Traços Urbanos Da Amazônia: o que o design vernacular tem a dizer sobre a cultura local?

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Esta pesquisa faz uma reflexão sobre o design vernacular na cultura urbana amazônica, especificamente em Belém do Pará. O foco da investigação partiu da seguinte questão-problema: como o design vernacular, na tradição popular tipográfica, persiste na cultura urbana belenense? O objeto de pesquisa é o lettering popular, com foco nos desenhos de letras pintados manualmente nas fachadas de pequenos comércios espalhados pela cidade de Belém, por se tratar de uma prática cultural e comunicativa fundamentada na tradição popular vernacular. Nesse sentido, a hipótese defendida neste TCC é a de que o design vernacular, a partir do trabalho dos letristas populares, está ativo nas periferias de Belém do Pará, sendo um elemento estratégico na comunicação e na cultura urbana local. A base teórica centrou-se no campo do design por meio dos autores Rafael Cardoso (2008), Fátima Finizola (2010) e Vera Lúcia Dones (2005); e no campo da cultura, identidade, cidadania e consumo Néstor García-Canclini (2008), Clifford Geertz (2008), Stuart Hall (2006), Gordon Mathews (2002), dentre outros. A metodologia teve como foco a análise qualitativo-descritiva. Para tanto foi realizada coleta de material que ocorreu durante dois meses – de setembro a novembro de 2014 – e envolveu o registro fotográfico das letras com conteúdos vernaculares, três entrevistas com os pintores de letras (Art Walter, Hélio Pintor e Siqueira), além de mais quatro entrevistas com consumidores deste tipo de design. Este estudo é importante por investigar o design vernacular enquanto parte da cultura e da identidade amazônica, resgatando os seus traços distintivos e a maneira como essa forma de comunicação popular ocorre na região Amazônica.This research makes an observation about the vernacular design in the urban culture of the Brazilian Amazon region, specifically in Belém of Pará. The main focus of the investigation came from the following question: how does the vernacular design, at the typographic popular tradition, keeps occurring in Belém? The analyzed object in this research is the folk lettering, with emphasis on the hand drawing letters painted on the facade of small companies and walls widespread across the city, which is a cultural and communicational behavior based on the vernacular popular tradition. Accordingly, the hypothesis presented here pointed that the vernacular design, starting with the work of the letter painters, is active in the suburb of Belém and consists in a strategic element of the local communication and urban culture. The authors, whose studies were used for the theoretical basis of the design field, were Rafael Cardoso (2008), Fátima Finizola (2010) and Vera Lúcia Dones (2005); about the culture, identity, citizenship and consumption fields, this research used the concepts of Néstor García-Canclini (2008), Clifford Geertz (2008), Stuart Hall (2006) and Gordon Mathews (2002). The methodology was based on the qualitative descriptive analysis. The collection of the material for the analysis took place during two months – from September to November of 2014 – and involved the photographic log of the vernacular letters, three interviews with the letter painters (Art Walter, Hélio Pintor e Siqueira), besides four more interviews with the consumers of the popular design. This is an important study because investigates the vernacular design as part of the culture and identity of the Amazon, by rescuing its distinctive features and the way that this popular communication happens in the region.

Transcript of Traços Urbanos Da Amazônia: o que o design vernacular tem a dizer sobre a cultura local?

  • SERVIO PBLICO FEDERAL

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAR

    INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAO

    FACULDADE DE COMUNICAO SOCIAL PUBLICIDADE E PROPAGANDA

    NATLIA CRISTINA RODRIGUES PEREIRA

    TRAOS URBANOS DA AMAZNIA

    O que o design vernacular tem a dizer sobre a cultura local?

    BELM-PA

    2014

  • NATLIA CRISTINA RODRIGUES PEREIRA

    TRAOS URBANOS DA AMAZNIA

    O que o design vernacular tem a dizer sobre a cultura local?

    Trabalho de concluso de curso apresentado

    Banca Examinadora como exigncia parcial

    para obteno de ttulo em bacharel em

    Comunicao Social Publicidade e

    Propaganda, sob a orientao da Profa. Dra.

    Clia Regina Trindade Chagas Amorim.

    BELM-PA

    2014

  • NATLIA CRISTINA RODRIGUES PEREIRA

    TRAOS URBANOS DA AMAZNIA

    O que o design vernacular tem a dizer sobre a cultura local?

    Trabalho de concluso de curso apresentado

    Banca Examinadora como exigncia parcial

    para obteno de ttulo em bacharel em

    Comunicao Social Publicidade e

    Propaganda, sob a orientao da Profa. Dra.

    Clia Regina Trindade Chagas Amorim.

    Conceito: EXCELENTE.

    Aprovado em 18 de dezembro de 2014.

    BANCA EXAMINADORA

    ___________________________________________________________________

    Orientadora: Prof. Dr. Clia Regina Trindade Chagas Amorim FACOM / UFPA

    ___________________________________________________________________

    Prof. Dr. Fbio Fonseca de Castro FACOM / UFPA

    ___________________________________________________________________

    Prof. Dr. Alda Cristina Costa FACOM / UFPA

  • Este trabalho dedicado a todos aqueles que se sentem atrados pela beleza, contrastes,

    nuances e significados presentes em uma comunicao enraizada na cultura popular.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo primeiramente minha me Delma e minha irm Dbora, minhas

    companheiras inseparveis, por amarem incondicionalmente todas as partes existentes em

    mim. Tambm agradeo ao meu pai Carlos Robson, que se disps a me acompanhar em quase

    todas as entrevistas e registros fotogrficos, sempre com uma disposio de ao. Posso

    afirmar que a sua presena tornou esse processo mais divertido e seguro. Aos trs, obrigada

    pelo incentivo, por serem maravilhosos e por dividirem esse momento comigo.

    Agradeo de corao professora Clia Trindade Amorim, que esteve presente desde

    o incio da minha carreira acadmica tanto como professora em sala de aula quanto

    orientadora exigente no projeto de pesquisa Mdias Alternativas da Amaznia e neste TCC.

    Muito da minha confiana e segurana veio das suas palavras. Muito obrigada por toda a

    pacincia, dedicao e carinho durante todos esses anos, espero sinceramente que possamos

    levar essa parceria adiante, por muito mais tempo.

    Gostaria de agradecer tambm Faculdade de Comunicao e Universidade Federal

    do Par. Todas as discusses em sala de aula, os livros e os trabalhos exaustivos foram etapas

    necessrias para que eu pudesse ter sucesso em finalizar a presente pesquisa. Agradeo aos

    professores pela dedicao e aos amigos que fiz por terem compartilhado tantas lembranas

    positivas. Com toda certeza, as experincias que a UFPA me proporcionou moldaram tanto a

    minha carreira acadmica quanto os meus valores pessoais, e sou infinitamente grata por isso.

    Agradeo ao seu Walter, seu Hlio, seu Siqueira, Tnia Contente, Ana Ruth, seu

    Carmino e Maura Batista, que aceitaram contribuir para este trabalho por meio da entrevista.

    Todos dispuseram de boa vontade suficiente para me conceder parte do seu tempo, e graas a

    eles pudemos embasar de forma mais consistente a anlise do trabalho. Alm disso, fico feliz

    pela oportunidade de conhecer as pessoas por trs das letras pelas quais me encantei. A arte da

    capa deste trabalho foi baseada nas letras desenhadas pelos pintores aqui entrevistados.

    Foi um percurso difcil. Por isso mesmo agradeo a todos os meus colegas de trabalho

    no Libra Design. Joo, Berna, Adonai, muito obrigada por todo o apoio e compreenso. Dani,

    muito obrigada por acalmar minhas incertezas e por me fazer sentir melhor todos os dias.

    A todos aqueles que acreditaram nesta pesquisa e que caminharam nesta jornada lado

    a lado comigo, saibam que vocs fizeram toda a diferena. Muito obrigada.

  • Belm, primeira etapa da colonizao portuguesa na Amaznia e,

    portanto, seu espao mais tradicional, rene a maior populao

    urbana da regio e seu sistema mais expressivo de produo

    intelectual, cientfica, artstica e jornalstica, devendo ser apontado,

    ainda, seu papel como centro religioso. Com efeito, essa cidade

    cumpriu, historicamente, o papel de centro intelectual da Amaznia

    portuguesa.

    (Fbio Castro, Pesquisa em Comunicao na Amaznia.).

    Typography is the voice of the written world. (Ben Casey, Type Matters!)

  • RESUMO

    Esta pesquisa faz uma reflexo sobre o design vernacular na cultura urbana amaznica,

    especificamente em Belm do Par. O foco da investigao partiu da seguinte questo-

    problema: como o design vernacular, na tradio popular tipogrfica, persiste na cultura

    urbana belenense? O objeto de pesquisa o lettering popular, com foco nos desenhos de letras

    pintados manualmente nas fachadas de pequenos comrcios espalhados pela cidade de Belm,

    por se tratar de uma prtica cultural e comunicativa fundamentada na tradio popular

    vernacular. Nesse sentido, a hiptese defendida neste TCC a de que o design vernacular, a

    partir do trabalho dos letristas populares, est ativo nas periferias de Belm do Par, sendo um

    elemento estratgico na comunicao e na cultura urbana local. A base terica centrou-se no

    campo do design por meio dos autores Rafael Cardoso (2008), Ftima Finizola (2010) e Vera

    Lcia Dones (2005); e no campo da cultura, identidade, cidadania e consumo Nstor Garca-

    Canclini (2008), Clifford Geertz (2008), Stuart Hall (2006), Gordon Mathews (2002), dentre

    outros. A metodologia teve como foco a anlise qualitativo-descritiva. Para tanto foi realizada

    coleta de material que ocorreu durante dois meses de setembro a novembro de 2014 e

    envolveu o registro fotogrfico das letras com contedos vernaculares, trs entrevistas com os

    pintores de letras (Art Walter, Hlio Pintor e Siqueira), alm de mais quatro entrevistas com

    consumidores deste tipo de design. Este estudo importante por investigar o design

    vernacular enquanto parte da cultura e da identidade amaznica, resgatando os seus traos

    distintivos e a maneira como essa forma de comunicao popular ocorre na regio

    Amaznica.

    Palavras-chave: Comunicao; Design vernacular; Cultura popular; Identidade; Amaznia.

  • ABSTRACT

    This research makes an observation about the vernacular design in the urban culture of the

    Brazilian Amazon region, specifically in Belm of Par. The main focus of the investigation

    came from the following question: how does the vernacular design, at the typographic popular

    tradition, keeps occurring in Belm? The analyzed object in this research is the folk lettering,

    with emphasis on the hand drawing letters painted on the facade of small companies and walls

    widespread across the city, which is a cultural and communicational behavior based on the

    vernacular popular tradition. Accordingly, the hypothesis presented here pointed that the

    vernacular design, starting with the work of the letter painters, is active in the suburb of

    Belm and consists in a strategic element of the local communication and urban culture. The

    authors, whose studies were used for the theoretical basis of the design field, were Rafael

    Cardoso (2008), Ftima Finizola (2010) and Vera Lcia Dones (2005); about the culture,

    identity, citizenship and consumption fields, this research used the concepts of Nstor Garca-

    Canclini (2008), Clifford Geertz (2008), Stuart Hall (2006) and Gordon Mathews (2002). The

    methodology was based on the qualitative descriptive analysis. The collection of the material

    for the analysis took place during two months from September to November of 2014 and

    involved the photographic log of the vernacular letters, three interviews with the letter

    painters (Art Walter, Hlio Pintor e Siqueira), besides four more interviews with the

    consumers of the popular design. This is an important study because investigates the

    vernacular design as part of the culture and identity of the Amazon, by rescuing its distinctive

    features and the way that this popular communication happens in the region.

