Trabalho Final de Filosofia Do Corpo e Da Corporeidade - Jakob von Uexküll e Merleau-Ponty: uma...

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Curso de Filosofia do Corpo e da Corporeidade Dissertação Final da Disciplina – Segundo Ciclo Tema: Jakob von Uexküll e Merleau-Ponty: uma aproximação Docente: Professor Dr. Luís Umbelino Discente: Rafael Antonio Blanco 1

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Uexküll, Umwelt, Merleau-Ponty

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Curso de Filosofia do Corpo e da Corporeidade

Dissertação Final da Disciplina – Segundo Ciclo

Tema: Jakob von Uexküll e Merleau-Ponty: uma aproximação

Docente: Professor Dr. Luís Umbelino

Discente: Rafael Antonio Blanco

1

Buscaremos realizar um recorte conceitual da obra de Jakob von Uexküll

(1864-1944), biólogo da Estônia que escreveu em Alemão, principalmente de sua

noção de Umwelt (em más traduções: mundo circundante, meio-ambiente), para

compreendermos como esse conceito será apropriado e utilizado pelo filósofo francês

Maurice Merleau-Ponty (1908-1961).

Uexküll nos convida para uma experiência de pensamento em que adentramos

o mundo perceptivo de, por exemplo, abelhas, cães, etc. O biólogo nos conduz a

um repensar de como vemos a realidade do mundo, não somente de acordo com as

capacidades de percepção do ser humano, mas, também e sobretudo, as dos animais.

Com isso, Uexküll pretende compreender a “bolha” ambiental que cada animal cria

e lida a todo momento; o mundo natural passará a ser pensado como a justaposição

dessas bolhas ambientais de cada animal. Uexküll não interpreta o animal como um

autômato mecânico, sem alma, totalmente responsivo a uma série de leis físicas.

Em vez disso, o animal é um complexo sistema de percepções e ações sobre uma

determinada área do mundo. Percepções e ações intrínsecas aos organismos, porém

que continuamente se alteram. A esses dois modos fundamentais de um animal ora

perceber e ora responder à percepção do mundo, que estão intimamente ligados,

Uexküll chamará de Umwelt.

Os estudos de Uexküll sobre o comportamento de vários animais foram

pioneiros. Porém, em vez de se limitar aos contornos de uma etologia, o que por si só

seria um trabalho de extrema complexidade, Uexküll atinge, também, o horizonte de

uma ontologia. Se aceitarmos seu convite de levar a sério a experiência subjetiva de

cada animal no mundo, teremos ao final uma redescrição completa da realidade.

Analisar o comportamento de um animal é, então, a chave de acesso à sua

bolha, seu Umwelt. Ao alcançarmos tal visão, podemos recolocar um pergunta

fundamental: qual o papel do corpo no processo da vida? É claro que o corpo faz parte

do que Uexküll denomina Umwelt. Entretanto, permanece oculto como esse corpo

interage com o meio, processo que altera a ambos. O grande valor científico da obra de

Uexküll reside exatamente em suscitar questões como esta, ao invés de propriamente

respondê-las.

Merleau-Ponty foi um dos filósofos que teve a obra de Uexküll em grande

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relevo. Buscaremos, então, esboçar a bio-filosofia gerada a partir do entrelaçamento

conceitual, empreendida com maestria por Merleau-Ponty, entre etologia e filosofia.

Seguiremos a seguinte ordem de exposição: (I) Adentraremos brevemente na biologia

teórica de Uexküll, com vistas de acompanhar sua rejeição da natureza como um

sistema teleológico e mecânico, que o levará à compreensão da vida em conformidade

com um plano, como uma grande sinfonia. Um dos fundadores do que ficou conhecido

como biosemiótica, Uexküll pensa a natureza basicamente como relações significantes

e possibilidades de significações.

Em seguida, analisaremos (II) os estudos de Merleau-Ponty em como se dão as

relações entre consciência e mundo natural. Em conformidade com a grande sinfonia

vital intuída por Uexküll, Merleau-Ponty, ao sublinhar que o comportamento não é,

fundamentalmente, relação de causas e efeitos, considerará o animal como um todo,

sempre maior que a soma de suas partes constitutivas. O animal será parte da melodia

da natureza e isso é visto através da estrutura do comportamento. O comportamento

e a “descoberta” de uma carne que está contida em todos os corpos e também no

mundo, apontará para uma intersubjetividade de Umwelts. O organismo que se mostra

através do comportamento intrinsecamente conectado com o mundo é o ponto de

partida da etologia de Merleau-Ponty. Projeto este que sofrerá uma alteração de

referencial aquando se aprofundarem teses com pretensões ontológicas: o mundo, ou

melhor, a natureza, será o ponto de partida na qual se encontrarão corpos intimamente

ligados.

