Tradução da banda sonora de Letter to Jane (Godard/Gorin) por Luiz Rosemberg Filho e Mateus...

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  JE AN- LUC  GODARD E  JE AN - PIERRE GORIN Investigação sobre uma imagem (Carta a Jane) 1 DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 8, N. 1, P. 136-159, JAN/JUN 2011

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Tradução da banda sonora do filme Letter to Jane, de Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin, por Luiz Rosemberg Filho e Mateus Araújo Silva

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  • jean-luc godard e jean-pierre gorin

    investigao sobre uma imagem (carta a jane) 1

    DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 8, N. 1, P. 136-159, JAN/JUN 2011

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    Cara Jane,

    No folheto publicitrio que acompanha Tout va Bien2 nos festivais de Veneza, Cartago, Nova York e San Francisco, preferimos incluir, em vez das fotos do filme, uma foto sua no Vietn. Encontramos essa foto em um nmero de LExpress3 no incio de agosto de 72, e pensamos que ela nos permitir falar muito concretamente dos problemas levantados por Tout va Bien.

    No se trata, absolutamente, de desconversar e no falar de Tout va Bien, como se temssemos falar deste filme. De modo algum. Mas trata-se tambm de no marcar passo (como as tropas do fantoche Thieu4 em Quang-Tri), o que, mais cedo ou mais tarde, leva a pisotear os outros para sair do atoleiro (como os obuses da 7 frota sobre Quang-Tri5). Trata-se, portanto, de fazer um desvio, mas um desvio direto, por assim dizer. Isto , um desvio que nos permitir enfrentar diretamente os terrveis pequenos problemas colocados, bem ou mal, pelo filme que rodamos juntos no incio deste ano.

    E em vez de esquadrinhar desde j as qualidades e os defeitos de nosso filme, preferimos convidar os crticos, os jornalistas, os espectadores, a fazerem conosco o esforo de analisar essa sua foto no Vietn, tirada alguns meses depois do filme que fizemos em Paris.

    Com efeito, essa foto e o curto texto que a acompanha nos parecem capazes de resumir Tout va Bien melhor do que poderamos faz-lo. E isto por uma razo muito simples. Essa foto responde mesma pergunta que o filme levanta: que papel devem desempenhar os intelectuais na revoluo? A esta pergunta, a foto d uma resposta prtica (a resposta da sua prtica). De fato, essa foto te mostra, Jane, a servio da luta pela independncia do povo vietnamita.

    A essa questo, Tout va Bien tambm responde, mas no do mesmo modo, pois, menos certo que a foto das respostas a dar, o filme faz primeiro outras perguntas. E estas equivalem, no fim das contas, a no levantar, tal e qual, a questo dos intelectuais e da revoluo. Como ento coloc-la?

    O filme ainda no responde com exatido. Mas a maneira pela qual ele ainda no responde , de fato, um modo indireto de fazer novas perguntas, pois de nada serve dar antigas respostas s questes colocadas pelo rumo atual das lutas revolucionrias.

    1. Este texto constitui a banda sonora do filme Letter to Jane (Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin, 1972). Publicado originalmente na revista francesa Tel Quel, n.52, Inverno de 1972 (p.74-90), ele foi republicado mais tarde, sob o ttulo Enqute sur une image, no volume Godard par Godard, organizado por Alain Bergala (Paris: Cahiers du Cinma / Ed. de lEtoile, 1985, p.350-362). Assinada por Luiz Rosemberg (a quem devemos, entre muitas outras coisas, a organizao do precioso volume Jean-Luc Godard, Rio de Janeiro, Taurus, 1987, 257p.), uma primeira verso desta traduo tomou como base o texto de Tel Quel e saiu publicada na revista eletrnica Farnel, Rio de Janeiro, n.0, setembro de 2006. Muito modificada, a traduo de Rosemberg reaparece aqui co-assinada, com seu acordo, por Mateus Arajo, que assumiu a tarefa de revis-la atentamente do incio ao fim, desta vez a partir do texto includo no Godard par Godard. [N.d.E].

    2. Tout va bien (Godard & Gorin, Frana, 1972), com Jane Fonda e Yves Montand nos papis principais. [N.d.T].

    3. Revista semanal francesa (fundada em 1953), de orientao centrista poca do filme. [N.d.T].

    4. General Nguyen Van Thieu, ento presidente do Vietn do Sul (de 1967 a 1975) aliado aos Estados Unidos na guerra contra o Vietn do Norte e o Vietcongue. [N.d.T].

    5. Ao mencionarem a provncia de Quang-Tri nestes dois parnteses vizinhos, os cineastas aludem a vitrias militares (de fevereiro de 1968 ou maro de 1972) do coletivo Vietcongue / Vietn do Norte sobre as tropas do Vietn do Sul e seus aliados americanos naquela regio, bem como pesada reao militar americana que se seguiu, ali como alhures. [N.d.T].

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    preciso tambm aprender a formular tais questes. E aprender com aqueles que, embora ainda no tenham tido tempo de redigir claramente essas novas questes, j conquistaram o terreno em que elas podero florescer e se desenvolver, e o conquistaram atravs de uma prtica nova.

    Dizamos que a nossa maneira de no dar ainda uma resposta, como davam os vietnamitas e voc naquela fotografia, era, na verdade, uma forma indireta de levantar novas questes. Uma forma indireta. Uma forma desviada. Agora voc pode compreender porque a necessidade de um desvio antes de falar do filme. E porque um desvio pelo Vietn. Primeiro, porque todo mundo concorda que l se colocam questes realmente novas. E depois, porque voc estava com eles aps ter estado conosco.

    Da, ao olharmos essa foto de uma atriz no teatro das operaes, o nosso desejo de interrog-la. Interrogar no a atriz, mas a foto. E, para ns, isto equivale a fazer algumas novas perguntas para a clssica resposta que os vietnamitas e que voc, tirando e divulgando esta foto, deram a essa clebre questo dos intelectuais.

    Algo mais tambm contou em nossa deciso de aproveitar esta foto para fazer um desvio pelo Vietn. Esse algo nosso desejo de falar realmente do filme com os espectadores, sejam eles jornalistas ou no. Todo mundo seu prprio jornalista e editorialista em funo de como narra seu dia, o representa, faz para si mesmo seu cineminha a propsito da sua atividade material e cotidiana. E precisamente desse cineminha e no do outro, inventado por Lumire e pela revoluo industrial, que queremos enfim falar com o espectador. Mas, para isso, precisamos de um desvio. Afinal, assim como um filme uma espcie de desvio que nos devolve a ns mesmos, para voltarmos ao filme devemos fazer esse desvio em ns mesmos. E aqui, nos Estados Unidos, ns mesmos quer dizer primeiro, ainda hoje, o Vietn.

