Traços Urbanos Da Amazônia: o que o design vernacular tem a dizer sobre a cultura local?
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SERVIO PBLICO FEDERAL
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAR
INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAO
FACULDADE DE COMUNICAO SOCIAL PUBLICIDADE E PROPAGANDA
NATLIA CRISTINA RODRIGUES PEREIRA
TRAOS URBANOS DA AMAZNIA
O que o design vernacular tem a dizer sobre a cultura local?
BELM-PA
2014
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NATLIA CRISTINA RODRIGUES PEREIRA
TRAOS URBANOS DA AMAZNIA
O que o design vernacular tem a dizer sobre a cultura local?
Trabalho de concluso de curso apresentado
Banca Examinadora como exigncia parcial
para obteno de ttulo em bacharel em
Comunicao Social Publicidade e
Propaganda, sob a orientao da Profa. Dra.
Clia Regina Trindade Chagas Amorim.
BELM-PA
2014
-
NATLIA CRISTINA RODRIGUES PEREIRA
TRAOS URBANOS DA AMAZNIA
O que o design vernacular tem a dizer sobre a cultura local?
Trabalho de concluso de curso apresentado
Banca Examinadora como exigncia parcial
para obteno de ttulo em bacharel em
Comunicao Social Publicidade e
Propaganda, sob a orientao da Profa. Dra.
Clia Regina Trindade Chagas Amorim.
Conceito: EXCELENTE.
Aprovado em 18 de dezembro de 2014.
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________________
Orientadora: Prof. Dr. Clia Regina Trindade Chagas Amorim FACOM / UFPA
___________________________________________________________________
Prof. Dr. Fbio Fonseca de Castro FACOM / UFPA
___________________________________________________________________
Prof. Dr. Alda Cristina Costa FACOM / UFPA
-
Este trabalho dedicado a todos aqueles que se sentem atrados pela beleza, contrastes,
nuances e significados presentes em uma comunicao enraizada na cultura popular.
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AGRADECIMENTOS
Agradeo primeiramente minha me Delma e minha irm Dbora, minhas
companheiras inseparveis, por amarem incondicionalmente todas as partes existentes em
mim. Tambm agradeo ao meu pai Carlos Robson, que se disps a me acompanhar em quase
todas as entrevistas e registros fotogrficos, sempre com uma disposio de ao. Posso
afirmar que a sua presena tornou esse processo mais divertido e seguro. Aos trs, obrigada
pelo incentivo, por serem maravilhosos e por dividirem esse momento comigo.
Agradeo de corao professora Clia Trindade Amorim, que esteve presente desde
o incio da minha carreira acadmica tanto como professora em sala de aula quanto
orientadora exigente no projeto de pesquisa Mdias Alternativas da Amaznia e neste TCC.
Muito da minha confiana e segurana veio das suas palavras. Muito obrigada por toda a
pacincia, dedicao e carinho durante todos esses anos, espero sinceramente que possamos
levar essa parceria adiante, por muito mais tempo.
Gostaria de agradecer tambm Faculdade de Comunicao e Universidade Federal
do Par. Todas as discusses em sala de aula, os livros e os trabalhos exaustivos foram etapas
necessrias para que eu pudesse ter sucesso em finalizar a presente pesquisa. Agradeo aos
professores pela dedicao e aos amigos que fiz por terem compartilhado tantas lembranas
positivas. Com toda certeza, as experincias que a UFPA me proporcionou moldaram tanto a
minha carreira acadmica quanto os meus valores pessoais, e sou infinitamente grata por isso.
Agradeo ao seu Walter, seu Hlio, seu Siqueira, Tnia Contente, Ana Ruth, seu
Carmino e Maura Batista, que aceitaram contribuir para este trabalho por meio da entrevista.
Todos dispuseram de boa vontade suficiente para me conceder parte do seu tempo, e graas a
eles pudemos embasar de forma mais consistente a anlise do trabalho. Alm disso, fico feliz
pela oportunidade de conhecer as pessoas por trs das letras pelas quais me encantei. A arte da
capa deste trabalho foi baseada nas letras desenhadas pelos pintores aqui entrevistados.
Foi um percurso difcil. Por isso mesmo agradeo a todos os meus colegas de trabalho
no Libra Design. Joo, Berna, Adonai, muito obrigada por todo o apoio e compreenso. Dani,
muito obrigada por acalmar minhas incertezas e por me fazer sentir melhor todos os dias.
A todos aqueles que acreditaram nesta pesquisa e que caminharam nesta jornada lado
a lado comigo, saibam que vocs fizeram toda a diferena. Muito obrigada.
-
Belm, primeira etapa da colonizao portuguesa na Amaznia e,
portanto, seu espao mais tradicional, rene a maior populao
urbana da regio e seu sistema mais expressivo de produo
intelectual, cientfica, artstica e jornalstica, devendo ser apontado,
ainda, seu papel como centro religioso. Com efeito, essa cidade
cumpriu, historicamente, o papel de centro intelectual da Amaznia
portuguesa.
(Fbio Castro, Pesquisa em Comunicao na Amaznia.).
Typography is the voice of the written world. (Ben Casey, Type Matters!)
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RESUMO
Esta pesquisa faz uma reflexo sobre o design vernacular na cultura urbana amaznica,
especificamente em Belm do Par. O foco da investigao partiu da seguinte questo-
problema: como o design vernacular, na tradio popular tipogrfica, persiste na cultura
urbana belenense? O objeto de pesquisa o lettering popular, com foco nos desenhos de letras
pintados manualmente nas fachadas de pequenos comrcios espalhados pela cidade de Belm,
por se tratar de uma prtica cultural e comunicativa fundamentada na tradio popular
vernacular. Nesse sentido, a hiptese defendida neste TCC a de que o design vernacular, a
partir do trabalho dos letristas populares, est ativo nas periferias de Belm do Par, sendo um
elemento estratgico na comunicao e na cultura urbana local. A base terica centrou-se no
campo do design por meio dos autores Rafael Cardoso (2008), Ftima Finizola (2010) e Vera
Lcia Dones (2005); e no campo da cultura, identidade, cidadania e consumo Nstor Garca-
Canclini (2008), Clifford Geertz (2008), Stuart Hall (2006), Gordon Mathews (2002), dentre
outros. A metodologia teve como foco a anlise qualitativo-descritiva. Para tanto foi realizada
coleta de material que ocorreu durante dois meses de setembro a novembro de 2014 e
envolveu o registro fotogrfico das letras com contedos vernaculares, trs entrevistas com os
pintores de letras (Art Walter, Hlio Pintor e Siqueira), alm de mais quatro entrevistas com
consumidores deste tipo de design. Este estudo importante por investigar o design
vernacular enquanto parte da cultura e da identidade amaznica, resgatando os seus traos
distintivos e a maneira como essa forma de comunicao popular ocorre na regio
Amaznica.
Palavras-chave: Comunicao; Design vernacular; Cultura popular; Identidade; Amaznia.
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ABSTRACT
This research makes an observation about the vernacular design in the urban culture of the
Brazilian Amazon region, specifically in Belm of Par. The main focus of the investigation
came from the following question: how does the vernacular design, at the typographic popular
tradition, keeps occurring in Belm? The analyzed object in this research is the folk lettering,
with emphasis on the hand drawing letters painted on the facade of small companies and walls
widespread across the city, which is a cultural and communicational behavior based on the
vernacular popular tradition. Accordingly, the hypothesis presented here pointed that the
vernacular design, starting with the work of the letter painters, is active in the suburb of
Belm and consists in a strategic element of the local communication and urban culture. The
authors, whose studies were used for the theoretical basis of the design field, were Rafael
Cardoso (2008), Ftima Finizola (2010) and Vera Lcia Dones (2005); about the culture,
identity, citizenship and consumption fields, this research used the concepts of Nstor Garca-
Canclini (2008), Clifford Geertz (2008), Stuart Hall (2006) and Gordon Mathews (2002). The
methodology was based on the qualitative descriptive analysis. The collection of the material
for the analysis took place during two months from September to November of 2014 and
involved the photographic log of the vernacular letters, three interviews with the letter
painters (Art Walter, Hlio Pintor e Siqueira), besides four more interviews with the
consumers of the popular design. This is an important study because investigates the
vernacular design as part of the culture and identity of the Amazon, by rescuing its distinctive
features and the way that this popular communication happens in the region.
Keywords: Communication; Vernacular design; Popular culture; identity; Amazon.
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LISTA DE ILUSTRAES
Imagem 01 Exemplos de design vernacular em Belm do Par
17
Imagem 02 Fotografias de embalagens vernaculares tradicionais
20
Imagem 03 Fontes digitais criadas por Ftima Finizola
22
Imagem 04 Exemplo de lettering por Jason Carne
24
Imagem 05 Pictogramas sumrios escritos em argila
26
Imagem 06 Exemplos de ideogramas contemporneos
27
Imagem 07 Alfabeto fencio
28
Imagem 08 A evoluo dos pictogramas em letras do alfabeto
29
Imagem 09 Evoluo dos tipos
30
Imagem 10 Detalhes da anatomia tipogrfica
31
Imagem 11 Tipos de serifa
31
Imagem 12 Capa do livro Abridores de Letras de Pernambuco; fonte digital
criada pelo projeto Tipos Populares do Brasil; e a logomarca do projeto Crimes
Tipogrficos
.
39
Imagem 13 No seu ateli, Hlio Pintor explica como funciona o uso da serigrafia.
62
Imagem 14 Letras pintadas em diversos suportes, por Art Walter. 66
Imagem 15 Fachadas pintadas por Art Walter.
70
-
Imagem 16 Letra tipo egpcio pintada na fachada do Salo Visual, por Art Walter.
71
Imagem 17 Letra em negrito pintada por Art Walter.
72
Imagem 18 Letra sombreada pintada por Art Walter.
73
Imagem 19 Letra sem-serifa pintada por Art Walter.
74
Imagem 20 De cima para baixo, exemplos de diferentes formatos para as letras A,
R, O e E.
76
Imagem 21 Fachada de marcenaria assinada por Art Walter.
77
Imagem 22 Fachada de salo de beleza assinada por Art Walter.
78
Imagem 23 Gui Gui Lanches, no bairro da Pedreira.
80
Imagem 24 Muro pintado por Hlio.
83
Imagem 25 Comunicao visual do Avisto na Ponte do Galo, na Sacramenta.
83
Imagem 26 Comunicao da Moda Show em muro no Guam.
