e do serto em oposio ao mundo urbano, em Deus e o Diabo na Terra do Sol, de 1964, de Glauber Rocha, onde o messianismo e o cangao so chamados para compor a metfora do pas rural tal qual se entendia nos idos daqueles primeiros anos 60 e, por fim, na segunda discusso do mesmo diretor, em O Drago da Maldade Contra o Santo Guerreiro, de 1969, quando retoma a idia das rebeldias sertanejas para examinar o malogro dos projetos coletivistas anteriores a 1964.

    Canudos como matria para o faroeste sertanejoGalvo e Bernardet (1983) observam que o cinema brasileiro reivindica, desde os anos 30, o rural sertanejo, nordestino como sinnimo de nossa brasilidade, nacionalidade e especificidade. Para fazer o retrato do Brasil mais puro temos de lanar mo da nossa reserva intacta, colocada no serto, pois as cidades estariam mescladas de elementos estrangeiros. Se os termos em pauta so tradio, bravura, folclore, o Nordeste comporta o que h de melhor. Mas, em se tratando de progresso, civilizao, valores modernos respeito lei oficial, s autoridades estabelecidas, ao direito constitucional tudo que no deveramos mostrar. Fala o gerente da Companhia Cinematogrfica Brasileira, uma distribuidora de filmes, em 1928:

    No dia em que pudermos mostrar o nosso farwest, j no dizemos o dos gachos (...) mas o do norte, com seus cangaceiros e os sertanejos que no levantam os braos ante o cano de um revlver, neste dia a nossa produo dominar o mercado mundial (...) (apud Galvo e Bernardet: 1983: 40).

    Sertanejos que no levantam as mos diante de um cano de revlver uma referncia ao filme de faroeste, onde o mocinho tem direito a render os infratores da ordem com o famoso: mos ao alto! J neste momento a produo cinematogrfica americana era vista como o modelo de bom cinema pelos cinfilos nacionais. Nosso cinema, pensavam, deveria reconstruir, como fazia Hollywood, a tradio brasileira composta de bravos e fortes. Mas o bravo brasileiro, ao contrrio do vaqueiro ou bandoleiro do western, no deveria entregar-se nem mesmo diante de um cano de revlver, pensa o cinfilo atento

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    pois esse estado de bravura primitiva poderia salvar a cinematografia nacional e dominar o mercado mundial.1

    Mas, dois anos antes desta fala elogiosa, uma crtica na revista Cinearte trazia a verborragia preconceituosa e indignada de um espectador brasileiro com imagens de negros e cangaceiros que circulavam em uma fita nacional:

    Quando deixaremos desta mania de mostrar ndios, caboclos, negros, bichos e outras avis rara desta infeliz terra, aos olhos do espectador cinematogrfico? Vamos que por um acaso um destes filmes v parar no estrangeiro? Alm de no ter arte, no haver tcnica nele, deixar o estrangeiro mais convencido do que ele pensa que ns somos: uma terra igual ou pior a Angola, ao Congo ou cousa que o valha. Ora vejam se at no tem graa deixarem de filmar as ruas asfaltadas, os jardins, as praas, as obras de arte, etc. para nos apresentarem aos olhos, aqui, um bando de cangaceiros, ali, um mestio vendendo garapa em um purungo, acol, um bando de negrotes se banhando num rio, e coisas desse jaez (Salles Gomes, 1974: 310).

    O missivista racista considerava perigoso que uma imagem como essa fosse mostrada no exterior, pois desejava que nos apresentssemos ao estrangeiro como um pas moderno e civilizado, admirador das obras de arte. Ou seja, os homens e elementos da terra at podiam ser o ncleo de nossa brasilidade, mas o eram em oposio s ruas asfaltadas, s obras de arte, s cidades, civilizao. Mas, o cinema brasileiro descobriria logo que, tal como o seu correlato americano, pode tornar tais imagens palatveis ao espectador carente de modernidade e inseguro diante da vida nacional. A literatura j havia dado o exemplo de como transformar a cor local em um padro importado. Agradaramos a gregos e troianos, isto , a modernistas e conservadores, se observssemos a lio literria e adotssemos no cinema um primitivismo mais civilizado pela tcnica:

    O jeca roto, imundo, grotesco da literatura impraticvel no cinema. Temos que atribuir ao nosso jeca o mesmo que Alencar aos seus ndios. Nada de impaludismo, nem de penria, nem de ignorncia

    1 famosa a histria relatada por Euclides da Cunha a respeito do garoto-jaguno que tentara tomar a pulso a matadeira, um rudimento de metralhadora do exrcito brasileiro, apontada para o arraial de Canudos. Alm da extrema altivez dos sertanejos que no abrem mo da fidelidade ao Conselheiro, mesmo diante da ameaa de decapitao. Tudo isso impressiona muito o escritor que, ao final do livro, acaba considerando brbaro o morticnio promovido pelo exrcito brasileiro, em nome da Repblica.

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    extrema, o jeca padro cinematogrfico h de ser sadio, robusto, herico e nobre (apud Bernardet e Galvo, 1983: 37).

    E o cinema descobriu logo que o filo das lutas sertanejas poderia render bons espetculos sem criar arrepios no espectador. To logo se viu em condies de produzir o faroeste nacional, o cinema o fez desenhando nas entrelinhas o que havia feito Euclides da Cunha e todo sertanismo literrio subseqente: primeira vista, o elogio endereado ao ncleo da raa mestia brasileira, composta de fora e valentia; subliminarmente, a condenao que afirma o sertanejo circunscrito espacialmente ou num tempo histrico distinto e distante daquele que fala.

    O Cangaceiro (1953), de Lima Barreto, um grande exemplo desta premissa. O filme no tem a inteno de reconstruir a saga de Antnio Conselheiro, mas no rejeita a leitura popularizada sobre o movimento sertanejo. Lima Barreto, antes de realizar o filme pelo qual lutou bravamente nos estdios da Companhia Vera Cruz, dizia com convico:

    Vou fazer o retrato sincero do Brasil em matria de cinema (...) o mal do cinema brasileiro tem sido a pretenso de estrangeiros que nada conhecem da nossa terra, do nosso povo, dos nossos costumes (...) Eu sou o primeiro a saber que o que h de bonito e original no Brasil est da Bahia para l. O sul j se contaminou de hbitos, da mentalidade e feio humana aliengenas (Lima Barreto, apud Bernardet e Galvo, 1983: 116).