    Explicaremos isto um pouco mais detidamente. Pensamos que importante e urgente falar um pouco, realmente, com aqueles que se deram ao trabalho de ver nosso filme. Realmente quer dizer l onde eles esto e tambm aqui onde estamos. preciso portanto fazer com que eles possam, realmente, apresentar questes se quiserem, ou dar respostas s perguntas que fizemos. preciso que eles possam refletir. E refletir, antes de tudo, sobre

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    este problema das perguntas e das respostas. necessrio que ns tambm possamos ser, realmente, afetados pelas perguntas (ou respostas) dos espectadores, e que possamos responder (ou questionar) com algo diferente de respostas (ou perguntas) j prontas a perguntas (ou respostas) j prontas tambm. Mas feitas por quem? Para quem? Contra quem?

    Ou seja, para introduzir uma possibilidade real de discusso a propsito de Tout va Bien, nos situaremos fora de Tout va Bien. Para falar desta mquina, sairemos da fbrica que a utiliza. Encontraremos nossa base de discusso fora do cinema, mas para voltarmos melhor a ele. E quando tivermos voltado, para partirmos novamente com melhor passo em direo aos problemas reais de nossa vida material real, da qual o cinema ter sido apenas um dos elementos.

    No vamos deixar, nem abandonar Tout va Bien. Ao contrrio, vamos partir do filme, partir para ir a outro lugar, ao Vietn por exemplo, j que voc est voltando de l. Mas, e isto o importante, vamos para l com nossos prprios meios.

    De que meios se trata? De nossos meios tcnicos de trabalho e do uso social que deles fazemos (voc nessa foto, no Vietn, ns com o filme em Paris). E exatamente a partir deste uso que poderemos julgar melhor. E por uma vez no estaremos ss, o espectador tambm estar ali, ele produzir ao consumir, e ns consumiremos ao produzir.

    Talvez tudo isso lhe parea complicado. que, como dizia Vertov a Lnin, a verdade simples, mas no simples diz-la, e o tio Brecht havia percebido, em sua poca, cinco dificuldades para diz-la. Bem. Expliquemos isto de outro modo.

    Nos dias de hoje, diz-se frequentemente que o cinema deve servir ao povo. Ok. Ao invs de teorizar sobre os defeitos e as qualidades de Tout va Bien, iremos ao Vietn. Mas iremos com e pelos meios de Tout va Bien. Vamos observar, se podemos dizer assim, como Tout va Bien trabalha no Vietn. Em seguida, deste exemplo prtico poderemos tirar, eventualmente, algumas concluses sobre as coisas a fazer e a evitar, cada um de ns ali onde est, com sua mulher, seu patro, seus filhos, seu dinheiro, seus desejos, etc.

    Em suma, vamos usar esta foto para ir ao Vietn investigar esta questo: como o cinema pode ajudar o povo vietnamita a conquistar sua independncia? E, como j dissemos vrias vezes,

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    no somos os nicos a usar essa foto para ir ao Vietn. Milhares de pessoas j o fizeram, provavelmente quase todo mundo aqui j viu essa foto e, durante alguns segundos, sua maneira, se serviu dela para ir ao Vietn. exatamente isso que julgamos importante saber: como ele se serviu dessa foto para ir ao Vietn; na verdade, como ele foi ao Vietn. Porque o doutor Kissinger6 tambm vai ao Vietn vrias vezes por ano.

    E algum como o doutor Kissinger, exatamente, nos perguntar o por qu dessa foto, e qual relao pode haver entre essa foto e Tout va Bien. E ele e seus amigos diro que isto no srio, que seria melhor falarmos do filme, da arte, etc. Mas preciso fazer o esforo de ver que reflexes deste tipo falsificam a si mesmas ao se formularem assim, elas complicam tudo e impedem na verdade outras perguntas mais simples (como se diz das pessoas simples).

    Por exemplo, antes de dizer qual relao, preciso perguntar primeiro: existe uma relao? E se existe, s depois perguntar qual ela. E em seguida, s tendo descoberto qual tal relao (aqui descobriremos mais adiante que a relao entre nosso filme e essa foto o problema da expresso) poderemos eventualmente julgar sua importncia, isto , estabelecer outras relaes com outras perguntas importantes e com outras respostas importantes.

    Isto parece bobagem, mero blblbl, mas j na outra ponta desta nova pequena cadeia de perguntas, a questo da importncia, que outros chamam de questo do resultado prtico, se afigura extremamente importante.

    E isso porque o coletivo Vietn do Norte / Vietcongue j respondeu pergunta sobre a importncia dessa foto, ao conseguir faz-la publicar em toda parte no mundo livre (esse mundo livre que o encarcera), mostrando com isso a importncia que atribua a essa foto, a importncia que atribua questo do resultado prtico, a importncia que atribua questo da importncia.

    Esta foto , portanto, uma resposta prtica que os norte-vietnamitas, com sua ajuda, Jane, decidiram dar famosa pergunta que fazamos h pouco: que papel deve desempenhar o cinema no desenvolvimento das lutas revolucionrias? Pergunta clebre, que ecoa uma outra no menos famosa: qual o papel dos intelectuais na revoluo?

    A esta pergunta, qual essa foto d uma resposta prtica (a resposta da prtica de um povo; a foto feita e publicada, e

    6. Henry Kissinger, diplomata naturalizado americano,

    conselheiro de segurana nacional do governo de

    Richard Nixon poca do filme. Responsvel por graves crimes de guerra no Vietn, chegou a dividir

    com Le Duc Tho o prmio Nobel da Paz em 1973 pelo cessar fogo.

    [N.d.T].

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    feita desse modo para se ter a certeza de public-la em toda parte, como de fato ocorreu, do contrrio no a teramos), a essa pergunta, ocorre que Tout va Bien tambm responde. Mas de outro lugar e de outra maneira. Uma maneira que consiste na verdade em no dar imediatamente este tipo de resposta. Uma maneira que consiste em dizer: aqui na Frana, onde estamos, em 1972, governados pelos amigos dos americanos e dos russos, nem tudo est to claro ou to evidente (lembramos, particularmente, de Fidel Castro dizendo na ONU que, para os revolucionrios, nunca havia verdades evidentes, o imperialismo que as inventara, e os grandes se serviam habilmente delas para oprimir os pequenos).

