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Tradução de Ricardo Silveira 1ª edição 2018

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Tradução de Ricardo Silveira

1ª edição

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Prólogo

1897

F az sete longos anos desde que ele veio aos meus aposentos no meio da noite, sete longos anos desde que ocor-reu a sequência de eventos assombrosos, incríveis e perigosos

— eventos nos quais estou certa de que ninguém mais vai acreditar, apesar do cuidado que tivemos em deixar tudo registrado. São as trans-crições de nossos diários, os meus e os de outros, que procuro de vez em quando para me recordar de que tudo de fato aconteceu e não foi apenas um sonho.

Aqui e ali, quando percebo uma nevoazinha se formando lá embaixo no jardim, quando um vulto se projeta numa parede no meio da noite ou quando vejo partículas de poeira se agitando num feixe de luz, ainda me pego tomando um susto ou ficando alarmada, na expectativa do que vai acontecer depois. Jonathan segura minha mão ou me lança um olhar acolhedor, para demonstrar que compreende o que estou sentindo, que estamos a salvo. Mas, quando ele retoma a leitura à beira da lareira, meu coração continua batendo forte no peito e sou tomada não apenas pela apreensão que Jonathan sabe que sinto, mas também por algo mais... por saudade.

Sim, saudade.Os escritos que guardei — o diário que cuidadosamente mantive

em taquigrafia e depois digitei para que outros pudessem ler — não

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continham toda a verdade; não a minha verdade. Certos pensamentos e experiências são íntimos demais para olhos alheios; certos desejos, chocantes demais para admitir, até para si mesmo. Se revelasse tudo a Jonathan, sei que o perderia para sempre, assim como perderia a con-sideração que a sociedade tinha por mim.

Sei o que meu marido quer — o que todo homem quer. Para que seja amada e respeitada, uma mulher, casada ou solteira, precisa ser inocente: totalmente pura de mente, corpo e alma. E assim eu era, até que ele entrou na minha vida. Houve vezes em que senti medo dele. Noutras o desprezei. Contudo, mesmo sabendo o que ele era e o que queria, não pude deixar de amá-lo.

Jamais me esquecerei da magia do seu abraço, do magnetismo imponente do seu olhar ou como me senti ao sair girando pela pista de dança em seus braços. Ainda estremeço em deleite ao lembrar da sensação estonteante de viajar com ele na velocidade da luz e de como seu mais leve toque me fazia arfar de prazer e desejo inimagináveis. Mas os momentos mais maravilhosos foram as horas infindáveis de conversa, momentos furtivos em que revelamos um ao outro um pouco de nós mesmos e descobrimos tudo que tínhamos em comum.

Eu o amei. Apaixonada e profundamente, desde as áreas mais re-cônditas do meu ser e a cada batida do meu coração. Houve uma época em que, de bom grado, teria aberto mão desta vida humana para ficar com ele por toda a eternidade.

Entretanto...Ao longo de todos esses anos, a verdade do que aconteceu pesou

muito em minha mente, roubando-me o prazer do cotidiano, tirando--me o apetite e o sono.

Percebo que já não consigo mais aguentar a culpa. Preciso colocar tudo isso no papel; não para que outros leiam, mas para que, por escrito, eu possa finalmente ficar livre para esquecer.

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Capítulo Um

Q uando saí do trem em Whitby naquela bela tarde de julho de 1890, não fazia a menor ideia de que minha vida, e a de todos os que conhecia e amava, em breve seria submetida

ao maior dos perigos, do qual nós — aqueles que sobrevivemos — sai-ríamos mudados para sempre. Ao colocar o pé na plataforma da estação naquele dia, não fui tomada por um calafrio súbito, nem tive premonição sobrenatural dos impensáveis eventos que estavam por se desenrolar. A bem da verdade, não houve nenhuma indicação de que aquelas férias à beira-mar seriam diferentes de todos os passeios anteriores.

