Trabalho - Federalismo e Desigualdades

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Pedro Henrique Aquino de Freitas - 6907005 O desenho federativo brasileiro e a redução de desigualdades 1. Apresentação No debate público brasileiro, existe uma defesa de que o Brasil não é um país com clivagens étnicas ou religiosas que façam necessária a adoção de um modelo federativo, e que o federalismo no Brasil causa ineficiência ao Estado. Entretanto, recentes estudos apontam que o federalismo no Brasil cumpre um importante papel para a redução das desigualdades entre os entes federativos. Este trabalho se propõe a revisar como a literatura sobre federalismo trata o tema da redução das desigualdades e estudar, para o caso brasileiro, se a afirmação sobre o atual desenho das instituições políticas é correto. 2. A literatura sobre os impactos do federalismo na redução de desigualdades Ao analisar o debate sobre o tema, a contribuição de Arend Lijphart (1999) é de que há áreas de atividade governamental em que é mais provável que se manifestem características de

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Trabalho de disciplina. USP.

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Pedro Henrique Aquino de Freitas - 6907005

O desenho federativo brasileiro e a redução de desigualdades

1. Apresentação

No debate público brasileiro, existe uma defesa de que o Brasil não é um país com

clivagens étnicas ou religiosas que façam necessária a adoção de um modelo federativo, e que

o federalismo no Brasil causa ineficiência ao Estado. Entretanto, recentes estudos apontam

que o federalismo no Brasil cumpre um importante papel para a redução das desigualdades

entre os entes federativos.

Este trabalho se propõe a revisar como a literatura sobre federalismo trata o tema da

redução das desigualdades e estudar, para o caso brasileiro, se a afirmação sobre o atual

desenho das instituições políticas é correto.

2. A literatura sobre os impactos do federalismo na redução de desigualdades

Ao analisar o debate sobre o tema, a contribuição de Arend Lijphart (1999) é de que

há áreas de atividade governamental em que é mais provável que se manifestem

características de generosidade e benevolência em democracias de consenso, como se refere

aos estados federativos. Estas áreas são o bem-estar social, a proteção do meio ambiente, a

justiça criminal e a ajuda externa. Ou seja, o autor deduz que as democracias de consenso

estão associadas a melhores, mais generosas e benevolentes políticas governamentais.

A teoria da escolha pública, por sua vez, foi lançada quarenta anos antes por Charles

Tiebout (1956). Trabalhando com o oferecimento de bens públicos nas municipalidades, o

autor assume que os consumidores são livres para escolher onde viver, que não há custos de

mudança; que há disponibilidade de informação e muitas comunidades para escolher. Tiebout

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afirma que os governos locais apropriados, com os padrões de receita-gasto adequados, são

adotados por esses consumidores. Ou seja, os indivíduos escolherão a comunidade local que

maximiza sua utilidade pessoal, em equilíbrio na provisão de bens públicos de acordo com as

preferências dos indivíduos, o que ajuda a comunidade a alcançar um tamanho e um

funcionamento ideais.

A partir deste estudo, Buchanan (1995) argumenta que uma autoridade central forte

com a capacidade e a vontade de forçar o livre comércio dentro de um território, junto a

diversos estados separados e competitivos, só pode ser aplicada a determinadas realidades. O

autor analisa a história dos Estados Unidos na perspectiva de que uma reforma constitucional

significou a devolução de autoridade do governo central para os estados separados.

Weingast (1995), preocupado com o crescimento econômico, pensa qual desenho de

Estado favorece o investimento. O que o autor chama de market-preserving federalism, com

governo central limitado e descentralização da autoridade econômica, reduz as possibilidades

de coalizões distributivas e de burocracias rent-seeking terem sucesso em tentativas de

expropriar riqueza dos cidadãos. Este modelo, no qual governos tomarão decisões de política

econômica considerando a ameaça de saída, induz a competição e é o que permitiu o

desenvolvimento da Inglaterra, dos Estados Unidos e da China respectivamente nos últimos

três séculos, deduz o autor.

Ou seja, para Buchanan e Weingast o modelo ideal é aquele no qual a autoridade sobre

as políticas deve ser descentralizada e a função redistributiva do governo central, limitada. Os

autores não acreditam que os governos centrais possam exercer tarefas redistributivas pois

estariam sujeitos a interesses de coalizões distributivas e de burocracias. Os estados

federativos, nestes casos, não produzem redistribuição entre as jurisdições.