85
Imagem 27 Moda Show, no bairro do Comrcio.
86
Imagem 28 Fachada do Barato das Calcinhas assinada por Hlio Pintor.
88
Imagem 29 Fachada do Barato das Calcinhas assinada por Hlio Pintor.
89
Imagem 30 Identidade visual do Barato das Calcinhas.
89
Imagem 31 Marca do Avisto no site e em muro no bairro do Guam. 91
-
Imagem 32 Comunicao do Avisto em muro no bairro do Guam.
91
Imagem 33 Restaurante Paladar de Deus, no bairro do Telgrafo.
94
Imagem 34 Bar e Pousada Casal Feliz, no bairro da Sacramenta.
95
Imagem 35 Fachada do Barato das Calcinhas divide espao com a publicidade
em outdoor.
96
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LISTA DE ANEXOS
ANEXO A Roteiro de perguntas para a entrevista com os pintores de letras
104
ANEXO B Entrevista com o pintor de letras
105
ANEXO C Entrevista com o pintor de letras
109
ANEXO D Entrevista com o pintor de letras
112
ANEXO E Roteiro de perguntas para a entrevista com os consumidores
115
ANEXO F Entrevista com o consumidor do design vernacular
116
ANEXO G Entrevista com o consumidor do design vernacular
118
ANEXO H Entrevista com o consumidor do design vernacular
119
ANEXO I Entrevista com o consumidor do design vernacular
120
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SUMRIO
1. INTRODUO 13
2. OS MLTIPLOS ASPECTOS DO DESIGN VERNACULAR 16
2.1. O MULTIFACETADO DESIGN DO COTIDIANO 16
2.2. PASSEIO PELAS SINUOSIDADES TIPOGRFICAS 24
2.3. RETORNO S ORIGENS: DO DESIGN MODERNO AO DESIGN
CONTEMPORNEO 32
3. UM DILOGO DO CONTEMPORNEO 40
3.1. SOBRE OS ASPECTOS CULTURAIS 40
3.2. AS IDENTIDADES PS-MODERNAS 46
3.3. CONSUMO E CIDADANIA 53
4. A METODOLOGIA DA PESQUISA 60
4.1. FASES DA INVESTIGAO 60
5. AS LETRAS PINTADAS NAS FACHADAS E AS CENAS URBANAS
DE BELM
65
5.1. ART WALTER 67
5.1.1. Maisculas/ minsculas 69
5.1.2. Serifas 70
5.1.3. Uso de Sombras 72
5.1.4. Letras em Negrito/ Bold 74
5.1.5. Anatomia das letras 75
5.2. HLIO PINTOR 81
5.2.1. Moda Show 85
5.5.2. Barato das Calcinhas 87
5.2.3. Avisto 90
5.3. SIQUEIRA 92
5.3.1. Restaurante Paladar de Deus 93
5.3.2. Bar e Pousada Casal Feliz 94
6. CONSIDERAES FINAIS 97
7. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 100
8. ANEXOS 104
9. TERMO DE RESPONSABILIDADE 121
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13
1. INTRODUO
O design se apresenta no dia-a-dia sob muitas formas, por vezes to ligado ao
cotidiano do ser humano que se passa despercebido: como no formato dos mveis de
escritrio, canetas esferogrficas, utenslios domsticos e roupas em geral, alm da sua
atuao na construo do relacionamento entre empresas, funcionrios e consumidores, na
valorizao dos processos e identidades culturais regionais e globais, no desenvolvimento de
tecnologias sustentveis e reutilizao de materiais na indstria.
Dentre os muitos campos que compem o design como o design grfico, de
interiores, de embalagens, por exemplo , o chamado design vernacular se destaca pela
vernacular empregada para definir aqueles artefatos autnticos da cultura de determinado
com essa caracterstica atua de maneira informal, respeitando as tradies culturais
transmitidas de gerao para gerao.
Na capital paraense, comum encontrarmos traos vernaculares, que chamam a
ateno e instigam o olhar, destacados nas faixas coloridas e informativas das aparelhagens de
tecnobrega, nas placas colocadas nas caladas, na pintura dos barcos, nas escritas manuscritas
das lojas, mercados e comrcios locais o design destes ltimos, objeto de estudo do seguinte
trabalho1. Nesta perspectiva, busca-se investigar o design vernacular como elemento
estratgico da cultura urbana presente em Belm do Par, com o interesse na apropriao que
as pessoas fazem dessa comunicao grfica e como ela influencia na regio estudada,
levando em considerao os aspectos culturais e de identidade locais.
Vale ressaltar que por ser uma regio de fronteira2, perifrica, a Amaznia apresenta
diversas caractersticas que a diferenciam de outros espaos urbanos e rurais mundo afora,
que somam desde os conflitos territoriais capitalistas que acontecem dentro de suas matas
fechadas ou em reas urbanizadas at a exploso de cores e movimentos que tomam corpo em
1 As primeiras reflexes tiveram origem quando a autora deste TCC participou como bolsista de iniciao
cientfica do Projeto Mdias Alternativas na Amaznia (CNPq-UFPa), coordenado pela professora Dra Clia
Trindade Amorim, da Faculdade de Comunicao UFPa. As investigaes iniciais resultaram no artigo
, com orientao da professora Clia Trindade
Amorim. O artigo foi apresentado na Diviso Temtica Comunicao, Espao e Cidadania, da Intercom Jnior
X Jornada de Iniciao Cientfica em Comunicao, evento componente do XXXVII Congresso Brasileiro de
Cincias da Comunicao. E foi publicado nos Anais do Intercom 2014. 2 De acordo com a gegrafa Becker (2005), regio de fronteira se configura como um espao tratado sob as
rdeas da economia de fronteira; ou seja, visto como fonte de terras e recursos naturais e econmicos lineares e
infinitos.
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14
suas cidades. Apesar disso, quando profissionais das mais diversas reas debruam o olhar
sobre a Amaznia, precisam realizar um esforo enorme para enxerg-la de fato, de tantas que
so as suas nuances e de to forte que o imaginrio que foi criado sobre a regio.
Dentro desse imaginrio coletivo, podemos notar o destaque dado s imagens do
ndio, do ribeirinho, da floresta e seus mistrios, e a omisso dos espaos urbanos, das
diferentes culturas apresentadas pela populao, da migrao de pessoas de outras regies do
Brasil para o Norte, entre outros (DUTRA, 2009). O professor e jornalista Manoel Dutra se
debrua sobre o modo como a Amaznia retratada na televiso brasileira, conforme trecho
abaixo:
Em pouqussimas palavras, o locutor resume aquilo que, para o dispositivo emissor,
representa a Amaznia: um conceito aberto e portador de unidades discursivas
redutoras, construdas por fragmentos histricos recuperados do imaginrio que
reproduz as noes de reserva, de selvagem, de mistrios, de biodiversidade e de um
ente que patrimnio gentico da Terra (DUTRA, 2009, p. 91).
O argumento expe a maneira pela qual a imagem da Amaznia vendida, reforando
esse imaginrio sobre a regio. A presente pesquisa busca contribuir para a disseminao da
percepo de que a realidade regional exposta acima na verdade um fragmento das mltiplas
realidades e culturas presentes no espao amaznico. Existem densas e misteriosas florestas,
reservas indgenas, latifndios, reas destinadas agropecuria e extrao de minerais, e estas
coexistem com o cotidiano da populao urbana, que conhece os mitos e lendas da terra,
trabalha, vota e ainda consome produtos industrializados e tecnolgicos. O estudo, focado na
diversidade tipogrfica visual presente nas periferias urbanas, tem a ver com a forma como
essas pessoas vivem, interagem e se comunicam nesses espaos.
Este trabalho entende a identidade contempornea como mltipla e contraditria, de
acordo com os estudos de Stuart Hall (2006), pois busca explicar um processo de interao
global e local, assumindo que a globalizao no homogeneizou a identidade do design local;
pelo contrrio, observa-se muitas vezes o reforo e legitimao dessa cultura. Por conta disso,
este trabalho estabelece um dilogo entre os campos da comunicao, design, cultura e
identidade, definindo como problema de pesquisa o seguinte questionamento: como o design
vernacular, na tradio popular tipogrfica, persiste na cultura urbana belenense?
Como caminho, vamos verificar a hiptese de que o design vernacular, a partir do
trabalho dos letristas populares est ativo nas periferias de Belm do Par, sendo um elemento
estratgico na comunicao e na cultura urbana local. O objetivo geral ser refletir sobre a
importncia do design vernacular na cultura urbana belenense. Os objetivos especficos so:
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15
Contextualizar o design vernacular na cultura urbana belenense;
Identificar as caractersticas estruturais do design vernacular produzido na cultura de
Belm do Par;
Analisar traos da cultura urbana popular no design vernacular em Belm;
Para a elaborao do presente trabalho buscou-se primeiramente o embasamento na
pesquisa bibliogrfica Esta etapa foi necessria para o dilogo proposto entre os campos do
design, comunicao, identidade e cultura, de modo a facilitar a compreenso sobre as
pinturas das letras nas fachadas produto do design vernacular enquanto importante forma
de comunicao e expresso popular.
Aps a busca bibliogrfica, ocorreu a coleta de dados primrios, referentes: a) ao
primeiro registro fotogrfico das imagens com contedos vernaculares, realizado de maneira
aleatria, que incluiu tambm a busca pelo contato dos pintores; b) entrevistas com os
pintores de letras Art Walter, Hlio Pintor e Seu Siqueira, para complementao da pesquisa;
c) ao segundo registro fotogrfico, focado nos trabalhos dos pintores de letras entrevistados; e
d) s entrevistas com os consumidores do design vernacular Carmino de Carvalho Borges,
Tnia Contente, Ana Ruth e Maura Batista, donos dos estabelecimentos fotografados (no
segundo registro fotogrfico).
A pesquisa foi dividida em trs captulos: o primeiro ir tratar sobre o design
vernacular, o ensino de design no Brasil, e conceitos do universo da tipografia, com base nos
estudos de Rafael Cardoso (2008), Ftima Finizola (2010) e Vera Lcia Dones (2005); o
segundo traz a relao entre o local e o global, no campo da cultura, para o entendimento dos
elementos culturais do design e sua potencialidade de comunicao, fundamentado, entre
outros autores, nas obras de Nstor Garca-Canclini (2008), Clifford Geertz (2008), Stuart
Hall (2006) e Gordon Mathews (2002); o terceiro foi reservado para a metodologia da
pesquisa, entrevistas e fotografias recolhidas; e o quarto captulo apresenta a anlise formal do
material coletado.