Eu estava com 22 anos de idade. Após quatro agradáveis anos, tinha acabado de largar meu emprego de professora como parte dos prepa-rativos para o meu casamento. Embora estivesse profundamente preocupada com meu noivo, Jonathan Harper, que ainda não retornara de uma viagem de negócios à Transilvânia, estava tomada de alegria ante a perspectiva de passar um ou dois meses num belíssimo lugar, na companhia da minha melhor amiga, onde poderíamos conversar à vontade e, juntas, sonhar coisas impossíveis.

Avistei Lucy parada na plataforma, linda como nunca, de vestidinho branco, com sua cabeleira escura despontando em cachos por baixo do chapéu enfeitado de flores, procurando-me no meio da multidão. Nossos olhares se cruzaram e sua expressão se iluminou.

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— Mina! — gritou, e corremos uma ao encontro da outra.— Que saudade! — retruquei ao abraçá-la. — Parece que já passou

um ano inteiro e não apenas alguns meses desde que nos vimos pela última vez. Tantas coisas aconteceram!

— Pois é. Na última primavera, éramos ambas solteiras. E agora...— ... estamos as duas noivas! — Demos um sorriso de alegria e

tornamos a nos abraçar.Lucy Westenra e eu éramos melhores amigas desde o dia em que

nos conhecemos na escola de Upton Hall, eu com 14 anos de idade e ela com 12. Apesar de virmos de mundos completamente diferentes — os pais dela eram ricos e lhe dedicavam toda atenção e carinho, enquanto eu nem sequer conheci os meus e recebi educação de qualidade apenas devido a uma bolsa —, tornamo-nos inseparáveis. Seríamos uma boa fonte para um estudo sobre contrastes: eu, de altura mediana, era uma loura de bochechas rosadas e olhos verdes, que as pessoas consideravam atraente; enquanto Lucy era de uma beleza estonteante, estatura perfeita, delicada, lindos olhos azuis, a pele clara e lustrosa, os cabelos castanhos volumosos e ondulados. Ela adorava andar a cavalo e jogar tênis, enquanto eu sempre me senti melhor com o nariz enfiado num livro; contudo, encontramos muitas outras coisas em comum.

Passamos os anos da escola juntas, dormindo juntas, brincando juntas, estudando juntas, passeando juntas, rindo e chorando juntas, contando todos os nossos segredos uma para a outra. Como não tinha casa para onde ir nos recessos da escola, com frequência e de bom grado passei muitas férias com a família dela, tanto na casa de Londres quanto na chácara ou em qualquer outro balneário que atraísse a atenção da Sra. Westenra na ocasião. Quando vim a me tornar professora na mesma escola, nossa amizade continuou inabalável; quando Lucy se formou e voltou para Londres com a mãe viúva, mantivemos contato o tempo todo por meio de cartas e visitas regulares.

— Onde está sua mãe? — perguntei, procurando a Sra. Westenra à nossa volta.

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— Está em nossos aposentos, descansando. O que achou do meu vestidinho de passeio e do chapéu novo? Mamãe insistiu em dizer que era a última moda para a praia, mas fez tanto estardalhaço que acabei me aborrecendo.

Confirmei que o vestido era uma graça e lhe garanti que a única razão para se aborrecer com as coisas da moda era por nunca ter lhe faltado alguma delas.

— Se só tivesse quatro vestidinhos de passeio e dois tailleurs como eu, Lucy, você estaria cobiçando essas roupas das quais agora desdenha.

— O que lhe falta em quantidade, minha querida Mina, você compensa em qualidade, pois está sempre linda e elegante. Adorei esse seu vestido de verão. Bem, vamos embora? O táxi está nos esperando. Mande o carregador levar sua bagagem para a entrada da frente. Você vai adorar este lugar. Whitby é encantadora!

De fato, ao sairmos da estação, fiquei maravilhada com o que pude ver pela janela da carruagem. Uma brisa suave trazia o cheiro agradável da maresia e as gaivotas esvoaçavam barulhentas pelas pro-ximidades da orla. Mais abaixo, o rio Esk percorria o vale verdejante, passando pelo porto movimentado antes de chegar ao mar. Um céu bem azul salpicado de nuvens brancas fazia um contraste adorável com os telhados vermelhos do casario da cidade velha, aglomerados pelas encostas íngremes.