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Por outro lado, existem autores que defendem que os estados federativos podem criar

instituições políticas que reduzam de forma eficiente as desigualdades entre as jurisdições. Na

literatura, Obinger, Leifbried e Castles (2005) elaboraram que há diferentes tipos de

federalismo, para dizer que há aquele em que os governos regionais possuem grande

autoridade sobre as políticas públicas, como nos modelos de Buchanan e Weingast, mas há

uma variedade de federações nas quais os governos centrais têm ampla autoridade para

legislar sobre as políticas dos governos territoriais.

Gerring, Thacker e Moreno (2005) contribuem com a ideia de que a boa governança é

alcançada em democracias nas quais as instituições políticas conseguem trabalhar dois

objetivos: autoridade centralizada e inclusão ampla. Ou seja, haverá boa governança quando a

autoridade do soberano for preservada ao mesmo tempo em que serão sistematizadas e

representadas as ideias, identidades e interesses existentes na sociedade. Os indicadores

utilizados pelos autores são qualidade de burocracia, receita tributária, taxa de investimento,

abertura do comércio, PIB per capita, mortalidade infantil, expectativa de vida e

analfabetismo apontam que as instituições que conseguem incluir atores e interesses em uma

pirâmide em que o fluxo de poder chega ao local de decisão no centro, são aquelas que estão

associadas a um largo alcance de indicadores políticos, econômicos e humanos.

Estas interpretações fazem parte de um conjunto de autores que argumentam que com

centralização da autoridade política é possível criar instituições em estados federativos que

reduzam as desigualdades entre as jurisdições (Arretche, 2010). Com a autorização ao

governo central para regular os níveis inferiores, centralizando a formulação de políticas a

serem executadas pelas unidades constituintes e com um sistema de transferências entre as

jurisdições, reduz-se as desigualdades. Nota-se que os governos subnacionais perdem poder e

autoridade decisória.

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Um trabalho de Linz e Stepan (2000) analisa igualdade e desigualdade entre as

democracias industriais avançadas. Os autores consideram que as diferenças na igualdade

podem ser detectadas entre democracias em estados unitários e federativos; dentro do

universo das democracias federais industriais mais antigas; e na democracia norte-americana,

o modelo clássico. O estudo tem o objetivo de identificar os mecanismos políticos que

produzem e legitimam os padrões de desigualdade.

Os autores lembram que, no estudo de desigualdade, o analista deve estar ciente de

que os sistemas federativos envolvem necessariamente um grau de diferença e desigualdade

não encontrado em um estado unitário, porque há matérias exclusivamente dentro da

competência de unidades locais, fora do escopo do governo nacional. Os estados

multinacionais, por sua vez, são assimétricos e têm arranjos constitucionais para garantir

diferentes capacidades e direitos para alguns. Em algum grau, estes aspectos autorizam

desigualdades constitucionais não encontradas em estados unitários.

Na sequência, Linz e Stepan discutem a afirmação de que o federalismo traz o governo

para perto do povo, questionando que há diferentes tamanhos de estados e que em boa parte

das federações, parcela significativa das decisões e da possibilidade de participação fica

restrita ao nível dos membros constituintes, dos estados ou províncias, e não ao nível

municipal. Na verificação da participação nas eleições, percebe-se que em diversos estados

federativos o nível de abstenção nas urnas é muito grande, chegando a mais de 40%, o que

contradiz a ideia de que as federações trazem o governo para perto do povo, afinal, parcela

significativa dos eleitores não participa nas urnas, em casos como o dos Estados Unidos e o da

Suíça, devido a procedimentos mais complexos de registro dos eleitores.

Os autores discutem cinco indicadores de desigualdade que afetam uma área de grande

importância da vida dos cidadãos, que são influenciados por fatores políticos e que possuem

dados comparativos compilados por líderes acadêmicos ou organizações internacionais. O

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índice de Gini é o primeiro deles e, no índice de Gini, estados federativos possuem um

desempenho um pouco pior que os estados unitários da OCDE. Os indicadores de saúde, taxa

de pobreza de crianças e idosos também mostram mais igualdade em estados unitários. Na

análise do princípio “um homem, um voto” e da desproporção no cumprimento do princípio

devido à composição do parlamento, inclusive devido à existência de uma câmara alta nas

federações, novamente os estados unitários apresentam rankings mais igualitários.