    E, com este cineasta, a stima arte brasileira deu incio ao faroeste nacional que, em consonncia tambm com a literatura de 30, propunha-se a afirmar a dicotomia Nordeste/Sul sob a perspectiva da primazia cultural da primeira em oposio supremacia econmica da segunda. Com Euclides da Cunha essa noo j era alimentada sob a oposio serto/litoral. Para ambas as leituras, no primeiro estaria o autctone, o original, e, no segundo, o que houvesse de estrangeiro, tanto na mentalidade quanto nos hbitos e costumes, alm da constituio fsica. Essa noo perpassa o filme de Lima Barreto do comeo ao fim e marca todo o filo dos filmes de cangao, os chamados nordesterns, produzidos a partir do sucesso inclusive internacional deste filme. O bangue-bangue brasileiro, numa forma hbrida, trazia para as telas a herana formal dos westerns hollywoodianos, os dados mais pitorescos e cavalheirescos do relato do cordel e o diagnstico de Euclides da Cunha sobre a vocao do mestio para a luta e para a guerra. Como observa Ismail Xavier:

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    O filme de Lima Barreto marcado por aquela viso etnocntrica que olha para o outro num impulso de sincera homenagem, mas a partir de uma distncia que se denuncia a cada passo pelo prprio tom e pela forma como se organiza o discurso. (...) em O Cangaceiro o serto mundo fora da histria, depsito de uma rusticidade quase selvagem que o progresso, vindo exclusivamente de fora, tende a eliminar. (...) Dele distante, o narrador procura marcar o abismo que os separa, pois faz questo de se instalar do lado de c, no terreno da histria, num presente que civilizao, por oposio a esse passado pitoresco mas definitivamente extinto (Xavier, 1983: 124-125).

    Essa noo, prope Xavier, explica a abertura do filme, onde se l em letras brancas sobre um fundo negro, a seguinte inscrio: poca: imprecisa, quando ainda havia cangaceiros. Ou seja, o narrador desta histria se coloca num mundo diferente e longnquo daquele que toma como tema, ao afirmar a impossibilidade de precisar a poca. Entretanto, fundamental lembrar que, de fato, o cangao existiu at uma dcada antes da realizao de O Cangaceiro, encerrando-se com a morte de Corisco, em 1940. Por que ento trat-lo como algo quase pr-histrico? Porque este filme, tanto quanto os demais produzidos da por diante, fala de rural e do Nordeste a partir de um projeto de pas que tem So Paulo como modelo: eleger o cangao como uma ancestralidade, uma tradio bravia de nossa gente, se fazia interessante desde que distante na histria. No era assim que fazia Hollywood com o western, em cujo modelo cinematogrfico O Cangaceiro se inspirava? Ento, tambm o sertanejo em questo no o sertanejo real, mas aquele amalgamado no imaginrio nacional, desde Euclides da Cunha. Teria este antecedido o pas civilizado.

    Um outro aspecto do filme muito comentado pela crtica diz respeito aos erros sociolgicos que saltam aos olhos neste trabalho de Lima Barreto, revelando que tambm o tratamento do tema guardou distncia da matria real. Por exemplo, nesta fita todos os cangaceiros se deslocam a cavalo, como os cowboys da cinematografia americana, quando a histria mostra que os bandos raramente o possuam e atravessavam vastas regies a p. Outros exemplos, ainda, desta inadequao so o aparecimento de um ndio Caraba em pleno cenrio sertanejo e a presena de mata densa e rios caudalosos enquanto o discurso verbal dos personagens refere-se ao serto rido.

    Entretanto, entendemos que Lima Barreto no estava preocupado em buscar o serto e o sertanejo em suas concretudes, mas em afirmar, como j o fizera

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    a literatura nacional, uma ancestralidade de bravura em nossos supostos as-cendentes. Uma inveno da nossa tradio, do cerne da nossa raa, uma negao do passado estrangeiro. Assim como fomos herdeiros dos ndios de Alencar, dos caboclos no regionalismo de 20 e 30, seramos do cangaceiro na leitura do cinema brasileiro, que de 1927 a 1969 faz 25 filmes sobre o tema. certo que entre estes trabalhos se encontram documentrios, tentativas de leituras mais fiis ao cangao real, apropriao do cangao como alegoria e mesmo pardias dos filmes mais famosos. E tal como Hollywood reinventava a tradio do homem americano atravs do faroeste, tornando pitoresco e palatvel o violento processo da expanso da fronteira agrcola nos Estados Unidos, o filme de cangao suprimia as implicaes sociolgicas e mantinha o carter aventuroso, cavalheiresco e espetacular da violncia gerada pelo brao armado das disputas familiares e coronelistas nordestinas.

    O cinema comercial muito se embeberia destas premissas tomadas em O Cangaceiro e continuaria propagando filmes nesta linha. Que o diga a refilmagem deste clssico do nordestern nacional, neste ano de 1997. Neste ltimo, composto de uma espcie de lixo do imaginrio cinematogrfico nacional, isto , feito do que h de mais estereotipado na tradio do bangue-bangue tupiniquim, no falta sequer a presena do movimento messinico, que, tanto quanto os cangaceiros e retirantes, passeia por este filme enquanto fruto telrico, broto de um tempo atrasado, anterior ao progresso. A ignorncia, associada misria seria a responsvel pelo despotismo e pela barbrie, reza O Cangaceiro de 1997, muito mais grandioso e menos interessante que o seu correlato de 1953.

    Mas, com o cinema politizado dos primeiros anos da dcada de 60, Canudos seria reabilitado, juntamente com o cangao, invertendo quase que completamente esta leitura que coloca o Nordeste como excludo da nao real. Seria com Glauber Rocha que o movimento messinico de Monte Santo e Cocorob se inscreveria sob a tarja herica da rebeldia primitiva, como uma prvia demonstrao da nossa capacidade de luta e inconformismo. E, para examinar os caminhos da conscincia revolucionria, este cineasta recria a saga de Conselheiro na pele do Beato Sebastio, no filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, uma das maiores obras da cinematografia brasileira e mundial.