    Keywords: Communication; Vernacular design; Popular culture; identity; Amazon.

  • LISTA DE ILUSTRAES

    Imagem 01 Exemplos de design vernacular em Belm do Par

    17

    Imagem 02 Fotografias de embalagens vernaculares tradicionais

    20

    Imagem 03 Fontes digitais criadas por Ftima Finizola

    22

    Imagem 04 Exemplo de lettering por Jason Carne

    24

    Imagem 05 Pictogramas sumrios escritos em argila

    26

    Imagem 06 Exemplos de ideogramas contemporneos

    27

    Imagem 07 Alfabeto fencio

    28

    Imagem 08 A evoluo dos pictogramas em letras do alfabeto

    29

    Imagem 09 Evoluo dos tipos

    30

    Imagem 10 Detalhes da anatomia tipogrfica

    31

    Imagem 11 Tipos de serifa

    31

    Imagem 12 Capa do livro Abridores de Letras de Pernambuco; fonte digital

    criada pelo projeto Tipos Populares do Brasil; e a logomarca do projeto Crimes

    Tipogrficos

    .

    39

    Imagem 13 No seu ateli, Hlio Pintor explica como funciona o uso da serigrafia.

    62

    Imagem 14 Letras pintadas em diversos suportes, por Art Walter. 66

    Imagem 15 Fachadas pintadas por Art Walter.

    70

  • Imagem 16 Letra tipo egpcio pintada na fachada do Salo Visual, por Art Walter.

    71

    Imagem 17 Letra em negrito pintada por Art Walter.

    72

    Imagem 18 Letra sombreada pintada por Art Walter.

    73

    Imagem 19 Letra sem-serifa pintada por Art Walter.

    74

    Imagem 20 De cima para baixo, exemplos de diferentes formatos para as letras A,

    R, O e E.

    76

    Imagem 21 Fachada de marcenaria assinada por Art Walter.

    77

    Imagem 22 Fachada de salo de beleza assinada por Art Walter.

    78

    Imagem 23 Gui Gui Lanches, no bairro da Pedreira.

    80

    Imagem 24 Muro pintado por Hlio.

    83

    Imagem 25 Comunicao visual do Avisto na Ponte do Galo, na Sacramenta.

    83

    Imagem 26 Comunicao da Moda Show em muro no Guam.

    85

    Imagem 27 Moda Show, no bairro do Comrcio.

    86

    Imagem 28 Fachada do Barato das Calcinhas assinada por Hlio Pintor.

    88

    Imagem 29 Fachada do Barato das Calcinhas assinada por Hlio Pintor.

    89

    Imagem 30 Identidade visual do Barato das Calcinhas.

    89

    Imagem 31 Marca do Avisto no site e em muro no bairro do Guam. 91

  • Imagem 32 Comunicao do Avisto em muro no bairro do Guam.

    91

    Imagem 33 Restaurante Paladar de Deus, no bairro do Telgrafo.

    94

    Imagem 34 Bar e Pousada Casal Feliz, no bairro da Sacramenta.

    95

    Imagem 35 Fachada do Barato das Calcinhas divide espao com a publicidade

    em outdoor.

    96

  • LISTA DE ANEXOS

    ANEXO A Roteiro de perguntas para a entrevista com os pintores de letras

    104

    ANEXO B Entrevista com o pintor de letras

    105

    ANEXO C Entrevista com o pintor de letras

    109

    ANEXO D Entrevista com o pintor de letras

    112

    ANEXO E Roteiro de perguntas para a entrevista com os consumidores

    115

    ANEXO F Entrevista com o consumidor do design vernacular

    116

    ANEXO G Entrevista com o consumidor do design vernacular

    118

    ANEXO H Entrevista com o consumidor do design vernacular

    119

    ANEXO I Entrevista com o consumidor do design vernacular

    120

  • SUMRIO

    1. INTRODUO 13

    2. OS MLTIPLOS ASPECTOS DO DESIGN VERNACULAR 16

    2.1. O MULTIFACETADO DESIGN DO COTIDIANO 16

    2.2. PASSEIO PELAS SINUOSIDADES TIPOGRFICAS 24

    2.3. RETORNO S ORIGENS: DO DESIGN MODERNO AO DESIGN

    CONTEMPORNEO 32

    3. UM DILOGO DO CONTEMPORNEO 40

    3.1. SOBRE OS ASPECTOS CULTURAIS 40

    3.2. AS IDENTIDADES PS-MODERNAS 46

    3.3. CONSUMO E CIDADANIA 53

    4. A METODOLOGIA DA PESQUISA 60

    4.1. FASES DA INVESTIGAO 60

    5. AS LETRAS PINTADAS NAS FACHADAS E AS CENAS URBANAS

    DE BELM

    65

    5.1. ART WALTER 67

    5.1.1. Maisculas/ minsculas 69

    5.1.2. Serifas 70

    5.1.3. Uso de Sombras 72

    5.1.4. Letras em Negrito/ Bold 74

    5.1.5. Anatomia das letras 75

    5.2. HLIO PINTOR 81

    5.2.1. Moda Show 85

    5.5.2. Barato das Calcinhas 87

    5.2.3. Avisto 90

    5.3. SIQUEIRA 92

    5.3.1. Restaurante Paladar de Deus 93

    5.3.2. Bar e Pousada Casal Feliz 94

    6. CONSIDERAES FINAIS 97

    7. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 100

    8. ANEXOS 104

    9. TERMO DE RESPONSABILIDADE 121

  • 13

    1. INTRODUO

    O design se apresenta no dia-a-dia sob muitas formas, por vezes to ligado ao

    cotidiano do ser humano que se passa despercebido: como no formato dos mveis de

    escritrio, canetas esferogrficas, utenslios domsticos e roupas em geral, alm da sua

    atuao na construo do relacionamento entre empresas, funcionrios e consumidores, na

    valorizao dos processos e identidades culturais regionais e globais, no desenvolvimento de

    tecnologias sustentveis e reutilizao de materiais na indstria.

    Dentre os muitos campos que compem o design como o design grfico, de

    interiores, de embalagens, por exemplo , o chamado design vernacular se destaca pela

    vernacular empregada para definir aqueles artefatos autnticos da cultura de determinado

    com essa caracterstica atua de maneira informal, respeitando as tradies culturais

    transmitidas de gerao para gerao.

    Na capital paraense, comum encontrarmos traos vernaculares, que chamam a

    ateno e instigam o olhar, destacados nas faixas coloridas e informativas das aparelhagens de

    tecnobrega, nas placas colocadas nas caladas, na pintura dos barcos, nas escritas manuscritas

    das lojas, mercados e comrcios locais o design destes ltimos, objeto de estudo do seguinte

    trabalho1. Nesta perspectiva, busca-se investigar o design vernacular como elemento

    estratgico da cultura urbana presente em Belm do Par, com o interesse na apropriao que

    as pessoas fazem dessa comunicao grfica e como ela influencia na regio estudada,

    levando em considerao os aspectos culturais e de identidade locais.

    Vale ressaltar que por ser uma regio de fronteira2, perifrica, a Amaznia apresenta

    diversas caractersticas que a diferenciam de outros espaos urbanos e rurais mundo afora,

    que somam desde os conflitos territoriais capitalistas que acontecem dentro de suas matas

    fechadas ou em reas urbanizadas at a exploso de cores e movimentos que tomam corpo em

    1 As primeiras reflexes tiveram origem quando a autora deste TCC participou como bolsista de iniciao

    cientfica do Projeto Mdias Alternativas na Amaznia (CNPq-UFPa), coordenado pela professora Dra Clia

    Trindade Amorim, da Faculdade de Comunicao UFPa. As investigaes iniciais resultaram no artigo

    , com orientao da professora Clia Trindade

    Amorim. O artigo foi apresentado na Diviso Temtica Comunicao, Espao e Cidadania, da Intercom Jnior

    X Jornada de Iniciao Cientfica em Comunicao, evento componente do XXXVII Congresso Brasileiro de

    Cincias da Comunicao. E foi publicado nos Anais do Intercom 2014. 2 De acordo com a gegrafa Becker (2005), regio de fronteira se configura como um espao tratado sob as

    rdeas da economia de fronteira; ou seja, visto como fonte de terras e recursos naturais e econmicos lineares e

    infinitos.

  • 14

    suas cidades. Apesar disso, quando profissionais das mais diversas reas debruam o olhar

    sobre a Amaznia, precisam realizar um esforo enorme para enxerg-la de fato, de tantas que

    so as suas nuances e de to forte que o imaginrio que foi criado sobre a regio.

    Dentro desse imaginrio coletivo, podemos notar o destaque dado s imagens do

    ndio, do ribeirinho, da floresta e seus mistrios, e a omisso dos espaos urbanos, das

    diferentes culturas apresentadas pela populao, da migrao de pessoas de outras regies do

    Brasil para o Norte, entre outros (DUTRA, 2009). O professor e jornalista Manoel Dutra se

    debrua sobre o modo como a Amaznia retratada na televiso brasileira, conforme trecho

    abaixo:

    Em pouqussimas palavras, o locutor resume aquilo que, para o dispositivo emissor,

    representa a Amaznia: um conceito aberto e portador de unidades discursivas

    redutoras, construdas por fragmentos histricos recuperados do imaginrio que

    reproduz as noes de reserva, de selvagem, de mistrios, de biodiversidade e de um

    ente que patrimnio gentico da Terra (DUTRA, 2009, p. 91).

    O argumento expe a maneira pela qual a imagem da Amaznia vendida, reforando

    esse imaginrio sobre a regio. A presente pesquisa busca contribuir para a disseminao da

    percepo de que a realidade regional exposta acima na verdade um fragmento das mltiplas

    realidades e culturas presentes no espao amaznico. Existem densas e misteriosas florestas,

    reservas indgenas, latifndios, reas destinadas agropecuria e extrao de minerais, e estas

    coexistem com o cotidiano da populao urbana, que conhece os mitos e lendas da terra,

    trabalha, vota e ainda consome produtos industrializados e tecnolgicos. O estudo, focado na

    diversidade tipogrfica visual presente nas periferias urbanas, tem a ver com a forma como

    essas pessoas vivem, interagem e se comunicam nesses espaos.

    Este trabalho entende a identidade contempornea como mltipla e contraditria, de

    acordo com os estudos de Stuart Hall (2006), pois busca explicar um processo de interao

    global e local, assumindo que a globalizao no homogeneizou a identidade do design local;

    pelo contrrio, observa-se muitas vezes o reforo e legitimao dessa cultura. Por conta disso,

    este trabalho estabelece um dilogo entre os campos da comunicao, design, cultura e

    identidade, definindo como problema de pesquisa o seguinte questionamento: como o design

    vernacular, na tradio popular tipogrfica, persiste na cultura urbana belenense?