-
16
2. OS MLTIPLOS ASPECTOS DO DESIGN VERNACULAR
2.1. O multifacetado design do cotidiano
Com o olhar atento e curioso, possvel perceber os detalhes das comunicaes
grficas espontneas que dividem os espaos pblicos de diversas cidades do Brasil e do
Mundo. Estejam elas representadas no subrbio de Los Angeles, nas placas expostas nas
caladas em Recife, nas faixas e luminosos em Porto Alegre, ou nas fachadas de pequenos
comrcios em Belm, compartilhando ou no de tendncias e estilos grficos, o design
vernacular surpreende pelas suas particularidades locais e regionais.
O aspecto cultural vernacular sobrevive h centenas de anos. Como explica a
professora Vera Lcia Dones (2004), as prprias lnguas europeias j foram consideradas
lnguas vernculas em contraposio ao idioma oficial falado pelas classes instrudas na
Grcia Antiga, que eram o Grego e o Latim. Para Dones,
O termo vernacular sugere a existncia de linguagens visuais e idiomas locais, que
remetem a diferentes culturas. Na comunicao grfica, corresponde s solues
grficas, publicaes e sinalizaes ligadas aos costumes locais produzidos fora do
discurso oficial (DONES, 2004, p. 02).
Dones entende por discurso oficial a prtica institucionalizada do design, que conta
com o apoio de instituies hegemnicas como as Universidades, as empresas de
comunicao, os escritrios de design. Diferentemente do que acontece com o design
vernacular, que se baseia em uma produo mais autnoma e espontnea. Ela cita Rafael
e feito margem do
(Dones, 2004, p. 2), e a designer americana Ellen Lupton (LUPTON,
1996, p.111), que defende a complexidade existente em torno desse tipo de comunicao:
marginal ou anti-
profissional, mas como um amplo territrio onde seus habitantes falam um tipo de
DONES, 2004, p. 02).
No trecho acima, percebe-se que a discusso sobre a forma de comunicao utilizada
pela populao local faz parte de uma discusso maior sobre culturas, no plural. Culturas que
coexistem e possuem traos distintos especficos, que se traduzem tambm por meio da
linguagem e de suas produes grficas vernaculares. Ou seja, o vernacular tem sua raiz na
-
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cultura popular e se apropria de signos que sobrevivem ao tempo, s novas tecnologias e s
mudanas nas formas de comunicao e de consumo.
O termo cultura popular no designa um conjunto coerente e homogneo de
atividades, pelo contrrio, sua caracterstica a heterogeneidade, a ambiguidade e a
contradio, no somente nos aspectos formais, mas tambm em termos de valores e
interesses que veicula. Assim, comparadas com a cultura erudita, as manifestaes
populares so, de certa forma, dispersas, elaboradas geralmente com
desconhecimento de sua produo anterior e de outras manifestaes similares
(DONES, 2005, p. 01).
Por conta da natureza comum que esse tipo de produo apresenta, o modo pelo qual
muitos autores enxergam o vernacular chega a ser um pouco condescendente, assumindo toda
a desorganizao e disperso imagtica do outro a partir de sua prpria viso do que seria um
contedo visualmente organizado. Dessa forma, estabelece-se uma distino entre o
pesquisador, produtor de conhecimento acadmico, rgido, validado socialmente, e aqueles
entanto, necessrio empatia com o outro para que se possa entend-lo, alm de humildade
para reconhecer que as regras regentes do campo acadmico podem no ser aplicadas alm
dos muros da universidade.
Imagem 01: Exemplos de design vernacular em Belm do Par.
Fonte: Arquivo de Natlia Pereira, autora do trabalho3.
O design vernacular se traduz na espontaneidade e autenticidade da cultura popular, e
nas experincias vivenciadas nas ruas. Isso pode ser percebido em suas cores, formas, e nos
signos grficos utilizados em suas construes visuais. Seu aspecto heterogneo torna
possvel que a sua rea de atuao no campo grfico se estenda desde embalagens, pinturas
em lona, em fachadas, caminhes, barcos, carros de lanches mveis, faixas, at as mais
3 As fotos fazem parte da pesquisa realizada para este trabalho de concluso de curso, e foram retiradas em julho
de 2014.
-
18
diversas placas, materiais e formatos, ou seja, o suporte da mensagem e ausncia de recursos
no se configura como um obstculo para a criatividade e inventividade desses profissionais.
Certos aromas, texturas, cores e sons nos remetem a significados j enraizados na
cultura popular, e se manifestam de forma imediata na nossa mente: como o cheiro do
churrasco, a textura da seda, o modo como sabemos se determinada banana j pode ser
consumida pela cor da sua casca, ou o som que faz o carrinho do vendedor que passa na frente
da nossa casa. A comunicao e o design se apropriam desses elementos pertencentes ao
universo simblico popular para criarem conexes emocionais com as pessoas. O design
vernacular atua da mesma forma, no a partir do conhecimento acadmico, mas levando em
considerao a sabedoria popular e a tradio que passa de gerao para gerao.
Nas pesquisas sobre o tema, percebe-se um embate entre o que chamamos de design
oficial e o design vernacular, na qual est envolvida a legitimao de classes sociais e culturas
distintas. O socilogo Pierre Bourdieu (1989) defende que as formas de dominao presentes
na sociedade no se esgotam nos limites da fora fsica e econmica; ela tambm ocorre por
meio de uma violncia simblica, cotidiana, amparada pelos sistemas simblicos que
reforam a dominao de uma cultura sobre outras.
Bourdieu utiliza o conceito de poder simblico poder de construo da realidade
para explicar os embates e lutas que ocorrem nos campos sociais e que vo alm do uso da
fora fsica e do poder econmico para legitimar uma poltica de dominao. O autor entende
possvel o consensus acerca do sentido do mundo social que contribui fundamentalmente para
a reproduo da o
O poder simblico como poder de constituir o dado pela enunciao, de fazer ver e
fazer crer, de confirmar ou de transformar a viso do mundo e, deste modo, a aco
sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mgico que permite obter o
equivalente daquilo que obtido pela fora (fsica ou econmica), graas ao efeito
especfico de mobilizao, s se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado
como arbitrrio (BOURDIEU, 1989, p. 14).
No pargrafo acima, o autor esclarece o fato de que o reconhecimento social dos
smbolos necessrio para que as culturas sejam vistas como hierarquicamente superiores ou
inferiores umas s outras, por meio de uma relao de integrao, distino e legitimao
to enraizada no universo simblico social que no questionada, e sim aceita como verdade.
Os embates sociais que Bourdieu descreve acontecem dentro do que o autor chama
de campo,
campo, e apreender aquilo que faz a necessidade especfica da crena que o sustenta, do jogo
-
19
(BOURDIEU, 1989, p. 69). Ou seja, em cada campo (cultura, arte, design, comunicao,
entre outros), existem estruturas e significados especficos, prprios, que s se reproduzem e
s fazem sentido naquele contexto para aquelas determinadas pessoas onde aqueles com
maior capital simblico consequentemente possuem maior poder na tomada de decises.
Ainda segundo o autor, os agentes de um campo com interesses semelhantes atuam
por meio de um habitus comum, ou uma disposio incorporada comum, um conhecimento e
postura que no vem de uma razo humana ou esprito universal. O habitus descreve o
comportamento e as capacidades criativas que as pessoas adquirem no convvio umas com as
outras.
Seguindo o pensamento de Bourdieu, Fernanda Cardoso4 defende que
bens simblicos seria reflexo de seu habitus, e a linguagem comum utilizada pelos designers5
populares representa, em ltima anlise, esquemas de percepo, de pensamento e de ao
. Ou seja, os grupos populares atuam de
forma especfica, de acordo com seus prprios valores, signos e estticas visuais.
que acaba por criar um padro informal nesse tipo de produo. O que a autora nomeia
uniformidade, entende-se aqui como linguagem comum, que existe mesmo sem conscincia
de campo, regras estruturadas e instituies de representao. Isto quer dizer que seria
possvel identificar um estilo prprio dentre os trabalhos de design vernacular por conta de
uma linguagem comum entre os produtores deste campo, que reflete o universo simblico
destas pessoas, suas formas de ver o mundo. Cardoso explica que possvel identificar no
campo do design vernacular: formas de representao mais direta e imediata, imagens
explcitas e o uso de cores fortes, com bastante contraste entre si diferente da linguagem
grfica utilizada na comunicao desenvolvida para outros grupos sociais.
A cor seria, ento, uma representao social, e seu o valor determinado pela
sociedade. Em muitos casos, a cor utilizada j tem um significado especfico no referencial
simblico popular. Um exemplo disso a utilizao das cores rosa nas embalagens
tradicionais vernaculares citada pela autora. Essa cor geralmente associada a produtos em
sua verso adocicada, como pipoca e biscoitos doces. J faz parte do nosso universo associar
4 O artigo citado tem como base os resultados da pesquisa de doutorado sobre o universo simblico do design
grfico vernacular realizada por Cardoso no ano de 2010. 5 Para este trabalho, pintores de letras.
-
20
cores a situaes especficas e, por vezes, como no exemplo acima, essa associao to
comum, e utilizada h tantos anos, que pouco se reflete sobre o seu significado.
Imagem 02: Fotografias de embalagens vernaculares tradicionais.
Fonte: Cardoso, 2012.
As linhas e desenhos do design vernacular so moldados a partir do fazer artesanal,
por meio de mos habilidosas que dominam ferramentas tradicionais, como tintas e pincis, e
conseguem transformar estruturas planas e sem vida em fonte de inspirao para muitos
designers, que hoje reforam a expressividade e autenticidade dessa forma de trabalho.
No artigo intitulado As apropriaes do vernacular pela comunicao grfica, Vera
Lcia Dones (2004) faz um apanhado geral sobre as mudanas de paradigmas dos designers
modernos para os ps-modernos, em especial relacionados esttica grfica. A pesquisadora
explica que, a partir dos anos 80 do sculo passado, os designers passam a se interessar pela
cultura das ruas e sua complexidade visual, e que esse interesse pelas linguagens locais e
regionais tem a ver com uma mudana de atitude dos designers e com o surgimento das novas
tecnologias, que permitiram ao vernacular sair da ma
design oficial, sem hierarquias.