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    Canudos como a nossa conscincia mais insurrectaA inteno inicial de Glauber Rocha para Deus e o Diabo na Terra do Sol era a de fazer um filme que dialogasse com os movimentos sociais dos primeiros anos de 60 e indicasse os possveis caminhos para a inconformidade e conscincia poltica do homem brasileiro. O movimento messinico e a ordem do cangao seriam formas de rebeldias primitivas originrias em solo nacional, e estud-las seria necessrio para entendermos elementos importantes dessa possvel conscincia sertaneja, que muito j teria incomodado os poderes estabelecidos. Tema que, como vimos, era questo nodal naqueles dias politizados em que o projeto de socialismo parecia uma via possvel para o futuro da nao. E Glauber Rocha diria sobre este filme, numa entrevista a Raquel Gerber, em 1973:

    O Deus e o Diabo uma metfora revolucionria num plano mais totalizante, mais universalizante, quer dizer, do serto para o mar, do mar para o mundo, quer dizer, (...) uma liberao do inconsciente do campons do Terceiro Mundo atravs dos seus fantasmas mais expressivos (apud Gerber, 1991: 27).

    Ou seja, na interlocuo com os agitados embates do perodo, quando a idia de reforma podia equivaler-se de revoluo, e a questo da conscincia poltica era um ponto fundamental na aliana com o povo, o filme de Glauber tomava o campo da tradio nordestina e os seus mitos como forma de valorizar os elementos particulares nacionais e submeter a eles a universal conscincia revolucionria. A inteno era chegar a um cinema poltico, poderoso na fora provocativa, desconsiderando a reconstruo dos eventos histricos na linha do espetculo tipicamente comercial, por exemplo de O Cangaceiro, trazendo para a tela s os dados cruciais que organizassem a histria. Um cinema revolucionrio que fustigasse as elites, questionasse o espectador e apresentasse para o colonizador imperialista o espetculo da violncia conseqente do colonizado.

    O serto nordestino construa a alegoria da nao, pois, como outros cineastas do perodo, Glauber desejava diagnosticar o pas na sua totalidade e fazia, como observam os estudiosos, uma metfora totalizante. Ao acompanhar a trajetria do vaqueiro Manoel e sua mulher Rosa, Glauber sugeria que acompanhvamos a vida nacional.

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    Este o ponto de partida. Um pobre vaqueiro nordestino, acabrunhado com a morte de uma rs, encontra uma procisso de beatos e deixa-se impressionar por ela, como denuncia a seqncia em que relata o acontecido sua mulher:

    Rosa, vi o Santo Sebastio. Ele disse que ia vim um milagre e salv todo mundo... Tinha uma poro de gente atrs dele. Os fiis tudo cantando e rezando e...

    Entendendo que o encontro com o beato um sinal dos cus diante da sua desgraa, o vaqueiro supe que algo de extraordinrio acontea em sua vida. Uma das possibilidades a de poder realizar o sonho de comprar a sua prpria terra e deixar de ser parceleiro de Coronel Moraes. No fim da semana Manoel tem de fazer a partilha do gado com o proprietrio, e na feira onde esta atividade se realiza que ouvimos um cantador contando mais sobre o beato Sebastio e a forma como o seu mito se espalhou pelo serto:

    Sebastio nasceu do fogo / no ms de fevereiro / anunciando que a desgraa / ia queimar o mundo inteiro / mas que ele podia salvar / quem seguisse os passos dele / que era santo e milagreiro

    Segundo reza a cano, Sebastio nasceu da seca e da possibilidade vislumbrada de agravar ainda mais no serto a vida dos homens pobres e dependentes. a eles que estaria convocando para seguir-lhe os passos, rumo a alguma salvao. E, como veremos, a sua prdica, colada aos problemas imediatos, s desgraas da vida do sertanejo pobre, oferece como compensao um reino dos cus onde abundariam a fertilidade e a comida, um paraso feito de fartura, para compensar a fome e a privao.

    Manoel dirige-se ao curral do patro para fazer a partilha da safra. Aproxima-se respeitoso, chapu na mo e explica ao Coronel que morreram quatro vacas mordidas por cobra. O proprietrio ento decide que o vaqueiro no tem nenhum direito partilha, pois as quatro cabeas que lhe cabiam teriam sido as que morreram. Manoel revolta-se, e o proprietrio considera insolente a sua atitude diante da autoridade patriarcal, descendo-lhe o chicote. Humilhado e ofendido, o vaqueiro mata o patro num rompante de revolta.

    Para a interlocuo com o pensamento poltico do perodo, a atitude de Manoel teria sido um lampejo de conscincia da sua prpria explorao, que forjaria um princpio de ruptura com a ordem coronelista opressora. Entretanto, podemos dizer que Manoel reage, para alm do roubo que est sendo vtima,

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    honra atingida, por ser espancado como um animal ou como um escravo, ponto importante para aqueles que se entendiam homens livres no serto. Alis, contrariamente tese da conscincia poltica, Manoel conclui que est certo de que a mo de Deus o estaria guiando para junto de Sebastio, ainda que pelos tortuosos caminhos da desgraa. assim que o vaqueiro explica, de uma perspectiva mgica, o rumo dos acontecimentos. Rumo natural, uma vez que inerente s coisas que organizam a sua vida, condicionado fundamentalmente por sua situao de homem dependente de proteo, como dita o coronelismo vigente nestes anos dos quais o filme trata: agora no tem outro jeito, seno ir pra Monte Santo pedir Sebastio para proteger a gente, diz Manoel a Rosa.

    Na tela, a apresentao do Monte Santo gloriosa, com as imagens dos estandartes tremulantes, da vista do alto do morro, do conjunto de fiis em transe com a prdica de Sebastio. O discurso do beato se compe de uma fuso de vrias prdicas que acompanharam os movimentos milenaristas e sebastianistas que, desde Canudos, reaparecem de tempos em tempos nOs Sertes. O pregador promete aos fiis um mundo de fartura, vindo dos cus, numa ilha onde todos tero acesso terra frtil e glria de Deus:

    Foi Dom Pedro Alves que descobriu o Brasil e fez a escada de pedra e de sangue. Esse caminho do Monte Santo leva at o cu o corpo e a alma dos inocentes. Andei no meio do povo, em mais de cem lug dizendo que o mundo ia acab nesta seca com o fogo saindo das pedra. Os prefeito, as otoridade, os fazendeiro dissero que eu estava mentindo e que o sol era culpado das desgraa. Mas no ano passado, eu disse que ia sec cem dia e fic cem dia sem chuv. Agora eu digo: do lado de l deste Monte Santo existe uma terra onde tudo verde. Os cavalo comendo as fr e os menino bebendo leite nas gua dos rios. Os hme come po feito de pedra, e poeira da terra vira farinha. Tem gua e comida, tem fartura do cu todo dia. Quando o sol nasce, aparece Jesus Cristo e a Virgem Maria. E o meu Santo Sebastio, todo cravado de flecha no peito.