    Como caminho, vamos verificar a hiptese de que o design vernacular, a partir do

    trabalho dos letristas populares est ativo nas periferias de Belm do Par, sendo um elemento

    estratgico na comunicao e na cultura urbana local. O objetivo geral ser refletir sobre a

    importncia do design vernacular na cultura urbana belenense. Os objetivos especficos so:

  • 15

    Contextualizar o design vernacular na cultura urbana belenense;

    Identificar as caractersticas estruturais do design vernacular produzido na cultura de

    Belm do Par;

    Analisar traos da cultura urbana popular no design vernacular em Belm;

    Para a elaborao do presente trabalho buscou-se primeiramente o embasamento na

    pesquisa bibliogrfica Esta etapa foi necessria para o dilogo proposto entre os campos do

    design, comunicao, identidade e cultura, de modo a facilitar a compreenso sobre as

    pinturas das letras nas fachadas produto do design vernacular enquanto importante forma

    de comunicao e expresso popular.

    Aps a busca bibliogrfica, ocorreu a coleta de dados primrios, referentes: a) ao

    primeiro registro fotogrfico das imagens com contedos vernaculares, realizado de maneira

    aleatria, que incluiu tambm a busca pelo contato dos pintores; b) entrevistas com os

    pintores de letras Art Walter, Hlio Pintor e Seu Siqueira, para complementao da pesquisa;

    c) ao segundo registro fotogrfico, focado nos trabalhos dos pintores de letras entrevistados; e

    d) s entrevistas com os consumidores do design vernacular Carmino de Carvalho Borges,

    Tnia Contente, Ana Ruth e Maura Batista, donos dos estabelecimentos fotografados (no

    segundo registro fotogrfico).

    A pesquisa foi dividida em trs captulos: o primeiro ir tratar sobre o design

    vernacular, o ensino de design no Brasil, e conceitos do universo da tipografia, com base nos

    estudos de Rafael Cardoso (2008), Ftima Finizola (2010) e Vera Lcia Dones (2005); o

    segundo traz a relao entre o local e o global, no campo da cultura, para o entendimento dos

    elementos culturais do design e sua potencialidade de comunicao, fundamentado, entre

    outros autores, nas obras de Nstor Garca-Canclini (2008), Clifford Geertz (2008), Stuart

    Hall (2006) e Gordon Mathews (2002); o terceiro foi reservado para a metodologia da

    pesquisa, entrevistas e fotografias recolhidas; e o quarto captulo apresenta a anlise formal do

    material coletado.

  • 16

    2. OS MLTIPLOS ASPECTOS DO DESIGN VERNACULAR

    2.1. O multifacetado design do cotidiano

    Com o olhar atento e curioso, possvel perceber os detalhes das comunicaes

    grficas espontneas que dividem os espaos pblicos de diversas cidades do Brasil e do

    Mundo. Estejam elas representadas no subrbio de Los Angeles, nas placas expostas nas

    caladas em Recife, nas faixas e luminosos em Porto Alegre, ou nas fachadas de pequenos

    comrcios em Belm, compartilhando ou no de tendncias e estilos grficos, o design

    vernacular surpreende pelas suas particularidades locais e regionais.

    O aspecto cultural vernacular sobrevive h centenas de anos. Como explica a

    professora Vera Lcia Dones (2004), as prprias lnguas europeias j foram consideradas

    lnguas vernculas em contraposio ao idioma oficial falado pelas classes instrudas na

    Grcia Antiga, que eram o Grego e o Latim. Para Dones,

    O termo vernacular sugere a existncia de linguagens visuais e idiomas locais, que

    remetem a diferentes culturas. Na comunicao grfica, corresponde s solues

    grficas, publicaes e sinalizaes ligadas aos costumes locais produzidos fora do

    discurso oficial (DONES, 2004, p. 02).

    Dones entende por discurso oficial a prtica institucionalizada do design, que conta

    com o apoio de instituies hegemnicas como as Universidades, as empresas de

    comunicao, os escritrios de design. Diferentemente do que acontece com o design

    vernacular, que se baseia em uma produo mais autnoma e espontnea. Ela cita Rafael

    e feito margem do

    (Dones, 2004, p. 2), e a designer americana Ellen Lupton (LUPTON,

    1996, p.111), que defende a complexidade existente em torno desse tipo de comunicao:

    marginal ou anti-

    profissional, mas como um amplo territrio onde seus habitantes falam um tipo de

    DONES, 2004, p. 02).

    No trecho acima, percebe-se que a discusso sobre a forma de comunicao utilizada

    pela populao local faz parte de uma discusso maior sobre culturas, no plural. Culturas que

    coexistem e possuem traos distintos especficos, que se traduzem tambm por meio da

    linguagem e de suas produes grficas vernaculares. Ou seja, o vernacular tem sua raiz na

  • 17

    cultura popular e se apropria de signos que sobrevivem ao tempo, s novas tecnologias e s

    mudanas nas formas de comunicao e de consumo.

    O termo cultura popular no designa um conjunto coerente e homogneo de

    atividades, pelo contrrio, sua caracterstica a heterogeneidade, a ambiguidade e a

    contradio, no somente nos aspectos formais, mas tambm em termos de valores e

    interesses que veicula. Assim, comparadas com a cultura erudita, as manifestaes

    populares so, de certa forma, dispersas, elaboradas geralmente com

    desconhecimento de sua produo anterior e de outras manifestaes similares

    (DONES, 2005, p. 01).

    Por conta da natureza comum que esse tipo de produo apresenta, o modo pelo qual

    muitos autores enxergam o vernacular chega a ser um pouco condescendente, assumindo toda

    a desorganizao e disperso imagtica do outro a partir de sua prpria viso do que seria um

    contedo visualmente organizado. Dessa forma, estabelece-se uma distino entre o

    pesquisador, produtor de conhecimento acadmico, rgido, validado socialmente, e aqueles

    entanto, necessrio empatia com o outro para que se possa entend-lo, alm de humildade

    para reconhecer que as regras regentes do campo acadmico podem no ser aplicadas alm

    dos muros da universidade.

    Imagem 01: Exemplos de design vernacular em Belm do Par.

    Fonte: Arquivo de Natlia Pereira, autora do trabalho3.

    O design vernacular se traduz na espontaneidade e autenticidade da cultura popular, e

    nas experincias vivenciadas nas ruas. Isso pode ser percebido em suas cores, formas, e nos

    signos grficos utilizados em suas construes visuais. Seu aspecto heterogneo torna

    possvel que a sua rea de atuao no campo grfico se estenda desde embalagens, pinturas

    em lona, em fachadas, caminhes, barcos, carros de lanches mveis, faixas, at as mais

    3 As fotos fazem parte da pesquisa realizada para este trabalho de concluso de curso, e foram retiradas em julho

    de 2014.

  • 18

    diversas placas, materiais e formatos, ou seja, o suporte da mensagem e ausncia de recursos

    no se configura como um obstculo para a criatividade e inventividade desses profissionais.

    Certos aromas, texturas, cores e sons nos remetem a significados j enraizados na

    cultura popular, e se manifestam de forma imediata na nossa mente: como o cheiro do

    churrasco, a textura da seda, o modo como sabemos se determinada banana j pode ser

    consumida pela cor da sua casca, ou o som que faz o carrinho do vendedor que passa na frente

    da nossa casa. A comunicao e o design se apropriam desses elementos pertencentes ao

    universo simblico popular para criarem conexes emocionais com as pessoas. O design

    vernacular atua da mesma forma, no a partir do conhecimento acadmico, mas levando em

    considerao a sabedoria popular e a tradio que passa de gerao para gerao.

    Nas pesquisas sobre o tema, percebe-se um embate entre o que chamamos de design

    oficial e o design vernacular, na qual est envolvida a legitimao de classes sociais e culturas

    distintas. O socilogo Pierre Bourdieu (1989) defende que as formas de dominao presentes

    na sociedade no se esgotam nos limites da fora fsica e econmica; ela tambm ocorre por

    meio de uma violncia simblica, cotidiana, amparada pelos sistemas simblicos que

    reforam a dominao de uma cultura sobre outras.

    Bourdieu utiliza o conceito de poder simblico poder de construo da realidade

    para explicar os embates e lutas que ocorrem nos campos sociais e que vo alm do uso da

    fora fsica e do poder econmico para legitimar uma poltica de dominao. O autor entende

    possvel o consensus acerca do sentido do mundo social que contribui fundamentalmente para

    a reproduo da o

    O poder simblico como poder de constituir o dado pela enunciao, de fazer ver e

    fazer crer, de confirmar ou de transformar a viso do mundo e, deste modo, a aco

    sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mgico que permite obter o

    equivalente daquilo que obtido pela fora (fsica ou econmica), graas ao efeito

    especfico de mobilizao, s se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado

    como arbitrrio (BOURDIEU, 1989, p. 14).

    No pargrafo acima, o autor esclarece o fato de que o reconhecimento social dos

    smbolos necessrio para que as culturas sejam vistas como hierarquicamente superiores ou

    inferiores umas s outras, por meio de uma relao de integrao, distino e legitimao

    to enraizada no universo simblico social que no questionada, e sim aceita como verdade.

    Os embates sociais que Bourdieu descreve acontecem dentro do que o autor chama

    de campo,

    campo, e apreender aquilo que faz a necessidade especfica da crena que o sustenta, do jogo

  • 19

    (BOURDIEU, 1989, p. 69). Ou seja, em cada campo (cultura, arte, design, comunicao,

    entre outros), existem estruturas e significados especficos, prprios, que s se reproduzem e

    s fazem sentido naquele contexto para aquelas determinadas pessoas onde aqueles com

    maior capital simblico consequentemente possuem maior poder na tomada de decises.

    Ainda segundo o autor, os agentes de um campo com interesses semelhantes atuam

    por meio de um habitus comum, ou uma disposio incorporada comum, um conhecimento e

    postura que no vem de uma razo humana ou esprito universal. O habitus descreve o

    comportamento e as capacidades criativas que as pessoas adquirem no convvio umas com as

    outras.

    Seguindo o pensamento de Bourdieu, Fernanda Cardoso4 defende que

    bens simblicos seria reflexo de seu habitus, e a linguagem comum utilizada pelos designers5

    populares representa, em ltima anlise, esquemas de percepo, de pensamento e de ao

    . Ou seja, os grupos populares atuam de

    forma especfica, de acordo com seus prprios valores, signos e estticas visuais.

    que acaba por criar um padro informal nesse tipo de produo. O que a autora nomeia

    uniformidade, entende-se aqui como linguagem comum, que existe mesmo sem conscincia

    de campo, regras estruturadas e instituies de representao. Isto quer dizer que seria

    possvel identificar um estilo prprio dentre os trabalhos de design vernacular por conta de

    uma linguagem comum entre os produtores deste campo, que reflete o universo simblico

    destas pessoas, suas formas de ver o mundo. Cardoso explica que possvel identificar no

    campo do design vernacular: formas de representao mais direta e imediata, imagens

    explcitas e o uso de cores fortes, com bastante contraste entre si diferente da linguagem

    grfica utilizada na comunicao desenvolvida para outros grupos sociais.