— Que cidade encantadora!— Pois não é? Fiquei tão satisfeita com a decisão da mamãe de vir para

um lugar diferente este verão! Já estava ficando saturada de Brighton e Sidmouth.

— Foi muita gentileza sua me convidar novamente para acom-panhá-las. — Peguei uma das mãos enluvadas de Lucy e a apertei carinhosamente nas minhas. — Agora que larguei o magistério e abri mão para sempre dos meus aposentos na escola, não sei aonde teria ido passar o verão.

— Eu nem sequer sonharia em passar as férias com outra pessoa, minha querida Mina. Vamos nos divertir tanto! Dizem que há passeios

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maravilhosos para fazermos por aqui; podemos inclusive alugar um barco e subir o rio.

— Ah, eu sempre adorei remar.— Olhe só para o lado de lá do rio: está vendo uma escadaria em

curva? Parece que vai até o alto do morro, onde ficam a igreja e uma abadia em ruínas. Estou morrendo de vontade de explorar tudo por aqui, mas desde que chegamos ontem mamãe tem se sentido cansada demais para sair dos aposentos e não quis enfrentar a subida. Agora que você chegou, podemos fazer longos passeios e conhecer todos os lugares.

— Sua mãe está doente?— Não. Acho que não. Só tem ficado cansada com muita facilidade

nos últimos tempos, e subir ladeira é uma coisa que lhe tira o fôlego. Espero que os ares marinhos lhe façam bem. E agora — acrescentou Lucy animada —, o que você acha do meu anel de noivado? — Ela tirou a luva e esticou a mão para mim.

Cheguei a conter a respiração enquanto estudava a delicada peça de ouro incrustada de pérolas que lhe adornava o dedo esguio.

— É maravilhoso, Lucy!— Deixe-me ver o seu.— Ainda não tenho anel de noivado — admiti. — Mas, logo antes

de partir na viagem para o exterior, Jonathan ficou sabendo que tinha passado nos exames. Não é mais assistente, e sim procurador efetivado. Prometeu me comprar um anel assim que voltar.

— Vocês pelo menos trocaram mechas de cabelo?— Claro! Guardamos em envelopes, por ora.— Arthur e eu guardamos os nossos num par de medalhões de ouro

iguaizinhos; o dele fica pendurado na corrente do relógio. Eu não estou usando muito o meu, desde que ele me deu isso. — Com um sorriso de felicidade, Lucy correu os dedos pela fita de veludo preto que trazia em volta do pescoço, ornamentada com uma fivela de diamante.

— Estive admirando sua gargantilha desde que saí do trem. É mesmo uma lindeza!

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— A fivela de diamante pertenceu à mãe do Arthur. Gosto tanto dela que quase nunca tiro, só quando vou dormir.

Paramos na Royal Crescent, em frente a uma construção que se espalhava pelo terreno, administrada pela viúva de um capitão do mar, onde Lucy e a mãe estavam hospedadas. Mandei entregar a bagagem no quarto em que Lucy e eu ficaríamos. Como a Sra. Westenra ainda estava tirando a sesta e era cedo demais para o jantar, pegamos nossas sombrinhas e partimos para explorar Whitby.

— Que notícia você tem de Jonathan? — perguntou Lucy enquanto caminhávamos por North Terrace, aproveitando a vista do mar e a agradável brisa do verão. — Recebeu mais alguma carta?

Soltei um suspiro perturbado.— Não recebo notícias faz um mês inteiro. Na verdade, estou bas-

tante preocupada.— Um mês entre uma carta e outra não é tanto tempo assim.— Para Jonathan, é, sim.Nos últimos cinco anos, Jonathan tinha estagiado como assistente

do procurador em Exeter, um amigo da família, Sr. Peter Hawkins, o mesmo que lhe financiara os estudos. Em fins de abril, o Sr. Hawkins enviou Jonathan a um país da Europa Oriental, a Transilvânia, como seu representante para conversar com um homem chamado Conde Drá-cula, em nome de quem tinham realizado uma transação imobiliária. Jonathan ficou animado com a incumbência, pois sempre quis viajar, mas nunca teve recursos para sair do país antes.