    A retrica de Sebastio, tal como a dos beatos de Pedra Bonita, Caldeiro Grande e Canudos, oferece um mundo restaurador fome e ao desamparo do campons pobre. A inspirao, certamente, vem da prdica do Conselheiro, relatada pela populao de Monte Santo e Cocorob ao prprio Glauber: O Conselheiro? ... Ele queria fazer o leite correr nos rios e partir o cuscuz nas paredes dos montes... (apud Gerber: 1982: 195). Idias de reparao que Antnio Cndido nota nos causos da escatologia caipira brasileira, que tambm recorrem aos

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    bons assados para o dia do apocalipse, quando, ao contrrio dos ricos, os pobres se fartariam (Cndido: 1982: 197-198). Reparao que o historiador Robert Darnton observou no universo cultural dos camponeses franceses atravs de suas fbulas que dariam origem aos chamados contos infantis, nas quais os heris tinham como prmio mximo um farto banquete. Na raiz destas compensaes, explica o historiador, estariam justamente a fome e as constantes privaes da comunidade camponesa europia de alguns sculos atrs (Darnton, 1986: 21).

    Neste sentido, Deus e o Diabo se mantm fiel forma tomada pelo catolicismo popularizado, que se encarregava de dar sentido s privaes camponesas. As comunidades de rezadores, em geral, arrebanhavam os j expulsos das fazendas e acabavam recriando uma organizao societal liderada por um grande e poderoso senhor, que tambm exigia fidelidade e sacrifcios absolutos em troca da felicidade, de um reino de fartura. Assim como a prdica da Igreja Catlica conseguia constituir-se em pregao ideolgica adequada ao modelo patriarcalista, louvando a obedincia hierarquia, o sacrifcio, o apego pobreza e a compensao no reino dos cus, conforme observa Novaes (1987), a verso popular tambm reforava um poder central, o respeito hierarquia e o direito de vida e morte sobre os comandados. E o beato de Deus e o Diabo, que recebe a mais devota adeso de Manoel, mostrar sua face autoritria e enlouquecida quando andar pelos vilarejos espancando prostitutas, exigindo penitncias desumanas dos seus seguidores e, chegando ao paroxismo, sacrificar uma vida humana em nome da purificao das almas. O Santo mostrar seu lado diablico em nome de Deus.

    O que era xtase vai convertendo-se em delrio, at culminar com o sacrifcio de uma criana, cujo sangue deveria limpar Rosa, a mulher de Manoel, que se recusa a crer em Sebastio, das impurezas do ceticismo. Incrdula, separada de Manoel, rejeitada pelos beatos em transe mstico, esta mulher mata o rezador no mesmo momento em que o jaguno Antnio das Mortes, contratado por fazendeiros e pela Igreja, acaba com todos os fiis. No h resistncia, e o povo crdulo tomba rezando e cantando feliz, como relata, impressionado, o matador. E Manoel e Rosa, poupados por Antnio das Mortes, voltam outra vez para o ponto de onde partiram: sem a comunidade de Monte Santo e o pai protetor na figura de Sebastio, so pobres desamparados no serto, como mostra o cantador:

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    Da morte do Monte Santo / sobr Manoel vaqueiro / por piedade de Antnio das Mortes / matad de cangaceiro.

    Manoel e Rosa so conduzidos por Cego Jlio, o cantador que conta esta histria, em direo ao bando de Corisco, que se esconde no meio da caatinga junto s runas da comunidade de Canudos, aqui expostas de modo a lembrar a histria de Antnio Conselheiro. E o cantador anuncia:

    A histria continua / preste mais ateno / and Manoel e Rosa / nas veredas do Serto / at que um dia / pelo sim e pelo no / entr na vida deles / Corisco, o Diabo de Lampio.

    Ou seja, a histria no acabou. Assim como ao mito do Conselheiro justape-se o de Lampio e Corisco, nossa narrativa se prepara para justapor novos fatos trajetria de Manoel, que depois de penitente do Monte Santo se acha devolvido ao serto na sua condio primeira, a de vaqueiro, como mostra o cordel. E nessa condio que Manoel se deparar com a outra revolta possvel ao campons pobre no serto nordestino: a rota do cangao, pequena variao da mesma matria, pois ter outra vez um senhor poderoso, imbudo do poder da luta e exigindo fidelidade absoluta, tal como o pediam Sebastio e tambm Coronel Moraes.

    Manoel, ainda tocado pela experincia de beato, toma Corisco por So Jorge, o santo vingador do seu padrinho Sebastio. Aderir ao cangaceiro na inteno de ving-lo: Capito Corisco, eu queria entr para o cangao. Podia ser um cabra bom na ajuda dessa guerra. No tenho o que faz. Podia vingar meu Padrinho Sebastio, no foi o governo dos coronel que matou ele tambm? E a se explicitam o inimigo comum, que acabara com Lampio e com os beatos, e a vingana de honra, que tambm est no horizonte do matador.

    Como observamos em um trabalho anterior, o caminho dessa guerra at fala de uma questo maior, de um opressor maior, mas declina sempre para um ponto pessoal, inscrevendo este discurso numa circularidade que marcada pela ao dos personagens e movimentos de cmara (Tolentino, 1993: 77-78). Circularidade esta que denuncia a volta constante ao ponto de partida e a impossibilidade de encaminhar os conflitos para mudanas qualitativas, como desejava Glauber e os politizados da poca. medida que as questes conflitantes voltam a inscrever-se no campo da dominao tradicional, lealdade e honra so os mbeis destas lutas, intransferveis classe, porque pessoais.

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    No primeiro assalto a uma fazenda no qual Manoel participa, Corisco exige que o vaqueiro troque o crucifixo ao qual se detm por um faco e, na seqncia, castre um homem para completar seu batismo de sangue no cangao. Manoel cumpre o determinado, mas a gravidade do ato, que acentuada pela trilha sonora, leva-nos a questionar, junto com ele pouco depois, a validade dessa ao. E ser na seqncia, quando Corisco esfola vivo um homem, cobrando o fato de o pai deste o ter ofendido ainda na infncia, que o vaqueiro perguntar desesperado: S se pode fazer justia no derramamento de sangue? E o chefe cangaceiro: Homem neste mundo s tem validade quando pega nas armas pra mud o destino...