    A cor seria, ento, uma representao social, e seu o valor determinado pela

    sociedade. Em muitos casos, a cor utilizada j tem um significado especfico no referencial

    simblico popular. Um exemplo disso a utilizao das cores rosa nas embalagens

    tradicionais vernaculares citada pela autora. Essa cor geralmente associada a produtos em

    sua verso adocicada, como pipoca e biscoitos doces. J faz parte do nosso universo associar

    4 O artigo citado tem como base os resultados da pesquisa de doutorado sobre o universo simblico do design

    grfico vernacular realizada por Cardoso no ano de 2010. 5 Para este trabalho, pintores de letras.

  • 20

    cores a situaes especficas e, por vezes, como no exemplo acima, essa associao to

    comum, e utilizada h tantos anos, que pouco se reflete sobre o seu significado.

    Imagem 02: Fotografias de embalagens vernaculares tradicionais.

    Fonte: Cardoso, 2012.

    As linhas e desenhos do design vernacular so moldados a partir do fazer artesanal,

    por meio de mos habilidosas que dominam ferramentas tradicionais, como tintas e pincis, e

    conseguem transformar estruturas planas e sem vida em fonte de inspirao para muitos

    designers, que hoje reforam a expressividade e autenticidade dessa forma de trabalho.

    No artigo intitulado As apropriaes do vernacular pela comunicao grfica, Vera

    Lcia Dones (2004) faz um apanhado geral sobre as mudanas de paradigmas dos designers

    modernos para os ps-modernos, em especial relacionados esttica grfica. A pesquisadora

    explica que, a partir dos anos 80 do sculo passado, os designers passam a se interessar pela

    cultura das ruas e sua complexidade visual, e que esse interesse pelas linguagens locais e

    regionais tem a ver com uma mudana de atitude dos designers e com o surgimento das novas

    tecnologias, que permitiram ao vernacular sair da ma

    design oficial, sem hierarquias.

    Os responsveis pela criao das artes vernaculares no so reconhecidos como

    designers, nem se intitulam como tal, podendo ser chamados de pintores de letras, artesos,

    artistas. A nomenclatura letrista tambm no se aplica a estes profissionais apesar de j ter

    sido utilizada em trabalhos acadmicos porque este nome costumava caracterizar o

    profissional que trabalhava em agncias de publicidade e que desenhava letras para a

    confeco de layouts antes do surgimento de impresses computadorizadas, alm de que o

    letrista possua uma formao tcnica mais elevada, diferente dos pintores de letras e de sua

    escolaridade menos favorecida (DOHMAN, 2005, p. 8).

    O autor Marcus Dohmann, em sua tese de doutorado (2005), retratou o cenrio urbano

    do design vernacular, com foco em Itaipava, no Rio de Janeiro, colocando questes

  • 21

    relacionadas ao aspecto cultural, de identidade, de legitimidade dessa prtica no campo

    comunicacional e do design. Abusando de cores fortes, traos muitas vezes irregulares e do

    foco no utilitarismo, ele explica que a esttica vernacular representa hoje, para muitos

    designers, os resqucios da conhecida brasilidade, em um momento de avanos na rea

    tecnolgica e de um modo de fazer e de entender o que design global.

    Dohmann cita ainda o aprendizado intuitivo e no acadmico, sendo baseado nas

    experincias visuais do cotidiano como fator determinante para a manuteno dessa atividade.

    De acordo com o autor, o ofcio de pintor de letras ainda se aprende pela relao entre mestre

    e aprendiz, tradio oral, e prtica do fazer manual, no sendo legitimada por instituies

    hegemnicas da sociedade6.

    Em relao tradio oral, nos referimos ao que aprendido prioritariamente por

    meio da linguagem, dos sons falados ao invs do uso da forma escrita e do estudo sistemtico

    no ensino. Conforme Walter Ong argumenta, o homo sapiens surgiu h cerca de 30.000 a

    50.000 anos, enquanto que o mais antigo registro data de apenas 6.000 anos atrs, provando

    e na maioria das vezes existiu sem qualquer escrita; mas

    1998, p.16). O objeto de estudo de Ong se concentra na

    oralidade primria, ou seja, a das pessoas que no conhecem nenhuma forma escrita ou de

    impresso; mesmo assim, ela demonstra a importncia da tradio oral para a humanidade.

    Eles aprendem pela prtica - caando com caadores experientes, por exemplo -,

    pelo tirocnio, que constitui um tipo de aprendizado; aprendem ouvindo, repetindo o

    que ouvem, dominando profundamente provrbios e modos de combin-los e

    recombin-los, assimilando outros materiais formulares, participando de um tipo de

    retrospeco coletiva - no pelo estudo no sentido restrito (ONG, 1998, p. 17).

    O fragmento acima se refere forma de aprendizado das sociedades primitivas.

    Porm, essa forma de ensino permanece viva at hoje, acionada muitas vezes no momento em

    que acontece fora do espao da sala de aula. Conforme veremos brevemente no captulo trs,

    os pintores de letras entrevistados neste trabalho aprenderam a profisso por meio da tradio

    oral, de maneira autodidata, de forma prtica e no terica.

    6 A ideia de hegemonia conforme apresentada no texto surgiu do pensamento de Antonio Gramsci (1989

    1937). Italiano, ele foi um personagem ativo e importante para a histria do incio do sculo XX, motivado

    enormemente pelos estudos marxistas e por Lenin. A sua ideia de hegemonia parte do princpio da luta de

    classes, de uma revoluo que partiria das camadas populares e que lhes traria o domnio, o poder ditador, a

    hegemonia, sobre a sociedade e que seria, portanto, capaz de oferecer a todos o direito ao conhecimento e

    da tica, depois no da poltica,

    atingindo, finalmente, uma elaborao superior da prpria concepo do real. A conscincia de fazer parte de

    uma determinada fora hegemnica (isto , conscincia poltica) a primeira fase de uma ulterior e progressiva

    au

  • 22

    Por conta da ausncia de instituies legitimadoras, a profisso do pintor de letras

    caminha sem pisar de fato nas regras com as quais o design oficial convive. Ou seja, apesar

    das dificuldades e dos recursos reduzidos de produo, os pintores de letras ganham a

    liberdade de criao frente s regras acadmicas, o que torna os seus produtos mais

    espontneos em relao s suas propores, volumes, formas, cores.

    Em contraposio a esse cenrio, cresce dentro da academia o interesse pelo universo

    do design vernacular e, com isso, crescem tambm as trocas de experincias entre

    conhecimento acadmico e conhecimento popular. Os profissionais do design oficial

    passaram a se apropriar do contedo imagtico popular como forma de retornar s origens e

    criar uma identificao com determinados segmentos da populao, alm de reconhecer a

    importncia histrica e cultural que esse elemento central da identidade brasileira tem a

    oferecer.

    Essa apropriao por meio da academia ocorre, muitas vezes, com base em pesquisas

    sobre o design vernacular, registros fotogrficos, entrevistas com os atores sociais e criao de

    fontes digitais inspiradas nas letras estudadas. Hoje possvel encontrar fontes digitais que

    simulem letras e mesmo cones vernaculares, que apresentam formatos mais irregulares, e que

    representam traados de canetas esferogrficas, escrituras feitas mo, tanto em suas verses

    gratuitas quanto pagas.

    Imagem 03: Fontes digitais criadas por Ftima Finizola7.

    Fonte: Crimes Tipogrficos, 20148.

    Observam-se acima as imagens de duas fontes9 digitais, criadas a partir da tradio

    tipogrfica presente na cultura popular nordestina. Finizola argumenta que a opo por essa

    7 A fonte Zabumba Folk pode ser adquirida pelo preo de R$ 40,00, j a fonte Rial est disponibilizada para

    download gratuito. 8 Disponvel em: http://www.crimestipograficos.com/?go=fonts.

  • 23

    reflexo maior, entre aqueles que iro consumir esses produtos, acerca da verdadeira

    Porm, h uma linha tnue na qual a inspirao e

    apropriao se confundem, e onde o desejo por salvar traos to importantes do

    desaparecimento atravs de sua imortalizao digital deixa o pintor de letras no anonimato,

    sem o reconhecimento da sua obra, em especial quando essa fonte digital inspirada em seu

    trabalho no distribuda gratuitamente.

    Ainda sobre essa relao, Dones acrescenta que:

    O design grfico atravs da esttica vernacular representaria a superao de uma

    viso dicotmica do pensamento moderno que coloca de um lado o design erudito,

    fruto do conhecimento acadmico, e de outro lado, aquele produzido margem

    desse sistema. Parece cada vez mais difcil enquadr-lo como algo fixo, em uma

    hierarquia de espaos culturais (acadmico versus vernacular) ou em uma

    linearidade histrica (DONES, 2004, p. 07).

    A superao da qual fala a autora se relaciona ao fato de que, a partir da dcada de

    1920, se fortaleceu a noo do design de formas rgidas, estruturadas e limpa, sem exageros.

    Cardoso chama essa forma de pensar de Estilo Internacional, que tinha entre os seus objetivos

    por formas gerais e universais (CARDOSO, 2000, p. 152).

    A cultura popular se estabelece na autenticidade, em um fluxo constante de

    experincias contraditrias e vibrantes, na qual a longa tradio convive com modismos

    coloquiais temporais persistncia e mesmo ressurgimento do chamado elemento

    vernacular no design brasileiro (...) revela as tenses entre uma viso de design fundamentada

    em ideais importados e outra assentada no reconhecimento das razes profundas da realidade

    brasileira . Ou seja, o design vernacular pode ser entendido

    tambm enquanto um produto atrelado a estticas particulares das localidades nas quais se

    origina.

    O design oficial e o design vernacular caminham lado a lado, atendendo as demandas

    de diferentes segmentos sociais, e fazendo parte da mesma cultura na qual atuam. Acredita-se

    neste trabalho que os dois setores tm muito a aprender um com o outro, e que a sociedade

    ganha com o respeito a essa multiplicidade cultural. Ou seja, importante ter em mente que o

    design vernacular e o design oficial no se anulam, pois ambos so importantes para

    9 Fonte (font, fount, ingls =fundido). O termo deriva de foundry, a fundio onde os tipos eram fundidos a partir

    de metal lquido. Disponvel em: http://tipografos.net/glossario/fontes-digitais.html.

  • 24

    entendermos as dimenses culturais de uma sociedade como um todo, cada um abarcando as

    necessidades de diferentes contextos sociais e com suas caractersticas especficas.

    2.2. Passeio pelas sinuosidades tipogrficas

    Na tentativa de conceituar o que seria a tipografia, foi encontrada certa dualidade:

    para alguns, se trata de um processo estritamente mecnico; para outros, a definio da

    palavra se torna mais abrangente. Por exemplo, de acordo com o site Tipgrafos10

    , a

    tipografia vem do grego typos (forma) e graphein

    criao e feitura de tipos, quer metlicos, quer de fontes digitais Essa conceituao se

    detm na tecnologia da produo de tipos mecnicos em si.