No que diz respeito à desigualdade dentro de Estados federativos, Linz e Stepan

analisam que Estados Unidos, Suíça e Austrália são as federações clássicas, nas quais os entes

federativos possuem autonomia substancial, representação igual na câmara alta e capacidades

constitucionais simétricas. Não é o caso de Canadá, Bélgica, Espanha e Índia, que possuem

constituições que garantem federações assimétricas, com diferentes capacidades alocadas para

diferentes membros. Utilizando os indicadores selecionados para comparar estados

federativos e unitários para comparar as federações clássicas e as não clássicas, os autores

identificam que para os cinco indicadores as federações clássicas produziram maior

desigualdade que as federações não clássicas. A desigualdade é muito mais severa nos

sistemas federativos clássicos que nos demais, tanto que se forem eliminadas as federações

clássicas, a desigualdade entre federações e Estados unitários quase desaparece.

A federação mais clássica, os Estados Unidos, é o maior exemplo de desigualdade

entre os países da OCDE pesquisados. Linz e Stepan procuram, então, entender de que forma

essa situação é causada por mecanismos políticos da federação norte-americana.

Primeiramente, discutem que a Constituição norte-americana apresenta compromissos com a

liberdade individual, mas nenhum compromisso com a redução de desigualdade, em contraste

drástico com a Constituição alemã, que prevê uniformidade das condições de vida no

território federal para todos os cidadãos. Nos estados norte-americanos, não há qualquer

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obrigação constitucional por parte do governo federal ou dos estados para ajudar a criar

igualdade de condições de vida para os cidadãos norte-americanos.

O federalismo norte-americano se preocupa mais com a igualdade de direitos dos

estados do que na igualdade de condições de vida dos cidadãos. A primeira legislação para

aumentar a assistência a crianças pobres, do governo Roosevelt (Aid to Families with

Dependent Children), sofreu vetos dos estados para garantir que estes pudessem implementar

o programa com suas próprias estruturas, caso contrário haveria uma intromissão nos direitos

dos estados. O programa resultou em desigualdade produzida politicamente.

Percebe-se que a estrutura legislativa federal nos Estados Unidos permitia um arsenal

de pontos de veto para os adversários de qualquer proposta de bem-estar que viesse desenhada

ou implementada pelo governo federal e que afetasse os direitos dos estados. Estes programas

de bem-estar, portanto, estão vulneráveis a competições entre os estados e jurisdições locais

relutantes a aumentar os benefícios, visto que são os governos estaduais os responsáveis por

muitos dos programas de bem-estar.

Outro autor que estuda autonomia de governos regionais e divergência de políticas é

Scott Greer (2005). Para analisar uma política que consiga se efetivar, o autor considera a

conjunção do problema, do político, da política e do poder, elementos que possuem fatores

territoriais que variam conforme as comunidades políticas territoriais, sistemas partidários

territoriais e governos territoriais com autonomia financeira, autonomia política e regulação

legal. Estas condições determinarão a direção de cada política e a extensão com que ela

poderá divergir dos vizinhos, de acordo com normas de implementação diferentes.

Greer entende que a divergência entre as políticas é garantida mesmo em regiões

similares, com competição partidária similar e comunidades políticas similares, porque os

mecanismos de agenda-setting e tomada de decisão variam no tempo e na forma. Para o autor,

sempre ocorreu divergência territorial dentro dos Estados de bem-estar, mas agora que a

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tomada de decisões se volta para o nível local de mudanças específicas em elegibilidade,

distribuição, alocação e entrega dos serviços, a propensão de divergência das políticas leva a

uma divergência territorial dentro dos países. As políticas distintas e os debates de políticas

causam trajetórias diferentes e independentes.