E finalmente, (III) buscaremos traçar algumas das características do conceito

nuclear de carne, introduzido por Merleau-Ponty na obra O Visível e o Invisível. A

carne, como veremos, apontará tanto para o foro íntimo do corpo próprio quanto para o

corpo do mundo.

I - Jakob von Uexküll: Ciência da Vida

A obra de Jakob von Uexküll, desde sua primeira publicação, em 1909, Umwelt

und Innenwelt der Tiere (O meio-ambiente e o mundo interno dos animais), até sua

morte, em 1944, é permeada pela observação e busca de discernimento dos mundos

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fenomenais, ou universos subjetivos dos animais. Através da observação precisa

das relações organismo-mundo, Uexküll pôde contrariar a interpretação mecanicista

da biologia de sua época, que basicamente pensava o animal como um sistema

maquínico que se dava num processo de inputs/outputs.

Uexküll recebe com desconfiança a teoria da evolução das espécies de

Charles Darwin. Com várias referências à música em sua obra, Uexküll pensou numa

organização harmônica do mundo, num plano (Planmässigkeit). Cada organismo seria

um tom que ecoa sobre o ambiente e os outros organismos. Daí Uexküll intuir que a

geração e a comunicação de signos, no mundo animal, ocorre numa base puramente

instintiva.

A tensão existente na biologia, que opunha uma visão teleológica, herdeira

de Aristóteles, a uma com teor mecanicista, herdeira de Newton e Descartes, é o

grande impasse teórico que chega até o então jovem estudante de biologia, Jakob von

Uexküll. De fato, o debate entre uma teleologia por um lado, e o mecanicismo de outro,

vai opor Karl Ernst von Baer e Charles Darwin, respectivamente. Baer estudou as

formas embrionárias e viu que as diferenciações ocorriam conforme a um determinado

plano. Por outro lado, Darwin, com a noção de seleção natural, se alinha entre os

mecanicistas, porque a vida seria uma acidental continuidade de algumas espécies em

detrimento a outras. Cenário este em que não se pode vislumbrar qualquer plano pré-

configurado.

Ao longo de sua obra, Uexküll dá cada vez mais importância ao processo de

significação. Este processo, porém, faz referência a um plano que a vida parece

obedecer. Leitor atento de Kant, Uexküll espalha os a priori da razão humana para

todo o reino animal. Em Kant é vedado o acesso a uma realidade subjacente às

percepções subjetivas, a coisa-em-si permanece incognoscível. Uexküll levará esse

insight fundamental para o estudo das relações animal e meio-ambiente. O que está

em causa é que só há acesso ao mundo através da percepção.

Em seu criticismo contra as tendências mecanicistas da biologia de sua época,

Uexküll cunhou o conceito de arquitetura centrífuga do organismo. Enquanto qualquer

máquina necessita de uma força externa que atue internamente num tipo de arquitetura

centrípeta, os organismos agem de dentro para fora, num tipo de arquitetura centrífuga.

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A morfologia de cada organismo é o centro de comando que auto-regula a vida, o que

não impede que agentes externos interfiram no processo. «A força de dentro [...] é

contrabalançada pelos fatores ambientais»1

Essa teoria de arquitetura centrífuga revela que Uexküll recusa-se a aceitar que

os seres vivos respondem a sistemas de leis físicas e mecânicas de forma passiva. Os

seres vivos são dotados de poder de engendrarem suas próprias leis e determinações,

por regras autônomas. Em vez de um mundo de leis físicas naturais eternas, Uexküll

faz-nos ver que o sujeito, humano e animal, é, de fato, o legislador do seu mundo. Para

além das leis da física que regulam o mundo “lá fora” deve-se relevar as leis subjetivas

de cada organismo que seguem um plano. E é precisamente a junção desses dois

domínios que Uexküll denomina de Umwelt.