    Neste trabalho compreende-se tipografia de acordo com Bruno Martins (2007, p. 63),

    como a materializao da escrita, onde

    busca um conceito amplo porque acredita que o termo tipografia, no Brasil, seja equivalente

    aos termos writing, lettering e typography, do ingls.

    Imagem 04: Exemplo de lettering por Jason Carne.

    Fonte: Behance, 201411

    .

    writing se aproxima do que conhecemos como caligrafia ou qualquer

    ato de escrever manual que se utiliza de instrumentos que vo do lpis ao pincel para desenhar

    letras de apenas uma linha (stroke MARTINS, 2007, p. 62). No passado, representava a

    10

    Disponvel em: http://tipografos.net/glossario/tipografia.html. 11

    Disponvel em: https://www.behance.net/gallery/19246925/Sevenly.

    http://tipografos.net/glossario/tipos-moveis.htmlhttp://tipografos.net/glossario/fontes-digitais.html
  • 25

    maneira pela qual os escribas reproduziam os livros, mo, antes da inveno da impresso

    por Gutenberg em 1450. Hoje, tem a ver com a forma particular e espontnea de cada

    indivduo se expressar atravs da escrita, com a forma fluida que as letras adquirem no papel.

    J o lettering

    manuais, mas sem a restrio de que sejam desenhadas com apenas uma linha, podendo, por

    MARTINS, 2007, p. 62). Apesar de o lettering ser

    mais trabalhado artisticamente, voltado para comunicaes especficas, ele no tem como

    objetivo a construo de letras que formem um novo alfabeto, ou a criao de letras que

    possam ser reproduzidas; se tratam de peas de carter nico.

    Finalmente, Martins diz que -se por typography a criao de desenhos e

    composies predeterminados por meio de tcnicas mecnicas ou digitais que independem do

    impresso de tipos mveis, as

    famlias tipogrficas, a anatomia das letras e as regras de tipografia ensinadas nas

    universidades como o fato de que os designers devem se limitar ao uso de no mximo duas

    fontes por projeto, ou evitar a centralizao dos pargrafos no meio da pgina12

    .

    Martins compreende, ento, tipografia como a juno destes trs elementos da

    linguagem escrita: writing, lettering e typography, ao passo que esta sai da esfera mecanicista,

    responsvel pela tecnologia utilizada na impresso e construo de tipos mveis, e passa a

    englobar a forma como a escrita corporizada, tendo em mente que os desenhos das letras

    (espessuras, cores, detalhes) e outras formas grficas influenciam na leitura e interpretao do

    texto.

    De acordo com Ftima Finizola (2010, p. 40), a tipografia pode ser entendida sob dois

    aspectos: como organizao visual da linguagem escrita independente de como produzida, e

    tambm ao se relacionar ao design e ao uso de letras por processo mecnico ou digital. O

    lettering se refere tcnica de desenhar e construir conjuntos de letras por processos manuais,

    enquanto que a caligrafia abrange a prtica pessoal de escrita de cada indivduo.

    Outra forma de definir esse conceito foi expressa pelo professor de comunicao

    Ela tem o poder de determinar o tom do

    texto ao gritar, sussurrar, ou ser expressiva, forte ou delicada, ao atribuir significados,

    intenes e formas distintas s palavras. Ou seja, o seu contedo imagtico, como as cores e

    outros elementos da composio, comunica tanto quanto o seu contedo escrito.

    12

    Nessa linha de pensamento, o professor Craig (2006, p. 171) define typography como a arte de projetar com

    tipos.

  • 26

    A histria da tipografia comeou h bastante tempo, junto com a prpria necessidade

    que o ser humano tem de se comunicar, ato intrnseco natureza humana. Mesmo antes da

    existncia de palavras escritas, ou da juno entre som e imagem para a formao de

    alfabetos, nossos antepassados deixaram as suas marcas na histria por meio de pinturas e

    desenhos realizados com as tcnicas disponveis da poca. Sobre esse assunto, Martins

    interpreta que:

    A impulso de escrever do homem se realiza a partir de tcnicas (incises, o pincel,

    o clamo, o osso, o buril, o lpis, a pena, os tipos mveis, a mquina de escrever, o

    computador) que do forma a signos grficos sobre uma grande diversidade de

    suportes (a parede das cavernas, o pergaminho, o metal, a madeira, o papel, as telas

    luminosas, etc.). (MARTINS, 2007, p. 47).

    As primeiras pinturas de pessoas, animais ou ferramentas desenhadas nas cavernas,

    feitas inicialmente com argila, datam de 20.000 a.C., enquanto que a primeira evidncia

    escrita foi desenvolvida 17.000 anos depois pelos sumrios13

    , por volta de 3500 a.C.

    (DYKES, 2011). Essas formas de pintura so conhecidas como Pictografia, que pode ser

    um sistema primitivo de escrita em que as ideias e os objetos eram

    representados por desenhos14

    Imagem 05: Pictogramas sumrios escritos em argila.

    Fonte: CRAIG, 201415

    .

    13

    De acordo com descobertas arqueolgicas, os Sumrios foram o primeiro povo a habitar a regio da

    Mesopotmia, o atual Iraque, compreendida entre os rios Tigre e Eufrates. Eles foram responsveis pela

    construo dos primeiros templos e palcios monumentais, pela fundao das primeiras cidades-estado e pela

    inveno dos sinais escritos por meio da Pictografia, tudo no perodo de 3100 a 3000 a.C. (SOUZA, 2014). 14

    Disponvel em: http://www.dicio.com.br/pictografia/. 15

    Disponvel em: http://www.designingwithtype.com/5/origins.php?whatImage=1.

  • 27

    relaes comerciais e administrativas de uma sociedade que se tornava cada vez mais

    Com o passar do tempo, os pictogramas no

    conseguiam dar conta dos significados abstratos que surgiram, e foi ento que ocorreu a sua

    evoluo para o que se denomina de ideogramas, nos quais os smbolos passam a representar

    ideias, e comeam a adquirir significados diversos quando combinados entre si (CRAIG,

    2006, p. 8).

    Dentre os vrios exemplos contemporneos dos ideogramas, pode-se citar a imagem

    da caveira e seus ossos cruzados, que pode significar o conceito abstrato de perigo, e a escrita

    chinesa, que utiliza uma verso desenvolvida desse sistema na construo de seu prprio

    alfabeto. Alm disso, o sistema de numerais romanos utilizados hoje em dia, como o I, II e III,

    podem ser considerados como ideogramas, pois representam os dedos da mo (DYKES,

    2001).

    Outras verses modernas dos ideogramas podem ser encontradas nos cones que

    usamos para expressar certos significados, como o desenho do relgio para indicar a hora, um

    lpis para sinalizar um desenho, um balo de fala para expressar conversa, o corao para a

    representao do amor, entre outros.

    Imagem 06: Exemplos de ideogramas contemporneos.

    Fonte: Imagem esquerda: Arquivo da Autora

    16.

    Imagem direita: Blog Criativo (2014)17

    .

    Uma mudana significativa no universo da escrita ocorreu por volta de 1200 a.C., no

    momento em que os smbolos passaram a representar os sons falados no alfabeto fencio, ao

    invs da antiga representao de ideias e objetos. De acordo com Craig (2006, p. 9), o intuito

    16

    Criado em 14 de setembro de 2014. 17

    Disponvel em: http://anakabum.wordpress.com/oficina-da-palavra/ideograma-chineses/.

  • 28

    inicial desse novo sistema, conhecido como fonograma, era a simplificao da comunicao

    nas transaes comerciais dos fencios, mas que, a logo prazo, permitiu a utilizao de um

    nmero menor de smbolos do que os sistemas pictogrficos e ideogrficos necessitavam, e as

    suas formas simplificadas tornaram o seu aprendizado mais rpido.

    no podemos negar a importncia do

    aparecimento da escrita, que promoveu um movimento de ruptura nas sociedades tradicionais,

    ao deslocar o lugar do conhecimento da oralidade para a escritura, criando as bases para o

    pensamento moderno se trata de uma descoberta que modificou a forma com a qual

    as sociedades passaram a se relacionar entre si e com os outros povos. O alfabeto fencio

    considerado o primeiro alfabeto escrito e, nicialmente pictogrfica, pode-se dizer que a

    escrita ocidental surgiu da necessidade de controle do tempo, das relaes comerciais e

    administrativas de uma sociedade que se tornav

    (MARTINS, 2007, p. 33). Alm de que, com o avano nas formas de escrita, foi possvel

    identificar a origem das mercadorias, comprovando a sua qualidade e destacando os produtos

    de outras localidades, no ramo do comrcio.

    Imagem 07: Alfabeto fencio.

    Fonte: CRAIG, 201418

    .

    O alfabeto acima teve grande influncia na construo do alfabeto grego. Na

    realidade, os gregos se apropriaram do alfabeto fencio por volta de 800 a.C., com um

    objetivo que ia alm do seu uso comercial, j que o mesmo poderia ser usado de forma a

    18

    Disponvel em: http://www.designingwithtype.com/5/origins.php?whatImage=2.

  • 29

    preservar o conhecimento. Algumas modificaes foram realizadas, contudo, como a adio

    das cinco vogais ao alfabeto, e algumas mudanas nas palavras: Aleph virou alpha, e Beth

    virou beta, da a derivao da palavra alphabet19

    (CRAIG, 2006). Da mesma forma, os

    romanos se apropriaram das modificaes realizadas pelos gregos, e revisaram apenas

    algumas letras: C, D, G, L, P, R, S e V, e adicionaram as letras F e Q, somando assim 23

    letras ao total.

    Imagem 08: A evoluo dos pictogramas em letras do alfabeto.

    Fonte: DYKES, 2001.

    A trajetria da tipografia, assim como a histria da humanidade, apresenta

    modificaes, rupturas, resgates e contrastes ao longo do tempo. O conhecimento da escrita

    at ento ainda se tratava de um bem restrito s elites religiosas e aristocrticas mas, com a

    inveno da imprensa e dos tipos mveis, por Johannes Gutenberg, no sculo XV, o processo

    de difuso do conhecimento se tornou mais fcil, ao propiciar a difuso de livros cientficos e

    clssicos de literatura, entre outros (MARTINS, 2007, 33). Martins tambm cita o

    aparecimento da litografia20

    , (sculo XIX) como fator primordial para a libertao das letras

    dos formatos rgidos impostos pelos tipos de metal, e a Revoluo Industrial e a inveno da

    fotografia (ainda no sculo XIX) como fatores que expandiram o alcance dos impressos

    sociedade urbana que surgia.

    Na medida em que as tecnologias avanaram, e as necessidades humanas foram sendo

    redirecionadas, pode-se perceber mudanas na anatomia das letras, no ver e no ler em pelo

    menos cinco estilos tipogficos, que no deixam de ser uma forma de expresso do perodo

    histrico em que foram criados: Estilo antigo/ Old Style (1615), de Transio/ Transitional

    (1757), Modernas/ Modern (1788), Egpcias/ Egyptian ou Slab (1894) e Sem Serifa/ Sans

    Serif (1957)21

    . Esses estilos podem ser observados na imagem 09, na prxima pgina.

