[Torga Miguel] Bichos

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libro de cuentos de miguel torga en portuguese.

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  • P R E F C I O

    Querido leitor:

    So horas de te receber no portal da minha pequena Arca de No. Tens sido de uma contnciato espontnea e to pura a visit-la, que preciso que me liberte do medo de parecer ufano daobra, e venha delicadamente cumprimentar-te uma vez ao menos. No se pagam gentilezas comdescortesias, e eu sou instintivamente grato e correcto.

    Este livro teve a boa fortuna de te agradar, e isso encheu-me sempre de jbilo. Escrevo para tidesde que comecei, sem te lisonjear, evidentemente, mas tambm sem ser insensvel s tuasreaces. Fazemos parte do mesmo presente temporal e, quer queiras, quer no, do mesmo futurointemporal. Agora, sofremos as vicissitudes que o momento nos impe, companheiros da prementerealidade quotidiana; mais tarde, seremos o p da Histria, o exemplo promissor ou maldito, opretrito que se cumpriu bem ou mal. Se eu hoje me esquecesse das tuas angstias, e tu dasminhas, seramos ambos traidores a uma solidariedade de bero, umbilical e csmica; se amanhno estivssemos unidos nos factos fundamentais que a posteridade h-de considerar, estes anosdecorridos ficariam sem qualquer significao, porque onde est ou tenha estado um homem preciso que esteja ou tenha estado toda a humanidade.

    Ligados assim para a vida e para a morte, bom foi que o acaso te fizesse gostar destes Bichos.Apostar literriamente no porvir um belo jogo, mas um jogo de quem j se resignou a perder opresente. Ora eu sou teu irmo, nasci quando tu nasceste, e prefiro chegar ao juzo final contigoao lado, na paz de uma fraternidade de raiz, a ter de entrar l solitrio como um lobotresmalhado. Ningum feliz szinho, nem mesmo na eternidade. De resto, um conto que teagradou, tem algumas probabilidades de agradar aos teus netos. Porque no ho-de eles tirarninhos quando forem crianas? E, se tal no acontecer, pacincia: ficarei um poco triste, massempre junto de ti, firme, na consolao simples e honrada de ter sido ao menos homem do meutempo.

    s, pois, dono como eu deste livro, e, ao cumprimentar-te entrada dele, nem pretendo sugerir-te que o leias com a luz da imaginao acesa, nem atrair o teu olhar para a penumbra da suasimbologia. Isso no comigo, porque nenhuma rvore explica os seus frutos, embora goste quelhos comam. Saudo-te apenas nesta alegria natural, contente por ter construdo uma barcaa ondea nossa condio se encontrou, e onde poderemos um dia, se quiseres, atravessar juntos o Letes,que , como sabes, um dos cinco rios do inferno, cujas guas bebem as sombras, fazendo-asesquecer o passado.

    Teu

    Miguel Torga

  • N E R O

    Sentia-se cada vez pior. Agora nem a cabea sustinha de p. Por isso encostou-a ao cho, devagar.E assim ficou, estendido e bambo, espera. Tinha-se despedido j de todos. Nada mais lhe restavasobre a terra seno morrer calmo e digno, como outros haviam feito a seu lado. claro que escusavade sonhar com um enterro bonito, igual a muitos que vira, dentro dum caixo de gales amarelos,acompanhado pelo povo em peso Isso era s para gente, rica ou pobre. Ele teria apenas uma tristecova no quintal, debaixo da figueira lampa, o cemitrio dos ces e dos gatos da casa. E louvar aDeus apodrecer a dois passos da cozinha! A burra nem sequer essa sorte tivera. Os seus ossosreluziam ainda na mata da Pedreira. Chuva, geada, sincelo em cima. At um lebro descarado se foraaninhar debaixo da arcada das costelas, de caoada! Ah, sim, entre dois males J que no haviamelhor, ficar ao menos ali. No tempo dos figos, pela fresca, a patroa viria consolar a barriga.Gostava de figos, a velhota. E sempre se sentiria acompanhado uma vez por outra. No que fizessegrande finca-p naquela amizade. Longe disso. A menina dos seus olhos era a morgada, a filha, que oacariciara como a uma criana. A velha toda a vida o pusera a distncia. Dava-lhe o naco de broa(honra lhe seja), mas borrava a pintura logo a seguir: Ala! E ele retirava-se cerimoniosamentepara o ninho. S a rapariga o aquecera ao colo quando pequeno, e, depois, pelos anos fora, oconsentira ao lume, enroscado a seus ps, enquanto a neve, branca e fria, ia cobrindo o telhado. Ovelho tambm o apaparicava de tempos a tempos. Se a vida lhe corria e chegava dos bens de testadesenrugada, punha-lhe a manpula na cabea, meigamente, e prometia-lhe a vinda do patro novo.Porque o seu verdadeiro senhor era o filho, um doutor, que morava muito longe. S aparecia na terranas frias de Natal. Mas nessa altura pertencia-lhe inteiramente. Os outros apenas o tratavam, osustentavam, para que o menino tivesse co quando chegasse. Apesar disso, no ntimo, considerava-se propriedade dos trs: da filha, do velho e da velha. Com eles compartilhara aqueles longos oitoanos de existncia. Com eles passara invernos, outonos, e primaveras, numa paz de famlia unida.Tambm estimava o outro, o fidalgo da cidade, evidentemente, mas amizades cerimoniosas no sedavam com o seu feitio. Gostava era da voz cristalina da dona nova, da ndole daimosa da patroavelha e da mo calejada do velhote.

    Tens o teu patro ai no tarda, NeroO nome fora-lhe posto quando chegou. Antes disso, l onde nascera, no tinha chamadoiro. Nesse

    tempo no passava dum pobre lapuz sem apelido, muito gordo, muito maluco, sempre agarrado mama da me, que lhe lambia o plo e o reconduzia quentura do ninho, entre os dentes macios, malo via afastar-se. Pouco mais. Com dois meses apenas, fez ento aquela viagem longa, angustiosa, nosbraos duros dum portador. Mas chegada teve logo o amigo acolhimento da patroa nova. Festas nolombo, leite, sopas de caf. De tal maneira, que quase se esqueceu da teta doce onde at aliencontrava a bemaventurana, e dos irmos sfregos e birrentos.

    Nero! Nero! Anda c, meu palerma!A princpio no percebeu. Mas foi reparando que o som vinha sempre acompanhado de broa, de

    caldo, ou de um migalho de toucinho. E acabou por entender. Era Nero. E ficou senhor do nome, doseu nome, como da sua coleira. Principalmente depois que o patro novo chegou, srio, com doisolhos como dois faris. Apareceu tarde, num dia frio. Fora-o esperar na companhia da patroa nova. claro que nem sequer lhe passara pela ideia a vinda de semelhante figuro. Seguira-amaquinalmente, como fazia sempre que a via transpor a porta. Habituara-se a isso desde os primeirosdias. Com o velho no ia tanto. E com a velhota, ento, s depois de ter a certeza que se encaminhava

  • para os lados da Barrosa. Na cardenha do casal morava o seu grande amigo, o Fadista. De maneiraque o passeio, nessas condies, j valia a pena. Enquanto a dona mondava o trigo, chasquiavabatatas ou enxofrava a vinha, aproveitava ele o tempo na eira, de pagode com o camarada. Mas, seela tomava outro rumo, boa viagem. Com a nova, sim. A farejar-lhe o rasto, conhecera a terra de ls-a-ls. At missa ouvia aos domingos, coisa que nenhum co fazia. Aninhava-se a seu lado, e ficava-se quieto a ver o padre, de saias, fazer gestos e dizer coisas que nunca pde entender. Foi a seguir auma cerimnia dessas que o doutor chegou terra. Todo muito bem vestido, todo lorde. Quando viuaquele senhor beijar a rapariga, atirou-lhe uma ladradela, por descargo de conscincia. E o estranho,ento, olhou-o atentamente, deu um estalo com os dedos, a puxar-lhe pelos brios, e teve umcomentrio:

    O demnio do cachorro bem bonito!Envaideceu-se todo. Mas o homem perdeu-se logo em perguntas irm, em cumprimentos a quem

    estava, sem reparar mais nele. E no teve remdio seno segui-los a distncia, num ressentimentoprovisrio. Ao chegar a casa, foi direito ao cortelho. E ali esteve uma boa hora espera, a morder-sede ansiedade. Por fim, o recm-vindo chamou do fundo da sala:

    Nero! Venha c!Era a posse. Havia naquela voz um timbre especial que o fez estremecer. Pela primeira vez sentia

    que tinha realmente um dono. Contudo, l arranjou foras para se deixar ficar enroscado na palha,salamurdo, a fingir que dormia.

    Mas a ordem voltou logo a seguir, mais forte, mais imperativa:- Nero!Ergueu-se. Subiu os degraus da loja e, humilde e desconfiado, apresentou-se.O fulano acabara de jantar. No prato onde comera, jaziam, apetitosos, os restos do frango pedrs

    que a patroa velha degolara de manhzinha. Apesar de o desgraado ser seu amigo (at em cima dolombo se lhe empoleirava), sentia crescer a gua na boca s de ver aqueles ossos descarnados.Misrias O hspede, porm, em vez de lhe acalmar a gula pecadora, ps-se a fazer-lhe festas, aapalpar-lhe a cabea, a admirar-lhe a grossura do rabo, a examinar-lhe as patas, e rematou a vistoriadesta maneira:

    No h dvida nenhuma: um lindo bicho!Rosnou, insofrido. Outra vez a mesma conversa de h bocado! Se guardasse o paleio e lhe desse o

    esqueleto do seu compadre caludo, melhor fazia!Deu-lho, e a seguir despediu-o com uma ordem seca, de quem gostava de ser obedecido. No dia

    seguinte que voltou carga, e de que maneira! No o largou durante uma hora! Comeara o calvrioda educao.

    Correu a princpio ao leno enrolado, a cuidar que se tratava de uma brincadeira. Mas depois viuque o negcio era a srio, que o sujeito tinha l qualquer coisa encasquetada.

    V buscar, Nero, v lFez-se desentendido. E o sacripanta, depois de insistir, de se cansar a ver se o convencia por bem,

    larga-lhe uma vergastada rija! A primeira que apanhouSeguiu-se uma semana triste. At que num sbado de madrugada sairam ambos para os montes,

    ainda enevoados e cobertos de sincelo. Nunca deixara o ninho to cedo. Gostava das manhs nacama, mornas, a dormitar. O galo acordava-o sempre ainda o sol sonhava, cantar-lhe mesmo ao p,quase ao ouvido, a lenga-lenga parva, estridente, sempre igual. A princpio, resmungou. Depoisacostumou-se ao fadrio, e at estimava o despertador, s para ter o prazer de saborear os lenis.Mas naquele dia foi o doutor que lhe bateu ao ferrolho. Andavam quase de mal desde a ltima lio.

  • Mandara-lhe buscar um ovo, e quebrara-o nos dentes, sem querer. E vai logo um puxo valente deorelhas, sem d nem piedade! Apesar de ressentido por semelhante injustia, ergueu-se. Comeu abroa e partiu atrs dele. De repente, j nos montes do Pioledo, ouviu um rudo de coisa que levantavoo, seguido de um estrondo de estarrecer. Que ricos tempos! Fugira to espavorido, to desvairado,que foi bater de encontro cepa duma giesta! Cheio de pacincia, e at com certa ternura, o dono,ento, chamou-o, acarinhou-o, incutiu-lhe confiana:

    No tenhas medo, maluco! Sossega, que ningum te faz mal!Depois mostrou-lhe no cho um passarolo morto. Nero, boca l, boca!Era para ir buscar aquilo, pelos vistos Desconfiado, chegou-se ao p. Traz c!O bicharoco estava realmente defunto. Deitou-lhe os dentes. O que era a inocncia! Tinha ccegas

    na boca! De repente, um cheiro forte, penetrante e doce, inundou-lhe as ventas, o estmago, ocorpo inteiro! Foi a primeira grande hora da sua vida Depois disso que os montes comearam adizer-lhe coisas que at ali nem de longe poderia suspeitar. S ento ficou a saber que por eles acabo, nas manhs doiradas e calmas de Janeiro, era um louvar a Deus de perdizes E que no havianada melhor no mundo do que senti-los frios e firmes sob as patas, quando o sangue fervia nas veiase o instinto pedia asas ao vento. Colado quela dureza gelada, a rastejar e a tremer de emoo, a vidasabia-lhe maior das venturas. Talvez que em certas ocasies devesse caar doutra maneira. Sermais despachado. Mas sentia as malvadas frente do nariz, e sumia-se no cho, nem sabia se aesconder-se, se a prolongar o prazer. Porque a princpio ainda cuidou que conseguiria assim agarraralguma. Depois, no. Finas como rgos, no melhor da festa punham-se na alheta. E perdeu asiluses. Apesar disso, nunca deixara de se encolher, de tentar disfarar o corpo sempre que asfarejava perto, e, muitas vezes, to estacado ficava, que era preciso o dono empurr-lo com a pontada bota grossa.

