Trabalhar Sob Mocambique-libre

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1 Trabalhar sob Moçambique: narrativa biográfica e investigação científica 1 José Pimentel Teixeira 2 A reflexão aqui proposta, “narrativas biográficas e investigação científica, indaga os efeitos da experiência de trabalho de campo em Moçambique, algo que é um apelo ao registo autobiográfico. Por isso a enceto com dois pequenos episódios, escolhidos entre tantos outros de cariz similar. Há alguns anos durante (mais) uma estada na Ilha de Moçambique a Isabel, amiga de Maputo mas ali muito frequente, então quase residente, narrou-me uma breve conversa que tivera a meu respeito com uma conhecido comum, moçambicano da Ilha, ou seja cuja língua materna é nahara, homem viajado, pequeno empresário e político local. “O Zé Teixeira é moçambicano”, afirmara ele interrogativamente, ao que ela ripostou Não, é português” para receber um “sim, claro, é português, mas daqui, português-moçambicano”, remetendo(-me) assim para o pequeno universo populacional construído após a independência, dos moçambicanos de ascendência portuguesa que no país se mantiveram e se reproduziram -, muitas vezes resumido pelo epíteto “moçambicanos brancos”. Ela negou, reafirmando-me vindo agora (no pós-independência, e até algo recentemente) de Portugal, isso para alguma surpresa dele, por causa do “meu jeito, disse-o. Há alguns meses em conversa com dois bons amigos, juizes moçambicanos, abordou-se a questão da dupla nacionalidade, temática derivada das alterações à lei moçambicana e do actual fluxo (i)migratório português para o país. Perguntaram-me se eu já era (também) moçambicano após 10 anos de residência pode-se pedir o estatuto de cidadão. Eu disse que não, que nunca tal solicitara, para verdadeira surpresa deles, e até desacordo. Que a pedisse eu, que decerto me seria concedida. Ainda por cima, culminava um, porque “tu já és moçambicano”. Refiro estes episódios, apenas alguns entre tantos outros no mesmo registo, não para mitificar uma qualquer identidade moçambicana cristalizada, e muito menos para aparentar que a tenha eu adquirido. Sei bem que estes são discursos produzidos em registos convivenciais e de relativa homologia social. De sinal contrário encontrei imensos outros, sendo necessário referir (para evitar a tal mistificada identidade social e, em particular, se de contornos a-raciais) que em contextos de assimetria social a questão fenotípica de imediato traduz a imputação da excentricidade identitária. Em resumo, num contexto popular (e 1 “Narrativas Biográficas e Investigação Científica” Oficina CES (Coimbra 5 de Dezembro 2014): organização de Pedro Pereira Leite (CES) com participação de Elena Brugioni (Universidade do Minho), Fernando Florêncio (Universidade de Coimbra), Isabel Galhano (Universidade do Porto) e Isabel Osório (Associação Amigos da Ilha de Moçambique). 2 Investigador associado ao Departamento de Arqueologia e Antropologia da Universidade Eduardo Mondlane e investigador colaborador do Centro em Rede de Investigação em Antropologia.

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Trabalhar sob Moçambique: narrativa biográfica e investigação

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José Pimentel Teixeira2

A reflexão aqui proposta, “narrativas biográficas e investigação científica”, indaga os efeitos da experiência de trabalho de campo em Moçambique, algo que é um apelo ao registo autobiográfico. Por isso a enceto com dois pequenos episódios, escolhidos entre tantos outros de cariz similar.

Há alguns anos durante (mais) uma estada na Ilha de Moçambique a Isabel, amiga de Maputo mas ali muito frequente, então quase residente, narrou-me uma breve conversa que tivera a meu respeito com uma conhecido comum, moçambicano da Ilha, ou seja cuja língua materna é nahara, homem viajado, pequeno empresário e político local. “O Zé Teixeira é moçambicano”, afirmara ele interrogativamente, ao que ela ripostou “Não, é português” para receber um “sim, claro, é português, mas daqui, português-moçambicano”, remetendo(-me) assim para o pequeno universo populacional construído após a independência, dos moçambicanos de ascendência portuguesa que no país se mantiveram – e se reproduziram -, muitas vezes resumido pelo epíteto “moçambicanos brancos”. Ela negou, reafirmando-me vindo agora (no pós-independência, e até algo recentemente) de Portugal, isso para alguma surpresa dele, por causa do “meu jeito”, disse-o.