Ao analisar o passado da ciência moderna, Uexküll constata no mínimo três

paradigmas bem definidos: o primeiro o de Kepler, que intuiu uma harmonia cósmica.

Em segundo lugar, Newton, que legou suas leis que tornam o universo um sistema

mecânico. Em terceiro lugar, Darwin, que propôs a seleção natural que, aos olhos de

Uexküll é um mecanismo aleatório, acidental, de um mundo onde não há planos. Sobre

o darwinismo, Uexküll esboça uma crítica dupla: a teoria de Darwin atribui um papel

fundamental à casualidade, à aleatoriedade da vida e, em segundo lugar, se mantém

extremamente materialista ao atribuir somente aos genes herdados as características

da espécie futura. Ou seja, as teorias de Darwin são, ao mesmo tempo: «a liberdade

caótica e o materialismo determinista»2, o que soa como um disparate a Uexküll.

Uexküll pensa em regras e planos que os organismos de alguma forma

obedecem, porém não num sentido teleológico. Para o biólogo, a teleologia fazia

sentido num horizonte teórico em que se buscava atingir a coisa-em-si por trás das

contingências individuais de cada organismo. De fato, a noção de Umwelt busca

dar conta, num sentido holístico, das relações entre o organismo e o mundo. Como

veremos, em Merleau-Ponty há vários conceitos irmanados ao Umwelt de Uexküll:

estrutura do comportamento, carne, etc.

Um exemplo que Uexküll nos fornece para intuirmos a complexidade dos

1 Onto-Ethologies, The Animal Environments of Uexküll, Heidegger, Merleau-Ponty and Deleuze, p.14.2 Idem Ibidem, p. 19.

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Umwelts é o de uma simples flor. Suas funções na natureza dependem do tipo de

animal que interage diretamente com ela. Para um ser humano a flor pode ser um

adorno. Para um inseto, fonte de água e néctar, e assim por diante. Cada organismo

configura um novo mundo, uma nova bolha que delimita suas possibilidades no

mundo. Essa bolha impede o olhar direto do cientista humano sobre o animal, daí a

necessidade de se observar o comportamento do animal dentro da bolha.

Sobre a comparação com a bolha de sabão: «O espaço peculiar a cada animal,

em qualquer lugar que ele possa estar, pode ser comparado a uma bolha de sabão

que envolve completamente a criatura numa distância maior ou menor. Essa bolha

de sabão estendida, constitui o limite do que é finito para o animal, e, por isso, é o

limite do seu mundo; o que há para além da bolha está escondido no infinito»3. O que

está dentro dos limites da bolha é passível de significação sobre, o que está fora é

insignificante, permanece velado.

Um exemplo do esquema que o Umwelt configura, que encontramos em Uexküll,

é o de suas observações de um carrapato (Ixodus rhitinis) que se posiciona numa

vegetação e simplesmente espera pelo momento em que percebe a presença do

ácido butírico, contido no suor dos mamíferos, momento em que salta em busca de

se alimentar e finalmente se reproduzir. A “espera” pelo fator significante, (a presença

do ácido butírico) que dispara sua ação, pode durar até 18 anos. Nesse intervalo,

cego e surdo, o carrapato não considera significante quase nenhum fator ambiental

que o rodeia. Vemos aqui, surpreendentemente, que a rede que interliga os Umwelts

não envolve propriamente indivíduos e sim relações de significações elementares. O

carrapato não percebe o mamífero por inteiro, percebe a substância química.

Ao lado do conceito de Umwelt, também vemos em Uexküll a comparação da

vida com a harmonia musical. A célula teria um tom que possibilita a comunicação

intracelular através de ritmos e melodias. Assim também os órgãos que uniformizam

as melodias celulares. O organismo seria uma permanente sinfonia de melodias de

órgãos e ritmos celulares. O próximo estágio seria a de uma harmonia entre dois ou

mais organismos, como pode-se ver, por exemplo, numa colmeia. Em último lugar,

a composição musical da natureza, dotada de uma harmonia interna. Vemos, nesse

3 Streifzüge durch die Umwelten von Tieren und Menschen, p. 5.

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ponto, a fundamentação do que havíamos chamado de plano da natureza, em Uexküll.

Dessa teoria emerge um modelo intersubjetivo da natureza. Perguntar pelo

mundo biológico é considerar as complexas relações entre os Umwelts dos animais.