Wildavsky (1985) argumenta que o federalismo norte-americano está em declínio,

visto que sua estrutura permanece, mas seu suporte social enfraquece. Tal situação seria

causada por dois fatores: o declínio dos partidos políticos e o crescimento de uma cultura

política sectária dedicada à igualdade de resultados. O autor comenta que a existência de

estados livres para discordar um com o outro e com o governo central causa uma

diferenciação, mas para atender a uma mudança de valores que busca igualdade de condições,

a cultura política do federalismo é insuficiente, porque não é possível um sistema federal com

uma tendência de igualdade de resultados.

Wildavsky considera que o sistema federativo depende da vitalidade do sistema

partidário e que a perda das bases sociais dos partidos nos Estados Unidos fez perder o

princípio federal de partidos nacionais baseados em unidades territoriais independentes. Além

disso, o autor argumenta que os americanos não constituem uma única cultura, que há

variadas formas de vida nos EUA e que a cultura individualista que escolhe manter igualdade

de oportunidades para alcançar distinção agora está sendo afetada por tendências coletivistas

que escolhem uma igualdade de resultados no lugar da distinção, o que é incompatível com o

federalismo.

Keith Banting (2006) estuda o federalismo e a cidadania social para analisar se é

possível as duas características existirem, visto que a premissa de cidadania social é a

igualdade de tratamento dos cidadãos, a ser atingida através de benefícios sociais comuns e

serviços públicos disponíveis a todos os cidadãos enquanto a premissa do federalismo é

diversidade regional em políticas públicas, refletindo as preferências das comunidades

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regionais e das culturas. Países com instituições federativas e que desejam amadurecer

Estados de bem-estar social precisam trabalhar com essas lógicas a princípio contraditórias.

O autor analisa a estrutura dos programas sociais em estados de bem-estar federativos,

o balanço entre os governos provinciais e federal na determinação dos direitos dos cidadãos

para os benefícios sociais centrais, busca um resultado histórico e conclui que a lógica da

cidadania social tem dominado em Estados de bem-estar federativos. Os princípios do Estado

de bem-estar social têm avançado sobre as premissas do federalismo nos maiores programas

sociais, seguridade e saúde. A lógica de expansão do Estado de bem-estar no século XX e a

lógica de cidadania social deram nova forma às instituições federativas.

Banting reflete que esta agenda de pesquisa ainda deve ser seguida, mas que a ideia de

um Estado de bem-estar federativo não é uma contradição em termos, pois sugere que, apesar

de tomadas de decisão centralizadas em temas sociais que afetam cidadãos enfraquecerem as

premissas iniciais do federalismo, direitos sociais comuns não negam o federalismo como um

instrumento para proteger a democracia. Governos multiníveis continuam a criar espaço para

pluralismo ideológico e político, visto que diferentes partidos ainda governam em várias

regiões da maioria das federações. A cidadania social constrange as teorias econômicas que

celebram o federalismo, mas a descentralização na implementação dos serviços ainda garante

inovação regional nos sistemas federativos.

De forma similar, o autor lembra que a relação entre cidadania social e diversidade é

um meio de acomodar as minorias nacionais e culturas distintas territorialmente. As minorias

são capazes de resistir às tendências homogeneizantes do Estado de bem-estar. Para a

acomodação da diversidade em sociedades plurais, áreas de políticas como educação,

linguagem e comunicação são mais centrais do que seguridade e saúde, que são questões

vistas como normas universais mais do que suscetíveis às preferências políticas locais. Por

fim, Banting sugere que em alguns casos a cidadania social facilita a autonomia regional, pois

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garantias centrais de seguridade social no nível individual podem dar suporte a agendas

coletivas por melhores auto-governos regionais.

3. O caso brasileiro

Para entender as interpretações tradicionais sobre o modelo federativo brasileiro, cabe

recuperar o argumento de Alfred Stepan (1999). O autor propõe um continuum de federalismo

democrático que pode variar da restrição à ampliação do poder do demos, de acordo com o

poder que as minorias têm de bloquear iniciativas de interesse das maiorias. Para Stepan, o

sistema federativo protege o indivíduo contra um poder central excessivamente forte ou

contra a “tirania da maioria” ao limitar os poderes do governo central. Desta forma, cria

sistemas partidários fragmentados ou no mínimo regionalizados. Isto porque (1) alguns temas

estão além do governo central, (2) o bicameralismo favorece o status quo e limita os poderes

do governo central, (3) é difícil mudar as regras do jogo em uma federação, sendo necessárias

supermaiorias, e (4) os tribunais desempenham papel importante em federações. Stepan

entende que as instituições federativas são relevantes para as políticas públicas em todos os

pontos do “continuum demos-constraining”.