    Entra, Nero, entra l Deita fora!No arrancava. Continuava pregado ao terreno, a namorar a imagem adivinhada, a encant-la com

    os olhos vidos e, sobretudo, a fruir aquele gozo de sentir o corao pulsar de encontro s fragas.At que uma ordem mais impaciente lhe dizia que eram horas. Dava a pancada. E ficava-se depois

    a olhar a manhosa erguer-se apressada, rumorosa, e cair da a pouco, j passada ou feita num molho.Entrava de novo em aco. Num pronto, entregava a pobre ao dono, tal como a encontrava cada viva ou morta. Nunca um gesto sequer de piedade. Disso pesava-lhe agora a conscincia. Se estavamde ponta-de-asa, as desgraadas fugiam, gemiam, quase tinham voz de gente a pedir compaixo. Nema alma lhe bolia. A esse respeito, fora sempre surdo e cego. Muitas vezes pensava se no seria poressa razo que lhe acontecera a desgraa do Soitinho! Ningum as faz que as no pague Bem quedesconfiara logo do outro caador. Aquele jeito de pegar na arma no lhe merecia confiana, no.Mas mandava quem podia Segue-se que estavam ainda prticamente a sair de casa, quando umcheiro a perdigo lhe entrou em faca pelo nariz. Estacou ali mesmo, no meio da estrada, voltado paraa ribanceira. Ainda se lembrava perfeitamente de ter ficado com a pata direita no ar, paralisada.Depois, a tirar de ventos, foi andando cautelosamente. At que se encontrou a dois palmos do seuvelho conhecido. Era um patriarca manhoso, de espores em rosrio pelas pernas acima, que h anoslhe moa a pacincia. Trs vezes em trs pocas sucessivas o pusera a tiro ao patro, semvaler de nada. O velhaco abria as asas, deixava o chumbo passar, e, sem ningum mais a afligi-lo,ficava larga, a criar unto. Desta feita, porm, a coisa fiava doutra maneira. Iam dois, e puderapreveni-los a tempo e horas. E estava ento com o focinho em cima do excomungado, quando o parvo

  • do caarreta lhe manda um tiro cabea! Ficou ali como morto, e ainda por maior desgraa a ouvir arisada escarninha do albarro, ao dobrar o cerro, so e salvo! Trinta anos que durasse, no seesqueceria nunca daquela hora. Todo o caminho ao colo do doutor, depois de lhe ouvir dizer:

    Uma estupidez destas, s tinha uma respostaDuas semanas de molho, e, diga-se a verdade, tambm de ternuras, de cuidados, de comidinha da

    boa. Por fim l arribou, e a brincadeira ficou-lhe de emenda. Nunca mais correu a foguetes. Quemquer que fosse, podia chamar e assobiar vontade. Nem se mexia. s vezes, rilhadinho de vcio.Mas no ia. Esperava pelo dono, que atirava quando devia, e vamos indo! Errar, todas as erravam,infelizmente. Ainda estava para nascer o primeiro que se pudesse gabar do contrrio. Pelo menos sua frente Pexotices de uma pessoa se benzer! Mas, enfim, o dono no era l dos piores, e largavao tiro na altura prpria, honradamente, quando elas repenicavam as castanholas no ar. Por isso,aguardava que viesse.

    Nem as lrias do Fadista o comoviam, a sugerir-lhe outras caadas de menos risco que poderiamfazer juntos pela freguesia Era um co que se respeitava, que tinha dignidade. Borgas dessas eraml com rafeiros, com jecos do fado e do mundo. O que no quer dizer que fosse nenhum maricas!Tratava de arranjar a vida (a sua vida particular) sem dar nas vistas e sem acompanhamentos, queacabavam sempre em cenas desagradveis. No que tivesse medo a qualquer dos rufias quecostumam aparecer nessas ocasies. Se acontecia ver-se metido nelas, batia-se ali como um homem,at que as coisas ficassem esclarecidas. Tocava a quebrados, dava a matar. E nunca ficara do ladodos vencidos! Pelo contrrio. Procurava, contudo, afastar-se de rixas e contendas. E dissera sempreque no ao amigo, por sinal um belssimo animal, apesar da baixa extraco. Morrera h um ano, odesgraado. Que razia! A guarda espalhou as bolas, e foi a eito. Valeu-lhe a ele estar argola nessadata. Seno, era uma vez um Nero. Que, para chegar misria presente, antes tivesse morridotambm. Ao menos, deixava saudades. Assim, acabava de velhice, podre por dentro, a meter fastio atoda a gente. Se ento o levasse o diabo, no haviam de faltar lamrias e lgrimas naquela casa.Agora, lia nos olhos de todos o desejo de que partisse o mais depressa possvel para dar lugar aoutro... E quem seria o felizardo, que lhe herdaria o ninho? Quem viria ouvir as longas conversas lareira, no inverno, quando a chuva escorregava dos beirais e o vento norte soprava? Tanto pensarano filho, no seu Jau, para o render ali! Mas o raio herdara os defeitos da me: mau nariz e um poucode sofreguido. No se aguentava com elas ao p. L no abocar e trazer mo, sara ao lenol decima: nem sequer o ovo da educao quebrara. Uns dentinhos de veludo. A alegria que tivera aprimeira vez que o viu amarrado junto de si! Deitou-lhe o canto do olho, e o pequeno parecia umaesttua: teso, esticado, o rabo como uma seta Nos montes da Queda, lembrava-se bem. Iam a mata-cavalos num rasto, quase sem tomar respirao. A prever j o resultado da correria, tentava deitargua na fervura:

    Mais devagar, rapaz, mais devagarMas o demnio tinha os nervos da me. Puxava como um drago pela encosta acima. E ele seguia-o

    no andamento, a tentar encobrir o estabanado. Calma! Calma!Nada! Aquele cheiro arrastava-o, endoidecia-o. Isto no vai a matar, homem de DeusAt que chegaram perto do bando. Fez-lhe sinal, estacou, e o garoto ficou-se tambm. Mas, as

    perdizes saltaram e, quando o dono chegou, deu com o nariz no sedeiro. noite, uma grade s costas,coisa que no acontecia h anos. E ao cabo de mais trs ou quatro dias de experincia, o doutor deu-o a um aldeagante de Jurjais. Viera v-lo uma vez, pelo S. Miguel. Pediu-lhe a bno e contou. At

  • fominha! Depois l se foi, coitado. E podia estar ali a receber-lhe o ltimo suspiro e a herdar-lhe oninho de musgo. Sempre era ter algum da famlia ao lado. Assim, morria szinho, tristemente. Nemo ordinrio do galo, com quem tanta pacincia tivera, nem esse vinha! Andava pelo quinteiro, muitoasno, muito parvo, como se mesmo a dois passos no estivesse a acontecer aquela grande desgraa. certo que tambm ele, Nero, vira morrer o gato, um sem nmero de frangos e galinhas, e cada anoseu porco, sem o menor estremecimento. A verdade acima de tudo. Mas, desta vez, o caso mudava defigura: finava-se um co, um co de caa, um navarro legtimo! Ingratides Porque, apesar deperdigueiro, quem tinha ladrado aos lobos, raposa e doninha, quando na capoeira parecia asemana santa?! Ele. Ele, Nero, que entregava a alma ao Criador, ali, desdentado, com as urinas emsangue, cego duma vista E o que ele fora na mocidade! gil, asado, at mesmo toleiro Osgarros do mundo!

    L dentro frigiam carne. Ouvia bem o chorriscar da gordura na sert. Dantes, seria o bastante paralhe correr a baba pelas barbelas abaixo. Agora, s a lembrana de torresmos dava-lhe volta aoestmago. Uma perfeita runa! Estava podre por dentro e por fora Raio de vida! E o malandro dogalo a galar uma galinha! Tivesse ele procedido doutra maneira, quando o parvo era franganote, e jento cheio de proa, e no estaria agora o demo a fazer-lhe macaquices. Mas era feio um navarro darum aperto num frango. Saiba um homem respeitar-se. Que grande dor de cabea! Que pesomedonho na arca do peito! E o corpo mole, sem aco

    A vinha a patroa nova observar o andamento daquiloFechou os olhos. Sempre gostava de ouvir o que diria quando o visse como mortoEla chegou-se e ficou silenciosa.Por uma fresta das pestanas espreitou-lhe a cara. Chorava. Desceu novamente as plpebras, feliz.E noite, quando o luar dava em cheio na telha v da casa, e os montes de S. Domingos, l longe,

    pareciam ter j saudade das suas patas seguras e delicadas, quando o cheiro da ltima perdiz seesvau dentro de si, quando o galo cantou a anunciar a manh que vinha perto, quando a imagem dofilho se lhe varreu do juzo, fechou duma vez os olhos e morreu.

  • M A G O

    Mago respirou fundo. Abriu o nariz e encheu o peito de ar ou de luar, no podia saber ao certo,porque a noite era uma mistura de brisa e claridade. Mas fosse de frescura ou de luz a onda quebebera dum trago, de tal modo o inundou, que em todo o corpo lhe correu logo um frmito de vidanova. Esticou-se ento por inteiro, firmado nas quatro patas, arqueou o lombo, e deixou-se ficarassim alguns instantes, s msculos, tendes e nervos, com os ossos a ranger de cabo a rabo. Arre,que no podia mais! Aquele mormao da sala dava cabo dele. Punha-o mole, sem aco, bambo emorno como o cobertor de papa onde dormia. A que baixezas a gente pode chegar! Ah, mas tinha deacabar semelhante vergonha! No pensasse l agora a senhora D. Maria da Glria Sncia que estavadisposto a deixar-se perder para sempre no seu regao macio de solteirona. No faltava mais nada!De resto, ali tinha j a primeira demonstrao: ela a ressonar szinha na cama fofa, enquanto eleenchia os pulmes de oxignio e de liberdade. certo que a deixara primeiro adormecer, e s ento,brandamente, desusara dos seus braos para o tapete e do tapete para a rua, atravs do postigo dacozinha. Uma questo de delicadeza, apenas. Porque, afinal, no havia vantagem nenhuma em fazer ascoisas bruta e ofender quem s lhe queria bem Que diabo, sempre era a senhora D. MariaSncia, a que at um fio de oiro lhe comprara para o pescoo! Que, considerando bem, por essas eoutras que chegara quela linda situao

    Ouvi dizer que j nem sardinhas comes?! Essa agora! todos os dias E que nunca mais caaste?! Ainda esta manhPiadinhas do Lambo. claro que os mimos da D. Sncia lhe haviam deformado o gosto Metia-

    lhe os petiscos ao focinho, tentava-se! E havia por onde escolher, de mais a mais Quanto a ratos,que necessidade tinha de perder o tempo, debruado trs horas sobre um buraco, sem mexer sequer amenina dos olhos, espera dum pobre diabo qualquer que ressonava l no fundo? Deix-los viver!As coisas so o que so. Em todo o caso, ainda comia a sua pescada crua e deitava honradamente amo a uma ou outra borboleta branca, sem falar nas andorinhas novas e nos pardalecos que filava pordesfastio na primavera. Que demnio! Mais, seria exagerar.

    Mas que no sais de casa, sempre agarrado s saiasNa verdade, saa pouco. Outros tempos, outros hbitos. Banqueteava-se e ficava-se pelas

    almofadas Digestes difceis, vinha-lhe um migalho de sonolncia s vezes tentava reagir. Maso raio da velha, mal o via pr o p na soleira da porta, perdia a cabea! Parecia uma sineta:

    Mago! Mago! Bicho, bichinho!Regressava aos lenis. Contrariado, evidentemente. Mas qu! Era o po O pozinho da boca!

