Trabalho Final - Liberdade - Conceitos

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HZ 447A Tradições do Pensamento Político HZ 641 Pensamento Político Liberal Prof. Dr. Álvaro Bianchi Silvana G. Romani R.A. 104076 Considerações acerca do tema Liberdade Se houvesse um instrumento capaz de aferir o pensamento político, seria sustentado por um tripé composto por conceitos que, no decorrer da história da humanidade, oferecem indicativos para a análise da forma como os homens tecem suas relações políticas: os conceitos de soberania, liberdade e igualdade. Ainda que imbricados, é possível discorrer sobre eles de forma particular. Esse ensaio propõe-se focalizar o conceito de liberdade em diferentes expoentes da tradição política: Nicolau Maquiavel, Thomas Hobbes, John Locke e, por fim, Jean-Jacques Rousseau. O conceito de liberdade sempre foi objeto de especulação para diferentes pensadores, em diferentes áreas do conhecimento humano. Cecília Meireles, em sua obra Romanceiro da Inconfidência, faz uma reflexão que muito nos diz sobre o vocábulo liberdade: "...Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta que não ninguém que explique e ninguém que não entenda..." Vale lembrar, de antemão, que esse paradoxo acompanhará o conceito de liberdade nos diferentes momentos em que pensadores sobre ela se debruçaram e se debruçarão. Para se abordar aqui o conceito de liberdade, toma-se o século XIII como marco. Isso porque é nesse momento que cidades-estados no norte da Itália começam a reivindicar autonomia. A liberdade almejada é, portanto, civil e não individual. Principia-se, nesse momento, uma política anti-papal e anti-imperial, deslocando a 1

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Diferentes pontos de vista acerca da Liberdade.

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HZ 447A Tradições do Pensamento Político HZ 641 Pensamento Político LiberalProf. Dr. Álvaro BianchiSilvana G. Romani R.A. 104076

Considerações acerca do tema Liberdade

Se houvesse um instrumento capaz de aferir o pensamento político, seria

sustentado por um tripé composto por conceitos que, no decorrer da história da

humanidade, oferecem indicativos para a análise da forma como os homens tecem suas

relações políticas: os conceitos de soberania, liberdade e igualdade. Ainda que

imbricados, é possível discorrer sobre eles de forma particular. Esse ensaio propõe-se

focalizar o conceito de liberdade em diferentes expoentes da tradição política: Nicolau

Maquiavel, Thomas Hobbes, John Locke e, por fim, Jean-Jacques Rousseau.

O conceito de liberdade sempre foi objeto de especulação para diferentes

pensadores, em diferentes áreas do conhecimento humano. Cecília Meireles, em sua

obra Romanceiro da Inconfidência, faz uma reflexão que muito nos diz sobre o vocábulo

liberdade:

"...Liberdade, essa palavraque o sonho humano alimentaque não há ninguém que expliquee ninguém que não entenda..."

Vale lembrar, de antemão, que esse paradoxo acompanhará o conceito de

liberdade nos diferentes momentos em que pensadores sobre ela se debruçaram e se

debruçarão.

Para se abordar aqui o conceito de liberdade, toma-se o século XIII como marco.

Isso porque é nesse momento que cidades-estados no norte da Itália começam a

reivindicar autonomia. A liberdade almejada é, portanto, civil e não individual. Principia-se,

nesse momento, uma política anti-papal e anti-imperial, deslocando a soberania

(inicialmente dividida e posteriormente disputada entre Papa e Imperador) para o âmbito

da cidade.

Entre as cidades-estados italianas, Firenze é de singular importância. Vivendo um

pouco mais de dois séculos de conturbações em sua forma de liderança, por volta de

1517, a família Médici retoma o poder e a República instaurada se desfaz. Nessa época,

Nicolau Maquiavel, segundo secretário da Chancelaria de Florença, é deposto e

condenado ao ostracismo nas proximidades da cidade. É em sua propriedade rural, nas

imediações de San Casciano, que o historiador Maquiavel escreve seu clássico O

Príncipe e, com ele, inaugura uma nova ótica ao pensamento político, desvinculando-o da

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moral e da religião. Essa só estará vinculada à política como variável, ou seja, quando

funcionar como um fator de coesão social.