Há alguns meses em conversa com dois bons amigos, juizes moçambicanos, abordou-se a questão da dupla nacionalidade, temática derivada das alterações à lei moçambicana e do actual fluxo (i)migratório português para o país. Perguntaram-me se eu já era (também) moçambicano – após 10 anos de residência pode-se pedir o estatuto de cidadão. Eu disse que não, que nunca tal solicitara, para verdadeira surpresa deles, e até desacordo. Que a pedisse eu, que decerto me seria concedida. Ainda por cima, culminava um, porque “tu já és moçambicano”.

Refiro estes episódios, apenas alguns entre tantos outros no mesmo registo, não para mitificar uma qualquer identidade moçambicana cristalizada, e muito menos para aparentar que a tenha eu adquirido. Sei bem que estes são discursos produzidos em registos convivenciais e de relativa homologia social. De sinal contrário encontrei imensos outros, sendo necessário referir (para evitar a tal mistificada identidade social e, em particular, se de contornos a-raciais) que em contextos de assimetria social a questão fenotípica de imediato traduz a imputação da excentricidade identitária. Em resumo, num contexto popular (e

1 “Narrativas Biográficas e Investigação Científica” Oficina CES (Coimbra 5 de Dezembro 2014): organização de Pedro Pereira Leite (CES) com participação de Elena Brugioni (Universidade do Minho), Fernando Florêncio (Universidade de Coimbra), Isabel Galhano (Universidade do Porto) e Isabel Osório (Associação Amigos da Ilha de Moçambique). 2 Investigador associado ao Departamento de Arqueologia e Antropologia da Universidade Eduardo Mondlane e investigador colaborador do Centro em Rede de Investigação em Antropologia.

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principalmente se rural) um branco é um estrangeiro, algo que não surge obrigatoriamente como invectivador mas sim como descritivo. E passível, a posteriori, de modificação.

Desde 1994 vivi 18 anos no país, entre os meus 30 e 50 anos. Foram e serão os 18 anos mais significantes da minha vida activa. E nisso tenho que conceder alguma facticidade aos comentários, simpáticos, que acima referi. Mas levanto esta questão dos conteúdos identitários não para aqui discorrer uma catarse (já) saudosista. De facto refiro estes episódios para delinear as necessárias cesuras que se impõem face à reflexão que foi proposta.

Reflectir sobre 18 anos, durante os quais me inseri em diversos tipos de actividade – e, como tal, de interacções, de diálogos intersubjectivos – obriga-me a alargar o conceito de “trabalho de campo”. Assim estendendo este “campo” ao país – com efeito só um hiper-tradicionalismo metodológico me poderia deixar afirmar “trabalho de campo” aquele produzido numa deslocação específica, de preferência num qualquer longínquo distrito rural, em regime de imersão mais ou menos prolongada, para assumir por completo o mito antropológico. O que implicaria não o afirmar, a esse “trabalho” de “campo”, quando tento abordar problemáticas como literatura ou artes plásticas, por exemplo, assente numa empiria convivencial de quase duas décadas, inscrita em verdadeiras redes de parentesco (espiritual – a amizade), e praticada com características descontínuas e, até, a-sistémicas.

É pois esta a primeira deriva que retiro deste reflexão: a do fluído e complexo conteúdo do referido como “trabalho de campo”, não só no respeitante à parafernália metodológica a que se recorre e aos diversos objectivos eleitos. Mas, e acima de tudo, à multiplicidade de contextos de interacções significantes, todas elas (re)estruturantes não só do meu olhar como das interacções subsequentes, numa espiral de entendimentos e desentendimentos. Pois uma espiral indireccionada, nisso postulando que a compreensão (interpretação) mais tardia não é (não foi) obrigatoriamente mais profunda e frutífera do que as anteriores: que custo teve e tem o embaciar do olhar, assim distante da radical curiosidade de antanho, por ingénua que esta também fosse?