    Que remdio seno torcer caminho e, com as unhas discretamente recolhidas, continuar as carcias dealgodo em rama no cachao da dona

    E que deixaste a Fasca! Eu?! Que anda metida com o Zimbro Pelo menos o que consta. Que teve at cinco pequenos

    dele Meus! Muito meus! Do meu sangue!Pantominice. Um triste chanato na honra do convento Paleio de chavelhudo manso A ninhada

    pertencia inteirinha ao Zimbro. At pela pinta se via. Todos com o mesmo olhinho remeloso do pai

  • Um parrana, realmente, embora o no confessasse. Os mimos da D. Sncia tinham-no desgraado.Ah, mas a coisa ia mudar de figura! Estava farto de ser desfeiteado. Ainda h bem pouco tempoChegara-se ao p da mulher, disposto a impor a sua autoridade.

    Ouve l: disseram-me que mos andas a pr para a com todo o mundo?!E recebe esta pelas ventas: Bem haja eu! Bem hajas tu?! Nunca guardei respeito a maricas!S a tiro! Mas a verdade que a Fasca tinha razo. L de ano a ano que vinha procur-la, e isto

    de gado fmeo quer assistnciaAlm disso, pesado, desconsolado. E at esquecido dos ganidos dessas horas Uma vergonha! Aparece logo noite, pelo Tinoco H reunio E adeusinho Adeus, Lambo.Foi no quintal, tarde, quando a D. Sncia dormia a sesta. O antigo companheiro, empoleirado no

    muro, rondava a cozinha da vizinhana, onde assavam carapaus. Por acaso chegara janela nessemomento, vira-o e fizera-lhe sinal. E o outro, de boa ou de m f, abrira o saco. Mas h males quevm por bem. Depois da conversa, pensara maduramente no caso, e ali estava agora disposto aressuscitar daquela vida perdida em que o destino o metera.

    Sim, ali estava, a dois passos do Tinoco, o clube da gataria do bairro. Bem situado, com sada paradois quarteires, fora fundado pelo maior valdevinos da gerao: o Hilrio. Era um telhadocorrido, quase plano, amplo, alto, mas de onde se podia cair de qualquer maneira numa aflio. Umachado. Como a casa servia de armazm, o Hilrio viu de relance as condies do local. E logo nooutro dia os beijos, as mordedelas, os arranhes e os queixumes do cio foram ali.

    Bons tempos esses! Namorava ento a Boneca, uma gatinha borralheira de a gente se perder. Ora viva! Miiau Seja bem aparecida, a minha princesa! MiiauMimo da cabea aos ps. Mas um rebuadinho! Depois enrodilhara-se com a Moira-Negra, um

    coiro velho, curtido e batido. Cada guincho que abria a noite! Cala-te l com isso, mulher!Isso calava ela! Acabou por se aborrecer. Por fim veio a lambisgia da Perricha Uns trabalhos.

    Cimes, fraqueza, dores de cabea, o diabo! Matas-te, filho, arrunas-tePalavras sensatas da me. Muda de vida, homem! Essa excomungada leva-te sepultura.Mas qu! O vcio pode muitoAt que a me morreu de velhice e desgosto, a Perricha desapareceu das redondezas, e ele foi cair

    por acaso no quintal da D. Sncia. O bichinho est doente. Se calhar fomeE a ternura da senhora nunca mais o largou. A princpio ainda tentou reagir; mas, por fim, o corpo,

    o miservel corpo, acostumou-se ao ripano. A parva cuidava que era amor correspondido. Melhorfora! Amizade sincera no com gatos. Simplesmente, quem brinca aos afogados, afoga-se. Com oandar do tempo, a moleza tomara conta dele Quando reparou, estava perdido. s vezes apetecia-lhe atirar com os aparelhos ao ar. Infelizmente, as vidas iam ruins. Virava-se um balde de restos, e

  • no se aproveitava uma espinha. Que remdio, pois, seno contemporizar Mas cara aposentadoria!Considerando bem, melhor fora que o estafermo da solteirona nunca lhe tivesse aparecido. Maisvalia andar pelado e a cair de fome, e ser capaz de responder ao p da letra aos sarcasmos que agoralhe atiravam.

    Olha o Mago! Olha o milionrio!O patife do Tareco. Era de o derreter logo ali! A desgraa que no podia passar da mansa

    indignao que o roa. Nem foras, nem coragem para mais. E, logo por azar, com o clube cunha!Parecia de propsito. Raios partissem a D. Sncia e mais quem lhe gabava as almofadas! Por causadelas pouco faltava para lhe cuspirem na cara!

    Com que ento de visita aos bairros pobres?! Obra de assistncia aos desvalidos, no?At o bandido do Zimbro! Vejam l! O engraado! No contente de lhe roubar a mulher, de lhe

    pregar um par deles do tamanho duma procisso, vinha ainda com provocaes vista de toda agente. Ah, mas estava redondamente enganado, se cuidava que no recebia o troco devido!

    O cavalheiro seja mais delicado Reparem nas falinhas dele A tratar os amigos por cavalheiros! Amigos?! Eu no tenho amigos da sua laia! Pesam-lhe na testa, coitado!Desembestou. Cego da cabea aos ps, atirou-se ao abismo. Infelizmente, as ensanchas do Zimbro

    eram outras. Tinha raiva, tinha dentes, tinha unhas e flego. Contra tais armas, que podia a sanha dumpobre mortal, gordo e lustroso? Servir de bombo da festa que nem a primeira acertou! gil emusculado, e com a maleabilidade de uma cobra, o inimigo furtou-se sua fria, e ripostou a valerao golpe esboado. Depois, foi o bom e o bonito! A seguir a uma saraivada de investidas traioeiras,meia dzia de navalhadas de liquidar um homem. S visto! No fim da luta, quando j no podia maise se confessou derrotado, sangrava e gemia tanto que at um polcia, em baixo, na rua estreita, secomoveu. O clube, esse, parecia doido de alegria. A Fasca rebolava-se no cho, de contente.

    Fugiu desvairado pelos telhados fora. A lua, cada vez mais branca l no alto, olhava-o comdesdm. A cidade, adormecida, parecia um cemitrio sem fim. Da torre duma igreja saa um pioagoirento.

    Jogara naquele lance o resto da dignidade. E perdera. Dali por diante, seria apenas umahumilhao sem esperana. Ele, que tivera nas mos possantes e nervosas o corpo fino e submisso daBoneca, ele, o escolhido da Moira-Negra, ele, o companheiro de noitadas do Hilrio, ele, Mago,relegado definitivamente para o mundo das pantufas e dos tapetes! Proibido para o resto daexistncia de pensar sequer numa baforada da hmida frescura que agora lhe atravessava as ventas elhe deixava camarinhas no bigode Condenado para sempre ao bafio da maldita sala de visitas daD. Snsia! Negra sorte! E tudo obra do coiro da velha Se no fosse ela, em vez de ir aliesquadrilhado e a mancar da mo esquerda, estaria no Tinoco a soltar ganidos como os outros,depois de ter feito o Zimbro em pedaos Assim, arrastava-se penosamente por aquele caminho dedesespero, tal e qual um moribundo a despedir-se da vida Misria de destino! Vexado, vencido,retalhado no corpo e na alma E tudo obra do estupor da santanria!

    Vinha rompendo a manh. Um sino ao longe deu seis horas. Abriam-se as primeiras janelas.Grandes laivos avermelhados anunciavam a chegada prxima do sol.

    Parou. Lambeu a pata doente e sacudiu-se, num arrepio. Uma lassido profunda comeava a invadi-lo. Maldita D. Sncia! Se nunca tivesse conhecido tal sujeita

    Olha, olha, a enevoar-se-lhe a vista! Queriam ver que ia desmaiar?!Encostou-se a uma chamin, e ficou algum tempo sem dar acordo de si, a arfar penosamente. At

  • que uma onda de energia o trouxe de novo ao mundo. Arregalou os olhos. Estava melhor, felizmente!J enxergava claro outra vez. Podia continuar.

    Em que trabalhos o metera o raio da velha! E louvar a Deus safar-se com vida da brincadeiraCoa Valente! Por um triz que no se ficava Muita resistncia tinha ele ainda!

    A alguns metros apenas do jardim da casa, cuidou que tornava a desfalecer. E s ento quereparou: deixava um rasto de sangue por onde passava

    Fez das tripas corao, e l conseguiu equilibrar-se e chegar ao pequeno muro que vedava oparaso da sua perdio. Saltava? No saltava? Que infmia, regressar aos mimos da D. Sncia! Quenojo! Que ordinarice!

    Mas a que propsito vinham agora semelhantes escrpulos e recriminaes? Sim, a que propsito?Fartinho de saber que nem sequer lhe passara sriamente pela cabea a ideia de resolver o casodoutra maneira! Ao menos fosse sincero! De resto, que esforo concreto fizera para se libertar?Nenhum. Ainda no havia uma dzia de horas, ouvira a voz do Lambo como um eco da prpriaconscincia E, afinal, ali estava outra vez! E viera de livre vontade Ningum o obrigara Jrodo de remorsos? Ora, ora! Outro fosse ele, nem aquela casa encarava mais. E voltara! Sim,voltara miservelmente E procura de qu? Da paz podre dum conforto castrador Queabjeco! Que nusea!

    E, sem querer, sem poder aceitar a sua degradao, Mago entrou pelo postigo da cozinha e foi-sedeitar entre os braos balofos da D. Sncia.

  • M A D A L E N A

    Queimava. Um sol amarelo, denso, caa a pino sobre a nudez agreste da Serra Negra. As urzestorciam-se beira do caminho, estorricadas. Parecia que o saibro duro do cho lanava baforadas delume.

    Madalena arrastava-se a custo pelo ngreme carreiro cavado no granito, a tropear nos seixosbritados por chancas e ferraduras milenrias. De vez em quando parava e, atravs dum postigo abertona muralha das penedias, olhava o vale ao fundo, j muito longe, onde o corpo lhe pedira para ficar, sombra de um castanheiro. O corpo. Porque a vontade fizera-a atravessar ligeira a frescuratentadora da veiga e meter-se animosa pela encosta acima. Tudo estava em chegar a Ordonho a tempoda sua hora. Por isso, era preciso reagir contra a prpria natureza e andar para diante, custasse o quecustasse.

    Galgada a custo a ltima rampa, Madalena encarou com terror a imensidade da montanhadescarnada e hostil. Cada frago de estremecer! Blocos desmedidos, redondos, macios,acavalitados uns nos outros num equilbrio quase irreal, ou ento dispersos, solitrios, parados esilenciosos pelo planalto alm.

    Comeara a sentir as dores de madrugada, vagas, distantes, quase gostosas. E, a esse primeiroaviso, resolvera partir. J agora, por mais um pouco, era levar a cabo aquele timbre. Sab-lo, at ali,s ela e Deus. Nem o maroto que lhe fizera o servio desconfiava. Sempre fora senhora do seu nariz.Dera o tropeo, certo, mas em seguida conseguira esconder a ndoa dos olhos do mundo andoa maior que pode sujar uma mulher. E nem mesmo ele suspeitava sequer do que se passava.Dias depois da desfeita, quando se lhe chegou com olhinhos de carneiro, a querer repetir a faanha,p-lo a andar, sem de longe ou de perto tocar em tal assunto.

    Escusas de teimar: pega ou larga de vez. Se te no presto para uma coisa, tambm te no prestopara outra Resolve. Ces no rasto que no quero!

    Fez-se desentendido. L casamento, isso no era com ele. Tinha a me, tinha as sortes, tinha a vidaencalacrada.