Além dessa inovação, atribui-se a Maquiavel a inclusão do vocábulo Estado no

léxico político. Ainda que não claramente distinto do que se denominava governo, o

pensador florentino já fala em Estado livre, aquele que não se encontra submetido a outro

poder. Um Estado livre é auto-governado e autônomo, é ele quem faz suas próprias leis.

A condição para a existência de uma República, segundo Maquiavel, é a liberdade. Afirma

que somente por meio dela uma cidade é capaz de crescer em riqueza e poder. O que,

afinal, Maquiavel compreende por liberdade?

Para estabelecer sua compreensão de liberdade, fundamenta-se na oposição de

dois humores: o desejo dos poderosos de comandar e oprimir o povo e o desejo do povo

de não ser comandado nem oprimido. Considerando que esse bem buscado pelos

poderosos e pelo povo não pode ser dividido equitativamente, estabelece-se o conflito.

Nesse ponto, Maquiavel rompe com a tradição grega segundo a qual a comunidade civil

estaria alicerçada no desejo do bem e do amor à concórdia. É a partir da constatação do

confronto permanente entre dois humores antitéticos que, segundo Maquiavel, poderá

nascer a liberdade. Essa ideia é explicitada no capítulo IX de O Príncipe.

“Porque em toda cidade se encontram essas duas tendências opostas: de uma parte, o povo não quer ser comandado nem oprimido pelos poderosos, de outra, os poderosos querem comandar e oprimir o povo: desses dois desejos antagônicos advém nas cidades uma das três consequências: principado, liberdade ou desordem”. (MAQUIAVEL, 2010, p. 77)

Essa mesma ideia reaparece em sua obra Comentários sobre a primeira década

de Tito Lívio, conhecida como Discorsi.

”Os que criticam as contínuas dissensões entre os aristocratas e o povo (...) não querem perceber que há em todos os governos duas fontes de oposição: os interesses dos povo e os da classe aristocrática. Todas as leis para proteger a liberdade nascem da sua desunião...” (MAQUIAVEL, 2004, p. 31)

Alerta-se aqui para o fato de que Maquiavel não acredita na existência de um

conjunto de leis capaz de regular em definitivo esse conflito de desejos. Pelo contrário,

acredita residir na permanência do conflito o surgimento de leis e regulamentos favoráveis

à manutenção da liberdade.

Outro aspecto discutido a esse respeito consiste em definir em que mãos a

liberdade estaria melhor salvaguardada. Em Discorsi, no capítulo quinto do primeiro livro,

Maquiavel afirma que, em se desejando construir um império duradouro e extenso, cabe

ao povo a defesa da liberdade. A essa afirmação faz uma ressalva: em critério de eficácia,

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a liberdade protegida pela nobreza (como ocorreu em Esparta e em Veneza), mostrou-se

mais duradoura do que a defendida pelo povo (como em Roma); entretanto, lembra-nos

de que, a longo prazo, a nobreza mostra-se mais propícia à corrupção que o povo.

“De fato, se considerarmos o objetivo da aristocracia e do povo, perceberemos na primeira a sede do domínio; no segundo, o desejo de não ser degradado - portanto, uma vontade mais firme de viver em liberdade, porque o povo pode bem menos do que os poderosos ter esperança de usurpar a autoridade. Assim, se os plebeus têm o encargo de zelar pela salvaguarda da liberdade, é razoável esperar que o cumpram com menos avareza, e que, não podendo apropriar-se do poder, não permitam que outros o façam” (Ibid., p. 33)

Faz-se necessário assinalar que a leitura que encontra relações similares entre

essas duas obras de Maquiavel é defendida por um de seus comentadores mais

respeitados: o historiador inglês Quentin Skinner. Na ótica de outros importantes

comentadores tais obras, se não apresentam formulações distintas, ao menos são

analisadas de forma independente. Skinner atribui a Nicolau Maquiavel o epíteto de

“filósofo da liberdade” e destaca o caráter republicano desse eternamente polêmico

escritor. Em seu livro Maquiavel, o autor salienta a defesa que o escritor florentino faz da

liberdade e de sua identificação com a grandeza de uma cidade. Mostra que essa

grandeza nunca é resultado da boa Fortuna apenas, mas de sua combinação com

homens de coragem, ou seja, cidadãos de virtù.