Ainda mais, em Uexküll, um sujeito que percebe e age no mundo necessita de

um “dueto”, de outro ser vivo que o complemente. Por isso o interesse em significação

ser fundamental nas obras tardias de Uexküll, o que o coloca como o principal arquiteto

do que é hoje conhecido como biosemiótica.

A biologia assume então a função de descrever como o significado é gerado

através de interações entre diversos animais. Nesse ponto cabe a observação:

Uexküll conheceu pessoalmente Ernst Cassirer, que pode ter exercido considerável

influência sobre a questão dos signos. Os organismos são sistemas interpretantes e

geradores de signos e a natureza revela a intrincada rede de relações que daí surgem.

No exemplo que demos do carrapato, o mamífero aparece como um signo, que é

interpretado, resultando de uma ação específica. Os tons de ambos os animais se

complementam, gerando significação num dueto. Podemos vislumbrar a ontologia que

se cria como pano de fundo a todas essas análises.

Um exemplo interessantíssimo para concluir nossa aproximação a Uexküll.

Num livro tardio chamado Bedeutungslehre (Teoria do Significado), Uexküll toma

em consideração uma aranha que está fazendo sua teia. De alguma forma, diz

Uexküll, a aranha prevê o voo de algo, e, como se voasse ela também, constrói seu

aparato de caça. Captando de alguma forma a melodia do voo, a aranha antecipa-

o. A aranha adaptou-se, instintivamente, a um signo presente em seu Umwelt e, por

isso, é bem-sucedida na previsão do voo. A estrutura do corpo da aranha é capaz de

predizer a aparição de um significante. Há algum tipo de intencionalidade em ação no

animal? Sem dúvida, no mínimo ao nível do movimento do corpo. Nesse cenário, as

substâncias inorgânicas também são relevadas na constituição de cada Umwelt, não

somente materialmente falando, mas, também, como forças: a temperatura, barulhos,

etc.

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II. Merleau-Ponty e o Umwelt

Merleau-Ponty redescreve e alarga o que classicamente era conhecido como

corpo, que se torna uma estrutura sinergética onde estão entrelaçados a presença

encarnada de uma subjetividade, por um lado, e o mundo que a circunda, de outro.

O corpo, um sistema contínuo de equivalências organismo/mundo, revela, através de

seu movimento, as relações entre uma consciência e o mundo a qual ela está imersa.

Observar o comportamento dessa consciência que é corpo é a chave para iluminar

o Umwelt da existência humana. Um dos insights fundamentais que permeará toda

a obra de Merleau-Ponty é que o corpo vivo se expressa através do comportamento.

Seus escritos contribuem para desvelar um novo âmbito do conhecimento, que

podemos chamar de onto-etologia.

Antes de pensar numa mudança radical de Merleau-Ponty entre sua primeira

obra, A Estrutura do Comportamento, e a última, O Visível e o Invisível, pensemos

numa evolução gradual de seu pensamento, na qual os conceitos fundamentais

da “juventude” serão a base que possibilita os conceitos de “maturidade”, como os

de: carne, ser bruto, nova ontologia, etc. Serão também fundamentais para o nosso

objetivo aqui os seguintes textos: O Conceito de Natureza, O Conceito de Natureza:

Animalidade, o Corpo Humano, e a Passagem à Cultura e O Conceito de Natureza:

Natureza e Logos: O Corpo Humano, notas para os cursos oferecidos por Merleau-

Ponty no Collège de France, ao longo da década de 1950.

Em vez de se comprometer com uma das várias teorias que buscavam

descrever as relações entre organismo e natureza, Merleau-Ponty escolhe uma

terceira via, qual seja, partir de uma análise neutra do comportamento. A observação

do comportamento poderá revelar os nexos entre organismo e natureza. O que será

fundamental, já n´A Estrutura do Comportamento, é a intuição e observação que

considera o corpo e o ambiente que o envolve como interdependentes e não como

partes extra partes. Assimilando o vocabulário da Gestalt, Merleau-Ponty aponta para a

estrutura dos corpos, que é sempre maior que a soma de suas partes. Há algo único na

estrutura do corpo como um todo que não é passível de redução aos seus órgãos, ou

células, etc.