Os responsveis pela criao das artes vernaculares no so reconhecidos como
designers, nem se intitulam como tal, podendo ser chamados de pintores de letras, artesos,
artistas. A nomenclatura letrista tambm no se aplica a estes profissionais apesar de j ter
sido utilizada em trabalhos acadmicos porque este nome costumava caracterizar o
profissional que trabalhava em agncias de publicidade e que desenhava letras para a
confeco de layouts antes do surgimento de impresses computadorizadas, alm de que o
letrista possua uma formao tcnica mais elevada, diferente dos pintores de letras e de sua
escolaridade menos favorecida (DOHMAN, 2005, p. 8).
O autor Marcus Dohmann, em sua tese de doutorado (2005), retratou o cenrio urbano
do design vernacular, com foco em Itaipava, no Rio de Janeiro, colocando questes
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21
relacionadas ao aspecto cultural, de identidade, de legitimidade dessa prtica no campo
comunicacional e do design. Abusando de cores fortes, traos muitas vezes irregulares e do
foco no utilitarismo, ele explica que a esttica vernacular representa hoje, para muitos
designers, os resqucios da conhecida brasilidade, em um momento de avanos na rea
tecnolgica e de um modo de fazer e de entender o que design global.
Dohmann cita ainda o aprendizado intuitivo e no acadmico, sendo baseado nas
experincias visuais do cotidiano como fator determinante para a manuteno dessa atividade.
De acordo com o autor, o ofcio de pintor de letras ainda se aprende pela relao entre mestre
e aprendiz, tradio oral, e prtica do fazer manual, no sendo legitimada por instituies
hegemnicas da sociedade6.
Em relao tradio oral, nos referimos ao que aprendido prioritariamente por
meio da linguagem, dos sons falados ao invs do uso da forma escrita e do estudo sistemtico
no ensino. Conforme Walter Ong argumenta, o homo sapiens surgiu h cerca de 30.000 a
50.000 anos, enquanto que o mais antigo registro data de apenas 6.000 anos atrs, provando
e na maioria das vezes existiu sem qualquer escrita; mas
1998, p.16). O objeto de estudo de Ong se concentra na
oralidade primria, ou seja, a das pessoas que no conhecem nenhuma forma escrita ou de
impresso; mesmo assim, ela demonstra a importncia da tradio oral para a humanidade.
Eles aprendem pela prtica - caando com caadores experientes, por exemplo -,
pelo tirocnio, que constitui um tipo de aprendizado; aprendem ouvindo, repetindo o
que ouvem, dominando profundamente provrbios e modos de combin-los e
recombin-los, assimilando outros materiais formulares, participando de um tipo de
retrospeco coletiva - no pelo estudo no sentido restrito (ONG, 1998, p. 17).
O fragmento acima se refere forma de aprendizado das sociedades primitivas.
Porm, essa forma de ensino permanece viva at hoje, acionada muitas vezes no momento em
que acontece fora do espao da sala de aula. Conforme veremos brevemente no captulo trs,
os pintores de letras entrevistados neste trabalho aprenderam a profisso por meio da tradio
oral, de maneira autodidata, de forma prtica e no terica.
6 A ideia de hegemonia conforme apresentada no texto surgiu do pensamento de Antonio Gramsci (1989
1937). Italiano, ele foi um personagem ativo e importante para a histria do incio do sculo XX, motivado
enormemente pelos estudos marxistas e por Lenin. A sua ideia de hegemonia parte do princpio da luta de
classes, de uma revoluo que partiria das camadas populares e que lhes traria o domnio, o poder ditador, a
hegemonia, sobre a sociedade e que seria, portanto, capaz de oferecer a todos o direito ao conhecimento e
da tica, depois no da poltica,
atingindo, finalmente, uma elaborao superior da prpria concepo do real. A conscincia de fazer parte de
uma determinada fora hegemnica (isto , conscincia poltica) a primeira fase de uma ulterior e progressiva
au
-
22
Por conta da ausncia de instituies legitimadoras, a profisso do pintor de letras
caminha sem pisar de fato nas regras com as quais o design oficial convive. Ou seja, apesar
das dificuldades e dos recursos reduzidos de produo, os pintores de letras ganham a
liberdade de criao frente s regras acadmicas, o que torna os seus produtos mais
espontneos em relao s suas propores, volumes, formas, cores.
Em contraposio a esse cenrio, cresce dentro da academia o interesse pelo universo
do design vernacular e, com isso, crescem tambm as trocas de experincias entre
conhecimento acadmico e conhecimento popular. Os profissionais do design oficial
passaram a se apropriar do contedo imagtico popular como forma de retornar s origens e
criar uma identificao com determinados segmentos da populao, alm de reconhecer a
importncia histrica e cultural que esse elemento central da identidade brasileira tem a
oferecer.
Essa apropriao por meio da academia ocorre, muitas vezes, com base em pesquisas
sobre o design vernacular, registros fotogrficos, entrevistas com os atores sociais e criao de
fontes digitais inspiradas nas letras estudadas. Hoje possvel encontrar fontes digitais que
simulem letras e mesmo cones vernaculares, que apresentam formatos mais irregulares, e que
representam traados de canetas esferogrficas, escrituras feitas mo, tanto em suas verses
gratuitas quanto pagas.
Imagem 03: Fontes digitais criadas por Ftima Finizola7.
Fonte: Crimes Tipogrficos, 20148.
Observam-se acima as imagens de duas fontes9 digitais, criadas a partir da tradio
tipogrfica presente na cultura popular nordestina. Finizola argumenta que a opo por essa
7 A fonte Zabumba Folk pode ser adquirida pelo preo de R$ 40,00, j a fonte Rial est disponibilizada para
download gratuito. 8 Disponvel em: http://www.crimestipograficos.com/?go=fonts.
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23
reflexo maior, entre aqueles que iro consumir esses produtos, acerca da verdadeira
Porm, h uma linha tnue na qual a inspirao e
apropriao se confundem, e onde o desejo por salvar traos to importantes do
desaparecimento atravs de sua imortalizao digital deixa o pintor de letras no anonimato,
sem o reconhecimento da sua obra, em especial quando essa fonte digital inspirada em seu
trabalho no distribuda gratuitamente.
Ainda sobre essa relao, Dones acrescenta que:
O design grfico atravs da esttica vernacular representaria a superao de uma
viso dicotmica do pensamento moderno que coloca de um lado o design erudito,
fruto do conhecimento acadmico, e de outro lado, aquele produzido margem
desse sistema. Parece cada vez mais difcil enquadr-lo como algo fixo, em uma
hierarquia de espaos culturais (acadmico versus vernacular) ou em uma
linearidade histrica (DONES, 2004, p. 07).
A superao da qual fala a autora se relaciona ao fato de que, a partir da dcada de
1920, se fortaleceu a noo do design de formas rgidas, estruturadas e limpa, sem exageros.
Cardoso chama essa forma de pensar de Estilo Internacional, que tinha entre os seus objetivos
por formas gerais e universais (CARDOSO, 2000, p. 152).
A cultura popular se estabelece na autenticidade, em um fluxo constante de
experincias contraditrias e vibrantes, na qual a longa tradio convive com modismos
coloquiais temporais persistncia e mesmo ressurgimento do chamado elemento
vernacular no design brasileiro (...) revela as tenses entre uma viso de design fundamentada
em ideais importados e outra assentada no reconhecimento das razes profundas da realidade
brasileira . Ou seja, o design vernacular pode ser entendido
tambm enquanto um produto atrelado a estticas particulares das localidades nas quais se
origina.
O design oficial e o design vernacular caminham lado a lado, atendendo as demandas
de diferentes segmentos sociais, e fazendo parte da mesma cultura na qual atuam. Acredita-se
neste trabalho que os dois setores tm muito a aprender um com o outro, e que a sociedade
ganha com o respeito a essa multiplicidade cultural. Ou seja, importante ter em mente que o
design vernacular e o design oficial no se anulam, pois ambos so importantes para
9 Fonte (font, fount, ingls =fundido). O termo deriva de foundry, a fundio onde os tipos eram fundidos a partir
de metal lquido. Disponvel em: http://tipografos.net/glossario/fontes-digitais.html.
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24
entendermos as dimenses culturais de uma sociedade como um todo, cada um abarcando as
necessidades de diferentes contextos sociais e com suas caractersticas especficas.
2.2. Passeio pelas sinuosidades tipogrficas
Na tentativa de conceituar o que seria a tipografia, foi encontrada certa dualidade:
para alguns, se trata de um processo estritamente mecnico; para outros, a definio da
palavra se torna mais abrangente. Por exemplo, de acordo com o site Tipgrafos10
, a
tipografia vem do grego typos (forma) e graphein
criao e feitura de tipos, quer metlicos, quer de fontes digitais Essa conceituao se
detm na tecnologia da produo de tipos mecnicos em si.
Neste trabalho compreende-se tipografia de acordo com Bruno Martins (2007, p. 63),
como a materializao da escrita, onde
busca um conceito amplo porque acredita que o termo tipografia, no Brasil, seja equivalente
aos termos writing, lettering e typography, do ingls.
Imagem 04: Exemplo de lettering por Jason Carne.
Fonte: Behance, 201411
.
writing se aproxima do que conhecemos como caligrafia ou qualquer
ato de escrever manual que se utiliza de instrumentos que vo do lpis ao pincel para desenhar
letras de apenas uma linha (stroke MARTINS, 2007, p. 62). No passado, representava a
10
Disponvel em: http://tipografos.net/glossario/tipografia.html. 11
Disponvel em: https://www.behance.net/gallery/19246925/Sevenly.
http://tipografos.net/glossario/tipos-moveis.htmlhttp://tipografos.net/glossario/fontes-digitais.html -
25
maneira pela qual os escribas reproduziam os livros, mo, antes da inveno da impresso
por Gutenberg em 1450. Hoje, tem a ver com a forma particular e espontnea de cada
indivduo se expressar atravs da escrita, com a forma fluida que as letras adquirem no papel.
J o lettering
manuais, mas sem a restrio de que sejam desenhadas com apenas uma linha, podendo, por
MARTINS, 2007, p. 62). Apesar de o lettering ser
mais trabalhado artisticamente, voltado para comunicaes especficas, ele no tem como
objetivo a construo de letras que formem um novo alfabeto, ou a criao de letras que
possam ser reproduzidas; se tratam de peas de carter nico.