Stepan entende que o esquema brasileiro é caso extremo de “demos constraining”, ou

seja, o Brasil é uma federação que tem a característica de restringir o poder do conjunto dos

cidadãos da sociedade política. Chega a essa conclusão a partir da análise de quatro variáveis:

primeiramente, pelo grau de super-representação da Câmara Territorial, o autor entende que

há uma super-representação das áreas menos populosas que permite que um grupo de

senadores que representa 9% do eleitorado possa obstruir votações; segundo, Stepan mostra

que o Senado brasileiro tem muito poder, legislando exclusivamente sobre 12 áreas; terceiro,

o autor analisa o grau em que a Constituição confere poder de elaborar políticas às unidades

da federação e percebe que os Estados são muito fortes; por último o autor afirma que o

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sistema partidário não consegue atenuar estas características, pois os partidos são fracos e

comprometem o desenvolvimento de políticas nacionais. A conclusão é que o poder é muito

descentralizado na federação brasileira.

Esta interpretação faz entender que as elites regionais têm poder de veto para barrar

políticas do governo federal que reduzam as desigualdades no Brasil, assim como para barrar

a aprovação de reformas. Este desenho federativo no Brasil, de um Senado forte com minorias

regionais super-representadas, partidos fragmentados por parlamentares leais aos

governadores estaduais, compromete, para o autor, a eficiência da democracia brasileira.

O argumento central de Marta Arretche (2009) é que, a partir de 1995, houve farta

legislação que reduziu receitas de Estados e regulamentou a atuação deles na arrecadação de

tributos exclusivos, no gasto dos próprios recursos e na implementação de políticas públicas;

esta legislação somente foi possível porque foi criado a partir de 1988 um “modelo de Estado

federativo que combina ampla autoridade jurisdicional à União com limitadas oportunidades

institucionais de veto aos governos subnacionais” (Arretche, 2009). Não foram estabelecidas

regras que exigiriam supermaiorias para alterar o que já estava determinado

constitucionalmente e as regras regentes favorecem as elites centrais, em mais uma evidência

de que a Constituição estabeleceu regras que centralizaram recursos, que foram ampliadas a

partir de 1995, sem inaugurar um novo modelo de Estado federativo, mas intensificando a

coordenação federal sobre a legislação.

As evidências empíricas levantadas pela autora são 59 iniciativas legislativas

selecionadas, as quais tramitaram do governo Collor ao governo Lula I no Congresso. As

observações são, primeiramente, de que as mudanças institucionais ocorridas a partir de 1995

são parcialmente explicadas pela mudança na agenda da presidência, não havendo evidências

de fracasso parlamentar dos presidentes anteriores a Fernando Henrique. A autora analisa as

mudanças no comportamento das bancadas e chega a uma conclusão bastante divergente

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daquela apresentada por Alfred Stepan: o comportamento das bancadas não apresentou

alteração significativa de 1988 a 2006. Os governadores podem ter alterado sua relação com o

presidente, mas não há evidências robustas de que os governadores tenham poder de comando

sobre os votos dos parlamentares maior que os líderes partidários. As matérias que foram à

votação na Câmara obtiveram apoio da maioria das bancadas estaduais, apesar do conteúdo de

imposição de perdas.

A desproporcionalidade na distribuição de cadeiras no Senado brasileiro, por sua vez,

é um mecanismo que impede que uma minoria de estados mais populosos tiranize a maioria

de estados menos populosos. Ou seja, apesar de ir contra o princípio de “1 homem = 1 voto”,

é um princípio de justiça federativa que impede o veto da minoria, mas também impede que a

maioria seja tirana com a minoria (Arretche, 2013).