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O comportamento é o locus onde se vêem o entrelaçamento entre o físico e

o mental, mecanicismo e vitalismo, empirismo e idealismo. O comportamento faz

menção ao corpo como uma unidade, uma totalidade dotada de movimento. Em vez

de buscar uma definição única de comportamento, Merleau-Ponty fornece-nos várias:

comportamento como estrutura, como forma, como significação, etc. Em suma, o

comportamento mostra que o ser vivo está intrinsecamente ligado ao ambiente que o

cerca. Daí os paralelismos entre a noção de comportamento de Merleau-Ponty e a de

Umwelt em Uexküll serem inevitáveis.

Uexküll é citado n´A Estrutura do Comportamento, porém, através de um

estudioso holandês chamado Buytendijk que Merleau-Ponty conhecia. A primeira

ocorrência explícita do nome de Uexküll aparece no segundo curso sobre a natureza

de Merleau-Ponty. A frase de Uexküll que Merleau-Ponty cita n´A Estrutura do

Comportamento: «todo organismo é uma melodia que canta a si mesma»4 é importante

porque dá conta da unidade do organismo e, também, da ressonância dessa melodia

através do ambiente. Numa música, cada nota participa da melodia e está conectada

internamente com todas as outras notas. Cada nota que compõe uma melodia, ou cada

órgão do corpo, ressoa a própria unidade desse corpo.

O que distancia Merleau-Ponty de Uexküll é que, em vez de buscar uma

descrição teórica das intrincadas relações entre organismo e mundo, Merleau-Ponty

se pergunta como nós, seres humanos, percebemos essas relações através de

nosso comportamento. Comportamento que tem na motricidade seu fundamento,

lugar privilegiado onde se mostram intrínsecos corpo e mundo. As estruturas que

identificamos no comportamento: formas, melodias, etc, são, no limite, constructos

humanos. Em vez de estarem ontologicamente no mundo, nossas percepções fundam

esses conceitos.

O conceito de estrutura, que aparece na primeira obra de Merleau-Ponty, terá

ressonância em sua obra de maturidade. Num primeiro momento, como mencionamos,

o foco da análise se centra na consciência do percipiente. Na obra de maturidade,

veremos um deslocamento no sentido da natureza, em busca de uma ontologia lato

sensu. N´O Visível e Invisível lemos: «Resultados da Fenomenologia da Percepção:

4 La Structure du Comportement, p. 172.

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Necessidade de trazê-los à explicitação ontológica»5 e ainda: «Necessidade de um

retorno à ontologia. O questionamento ontológico e suas ramificações: a questão do

sujeito-objeto, a questão da intersubjetividade, a questão da Natureza»6

O Visível e o Invisível será a busca de uma nova ontologia. O conceito de carne,

que engloba o material e o imaterial, corpo e mente, permite um aprofundamento nas

relações entre organismo e meio. Tratar o organismo totalmente em conjunto com

as coisas do mundo, é isso o que estará em causa em O Visível e o Invisível e já era

prefigurado nas obras anteriores. Merleau-Ponty não pretende, nessa tarefa, assumir

o mundo como um único ser vivo, onde os organismos individuais não teriam papéis

relevantes. Em vez disso, Merleau-Ponty aponta para os quiasmas que permitem a

diferenciação entre cada ser vivo, o visível que pontua o invisível e vice-versa.

No segundo curso sobre O Conceito de Natureza, Animalidade, O Corpo

Humano, e a Passagem à Cultura, de 1957-1958, Merleau-Ponty se aproxima mais da

biologia de sua época e nomeadamente de Uexküll. Merleau-Ponty fará novamente uso

da categoria comportamento, porém já com certa distância das teorias com enfoque

behavioristas que influenciaram A Estrutura do Comportamento. Notamos, nesse

ponto, a influência decisiva de Uexküll. Merleau-Ponty dirá que Uexküll antecipa sua

noção de comportamento precisamente através do conceito de Umwelt. O Umwelt é

delineado através do movimento do organismo, o movimento é o lugar da imbricação

entre organismo e mundo.

Porém, como se produz um Umwelt? Parece haver uma reciprocidade de tal

produção: o organismo produz o meio e este produz o organismo. Merleau-Ponty

recorre à noção de melodia para explicar a criação do Umwelt como que de forma

quase involuntária, novamente: «todo organismo é uma melodia que canta a si

mesma»7. Esse Umwelt melódico ressoará no conceito de carne que aparece em O

Visível e o Invisível.