    19

    Alfabeto, em ingls. 20

    A litografia (do grego lithos pedra, e graphein escrever) uma tcnica de impresso inventada por

    Aloysius Senefelder, em 1796, que utiliza uma pedra calcria de gro muito fino e baseia-se na repulso entre a

    gua e as substncias gordurosas. O seu mrito est em proporcionar uma impresso econmica e menos

    demorada que os procedimentos grficos da poca (HEITLINGER, 2014). 21

    Ver CRAIG, 2014.

  • 30

    Imagem 09: Evoluo dos tipos.

    Fonte: Arquivo de Natlia Pereira, autora do trabalho

    22.

    Na poca em que o chamado Old Style (1615), ou entilo antigo, estava vigente, os

    papis ainda eram todos feitos mo, e as tecnologias de impresso ainda davam os seus

    primeiros passos. Apesar disso, estas tornaram possveis uma independncia maior nas formas

    das letras em relao escrita manual (CRAIG, 2006, p. 28). A fonte mais importante daquele

    momento foi a Garamond, desenvolvida por Jean Jannon, que funciona muito bem em textos

    longos.

    O estilo Transitional, assim conhecido por criar uma ponte entre dois estilos

    diferentes. Suas serifas23

    menos curvilneas, e as hastes das letras possuem uma distino nos

    tamanhos mais acentuada, em funo do surgimento de papis mais delicados na indstria

    grfica que tornou possvel a impresso de traos e detalhes mais finos. A fonte Baskerville

    criada por John Baskervile considerada uma das fontes mais agradveis de se ler.

    Comparado aos anteriores, o estilo Moderno, representado na fonte Bodoni do italiano

    Giambattista Bodoni , possua hastes de expessuras bastante contrastantes entre si, serifas

    retas e finas.

    Aps o surgimento da Bodoni, apareceram novos formatos na linguagem das famlias

    tipogrficas. O sculo XIX viu o nascimento de letras com as verses bold (negrito),

    condensadas e extendidas das fontes, alm de tipos decorativos: pode-se dizer que as letras

    saram da sua extenso limitada ao tamanho das paginas de livros para impactarem anncios e

    cartazes. O estilo egpcio, tambm desse perodo, caracterizado pelas serifas grossas e

    curvilneas, e um retorno ao pouco contraste entre as hastes.

    No mesmo perodo apareceram as fontes grotescas, ou sem-serifa. Apesar das

    mudanas visuais que ocorreram na escrita, foi somente no sculo XX que esse estilo se

    tornou expressadamente popular, a partir do trabalho dos designers suos Max Miedinger

    (1910 - 1980) e Eduard Hoffmann (1982 1980), que trouxeram o frescor s fontes retirando

    22

    Criado em 16 de setembro de 2014, com base nos livros Tipografia Vernacular Urbana: uma anlise dos

    letreiramentos populares (FINIZOLA, 2010) e Designing with Type: the essential guide to typography (CRAIG,

    2006). 23

    Serifas so os pequenos traos e prolongamentos que ocorrem no fim das hastes (traos principais) das letras.

  • 31

    estes prolongamentos, e tornando-as assim mais adequadas ao mundo contemporneo.

    Helvetica, sua obra-prima, uma das fontes mais populares do mundo24

    .

    Imagem 10: Detalhes da anatomia tipogrfica.

    Fonte: Arquivo de Natlia Pereira, autora do trabalho 25

    .

    No universo tipogrfico, as letras so decompostas em partes especficas, cada qual

    com uma nomenclatura diferente (como haste, orelha, bojo). A decomposio em partes

    permite, dentre outros fatores, identificar as famlias de tipos pelas suas particularidades, e

    escolher os tipos que mais se apropriam a um projeto grfico. As letras que apresentam

    maiores variaes de uma fonte para a outra so: R, T, W, a, e, g, h, o. Por exemplo, podemos

    perceber na imagem acima as especificidades do estilo egpcio na fonte digital Aleo, que

    possui serifas curvilneas, hastes grossas e de tamanhos similares epouco contraste entre si.

    Imagem 11: Tipos de serifa.

    Fonte: Arquivo de Natlia Pereira, autora do trabalho

    26.

    Acima, observam-se diversos tipos de serifa, e as diferenas visuais presentes entre

    eles. Cada serifa, ou outro detalhe citado da anatomia das letras, pode causar sensaes

    19

    Mais informaes sobre o assunto podem ser encontradas no documentrio chamado Helvtica, de 2007, que

    traa o caminho percorrido pela fonte Helvetica, desde a sua criao, uso e ganho de popularidade at a sua

    relao com os novos padres estticos presentes no contemporneo. 25

    Criado em 16 de setembro de 2014, com base nos livros Tipografia Vernacular Urbana: uma anlise dos

    letreiramentos populares (FINIZOLA, 2010) e Designing with Type: the essential guide to typography (CRAIG,

    2006). 26

    Criado em 16 de setembro de 2014, com base no blog da Printi. Disponvel em

    http://www.printi.com.br/blog/aprenda-mais-sobre-tipografia-serifas-infografico.

  • 32

    visuais especficas, e alterar o impacto de um layout e o significado da mensagem a ser

    transmitida. Alm disso, elas expressam as ansiedades de uma poca, as necessidades que

    surgiram, o modo de ver e enxergar o mundo, refletidos em tbuas de argila, pginas de papel,

    imagens digitais.

    Como se pde perceber, a trajetria da tipografia se mistura com a complexidade

    histrica humana e com as regras que tomam forma dentro do campo do design oficial e

    mesmo do design vernacular. Alm disso, o design pode ser entendido enquanto produto

    cultural, inspirado na cult

    (FINIZOLA, 2010, p. 29). Uma de suas funes comunicar: um lugar, um servio, uma

    experincia, por meio de um projeto visual que crie uma identificao entre estabelecimento,

    seu pblico e os cenrios em que atuam. No fim, trata-se de expressar visualmente uma ideia,

    sentimentos, a partir das ferramentas e dos signos disponveis.

    2.3. Retorno s origens: do design moderno ao design contemporneo

    A conceituao da palavra design uma tarefa rdua, talvez porque designers de

    pocas diferentes enxerguem o design de maneiras diferentes, cada qual de acordo com as

    suas necessidades e experincias pessoais. Alm disso, percebe-se a influncia dos

    movimentos artsticos e de pensamentos contrastantes vivendo no mesmo perodo histrico

    como a corrida armamentista e o louvor tecnologia e s formas abstratas e geometria

    simples, e o despertar do movimento hippie e a busca por um mundo menos estruturado,

    marcado por um estilo mais carregado de cores e formas sinuosas, ambos da dcada de 1960,

    por exemplo. Em outras palavras, a histria no ocorre da maneira linear e organizada como

    aparece nos livros escolares, mas vai sendo moldada a partir de tropeos e encontros entre

    mentes com filosofias distintas entre si.

    Os anos 60 do sculo passado foram marcados por diversos acontecimentos

    importantes. De um lado, o mundo vivia as consequncias da Segunda Guerra Mundial (1939

    1945), os pases se reconstruam e lidava com a violncia que o ser humano havia

    desencadeado em poucos anos, e o mundo estava enfim dividido em dois polos: um socialista,

    liderado pela ento Unio Sovitica, e outro capitalista, encabeado pelos Estados Unidos27

    .

    27

    De forma simplificada, apenas visando a contextualizao para o presente trabalho, o socialismo tem como

    base a socializao dos meios de produo, a diviso igualitria do capital, e o fim da diviso da sociedade em

  • 33

    Dessa forma, duas correntes filosficas contrastantes disputavam o espao ao redor do globo,

    constituindo assim a Guerra Fria (1945 1991).

    Exemplos de conflitos famosos ocorridos durante a Guerra Fria so a Guerra da

    Coreia (1950-1953) e a Guerra do Vietn (1962-1975), alm da construo do Muro de

    Berlim (1961 1989), que separou a Alemanha capitalista e socialista por 30 anos. Mas a

    Guerra Fria tambm proporcionou um alto desenvolvimento tecnolgico e conquistas

    espaciais. Foi nessa poca que o primeiro homem, Yuri Gagarin (1934 1968) foi enviado ao

    espao em 1991, por exemplo. Enquanto a sociedade se dividia entre esses dois eixos opostos,

    surgiam movimentos que buscavam novos horizontes, se afastando dos paradigmas que

    nortearam o incio do sculo XX: o movimento hippie, a luta pelos direitos das minorias em

    relao aos negros e s mulheres, por exemplo o entre outros28

    .

    Para a Associao dos Designers Grficos do Brasil ADG, o design grfico pode ser

    um processo tcnico e criativo que utiliza imagens e textos para

    comunicar mensagens, ideias e conceitos, com objetivos comerciais ou de fundo social

    (ADG BRASIL, 2014). Nesse pressuposto, o design no se preocupa apenas com a venda, ou

    com a esttica, mas a sua motivao gira em torno da funcionalidade de determinado objeto e

    do modo como ele ser interpretado/ manuseado pelas pessoas. De maneira um tanto confusa,

    alguns autores preferem descrever o design a partir do que ele no . Nas palavras de Marcos

    Paes de Barros, orientador dos Cursos de Design Grfico e Histria do Design da Academia

    Brasileira de Arte ABRA:

    Design no arte, no artesanato, no publicidade, no arquitetura e nem

    informtica. Apesar dessa multidisciplinaridade, o Design prevalece como uma

    cincia autnoma que se faz valer da tecnologia e de outros aspectos em comum

    como, por exemplo, as ferramentas grficas da informtica, a influncia e relaes

    com os perodos histricos artsticos ou das pesquisas e fundamentaes do

    marketing (BARROS, 2014).

    Procurando ser mais especfico, Wilton Azevedo, no livro O que Design (1994, p.

    de pensamento, o designer seria o responsvel por projetar alguma coisa, mas no por

    constru-lo manualmente. Azevedo interpreta o campo enquanto uma das muitas mudanas

    que surgiram durante a Revoluo Industrial (que teve incio na Inglaterra no sculo XVIII ao

    XIX), perodo que marca a passagem do trabalho essencialmente artesanal para as atividades

    industriais. Essa transformao no ocorreu de forma homognea pelo globo, mas

    proporcionou em longo prazo a criao de objetos em larga escala, o aperfeioamento

    28

    Ver Vale, 2014.

  • 34

    tcnico, o surgimento de um mercado consumidor e a diviso de tarefas, ou seja, pessoas

    diferentes responsveis pela fabricao de partes distintas de um mesmo objeto.

    Outros estudiosos procuram respostas na prpria morfologia da palavra design. Para o

    escritor e historiador da arte Rafael Cardoso,

    designare

    Como se pode perceber, a origem da palavra design comporta dois lados distintos: um

    abstrato, que lida com a concepo e planejamento, e outro concreto, que inclui a atividade de

    formar, configurar, fazer.

    O autor estuda a histria do design durante os sculos XVIII e XIX, acompanhando a

    forma na qual as mudanas econmicas e culturais de diversos pases, em especial o Brasil,

    alteraram o que se entende por fazer design. Ou seja, essa rea se relaciona com as demandas

    sociais, econmicas, polticas e culturais, nacionais e internacionais. Ao invs de estabelecer a

    histria do design atravs de correntes tericas e estticas fixas, Cardoso explica que a histria

    no foi escrita de forma sbita e homognea, mas que o design se estabeleceu diferentemente

    no contexto de cada localidade.