Quanto à autoridade jurisdicional da união, a Constituição Federal contém dispositivos

originais que deram ampla autoridade à União para legislar sobre a execução de políticas para

os governos subnacionais. A legislação dos anos 90 apenas deu continuidade a estas

disposições, sem que houvesse instituições políticas previstas constitucionalmente que

impusessem proteções especiais às iniciativas de revisão da distribuição original de

competências de 1988. Houve aprovação de 53 emendas constitucionais, taxa muito superior

a de outros países, e havia regras que facilitavam a aprovação dessas emendas, de apenas 3/5

de maioria parlamentar em duas sessões de cada casa legislativa, não sendo necessárias,

portanto, supermaiorias. Além disso, muitas matérias foram apresentadas como projetos de lei

complementar, podendo ser aprovadas por 51% dos parlamentares em um turno de votação

nas duas casas. Estas regras permitem, portanto, amplas oportunidades de iniciativa e

aprovação parlamentar às matérias iniciadas pelo governo central, ao mesmo tempo em que as

elites subnacionais têm suas oportunidades de veto bastante limitadas.

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Para Marta Arretche, portanto, os formuladores da Constituição de 1988 adotaram

princípios centralizadores e mantiveram na esfera da União decisões que diziam respeito ao

modo como os governos territoriais executariam suas próprias políticas. Houve centralização

federativa em 1995 devido à existência de regras que favorecem as elites políticas centrais e

limitam as oportunidades de veto das elites subnacionais, sem que seja necessário mobilizar

coalizões supermajoritárias. A autora, portanto, testa o modelo de Alfred Stepan e demonstra

que o Brasil está mais próximo do extremo demos-enabling do continuum, pois não há no

arranjo federativo brasileiro o poder de veto das minorias regionais à vontade da maioria.

Stepan faz parte de uma tradição de autores, como Bolívar Lamounier, Shah, Abrúcio,

que no início dos anos 1990, criticava a adoção do federalismo no Brasil. Entre os motivos

apresentados por estes autores, estava que o país não é marcado por clivagens étnicas ou

religiosas que façam necessária uma democracia consociativa. O desenho federativo

comprometeria a eficiência do Estado, visto que a cooperação entre as jurisdições e a União

não ocorreria e os estados subnacionais teriam excessivo poder.

Em outro trabalho, Marta Arretche (2010) defende que, se forem incluídas na análise

as desigualdades territoriais, bem como as relações entre a União e os governos subnacionais,

haverá mais elementos para uma interpretação sobre a importância da fórmula federativa no

Brasil. Para a autora, o país tem uma clivagem entre jurisdições pobres e ricas, e garantir o

equilíbrio da representação destas jurisdições é uma preocupação histórica no desenho das

instituições políticas brasileiras. Além disso, a autora avança na constatação de que no país há

uma centralização da autoridade sobre as políticas acompanhada de uma descentralização na

execução destas políticas, e examina como isto afeta a redução das desigualdades.

O argumento da autora leva em consideração que a ideia de forte regulação federal

tem origem na formação do Estado brasileiro, na perspectiva de que a União deve ter

instrumentos para regular os governos subnacionais devido a uma desconfiança que existe

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historicamente em relação às elites locais. O processo de construção do Estado-nação desde o

fim da República Velha concentrou autoridade decisória, regulação e gasto no governo

central, pois havia a crença de que havia riscos para o conjunto da nação com a incapacidade

dos governos provinciais em assumir autoridade sobre as mais diversas políticas. Combater a

corrupção e o clientelismo das oligarquias regionais atrasadas era o discurso para justificar a

supervisão federal das políticas implementadas pelos governos locais durante o os anos do

desenvolvimentismo no Brasil (Arretche, 2010). Ao longo dos anos, houve crescimento

econômico alto, mas acompanhado de distribuição desigual espacialmente da riqueza,

concentrada nas jurisdições do sul e do sudeste.

No período recente, como abordado anteriormente neste trabalho, as políticas de

redução das desigualdades desde a Constituição de 1988 expandiram a regulamentação e a

supervisão do centro sobre os governos subnacionais nas políticas. Ou seja, a tradição

brasileira é de que, mesmo que se defenda a descentralização na execução das políticas e que

haja políticas para reduzir as desigualdades, a preferência é de que o governo federal regule a

implementação, para comprometer governadores e prefeitos com os gastos nas políticas de

saúde, na disciplina fiscal.

A autora escolhe analisar as políticas de provisão de serviços públicos executadas

pelos governos locais, no caso brasileiro, os municípios, que executam os serviços de saúde,

educação, infraestrutura urbana, habitação, saneamento e coleta de lixo (Arretche, 2010). A

análise da autora permite verificar que há uma regulação federal forte sobre as decisões de

arrecadação tributária, na alocação de gasto e execução das políticas federais.