    Pois entoE virou-lhe as costas. Servir-lhe apenas de estrumeira, consentir que se utilizasse dela como de

    uma reca, no. verdade que a disfrutara por inteiro naquela maldita tarde Pacincia. O que ,comera por uma vez. Danado, ainda rosnou. A engolir as palavras, deu a entender, numa cava, quesim e mais que tambm. De pouco lhe valeu. Ela cortara de tal maneira o mal pela raiz, que ningumacreditou nas alarvadas. Graas a essa firmeza, estava quase a chegar ao fim do fadrio naconsiderao de toda a gente. Bastava agora ter coragem e nimo nas pernas. No. Nem Roalde, nemo badana se haviam de rir. Dera com o nariz no sedeiro, realmente. Na primeira quem quer caiMas tomara a peito manter-se pura da em diante, e fizera vingar a sua. Nove meses como novenovenas! Preferia morrer, a ficar nas bocas do mundo. Com o correr do tempo, vira-se e desejara-separa manter o disfarce. Os ltimos dias, ento, pareceram-lhe anos. Felizmente, at esses vencerasem se denunciar. Fechou-se em casa, com a desculpa de andar adoentada, e aguardou que chegasse omomento de largar. E vinha o sol a nascer, este mesmo sol que agora lhe estonava a carne, metera psa caminho. Nem viva alma, ao sair da aldeia! Roalde em peso mourejava nos lameiros e nascortinhas da Tenaria. O Agosto corria criador. E cada qual gastava-se nos bens, a regar os milhes,as hortas e os batatais. Em Roalde, graas a Deus, guinha era dar ao talhadoiro

    gua! Se ao menos tivesse um golinho dela naquele instante! Bastava-lhe molhar a boca J

  • mal a sentia, de to seca Era um buraco encortiado, por onde o ar passava em labaredas. Quaseque lhe apetecia ferrar os dentes no toco dum carvalhio, a ver se a humedecia.

    Chegada ao meio do planalto, as penedias metiam medo. Espaadas e desconformes, pareciamalmas penadas. Uma giesta miudinha, negra, torrada do calor, cobria de tristeza rasteira odescampado. Debaixo dos ps, o cascalho soltava risadas escarninhas.

    Estalava de secura. Ao tormento do cansao e crueldade das guinadas traioeiras que aanavalhavam quando menos esperava, juntara-se uma sede funda, grossa, que a reduzia inteira a umafornalha de lume. Mas j o seu av almocreve dizia:

    Na Serra Negra, quem se quiser refrescar, tem de beber o suorSimplesmente, o av era homem e corria o mundo escanchado num macho, com a borracha de vinho

    no alforge. E ela, Madalena, no passava de uma pobre mulher, que ia ali naquele ermoexcomungado, trespassadinha, j sem foras para mais, com o maldito do filho dentro da barriga aoscoices. E tudo por causa das falinhas doces do Armindo, daquelas falinhas mansas, repenicadas, quea levaram desgraa! Ah, magusto, magusto do S. Martinho! Caras lhe estavam as quatro castanhasassadas que aceitara na cardenha da Tapada. O malandro at jeropiga tinha ali mo! E ela, a tola,comera, bebera e, por fim, rolara na palha aos berros. Mas de nada lhe valera. De todo o jeito, erasempre sobre o seu corpo o corpo rijo do estafermo, tenso, quente, angustiado. E cedera. Um minutode fraqueza, ou de piedade concedida a tamanho desespero, e ao acordar perdera o melhor. Maspronto. Estava feito, estava feito. Levantou-se, sacudiu a saia, e no tugiu nem mugiu. Fez de contaque nada acontecera. S que da por diante passou a desviar-se das ocasies, embora sempre espera. Calada como um testamento, aguardou que o rapaz viesse falar-lhe a srio. L compalavrinhas de amor, no! Batesse a outra porta. E queria os banhos na igreja e o casamento emJaneiro. Sem lhe dizer, claro, que ficara naquele estado

    Mas o co s pensava na carnia. Quando voltou, trazia apenas o vcio assanhado. E mostrou-lhe ocarrinho.

    Para isso, vai s da VilaTratou de enfaixar o ventre sob o saiote de l, e foi vivendo. noite, na cama, que em vez de

    passar contas passava lgrimas Como vivia s, ningum, felizmente, dava f das suas mgoas. E osmeses iam correndo. At que ao amanhecer daquele dia Mas Roalde no havia de ter o gosto delhe ouvir os gritos. Nem Roalde, nem o tinhoso do senhor Armindo. No lhes dava essa glria. E alise arrastava, quase morta, por ermos amaldioados, para que tudo continuasse entre ela e Deus.Meteria agora no segredo a Ludovina, a sua amiga de Ordonho, porque de todo no poderiagovernar-se szinha em semelhante aflio. Em casa dela teria o filho. E depois Depois Ah, masa sede cortava-lhe o tempo ao meio! O futuro para um lado, vago, distante, irreal; o presente para ooutro, urgente, positivo. gua! Tivesse ela mo a fonte da Tenaria, um olho marinho que fartava oslameiros e ficava na mesma, gua a jorros com que matar a sede da boca, do peito, da barriga, docorpo inteiro, e tudo seria simples

    Mas gua, s a que lhe inundou de repente as partes, e lhe escorria pelas coxas abaixo, quente,viscosa, pesada

    Estremeceu. Poderia ainda continuar? Poderia ainda arrastar-se, cheia de febre, extenuada, emferida, pela serra a cabo? E as dores cada vez mais apertadas, que a varavam de lado a lado, aprincpio rastejantes, quase voluptuosas, e depois piores que facadas? No, no podia continuar.Agora s atirar-se ao cho e, como no dia de S. Martinho, rolar sobre a terra em brasa, negra,saibrosa, eriada de tocos carbonizados, sem palha centeia a quebrar a dureza das arestas, e sem odesavergonhado do Armindo a cantar-lhe loas ao ouvido

  • Aguilhoado de todos os lados, o corpo comeou a torcer-se, aflito. E da a pouco arqueava-seretesado, erguido nos calcanhares e nos cotovelos, a estalar de desespero. Dentro dele, atravs dele,um outro corpo estranho queria romper caminho. E, por mais que cedesse e alargasse, o inimigomantinha-se insatisfeito, a reclamar maior espao, a exigir as portas abertas de par em par. Sem apiedade dos intervalos de h pouco, as dores pareciam cadelas a mord-la. De cada guinada vencida,nasciam outras guinadas, como rebentos por uma castinceira acima. E toda ela era um uivo de bichocrucificado.

    Alheia a tamanha angstia, a serra dormia a sesta, impassvel. Indiferente ao tempo, que parara oudesusava sem lhe tocar a pele empedernida, fechara-se num egosmo desumano. E quando Madalena,ao cabo de uma eternidade cega e raivosa, conseguiu finalmente sair do tronco de tortura, nadamudara. Os frages sonhavam ainda.

    Suava em bica. Escorria das fontes sola dos ps. O sol j no estava a pino. Ia caindo,agonizante, para os lados do Maro. A ltima dor morrera h um segundo, ou h horas, ou hsemanas? No sabia. Sabia, sim, que o sofrimento se apagara de vez e a deixara, como deixa ocortio o enxame que parte.

    Nem um som, nem a presena duma aragem a quebrar a solido que a cercava. Apenas num cu emfim de incndio um mormao cerrado.

    Abriu de todo os olhos turvos. Entre as pernas, numa poa de sangue, estava cado e morto o filho.Carne sem vida, vermelha e suja. O segredo dela e de Deus!

    Exausta, deixou-se ficar prostrada, a saborear o alvio. As cancelas escancaradas fechavam-selentamente Por fim, cansou-se da prpria imobilidade. Ergueu-se, ento. E permaneceu assimalguns segundos a ouvir o silncio, como a ver se l do longe vinha resposta aos gritos desesperadosque lanara. Nada! O mundo emudecera.

    Com fetos verdes limpou-se. Depois deixou cair aquele pano sujo no charco onde o filho dormia. Op, sem ela querer, foi escavando e arrastando terra Aos poucos, o seu segredo ia ficandosepultado O p tentava deslocar agora uma laje que estava ao lado. Era pesada de mais. E as mosajudaram O sol, cada vez mais baixo, lanava os ltimos avisos da sua luz. E os olhos deMadalena viram claro. Eram horas de regressar. Eram horas de voltar aldeia e matar aquela sedesem fim na fonte fresca da Tenaria.

  • M O R G A D O

    ceia, o patro, com cara de poucos amigos, recusara-lhe as festas desta maneira: Deixa-te l de brincadeiras e enche-me esse bandulho, que amanh de madrugada, nem que

    chovam picaretasTal e qual. Meteu a viola no saco, claro, e atirou-se ao penso como pde. Mas no sentia vontade.

    Tinha ainda no estmago os tojos que despontara tarde no monte, e andava, sem saber porqu, decorao apertado. Alm disso, aqueles modos do dono at parece que endureciam o feno. A gentetambm vive de boas palavras. E, verdade se diga, gostava do sujeito. Desde que ele, h seis anos,na feira dos vinte e trs, o distinguira no meio dum regimento de azmolas e lhe dera uma palmadarija na anca, simpatizara com a sua figura atarracada, vermelha, a respirar sade e bonomia.

    Quanto custa o jerico? Vinte libras. No estampa para tanto dinheiro.Ai o alma do diabo a desfazer! Vinte libras, nem menos um real. Deixe o garrano por dezasseis, e j caro como fogoO cigano! Mas logo que o viu contar as dezassete moedas e pegar-lhe arreata, cantou aleluias.

    Estava farto das bebedeiras do Preguias. Cheio at s orelhas de subir a malvada ladeira da Quedaa ouvir-lhe as asneiras de bebedolas. Mas era um macho! Aguentava no lombo quinze alqueires depo como se fossem quinze alqueires de penas. Estribado nisso, o moleiro, com cardina ou sem ela,nas feiras, punha o preo em vinte libras. Resultado: ningum o levava.

    Voc quer que lho carreguem de oiro! pegar ou largar.E tinha de regressar loja, maldita loja encostada ao moinho, ao lado da roda, sempre molhada e

    toldada de barulheira, e no dia seguinte trepar novamente a encosta, ao som da ladainha do costume.Zumba na barra da saia, Z

    Comida carqueja, palha cevada estreme, e s l de tempos a tempos uma pitada de gro. Vidanegra! Por isso, quando viu o contrato fechado, sentiu-se redimido. E, apenas o novo dono se lheescanchou em cima e seguiram pela estrada de Feitais, parecia-lhe que tinha asas, de to feliz. chegada, logo uma manta a resguard-lo dum resfriado, e milho branco e grado na manjedoura. Umcu aberto! Evidentemente que no havia s rosas naquela casa. Longe disso! O macho dumalmocreve, sabe Deus Mas, bem comido e bebido, um homem trabalha com alegria. De mais amais se o patro, s tantas, diz o seu dito engraado, a animar:

    Ah! Morgado, que me borras a pintura!Nem respondia. E assim que o arrocho dava o ltimo aperto cilha, largava frente da rcua, de

    pendo erguido.Desta vez, infelizmente, o caso era mais complicado. A ceia correra mal, iam szinhos, e os bons

    dias foram este consolo, pouco mais ou menos: Vamos l! Vamos l, que so seis lguas de serraNo gostava de semelhantes modos. Arrenegava de viagens mal principiadas. De maneira que

    recebeu a carga aperreado, e meteu-se ao caminho a malucar no pior.Tinham passado a ltima povoao do concelho e seguiam agora pela estrada velha de Arc,

  • sumidos na escurido, varados de lado a lado por uma chuvinha gelada e teimosa. Mas o invernocorria daquela maneira: ou neves de caiar a alma de tristeza, ou ento um tempo assim, frio,hmido, cortado por lufadas speras de ventania. O patro pegava-lhe arreata. Ambos calados. Sos passos no saibro duro os revelavam ao ouvido atento das penedias, que escutavam das trevas.

    No se lembrava de ter feito em toda a vida jornada que se parecesse. Nunca lhe acontecera, comohoje, ir com os cinco sentidos num alarme constante. Que raio de madrugada mais tenebrosa! Em vezde encher a alma de esperana, cobria-a de agoiro! E, sem querer, Morgado comeou a sentir ocorpo arrepiado e a desejar com desespero a luz da manh.

    Ah, mas sabe Deus onde viria ainda o dia! Seis lguas de serra, se entendera bem. Pelos vistos, eratirada at ao vale de Vila Pouca. Da a necessidade de aproveitarem as horas mortas da noite. E todoo plo se lhe crispava, ideia de que faltava muito ainda para que, o sol alumiasse a terra e tirasse caminhada o ar de pesadelo que a tornava infindvel. certo que a presena do dono o sossegava umpouco. Embora o no visse, por causa do comprimento da rabeira e da negrura cerrada, sabia quecaminhava frente, pronto para o que desse e viesse. E que raio poderia acontecer? Tropear? Noaguentar a carga? Se fosse apenas isso! Embora pssimamente dormido e com a barriga vazia, nem aspernas lhe quebravam s primeiras, nem trs sacos de centeio lhe faziam mossa. Os aborrecimentosque temia eram doutra natureza Qualquer encontro desagradvel, por exemplo

    Nem de propsito! Ele a pensar no mal, e a ponta dum uivo tenebroso a furar-lhe os ouvidos.Um arrepio fundo percorreu-lhe o corpo. E, a seguir, todo ele ficou hirto, frio, pregado ao cho,

    num pnico mortal. Obra de um segundo, apenas. O justo tempo de a arreata ficar esticada entre amo que a segurava e o argolo do cabresto. que reagiu logo. Que diabo! Ia ali quem odefendesse No havia razo para um terror assim!