    Pode-se dizer que a tipografia moderna surgiu nos primeiros 30 anos do sculo XX29

    ,

    no momento em que designers do mundo todo passaram a rejeitar o estilo romntico e

    ornamentado do Art Nouveau (1883) a favor de uma tipografia mais direta e impactante, que

    privilegiasse a clareza e os avanos tecnolgicos. A comunicao se resumia at ento

    transmisso de informaes e de mensagens claras e repetitivas.

    Baseado na vida buclica e nos traos referentes natureza, o Art Nouveau foi um

    movimento que adquiriu grande notoriedade e repercusso internacional ao incentivar o

    retorno a uma vida pacata e tranquila, que perdia espao para a industrializao e urbanizao

    das cidades. Para Wilton Azevedo (1994, p. 24), sua esttica peculiar mantinha uma relao

    entre o arteso e o que viria a ser chamado de designer, pois quanto mais complexas eram as

    formas de um objeto, mais difcil seria a sua industrializao.

    Pelas brechas deixadas por aqueles que pregavam o uso das formas orgnicas da

    natureza, como explica Cardoso (2008), crescia o interesse por solues de design que

    contemplassem as formas geomtricas e abstratas e, com as transformaes tecnolgicas e

    polticas que ocorreram nos pases ocidentais, abriram-se caminhos para resultados estticos

    nunca antes vistos. Na dcada de vinte do novo sculo, novos estilos (futurismo, cubismo,

    29

    Ver Dones, 2005.

  • 35

    construtivismo, neoplasticismo) buscaram se alinhar com o ideal esttico que a mquina

    representava.

    Desde a dcada de 1920, diversos designers e arquitetos ligados ao Modernismo

    substitussem as formas vernculas (para eles ligadas a um passado arcaico de

    regionalismos e nacionalismos, de escolas e modas) por formas gerais e

    supostamente universais, de preferncia redutveis a mdulos simples e abstratos que

    pudessem ser eternamente recompostos de acordo com necessidades funcionais

    (CARDOSO, 2008, p. 154).

    Nesse perodo foi criada, na cidade Weimar, na Alemanha, a chamada escola Bauhaus

    (1919), que funcionou por quinze anos, mudou de localidade trs vezes e contou com trs

    diretores diferentes: Walter Gropius (1883 1969), Hannes Meyer (1889 1954) e Mies van

    der Rohe (1886 1969), cada um com um posicionamento especfico sobre o design

    estruturalista. O curto perodo em que a escola esteve ativa, contudo, foi suficiente para

    suscitar a imaginao de jovens do mundo todo, e impactar o design realizado

    internacionalmente. A escola contava com uma influncia grande do campo da arquitetura, e

    desenvolvia diversas atividades, como a incluso de grupos de teatro, de msica, e publicao

    de livros e revistas para a divulgao dos trabalhos realizados internamente.

    O chamado Estilo Internacional teve como principal ponto de partida a chamada

    exposio de Weissenhof (1927), na qual arquitetos/ designers famosos como Gropius e Mies

    van der Rohe, da Bauhaus, apresentaram projetos de moradias construdos a partir de formas

    ambiciosamente universais; apesar disso, o estilo s conseguiu se consolidar aps a Segunda

    Guerra Mundial (1939 1945). Cardoso argumenta que esse estilo, em consonncia com os

    discursos comunistas da poca, pretendia levar populao um design mais justo.

    Contraditoriamente, esse foi o estilo mais adotado para a comunicao das empresas da poca,

    que viram nos ideais de neutralidade, simplicidade, ordem e modernidade a sua prpria

    chance de refletir essas qualidades.

    A dcada de 1950 trouxe uma retomada dos princpios da Bauhaus e foi marcada pelo

    Estilo Internacional ou Escola Sua, que buscava a ordem e o rigor em busca da clareza na

    mensagem. Nessa poca, designers como Emil Ruder e Joseph Mller-Brockmann instituram

    a grade de construo (grid), a valorizao dos espaos em branco e, principalmente, a

    tipografia sans serif, encontrando o seu apogeu na fonte digital Helvtica.

    Para o designer Alexandre Wollner, pioneiro no ensino de design no Brasil, o design

    , mas com a funo, com materiais, com a ergonomia

    ligado ao ato de fazer, produzir algo concreto, a partir de regras matemticas e estruturais. A

  • 36

    concepo de Wollner reflete a sua experincia enquanto parte da conhecida Escola de Ulm, e

    por isso se expressa de forma bastante tecnicista.

    A Escola de Ulm (1953), localizada na cidade alem de Ulm, inicialmente sofreu uma

    influncia grande da filosofia presente na Bauhaus, e na sua primeira fase buscou estabelecer

    uma continuidade do que era ensinado na primeira; mas logo novos rumos de ensino

    comearam a aflorar por conta do surgimento de um pensamento original e vontade dos mais

    jovens de encontrar o seu prprio caminho i

    toda soluo criativa deveria passar pelo redimensionamento do uso, da prtica, das funes e

    2008, p.170), ou seja, os ulmianos passaram a criticar a concepo

    da arte enquanto um domnio esttico separado e do artista como criador privilegiado, alm do

    uso constante das formas quadrada e triangular, elementos dominantes na Bauhaus.

    O design produzido na Escola de Ulm pode ser traduzido como o reflexo das

    transformaes que estavam acontecendo no mundo, como o fim da Segunda Guerra mundial

    (1939 1945), e a Guerra Fria (1945 1989). Fatores como a corrida armamentista e

    espacial, anseios pela busca de novas tecnologias, influenciaram na face tecnicista que tomou

    conta da esttica ulmiana, que agora confiava no racionalismo como determinante para as

    solues de design.

    Abstrao formal, uma nfase em pesquisa ergonmica, mtodos analticos

    quantitativos, modelos matemticos de projeto e uma abertura por princpio para o

    avano cientfico e tecnolgico marcam o design ulmiano produzido na dcada de

    1960, o que condizia perfeitamente com o entusiasmo tecnicista que se generalizava

    na sociedade como um todo durante esses anos de corrida espacial e miniaturizao

    eletrnica (CARDOSO, 2008, p. 170).

    Mesmo aps o seu fechamento, seus descendentes, ex-alunos e docentes, perpetuaram

    o ensino baseado na filosofia ulmiana em outros pases. No Brasil, a tradio dessa escola

    pde ser perpetuada a partir da criao da Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI), em

    1963 primeira iniciativa de sucesso referente ao ensino de design no pas e a sua

    implantao contou com a ajuda de ex-alunos e professores da Escola de Ulm30

    .

    Outro passo consolidao do ensino formal da rea no Brasil se refere sequncia de

    Desenho Industrial, parte do curso de Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

    da USP (Universidade de So Paulo) em 196231

    . Por conta da influencia estrangeira, a ESDI

    tambm tinha como foco a tecnologia voltada para a indstria, mesmo que o parque industrial

    nacional ainda estivesse sendo consolidado.

    30

    Cardoso cita os nomes de Wollner, Edgar Decurtins e Karl Heinz Bergmiller. 31

    Em Belm do Par, o curso de Design da Universidade Estadual do Par UEPA s foi criado vrias dcadas

    depois, em 1999.

  • 37

    Como explica Dones (2005), o panorama mundial tambm foi alterado por volta da

    dcada de 1960 quando surgiu o movimento hippie, a cultura jovem e o meio underground.

    Esses movimentos comearam a questionar a pureza do layout modernista e a se expressar por

    um contedo grfico mais pesado e desorganizado, em um momento no qual se descobriu o

    poder comunicacional e emocional das letras.

    A interdicisplinaridade faz parte do campo do design e por isso mesmo as publicaes

    relacionadas filosofia, sociologia e semitica produzidas a partir da dcada de 1970 por

    autores como Roland Barthes (1915 1980), Michel Foucault (1926 1984) e Jean

    Baudrillard (1929 2007) tiveram impacto profundo nos estudos sobre o design grfico.

    Nos ltimos vinte anos, a Cranbrook Academy of Art (fundada em 1920 no estado de

    Michigan, Estados Unidos) vm assumindo uma posio de liderana no ensino do design

    grfico mundial. A designer Ellen Lupton (1991) descreve que, por volta da dcada de 1980, a

    escola passou a adquirir ideais ps-estruturalistas32

    , que permitiu aos designers trabalharem a

    imagem como algo que pudesse ser to passvel de leitura e interpretao quanto da mera

    visualizao. Buscaram-se ento os mltiplos significados das imagens, e no apenas a sua

    dimenso esttica.

    Essa nova forma de ver o mundo veio de encontro ao clssico design modernista que

    submetia uma nica mensagem a uma srie de arranjos formais quando passou a utilizar

    rtulos de comidas, e propagandas encontradas em listas telefnicas nas suas expresses

    grficas, trazendo para o campo visual do design o elemento do cotidiano, impuro, deixando a

    Helvtica de lado por fontes incomuns. Sobre a escola, Dones afirma:

    A teoria da desconstruo contribuiu para desafiar o pensamento rgido, os

    esquemas visuais, a obsesso pela regularidade e a preciso do design moderno,

    demonstrando a importncia da ambiguidade aos olhos de destinatrios capazes de

    negociar suas complexidades (DONES, 2005, p. 06).

    O pblico consumidor da mensagem comea a ser interpretado enquanto mltiplo e

    complexo. A tipografia do sculo XXI tambm foi influenciada pela chegada de tecnologias

    que permitiram, alm da manipulao, a criao de fontes. Computadores pessoais e

    programas/softwares revelaram designers especializados em criar fontes. Dones cita a revista

    Emigre (Califrnia, 1984) como um produto comunicacional importante voltado para a

    divulgao desses produtos. Por divulgar o trabalho de diversos designers, a revista se tornou

    uma espcie de elo fundamental entre os designers da dcada de 1980.

    32

    No mesmo artigo, Lupton explica que o Estruturalismo surgiu com o linguista Ferdinand de Saussure, que

    dizia que um sinal verbal no possui um significado nele mesmo, mas adquire um significado apenas na relao

    com o sistema ou estrutura de uma lngua.

  • 38

    Para Dones, a tipografia faz parte de um contexto cultural, e deve ser interpretada

    como tal. As regras institudas pela Escola Sua ainda no incio do sculo XXI identificam o

    pblico como preciso, homogneo, mas as descobertas acadmicas dos anos 1970 mostraram

    exatamente o contrrio: o pblico para o qual os projetos grficos falam so pblicos

    heterogneos, portadores de culturas, repertrio visual, experincias de vida e que apresentam

    necessidades diferentes.

    De certa forma, mesmo com todas as influncias internacionais, o Brasil da dcada de

    50 ainda possua uma identidade nacional que se dividia entre a tradio artesanal e o

    progresso industrial que transparecia nas produes grficas atravs de impressos, capas de

    discos e na arquitetura. No ramo de mveis, o marceneiro e designer brasileiro Joaquim

    Tenreiro (nascido em Portugal em 1906 1992), deu continuidade e expresso tradio

    moveleira brasileira, que datava da poca colonial, e se destacava pelo uso da madeira de lei,

    mas tambm refletiu o Estilo Internacional nas pesquisas e tcnicas empregadas33

    .