Finalmente, Martins diz que -se por typography a criao de desenhos e
composies predeterminados por meio de tcnicas mecnicas ou digitais que independem do
impresso de tipos mveis, as
famlias tipogrficas, a anatomia das letras e as regras de tipografia ensinadas nas
universidades como o fato de que os designers devem se limitar ao uso de no mximo duas
fontes por projeto, ou evitar a centralizao dos pargrafos no meio da pgina12
.
Martins compreende, ento, tipografia como a juno destes trs elementos da
linguagem escrita: writing, lettering e typography, ao passo que esta sai da esfera mecanicista,
responsvel pela tecnologia utilizada na impresso e construo de tipos mveis, e passa a
englobar a forma como a escrita corporizada, tendo em mente que os desenhos das letras
(espessuras, cores, detalhes) e outras formas grficas influenciam na leitura e interpretao do
texto.
De acordo com Ftima Finizola (2010, p. 40), a tipografia pode ser entendida sob dois
aspectos: como organizao visual da linguagem escrita independente de como produzida, e
tambm ao se relacionar ao design e ao uso de letras por processo mecnico ou digital. O
lettering se refere tcnica de desenhar e construir conjuntos de letras por processos manuais,
enquanto que a caligrafia abrange a prtica pessoal de escrita de cada indivduo.
Outra forma de definir esse conceito foi expressa pelo professor de comunicao
Ela tem o poder de determinar o tom do
texto ao gritar, sussurrar, ou ser expressiva, forte ou delicada, ao atribuir significados,
intenes e formas distintas s palavras. Ou seja, o seu contedo imagtico, como as cores e
outros elementos da composio, comunica tanto quanto o seu contedo escrito.
12
Nessa linha de pensamento, o professor Craig (2006, p. 171) define typography como a arte de projetar com
tipos.
-
26
A histria da tipografia comeou h bastante tempo, junto com a prpria necessidade
que o ser humano tem de se comunicar, ato intrnseco natureza humana. Mesmo antes da
existncia de palavras escritas, ou da juno entre som e imagem para a formao de
alfabetos, nossos antepassados deixaram as suas marcas na histria por meio de pinturas e
desenhos realizados com as tcnicas disponveis da poca. Sobre esse assunto, Martins
interpreta que:
A impulso de escrever do homem se realiza a partir de tcnicas (incises, o pincel,
o clamo, o osso, o buril, o lpis, a pena, os tipos mveis, a mquina de escrever, o
computador) que do forma a signos grficos sobre uma grande diversidade de
suportes (a parede das cavernas, o pergaminho, o metal, a madeira, o papel, as telas
luminosas, etc.). (MARTINS, 2007, p. 47).
As primeiras pinturas de pessoas, animais ou ferramentas desenhadas nas cavernas,
feitas inicialmente com argila, datam de 20.000 a.C., enquanto que a primeira evidncia
escrita foi desenvolvida 17.000 anos depois pelos sumrios13
, por volta de 3500 a.C.
(DYKES, 2011). Essas formas de pintura so conhecidas como Pictografia, que pode ser
um sistema primitivo de escrita em que as ideias e os objetos eram
representados por desenhos14
Imagem 05: Pictogramas sumrios escritos em argila.
Fonte: CRAIG, 201415
.
13
De acordo com descobertas arqueolgicas, os Sumrios foram o primeiro povo a habitar a regio da
Mesopotmia, o atual Iraque, compreendida entre os rios Tigre e Eufrates. Eles foram responsveis pela
construo dos primeiros templos e palcios monumentais, pela fundao das primeiras cidades-estado e pela
inveno dos sinais escritos por meio da Pictografia, tudo no perodo de 3100 a 3000 a.C. (SOUZA, 2014). 14
Disponvel em: http://www.dicio.com.br/pictografia/. 15
Disponvel em: http://www.designingwithtype.com/5/origins.php?whatImage=1.
-
27
relaes comerciais e administrativas de uma sociedade que se tornava cada vez mais
Com o passar do tempo, os pictogramas no
conseguiam dar conta dos significados abstratos que surgiram, e foi ento que ocorreu a sua
evoluo para o que se denomina de ideogramas, nos quais os smbolos passam a representar
ideias, e comeam a adquirir significados diversos quando combinados entre si (CRAIG,
2006, p. 8).
Dentre os vrios exemplos contemporneos dos ideogramas, pode-se citar a imagem
da caveira e seus ossos cruzados, que pode significar o conceito abstrato de perigo, e a escrita
chinesa, que utiliza uma verso desenvolvida desse sistema na construo de seu prprio
alfabeto. Alm disso, o sistema de numerais romanos utilizados hoje em dia, como o I, II e III,
podem ser considerados como ideogramas, pois representam os dedos da mo (DYKES,
2001).
Outras verses modernas dos ideogramas podem ser encontradas nos cones que
usamos para expressar certos significados, como o desenho do relgio para indicar a hora, um
lpis para sinalizar um desenho, um balo de fala para expressar conversa, o corao para a
representao do amor, entre outros.
Imagem 06: Exemplos de ideogramas contemporneos.
Fonte: Imagem esquerda: Arquivo da Autora
16.
Imagem direita: Blog Criativo (2014)17
.
Uma mudana significativa no universo da escrita ocorreu por volta de 1200 a.C., no
momento em que os smbolos passaram a representar os sons falados no alfabeto fencio, ao
invs da antiga representao de ideias e objetos. De acordo com Craig (2006, p. 9), o intuito
16
Criado em 14 de setembro de 2014. 17
Disponvel em: http://anakabum.wordpress.com/oficina-da-palavra/ideograma-chineses/.
-
28
inicial desse novo sistema, conhecido como fonograma, era a simplificao da comunicao
nas transaes comerciais dos fencios, mas que, a logo prazo, permitiu a utilizao de um
nmero menor de smbolos do que os sistemas pictogrficos e ideogrficos necessitavam, e as
suas formas simplificadas tornaram o seu aprendizado mais rpido.
no podemos negar a importncia do
aparecimento da escrita, que promoveu um movimento de ruptura nas sociedades tradicionais,
ao deslocar o lugar do conhecimento da oralidade para a escritura, criando as bases para o
pensamento moderno se trata de uma descoberta que modificou a forma com a qual
as sociedades passaram a se relacionar entre si e com os outros povos. O alfabeto fencio
considerado o primeiro alfabeto escrito e, nicialmente pictogrfica, pode-se dizer que a
escrita ocidental surgiu da necessidade de controle do tempo, das relaes comerciais e
administrativas de uma sociedade que se tornav
(MARTINS, 2007, p. 33). Alm de que, com o avano nas formas de escrita, foi possvel
identificar a origem das mercadorias, comprovando a sua qualidade e destacando os produtos
de outras localidades, no ramo do comrcio.
Imagem 07: Alfabeto fencio.
Fonte: CRAIG, 201418
.
O alfabeto acima teve grande influncia na construo do alfabeto grego. Na
realidade, os gregos se apropriaram do alfabeto fencio por volta de 800 a.C., com um
objetivo que ia alm do seu uso comercial, j que o mesmo poderia ser usado de forma a
18
Disponvel em: http://www.designingwithtype.com/5/origins.php?whatImage=2.
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29
preservar o conhecimento. Algumas modificaes foram realizadas, contudo, como a adio
das cinco vogais ao alfabeto, e algumas mudanas nas palavras: Aleph virou alpha, e Beth
virou beta, da a derivao da palavra alphabet19
(CRAIG, 2006). Da mesma forma, os
romanos se apropriaram das modificaes realizadas pelos gregos, e revisaram apenas
algumas letras: C, D, G, L, P, R, S e V, e adicionaram as letras F e Q, somando assim 23
letras ao total.
Imagem 08: A evoluo dos pictogramas em letras do alfabeto.
Fonte: DYKES, 2001.
A trajetria da tipografia, assim como a histria da humanidade, apresenta
modificaes, rupturas, resgates e contrastes ao longo do tempo. O conhecimento da escrita
at ento ainda se tratava de um bem restrito s elites religiosas e aristocrticas mas, com a
inveno da imprensa e dos tipos mveis, por Johannes Gutenberg, no sculo XV, o processo
de difuso do conhecimento se tornou mais fcil, ao propiciar a difuso de livros cientficos e
clssicos de literatura, entre outros (MARTINS, 2007, 33). Martins tambm cita o
aparecimento da litografia20
, (sculo XIX) como fator primordial para a libertao das letras
dos formatos rgidos impostos pelos tipos de metal, e a Revoluo Industrial e a inveno da
fotografia (ainda no sculo XIX) como fatores que expandiram o alcance dos impressos
sociedade urbana que surgia.
Na medida em que as tecnologias avanaram, e as necessidades humanas foram sendo
redirecionadas, pode-se perceber mudanas na anatomia das letras, no ver e no ler em pelo
menos cinco estilos tipogficos, que no deixam de ser uma forma de expresso do perodo
histrico em que foram criados: Estilo antigo/ Old Style (1615), de Transio/ Transitional
(1757), Modernas/ Modern (1788), Egpcias/ Egyptian ou Slab (1894) e Sem Serifa/ Sans
Serif (1957)21
. Esses estilos podem ser observados na imagem 09, na prxima pgina.
19
Alfabeto, em ingls. 20
A litografia (do grego lithos pedra, e graphein escrever) uma tcnica de impresso inventada por
Aloysius Senefelder, em 1796, que utiliza uma pedra calcria de gro muito fino e baseia-se na repulso entre a
gua e as substncias gordurosas. O seu mrito est em proporcionar uma impresso econmica e menos
demorada que os procedimentos grficos da poca (HEITLINGER, 2014). 21
Ver CRAIG, 2014.
-
30
Imagem 09: Evoluo dos tipos.
Fonte: Arquivo de Natlia Pereira, autora do trabalho
22.
Na poca em que o chamado Old Style (1615), ou entilo antigo, estava vigente, os
papis ainda eram todos feitos mo, e as tecnologias de impresso ainda davam os seus
primeiros passos. Apesar disso, estas tornaram possveis uma independncia maior nas formas
das letras em relao escrita manual (CRAIG, 2006, p. 28). A fonte mais importante daquele
momento foi a Garamond, desenvolvida por Jean Jannon, que funciona muito bem em textos
longos.
O estilo Transitional, assim conhecido por criar uma ponte entre dois estilos
diferentes. Suas serifas23
menos curvilneas, e as hastes das letras possuem uma distino nos
tamanhos mais acentuada, em funo do surgimento de papis mais delicados na indstria
grfica que tornou possvel a impresso de traos e detalhes mais finos. A fonte Baskerville
criada por John Baskervile considerada uma das fontes mais agradveis de se ler.