Considerando que, na visão maquiavélica, o homem é naturalmente inclinado para

o mal e tende a buscar seus interesses particulares, a liberdade está sempre posta em

risco diante do perigo da corrupção. Faz-se necessário ao governante buscar formas para

fomentar e preservar a virtù das massas. Para tanto, destaca dois métodos: a

manutenção do culto religioso – usado de modo a inspirar os cidadãos e, se necessário, a

aterrorizá-los – e o apelo aos poderes coercitivos da lei. A conjugação desses dois

métodos consiste em uma ferramenta eficaz para incentivar e garantir a grandeza cívica,

ou seja, a liberdade civil.

Thomas Hobbes, pensador inglês do século XVII, ao compor a clássica obra Levi-

atã, publicada em 1651, parte do mesmo pressuposto de Maquiavel: os homens são

naturalmente maus e tendem a buscar apenas o próprio benefício. A despeito da

semelhante premissa, pode-se afirmar que, na ótica hobbesiana, o tema da liberdade

ganha novos contornos.

Hobbes analisa os homens em estado pré-social, em seu estado de natureza.

Nessas condições, afirma o teórico político inglês, impera a ameaça permanente da

guerra, já que um homem terá sempre como possível algoz um outro homem. Dessa ideia

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provém a máxima hobbesiana “Homo homini lupus”. Ainda que os homens possuam

armas, cerquem propriedades, juntem-se a outros, a lei que impera é a do mais forte. Não

há segurança. O perigo da morte (terror maior, a morte violenta) espreita a todos de perto.

Assim sendo, o medo, irmão gêmeo de Hobbes e dos ingleses que experienciavam

guerras-civis, é o grande soberano diante de tal situação.

Como forma de combate a esse estado permanente de ameaça, os homens se

unem em um pacto social. Por meio dele, renunciam à liberdade natural em que viviam e,

juntos, firmam um pacto no qual transferem a um terceiro a soberania para criar leis e

aplicá-las, com o intuito de a todos garantir a paz. É, pois, por esse acordo que se formará

artificialmente o poder soberano, metaforizado na lendária figura bíblica de Leviatã, quer

seja representado por um monarca, por um parlamento ou até por uma assembleia na

qual todos estejam, democraticamente, representados.

“Diz-se que um Estado foi instituído quando uma multidão de homens concordam e pactuam, cada um com cada um dos outros, que a qualquer homem ou

assembleia de homens a quem seja atribuído pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles (ou seja, de ser seu representante), todos sem exceção, tanto os que votaram a favor dele como os que votaram contra ele, deverão autorizar todos os atos e decisões desse homem ou assembleia de homens, tal como se fossem seus próprios atos e decisões, a fim de viverem em paz uns com os outros e serem protegidos dos restantes homens.” (HOBBES, 2003, p.61)

Após a criação desse pacto, faz-se necessário entender qual como o conceito de

liberdade proposto pelo autor. Tal conceito começa a adquirir contornos bem definidos no

capítulo XIV de Leviatã.