— Esses anos todos, Jonathan e eu sempre escrevemos um para o outro com grande regularidade, chegando a trocar cartas até duas vezes por semana. Logo no início dessa viagem, recebia cartas repletas de notícias sobre a travessia, sobre os lugares bonitos que ele estava visitando, sobre as pessoas que estava conhecendo e sobre as comidas que estava experimentando. De repente, acabou-se a comunicação. Fiquei sem saber se ele chegou à Transilvânia, achando que talvez algum mal tivesse lhe acontecido. Consegui o endereço do Conde Drácula com o Sr. Hawkins e escrevi para o Jonathan lá. Finalmen-

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te, recebi um recado: breve, escrito às pressas, nem parecia coisa do Jonathan, sem menção alguma à carta que eu tinha escrito, umas poucas linhas dizendo que o trabalho estava quase terminado e que ele voltaria para casa em poucos dias. Escrevi de volta imediatamente, contando-lhe os meus planos de viagem para que pudesse me escrever aqui em Whitby. Mas já se passou outro mês inteiro sem resposta. O que poderia ter acontecido com ele?

— Talvez tenha precisado ficar na Transilvânia mais tempo que o esperado ou decidiu estender o tempo de viagem e passear um pouco antes de voltar.

— Se foi esse o caso, por que não me escreveu? Por que não respon-deu à minha última carta?

— É comum o correio extraviar correspondências, Mina, e leva uma vida para chegar quando vêm de outro país. Pode acreditar: o Jonathan está bem. Você vai receber notícias dele qualquer dia desses. Ele não ficaria feliz de vê-la preocupada. Ficaria feliz, sim, de saber que você está aproveitando as férias.

Soltei outro suspiro.— Acho que você tem razão.Descemos um lance de escada bastante íngreme que ia dar num

ancoradouro e passamos pelo mercado de peixes, onde pescadores e suas esposas, da proa dos barcos, pechinchavam com a gente simples que vinha atrás da xepa do dia. As aves marinhas enchiam o ar com seus cantos entre um mergulho e outro; as velas içadas dos barcos abanavam com o vento; tudo vicejava tanto, impregnado da maresia, do cheiro dos peixes frescos, do musgo, que eu chegava a sentir o gosto na boca.

— Como eu gosto de estar à beira-mar! — exclamei, revigorada pela algazarra alegre de sons, imagens e aromas à nossa volta. — Vamos, Lucy, conte-me tudo. Como vai seu querido Sr. Holmwood? Ou será que eu deveria dizer: o futuro Lorde Godalming?

— Ah, o Arthur é tão encantador! Prometeu vir me visitar logo em Whitby. Sinto muita falta dele quando estamos longe um do outro.

— Já marcaram a data do casamento?

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— Não, mas a mamãe está fazendo pressão para nos casarmos logo, talvez já em setembro. Devo admitir, e espero poder admitir para você, Mina, que setembro já está em cima demais. Só faz dois meses desde que aceitei a proposta do Arthur. Ainda não me acostumei à ideia de que estarei casada.

Olhei de relance para ela, surpresa.— Nas cartas, você dizia que estava perdidamente apaixonada pelo

Arthur e animadíssima com o noivado.— E estou. Adoro o Arthur. Ele é alto, bonito e tem o cabelo lindo,

todo encaracolado! Temos tanta coisa em comum, e a mamãe também o adora. Sei que é o homem perfeito para mim e estou muito feliz.

Tínhamos cruzado a ponte para o outro lado do rio, que era o único caminho para o Penhasco do Leste. E lá começamos a subir outro lance íngreme da escadaria para onde Lucy tinha chamado minha atenção ainda na carruagem, que subia descrevendo uma curva suave desde a cidade até a igreja e as ruínas da abadia.