Mas em assim sendo não esqueço as diferenças que implicam as diversas práticas de “terreno” se assim alargado. A maior das quais é, em meu entender, a da enunciação prévia de que se está em “trabalho”, que ali, que então, é “campo”. Questão que muito me ocupou, e que nunca resolvi, e que aqui escolho como a segunda deriva a enunciar: essa de como usar os fluídos (tantas vezes ditos “factos”) que decorrem do quotidiano para os transformar textualmente, ou seja como fazer da amizade, vizinhaça, coleguismo, machamba de trabalho publicitável? Questão deontológica muitas vezes esquecida, principalmente quando as interacções decorrem em contextos de homologia social, onde a inexistência de hierarquias sociais presentes na interacção não sinaliza – como se de imediato – a excentricidade do “investigador” e, como tal, o seu papel de investigador.

Uma terceira deriva, com as anteriores conectada, e até delas derivada, se impõs ao longo de um percurso tão longo, e a qual se prende ao âmbito etnográfico. Cruzando o país em trabalhos de diversos conteúdos e objectivos, a selecção por decisão própria (e aparto isto do trabalho encomendado) de um terreno e problemática complica-se. Ou seja, impõe-se-me um olhar global. Não no sentido da atracção do transnacional, tão em voga desde há

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décadas (Appadurai 1991), e muito menos de recuperar o ideal holista, que tenta postular uma congregação interna cuja coerência seja significante, quantas vezes equiparando “sociedade” a “estado nacional” e até a “cultura”. Os constrangimentos desta veterania a que me refiro são outros: uma vontade de olhar a “Nação”, no sentido da sociedade administrativamente delimitada, do “país”, sabendo-a porosa (dialogando com a tal transnacionalidade) e construção (cujos rebocos simulam o tal holismo), tanto no âmbito institucional como representacional. Deriva que não me convoca questões metodológicas – em particular a abordagem “multi-situada” – mas que fundamentalmente me apela ao discurso histórico e a técnicas que o privilegiam. Crendo na hipótese da significações internas abrangentes, uma representação intra-fronteiriça por assim dizer, por limitadas que o sejam.

A questão da aquisição da identidade nacional (no sentido administrativo, de cidadania, mas fundamentalmente no da afectividade, de identificação) veio-me surgindo durante anos. Dirimi-a, à minha maneira, porventura errada ou excessivamente, sobrelevando uma identidade profissional. E é por isso que aqui tão longamente refiro esta temática da identidade individual, à primeira vista algo excêntrica a uma reflexão deste tipo. Pois a minha relutância em iniciar um processo de aquisição de nacionalidade prendeu-se com o que posso sumarizar como “cuidados epistemológicos”. Sou um imigrante antropólogo. No meu entendimento da prática antropológica pouco me repugna tanto como a mistificação da transumância identitária, a pantomina do antropólogo que procura ascendente estatutário na corporação através da encenação da pertença (relativa) à alteridade abordada – algo que abordei num texto aqui em Coimbra apresentado há poucos meses (Teixeira 2014).

O comedor de cogumelos, a la Castañeda, o recém-chegado etnógrafo de súbito já tornado curandeiro honorário, o “mano” do seu informante qual “irmão de sangue” dos velhos westerns, o de súbito quase-indígena afectivo, o imediato compagnon de route, militante absorvido pelas hierarquias de discursos locais, o maravilhado com o simbólico encontrado. Estas atitudes implicam, em primeiro lugar, uma demanda de capital simbólico e estatutário entre os pares antropólogos, sinalizando o sucesso da “participação” alcançada (e reproduzindo o “pântano” metodológico da observação participante). Mas também, em última análise, implicando a vontade de se reclamar, por pouco que seja, o patrimonial estatuto de “dono da terra” (dono do “terreno”, entenda-se).