    Mas o dono, enigmticamente, recuava. Aos poucos, encurtava os passos e chegava-se ao seu bafo.Mau!

    Novo uivo, quase sobre eles, fendeu a noite. E ambos, agora como se fossem um s, de tocingidos, se puseram a pisar o cho ao de leve, encolhidos no bioco da noite, com a respiraosuspensa.

    Tolice pura, porque de nada lhes valia o disfarce. Morgado sabia-o bem. O instinto j o avisara deque tinham perna alcateia esfaimada, capaz de farejar a presa a cem lguas de distncia. De resto,os uivos eram de tal modo cerrados volta, que s mesmo um milagre.

    Ah, sim, o corao no lhe vaticinava coisa boa do passeio. H dias que trazia dentro do peito umpressentimento negro. Depois, a repugnncia da ceia, o acordar sobressaltado, as horas soturnas docaminho, e, a coroar tudo, o silncio enigmtico e desacostumado do dono

    Mas, precisamente, o dono erguia a voz do poo onde a sepultara: Estamos perdidos, Morgado! Raios partam a minha pouca sorte!No sabia que razo levava o almocreve a proceder daquela maneira. A que propsito dizia coisas

    toa, berrava, batia com fora as botas grossas no cho, como se quisesse szinho fazer barulho portrinta? Talvez tentasse amedrontar as feras, dando a entender que seguia ali um regimento derecoveiros com a respectiva caterva de bestas. Pois sim! Se pensava isso, enganava-seredondamente. Mais por adivinhar que por distinguir, Morgado antevira j uns olhos incendiados defome a espreit-los do corao da noite. E o patro decerto os notara tambm, porque agora pusera-se a petiscar lume num seixo com a folha de ao da navalha. Como se os lobos tivessem medo daspobres fascas que lhe saam das mos trmulas e garanhas ! Se apenas dispunha desse recurso, seno trazia no bolso um daqueles pistolos com que nas feiras, quando havia zaragata, os homens sematavam uns aos outros, estavam liquidados. Ali s mesmo um dos tais estoiros medonhos que

  • pareciam troves e desfaziam os ajuntamentos num suspiro. Ou isso, ou nada. Eram j trs vultos quevislumbrava na escurido, calados, mas resolutos.

    Ora, em vez de sacar do tal instrumento que, a trinta ou quarenta passos de distncia mandava umcristo desta para melhor, o dono, depois do ridculo arraial de pirilampos, chegou-se a ele e, semmesmo o fazer parar, cortou dum golpe as cordas que seguravam a carga. Os sacos de centeio caramespapaados no lajedo.

    Que raio de manobra era aquela? Pretenderia o patro tentar a fuga? Quereria trepar-lhe ao lomboe abrir caminho pela serra fora? Nem mais. Mas uma triste ideia, alis. Ele, Morgado, j no tinha aspernas da mocidade. Muito embora se considerasse ainda um animal capaz de cumprir o seu dever,no lhe pedissem semelhante bonito, depois de trs horas de jornada, mal dormido e mal comido, e,ainda por cima, num caminho de pedras e com uma alcateia ilharga. Tudo tem os seus limites. Almde que um macho no bicho de correrias. Isso l com pilecas de ciganos.

    o nico recursoSeria. Mas punha-lhe dvidas Em todo o caso, no pensasse o amo que se negava. No.

    Galopava sobreposse, e assim havia de continuar at rebentar os peitos. Se discordava daresoluo tomada, porque realmente estava convencido de que nada se resolvia com panos quentes.

    Anda, Morgado, que eles vm a!Que novidade! Outra coisa que seria para admirar.Depois de o aliviar da carga, o dono saltara-lhe para cima, dera-lhe meia volta e metera-o a toda a

    brida a caminho de casa. Infelizmente, a alcateia fizera o mesmo. E ali iam destilada tambm, quaseao lado, cinco lobos medonhos. Ah, o patro no ter um trabuco dos tais! Assim, era a perdio.

    E a manh sem romper! Levava os cascos em ferida, sentia o suor cair-lhe em fonte pelas virilhas,todo o corpo dizia bonda ao desatino de semelhante desfilada, e nem ao menos um sinal dealvorecer!

    Quanto mais corria, mais o vento lhe soprava nos ouvidos. Assobiava de tal modo, que pareciafazer troa daquela fuga desordenada.

    Aguenta, Morgado! No esmoreas, pelo amor de quem l tens!Pois sim. O ponto era poder. Muito embora quisesse valer aflio do dono, e sua tambm, as

    pernas negavam-se. Por isso, pouco a pouco, foi abrandando o passo, a fazer sabe Deus quesacrifcio para no cair redondo no cho.

    Grande ladro, que me atraioas!A paga que recebia! No bastavam as chicotadas secas e contnuas que, com a soga da rabeira, lhe

    dava na cabea, nas ancas e onde calhava, ainda um insulto daqueles! Mas chegara ao limite dasforas. Batesse, espetasse mesmo a ponta da navalha, laia de espora, fizesse o que entendesseFora at onde podia. Agora

    Excomungado! Desgraas-nos a ambos! Pacincia. Quem d o que temUm lobo saltara j do barranco para a estrada. Minhas ricas dezassete librasNo percebeu. Parara exausto, com o corpo em fogo e a cabea tonta da nortada e das vergastadas

    que recebera. E no abrangeu logo o sentido verdadeiro de semelhantes palavras numa hora assim. A estas digo-lhes adeusMas apenas o almocreve desmontou, e num relmpago lhe tirou os aparelhos, acabou por

    compreender que o ia abandonar ali, esfalfado, coberto de suor, indefeso, fome do inimigo.Salvava a vida com a vida dele E lamentava as suas dezassete libras!

    E, afinal, a manh vinha a romper! S quando viu o dono a caminhar pela serra fora de albarda

  • s costas no se envergonhar! e sentiu os dentes do primeiro lobo cravados no pescoo, quereparou que a luz do dia comeara a desenhar as coisas e a dar significao a tudo.

  • B A M B O

    O filho do caseiro novo que lhe fez aquilo. Devagar, muito devagarinho, chegou-se a ele e zs!: espetou-lhe a estaca nas costas. Depois ergueu-o e, de barriga para o ar, deixou-o ali suspenso,a espernear ao sol.

    O menino era mau de natureza. Furava os olhos dos passarinhos e cortava as pernas dos saltaricosquando podia. Mas, no caso de Bambo, portou-se assim porque a Joana Anglica lhe encheu primeiroos ouvidos. noite, na fiada, tanto disse e ladrou dos sapos, do coxo e das feitiarias, que opequeno, pela manh, mal deu com Bambo na horta, varou-o de lado a lado. E o pobre no teve outroremdio seno morrer trespassado na ponta do pau, a servir de espantalho s levandiscas. Com aschuvas, o sol e as geadas apodreceu por dentro, cheirou mal, secou e tornou-se num fole retesado.Uma sementeira mais, e desfez-se em p.

    Bambo, o sapo! Criou-se ao deus-dar, como tudo o que bom. Sem pressas, confiado no tempo ena fortuna, foi estendendo a lngua pelos anos adiante at se fazer o homem que depois era, largo,grosso, atarracado. Trouxe logo do bero os olhos assim sados e redondos, e aquelas pernas de trsem dobradia, no mesmo instante um banco ou uma catapulta. E tambm a boca de pasmo, com quepelas noites adiante engolia a imensidade do cu, lhe veio de nascena aberta e vazia como um poo.Mal gatinhava ainda nas beiradas do charco onde nascera, j o corpo lhe pedia mundo, terras novas.E devagar, moroso, a suar o visco que o defendia de tudo, chuva e ao vento, umas vezes a morrerde fome, outras entoirido de fartura, tanto andou, que no havia segundo da sua criao que toprofundamente conhecesse a veiga de Vilarinho. Contudo, e no se sabe porqu, s aos vinte anosdeu entrada na quinta da Castanheira que o tio Arruda trazia de renda. Pelos quinze de Agosto quandoos milhes pareciam canaviais Eram duas da madrugada. A aldeia, adormecida, sonhava. Caa umluar sereno, rarefeito, por sobre o casario negro. Ao longe, as matas do Infantado enquadravam ovale num abrao soturno. Nem a gua da mina velha, que corria pela embelga fofa, fazia o maispequeno barulho. Nada! Um silncio de pedra! Tio Arruda recordava-se bem do dia, da hora e detodos os pormenores do acontecimento. Por sinal que atravessava nessa altura uma crise dedesnimo. ceia, duas batatas cozidas, apenas. Depois, um homem cansa-se de regar milho a vidainteira. Uma existncia triste, a sua Sempre a trabalhar por conta dos outros Ficara solteiroConvivia pouco Nisto, ao tornar a gua tchap! Foi a ver e sai-lhe um sapo!

    Simplesmente, Bambo no era um anfbio qualquer. Embora modesto na escala animal, tinha a suapersonalidade. Precatado, discreto, negava-se a cair nos braos do primeiro que lhe desse asalvao.

    Ora viva quem tambm anda acordado a estas horas!No respondeu. Na boa da conquista, est-se mesmo a ver!Moita. Nunca dera troco a brincadeiras tolas. De resto, no andava s gatas, como o outro

    insinuava. Amores, s na primavera e na ribeira de Arc.A desculpa que tio Arruda desconhecia a vida do futuro amigo. Alm de que dizia estas coisas

    por dizer, sem segundas intenes. Saudava apenas, num alvoroo justificado de solitrio, aquelaalma que lhe aparecia. Ah, mas Bambo no se entregava assim sem mais nem menos! Na maneira defitar o interlocutor, no modo reservado como se foi afastando, mostrava claramente que no abria ocorao antes de saber a quem.

    Contudo, tempos depois, quando se viram de novo no tendal de feijes, tudo correu melhor. Nem

  • sombras da natural desconfiana do primeiro dia, nem nada que se assemelhasse ao retraimentoantigo, com o salto por um plo a guardar as distncias. Coisa muito diversa. Agora, Bambo, emborano correspondesse aos cumprimentos, mostrava-se to urbano, dava tais provas de lhe ter cado bemsemelhante encontro, que tio Arruda parecia ter corda na lngua.

    Felizes olhos, amigo! At que enfim! Que ausncia foi essa? Grande passeata!Tio Arruda ignorava que ele, Bambo, passava o inverno recolhido. Que se retirava discretamente

    num buraco da parede da quinta mal vinha Outubro, e ali permanecia imvel, calado, sonolento,Novembro, Dezembro, Janeiro, Fevereiro e Maro. Da a razo de semelhante escarcu.

    Ignorncia desculpvel, alis. A gente entende pouco do semelhante. Cada um de ns um enigma,que a maior parte das vezes fica por decifrar.

    Porque, na verdade, Tio Arruda estava diante de um ser complicado. Com os anos que verificoucomo eram enganadoras as primeiras impresses. Tambm ele fizera juzos temerrios, fizera! Magianegra, bruxarias, o diabo meia-noite nas encruzilhadas E, afinal Parecia mentira, realmente.Mas viessem ver a realidade. Viessem ver o demnio do batrquio, reluzente de luar e alheado comoum poeta Quem na freguesia inteira passeava assim cheio de calina e de compenetrao nosilncio carregado de estrelas? Quem, quelas horas mortas, se maravilhava de igual maneira, aolhar deslumbrada a poalha de luz da estrada de Santiago, aberta no cu? Ningum a comear, por siprprio. H sessenta anos no mundo, e ceguinho como uma toupeira. E os outros na mesmaconformidade. Para todos os habitantes de Vilarinho, sem excepo, as noites eram noites escurido apenas. E os dias pior ainda, apesar da claridade. Ricos e pobres nem no brilho do solreparavam. Comiam, bebiam e cavavam leiras, numa resignao de condenados.