    E j que nem tudo evidente, Jane, continuemos a nos perguntar, mas nos esforcemos para faz-lo diferentemente. Numa palavra, faamos perguntas novas para podermos dar novas respostas. Por exemplo, observemos como os vietnamitas traduzem seu combate e nos questionemos, j que tambm queremos traduzir nossa luta. E, em primeiro lugar, perguntemo-nos honestamente o que nos permite dizer que realmente combatemos.

    Mas talvez nesse ponto, Jane, voc nos pergunte: por que essa foto minha e no uma de Ramsey Clarke7, por exemplo? Ele tambm estava no Vietn, tambm testemunhou o bombardeio dos diques. Simplesmente voc, Jane, por causa de Tout va Bien, e porque seu estatuto social no filme era o mesmo que nessa foto. Voc uma atriz. Somos todos atores no teatro da histria, verdade, mas alm disso, voc faz cinema e ns tambm. Ento, voc poderia dizer: por que no Yves Montand no Chile? Ele tambm estava no filme. verdade. Mas acontece que os revolucionrios chilenos no julgaram oportuno divulgar fotos de Yves, ao passo que os revolucionrios vietnamitas julgaram oportuno, com teu acordo, divulgar fotos tuas (na verdade, fotos de teu acordo com a causa vietnamita).

    Alm disso, h outro problema, que no podemos evitar. Somos dois rapazes que rodamos Tout va Bien, e voc uma moa. No Vietn, a questo no se coloca assim, mas aqui sim. E enquanto mulher, voc ficar certamente um pouco, ou muito, magoada pelo fato de criticarmos, um pouco, ou muito, sua maneira de atuar nesta foto. Magoada, porque so ainda e sempre os caras que se viram para atacar as moas. S por isso, j esperamos que voc possa vir responder de viva-voz nossa

    7. Jurista e ativista americano de orientao liberal (no sentido americano), muito combativo na luta pelos direitos civis e contra a agresso ao Vietn. [N.d.T].

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    carta, medida que a leiamos em dois ou trs lugares dos Estados Unidos.

    Mas verdade tambm que nos Estados Unidos e na Europa ainda estamos nessa situao (ou j estamos nela). E voc e ns estamos mergulhados na mesma gua, uma gua turva8, da qual essa foto pode servir de revelador. Ns partimos da. De voc nos Estados Unidos. De ns em Paris. De voc e ns em Paris. De voc no Vietn. De ns em Paris te olhando no Vietn. De ns que vamos aos Estados Unidos. E de todo mundo aqui nesta sala de cinema que nos escuta e te observa. Partimos de tudo isso. Tudo isso est organizado de um certo modo, funciona de um certo modo. Queremos discutir isso, partir da. Partir de Tout va Bien, ir ao Vietn, voltar ao Tout va Bien, isto , voltar do Vietn a esta sala onde se projeta Tout va Bien e depois voltar para casa, e amanh voltar fbrica.

    Para falar de tudo isso, mostramos essa foto s pessoas. Ou melhor, tornamos a mostr-la, pois os norte-vietnamitas e voc j a tinham mostrado. Dito de outro modo, perguntamos e nos perguntamos: tnhamos olhado esta foto? O que tnhamos visto nela? E sobre cada pergunta descobrimos outra. Por exemplo: como olhamos esta foto? Como nosso olhar funcionou ao olh-la? E o que o faz funcionar assim e no de outro modo? E ainda outra pergunta: o que faz com que nossa voz traduza nosso olhar mudo desse modo e no de outro?

    E acontece precisamente que Tout va Bien faz todas essas perguntas. Elas podem se resumir grande questo do papel dos intelectuais nas lutas revolucionrias. Ou melhor, comeamos a ver que essa grande e famosa questo dos intelectuais se bloqueia a si mesma, quando a formulamos tal e qual. E bloqueia as outras. E, finalmente, no mais uma questo que pertence ao campo da revoluo. A questo atual da revoluo (vamos descobri-la a propsito dessa foto, e depois a propsito do filme) seria antes: como mudar o velho mundo? E vemos imediatamente que o velho mundo do Vietcongue no o mesmo que o de um intelectual ocidental, que o velho mundo de um palestino no o mesmo que o de um menino negro do gueto, que o velho mundo de um operrio especializado da Renault no o mesmo de sua namorada.

    Vemos que essa foto d, portanto, uma resposta prtica a essa questo de mudar o velho mundo. Vamos, portanto, examinar

    8. Dificilmente traduzvel, o original dizia on est dans le

    mme bain, un grand bain/bordel dont cette photo peut servir de

    rvlateur (Godard par Godard, 1985, p.353). [N.d.T].

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    essa foto/resposta, investig-la. Vamos apontar indcios. Vamos analis-los e sintetiz-los. Tentaremos explicar a organizao dos elementos que compem essa foto. Vamos explic-los, por um lado, como se se tratasse de um ncleo fsico-fotogrfico e, por outro lado, como se tratasse de uma clula fotogrfico-social. Em seguida, tentaremos relacionar a pesquisa cientfica e a pesquisa mais diretamente poltica (de onde vm as ideias corretas: da luta pela produo, da luta de classes e da experimentao cientfica - Mao).

    Realizar esta investigao, interrogar esta foto, o que seno tratar de saber como foi dada (nas condies da luta no Vietn) a resposta que a foto d? Veremos, ento, se essa resposta inteiramente satisfatria para todo mundo (para quem? Contra quem?) e se, talvez, no comeam a surgir outras questes, aquelas mesmas colocadas, bem ou mal, por Tout va Bien.

    Veremos, por exemplo, que uma parte importante da foto (a expresso da atriz, a relao boca/olhar), em nosso entender, no pode nos satisfazer, na Europa ocidental, da mesma maneira que a seus atores, aqueles que tiraram ou decidiram tirar essa foto (o coletivo Vietn do Norte/Vietcongue), o que absolutamente normal primeira vista, dadas as condies diferentes; mas ainda ser preciso considerar atentamente, e to obstinadamente quanto eles, o que condiciona esse normal.