“Por liberdade entende-se, conforme a significação própria da palavra, a ausência de impedimentos externos, impedimentos que muitas vezes tiram parte do poder que cada um tem de fazer o que quer, mas não podem obstar a que use o poder que lhe resta, conforme o que seu julgamento e razão lhe ditarem.” (Ibid., p. 47)

Sem impedimentos externos, todo homem tem direito a todas as coisas, inclusive

aos corpos dos outros. Novamente, ressalta-se o perigo de guerra permanente. Não se

tem a certeza de se poder viver todo o tempo que a natureza concede aos homens, toda

vida corre o risco de ser ceifada se imperar a liberdade natural. Portanto, para que se

garanta a vida é necessário que os homens abram mão individualmente desse direito

natural e que, cada “homem concorde, quando outros também o façam, e na medida em

que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu

direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma

liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo” (Ibid., p. 48)

Os homens, para Hobbes, ganham individualidade na coletividade, ou seja, na

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medida em que de forma equivalente renunciam ao próprio direito original, unem-se em

um corpo político e firmam um contrato ao transferirem mutuamente à figura do soberano

o mesmo direito. Ao se equivalerem na mesma renúncia, pode-se afirmar que os homens

ainda preservam, por causa e a despeito desse ato, a liberdade. Ocorre tão somente que

o poder individual é transferido ao soberano, criado pelo pacto. Ao que ocupa esse cargo

confere-se o encargo de poder fazer, executar e julgar as leis. Por essa lógica, alguém

que quiser agir contra lei, estará agindo contra seu próprio consentimento, quer dizer,

contra sua própria liberdade.

“O fim último, causa final e desígnio dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual os vemos viver nos Estados, é o cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita. Quer dizer, o desejo de sair daquela mísera condição de

guerra que é a consequência necessária (conforme se mostrou) das paixões naturais dos homens, quando não há um poder visível capaz de os manter em respeito, forçando os, por medo do castigo, ao cumprimento de seus pactos e ao respeito àquelas leis de natureza...” (Ibid., p.59)

Escritor com especial capacidade argumentativa e apurado raciocínio lógico, o

matemático e filósofo Thomas Hobbes, ao tecer uma teoria que dá forças ao absolutismo,

fortalece também o conceito de liberdade. Cabe ressaltar ainda que se atribui a Hobbes a

primeira teoria de Estado propriamente dita, impondo limites definidos entre esferas

distintas como Estado e governo, como o público e o privado.

Trinta e oito anos após a publicação de Leviatã, outra obra inaugura um novo modo

de se analisar o universo político: Dois Tratados sobre o Governo (1689). Seu autor, John

Locke, médico inglês, passará a ser um marco da filosofia política. Também defensor do

contrato social, Locke parte de princípios diferentes de Maquiavel e Hobbes.

Em estado de natureza o homem vive na ordem universal em que foi criado por

Deus e tem como lei a razão. O mundo, domínio divino, é entregue ao homem, criatura

feita a Sua semelhança e imagem. Assim, o homem tem como direito naturalmente

concedido a vida, a liberdade e o poder de se apropriar do mundo por meio do suor do

seu rosto, ou seja, o direito à propriedade privada como fruto legítimo do trabalho. Esse

último direito constituirá um dos grandes ideais do liberalismo político.

“O estado natural tem uma lei de natureza para governá-lo, que a todos obriga; e

a razão, que é essa lei, ensina a todos os homens que a consultem, por serem iguais e

independentes, que nenhum deles deve prejudicar a outrem na vida, na saúde, na

liberdade ou nas posses”. (LOCKE,1973, p. 24)

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Como a propriedade privada é vista como natural e racional não é, a princípio,

encarada como uma determinação jurídica. Entretanto, os homens com o intuito de

garantir tal direito e não estarem entre si em eterna disputa, abdicam juntos da liberdade

em que vivem para fundarem uma sociedade civil. Em torno dessa perspectiva, funda-se

uma organização política capaz de promover a justiça sobre o princípio da legalidade.

Isso é, segundo Locke, o que dá sentido à criação do Estado pelo pacto social.

Nesse universo, não há mais lugar para leviatãs. O poder deve ser uma relação

entre homens, uma renúncia coletiva capaz de estabelecer padrões possíveis de conduta,

legalmente ordenada. É possível afirmar que o império da lei tem aqui um de seus

alicerces. “Ninguém pode na sociedade civil isentar-se das leis que a regem”, defende

Locke em seu Segundo tratado sobre o governo.