    Mas como fazer Manoel tornar-se senhor do seu prprio destino, abandonando os pais protetores e cuidando de sua prpria vida? Pois, toda vez que sua experincia chega no limite mximo do conflito, ele se v de novo na condio de vaqueiro pobre e sertanejo. Ou seja, h sempre um movimento cclico devolvendo-o ao ponto de partida, porque o serto e suas leis se impem com fora e no avanam politicamente a experincia de Manoel. Ele, que passou de um senhor a outro, voltaria a ser o vaqueiro procura de um protetor depois do fim de Corisco se o filme no resolvesse concluir pela realizao da profecia de Antnio Conselheiro. Ouvimos do cantador:

    T contada a minha histria / verdade, imaginao / espero que o sinh / tenha tirado uma lio / que assim mal dividido / esse mundo anda errado / que a terra do homem / no de Deus nem do Diabo / e o serto vai virar mar / o mar vai virar serto.

    Vejamos que o poeta e cantador de cordel encerra a histria devolvendo Manoel para a concretude dos fatos. Mas, quando nos preparamos para tomar como encerrada a narrativa, o prprio cantador retoma a esperana do Conselheiro, avisando que a profecia est dita e assim dever ser: o serto vai virar mar, e o mar vai virar serto. E enquanto desfia esta prdica, repetindo-a como refro final da sua cantoria, o futuro apocalptico se encontra com a utopia da histria e converte-se em possibilidade, e o mar invade a caatinga no final grandioso de Deus e o Diabo na Terra do Sol.

    Canudos como nossa rebeldia descolonizadaSe em Deus e o Diabo Glauber examina os caminhos da conscincia histrica e da prxis revolucionria, em O Drago da Maldade Contra o Santo Guerreiro inverte

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    esta perspectiva para pensar o levante das foras irracionais, das massas pobres. Tomando as manifestaes msticas e cangaceiras, Glauber, ao contrrio da tese anterior, iria afirm-las como a verdadeira forma de resistncia descolonizada, porque incompreensveis razo que, mesmo revolucionria, revelava-se dominadora. A razo seria colonizadora e imperialista, como o desenvolvimento, que domina o homem pelo consumo, conforme afirma a estudantes norte-americanos em 1971:

    Os sistemas culturais atuantes, de direita e esquerda, esto presos a uma razo conservadora. O fracasso das esquerdas no Brasil resultado deste vcio colonizador. A direita pensa segundo a razo da ordem e do desenvolvimento. A tecnologia ideal medocre de um poder que no tem outra ideologia seno o domnio do homem pelo consumo. As respostas da esquerda, exemplifico outra vez no Brasil, foram paternalistas em relao ao tema central dos conflitos polticos: as massas pobres. (...) / A razo de esquerda revela-se herdeira da razo revolucionria burguesa europia. A colonizao em tal nvel, impossibilita uma ideologia revolucionria integral... (apud Pierre, 1996: 135-136).

    Podemos dizer que Glauber ainda est tentando entender o fracasso da revoluo socialista no Brasil e parece desconfiar que importamos reificadamente algumas idias e deixamos de submet-las ao cho histrico nacional. Da a noo de que a nossa esquerda se inspirara na razo burguesa europia ao pensar o desenvolvimento como caminho revolucionrio. Ento, parecia haver um projeto social a ser descoberto em nossa prpria casa, pois, ao contrrio da revoluo burguesa, tnhamos na histria grandes levantes populares como Canudos e o fenmeno do cangao que na sua leitura fora uma luta de meio sculo contra o governo. E partindo desta constatao desloca o eixo central da luta de classes no Brasil, entendendo que o tema central dos conflitos polticos (so) as massas pobres, uma leitura que estende aos pases colonizados da por diante.

    Em O Drago da Maldade Glauber volta ao serto com Antnio das Mortes e o coloca diante das foras sociais com as quais este matador se relacionava em Deus e o Diabo na Terra do Sol. A narrativa se inicia mostrando a quebra da tranqilidade da cidade sertaneja de Jardim das Piranhas com a chegada de um grupo de beatos e cangaceiros que ocupa as suas ruas com bandeiras, estandartes, entoando e danando uma espcie de cntico ritual. Liderando o grupo temos uma beata paramentada como Ians, um negro vestido como Oxssi

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    ou So Jorge, um cangaceiro de nome Coirana, que nos trajes lembra Lampio ou Corisco. O conjunto concentra-se no meio da praa e pe de sobreaviso os mandatrios da cidade. O cangaceiro Coirana assume a conduo da ao, toma a palavra e discursa:

    Eu vim aparecido. No tenho famlia nem nome. Eu vim tangendo o vento pra espantar os ltimos dias da fome. Eu trago comigo o povo desse serto brasileiro e boto de novo na testa um chapu de cangaceiro. Quero ver aparecer os homens dessa cidade, o orgulho e a riqueza do Drago da Maldade. Hoje eu vou embora, mas um dia eu vou voltar. E, nesse dia, sem piedade, nenhuma pedra vai restar. Porque a vingana tem duas cruz. A cruz do dio e a cruz do amor. Trs vez reze o padre nosso, Lampio, nosso Senhor.

    Coirana declara de sada que no est na luta em defesa de qualquer sobrenome poderoso, como na velha tradio do cangao, e por isso no tem famlia, nem nome. Ao dizer-se movido pela fome e com ela mobilizador do povo pobre do serto, parece sugerir uma nova prtica para o banditismo anrquico, acrescentando uma conotao poltica coragem, valentia e disposio implacveis. Isso, para a interlocuo da poca, seria um foco invencvel de guerrilha. E no faltou quem assim visse O Drago da Maldade, em especial a crtica francesa, como observa Sylvie Pierre (1996). Mas, se aquela conjuntura dos finais dos anos 60 permitia essa leitura, uma anlise do filme hoje revela que neste trabalho Glauber j anunciava o que seria a sua proposta futura no sentido de buscar as rebeldias primitivas como revolucionrias em si mesmas. Estas manifestaes msticas e violentas, ao fugirem da racionalidade, fugiam do controle, tornavam-se intolerveis, como se viu na histria brasileira. No era preciso destru-las para conseguir uma conscincia revolucionria, at porque o cineasta parecia desconfiar dela (o Professor, personagem que tenta intelectualizar a reivindicao dos beatos e cangaceiros de O Drago, um exemplo do imobilismo daqueles que s acreditavam nas foras classicamente dispostas). Glauber diria: A razo dominadora classifica o misticismo de irracionalista e o reprime a bala. Para ela tudo que irracional deve ser destrudo, seja a mtica religiosa, seja a mstica poltica. (grifos do autor, apud Pierre, 1996: 136).