Atitudes que têm também corolários óbvios em termos políticos, do desentendimento das dinâmicas encontradas – o antropólogo com luxúria identitária está predisposto para assumir as causas sociopolíticas defrontadas, delas se tornar paladino ou porta-voz, no “vá lá dizer na Nação” tão recorrentemente ouvido nos longínquos e até depauperados distritos moçambicanos ou mesmo nas periferias urbanas. Incapaz, até pela urgência da adesão ao “local”, de fugir aos pressupostos explicativos transportados pelo olhar “transnacional” abrangente, e de se fixar no tal enquadramento societal nacional, em tantas temáticas produtor de nexos interrogativos mais pertinentes.

Será esta a minha quarta deriva: eximir-me ao processo apenas administrativo de aquisição da nacionalidade alheia tem sido a minha sinalização de que não enceno qualquer forma de

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“participação”, de transumância identitária, de pertença. Nisso a crença (a esperança também) que a óbvia excentricidade inicial não foi, por si mesma, o obstáculo à compreensão possível – pois os obstáculos radicam na dimensão e conteúdos do meu património profissional individual. E não serão ultrapassados por nada mais do que pelo agilizar deste. Independentemente de ser mais ou menos “de cá” (“de lá”). Afectos à parte, imensos que sejam, vera biografia que o seja. E de que nada disso implica algum património, sobre a “nação” (o terreno). E que nunca o cognome “participante” associo à minha técnica de eleição preferencial, a observação directa.

Neste eixo remeto para uma quinta deriva. Recordar-me sempre excêntrico, nunca participante, não implica uma qualquer neutralidade axiológica ou superior ponto de (tomada de) vista. Pois seja na vertente de investigação académica, aparentemente dono-de-mim-mesmo, seja quando consultor inserido na indústria do desenvolvimento - sobre cujos limites deixei um texto (Teixeira 2012) –, não me parece possível afirmar esse estrado elevado. É exactamente a distância, existente e cultivada, sempre reclamada, em relação aos universos estudados que me parece ser condição para um “olhar apropriado”. Entenda-se, o nosso simbólico “olhar distanciado”, para falar a la Lévi-Strauss, é este “olhar apropriado” produzido no seio daquilo que Wallman (1997) tão acertadamente referiu como “antropologia apropriada”, uma posse limitada de capacidades representacionais da multiplicidade defrontada, mas disso consciente, e uma possibilidade mitigada de, qual jardineiro sempre dependente de contextos irreverentes e dos meios englobantes, tentar participar num desenho desígnio de melhores enquadramentos – quando é isso que se erege como objectivo da pesquisa.

O nosso trabalho potencia-se na experiência de terreno, ainda que nele não ancore. Um confronto, aquisitivo, baseado em relações assimétricas, facto que não inibe a sua possibilidade. Uma experimentação existencial, um realismo etnográfico indispensável para a produção compreensiva (Leach, Englund 2000), onde se alargam as nossas conexões parciais, cognitivas, interpretativas, com a realidade (Strathern 1991). É com a afirmação deste primado que quero terminar, um aparente item de manual antropológico, mas cuja efectividade apenas compreendi no processo laboral. Por isso o procuro demonstrar em pequenos detalhes.

Decorriam os primeiros dias do meu primeiro trabalho de terreno em Moçambique, no Cabo Delgado em 1994. Fui fazer uma entrevista a um habitante da aldeia N’ropa, onde então eu vivia. Fui recebido com grande frieza, com verdadeiro temor, por razões que então não percebia mas que algum tempo vim a compreender que se prendiam com o facto de eu ser considerado vampiro (Teixeira 2002). Devido ao ambiente tenso a entrevista cingiu-se a questões da sua produção agrícola, ele pequeno produtor de milho e mapira, para além de secundários feijões e ainda de algumas hortícolas, em articulação com as suas duas mulheres (uma delas presente mas silenciosa), e recusando-se a entrar nos circuitos de fomento de culturas comerciais, então reiniciado pela empresa agrícola ali colocada. Apesar do já referido ambiente tenso acabou por falar bastante, denotando grandes conhecimentos do trabalho e visão estratégica acurada sobre as possibilidades e constrangimentos da sua actividade. Era um homem bastante pequeno, já de alguma idade, visivelmente pauperizado no seio do contexto económico de então, o da agricultura

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familiar dos aldeões no norte de Moçambique no período imediato do pós-guerra civil. Quando saí da sua casa eu ia visivelmente surpreendido, espantado até, e disso dei conta ao meu intérprete, Tomás Paulino Brito, comentando “Este homem é muito inteligente!!!” ao que ele anuíu, não sei se verdadeiramente disso convicto.