Aprofundando suas análises da percepção para as condições de possibilidade

da própria percepção, vemos surgir a última obra de Merleau-Ponty. Em vez de se

5 Le Visible et l’Invisible, p. 237.6 Idem Ibidem, p. 219.7 La Structure du Comportement, p. 172.

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situar no âmbito da consciência que percebe, Merleau-Ponty partirá, aqui, da Natureza,

para demonstrar a unidade entre percipiente e percebido. Há uma introdução de uma

miríade de novos conceitos tanto para indicar divergência: quiasma, invisibilidade, e um

vocabulário para indicar unidade: carne, sensível, adesão, camadas, etc. Esse novo

vocabulário busca dar conta, mais uma vez, da reciprocidade do animal e do ambiente

que o cerca, animal que ora produz o meio, ora é produzido por este.

Em vez de partir do corpo e buscar a compreensão de como este percebe o

mundo, o Merleau-Ponty d´O Visível e o Invisível, se pergunta pela constituição do

mundo que contém vários corpos. O ser como corpo permite o acesso ao mundo,

através da carne que corpo e mundo compartilham. O ser vivo se vê como “um” com

seu Umwelt. Ao mesmo tempo que vê o mundo, percebe a si mesmo imerso nesse

mundo através de seu corpo.

Finalmente, o conceito de Umwelt de Uexküll fornece a Merleau-Ponty uma

noção nova para superar a dicotomia sujeito e objeto. Simplesmente porque o Umwelt

é: «Umwelt (isto é, o mundo + meu corpo)»8. As teorias do biólogo se mostraram

úteis para a filosofia de Merleau-Ponty, que parte de uma fenomenologia irmanada da

etologia para alcançar uma ontologia no sentido rigoroso.

III. A noção de carne em Merleau-Ponty

O reconhecimento que o próprio ato de perceber e o que é percebido estarem,

de alguma forma, entrelaçados, é uma tese que acompanha o desenvolvimento da

obra de Merleau-Ponty. Nas obras de juventude toda percepção podia se reduzir a uma

atividade motora, a um movimento. Não somente. Merleau-Ponty já havia vislumbrado

que toda percepção é um auto-movimento. Analisemos, então, brevemente, algumas

das características conceituais do conceito de carne, sem pretensões de esgotar a via

aberta por Merleau-Ponty.

O conceito de carne foi introduzido por Merleau-Ponty na obra O Visível

e o Invisível. Dado o caráter incompleto da obra, a noção é disputada entre os

comentadores. De fato, o conceito foi e é usado por fenomenólogos, pelos chamados

8 La Nature: Notes Cours du Collège de France, p. 278.

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pós-estruturalistas, pelas feministas e por ecólogos, de forma a buscar um termo que

denote a conjunção da subjetividade e o mundo, da mesma forma que mantém a

alteridade entre as duas instâncias. Outros comentadores apontam para a limitação do

conceito de carne, por fazer referência ao Cristianismo e ao mistério da encarnação.

A carne é «o ponto de relação entre uma consciência encarnada e o mundo, e

Merleau-Ponty a caracteriza como um quiasma dotada de reversibilidade, ou seja,

sempre uma coincidência entre o que é visto e o visível, o que toca e é tocado, um

sujeito e os outros sujeitos»9. A carne, nesse sentido, aponta para uma certa

circularidade, porém, Merleau-Ponty a divide entre carne do mundo e carne do corpo. A

carne do mundo pode ser acessada pela carne do corpo e vice-versa. Daí o corpo

próprio estar sempre em contato absoluto com o corpo do mundo, porque ambos

compartilham da mesma carne. Aqui pode-se relacionar esse tipo de imanência entre

subjetividade/mundo de Merleau-Ponty, com o próprio sistema de Espinosa.

Entretanto, Merleau-Ponty não queria denotar uma plena união da carne

individual e da carne do mundo, onde não mais coubesse qualquer determinação para

a subjetividade. No limite, a carne do corpo, que é uma individualidade, é Narcísica.