Verifica-se que o dinheiro dos municípios vem de receitas próprias com propriedade

urbana, serviços e transferência de propriedade, de transferências constitucionais federais do

Fundo de Participação dos Municípios (23,5% do IR e do IPI), de transferências

constitucionais estaduais com 25% do ICMS e 50% do IPVA e de transferências vinculadas

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universais como o SUS e o Fundeb. A parte mais relevante das receitas fica fora da barganha

política, das transferências negociadas. Como as receitas próprias dos municípios são muito

desiguais ao analisar o índice de gini, as transferências federais têm impacto redistributivo. A

regulação federal sobre os municípios indica que 40% da receita municipal deve ser destinada

para saúde e educação, e que estas políticas reguladas têm alta prioridade na alocação do

gasto municipal e maior equidade na distribuição horizontal dos recursos.

Ou seja, a regulação federal está associada a menores índices de desigualdade, por

meio da vinculação das receitas municipais, das transferências federais e das transferências

condicionadas universais. Estes mecanismos institucionais promovem a redução das

desigualdades, na medida em que a regulação federal tenta uniformizar as receitas e as

despesas municipais. Ao mesmo tempo, a autonomia dos governos locais causa variação nos

gastos em favor da desigualdade territorial, mesmo para as políticas reguladas, o que causa

uma diferença entre as jurisdições dentro de uma zona delimitada. Há a possibilidade de

discordância dentro de certo limite.

A regulação federal constrange os prefeitos a realizar gastos de acordo com a

legislação federal, o que afeta inclusive a quantidade de dinheiro que os prefeitos terão para

gastar em políticas não reguladas. A regulação protege as políticas de saúde e educação, pois

é o que a coalizão política no Congresso nacional aprovou naquela arena decisória, o que não

necessariamente seria a prioridade das coalizões legislativas nas arenas subnacionais.

O mais importante para o objetivo deste trabalho, estas transferências agem para a

redução das desigualdades territoriais. Arretche (2010) afirma que há uma regulação das

políticas em nível federal, de forma a reduzir autonomia dos governos subnacionais, pois há a

crença de que estes governos não destinariam suas receitas a políticas sociais que visem a

redução de desigualdades caso pudessem gastar livremente.

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4. Considerações Finais

O estudo sobre as teorias que tratam do impacto do federalismo na redução de

desigualdades mostra ao menos duas tendências opostas. A teoria predominante até os anos

1990, segundo a qual os governos centrais estariam sujeitos a coalizões distributivas que

impedem políticas de redução da desigualdade entre as jurisdições, que devem ter autonomia

local. Entretanto, autores como Obinger, Leifbried e Castles trouxeram novas contribuições

no último período, no sentido de que é possível que estados federativos tenham instituições

políticas que promovam redução de desigualdades. Através da centralização da autoridade na

decisão das políticas ao governo central e um sistema de transferências entre as jurisdições, é

possível reduzir as desigualdades interjurisdicionais.

No caso brasileiro, há autores como Alfred Stepan que entendem que o desenho

federativo que surge após a Constituição Federal de 1988 no Brasil é muito descentralizado e

que, por causa disso, as elites regionais vetam a vontade das maiorias e impedem mecanismos

de redução de desigualdades. Marta Arretche, por outro lado, contesta esta afirmação e

demonstra que as instituições políticas brasileiras possuem um desenho que centraliza a

autoridade política na União, com diversas iniciativas legislativas de regulação federal sobre

políticas a serem implementadas pelos governos locais. Isto garante que políticas de saúde e

educação, reguladas constitucionalmente, sejam implementadas e operem na redução de

desigualdades entre as jurisdições. Os governantes locais são constrangidos pela regulação

federal sobre arrecadação e gastos das políticas a implementá-las, dentro de uma margem de

autonomia. Esta crença de que é preciso uma autoridade central forte para garantir que as

políticas redistributivas ocorram e sejam destinadas do modo adequado existe na construção

do Estado brasileiro desde a República Velha.

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Page 17: Trabalho - Federalismo e Desigualdades

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