— Se está feliz, Lucy — falei —, por que parece tão conturbada?— Eu pareço conturbada? — Lucy franziu o cenho bem ao seu jeito

meigo que eu conhecia tão bem. — Não é minha intenção. Só fico um pouco triste quando me dou conta de que estas serão as últimas férias que passaremos juntas, Mina, só você e eu, e que em breve não serei mais vista como uma jovem disponível, mas, sim, como uma distinta senhora casada. Eu gostava muito de me sentir jovem, admirada e de-sejada por tantos homens. Pensar que tudo isso vai acabar e não estou nem com 20 anos ainda!

Capturei a expressão desolada no rosto adorável da minha amiga e contive a vontade de rir.

— Minha querida Lucy — falei enquanto lhe dava o braço para prosseguirmos —, gostaria de me solidarizar com você, mas sinto dizer que nunca passei por essa emoção. Só tive um pretendente: Jonathan. Não são todas as moças que recebem propostas de casamento de três homens diferentes no mesmo dia.

Lucy balançou a cabeça, espantada.

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— Ainda não consigo acreditar, quando me lembro daquele dia! Aconteceu logo tudo de uma vez. Nunca tinha recebido uma proposta sequer antes daquele vinte e quatro de maio. Não de verdade, pelo me-nos. Não dá para contar a vez que William Russell escondeu um anel na minha fatia de torta aos 9 anos de idade, ou o dia em que Richard Spencer me beijou nos fundos da escola de Upton Hall pedindo que eu prometesse me casar com ele. Eu era só uma menina, e eles não passavam de garotos bobos. Vários homens já me admiraram desde que fui morar em Londres, mas nenhum chegou perto de fazer a célebre pergunta; e, de repente, três propostas de uma vez!

Lucy tinha me escrito uma carta contando os detalhes daquele dia extraordinário. O Dr. John Seward, um jovem médico conceituado, veio à casa de manhã, declarou seu amor e pediu-lhe a mão. Foi seguido de outro pretendente, um rico americano do Texas chamado Quincey P. Morris, amigo tanto do Dr. Seward quanto do Sr. Holmwood, que lhe fez a mesma proposta logo depois do almoço. Tomada de pesar, Lucy teve de explicar que precisava recusar as propostas, pois estava apai-xonada por outro homem. Naquela mesma tarde, Arthur Holmwood conseguiu encontrar um momento tranquilo para fazer sua carinhosa declaração, que Lucy aceitou com entusiasmo.

— Deve ter sido uma sensação maravilhosa — falei —, descobrir-se adorada por tantos homens bons, nobres e dignos.

— Foi maravilhoso, sim... mas horrível ao mesmo tempo. Como o Dr. Seward e o Sr. Morris descobriram que estavam apaixonados por mim, não sei explicar, pois, toda vez que vieram me visitar, tive de ficar sentada, calada como bicho que não sabe falar, abrir um sorriso infantil e corar um pouco a cada palavra que diziam, enquanto minha mãe entabulava toda a conversa. Houve momentos em que senti vontade de gritar de tanta frustração, porque aquilo era uma besteira tão grande! Mas gostei deles todos e, de repente, lá estávamos, a sós, e eles abrindo o coração e a alma para mim. E tive de dispensar dois, de chapéu na mão, sabendo que estavam saindo da minha vida de uma vez por todas! Desatei a chorar quando vi a expressão no rosto do Dr. Seward, de tão

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deprimido que ele ficou; e foi embora com o coração partido. Quando contei para o Sr. Morris que havia outra pessoa, ele disse com aquele charmoso sotaque texano: “Moça, sua honestidade e audácia fizeram de mim um amigo, e isso é mais raro que um namorado.” Falou muito da coragem e nobreza do “rival”, sem sequer saber que era o Arthur, seu melhor amigo. Depois... Eu lhe disse na minha carta o que o Sr. Morris me pediu para fazer antes de ir embora?

— Disse, sim. Ele lhe pediu um beijo para ajudar a abrandar o baque, acho eu. E você deu! — Paramos no meio da escada para retomarmos o fôlego, e eu olhei para ela. — Admito que fiquei um pouco surpresa.

— Por quê?— Lucy, você não pode ficar beijando todo homem que pede sua

mão só porque ficou com pena dele!— Foi só um beijo. Ah, Mina! Por que será que uma moça não pode

se casar com três homens, ou tantos quantos a queiram, evitando assim todo esse sofrimento?