Comparado aos anteriores, o estilo Moderno, representado na fonte Bodoni do italiano
Giambattista Bodoni , possua hastes de expessuras bastante contrastantes entre si, serifas
retas e finas.
Aps o surgimento da Bodoni, apareceram novos formatos na linguagem das famlias
tipogrficas. O sculo XIX viu o nascimento de letras com as verses bold (negrito),
condensadas e extendidas das fontes, alm de tipos decorativos: pode-se dizer que as letras
saram da sua extenso limitada ao tamanho das paginas de livros para impactarem anncios e
cartazes. O estilo egpcio, tambm desse perodo, caracterizado pelas serifas grossas e
curvilneas, e um retorno ao pouco contraste entre as hastes.
No mesmo perodo apareceram as fontes grotescas, ou sem-serifa. Apesar das
mudanas visuais que ocorreram na escrita, foi somente no sculo XX que esse estilo se
tornou expressadamente popular, a partir do trabalho dos designers suos Max Miedinger
(1910 - 1980) e Eduard Hoffmann (1982 1980), que trouxeram o frescor s fontes retirando
22
Criado em 16 de setembro de 2014, com base nos livros Tipografia Vernacular Urbana: uma anlise dos
letreiramentos populares (FINIZOLA, 2010) e Designing with Type: the essential guide to typography (CRAIG,
2006). 23
Serifas so os pequenos traos e prolongamentos que ocorrem no fim das hastes (traos principais) das letras.
-
31
estes prolongamentos, e tornando-as assim mais adequadas ao mundo contemporneo.
Helvetica, sua obra-prima, uma das fontes mais populares do mundo24
.
Imagem 10: Detalhes da anatomia tipogrfica.
Fonte: Arquivo de Natlia Pereira, autora do trabalho 25
.
No universo tipogrfico, as letras so decompostas em partes especficas, cada qual
com uma nomenclatura diferente (como haste, orelha, bojo). A decomposio em partes
permite, dentre outros fatores, identificar as famlias de tipos pelas suas particularidades, e
escolher os tipos que mais se apropriam a um projeto grfico. As letras que apresentam
maiores variaes de uma fonte para a outra so: R, T, W, a, e, g, h, o. Por exemplo, podemos
perceber na imagem acima as especificidades do estilo egpcio na fonte digital Aleo, que
possui serifas curvilneas, hastes grossas e de tamanhos similares epouco contraste entre si.
Imagem 11: Tipos de serifa.
Fonte: Arquivo de Natlia Pereira, autora do trabalho
26.
Acima, observam-se diversos tipos de serifa, e as diferenas visuais presentes entre
eles. Cada serifa, ou outro detalhe citado da anatomia das letras, pode causar sensaes
19
Mais informaes sobre o assunto podem ser encontradas no documentrio chamado Helvtica, de 2007, que
traa o caminho percorrido pela fonte Helvetica, desde a sua criao, uso e ganho de popularidade at a sua
relao com os novos padres estticos presentes no contemporneo. 25
Criado em 16 de setembro de 2014, com base nos livros Tipografia Vernacular Urbana: uma anlise dos
letreiramentos populares (FINIZOLA, 2010) e Designing with Type: the essential guide to typography (CRAIG,
2006). 26
Criado em 16 de setembro de 2014, com base no blog da Printi. Disponvel em
http://www.printi.com.br/blog/aprenda-mais-sobre-tipografia-serifas-infografico.
-
32
visuais especficas, e alterar o impacto de um layout e o significado da mensagem a ser
transmitida. Alm disso, elas expressam as ansiedades de uma poca, as necessidades que
surgiram, o modo de ver e enxergar o mundo, refletidos em tbuas de argila, pginas de papel,
imagens digitais.
Como se pde perceber, a trajetria da tipografia se mistura com a complexidade
histrica humana e com as regras que tomam forma dentro do campo do design oficial e
mesmo do design vernacular. Alm disso, o design pode ser entendido enquanto produto
cultural, inspirado na cult
(FINIZOLA, 2010, p. 29). Uma de suas funes comunicar: um lugar, um servio, uma
experincia, por meio de um projeto visual que crie uma identificao entre estabelecimento,
seu pblico e os cenrios em que atuam. No fim, trata-se de expressar visualmente uma ideia,
sentimentos, a partir das ferramentas e dos signos disponveis.
2.3. Retorno s origens: do design moderno ao design contemporneo
A conceituao da palavra design uma tarefa rdua, talvez porque designers de
pocas diferentes enxerguem o design de maneiras diferentes, cada qual de acordo com as
suas necessidades e experincias pessoais. Alm disso, percebe-se a influncia dos
movimentos artsticos e de pensamentos contrastantes vivendo no mesmo perodo histrico
como a corrida armamentista e o louvor tecnologia e s formas abstratas e geometria
simples, e o despertar do movimento hippie e a busca por um mundo menos estruturado,
marcado por um estilo mais carregado de cores e formas sinuosas, ambos da dcada de 1960,
por exemplo. Em outras palavras, a histria no ocorre da maneira linear e organizada como
aparece nos livros escolares, mas vai sendo moldada a partir de tropeos e encontros entre
mentes com filosofias distintas entre si.
Os anos 60 do sculo passado foram marcados por diversos acontecimentos
importantes. De um lado, o mundo vivia as consequncias da Segunda Guerra Mundial (1939
1945), os pases se reconstruam e lidava com a violncia que o ser humano havia
desencadeado em poucos anos, e o mundo estava enfim dividido em dois polos: um socialista,
liderado pela ento Unio Sovitica, e outro capitalista, encabeado pelos Estados Unidos27
.
27
De forma simplificada, apenas visando a contextualizao para o presente trabalho, o socialismo tem como
base a socializao dos meios de produo, a diviso igualitria do capital, e o fim da diviso da sociedade em
-
33
Dessa forma, duas correntes filosficas contrastantes disputavam o espao ao redor do globo,
constituindo assim a Guerra Fria (1945 1991).
Exemplos de conflitos famosos ocorridos durante a Guerra Fria so a Guerra da
Coreia (1950-1953) e a Guerra do Vietn (1962-1975), alm da construo do Muro de
Berlim (1961 1989), que separou a Alemanha capitalista e socialista por 30 anos. Mas a
Guerra Fria tambm proporcionou um alto desenvolvimento tecnolgico e conquistas
espaciais. Foi nessa poca que o primeiro homem, Yuri Gagarin (1934 1968) foi enviado ao
espao em 1991, por exemplo. Enquanto a sociedade se dividia entre esses dois eixos opostos,
surgiam movimentos que buscavam novos horizontes, se afastando dos paradigmas que
nortearam o incio do sculo XX: o movimento hippie, a luta pelos direitos das minorias em
relao aos negros e s mulheres, por exemplo o entre outros28
.
Para a Associao dos Designers Grficos do Brasil ADG, o design grfico pode ser
um processo tcnico e criativo que utiliza imagens e textos para
comunicar mensagens, ideias e conceitos, com objetivos comerciais ou de fundo social
(ADG BRASIL, 2014). Nesse pressuposto, o design no se preocupa apenas com a venda, ou
com a esttica, mas a sua motivao gira em torno da funcionalidade de determinado objeto e
do modo como ele ser interpretado/ manuseado pelas pessoas. De maneira um tanto confusa,
alguns autores preferem descrever o design a partir do que ele no . Nas palavras de Marcos
Paes de Barros, orientador dos Cursos de Design Grfico e Histria do Design da Academia
Brasileira de Arte ABRA:
Design no arte, no artesanato, no publicidade, no arquitetura e nem
informtica. Apesar dessa multidisciplinaridade, o Design prevalece como uma
cincia autnoma que se faz valer da tecnologia e de outros aspectos em comum
como, por exemplo, as ferramentas grficas da informtica, a influncia e relaes
com os perodos histricos artsticos ou das pesquisas e fundamentaes do
marketing (BARROS, 2014).
Procurando ser mais especfico, Wilton Azevedo, no livro O que Design (1994, p.
de pensamento, o designer seria o responsvel por projetar alguma coisa, mas no por
constru-lo manualmente. Azevedo interpreta o campo enquanto uma das muitas mudanas
que surgiram durante a Revoluo Industrial (que teve incio na Inglaterra no sculo XVIII ao
XIX), perodo que marca a passagem do trabalho essencialmente artesanal para as atividades
industriais. Essa transformao no ocorreu de forma homognea pelo globo, mas
proporcionou em longo prazo a criao de objetos em larga escala, o aperfeioamento
28
Ver Vale, 2014.
-
34
tcnico, o surgimento de um mercado consumidor e a diviso de tarefas, ou seja, pessoas
diferentes responsveis pela fabricao de partes distintas de um mesmo objeto.
Outros estudiosos procuram respostas na prpria morfologia da palavra design. Para o
escritor e historiador da arte Rafael Cardoso,
designare
Como se pode perceber, a origem da palavra design comporta dois lados distintos: um
abstrato, que lida com a concepo e planejamento, e outro concreto, que inclui a atividade de
formar, configurar, fazer.
O autor estuda a histria do design durante os sculos XVIII e XIX, acompanhando a
forma na qual as mudanas econmicas e culturais de diversos pases, em especial o Brasil,
alteraram o que se entende por fazer design. Ou seja, essa rea se relaciona com as demandas
sociais, econmicas, polticas e culturais, nacionais e internacionais. Ao invs de estabelecer a
histria do design atravs de correntes tericas e estticas fixas, Cardoso explica que a histria
no foi escrita de forma sbita e homognea, mas que o design se estabeleceu diferentemente
no contexto de cada localidade.
Pode-se dizer que a tipografia moderna surgiu nos primeiros 30 anos do sculo XX29
,
no momento em que designers do mundo todo passaram a rejeitar o estilo romntico e
ornamentado do Art Nouveau (1883) a favor de uma tipografia mais direta e impactante, que
privilegiasse a clareza e os avanos tecnolgicos. A comunicao se resumia at ento
transmisso de informaes e de mensagens claras e repetitivas.