    A vida assimE a vida, como um fruto, estava cheia de doura. Mas fora preciso, para o saber, que Bambo lhe

    aparecessePerguntou-lhe E ento agora? Quanto tempo por c?At ao fim das colheitas. Enquanto houvesse um bocado de calor capaz de aquecer o lombo dum

    cidado, faziam companhia um ao outro. Punha uma condio: apenas se podiam ver depois de solposto. Razes particulares

    Tio Arruda achou bem. As noites estavam realmente maravilhosas. A gua da mina, pela calada dashoras, rendia mais De maneira que

    Bambo, desde o primeiro instante, manteve o silncio habitual. E Tio Arruda acabou por entender.Afinal, ali, de ps sobre a melhor terra da veiga de Vilarinho, onde as minhocas engordavam comovacas, palavras s de quem tivesse a lbia do pregador de Passos, que subia ao plpito e faziachorar os santos no altar. O raio do homem parecia um saca-rolhas a trazer tona da conscincia oque ia dentro da alma de cada um! Mas, fora esse, ningum na aldeia sabia abrir a boca. Por isso,mais valia seguir o exemplo do amigo, que era de mudez completa.

    E a verdade que nunca encontrara tanto sentido e beleza s coisas que o rodeavam, comonaquelas horas silenciosas. Nelas, at as prprias sombras faziam confidncias ao entendimento

    Tio Arruda andara por maus caminhos. Confessou isso honradamente porta da igreja, no domingo.Riram-se-lhe na cara. Quem havia de acreditar que um sapo fosse capaz de ensinar a algum acincia da vida? Impossvel. E Tio Arruda, desiludido daquela incompreenso, voltou s suas regase comunho ntima com a natureza. Precisava de chegar ao fim. Necessitava de aprender o resto dalio de Bambo, guarda zeloso dum mundo fremente de germinaes. Entender em que medida ele seconsiderava responsvel pelo pequeno gro que caa desamparado na terra, e at que ponto o

  • rodeava de proteco. Inesperadamente, quando o sol, pela manh, ao comear o seu giro,coscuvilhava os recantos do planeta, um canteiro, que no dia atrs era cho enigmtico, apareciacoberto duma verdura virgem, casta, feita de esperana, gua e cor. E s mesmo Bambo conhecia agrandeza do mistrio, e o cercava de amor. Nenhuma outra conscincia seguira no corao da noiteos transes da transmutao germinativa. E nenhuma outra inquietao fazia sentinela ao milagre.

    Seduzida e contagiada, a alma do trabalhador abria-se pouco a pouco s ntimas razes dessacomunho profunda. At ali, do crepsculo ao alvorecer, as horas eram feitas de egosmo ealheamento. Agora, Tio Arruda descobria em cada gomo ou em cada folha a porta dum Ssamo. Etudo obra de Bambo! Ao lado da sua serenidade e do seu apego terra, do que nela havia deessencial o dom de fecundar e parir , ia conseguindo auscultar as imponderveis palpitaes daseiva. Nada de parecido com o interesse mesquinho, utilitrio, que sentia outrora diante dumasementeira a despontar. Numa curiosidade progressiva, verificava com espanto que, alm da fome,havia outras verdades. E, como Bambo, j no combatia as pragas apenas para salvar a colheita.Deitava enxofre e sulfato nas videiras, simplesmente para defender a vida. certo que matava vida.Mas nicamente aquela que, errada e parasitria, estava desde a nascena a soldo da morte. Depois,preservado o rebento, expurgada de ervas daninhas a relva tenra do linho, dava largas aos sentidos.E ficava-se tambm, quieto e deslumbrado, a olhar uma gota de orvalho pousada no cetim de umaptala, ou a escutar, de ouvido fito, um rouxinol que cantava na Silveirinha

    Assombrado com semelhante transfigurao, o povo comeou a falar. E, pela voz do Chico dasEiras, caoava:

    Como vo esses amores, Tio Arruda? J h menino?Nem sequer respondia. Baboseiras, todos as sabiam dizer. Do esforo de descer ao corao das

    coisas, que nenhum era capaz.Mas um dia Tio Arruda morreu. Um resfriado, e ningum lhe pde valer. Nem mesmo a lembrana

    do mestre, que nesse Dezembro nevoso hibernava filosficamente num buraco. E, com a sua morte,veio novo caseiro e foi-se de Vilarinho o nico homem que sabia de cincia certa quem era Bambo,o sapo.

  • T E N R I O

    Esta a histria verdadeira de Tenrio, o galo.Nascido duma ninhada que a senhora Maria Puga deitou amorosamente debaixo das asas chocas da

    Pedrs, em doze de Janeiro, pelas trs da tarde, quando a velhota o viu sair da casca, disse logo: frango.E realmente. Aquela amostra de crista que trazia do ovo, poucas semanas depois, parecia j uma

    mitra. E ningum mais duvidou de que era frango macho. Dos dois irmos, muito tinhosos, sempreenjeridos, desses que a incerteza se manteve por largo tempo.

    Que te parece, Antnio? Eu sei-te l, mulher! O da dianteira est-se mesmo a ver. Aquelas trs so pitas, com certeza. Agora estes

    enxalmosFrangos tambm, mas fracos. Mal viam gavio sobre o quintal, metiam nojo: Piu Piu PiuL parava a me de esgadanhar. Piu Piu PiuAt metidos nos sovacos da progenitora se borravam! Ele, porm, continuava ao ar livre, a desafiar

    o inimigo, que planava l no alto. H-de ficar para galo!E a sujeita tinha palavra. Em Maio, por alturas da Ascenso, ao dar de caras com os irmos

    degolados e depenados, ainda lhe tremeu a passarinha. Olha que brincadeira! Felizmente que a donasabia distinguir o trigo do joio, e o deixava para semente Um futuro bonito, afinal! certo que noestava nesse momento em condies de apreciar devidamente a grandeza da sorte que lhe coubera.Muito embora a simples certeza de viver lhe enchesse a alma duma confiana cega no porvir, s daa algum tempo que viu claramente o tamanho do seu destino. Quando tal compreendeu, cuidou queestalava de orgulho.

    Foi num certo amanhecer de Outubro Que grande dia, esse! Ao cabo de um sono profundo,acordara cedo, ainda mal se adivinhava a alvorada pelo buraco da fechadura. Um silncio decomunho. O cheiro forte do mosto que fervia na adega, adocicado, entrava pelo corpo dentro epunha-o a sonhar volpias. E, no meio da mudez das coisas e daquele perfume de levedao,comeou a sentir uma tal nsia de abrir o peito e cantar, que at cuidou que tinha febre e delirava.Mas no. Felizmente, estava bem de sade. A estranha sensao que o atormentava era apenasnecessidade de se expandir, de anunciar ao mundo no sabia o qu. Aterrado, tolhido de medo epudor, cerrou a garganta, numa defesa instintiva. Foi o mesmo que nada. Estoirava, se impedisse pormais tempo a sada dum hino de saudao luz que vinha rompendo! Nenhuma vontade conseguiaaaimar o grito irreprimvel que o sufocava.

    E cantou:C-que-r-c!Acordou tudo. Foi como se de repente casse um raio no galinheiro e despertasse a me, os irmos

    e as primas. Ele prprio, mal a voz lhe voou da boca, se ps frio. E, semelhana dos outros, ficoureduzido a uma pergunta e a um pasmo. Mas no acabara sequer de entender o que se passava, e jnovo brado a sair-lhe do bico:

    C-que-r-c!

  • O som desta vez pareceu-lhe mais so, mais seguro. E acariciou por momentos o desenho fino eagudo das notas que lhe ficaram a ressoar nos ouvidos maravilhados. Repetiu:

    C-que-r-c!Qual medo, qual pudor, qual nada! Era ou no era um galo a valer?! Ou no via como, em toda a

    capoeira alvoroada, do espanto se passara a um rumor de pura admirao? Na capoeira e at ldentro

    Ouviste o frango, Antnio? Ouvi.Frango! Palermas! O pior se da a nada, logo que a patroa abriu a porta do quinteiro, no galou

    ali sua frente a Caluda, a madre abadessa de todo aquele gado! verdade que foi uma galadela toa, a ferver, trmula, em que nem teve a certeza de ter deixado semente no oveiro. Mas esteve-lhetrepado em cima como um galo! Como um galo que era j, realmente.

    Frango! Seriam falsas, se calhar, as penas doiradas que lhe almofadavam o peito, e postios osespores que, desvanecido, via crescer dia a dia nas pernas lisas e musculadas?!

    Frango!Foi, de resto, a ltima vez que a ama se referiu a ele sem a considerao devida. Pouca tempo

    depois, quando avisou a comadre, j falou doutra maneira. V se fechas a teu galo, que eu no quero que passe a tempo s turras com a meu!H?! Pois ento! Ali, a dar a mo palmatria, que no tinha outro remdio! E no lhe fazia favor

    nenhum. Era um galo, e no cuidasse l o senhor borra-batas do lado que, por ser novo, lhe havia deandar ao beija-mo toda a vida. Melhor fora! Tirava o chapu aos mais velhos, mas l cornambanas,isso que no! Agora, doesse a quem doesse, santa pacincia: ali mandava ele. E muito respeitinho!Mas a outra teimava sempre em manter as regalias antigas, e, ao primeiro barulho que surgiu, a donapreveniu a Teodora. Escusadamente, afinal, porque aquilo s pancada, como teve de ser.

    Por acaso estava de invernia. Uma sincelada como no havia lembrana. E nem assim o safado dovizinho teve mo no vcio! Muito agasalhado nas penas, com ar de quem vinha bisca, apareceu noquinteiro. Mostrara-lhe a melhor cara, evidentemente. Se queria apenas espairecer, dar dois dedos decavaco, entrasse e ficasse vontade. O ladro, porm, ps as unhas de fora antes de um credo. Malacabara de lhe dar as boas-vindas, j o bandalho chamava aos peitos a Garnis! Cegou-se. O cabro!E ajustaram as contas logo ali.

    Mas o patife sabia da poda. Tinha prtica, o filho da me! Uma girndola de bicadas facinorosas,sem errar uma. E golpes baixos, de rufia. A matar, o bandido! Felizmente que descobriu o jogo atempo. E, como o primeiro milho dos pardais, deixou-o arremeter, a desviar-se o mais que podia.Salto adiante, salto atrs, o preciso para ir tenteando. O outro, sem perceber a manobra, sempre deespada erguida. Mas j no era criana. J lhe pesava o papo. Estava aqui, estava como havia de ir.Continuasse. No fazia mal que o mulherio do galinheiro, deslumbrado, torcesse pelo farola. Bichomulher assim. No h que fiar. Esperassem-lhe pela resposta! At ao lavar dos cestos Um bombocado, realmente, foi s negacear o corpo, entreter. E, quando o pedao de asno comeou a perder oflego, cansado de um quarto de hora de luta, caiu-lhe em cima como um drago. E sem olhar ameios! O palerma, a cuidar que levava a melhor! Ora a tinha. Uma tosa tamanha, que volta houveum murmrio de espanto. Mais quatro arrochadas, e l se foi levado pelo mesmo caminho, numfrangalho.

    Galo! Galo e duma maneira tal, que agora no quinteiro, mal franzia a testa, tremia tudo! E entolindo! A crista caa-lhe dobrada sobre o ouvido. Um rico brinco de cada lado. E em todo o peito,sobre o papo redondo, um avental de penas que pareciam de pavo! Sem falar nas asas, um primor de

  • beleza, nos espores que, de brancos, lembravam marfim, e naquela rica voz, legtimo orgulho dadona.

    Muito bem canta o seu galo, Ti Maria! Nem hVaidoso e seguro de si, como natural, j no cantava s ao amanhecer. Cantava ao dar a meia-

    noite, s tantas da manh, e vrias vezes pelo dia fora. meia-noite, era por simples exibio. quela hora, gostava de lanar no silncio recolhido do

    lugarejo o seu grito escarolado e subversivo. Fraquezas terrenas Aproveitava a circunstncia detoda a gente dormir, para tocar a sentido. E os mortos, claro, ressuscitavam!

    De madrugada, abria o peito por grata fidelidade ao amanhecer longnquo em que acordara com avida a bater-lhe nos sentidos. No tinha mais consoladora recordao na memria E festejava-areligiosamente.