    Dizer isto no equivale a fazer simplesmente como a maioria dos partidos comunistas do ocidente e seus apoiadores (o Papa, a ONU, a Cruz Vermelha) que dizem simplesmente: ajudemos o Vietn a obter a paz. Ao contrrio, dizer o que dissemos algo muito mais preciso. Por exemplo: ajudemos a aliana do Vietn do Norte e do Vietn do Sul a obter a paz. E ainda mais precisamente: j que, ao mudar seu velho mundo, o Vietn nos ajuda a mudar o nosso, como podemos ajud-lo realmente em retribuio? E j que o coletivo Vietn do Norte/Vietcongue luta, critica e transforma o Sudeste Asitico, como podemos lutar do nosso lado para mudar a Europa e a Amrica?

    Claro, isto algo mais longo de dizer (do que paz no Vietn) e mais minucioso de fazer (do que criar dois ou trs Vietns), e por isto que Marx j reclamava (no prefcio da primeira edio de O Capital) leitores sem medo das mincias para derrubar o rei do inferno e liberar os diabinhos.

    Posto diante dessa foto por voc, Jane, e pelos vietnamitas,

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    h alguns meses, posto novamente diante dela agora por ns mesmos, cada um pode fazer, se quiser, sua prpria investigao. Poderemos comparar depois, livremente, os resultados. Poderemos tomar a palavra sem, por isto, tir-la dos que escutam. Em suma, poderemos talvez, por um breve instante, dizer menos bobagem sobre ns e a revoluo.

    Uma ltima coisa. Para que voc no se sinta pessoalmente atacada (mas sem realmente poder evit-lo, e pensamos que a questo est mal colocada desse modo, e que, no final desta carta, tambm teremos progredido nisso, e por isto precisaramos muito que voc viesse nos responder diretamente, pois no te escrevemos s como realizadores de Tout va Bien, mas tambm como leitores desta foto, e voc reconhecer que primeira vez que pessoas que viram uma foto sua lhe escrevem deste modo a propsito dessa sua foto que viram na imprensa), para que no se sinta diretamente visada, como se diz, para que sinta que visamos no Jane, mas uma funo de Jane Fonda, ao interrogar essa foto falaremos de voc na terceira pessoa. No lhe diremos Jane fez isto ou aquilo, diremos a atriz ou a militante, assim como faz, alis, o texto que acompanha a foto.

    Eis aqui, ento, a nosso ver, quais so os principais elementos (e os elementos dos elementos) que desempenham um papel importante nesta fotografia publicada na revista francesa LExpress do incio de agosto de 1972.

    elementos elementares Esta foto foi tirada a pedido do governo do Vietn do

    Norte, representando nessa ocasio a aliana revolucionria entre os povos do Vietn do Sul e do Vietn do Norte.

    Essa foto foi tiradaporJosephKraft,definidoaopdafoto num texto redigido no por quem participou da ao de tirar a foto, mas por aqueles que a divulgam; isto , por um ou vrios redatores de LExpress, sem consulta delegao norte-vietnamita na Frana (verificamos isso).

    Esse textodizque se tratadeumdosmais conhecidose moderados jornalistas americanos Diz tambm que a atriz uma militante radical pela paz no Vietn. Mas o texto no fala dos vietnamitas que vemos na foto. No diz, por exemplo, que o vietnamita que no se v, ao fundo, um dos vietnamitas menos conhecidos e menos moderados.

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    Essafoto,comotodafoto,fisicamentemuda.Efalapelaboca da legenda situada ao seu p. Essa legenda no sublinha, no repete (pois a foto fala e diz coisas a seu modo) que a militante ocupa o primeiro plano e o Vietn, o fundo. A legenda diz: Jane Fonda interroga habitantes de Hani. Mas o jornal no publica as perguntas feitas pela atriz, nem as respostas dadas pelos representantes do povo vietnamita ali fotografados.

    Jpodemosnotarqueesta legenda,naverdade,mentetecnicamente. Com efeito, ela no deveria dizer que Jane Fonda interroga, mas que Jane Fonda escuta. Isso salta aos olhos to certamente quanto um raio laser. E talvez esta escuta no tenha excedido 1/250 de segundo, mas foi este 1/250 que se registrou e difundiu.

    Provavelmente,aofalarassimalegendaquersimplesmentedizer que se trata de um instantneo tirado durante uma discusso em que a atriz/militante interrogava, realmente, habitantes de Hani, e que no se deve dar importncia a esse detalhe da boca fechada. Mas veremos mais adiante que no se trata de um acaso, ou melhor, que se algum acaso existiu, ele foi em seguida explorado no interior da necessidade capitalista, da necessidade para o capital de mascarar o real no momento mesmo em que o desmascara, ou seja, de enganar sobre a mercadoria.

    elementos menos elementaresA posio da cmera fotogrfica chamadade contra-

    plonge. Ela no hoje, na histria da fotografia, uma posio inocente (tinha sido muito bem definida tcnico-socialmente, embora inconscientemente, por Orson Welles em seus primeiros filmes). Hoje, por exemplo, o fascista Clint Eastwood sempre filmado em contra-plonge.

    A escolha do enquadramento tampouco inocente ouneutra: enquadra-se a atriz que olha e no o que ela olha. Enquadra-se a atriz, portanto, como se ela fosse a vedete. E isto porque, de fato, a atriz uma vedete internacionalmente conhecida. Em suma: por um lado, enquadra-se a vedete militando, e por outro, no mesmo movimento enquadra-se tambm a militante como vedete. O que no a mesma coisa. Ou melhor, o que pode ser a mesma coisa no Vietn, mas no na Europa ou nos Estados Unidos.

    Napginaseguinte,vemosderestonooqueamilitante

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    olhou nessa foto, e sim o que ela viu noutros momentos. Em nossa opinio, a mesma cadeia de imagens do mesmo tipo que as transmitidas pelas cadeias de televiso e jornais do mundo livre. Imagens como j vimos centenas de milhares de vezes (to frequentemente quanto as bombas) e que no mudam nada, exceto entre os que lutam para organizar esta cadeia de imagens de certa maneira, a sua (os 7 pontos do GRP9). Na verdade, se esta reportagem fosse assinada por um Dupont ou um Smith, a nosso ver os mesmos jornais a rejeitariam como banal demais. Realmente, para os meninos de uma comunidade agrcola da periferia de Hani, deve ser banal reconstruir, digamos, pela vigsima vez, sua escola destruda pelos avies Phantom do doutor Kissinger. Mas desta banalidade extraordinria, claro, ningum falar, nem a militante transformada em vedete, nem LExpress.