Baseado na vida buclica e nos traos referentes natureza, o Art Nouveau foi um
movimento que adquiriu grande notoriedade e repercusso internacional ao incentivar o
retorno a uma vida pacata e tranquila, que perdia espao para a industrializao e urbanizao
das cidades. Para Wilton Azevedo (1994, p. 24), sua esttica peculiar mantinha uma relao
entre o arteso e o que viria a ser chamado de designer, pois quanto mais complexas eram as
formas de um objeto, mais difcil seria a sua industrializao.
Pelas brechas deixadas por aqueles que pregavam o uso das formas orgnicas da
natureza, como explica Cardoso (2008), crescia o interesse por solues de design que
contemplassem as formas geomtricas e abstratas e, com as transformaes tecnolgicas e
polticas que ocorreram nos pases ocidentais, abriram-se caminhos para resultados estticos
nunca antes vistos. Na dcada de vinte do novo sculo, novos estilos (futurismo, cubismo,
29
Ver Dones, 2005.
-
35
construtivismo, neoplasticismo) buscaram se alinhar com o ideal esttico que a mquina
representava.
Desde a dcada de 1920, diversos designers e arquitetos ligados ao Modernismo
substitussem as formas vernculas (para eles ligadas a um passado arcaico de
regionalismos e nacionalismos, de escolas e modas) por formas gerais e
supostamente universais, de preferncia redutveis a mdulos simples e abstratos que
pudessem ser eternamente recompostos de acordo com necessidades funcionais
(CARDOSO, 2008, p. 154).
Nesse perodo foi criada, na cidade Weimar, na Alemanha, a chamada escola Bauhaus
(1919), que funcionou por quinze anos, mudou de localidade trs vezes e contou com trs
diretores diferentes: Walter Gropius (1883 1969), Hannes Meyer (1889 1954) e Mies van
der Rohe (1886 1969), cada um com um posicionamento especfico sobre o design
estruturalista. O curto perodo em que a escola esteve ativa, contudo, foi suficiente para
suscitar a imaginao de jovens do mundo todo, e impactar o design realizado
internacionalmente. A escola contava com uma influncia grande do campo da arquitetura, e
desenvolvia diversas atividades, como a incluso de grupos de teatro, de msica, e publicao
de livros e revistas para a divulgao dos trabalhos realizados internamente.
O chamado Estilo Internacional teve como principal ponto de partida a chamada
exposio de Weissenhof (1927), na qual arquitetos/ designers famosos como Gropius e Mies
van der Rohe, da Bauhaus, apresentaram projetos de moradias construdos a partir de formas
ambiciosamente universais; apesar disso, o estilo s conseguiu se consolidar aps a Segunda
Guerra Mundial (1939 1945). Cardoso argumenta que esse estilo, em consonncia com os
discursos comunistas da poca, pretendia levar populao um design mais justo.
Contraditoriamente, esse foi o estilo mais adotado para a comunicao das empresas da poca,
que viram nos ideais de neutralidade, simplicidade, ordem e modernidade a sua prpria
chance de refletir essas qualidades.
A dcada de 1950 trouxe uma retomada dos princpios da Bauhaus e foi marcada pelo
Estilo Internacional ou Escola Sua, que buscava a ordem e o rigor em busca da clareza na
mensagem. Nessa poca, designers como Emil Ruder e Joseph Mller-Brockmann instituram
a grade de construo (grid), a valorizao dos espaos em branco e, principalmente, a
tipografia sans serif, encontrando o seu apogeu na fonte digital Helvtica.
Para o designer Alexandre Wollner, pioneiro no ensino de design no Brasil, o design
, mas com a funo, com materiais, com a ergonomia
ligado ao ato de fazer, produzir algo concreto, a partir de regras matemticas e estruturais. A
-
36
concepo de Wollner reflete a sua experincia enquanto parte da conhecida Escola de Ulm, e
por isso se expressa de forma bastante tecnicista.
A Escola de Ulm (1953), localizada na cidade alem de Ulm, inicialmente sofreu uma
influncia grande da filosofia presente na Bauhaus, e na sua primeira fase buscou estabelecer
uma continuidade do que era ensinado na primeira; mas logo novos rumos de ensino
comearam a aflorar por conta do surgimento de um pensamento original e vontade dos mais
jovens de encontrar o seu prprio caminho i
toda soluo criativa deveria passar pelo redimensionamento do uso, da prtica, das funes e
2008, p.170), ou seja, os ulmianos passaram a criticar a concepo
da arte enquanto um domnio esttico separado e do artista como criador privilegiado, alm do
uso constante das formas quadrada e triangular, elementos dominantes na Bauhaus.
O design produzido na Escola de Ulm pode ser traduzido como o reflexo das
transformaes que estavam acontecendo no mundo, como o fim da Segunda Guerra mundial
(1939 1945), e a Guerra Fria (1945 1989). Fatores como a corrida armamentista e
espacial, anseios pela busca de novas tecnologias, influenciaram na face tecnicista que tomou
conta da esttica ulmiana, que agora confiava no racionalismo como determinante para as
solues de design.
Abstrao formal, uma nfase em pesquisa ergonmica, mtodos analticos
quantitativos, modelos matemticos de projeto e uma abertura por princpio para o
avano cientfico e tecnolgico marcam o design ulmiano produzido na dcada de
1960, o que condizia perfeitamente com o entusiasmo tecnicista que se generalizava
na sociedade como um todo durante esses anos de corrida espacial e miniaturizao
eletrnica (CARDOSO, 2008, p. 170).
Mesmo aps o seu fechamento, seus descendentes, ex-alunos e docentes, perpetuaram
o ensino baseado na filosofia ulmiana em outros pases. No Brasil, a tradio dessa escola
pde ser perpetuada a partir da criao da Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI), em
1963 primeira iniciativa de sucesso referente ao ensino de design no pas e a sua
implantao contou com a ajuda de ex-alunos e professores da Escola de Ulm30
.
Outro passo consolidao do ensino formal da rea no Brasil se refere sequncia de
Desenho Industrial, parte do curso de Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
da USP (Universidade de So Paulo) em 196231
. Por conta da influencia estrangeira, a ESDI
tambm tinha como foco a tecnologia voltada para a indstria, mesmo que o parque industrial
nacional ainda estivesse sendo consolidado.
30
Cardoso cita os nomes de Wollner, Edgar Decurtins e Karl Heinz Bergmiller. 31
Em Belm do Par, o curso de Design da Universidade Estadual do Par UEPA s foi criado vrias dcadas
depois, em 1999.
-
37
Como explica Dones (2005), o panorama mundial tambm foi alterado por volta da
dcada de 1960 quando surgiu o movimento hippie, a cultura jovem e o meio underground.
Esses movimentos comearam a questionar a pureza do layout modernista e a se expressar por
um contedo grfico mais pesado e desorganizado, em um momento no qual se descobriu o
poder comunicacional e emocional das letras.
A interdicisplinaridade faz parte do campo do design e por isso mesmo as publicaes
relacionadas filosofia, sociologia e semitica produzidas a partir da dcada de 1970 por
autores como Roland Barthes (1915 1980), Michel Foucault (1926 1984) e Jean
Baudrillard (1929 2007) tiveram impacto profundo nos estudos sobre o design grfico.
Nos ltimos vinte anos, a Cranbrook Academy of Art (fundada em 1920 no estado de
Michigan, Estados Unidos) vm assumindo uma posio de liderana no ensino do design
grfico mundial. A designer Ellen Lupton (1991) descreve que, por volta da dcada de 1980, a
escola passou a adquirir ideais ps-estruturalistas32
, que permitiu aos designers trabalharem a
imagem como algo que pudesse ser to passvel de leitura e interpretao quanto da mera
visualizao. Buscaram-se ento os mltiplos significados das imagens, e no apenas a sua
dimenso esttica.
Essa nova forma de ver o mundo veio de encontro ao clssico design modernista que
submetia uma nica mensagem a uma srie de arranjos formais quando passou a utilizar
rtulos de comidas, e propagandas encontradas em listas telefnicas nas suas expresses
grficas, trazendo para o campo visual do design o elemento do cotidiano, impuro, deixando a
Helvtica de lado por fontes incomuns. Sobre a escola, Dones afirma:
A teoria da desconstruo contribuiu para desafiar o pensamento rgido, os
esquemas visuais, a obsesso pela regularidade e a preciso do design moderno,
demonstrando a importncia da ambiguidade aos olhos de destinatrios capazes de
negociar suas complexidades (DONES, 2005, p. 06).
O pblico consumidor da mensagem comea a ser interpretado enquanto mltiplo e
complexo. A tipografia do sculo XXI tambm foi influenciada pela chegada de tecnologias
que permitiram, alm da manipulao, a criao de fontes. Computadores pessoais e
programas/softwares revelaram designers especializados em criar fontes. Dones cita a revista
Emigre (Califrnia, 1984) como um produto comunicacional importante voltado para a
divulgao desses produtos. Por divulgar o trabalho de diversos designers, a revista se tornou
uma espcie de elo fundamental entre os designers da dcada de 1980.
32
No mesmo artigo, Lupton explica que o Estruturalismo surgiu com o linguista Ferdinand de Saussure, que
dizia que um sinal verbal no possui um significado nele mesmo, mas adquire um significado apenas na relao
com o sistema ou estrutura de uma lngua.
-
38
Para Dones, a tipografia faz parte de um contexto cultural, e deve ser interpretada
como tal. As regras institudas pela Escola Sua ainda no incio do sculo XXI identificam o
pblico como preciso, homogneo, mas as descobertas acadmicas dos anos 1970 mostraram
exatamente o contrrio: o pblico para o qual os projetos grficos falam so pblicos
heterogneos, portadores de culturas, repertrio visual, experincias de vida e que apresentam
necessidades diferentes.
De certa forma, mesmo com todas as influncias internacionais, o Brasil da dcada de
50 ainda possua uma identidade nacional que se dividia entre a tradio artesanal e o
progresso industrial que transparecia nas produes grficas atravs de impressos, capas de
discos e na arquitetura. No ramo de mveis, o marceneiro e designer brasileiro Joaquim
Tenreiro (nascido em Portugal em 1906 1992), deu continuidade e expresso tradio
moveleira brasileira, que datava da poca colonial, e se destacava pelo uso da madeira de lei,
mas tambm refletiu o Estilo Internacional nas pesquisas e tcnicas empregadas33
.
As mudanas estticas e polticas do moderno para o contemporneo retomaram e
tornaram possvel o fortalecimento de um vnculo entre o ps-modernismo e a cultura
popular, ou seja, o despertar pelo fazer local e regional enquanto fontes de inspirao e de
construes simblicas, enquanto que as tendncias globais, muitas vezes homogneas e mais
rigorosas, perdem parte de sua fora no campo grfico na medida em que so descobertas as
complexidades e a personalidade presentes nas tendncias locais.