    As mudanas estticas e polticas do moderno para o contemporneo retomaram e

    tornaram possvel o fortalecimento de um vnculo entre o ps-modernismo e a cultura

    popular, ou seja, o despertar pelo fazer local e regional enquanto fontes de inspirao e de

    construes simblicas, enquanto que as tendncias globais, muitas vezes homogneas e mais

    rigorosas, perdem parte de sua fora no campo grfico na medida em que so descobertas as

    complexidades e a personalidade presentes nas tendncias locais.

    Descobertas que levaram ao interesse de jovens designers pelas caractersticas

    vernaculares. Entre as iniciativas que tratam do tema no cenrio nacional, esto o projeto

    Abridores de Letras de Pernambuco34

    e o coletivo nascido em Recife Crimes Tipogrficos

    (2000) 35

    , que visam resgatar a tradio tipogrfica nordestina enquanto o primeiro se baseia

    em registros fotogrficos e entrevistas com atores sociais, o segundo se apropria do

    conhecimento popular para criao de fontes digitais.

    H tambm o coletivo chamado Tipos Populares do Brasil36

    , fundado em 2004 e que

    age em parceria com os projetos citados anteriormente (FINIZOLA, 2010. p. 17). No meio

    acadmico, avanos importantes foram produzidos na rea, incluindo anlises realizadas por

    pesquisadores no Norte do pas, alguns presentes na bibliografia utilizada para a composio

    deste TCC.

    33

    Ver Cardoso (2005, p. 162-164). 34

    Disponvel em: http://www.designvernacular.com.br/abridoresdeletras/projeto/. 35

    Disponvel em: http://www.crimestipograficos.com/?go=about. 36

    Disponvel em: http://tipospopulares.flavors.me/#nossos-projetos.

  • 39

    Imagem 12: esquerda, capa do livro Abridores de Letras de Pernambuco. direita, fonte digital criada pelo

    projeto Tipos Populares do Brasil e a logomarca do projeto Crimes Tipogrficos.

    Fonte: Websites dos respectivos projetos, citado anteriormente37

    .

    Uma das pesquisas realizadas na Amaznia sobre o assunto realizada por Fernanda

    Martins em seu projeto Letras que Flutuam, derivado de sua monografia Letras que Flutuam:

    O abridor de letra e a tipografia vitoriana (2008), da Universidade federal do Par. Seu

    estudo tem nfase na tipografia pintada nas embarcaes ribeirinhas da Amaznia, sendo que

    Martins realizou o levantamento principalmente nas trs capitais do eixo central do rio

    Amazonas: Belm, no Estado do Par; e Macap, no Estado no Amap; e Manaus, no Estado

    do Amazonas.

    Procurou-se traar neste captulo, em linhas gerais, um panorama sobre o design

    vernacular, buscando entender no apenas as suas caractersticas, mas tambm as diferenas

    que apresenta em relao ao design oficial, e a passagem do pensamento e consequente design

    moderno para os dias atuais. O que interessa para este trabalho o modo como o design

    oficial foi se elaborando/ reelaborando ao longo do ltimo sculo, e as influncias deixadas

    por ele e que puderam ser observadas no design vernacular popular produzido em Belm do

    Par.

    37

    Ver PERNAMBUCO, 2014; BRASIL, 2014; e TIPOGRFICOS, 2014.

  • 40

    3. UM DILOGO DO CONTEMPORNEO

    3.1. Sobre os aspectos culturais

    Observa-se que o processo do design vernacular com as suas misturas e influncias

    apresenta uma ligao intrnseca com a cultura no qual ele originado e as particularidades ali

    encontradas. Dessa forma, os modos de viver partilhados pelas pessoas acabam sendo

    traduzidos em suas linhas, figuras e significados.

    nesta perspectiva que o design vernacular se alimenta da cultura de Belm do Par.

    Cidade quente, colorida, erguida em meio a contrastes. Vive-se na beira do rio, e chove sem

    aviso, toda tarde, mas a populao j est acostumada a isso. Do mesmo ngulo de viso

    pode-se enxergar um canal poludo, casas da periferia, e prdios luxuosos destacados no

    horizonte. Parte da cidade tem bastante verde, e mangueiras que formam verdadeiros tneis

    arbreos sobre nossas cabeas, mas ao dobrar nas esquinas existem cimento e trnsito catico.

    Ao caminhar pelas ruas e avenidas escuta-se de tudo: rock, brega, tecnobrega, funk, pagode,

    carimb, msica popular brasileira, msica internacional. Letras desenhadas com afinco

    disputam os espaos dos muros e fachadas com impressos e criaes feitas no computador.

    O pesquisador Fbio Castro (2010, p.47) oferece caminhos para se entender a

    complexidade da cultura de Belm do Par, sobretudo as transformaes que ocorreram nas

    Belm, primeira etapa da colonizao portuguesa na Amaznia e, portanto, seu

    espao mais tradicional, rene a maior populao urbana da regio e seu sistema

    mais expressivo de produo intelectual, cientfica, artstica e jornalstica, devendo

    ser apontado, ainda, seu papel como centro religioso. Com efeito, essa cidade

    cumpriu, historicamente, o papel de centro intelectual da Amaznia portuguesa. [...]

    Apesar dessa importncia, esse papel de centro intelectual vem sendo transformado

    ao longo das trs ltimas dcadas, perodo no qual se intensificaram os

    empreendimentos transformadores do espao amaznico, gerados e geridos pelo

    Brasil. (CASTRO, 2010, p.47).

    Assim, Castro se refere, dentre outras coisas, as transformaes provocadas no

    territrio amaznico a partir da Ditatura Militar (1964 1985) e seus grandes projetos

    instaurados na regio. Como consequncia dessa integrao da Amaznia ao Brasil e o uso

    econmico do seu espao, pode-se citar o aumento da migrao de pessoas de outros estados

    para a regio, alm do surgimento de diversos conflitos entre eles o agrrio e ambiental.

    Certamente que as aes governamentais tambm tiveram impacto nas populaes

    tradicionais locais e alteraram o modo de viver amaznico. O contato mais prximo com

  • 41

    novas culturas que se instalaram no estado do Par, bem como com os costumes do restante

    do pas, tambm configuram como fator determinante para essa mudana cultural local.

    Mas para que se possa entender a complexidade do que a cultura, j que no presente

    trabalho fala-se sobre culturas cultura amaznica, cultura popular, cultura urbana, recorrem-

    se a algumas reflexes tericas para embasar as futuras interpretaes do objeto estudado.

    No Dicionrio Aurlio, cultura pode ser: a) Ato, arte, modo de cultivar; b) Lavoura; c)

    Conjunto das operaes necessrias para que a terra produza; d) Vegetal cultivado; e) Meio de

    conservar, aumentar e utilizar certos produtos naturais; f) Aplicao do esprito a

    (determinado estudo ou trabalho intelectual); g) Instruo, saber, estudo; h) Apuro; perfeio;

    cuidado38

    .

    Nota-se, na descrio acima, um apego forte a caractersticas agrrias, enquanto que o

    aspecto simblico da cultura est em segundo plano, se referindo somente dimenso

    intelectual da cultura, relacionada educao. Por conta disso, optou-se por buscar na

    antropologia e na sociologia outros conceitos que expressem melhor o que se acredita neste

    trabalho.

    Em seu livro Cultura: um conceito antropolgico (2003), o pesquisador Laraia

    explora diversas questes relacionadas ao tema, incluindo o modo como esse conceito foi

    tratado ao longo do tempo. Trata-se de um apanhado entre as teorias j superadas e as teorias

    modernas, e discusses de assuntos que, mesmo j sem fora no campo acadmico, ainda

    permanecem na fala popular.

    Conforme ele explica, entre o sculo XVIII e o sculo XIX, o termo germnico kultur

    esa

    civilization referia-se principalmente s realizaes ma ).

    Atribui-se ao antroplogo Edward Tylor (1832 1917) a tarefa de sintetizar os vocbulos na

    palavra culture, que reunia em sete letras todas as habilidades ou realizaes humanas.

    Dentre as teorias j superadas sobre a cultura, duas ainda permanecem vivas na

    linguagem popular: o determinismo biolgico, que atribui capacidades inatas s raas e etnias,

    e do determinismo geogrfico, que considera ser possvel que o ambiente fsico condicione a

    diversidade cultural.

    O determinismo biolgico teve um impacto grande na sociedade moderna, instigando

    e respaldando aes etnocntricas. Talvez o exemplo de maiores propores tenha sido a

    Segunda Guerra Mundial (1939 1945), que colocou em discusso a superioridade da raa

    38

    Disponvel em: http://www.dicionariodoaurelio.com/cultura.

  • 42

    ariana alem39

    . Laraia (2003, p. 18) explica que, aps esse evento, em 1950, antroplogos,

    fsicos culturais, geneticistas e pessoas de diversas reas acadmicas, sob a proteo da

    Unesco, se reuniram para redigir uma declarao que questionava a falta de provas dessa

    corrente terica, e destitua assim sua validade.

    Em relao ao segundo tpico, a partir de 1920, antroplogos como Franz Boas (1858

    1949) e Alfred Kroeber (1876-1960) demostraram no apenas que existe uma limitao,

    mas que tambm possvel e comum existir uma grande diversidade cultural em um mesmo

    espao ou em lugares com condies geogrficas semelhantes. Ou seja, varia de cultura para

    cultura a forma na qual o meio ambiente ser explorado, e no o contrrio, levando em

    considerao os aspectos simblicos e as necessidades de determinada sociedade.

    Laraia atribui ao alemo Franz Boas a contestao da abordagem evolucionista da

    cultura e o consequente desenvolvimento do particularismo histrico, segundo o qual cada

    cultura segue o seu prprio caminho de acordo com os eventos histricos que surgiram. Ou

    seja, no existe uma nica cultura em etapas evolucionais diferentes, na qual os povos

    primitivos estariam localizados na base, at evoluir e se aproximar dos povos europeus, mais

    ao topo. Pelo contrrio, o que ocorre na realidade uma abordagem multilinear (2003, p. 36).

    J o antroplogo americano Alfred Kroeber mostrou que, a partir da cultura, o ser

    humano pde se distanciar do mundo animal e de suas limitaes orgnicas. Isso significa

    que, mesmo frgil em comparao a outros animais em quesitos como fora, rapidez, e outros,

    o homem conseguiu sobreviver ao ser capaz de reproduzir e acumular conhecimento. No

    foram necessrias mudanas biolgicas e sim o desenvolvimento de um sistema de

    comunicao e escrita, em que geraes inteiras podem ser beneficiadas pelos muitas

    descobertas j realizadas no passado. Alm disso, Kroeber destaca que a satisfao das

    necessidades bsicas dos homens varia de sociedade para sociedade, tornando o homem

    predominantemente cultual (LARAIA, 2003, p. 24).

    As diferenas existentes entre os homens, portanto, no podem ser explicadas em

    termos das limitaes que lhes so impostas pelo seu aparato biolgico ou pelo seu

    meio ambiente. A grande qualidade da espcie humana foi a de romper com suas