    No se dir nada tampouco sobre o que puderam sedizer a atriz americana e suas irms, as atrizes vietnamitas que podemos ver tambm em foto na pgina seguinte. A atriz americana perguntou como se atua no Vietn, ou como algum que atua em Hollywood pode representar quando est em Hani, de onde volta a Hollywood? Em nossa opinio, se LExpress no fala de nada disso, porque a atriz americana tambm no fala.

    verdadequeamilitantefaloudasbombasdefragmentaoe dos diques. Mas no se deve esquecer que a militante tambm uma atriz, ao contrrio do tribunal Russel ou de Ramsey Clarke, por exemplo. E convm lembrar que, precisamente por ela ser atriz, deve-se prestar ateno na Casa Branca que tentar, se a deixarem, dizer que essa atriz foi manipulada e recita um texto decorado. Tais crticas podem facilmente destruir todos os esforos da atriz e da militante. E deve-se ver porque essa destruio possvel. Para ns, nesse caso, porque a atriz militante no falou dos diques a partir, por exemplo, de uma atriz vietnamita que os conserta primeiro, para dar em seguida um espetculo teatral num vilarejo ameaado pela ruptura dos diques.

    Parece-nos j a este respeito que, se a militantepartisse da atriz (e o que fazem, a seu nvel, os vietnamitas que a utilizam), ela poderia comear a desempenhar seu papel historicamente (historicamente), de um modo diferente do que se faz em Hollywood. Talvez os vietnamitas ainda no o necessitem diretamente neste terreno, mas os americanos provavelmente

    9. GRP, Governo Revolucionrio Provisrio da Repblica do Vietn

    do Sul, foi um rgo central criado em 1969 naquele pas para dirigir a ao da Frente

    Nacional de Libertao, lutar contra o exrcito americano e

    derrubar o governo de Nguyen Van Thieu. Aps a vitria das

    foras revolucionrias em 1975, o GRP se torna o governo oficial do

    Vietn do Sul. [N.d.T].

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    sim, e, portanto, indiretamente, os vietnamitas (reencontramos aqui a necessidade do desvio. Os vietnamitas so obrigados a fazer um desvio pelos Estados Unidos).

    Nessafoto,nessereflexodarealidade,duaspessoasestofotografadas de frente, as outras de costas. Dessas duas pessoas, uma ntida, a outra esfumada. Na foto, a americana famosa ntida e o vietnamita annimo, esfumado. Na realidade, a esquerda americana que esfumada e a esquerda vietnamita, extraordinariamente ntida. Mas na realidade, tambm a direita americana que continua sendo extraordinariamente ntida, enquanto a direita vietnamita, a vietnamizao, cada vez mais esfumada. O que pensar, agora, da moderao [mesure] de Joseph Kraft, que mediu [a mesur] todas as contradies, e que regulou o diafragma e a distncia em funo disso? Tudo isso foi medido, como vimos a propsito do enquadramento, com uma certa finalidade, a de focar a estrela militando e obter, assim, um certo produto, uma certa ideia/mercadoria, e isto novamente com um certo propsito. A produo deste produto, vale lembrar, est diretamente controlada pelo governo do Vietn do Norte. Mas sua difuso fora do Vietn no mais, ou muito indiretamente (nem sequer falamos da ao retroativa dessa difuso sobre a produo). Essa difuso est controlada pela cadeia de televises e jornais do mundo livre. H, portanto, uma parte do desenho que escapa aos desenhistas. Qual parte? E de qual partida de qual jogo se trata? E jogado por quem? Para quem? Contra quem? Digamos, simplesmente, agora (voltaremos a isso mais adiante) que se examinamos a relao ntido/esfumado expressa pelos dois rostos, percebemos algo extraordinrio: o rosto esfumado o mais ntido e o rosto ntido o mais esfumado. O vietnamita pode se permitir ser esfumado por ser, h muito, ntido na realidade. O americano obrigado a ser ntido (e o esfumado vietnamita quem o obriga a isso, de uma forma muito ntida). O americano obrigado a focar nitidamente seu real esfumado.

    elementos de elementosEssafotoduplicaoutrafotodaatrizquefiguravanacapa

    do mesmo nmero de LExpress. Este termo capa [couverture] muito eloquente, se nos damos ao trabalho de ver que uma foto pode encobrir tanto quanto descobrir. Ela impe o silncio

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    ao mesmo tempo em que fala. A nosso ver, isso uma das bases tcnicas do duplo aspecto de Jekyll e Hyde, capital fixo e capital varivel, assumido pela informao/deformao quando ela se transmite por imagens/sons numa poca como a nossa, a do declnio do imperialismo e da tendncia geral revoluo.

    Aesquerdaamericanadiz,frequentemente,queatragdiaest no no Vietn mas nos Estados Unidos. A expresso do rosto da militante nessa foto , de fato, uma expresso de atriz de tragdia, mas uma atriz formada social e tecnicamente por suas origens, isto , formada/deformada na escola hollywoodiana do show-biz stanislavskiano.

    AexpressodamilitanteeraamesmaemTout va Bien, bobina 3, quando, atriz, ela ouvia uma figurante cantar um texto de Lotta Continua10.

    A atriz tambm tinha este tipo de expresso quando,em Klute11, olhava com ar compassivo e trgico seu amigo, um policial interpretado por Donald Sutherland, e decidia passar a noite com ele.

    Poroutrolado,estejeraomesmotipodeexpressoqueHenry Fonda usava nos anos 40 para interpretar o trabalhador explorado de As vinha da Ira12, do futuro fascista Steinbeck. E ainda mais longe na histria paterna da atriz, no interior da histria do cinema, esta tambm a expresso que Henry Fonda havia usado para lanar aos negros olhares profundos e trgicos em Young Mr. Lincoln13, do futuro almirante de honra da Marinha, John Ford.

    Por outro lado ainda, encontramos essa expresso nocampo oposto, quando John Wayne se compadece dos estragos da guerra do Vietn em Os Boinas Verdes14.

    Emnossaopinio,essaexpressofoitomadadeemprstimo(juros) mascara cambista do New Deal de Roosevelt. Na verdade, uma expresso de expresso, surgida por um acaso necessrio no momento do nascimento econmico do cinema falado. uma expresso que fala, mas s para dizer que sabe muito (sobre o Krach de Wall Street por exemplo) mas no dir nada mais. por esta razo, em nossa opinio, que esta expresso rooseveltiana difere tecnicamente das expresses que a precederam na histria do cinema, as expresses das grandes estrelas do cinema mudo, Lilian Gish, Rodolfo Valentino, Falconetti e Vertov, enquanto ouvimos as palavras: filme = montagem do eu vejo. Basta fazer

    10. Organizao comunista italiana fundada em 1969, que

    desempenhou um papel decisivo no episdio das greves da

    Fiat-Mirafiori em Turim naquele ano. Um de seus militantes criou

    em 1971 uma Balada da FIAT cantada em parte no miolo de

    Tout va bien. Cf. David Faroult, De la ballata della FIAT la

    chanson gauchiste de Tout va bien, em Nicole Brenez et al., Jean-Luc Godard: Documents.