Descobertas que levaram ao interesse de jovens designers pelas caractersticas
vernaculares. Entre as iniciativas que tratam do tema no cenrio nacional, esto o projeto
Abridores de Letras de Pernambuco34
e o coletivo nascido em Recife Crimes Tipogrficos
(2000) 35
, que visam resgatar a tradio tipogrfica nordestina enquanto o primeiro se baseia
em registros fotogrficos e entrevistas com atores sociais, o segundo se apropria do
conhecimento popular para criao de fontes digitais.
H tambm o coletivo chamado Tipos Populares do Brasil36
, fundado em 2004 e que
age em parceria com os projetos citados anteriormente (FINIZOLA, 2010. p. 17). No meio
acadmico, avanos importantes foram produzidos na rea, incluindo anlises realizadas por
pesquisadores no Norte do pas, alguns presentes na bibliografia utilizada para a composio
deste TCC.
33
Ver Cardoso (2005, p. 162-164). 34
Disponvel em: http://www.designvernacular.com.br/abridoresdeletras/projeto/. 35
Disponvel em: http://www.crimestipograficos.com/?go=about. 36
Disponvel em: http://tipospopulares.flavors.me/#nossos-projetos.
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39
Imagem 12: esquerda, capa do livro Abridores de Letras de Pernambuco. direita, fonte digital criada pelo
projeto Tipos Populares do Brasil e a logomarca do projeto Crimes Tipogrficos.
Fonte: Websites dos respectivos projetos, citado anteriormente37
.
Uma das pesquisas realizadas na Amaznia sobre o assunto realizada por Fernanda
Martins em seu projeto Letras que Flutuam, derivado de sua monografia Letras que Flutuam:
O abridor de letra e a tipografia vitoriana (2008), da Universidade federal do Par. Seu
estudo tem nfase na tipografia pintada nas embarcaes ribeirinhas da Amaznia, sendo que
Martins realizou o levantamento principalmente nas trs capitais do eixo central do rio
Amazonas: Belm, no Estado do Par; e Macap, no Estado no Amap; e Manaus, no Estado
do Amazonas.
Procurou-se traar neste captulo, em linhas gerais, um panorama sobre o design
vernacular, buscando entender no apenas as suas caractersticas, mas tambm as diferenas
que apresenta em relao ao design oficial, e a passagem do pensamento e consequente design
moderno para os dias atuais. O que interessa para este trabalho o modo como o design
oficial foi se elaborando/ reelaborando ao longo do ltimo sculo, e as influncias deixadas
por ele e que puderam ser observadas no design vernacular popular produzido em Belm do
Par.
37
Ver PERNAMBUCO, 2014; BRASIL, 2014; e TIPOGRFICOS, 2014.
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40
3. UM DILOGO DO CONTEMPORNEO
3.1. Sobre os aspectos culturais
Observa-se que o processo do design vernacular com as suas misturas e influncias
apresenta uma ligao intrnseca com a cultura no qual ele originado e as particularidades ali
encontradas. Dessa forma, os modos de viver partilhados pelas pessoas acabam sendo
traduzidos em suas linhas, figuras e significados.
nesta perspectiva que o design vernacular se alimenta da cultura de Belm do Par.
Cidade quente, colorida, erguida em meio a contrastes. Vive-se na beira do rio, e chove sem
aviso, toda tarde, mas a populao j est acostumada a isso. Do mesmo ngulo de viso
pode-se enxergar um canal poludo, casas da periferia, e prdios luxuosos destacados no
horizonte. Parte da cidade tem bastante verde, e mangueiras que formam verdadeiros tneis
arbreos sobre nossas cabeas, mas ao dobrar nas esquinas existem cimento e trnsito catico.
Ao caminhar pelas ruas e avenidas escuta-se de tudo: rock, brega, tecnobrega, funk, pagode,
carimb, msica popular brasileira, msica internacional. Letras desenhadas com afinco
disputam os espaos dos muros e fachadas com impressos e criaes feitas no computador.
O pesquisador Fbio Castro (2010, p.47) oferece caminhos para se entender a
complexidade da cultura de Belm do Par, sobretudo as transformaes que ocorreram nas
Belm, primeira etapa da colonizao portuguesa na Amaznia e, portanto, seu
espao mais tradicional, rene a maior populao urbana da regio e seu sistema
mais expressivo de produo intelectual, cientfica, artstica e jornalstica, devendo
ser apontado, ainda, seu papel como centro religioso. Com efeito, essa cidade
cumpriu, historicamente, o papel de centro intelectual da Amaznia portuguesa. [...]
Apesar dessa importncia, esse papel de centro intelectual vem sendo transformado
ao longo das trs ltimas dcadas, perodo no qual se intensificaram os
empreendimentos transformadores do espao amaznico, gerados e geridos pelo
Brasil. (CASTRO, 2010, p.47).
Assim, Castro se refere, dentre outras coisas, as transformaes provocadas no
territrio amaznico a partir da Ditatura Militar (1964 1985) e seus grandes projetos
instaurados na regio. Como consequncia dessa integrao da Amaznia ao Brasil e o uso
econmico do seu espao, pode-se citar o aumento da migrao de pessoas de outros estados
para a regio, alm do surgimento de diversos conflitos entre eles o agrrio e ambiental.
Certamente que as aes governamentais tambm tiveram impacto nas populaes
tradicionais locais e alteraram o modo de viver amaznico. O contato mais prximo com
-
41
novas culturas que se instalaram no estado do Par, bem como com os costumes do restante
do pas, tambm configuram como fator determinante para essa mudana cultural local.
Mas para que se possa entender a complexidade do que a cultura, j que no presente
trabalho fala-se sobre culturas cultura amaznica, cultura popular, cultura urbana, recorrem-
se a algumas reflexes tericas para embasar as futuras interpretaes do objeto estudado.
No Dicionrio Aurlio, cultura pode ser: a) Ato, arte, modo de cultivar; b) Lavoura; c)
Conjunto das operaes necessrias para que a terra produza; d) Vegetal cultivado; e) Meio de
conservar, aumentar e utilizar certos produtos naturais; f) Aplicao do esprito a
(determinado estudo ou trabalho intelectual); g) Instruo, saber, estudo; h) Apuro; perfeio;
cuidado38
.
Nota-se, na descrio acima, um apego forte a caractersticas agrrias, enquanto que o
aspecto simblico da cultura est em segundo plano, se referindo somente dimenso
intelectual da cultura, relacionada educao. Por conta disso, optou-se por buscar na
antropologia e na sociologia outros conceitos que expressem melhor o que se acredita neste
trabalho.
Em seu livro Cultura: um conceito antropolgico (2003), o pesquisador Laraia
explora diversas questes relacionadas ao tema, incluindo o modo como esse conceito foi
tratado ao longo do tempo. Trata-se de um apanhado entre as teorias j superadas e as teorias
modernas, e discusses de assuntos que, mesmo j sem fora no campo acadmico, ainda
permanecem na fala popular.
Conforme ele explica, entre o sculo XVIII e o sculo XIX, o termo germnico kultur
esa
civilization referia-se principalmente s realizaes ma ).
Atribui-se ao antroplogo Edward Tylor (1832 1917) a tarefa de sintetizar os vocbulos na
palavra culture, que reunia em sete letras todas as habilidades ou realizaes humanas.
Dentre as teorias j superadas sobre a cultura, duas ainda permanecem vivas na
linguagem popular: o determinismo biolgico, que atribui capacidades inatas s raas e etnias,
e do determinismo geogrfico, que considera ser possvel que o ambiente fsico condicione a
diversidade cultural.
O determinismo biolgico teve um impacto grande na sociedade moderna, instigando
e respaldando aes etnocntricas. Talvez o exemplo de maiores propores tenha sido a
Segunda Guerra Mundial (1939 1945), que colocou em discusso a superioridade da raa
38
Disponvel em: http://www.dicionariodoaurelio.com/cultura.
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42
ariana alem39
. Laraia (2003, p. 18) explica que, aps esse evento, em 1950, antroplogos,
fsicos culturais, geneticistas e pessoas de diversas reas acadmicas, sob a proteo da
Unesco, se reuniram para redigir uma declarao que questionava a falta de provas dessa
corrente terica, e destitua assim sua validade.
Em relao ao segundo tpico, a partir de 1920, antroplogos como Franz Boas (1858
1949) e Alfred Kroeber (1876-1960) demostraram no apenas que existe uma limitao,
mas que tambm possvel e comum existir uma grande diversidade cultural em um mesmo
espao ou em lugares com condies geogrficas semelhantes. Ou seja, varia de cultura para
cultura a forma na qual o meio ambiente ser explorado, e no o contrrio, levando em
considerao os aspectos simblicos e as necessidades de determinada sociedade.
Laraia atribui ao alemo Franz Boas a contestao da abordagem evolucionista da
cultura e o consequente desenvolvimento do particularismo histrico, segundo o qual cada
cultura segue o seu prprio caminho de acordo com os eventos histricos que surgiram. Ou
seja, no existe uma nica cultura em etapas evolucionais diferentes, na qual os povos
primitivos estariam localizados na base, at evoluir e se aproximar dos povos europeus, mais
ao topo. Pelo contrrio, o que ocorre na realidade uma abordagem multilinear (2003, p. 36).
J o antroplogo americano Alfred Kroeber mostrou que, a partir da cultura, o ser
humano pde se distanciar do mundo animal e de suas limitaes orgnicas. Isso significa
que, mesmo frgil em comparao a outros animais em quesitos como fora, rapidez, e outros,
o homem conseguiu sobreviver ao ser capaz de reproduzir e acumular conhecimento. No
foram necessrias mudanas biolgicas e sim o desenvolvimento de um sistema de
comunicao e escrita, em que geraes inteiras podem ser beneficiadas pelos muitas
descobertas j realizadas no passado. Alm disso, Kroeber destaca que a satisfao das
necessidades bsicas dos homens varia de sociedade para sociedade, tornando o homem
predominantemente cultual (LARAIA, 2003, p. 24).
As diferenas existentes entre os homens, portanto, no podem ser explicadas em
termos das limitaes que lhes so impostas pelo seu aparato biolgico ou pelo seu
meio ambiente. A grande qualidade da espcie humana foi a de romper com suas