    Pelo dia adiante, entoava o bendito por motivos particulares Ah, ele bem sabia que no deviafazer aquilo! Que feio servir-se a gente dos seus dons naturais para desinquietar lares alheios. Porvia disso dera no vizinho a coa que o levara sepultura, e arranjava sarilhos a cada momento. Demais a mais no tendo necessidade. Quinze mulheres no harm Que diabo! Mas um homem no semanda fazer. Natureza desgraada, a sua! No se fartava! E, quando em casa j tudo se desviava doseu andar de lado, no havia outro remdio seno fazer chegar l fora um grito de fome. De resto,tambm gostava de variar Sabia-lhe pela vida uma extravagncia!

    danado, o seu galo! Onde no chega, manda. Leva as frangas c do povo a eitoEra a Jlia Pirraas a falar dona. Ele ouvia com ar modesto. Por dentro, a babar-se,

    evidentemente. Quem que no gosta que lhe louvem as valentias? Ah, se no fosse, o espinho quecomeava a crescer-lhe no corao!

    E tenho a um filho que no lhe h-de ficar atrsO espinho. Entusiasmada com aquela virilidade, a velha lembrara-se de lhe aproveitar a casta.

    Andava a criar um cachopo da penltima ninhada. E no que o fedelho crescia e prometia?! Raiospartissem a sorte! Quando tudo lhe corria s mil maravilhas fartura, sade e paz de esprito aquilo! Claro: passou a empreender no caso, a afligir-se Cumpria as obrigaes, cantava, dava oseu dedo de conversa, mas s duas por trs l vinha a mortificao. Por mais que tentasse disfarar,no havia maneira.

    O galo velho tem coisaGalo velho! Isto que era uma vida! Andava um homem sabe Deus como, rodo por dentro, no

    lhe apetecia arreganhar os dentes, e logo uma sentena sem apelo: galo velho! Parece que nodera motivos a ningum para semelhante juzo?! O mulheredo continuava a aninhar-se mal o viadar meia volta sobre a asa, e ainda nenhuma se queixara de falta de assistncia. Pelo menos, que lheconstasse. A no ser que alguma serigaita Teria a dona surpreendido qualquer pouca vergonha?Precisava de arregalar os olhos.

    Mata-se, e faz-se um bolo. O filho j d conta do recadoEra o senhor menino, ento, que comeava a pr as unhas de fora! Ah, mas saa-lhe cara a

    brincadeira! Oh, se saa! Garoto! Um chafedes, ainda com os cueiros agarrados ao rabo, e a fazer-sefino! Ele que o apanhasse com a boca na botija!

    Passou a vigiar o rapaz dia e noite, mordido duns cimes de morte. Mas nada conseguiu descobrir.Durante o resto do vero, no teve a menor razo de queixa. O moo portava-se na linha. E pderespirar com mais sossego.

    Ora justamente em Outubro, fazia trs anos que se estreara, desabou a trovoada. Acordara para

  • tocar a alvorada. O mesmo silncio profundo enchia a noite, e o mesmo cheiro forte de mosto toldavatudo. E, ao abrir a garganta, rompe a seu lado um canto to cristalino e to puro, que se calou.

    Ouviste o frango? Ouvi.No havia dvida nenhuma: a formiga tinha catarro. Ou cortava o mal pela raia, ou estava perdido.A manh vinha a romper e, com a luz do dia, a casa movimentou-se. s tantas, a velha comeou a

    afiar a faca no alguidar.Qu? Seria possvel?! O raio da mulher teria alma de o degolar?!Mas ele ainda a pr o caso em teoria, e j ela a deitar-lhe as mos. C-que-r-c!O filho, outra vez. Aquele maldito filho, que a dona no depenara juntamente com os outros irmos.

  • J E S U S

    Comiam todos o caldo, recolhidos e calados, quando o menino disse: Sei um ninho!A Me levantou para ele os olhos negros, a interrogar. O Pai, esse, perdido no alheamento

    costumado, nem ouviu. Mas o pequeno, ou para responder Me, ou para acordar, o Pai, repetiu: Sei um ninho!O velho ergueu finalmente as plpebras pesadas, e ficou atento, tambm.A criana, ento, um tudo-nada excitada, contou. Contou que tarde, na altura em que regressava a

    casa com a ovelha, vira sair um pintassilgo de dentro dum grande cedro. E tanto olhara, tanto afiaraos olhos para a espessura da rama, que descobrira o manhuo negro, l no alto, numa galha.

    A Me bebia as palavras do filho, a beij-lo todo com a luz da alma. O Pai regressou ao caldo.Mas o menino continuou. Disse que ento prendera a cordeira a uma giesta e trepara pela rvore

    acima.De novo o Pai levantou as plpebras cansadas, e ficou tal e qual a Me, inquieto, com a respirao

    suspensa, a ouvir.E o pequeno ia subindo. O cedro era enorme, muito grosso e muito alto. E o corpito; colado a ele,

    trepava devagar, metade de cada vez. Firmava primeiro os braos; e s ento as pernas avanavamat onde podiam. A paravam, fincadas na casca rija.

    A subida levou tempo. Foi at preciso descansar trs vezes pelo caminho, nos tocos duros dosramos. Por fim, o resto teve de ser a pulso, porque eram j s vergnteas as pernadas da ponta.

    Transidos, nem o Pai nem a Me diziam nada. Deixavam, apavorados, mudos, que o pequenochegasse ao cimo, crista, e pusesse os olhos inocentes no ovo pintado. O ninho tinha s um ovo.

    Aqui, o menino fez parar o corao dos pais. Inteiramente esquecido da altura a que estava,procedera como se viver ali, perto do cu, fosse viver na terra, sem preciso dos braos cautelososagarrados a nada. E ambos viram num relance o pequeno rolar, cair do alto, da ponta do cedro, nocho duro e mortal de Nazar.

    Mas a criana, apesar de mostrar, sem querer, que de todo se alheara do abismo sobre que pairava,no caiu. Acontecera outra coisa. Depois de pegar no ovo, de contente, dera-lhe um beijo. E, aosimples calor da sua boca, a casca estalara ao meio e nascera l de dentro um pintassilgodepenadinho.

    E o menino contava esta maravilha com a sua inocncia costumada, como quando repetia a histriade Jos do Egipto, que ouvira ler a um vizinho.

    Por fim, ps amorosamente o passarinho entre a penugem da cama, e desceu. E agora, um nadacomprometido, mas cheio da sua felicidade, sabia um ninho.

    A ceia acabou num silncio carregado. S depois, volta do lume quente do cepo de oliveira embrasido, que os pais disseram um ao outro algumas palavras enigmticas, que o pequeno noentendeu. Mas para qu entender palavras assim? Queria era guardar dentro de si a imagem daquelepassarinho depenado e pequenino. Isso, e ao mesmo tempo olhar cheio de deslumbramento os dedosda Me, que, alvos de neve, fiavam linho.

    E tanto se encheu da imagem do pintassilgo, tanto olhou a roca, o fuso, e aqueles dedos destros emaravilhosos, que da a pouco deixou cair a cabea tonta de sono no regao virgem da Me.

  • C E G A - R E G A

    difcil. Isto de comear num montouro e s parar na crista dum castanheiro, tem que se lhe diga. preciso percorrer um longo caminho. Embrio, larva, crislida Todas as estaes do ngremecalvrio da organizao. Animada pelo sopro da vida, a matria necessita do calor dum ventre. Antesdessa ntima comunho, desse limbo purificador, no poder ter forma definitiva. Custa. Mas a leinatural inexorvel. Exije conscincia de cosmos antes da conscincia de ser. O calor d no ovo.Aquece-o e amadurece-o. A casca quebra. Depois Ah, depois essa descida ao hmus, essaexistncia amorfa, nem germe, nem bicho, nem coisa configurada. Largos dias assim. At quefinalmente em cada esperana de perna nasce uma perna, e cada nsia de claridade premiada comdois olhos iluminados. Cresce tambm uma boca onde a fome a reclama, e surgem as asas que osonho deseja

    difcil, mas vai. Desde que haja coragem dentro de ns, tudo se consegue. At fazer parte do corouniversal.

    J hoje ouvi a cigarra tempo dela.Nenhuma palavra de apreo pela dureza do caminho andado. Pacincia. O teatro do mundo tem

    palco e bastidores. As palmas da plateia festejam smente os dramas encenados. Que remdio, pois,seno a gente resignar-se e acitar as snteses levianas. Nascia do tempo. Muito bem. Ningum maisficaria a conhecer a fundura dos abismos em que se debatera. Protoplasma, lagarta, ninfa Quaseque sentia ainda no corpo as fases da transfigurao. Mas pronto, chegara! Agora era receber o calordo presente, e cantar. Cantar o milagre da anodina e conseguida ascenso.

    E cantava.A primavera estava no fim, e o estio ia comear. As cerejas pontuavam a veiga de sorrisos

    vermelhos. As searas, gradas de generosidade, aloiravam. Contentes, os ramos relaxavam de vez osmsculos crispados, j esquecidos das ventanias do inverno. Havia penugens de esperana em cadaninho. Mas no era a doura das seivas, a paz vegetal ou animal que saudava. Vencera todos osobstculos dum rido caminho, sem a ajuda de ningum. No fim do esforo, nem sequer essa vitriavia reconhecida. Por isso, nada devia aos outros, e nada lhes daria, a no ser a beleza daquele hinogratuito.

    Ainda no rs-do-cho das metamorfoses, apetecera-lhe contemplar dum alto miradoiro o beronativo. E comeou a subir, a subir, a subir sempre. Depois, serenamente, olhou. Nesse momento,porm, um raio quente de sol caiu-lhe amorosamente sobre o dorso. Contraiu-se de volpia. E, daplenitude que a empolgou, ergueu-se a voz de triunfo. No era a vontade que a fazia vibrar. Era ocorpo, possesso de contentamento, que, num espasmo total, estridente glorificava a prpria perfeioatingida.

    At azamboa a gente!O senhor campons, a reclamar. Suado e soturno, a mourejar de manh noite, queria silncia

    volta. Tapasse os ouvidos! Nenhuma fora humana ou desumana a faria calar. Com que razo?Porqu?

    Porque a fome era triste, os dias passavam velozes, e urgia ajudar a natureza a ser prdiga?Imaginem!

    Pois que aproveitasse as horas, os minutos e os segundos, num anseio insacivel de fartura. Elacontinuaria ali, preguiosa, imprevidente, num desafio sonoro sensatez.

  • Muita alegria tem tal bicho! A alegria passa-lhe deixar vir o invernoA pressurosa formiga! A coitada! Como se trabalhar fosse um destino! E temo-lo a, no tarda muito.Evidentemente. Mas que lhe importava? A escolha estava feita. Que as folhas do calendrio, como

    as das rvores, fossem caindo, e que os ceifeiros lanassem as gadanhas ao trigo maduro, numacondenao de galerianos. Que nas tulhas se acumulassem toneladas de gro. Ao lado dos celeirosatestados, ficaria um celeiro vazio. Um smbolo de inquebrantvel confiana.

    Mas em qu? perguntava um pardal suspicaz.Outro que no compreendia. Outro que s concebia a existncia a saltar de migalha em migalha. Chega-lhe, Cega-Rega!O Poeta! Louvado seja Deus! At que enfim lhe aparecia um irmo! Um irmo que sabia tambm

    que cantar era acreditar na vida e vencer a morte.A morte que a espreitava j, com os olhos frios do Outubro

  • L A D I N O

    Grande bicho, aquele Ladino, o pardal! To manhoso, em toda a freguesia, s o padre Gonalo. Doseu tempo, j todos tinham andado. O piolho, o frio e o costelo no poupavam ningum. Salvo-sejaele, Ladino.

    Mas como havia de lhe dar o lampo, se aquilo era uma cautela, um rigor! E logo de pequenino.Matulo, homem feito, e quem que o fazia largar o ninho?! Uma semana inteira em luta com afamlia. Erguia o gargalo, olhava, olhava, e o atiras dali abaixo! A me, coitada, bem oentusiasmava. A ver se o convencia, punha-se a fazer folestrias volta. E falava na coragem dosirmos, uns heris! Bom proveito! Ele que no queria saber de cantigas. Ningum lhe podia garantirque as asas o aguentassem. que, francamente, no se tratava de brincadeira nenhuma! Uma altura!At a vista se lhe escurecia O pai, danado, s argumentava s bicadas, a pic-lo como se pica umboi. Pois sim! Ganhava muito com isso. No saa, nem por um decreto. E, de olho pisco, ali ficava noquente o dia inteiro, a dormitar. Pobre de quem tinha de lho meter no bico

    Contudo, um dia l se resolveu. Uma pessoa no se aguenta a papas toda a vida. Mas no queiramsaber Quase que foi preciso um paraquedas.