    Paris: Centre Pompidou, 2006, p.187-188. [N.d.T].

    11. Klute (Alan J. Pakula, EUA, 1971). [N.d.T].

    12. The Grapes of Wrath (John Ford, EUA, 1940). [N.d.T].

    13. Young Mr. Lincoln (John Ford, EUA, 1939). [N.d.T].

    14. The Green Berets (John Wayne, EUA,1968). [N.d.T].

  • 151DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 8, N. 1, P. 136-159, JAN/JUN 2011

    a experincia e fazer todos estes rostos olharem uma foto de atrocidades no Vietn: nenhum ter a mesma expresso.

    queantesdocinemafalado,ocinemamudotinhaumabase tcnica materialista. O ator dizia: sou (filmado) logo penso (penso ao menos que sou filmado). porque existo que penso. Depois do falado, houve um New Deal entre a matria filmada (o ator) e o pensamento. O ator se ps a dizer: penso (que sou um ator) logo sou (filmado). Sou porque penso.

    Comoacabamosdevernestaexperinciaqueaprofundaa de Kulechov, antes da expresso do New Deal, cada ator do cinema mudo tinha sua prpria expresso, e o cinema mudo tinha verdadeiras bases populares. Ao contrrio, quando o cinema falar como o New Deal, cada ator passar a dizer a mesma coisa. Pode se fazer novamente a mesma experincia com qualquer vedete do cinema, do esporte ou da poltica (alguns inserts de Raquel Welch, [Georges] Pompidou, Nixon, Kirk Douglas, [Alexander] Soljentsin, Jane Fonda, Marlon Brando, oficiais alemes em Munique 1972, enquanto se ouve as palavras: penso, logo existo, e se veem em contracampo cadveres vietcongues).

    Essaexpressoquedizmuito,masquenodiznemmaisnem menos, ento uma expresso que no ajuda o leitor a ver mais claro em seus obscuros problemas pessoais (a ver em qu o Vietn pode esclarec-los, por exemplo). Por que ento contentar-se com ela e dizer que ela j algo e permite que algo se transmita (todo o discurso do sindicato em Tout va Bien, bobina 3)? E por que, se a atriz ainda no capaz de representar de outra forma (e ns ainda no somos capazes de ajud-la corretamente a fazer isto), por que os norte-vietnamitas deveriam contentar-se com ela nesse campo? Em todo caso, por que nos contentaramos com o contentamento dos vietnamitas? Nossa opinio que nos arriscamos a lhes fazer mais mal do que bem, ao nos fabricarmos uma boa conscincia to barata (dito em termos cientficos: o movimento que vai da entropia negativa informao no custa caro). Afinal de contas, essa expresso tambm se dirige a ns, que fazemos o esforo de olh-la pela segunda vez. a ns que esse olhar e essa boca no dizem nada, se esvaziam de sentido, como os dos meninos tchecos diante dos tanques russos ou as grandes barriguinhas de Biafra e Bangladesh, ou os ps dos palestinos no barro cuidadosamente mantido pela UNWRA15. Vazio de sentido, ateno, para o capital que sabe embaralhar as pistas, que sabe

    15. A Wikipdia nos lembra que a Agncia das Naes Unidas de Assistncia aos Refugiados da Palestina no Prximo Oriente, tambm conhecida pela sigla UNRWA (United Nations Relief and Works Agency for Palestine Refugeesin the Near East), uma agncia de desenvolvimento e assistncia humanitria que proporciona cuidados de sade, servios sociais, educao e ajuda de emergncia a mais de 4 milhes de refugiados palestinos que vivem na Faixa de Gaza, na Cisjordnia, na Jordnia, no Lbano e na Sria. [N.d.T].

  • 152 investigao sobre uma imagem / jean-luc godard e jean-pierre gorin

    preencher com um sentido vazio o olhar real de seus futuros inimigos j presentes, olhar que ele precisa ausentar, faz-lo voltar-se para lugar nenhum.

    Comolutarcontraessasituaodefato?Nocessandodepublicar essas fotos e esta foto em questo (seria preciso suprimir imediatamente a totalidade das emisses de televiso e rdio, em quase todos os pases do mundo, assim como todo tipo de jornais, o que uma utopia). No. Mas pode-se public-las de outro modo. E neste outro modo que as vedetes, pelo seu peso monetrio e cultural, tm um papel a desempenhar. Um papel esmagador, como se diz. E a verdadeira tragdia que elas no sabem como desempenhar esse papel esmagador. So ainda os vietnamitas que se aplicam, eles, as vedetes da guerra revolucionria de independncia. Como desempenhar esse papel? O que fazer para aprender a represent-lo? Muitas questes se colocam ainda na Europa e nos Estados Unidos antes de podermos responder com clareza. Ns colocamos algumas delas em Tout va Bien (como Marx, em sua poca, partindo da Ideologia Alem chegava a levantar a questo da Misria da Filosofia contra Proudhon, que s sabia filosofar sobre a misria).

    Se observamos atentamente o norte-vietnamita situadoatrs da atriz americana, percebemos logo que seu rosto expressa algo completamente diferente do que expressa o da militante americana. Por mais que no se veja aquilo que ele olha, se o isolamos e o enquadramos sozinho, percebemos que seu rosto remete quilo que ele enfrenta todos os dias: bombas de fragmentao, diques e mulheres estripados, a casa a reconstruir pela dcima vez, ou o hospital, a lio a aprender (Lnin dizia: primeira lio, aprender; segunda lio, aprender; terceira lio, aprender). E a imediata referncia desse rosto luta cotidiana possvel por uma razo muito simples: ele no s um rosto de revolucionrio, mas um rosto de revolucionrio vietnamita. Um longo passado de lutas est cruelmente inscrito neste rosto, h muito tempo, pelo imperialismo francs, japons e americano. Na verdade, esse rosto reconhecido, h muito tempo, como o rosto da revoluo no mundo inteiro, e at mesmo por seus inimigos. No tenhamos medo das palavras: um rosto que j conquistou a independncia de seu cdigo de comunicao. Nenhum outro rosto de revolucionrio poderia atualmente remeter, de forma to imediata quanto o dele, ao combate cotidiano. Simplesmente