    Coirana revela que est religiosamente indignado, pois, para ele, a pobreza e a fome encontram responsabilidade nos pecados do orgulho e da avareza dos homens ricos. Pecados que requerem uma ao destruidora, uma vingana organizada por amor e dio, seguindo o rastro de Lampio, elevado condio

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    mtica de pai protetor. Diante da ameaa do cangaceiro e da invaso dos beatos, o delegado da cidade, preposto do velho mandatrio, Coronel Horcio, desloca-se at a capital para tomar providncias. E volta com Antnio das Mortes, o velho e agora aposentado matador de cangaceiros.

    Antnio enfrenta Coirana num duelo cavalheiresco e teatral no centro da praa de Jardim das Piranhas. Em visvel vantagem, Antnio das Mortes arranca o punhal das mos de Coirana e o fere no peito, mas por interveno da Santa no pode dar o golpe fatal. E enquanto Coirana desfia sua lenta agonia, mostrando toda a sua saga de excluso, que incluiu ter trabalhado como escravo nOs Sertes de Mato Grosso, Antnio faz uma profunda reflexo sobre sua vida, tocado pelo olhar incisivo da beata, deflagrando o seu processo de arrependimento e converso. Para os nossos olhos seu autoquestionamento se d por caminhos msticos, inspirados pelo olhar condenatrio da beata. Mas podemos dizer que h nas entrelinhas uma pergunta mais profunda: em nome de que ou de quem estava atuando at ento? Antnio parece acordar para o fato de ser to deserdado quanto os msticos e cangaceiros. No tem clareza dessa questo, mas assim a explica ao delegado: Depois que eu vi aquela gente de perto eu senti uma coisa como nunca senti na vida... E o corao tem coisas que no se explica, doutor.

    Para alguns estudiosos, o filme sinalizava uma tomada de conscincia de classe do matador, que at ento lutara em favor dos ricos. Isso porque, na sua fala ao delegado, a quem devia o fim do ostracismo, observava que s agora sabia onde era o seu verdadeiro lugar. Por isso, passava para o outro lado e exigia do Coronel a abertura do armazm e das terras para os beatos famintos. E, diante de Matos estupefato, afirma que: Deus fez o mundo, e o Diabo, o arame farpado. Se o Coronel pecou, tem de pagar... Quer dizer, Antnio das Mortes assume o outro lado da luta, mas o faz a partir da prdica dos msticos. Desse modo, vemos que, mais do que qualquer conscincia poltica, o velho matador assume a lgica do movimento messinico que ali se instala. Afirmar mais adiante que seus negcios so com Deus e no com a poltica, deixando claro que se move por uma outra ordem de vnculos, que no os da conscincia de classe, entendida classicamente. Mas, para o nosso narrador, move-se, entretanto, com grandeza e dignidade, ao contrrio do Professor, que, sempre bbado, ri com escrnio da situao criada pelos beatos e cangaceiros na praa da cidade.

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    Alm disso, colocando esse pedido ao Coronel, atualiza a ttica cangaceira de estabelecer exigncias para a realizao ou no dos ataques. Isto , restabelece o campo dos pactos de honra. Sabendo que o velho no o cumprir, ter pretexto para atac-lo, como manda a tradio. E podemos dizer que este campo da honra se desenha com clareza quando Matos faz uma contraproposta ao matador: abriria os armazns e as terras e, de quebra, ainda lhe arranjaria uma fazendinha, desde que matasse o velho coronel. E Antnio: O senhor um homem letrado, mas minha ignorncia tem vergonha. Eu s vou matar o coronel se ele no atender o meu pedido. Ou seja, o coronel ter de demandar a ao de Antnio, quebrando e afrontando a linha por ele estabelecida. Horcio assim o far; no abrir os armazns e mandar matar todos os beatos.

    E o massacre se efetiva, s restando Negro Anto e a Santa. O Professor, que at ento no tomara a srio a presena dos beatos e a possibilidade de um ajuste de contas, ao inteirar-se do acontecido, entra em desespero, e, s costas de Negro Anto, espanca-o afirmando a sua culpa passiva pelo trgico desfecho. E aqui o Professor (alter ego de Glauber?) mostra sua relao de amor e dio ao povo e sua compreenso do mundo. Por que essa mesma massa mobilizada para rezar no se levanta em armas, no cumpre o prometido de Coirana de no deixar pedra sobre pedra? E aponta para a sensao de que os conflitos na vida nacional parecem obedecer a uma estrutura circular e repetitiva, tanto na cidade quanto no campo:

    Eu vou embora, negro, eu vou voltar pra cidade, vou voltar pra cidade! Vou encontrar a mesma desgraa, negro! E vou ficar girando, girando, apanhando, sofrendo, sofrendo, apanhando e sofrendo... Brasil, Brasil, Brasil...

    Numa profunda depresso, sentindo-se impotente diante da desgraa, o intelectual tenta deixar Jardim das Piranhas, indo para uma grande rodovia na inteno de conseguir uma carona com os caminhes, que passam apressados. Ficar a at ser resgatado por Antnio das Mortes, que o devolve ao cenrio da luta, numa sugesto de que o embate ainda no chegara ao fim.