    Mais tarde, quando recordava a cena, ainda se ria. E deliciava-se a descrever as emoes quesentira. Arrepios, palpitaes, tonturas, o rabinho tefe-tefe. E a ver as coisas baas, desfocadas.Agoniado de todo! Valera-lhe a santa da me, que Deus haja.

    Abre as asas, rapaz, no tenhas medo! Fora! De uma vez!Tinha de ser. Fechou os olhos, alargou os braos, e atirou o corpo, num repelo Com mil diabos,

    parecia que o corao lhe saa pelos ps! Ar, ento, viste-o.Deu s barbatanas, aflito. Me!Mas afinal no caa, nem o ar lhe faltava, nem coisssima nenhuma. Ia descendo como uma pena,

    graas aos amortecedores. Mais que fosse! No peito, uma frescura fina, gostosa No h dvida:voar era realmente agradvel! E que bonito o mundo, em baixo! Tudo a sorrir, claro e acolhedor

    A me, sempre vigilante e mestra no ofcio, aconselhou-lhe ento um bonito antes de aterrar. Darquatro remadas fundas, em cheio, e, depois, aproveitar o balano com o corpo em folha morta, aosabor da aragem

    Assim fez. Os lambes dos irmos nem repararam, brutos como animais! A me que disse simsenhor, com um sorriso dos dela

    E pousou. Muito ao de leve, delicadamente, pousou no meio daquela matulagem toda, que sedesunhava ao redor duma meda de centeio.

    Terra! Pisava-a pela primeira vez! Qualquer coisa de mais spero do que o veludo do ninho, mastambm quente e segura. Deu alguns passos ao acaso, a tirar das ccegas nos dedos um prazer de queainda tinha saudades. Depois, comeu. Comeu com fome e com gula os gros duros que o solesbagoava das espigas cheias. Numa bicada imprecisa, precipitada, foi a ver, engolira uma pedra.No lhe fez mal nenhum. Pelo contrrio. Ricos tempos! Desde o entendimento ao estmago, estavatudo inocente, puro. Fosse agora, e era indigesto pela certa. Arrombadinho de todo! Por isso faziaaquela dieta rigorosa

    Falava assim, e ria-se, o maroto. Nem pejo tinha da mocidade, que o ouvia deslumbrada. A vergonha a me de todos os vcios, costumava dizer.E tanto fazia a Ti Maria do Carmo pr espantalho no paino, como no. Ladino, desde que no lhe

  • acenassem com convite para arrotada numa panela, aos saltinhos ia enchendo a barriga. Depois,punha-se no fio do correio a ver jogar o fito, como quem fuma um cigarro. Desmancha-prazeres, ofilho da professora aproximava-se a assobiar Ah, mas isso que no. Brincadeiras com fisgas,santa pacincia. Ala! Dava corda ao motor, e pernas! Numa salve-rainha, estava no Ribeiro deAnta. A, ao menos, ningum o afligia. Podia fartar-se em paz de sol e grainha.

    Que mais quer um homem?! O compadre l sabe Bem Tudo preciso So necessidades da natureza Desde que no se abuseE continuava, muito santanrio, a catar o piolho. Depois, metia-se no banho. Rica areia tem aqui o cantoneiro, sim senhor!D. Micas concordava. E s as Trindades o traziam ao beiral da Casa Grande.Adormecia, ento. E a sono solto, como um justo que era, passava a noite. Acordava de madrugada,

    quando a manh rompia ao sinal de Tenrio, o galo. Isto, no tempo quente. Porque no frio, caramba!,ou usava duma tctica l sua, ou morria gelado. Aquelas noites da Campe, no janeiro, s pedras que podiam aguent-las. E chegava-se chamin. Com o bafo do fogo sempre a coisa fiava de outramaneira.

    Ah, l defender-se, sabia! A experincia para alguma coisa lhe havia de servir. Se via o caso malparado, at durante o dia punha o corpo no seguro. Bastava o vento soprar da serra. Largava acomedoria, e forro da cozinha! No havia outro remdio. Tudo menos uma pneumonia!

    A classe tinha realmente um grande inimigo o inverno. Mal o Dezembro comeava, s seouviam lamrias.

    Isto que vai um ano, Ti Ladino!A Cacilda, com filhos serdios, e rasca para os criar. Uma calamidade, realmente. Mas vocs no tomam juzo! cada ninhada, que parecem ratas! O destino quer assimLrias, mulher! O destino fazemo-lo nsSolteiro impenitente, tinha, no captulo de saias, uma crnica de pr os cabelos em p. Tudo lhe

    servia. Novas, velhas, casadas ou solteiras. Mas, quando aparecia gerao, os outros que eramsempre os pais da criana.

    Se todos fizessem como eu Ora, como vossemec! Cala-te, boca. Mudemos de conversa, que melhor Segue-se que

    no sei como lhes hei-de matar a fome gemia a desgraada. Calculo a aflio que deve serE o farsante quase que chorava tambm. Quisesse ele, e a infeliz resolvia num abrir e fechar de

    olhos a crise que a apavorava. Pois sim! Olha l que o safado ensinasse como se ia ao galinheirocomer os restos! Enchia primeiro o papo e, depois, a palitar os dentes, fazia coro com a pobreza.

    o diabo Este mundo est mal organizadoUm monumento! Como ele, s mesmo o padre Gonalo. Quanto maior era a misria, mais anediado

    andava. Aquilo que tem um peito! Numas brasas, com uma pitada de salMas j Ladino ia na ponta da unha. No queria quebrar os dentes de ningum. Carne encoirada,

    dursiaE acrescentava: Isto, se uma pessoa se descuida, quando vai a dar conta est feita em torresmos. Que tempos!O mais engraado que j falava assim h muitos anos, com um sebo sobre as costelas, que nem

  • cabrito desmamado.De tal maneira, que o Papo Magro, farto daquela velhice e daquelas manhas, a certa altura no

    pde mais, e at foi malcriado. Quando esse funeral, ti Ladino?Mas o velho raposo, em vez de se dar por achado, respondeu muito a srio, como se fizesse um

    exame de conscincia Olha, rapaz, se queres que te fale com toda a franqueza, s quando acabar o milho em Trs-os-

    Montes.

  • R A M I R O

    Deus nos d muito bons dias! HanQuem passava at mudava de cor. Fazia-se-lhe a alma pequena s de ouvir em tal ermo uma

    resposta assim. que metia medo!Felizmente que no se tratava de ladro. Ramiro, depois daquela salvao dada por entre os

    dentes, deixava-se ficar quieto, bambo, apoiado na foice roadoira, com os olhos baos paradossobre a brancura do rebanho. Ramiro era pastor.

    Aos domingos, no adro da Igreja, o Manuel Petinhas, que tinha o corao na boca, mais de uma vezlhe foi mo.

    A modos que te custam dinheiro as palavras!Mas Ramiro, depois de cada remoque, continuava catado, e calado ouvia o padre Joo rezar missa.

    No fim, se havia ladainha, no respondia; se do altar vinha ordem para os homens cantarem noTantum Ergo, no cantava.

    A alma enchera-se-lhe de silncio em vinte anos de Maro. Naquela grande aridez, s a vida quepulsava sem rudo conseguia triunfar. A chamia, a carqueja, o tojo molar, as lagartixas, as cobras eos saltaricos cresciam no mesmo cauteloso mutismo. No Maro, a torga floria. Mas no chegava essealarido de cor para acordar as fragas. E a lio que Ramiro recebia diriamente era a de umairremedivel afonia csmica, de vez em quando quebrada pelo balido monossilbico dum cordeiroque se ficava esquecido a olhar um seixo, ou pelos uivos do Rilha que, pressuroso, dava sinais delobo. Por isso, em vez de fala, usava outra linguagem: um assobio seco, estridente, instantneo, queatirava com a mesma violncia cara dos interlocutores e s reses tresmalhadas. O apito, sado dosbeios com o mpeto dum arremesso, entrava nos ouvidos como um punhal. Quase que fazia sangraros tmpanos.

    E queres tu, com esse chamadoiro, que a Rosa te venha ao redil!Queria, realmente. Quando passava por ela, comia-a com os olhos. Desgraadamente, no sabia

    formular doutra maneira o desejo que o roa. E, por mais que a Me lhe preparasse o terreno,continuava solteiro, mngua de expresso.

    Pela manh, erguia-se antes do prprio laboreiro. Mas nem pedia a bno pobre tia Etelvina,que considerava aquele filho um castigo de Deus, nem dava bons dias ao rebanho. Um assobioapenas. E com ele avisava a velha e os cordeiros de que eram horas. A infeliz vinha entregar-lhe amerenda, e o gado punha-se de perna alerta. De a a nada, a procisso estava em andamento acaminho do Maro o deserto do som. E szinho. De livre vontade, nunca emparceirava. A regraera ir sempre desacompanhado, mesmo que levasse o gado at aos confins da serra.

    Haver pasto na Gralheira? HanNada mais. Quem quisesse, fosse ver. Continuava distante, absorto, de beios cosidos. Se

    acontecia encontrar-se com outros colegas na mesma encosta, e no conseguia arredar-se, ou lhe noconvinha, deixava-se ficar sem abrir a boca, como se no desse sequer pela presena do intruso.

    Assim sucedeu naquele dia. O Ruela apareceu, e os malatos que andava a engordar entraram derepelo pelo rebanho dele. No tugiu nem mugiu. E nessa situao se manteve horas a fio, at que adesgraa se deu. Mesmo depois, no remate da tragdia, nada disse. A justificao do Ruela,respondeu com maior dureza no olhar. E, quando levantou a foice, foi tambm em silncio, como se

  • fosse cumprir um voto. salvao, que no lhe quis acertar!Mas Ramiro estava perdido. A Mimosa era a mais bela ovelha de Arc. E v-la assim, estendida e

    morta, ia alm das foras da sua compreenso. Acredita que o fiz sem querer!O coitado do Ruela, ao tornar o gado, puxou demais mo. O certo que tal pedrada mandou

    barriga da cordeira, que a desgraada, prenha como uma vaca, abortou e morreu. No foi logo naocasio. S passadas algumas horas que se ps a berrar, a berrar, num desespero que parecia decriatura. A berrar e a escoar-se em sangue.

    Enquanto durou a agonia, Ramiro, apertava o cabo da foice, numa raiva aaimada. A prpriavermelhido que lhe alastrava nos olhos mostrava esse esforo de contenso. Infelizmente, deu-se opior O corao da churra, s tantas, parou de bater. E no teve mo no gnio.

    Pela alma de quem l tens, Ramiro!O apelo, de ilimitada angstia, sau com o fervor de uma orao do peito opresso do condenado.

    Mas a lmina vinha no ar como um destino. E o grito de terror no encontrou eco. Vogou incerto pelaserra alm, e perdeu-se a seguir numa quebrada. A eternidade de tal instante tinha de ser assim, paraque Ramiro estivesse certo consigo. A sua alma era muda como um tmulo. No instante em que afoice ia cair em cheio na cabea do Ruela, os prprios montes pareceram siderados de espanto.Simplesmente, mais do que nunca, agora, a boca de Ramiro estava fechada. Larga e fina, lembravaum longo golpe cicatrizado. No rosto macio, falar, s os olhos abertos. Inteiramente em sangue,apenas eles exprimiam uma determinao sem remdio, feroz, onde no havia lugar para nenhumperdo.

    E, sobre a morte inocente daquele homem, apenas se ouviu, num instante fugidio, um assobio seco,agudo, a chamar o rebanho para o curral.

  • F A R R U S C O

    Dentro da poa do Lenteiro, h rs. Naquela gua coberta de agries e de juncos moram centenasdelas. Mas volta, na sebe de marmeleiros, silva-macha e alecrim, vive Farrusco, o melro. Sabe-seisso desde que, em certo entardecer de Agosto, a Clara perguntou ao cuco que se pousara numpinheiro em frente:

    Cuco do Minho, cuco da Beira: quantos anos me ds de solteira?A rapariga era toda ela de se comer. E o cuco, maroto, olhou de l, viu, e respondeu: Cucu Cucu CucuTrs anos! A moa fic