“O poder absoluto arbitrário ou o governo sem leis fixas e estabelecidas não se podem harmonizar com os fins da sociedade e do governo pelo qual os homens abandonassem a liberdade do estado de natureza para sob ele viverem, se não fosse para preservar-lhes a vida, a liberdade e a propriedade, e para garantir-lhes, por meio de regras estabelecidas de direito e de propriedade, a paz e tranquilidade.” (Ibid,, p. 94)

Amparado pela proteção legal, o homem vive seu direito à liberdade de uma forma

mais plena na sociedade civil que em seu originário estado de natureza. Por esse motivo,

na conceito político lockeano, o poder legislativo adquire valor primordial. É ele quem

estabelece as normas necessárias à existência da sociedade e dá ao executivo apenas a

função de aplicá-las. Se, entretanto, o poder legislativo desrespeitar o povo, titular

primeiro de todo o poder, caberá a esse povo resistir e criar um outro aparato legal que

atenda ao pacto firmado.

Vale lembrar que, nesse momento do século XVIII, o poder da burguesia já é

incontestável e o capitalismo adquire forma singular. Assim sendo, a teoria política

cunhada por Locke legitima essa nova classe perante à realeza e à nobreza. O Estado,

por não ter instituído a propriedade, não pode nela interferir. Deve apenas garantir esse

direito aos que, graças ao próprio trabalho, dele se apropriaram, e respeitar a liberdade

econômica de seus proprietários privados, deixando que façam as regras e normas de

suas atividades. Eis aí o início da longa trajetória que traçará o liberalismo, consolidado

na Inglaterra em 1688 com a Revolução Gloriosa.

Se Locke está associado ao liberalismo, outro filósofo, nascido em Genebra, terá

seu nome associado à democracia. Jean-Jacques Rousseau parte dos mesmos

pressupostos do autor inglês, afirmando, em seu livro O Contrato Social, publicado em

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1762, a existência de um estado de natureza e a necessária criação de um pacto social,

denominado por ele contrato social.

Esse estado, conforme afirma o pensador suíço, é de plena harmonia. O homem

vive na natureza como um bom selvagem inocente. Será, no entanto, expulso dessa paz

quando o primeiro homem decide cercar um terreno e apropriar-se dele. A propriedade

privada, direito natural para Locke, é interpretada por Rousseau como responsável por ter

atirado o homem ao estado de natureza hobbesiano da guerra de todos contra todos.

Esse estado é nomeado em Rousseau como estado de sociedade.

Essa passagem da liberdade natural ao surgimento da propriedade e todos os

inconvenientes dela provenientes é descrita em sua obra de 1755, “Discurso sobre a

origem da desigualdade”. Nessa obra, Rousseau constrói a história hipotética de como o

ser humano passou da liberdade à servidão, mostrando que, pelos caprichos da fortuna,

os homens abandonaram a vida natural e passaram a disputar entre si seus espaços. Há,

por toda a obra, um teor de lástima pela perda da vida ligada à natureza.

“Pergunto qual, a vida civil ou a natural, está mais sujeita a se tornar insuportável para os que a gozam. Em torno de nós, quase que só vemos pessoas que se lastimam de sua existência, e muitas mesmo se privam dela tanto quanto o podem. Pergunto se jamais se ouviu dizer que um selvagem em liberdade tenha somente pensado em se lastimar da vida e em se suicidar. que se julgue, pois, com menos orgulho, de que lado está a verdadeira miséria.” (ROUSSEAU, 2005, p. 37)

O valor dado por Rousseau à vida em tal estado foi visto por muitos intérpretes

como expressão de um desejo de retorno à animalidade. Voltaire, por exemplo, chegou a

afirmar que “ninguém jamais pôs tanto engenho em querer nos converter em animais”.