    No centro da praa, o velho proprietrio convoca o matador para o ajuste final com ele e seus jagunos. E lembra a Antnio que ele fora contra Lampio e Antnio Conselheiro, mas feito da mesma fibra destes sertanejos. E assim traz efetivamente o confronto para o terreno da honra e refora que Mata-Vaca, o jaguno contratado para matar os beatos, no s um brao armado, mas um protegido que est disposto a lutar por ele at a ltima gota de sangue. A situao

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    est assim disposta, os guerreiros de honra em lados opostos, quando o Professor revela ao Coronel a sua aliana com o velho matador. E, interessantemente, ele a faz no mesmo sentido dado por Coirana: Coronel, est chegando a hora. Agora a cidade vai comear a enxergar... Sabe quem t falando? um homem que nunca derramou sangue de ningum mas est disposto a derramar o sangue dele para vingar a metade deste serto injustiado. conforme as palavras da Bblia: olho por olho, dente por dente. Ou seja, ao contrrio do que dizem Sylvie Pierre (1996) e Amengual (1991), a aliana do Professor com Antnio no lana uma perspectiva revolucionria no sentido marxista luta de ambos. Podemos dizer que, ao contrrio, o intelectual que entende que a vingana tem em si mesma um sentido revolucionrio medida que efetiva as revoltas e as aes. Isso no impede que o velho proprietrio sinta-se muito mais temeroso diante da sua figura do que da do velho inimigo, que luta nos mesmos termos. Por isso o acusa de ser o Anjo da Peste, uma besta-fera das novas propostas, vindo da cidade para semear a idia de destruio. Antnio tambm entende que a fora das idias do intelectual so de maior valia do que a sua fora bruta. Muito embora talvez isso s se desse depois que Jardim das Piranhas expurgasse as velhas bases do mandonismo local. A sim, as novas idias seriam teis para implantar e entender as transformaes e com elas um inimigo bem mais complexo e inatingvel do que o decrpito Coronel Horcio.

    Um tiroteio entre Antnio e Mata-Vaca inicia a luta, cheia de lances tpicos dos filmes de faroeste, resultando na morte de todos os jagunos e vitria do matador de cangaceiros. Entretanto, o ltimo lance fica por conta de Anto e a Santa, que, montados num cavalo branco, reencarnam o mito de So Jorge, matando o Coronel ao cravarem uma grande lana em seu peito. Depois disso seguem rumo ao crepsculo, acompanhados do padre da cidade, que simbolicamente carrega um rifle ao ombro. Mas para onde vo? Segundo o filme, para os fundes do serto... Enquanto isso o Professor, preocupado com seus prprios desejos, volta-se para a agonia da sensual amante do Coronel, que, atingida por um tiro, morre em praa pblica.

    Finda a luta, Antnio das Mortes, melancolicamente, caminha em direo ao horizonte na movimentada rodovia que se avizinha de Jardim das Piranhas, tendo ao seu lado um posto de gasolina onde se v um luminoso com a concha da Shell, lembrando que h outro drago feroz rondando a pequena cidade sertaneja: o drago da modernidade, cuja destruio no poder ser efetuada por ele. O monstro, como observa Pierre (1996: 256), tem cabeas ainda mais desumanas que o antigo e tradicional patriarcalismo agrrio.

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    A herana de Conselheiro em trs atosPara Paulo Emlio Salles Gomes, os brasileiros do Sul, desde Euclides da Cunha, tomam o Nordeste como composio de um imaginrio de nacionalidade justamente porque nesta regio do pas encontramos o que precisamos para conformar uma tradio:

    O folclore nordestino, emanao das condies sociais retrgradas, conserva uma enorme vitalidade, inclusive e sobretudo para os sulistas, que tiveram suas tradies populares devoradas pelo progresso. Amar o norte uma das maneiras que o paulista encontra de se sentir efetivamente brasileiro (Paulo E. Salles Gomes, apud Bernardet e Galvo, 1983: 219).

    No deixa de haver, portanto, por parte do Sul, uma afirmao de avano modernizador em oposio ao Nordeste e sua manuteno de expresses do atraso. medida que se decretam definitivamente extintas as tradies populares das regies mais avanadas do pas, decreta-se tambm o fim dos seus elementos formadores. Para os sulistas, as suas expresses arcaicas, ou expresses do atraso, j teriam sido superadas. Isto o que vai nas entrelinhas de O Cangaceiro, sugerindo que o sul, que faz cinema, precisa da cultura nordestina como ornamento ou belos roteiros. O sertanejo que no levantava a mo diante de um cano de revlver, constitua a nossa superioridade, desde que localizado num tempo distante e superado. Mas, fundamentalmente, ns nos sentiramos mais nacionais ao tomarmos estes bravos como nossos cavaleiros andantes, tal como fizera o cinema americano com o vaqueiro do oeste. Uma metfora que fala ao discurso modernizador desenvolvimentista destes anos 50, quando o pas parecia querer passar a limpo os velhos traos de sua tradio agrarista.

    Mas o mesmo Nordeste forte e bravo torna-se ele prprio o pas real nos primeiros anos de 60, sob a proposta do movimento de cultura popular e politizada deste perodo. O sertanejo ou o homem pobre rural nordestino, o mesmo que no levanta a mo diante de um cano de revlver, converte-se no prottipo do homem brasileiro: a sua extrema misria seria apenas econmica, porque a se desenhava a nossa conscincia mais insurrecta, fundada nos valores da fora e lealdade. No s pelo filme que analisamos, mas tambm porque o rural nordestino o tema da nossa melhor filmografia destes anos: Vidas Secas, Os Fuzis, Cabra Marcado para Morrer, Vereda da Salvao, O Pagador de Promessas, entre outros. Aqui a vida coletivista da comunidade sertaneja falava nossa utopia socialista: era o serto e suas lutas como metfora da revoluo.

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    pensando a partir desta perspectiva que Glauber observa no serto pecurio os condicionantes que levam um pobre agregado a buscar, depois de ter matado o coronel para quem trabalhava, o messianismo e o cangao. O filme politizado tenta o tempo todo racionalizar a viso de mundo deste homem, para quem a mo de Deus o conduzia ainda que pelos caminhos da desgraa, matando o lder messinico e o chefe cangaceiro que lhe davam alguma proteo, mas que, ao final, reproduziam a mesma forma de dependncia que ele mantinha com o patro, impedindo a sua viso transformadora da histria. Neste caso, o misticismo e a violncia anrquica impediam a conscincia poltica e o avano das lutas de classe.

    Entretanto, para o filme de 69, o cineasta parece querer redimir-se do fato de ter desencantado a Weltanschauung de Manoel. E volta para afirmar-lhe os mitos que lhe ofereciam foras para lutar, pois, entende que devia haver alguma positividade numa metafsica que conduz a aes efetivas. Alm disso, a histria provara que a clssica razo revolucionria no funcionava a nosso favor, e o fim dos mitos nos converteria, juntamente com Manoel, condio de simples relegados da histria mundial, tristes ndios latinos, colonizados na periferia do mundo.