Mas logo ali, e ainda não tinha saído da praça das mangueiras fronteira à casa, estanquei. Surpreendido agora comigo. Porque me espantara eu ao defrontar um homem inteligente? Profundamente conhecedor do seu trabalho, assisado quanto às opções envolvidas? Fumei. Em silêncio a mastigar a estupefacta desilusão comigo mesmo. Pois efectivamente qual a surpresa em encontrar alguém inteligente e conhecedor diante de nós? Todos os pressupostos, preconceitos, que eu carregava, subterrâneos, ali tinham irrompido. Princípio da minha superioridade – não a racial, que nunca vegetei nessa cloaca. Mas sim o evidente preconceito do europeu, urbano, antropólogo, educado, “homem do mundo”, com posses materiais avantajadas, sobre um africano, rural, machambeiro, analfabeto, aldeão, pobre (como Job, diz-se). E tudo sublinhado, percebi-o com dor, pela “superioridade” sentida diante de um homem com menos trinta centímetros e cerca de quarenta quilos do que eu. Nunca me ocorrera que isto habitasse aqui, no meu-eu. Arrogante pacote subliminar que, é evidente, implicava um desígnio epistemológico, traduzindo-se, apesar de “mim-mesmo” (um “mim” por mim construído, afinal), numa subreptícia visão, expectativa, quanto ao objectivo do meu trabalho, como se este incidindo sobre o paupérrimo ignorante, e pequeno, ali disponível para que eu o viesse desvendar.

Desmontou-se ali algo, sorte minha, assim libertando-me. Não apenas quanto a preconceitos entre pessoas mas também, e fundamentalmente, sobre qual o meu papel possível, os limites do meu entendimento, do projecto comprensivo possível e desejável: o explicitar para mim mesmo daquilo que eu julgava ter já explícito, mas que afinal não tinha. Estava eu ali para compreender (o máximo que me fosse possível) as inteligências alheias. Independemente da altura dos seus locutores, do seu peso. E dos seus restantes atributos e práticas.

Algum tempo depois o chefe tradicional da aldeia foi almoçar a minha casa. Dom Namwenda (aquilo que será a tradução mais acurada de Hi-Namwenda, a designação de que era credor) era detentor de um velho posto hereditário, já presente na época pré-colonial no seio das chefaturas Ekoni. Era um “chefe” importante do “régulo” (mwenne olupale) Inkigiri, dito “chefe de grupo de povoações” [ou cabo] no período colonial (sobre a estrutura de poder em contexto macua deixei o esboço em Teixeira 2002: 48-53). Eu vivia numa pequena casa de alvenaria, construída no tempo colonial ali na aldeia. Dom Namwenda veio acompanhado de alguns homens, um séquito. Destinadas ao importante evento eu trouxera cervejas de Montepuez, a cidade mais próxima. Bebemos ao longo da manhã e eu pude saber que dos quatro visitantes nenhum tinha alguma vez bebido cerveja industrial (engarrafada). A conversa decorreu em macua-meto, pois nenhum deles falava português. De súbito, num à parte, um deles perguntou algo ao meu intérprete e este respondeu. Perguntei o que se passava, sempre cioso de tudo me ser interpretado. E fui informado que o homem queria ir ao quintal, urinar à latrina. Logo insisti que fosse à casa-de-banho, dentro de casa: pois “minha casa é sua casa”, sem o dizer deste modo. Ele fez menção de, ainda assim, ir lá fora. Eu insisti, duas ou três vezes.