Rousseau, entretanto, não era um inimigo da civilização, mas apenas do tipo de

civilização que sufocava a voz da natureza nos corações humanos e fazia da

desigualdade sua condição de existência. Criticava o reinado da aparência que imperava

na civilidade, o domínio do amor-próprio em detrimento do amor pelo outro.

É na abertura da segunda parte do “Discurso sobre a desigualdade” que Rousseau

deixa claro a origem da já referida passagem do estado de natureza ao estado de

sociedade.

“O primeiro que, tendo cercado um terreno, se lembrou de dizer: Isto é meu, e encontrou pessoas bastantes simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes: “Livrai-vos de escutar esse impostor: estareis perdido se esquecerdes que os frutos são de todos, e a terra de ninguém!”. (Ibid., p. 48)

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A partir desse então a igualdade desaparece e o homem passa a viver em

constante estado de ameaça. Para pôr fim a este estado, os homens decidem se unir,

criando um corpo de leis e passando a viver em sociedade civil.

“Unamo-nos, lhes disse, para livrar da opressão os fracos, conter os ambiciosos e assegurar a cada um a posse do que lhe pertence: instituamos regulamentos de justiça e

de paz, aos quais todos sejam obrigados a se conformar, que não façam acepção de pessoas e que de certo modo reparem os caprichos da fortuna, submetendo igualmente o poderoso e o fraco a deveres mútuos”. (Ibid., p. 61)

É notório em Rousseau a preocupação em articular a vida em comum, sob um

poder superior, sem que, para isso, o indivíduo perca sua liberdade. Essa é um valor de

importância primordial ao autor: “renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de homem,

aos direitos da humanidade, e até aos próprios deveres” (ROUSSEAU, 2010, p. 12). Por

isso entende que, quando cada um abdica de sua própria liberdade em favor da vontade

geral, obedece, em última instância, a si mesmo, já que se dando para todos, não se dá a

ninguém. Com a criação do contrato perde-se a liberdade natural e um direito ilimitado a

tudo, em contrapartida se ganha a liberdade civil e a propriedade daquilo que se possui.

“Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual, cada um, unindo-se a todos, não obedeça senão a si mesmo, e permaneça tão livre como anteriormente”. (ROUSSEAU, 2010, p.17)

Cria-se assim um acordo entre cada membro, transformado em uma parte

indivisível do todo. Esse todo forma o corpo político instituído de um poder absoluto sobre

todos os seus, já que, como representante da vontade geral, é soberano. Na concepção

rousseauniana, a lei, como ato da vontade geral e expressão da soberania, é de crucial

importância já que define todo o destino do Estado. Assim os legisladores têm relevante

papel no contrato social, sendo investidos de qualidades quase divinas. Rousseau define

o poder legislativo como o coração do Estado e o executivo, o cérebro que põe em

movimento todas as partes.

Quanto ao papel do legislador, Rousseau dedica todo o capítulo VII do Livro I de O

Contrato Social para defini-lo. Afirma ser tarefa primeira do legislador conhecer muito bem

o povo para o qual irá redigir as leis. Afirma não existir uma ação política boa em si

mesma em termos absolutos. Cada situação exige um tratamento especial. No entanto,

como condiz ao filósofo da Revolução Francesa, dois marcos constituem o norte de toda

legislação: a liberdade e a igualdade.

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“Se se procura saber em que consiste precisamente o maior dos bens, que deve ser o objetivo de todo sistema de legislação, achar-se-á que se reduz a estes dois objetos principais: a liberdade e a igualdade. A liberdade, porque toda inde-

pendência particular é outra tanta força subtraída ao corpo do Estado; a igualdade, porque a liberdade não pode subsistir sem ela.” (Ibid,, p. 51)

Por fim, de Maquiavel a Rousseau, passando por Hobbes e Locke, o tema da

liberdade perpassa o pensamento político do mundo ocidental. Pode-se afirmar que assim

como a Liberdade de Delacroix conduz o povo, a ele foi conduzida por meio de cada uma

das concepções políticas desenvolvidas por esses pensadores.

Eugène Delacroix, A liberdade guiando o povo,

1830.

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