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    porque nenhuma revoluo, exceto a chinesa, fez ainda a longa marcha da revoluo vietnamita. Faamos a experincia. Este negro, no podemos dizer imediatamente porque ele luta, onde e como: em Detroit, nas fbricas da Chrysler por um salrio melhor e ritmos menos embrutecedores? Em Johanesburgo, pelo direito de entrar num cinema em que os brancos exibem filmes de brancos? E este rabe, e este sul-americano, e esta europeia, e esta criana americana? Devemos ter a coragem de dizer que no temos nada a dizer ao observ-los, a menos que haja uma legenda na foto balbuciando tolices ou mentiras que repetiremos por nossa conta, e devemos ter a coragem de dizer que essa coragem no passa de uma confisso de fraqueza: estamos derrotados, no temos nada a dizer. Ao contrrio, diante desse rosto vietnamita, nenhuma legenda necessria: no mundo inteiro se dir que aquele um vietnamita, e que os vietnamitas lutam para expulsar os americanos da sia.

    Isolemos,aocontrrio,orostodaatrizamericana.Vemoslogo que ele no remete a nada, ou melhor, que no remete a nada alm de si prprio, mas um si prprio que no est em parte alguma, perdido na infinita imensido da ternura eterna de uma Piet de Michelangelo. Rosto de mulher que no remete a nenhuma mulher (o rosto do vietnamita era uma funo que remetia ao real, enquanto o rosto da americana uma funo que s remete a uma funo). Rosto que poderia ser o de uma hippie carente de droga, o de uma estudante de Eugene, Oregon, quando seu favorito Prfontaine16 acaba de perder os 5.000 metros olmpicos, o de uma namorada abandonada por seu homem, e tambm o de uma militante no Vietn. demais. H informao demais num espao/tempo pequeno demais. Estamos, ao mesmo tempo, certos de que se trata de uma militante pensando no Vietn mas nada certos disso, pois ela poderia estar pensando em algo completamente diferente, como acabamos de provar. Ento, acabamos tendo que nos perguntar como a foto de uma militante (ou atriz) pensando no necessariamente no Vietn pode ser publicada precisamente no lugar daquela de uma atriz (ou militante) pensando forosamente no Vietn. Afinal, a realidade dessa foto est a: uma maquiagem de estrela desnudada por sua prpria falta de maquiagem. Mas isto no dito pelo Express, pois seria um comeo de revoluo no jornalismo. Seria um incio de revoluo dizer, na Europa ou Estados Unidos, que, atualmente,

    16. Referncia a Steve Prefontaine, excepcional corredor americano de fundo formado em Oregon, que batera vrios recordes dos 1500 aos 10000 metros, e que morreria em 1975 aos 24 anos num acidente de carro. [N.d.T].

  • 154 investigao sobre uma imagem / jean-luc godard e jean-pierre gorin

    no possvel tirar uma foto de algum pensando em algo (no Vietn, numa trepada, num Ford, numa fbrica, numa praia, etc.).

    Diroqueerramosaoisolardafotoumapartequenofora publicada sozinha. um pssimo argumento. Ns a isolamos precisamente para mostrar que ela de fato estava sozinha, e que a tragdia reside nessa solido, pois se pudemos isolar esse rosto, foi tambm porque ele se prestava facilmente a isso, ao contrrio do rosto vietnamita que, mesmo sozinho, no se deixa isolar de seu crculo.

    Conhecemos na Frana, de longa data, essa expressousada pela atriz. a expresso do Cogito cartesiano: penso, logo existo, mumificada por Rodin e seu pensador. Seria melhor levar a clebre esttua para passear em todas as grandes e pequenas catstrofes a fim de apiedar as massas. A fraude da arte capitalista, do humanismo capitalista, saltaria aos olhos imediatamente. preciso compreender que uma vedete no pode pensar, pois uma funo social: ela pensada, e faz pensar (basta ver pensadores como Marlon Brando ou Pompidou atuarem como o fazem para compreender porque o capital precisa do apoio de uma arte desta espcie para aumentar a fora da filosofia idealista em seu combate contra a filosofia materialista dos Marx, Engels, Lnin e Mao, representando seus povos nesse domnio).

    Acabamos de dizer: isolemos, ao contrrio, o rosto daatriz americana. Isolemos agora, as palavras ao contrrio nesta frase (isolar, dividir: diviso revolucionria, dizia Lnin, que luta contra a diviso capitalista do trabalho). Vemos ento que a figura da militante americana e a do norte-vietnamita so figuras contrrias. E o que realmente acontece na realidade imaginria dessa imagem , em nossa opinio, a luta desses contrrios.

    Oolhoamericanosecontentaemler a palavra horror no Vietn. O olho vietnamita v a realidade americana em todo o seu horror. Atrs da figura desse figurante vietnamita j figura ento a maravilhosa e formidvel mquina montada pelo coletivo Vietn do Norte/Vietcongue.

    Atrsdafiguraodessavedetefiguraaindaaignbiletemvel mquina capitalista, cheia de uma expresso cinicamente humilde e de confuso na claridade (ver, a esse respeito, o filme de Lelouch, Laventure, cest laventure17). Em suma, luta entre o ainda e o j, luta entre o velho e o novo. Luta que no se circunscreve produo da foto, mas que continua na sua distribuio, no

    17. LAventure, cest laventure (Claude Lelouch, Frana, 1972).

    [N.d.T].

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    fato de que a olhamos neste momento. Luta entre a produo e a difuso, segundo quem comanda uma e outra, o capital ou a revoluo.

    Outros elementos de elementos Ao correr o risco de fazerdivulgar essa foto, os norte-vietnamitas tm razo. Ou melhor, tm suas razes. Essa foto cumpre um papel de pequeno parafuso no mecanismo do desenvolvimento de sua ofensiva diplomtico-militar atual.

    Essafotoumadasmildadaspelopovovietnamitacomseu sangue, para replicar aos crimes de guerra dos Estados Unidos. Note de passagem, Jane, que o coletivo Vietcongue/Vietn do Norte raramente publica atrocidades em seus documentos, mas frequentemente, combates.

    Paradaressarplica,aqui,ogovernonorte-vietnamita,representante de seu povo, representado aqui pelo Comit pela amizade com o povo americano, convidou a atriz Jane Fonda. Trata-se, portanto, de representar um papel.