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Então o meu intérprete, Tomás Paulino Brito, interrompeu-me. Que eu deixasse o convidado ir à latrina. Pois, e disse-o com alguma condescendência para comigo, para eles fazia alguma impressão isto de “fazer as necessidades no sítio onde se toma banho”.

Touché! Assim a apreender, a aprender, o que é o encontro de subjectividades, diálogo, talvez conflitual por vezes, talvez outras nada disso. Compreendendo as configurações intelectuais alheias e nisso compreendendo-me(nos) e minhas (nossas) estranhas configurações. Pois a quem passa pela cabeça, que racionalidade subsume, isto de defecar exactamente onde se banha?

Foi isto que quis aqui dizer. Sobre o encontro das excentricidades, que pode ou não ser conflitual. Mas que só pode ser compreensivo se estas não forem resguardadas. Não maximizadas mas nunca escondidas.

Depois, ao longo dos anos, sabendo disso e do quão falsário é o tal estrado, seja o da superioridade “intelectual” seja o do palco histriónico do “participante”, reafirmei-me que a etnografia é térrea. E será esta a derradeira deriva que quero partilhar. Por isso mesmo o título que aqui escolhi, este “Trabalhar sob Moçambique”. Este que gostaria, apesar da sua modéstia, de vir um dia a integrar num hipotético livro, proto-mono colectânea de pequenos artigos. E para qual também antevi nome: “Textos sob Moçambique”. Nestas formulações denotando o conteúdo possível das abordagens realizados, uma consciência que apreendi exactamente no decurso das experiências de “terreno”, que se tratam de tentativas de interpretação do ocorrido no seio do que palpável circundante, no qual incompletamente nos inserimos, sob o qual reflectimos.

Consciência que obriga a afirmar poluente a crença, que não é apenas sintáctica, daqueles que surgem reclamando-se a trabalhar “sobre” Moçambique ou “sobre” um qualquer outro objecto. Poluidores e, quantas vezes, adversários. Algo que aprendi no trabalho de terreno. Sem participar. Apenas no atentar.

Referências Bibliográficas

Appadurai, Arjun, 1991, “Global ethnoscapes: notes and queries for a transnational anthropology”, in Richard Fox (ed.) Recapturing Anthropology. Working in the Present. Santa Fe: School of American Research Press, 191-209

Englund, Harri, Leach, James, 2000, “Ethnography and the Meta-Narratives of Modernity”, Current Anthropology, Volume 41, Number 2, April 2000, 225-248 Strathern, Marilyn, 1991, Partial Connections. New York: Rowman & Littlefield Teixeira, José Pimentel, 2002, Estrutura Política Local e seu Enquadramento Socioeconómico no Distrito de Mandimba, Província de Niassa, [https://www.academia.edu/2067070/Estrutura_Pol%C3%ADtica_Local_e_Seu_Enquadramento_Socioecon%C3%B3mico_no_Distrito_de_Mandimba_Prov%C3%ADncia_de_Niassa_Mo%C3%A7ambique]

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Teixeira, José Pimentel, 2003, “Ma-Tuga no mato. Imagens sobre os portugueses em discursos rurais moçambicanos”, Lusotopie 2003, 91-114

Teixeira, José Pimentel, 2012, Tempo(s) e ideologia(s) na indústria do desenvolvimento: a reificação dos informantes, [https://www.academia.edu/4786431/Tempo_s_e_Ideologia_s_na_Ind%C3%BAstria_do_Desenvolvimento_a_reifica%C3%A7%C3%A3o_dos_informantes]

Teixeira, José Pimentel, 2014, Olhar Português em África: monólogo para colegas compatriotas, [https://www.academia.edu/6530929/Olhar_portugu%C3%AAs_em_%C3%81frica_mon%C3%B3logo_para_colegas_compatriotas]

Wallman, Sandra, 1997, “Appropriate anthropology and the risky inspiration of “Capability” Brown: representations of what, by whom, and to what end?”, in Allison James, Jenny Hockney, Andrew Dawson (eds.) After Writing Culture. Epistemology and Praxis in Contemporary Anthopology. London: Routledge: 244-263