    Talvez pudssemos dizer que em O Drago da Maldade contra o Santo Guerreiro Glauber faz uma outra metfora revolucionria atravs de uma elegia ao mundo sertanejo e lgica peculiar com a qual estes homens compreendiam a histria, tal como pde comprovar ao coletar dados no ano de 63 sobre Corisco e Conselheiro em Monte Santo e Cocorob para a realizao de Deus e o Diabo. Nas suas memrias, escreve como que pensando segundo o raciocnio dos seus informantes:

    E Deus criou o mundo, e o Diabo, o arame farpado; e Deus o povo, e o Diabo a usura. Pergunte o senhor a um cego de feira, que melhor canta para menos sofrer, e a viola responde feroz falando de uma guerra antiga que comeou com a revoluo dos anjos. E quem era Moreira Csar seno a desgraa do Governo, o Diabo da Repblica, contra a Cidade Santa de Canudos? E quem era Delmiro Gouveia seno Deus contra as foras do Diabo na cachoeira de Paulo Afonso, comido no fogo dos latifundirios? E quem era o Paje, e quem era o Juca Villa-Nova, enriquecendo da f dos pobres? E de quem o sol, a fome, o denso passado de Cocorob e Monte Santo? (apud Gerber, 1982: 198).

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    Quando se pensa que haver uma denncia da propriedade privada e seus poderes extensivos, a condenao se faz no campo da religiosidade: o arame farpado como sinnimo de propriedade privada associado usura, um dos sete pecados capitais. Quer dizer, a forma de conhecimento deriva sempre para este caminho circular que vai do real ao mgico e vice-versa. E deste modo fogem explicao racional, ganham o terreno da religiosidade, do misticismo ou da poesia, como se v neste filme que analisamos e no discurso que o cineasta faria da em diante, buscando entender esta como uma lgica do Terceiro Mundo. Uma lgica irracional mas propulsora de aes efetivas: o serto viraria mar, e o mar viraria serto, repetia o cineasta depois de Conselheiro, se os deserdados da terra tivessem f, mais do que conscincia poltica. Sob esta tese, o Brasil era uma imensa Repblica de Canudos. Mas de onde vinham as expedies do governo, ento? Estas no pareciam ter o mesmo solo histrico, tanto quanto as foras que deram o golpe de 64.

    Em resumo, para os modernizadores anos 50, Canudos retomado como a tradio, aquela que se deve afirmar no passado para confirmar a nossa modernidade no muito convicta de si mesma. Para os primeiros anos 60, Canudos oferece a matria-prima da nossa rebeldia histrica, aquela que deveria ser resgatada e reordenada sob a palavra de ordem da conscincia de classe. No ps-64, quando todos acusam o agrarismo emperdenido de responsvel pelo golpe que malograra os projetos coletivistas, Glauber volta a buscar o exemplo de Canudos para afirm-lo como nossa reserva intata de revolta primitiva, aquela que no poderia ser controlada pela razo colonizadora.

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    __________. Alegorias do desengano. Tese de livre-docncia apresentada USP, 1989.

    Ficha catalogrfica dos filmes

    O Cangaceiro / (1953, Vera Cruz, S.P.) / Direo: Lima Barreto / Histria e adaptao: Lima Barreto / Dilogos: Rachel de Queirz, sobre os originais de Lima Barreto / Fotografia: Chick Fowle /Edio: Hafenrichter / Cenografia: Carib / Msica: Gabriel Migliori / Produo: Vera Cruz / Elenco: Alberto Ruschel, Marisa Prado, Milton Ribeiro, Vanja Orico.

    Deus e o Diabo na Terra do Sol / (Rio de Janeiro, 1964) / Dir: Glauber Rocha/ Rot. Glauber Rocha, Walter Lima Jr., Paulo Gil Soares/ Arg. Glauber Rocha/ Fot. Waldemar Lima/ Montagem: Rafael Justo Valverde/ Msica: Villa Lobos, Glauber Rocha, Srgio Ricardo/ Prod. Lus Augusto Mendes, Jarbas Barbosa, Glauber Rocha/ Prod. Copacabana Filmes/ Elenco: Geraldo Del Rey, Yon Magalhes, Maurcio do Valle, Othon Bastos.

    O Drago da Maldade contra o Santo Guerreiro / (1969, Rio de Janeiro) / Dir. Rot. Arg. cenografia: Glauber Rocha / Fot. Affonso Beato / Cmara: Ricardo Stein / Montagem: Eduardo Escorel / Msica: Marlos Nobre, Walter Queirz, Srgio Ricardo, temas populares do nordeste / Elenco: Maurcio do Valle, Hugo Carvana, Odete Lara, Othon Bastos, Jofre Soares, Lorival Pariz, Mrio Gusmo, Rosa Maria Penna, Vinicius Salvatori, Emanoel Cavalcanti, Sante Scaldaferri, Conceio Senna, habitantes de Milagres e Amargosa.

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    Resumo: (Canudos no cinema e as metforas da nacionalidade )A partir de O Cangaceiro, filme de Lima Barreto de 1953, Deus e o Diabo na Terra do Sol, de 1964, e O Drago da Maldade Contra o Santo Guerreiro, de 1969, ambos de Glauber Rocha, examinamos trs formas de abordagem do cinema sobre a herana de Canudos. No se trata da saga de Conselheiro e seus fiis, mas das apropriaes que se fizeram a partir do que Canudos representou para a histria nacional, para a literatura e mesmo para o senso comum. Veremos que, tanto quanto h cem anos atrs, Canudos pode representar diversas e at contraditrias metforas da nacionalidade e ser reclamado para legitimar distintos projetos de nao.

    Palavras-chave: Cinema; identidade nacional; messianismo e cangao.

    Abstract: (Canudos in the cinema and metaphors of nationality). On the basis of O Cangaceiro (1953), a film by Lima Barreto, and Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) and O Drago da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969), both by Glauber Rocha, we examine three ways of dealing with the heritage of Canudos. The issue is not the saga of Antonio Conselheiro and his followers, but rather the cinematographic appropriations of Canudos role in the nations history, in literature and even in every day life. We show that, in the same way as one hundred years ago, Canudos may represent various and even contradictory metaphors of nationality, and can be called on to legitimate different national projects.

    Key words: Brazilian cinema; national identity; Messianism, cangao.

    Clia A. Ferreira Tolentino professora da Unesp/Marlia.

    Estudos Sociedade e Agricultura, 9, outubro 1997: 35-57.