Além disso, na noção de carne, há um invisível que nubla o olhar, uma transcendência

na própria imanência. Essa invisibilidade é como um outro dentro do si mesmo, no qual

esse si mesmo não poderá nunca acessar, ou ver. O outro é ausente, porém, essa

ausência é sentida no próprio corpo. A alteridade invisível marca a presença imemorial

de algo que me escapa: há um invisível que pontua o meu campo de visibilidade. Aqui

Merleau-Ponty, mais uma vez, se mantém fiel ao seu mestre Husserl, que intuía em

Ideias II e na Quinta Meditação Cartesiana uma intersubjetividade fundamental.

O corpo próprio não pode ver a si mesmo vendo, isso interrompe de alguma

forma seu olhar, dá mostras a uma invisibilidade fundamental. «A invisibilidade da

carne é como a alma do outro a qual eu não posso nunca ver, a qual eu não posso

nunca agarrar, e, mais importante, que eu não posso nunca conhecer.»10 O conceito de

carne, então, com seu lado Narcísico, salvaguarda a autenticidade da subjetividade

contida no corpo próprio, ao mesmo tempo, que aponta para o totalmente outro, a

9 Chiasms: Merleu-Ponty’s Notion of Flesh, p. 42.10 Chiasms: Merleu-Ponty’s Notion of Flesh, p. 11.

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alteridade do corpo do mundo.

A noção de quiasma, advinda da retórica, é usada por Merleau-Ponty

exatamente para denotar não somente a unidade, nem somente a divisibilidade ou a

alteridade, porém, antes, é utilizada para pensar algo que é unido na divergência. «O

conceito de quiasma recolhe a verdade fenomenológica da distinção entre o sentido de

ser da interioridade e o sentido de ser da exterioridade, totalmente contra em considerá-

los como separados ou separáveis»11. A carne tem uma estrutura “quiasmática” a qual

transita entre o foro íntimo do corpo próprio e a ”alteridade” que nunca é totalmente

separada, do corpo do mundo.

Parece claro, pelo que expomos até aqui, que a carne do mundo não é idêntica

à carne do corpo. «A carne do mundo é sensível mas não é senciente.»12 E vai ser

através da carne do mundo que será possível compreender a carne do corpo próprio.

Observamos a revolução copernicana empreendida por Merleau-Ponty, nesse ponto,

em relação à suas obras anteriores. Em vez de partir da carne do corpo próprio, da

consciência encarnada, Merleau-Ponty partirá, n´O Visível e Invisível, da carne do

mundo.

Ademais, o conceito de carne deveria inaugurar, pensava Merleau-Ponty, um

meio entre os objetos e os sujeitos. Esse conceito, totalmente novo na história da

filosofia, deveria preencher uma lacuna bem determinada. Daí o caráter de “coisa

geral”, de “elemento”, que alguns comentadores atribuem à carne. O corpo próprio tem

o seu reverso no corpo do mundo e vice-versa, e é exatamente essa complexa relação

que o conceito de carne busca apreender. Em vez de ser apenas um senciente em

geral, o corpo próprio adquire, porque é atravessado pelo corpo do mundo, o caráter de

Sensível em geral.

Merleau-Ponty vislumbrou que: enquanto os outros são “carne da minha carne”

as coisas se tornam extensões do meu corpo. Uma tese com uma abrangência

considerável e com ressonâncias místicas evidentes. Merleau-Ponty pensa numa

reciprocidade entre o mundo interior de cada corpo e o corpo do mundo.

Exploremos a hipótese da reciprocidade entre corpo próprio e corpo do mundo,

11 Le vocabulaire de Merleau-Ponty, p. 7.12 Visible et Invisible p. 304 apud Chiasms: Merleu-Ponty’s Notion of Flesh, p. 34.

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que é, de fato, o cerne da discussão em torno do conceito de carne. Para que remete

essa reciprocidade? Ao mesmo tempo, para os que estão intrinsecamente unidos,

porém que, de fato, não aparecem juntos. Quando estamos na instância do corpo

próprio o corpo do mundo é subsumido e, inversamente, quando estamos olhando para

o corpo do mundo não há vestígios do corpo próprio. Porém tacitamente sabemos que

ambos são intrínsecos. Por isso os comentadores dizerem que a filosofia de Merleau-

Ponty, nesse ponto, aponta para uma certa negativa, ou seja, quando se ilumina um

determinado âmbito promove-se, temporariamente, a obliteração de outro.

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BIBLIOGRAFIA

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