    Contrariamente a muito outros americanos, a atrizamericana aceitou fazer esse papel e, para isso, se deslocou. Foi a Hani para se pr a servio da revoluo vietnamita. Agora, cabe ento a pergunta: como ela se pe a servio? Ou mais precisamente: como interpreta esse papel?

    A atriz americana em ao nessa foto serve ao povovietnamita em sua luta pela independncia, mas no o serve somente no Vietn, e sim nos Estados Unidos em particular e tambm na Europa, j que a foto chegou a ns. Isto , ns que olhamos essa foto daqui estamos livremente obrigados a perguntar: essa foto nos serve? E em primeiro lugar: serve-nos para servir ao Vietn? (e o Vietn que nos obriga a formular essa pergunta).

    elementos sintetizados NemLExpress nem a militante americana fizeram diferena entre Jane Fonda falando, interrogando, e Jane Fonda escutando.

    Paraosvietnamitas,ofatodeelafalar(eacreditamosquepouco importa para eles que ela fale ou escute, pois o silncio tambm eloquente, mas isto no dito) , por ora, nesta poca

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    histrica de sua luta, o elemento principal. O importante que ela esteja ali.

    Mas aqui, em 1972, o elemento principal no ,forosamente, o mesmo. Temos que saber que fora atua atrs desse forosamente.

    Fomosportantoobrigadosaassinalarquea legendadafoto mentia ao dizer que a atriz falava aos habitantes de Hani, quando a foto a mostrava ouvindo-os. E importante para ns (que precisamos da verdade contraditria desta foto e no da sua verdade eterna) assinalar que LExpress mente em todos os nveis, mas importante tambm acrescentar que se o jornal pode mentir, porque a foto o permite. De fato, o LExpress aproveita (perda e lucro) a autorizao implcita dessa foto para dissimular o fato de que a militante ouve, pois dizendo que ela fala, e que fala de paz no Vietn, LExpress se isenta de precisar de qual paz se trata, deixando esse cuidado para a foto, como se fosse bvio que a foto determina precisamente e por si mesma o tipo de paz em questo, quando vimos que no nada disso. Mas se LExpress pode agir assim, provavelmente porque a atriz americana s milita dizendo paz no Vietn, sem se perguntar qual paz exatamente e, em particular, qual paz na Amrica. E se ela ainda no se pergunta, ou se ainda no chega a faz-lo, no porque ainda atue como atriz em vez de militante, mas pelo contrrio, porque enquanto militante ela no se coloca ainda nenhuma questo de tipo novo sobre seu funcionamento de atriz, nem socialmente nem tecnicamente. Em suma, ela no milita como atriz, enquanto os norte-vietnamitas a convidaram justamente como tal, como atriz militante. Ela fala de um outro lugar e no de l onde ela est, na Amrica, o que interessa primordialmente aos vietnamitas. Da o fato de que tambm ela dissimula que o mais importante nessa foto ela estar ouvindo, ouvindo o Vietn antes de falar dele, ao passo que precisamente Nixon, Kissinger e o infame Porter18 no ouvem nada, no querem ouvir absolutamente nada na avenida Klber19. Da seus disfarces, que trata-se tambm de desmascarar. E desmascarar Nixon no dizer paz no Vietn, pois ele tambm diz isso (assim como Brejnev). preciso dizer o contrrio dele. preciso dizer: ouo os vietnamitas que me diro qual paz querem em seu pas. preciso dizer: como americano, calo minha boca, pois reconheo no ter nada a dizer sobre isso, cabe aos vietnamitas dizer o que querem,

    18. William James Porter, diplomata americano nomeado

    chefe da delegao dos Estados Unidos nas negociaces para

    os Acordos de Paris para o Fim da Guerra e a Restaurao da Paz no Vietn, assinados em

    27/1/1973. [N.d.T].

    19. Iniciadas em 1968, interrompidas e adiadas vrias vezes, as negociaes para os Acordos de Paz transcorreram

    oficialmente no prdio do antigo Hotel Majestic na Avenida Klber,

    n. 19, em Paris, no Centro das Conferncias Internacionais do Ministrio das Relaes

    Internacionais (Ministre des Affaires trangres) da Frana.

    [N.d.T].

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    e a mim ouvi-los para fazer o que eles querem, pois no tenho nada a ver com o sudeste asitico. O resto uma mascarada. Mas, uma vez mais, no algo desse gnero que se diz.

    No somos contra as mscaras (a revoluo avanamascarada, dizia outrora Regis Debray a propsito de Cuba. E Marx e Engels em 1848: um espectro assombra a Europa, o espectro do comunismo20), mas no podemos deixar de fazer as perguntas: quem mascara quem? Quem mascara o qu? Para quem e contra quem? nesse momento que se poder decidir sobre a utilidade social da mscara, sobre sua necessidade estratgica e ttica, pois queremos ser os atores de nossa prpria histria, ns, Jean-Pierre e Jean-Luc, da nossa, como voc da sua, Jane (e no se poderia considerar as guerras de liberao do movimento operrio como histrias que seus prprios atores querem realizar, sem obedecer ao roteiro ditado pelo capital e a CIA?). Somente nesse momento poderemos decidir exatamente sobre a utilidade social do ator neste ou naquele terreno das lutas. Em termos econmicos, poderemos decidir sobre seu valor de uso, isto , sobre a utilidade social da troca de olhares mostrada nessa foto, e no acreditar mais automaticamente em seu valor de troca apenas.

    Pode ser ento que o Vietn perca a longo prazo oque ganha a curto prazo na publicidade dada a uma troca de olhares entre uma estrela americana e uma habitante de Hani bombardeada, pois a verdadeira questo passa a ser a de quem controla a troca e com qual finalidade.

    primeiras conclusesFinalmente,dizemosromancistaseosfilsofos.Nofimdas

    contas, dizem os banqueiros. Vemos que esta investigao sobre essa foto se resume a colocar corretamente, a expor corretamente (permanecemos no campo da fotografia) o problema da vedete. So as vedetes, os heris, que fazem a histria ou so os povos?

    Teremos que levantar, aomesmo tempo, a questo dodelegado, a questo da representao. Quem representa o que, e como? Eu represento a classe operria alem, disse o partido comunista alemo antes de enviar o grosso de suas tropas aos futuros sitiados de Stalingrado. Eu represento o socialismo, diz um jovem Kibutzin que planta, para nada, laranjeiras em terra

    20. Clebre passagem do Manifesto Comunista (1848) de Marx e Engels. [N.d.T].