Soltei uma risada e tomei Lucy nos braços.— Sua boba! Casar-se com três homens? Que ideia!— Eu me senti muito mal por deixá-los tristes daquele jeito.— Se eu fosse você, não me preocuparia nem mais um minuto

com o Dr. Seward ou o Sr. Morris — falei quando recomeçamos a su-bir. — Com o tempo, vão se recuperar da decepção e encontrar outras moças que hão de idolatrar o chão que eles pisam.

— Espero que sim, pois acredito que todos merecem sentir o tipo de felicidade que encontrei com o Arthur e você com o Jonathan.

— Eu também. Virar uma esposa, a esposa do Jonathan, passar a vida inteira juntos, ajudá-lo em seu trabalho, ser mãe... é o que eu sempre quis.

Lucy ficou calada por um momento e em seguida falou:— Mina, você sempre sentiu isso?— Isso o quê?— Eu sei que você e o Jonathan sempre foram amigos, mas você só

passou a vê-lo como pretendente há pouco tempo. Você nunca pensou em outro homem antes do Jonathan?

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— Não. Nunca.— Nunca? Desde que saí da escola, deve ter havido algum rapaz ou

homem experiente de quem você tenha gostado e que tenha gostado de você, alguém de quem nunca tenha falado.

— Se houvesse, Lucy, você saberia. Sempre lhe contei tudo.— Não basta. Toda mulher deve manter alguns segredos. — Lucy

piscou os olhos algumas vezes com um ar brincalhão. Depois sorriu e acrescentou: — Espero que saiba que estou brincando, Mina. Também nunca tive segredos com você, nem com o Arthur. Mamãe diz que a sinceridade e o respeito são as coisas mais importantes no casamento, até mais importantes que o amor. E eu concordo. Você não?

— Concordo. Jonathan e eu detestamos segredos, não escondemos nada. Fizemos um pacto solene, há muito tempo, de que seríamos sempre sinceros, promessa essa que acreditamos ser especialmente importante agora que estamos prestes a nos tornar marido e mulher.

— É assim que deve ser.Tínhamos chegado ao topo da escadaria e passávamos agora pela

Igreja de Santa Maria, uma construção típica de fortaleza com uma torre sólida e ameias em toda a extensão do telhado, e uma fachada externa resistente para aguentar as agruras climáticas do revolto mar do Norte. Nossas explorações nos levaram até as ruínas adjacentes da Abadia de Whitby: um edifício imponente, nobilíssimo e imenso, localizado no meio de um terreno gramado, cercado de pastos salpicados de carneiros. Não conseguimos deixar de nos encantar com toda aquela beleza, ob-servando a grandiosa nave central, agora desprovida do telhado, ao sul de onde se erguia o transepto, e as delicadas lancetas a leste da antiga igreja da abadia.

— Existe uma lenda maravilhosa sobre esta abadia, que li antes de vir — contei. — Dizem que, em certas tardes do verão, quando o sol incide sobre a parte norte do coro a um certo ângulo, pode-se ver uma dama de branco numa das janelas.

— Uma dama de branco? Quem poderia ser?

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— Há quem diga que é o fantasma da Sra. Hilda, a princesa saxônica que fundou a abadia como monastério no século VI, buscando vingança contra os vikings que saquearam seu grandioso edifício.

— Um fantasma! — Lucy soltou uma risada. — Você acredita em fantasmas?

— É claro que não. Sem dúvida essa “visão” é um reflexo causado pelos raios do sol.

— Bem, eu prefiro a lenda. É muito mais romântica.Saímos da abadia e voltamos, passando pela igreja e chegando a

uma área aberta entre ela e o penhasco, cheia de lápides envelhecidas ao relento.

— Nossa senhora — falei. — Que adro imenso... e que vista!De fato, o cemitério em torno da igreja era muito grande e bem

localizado. Dramaticamente situado em cima do penhasco, dava vista para a cidade e a enseada de um lado e o mar aberto do outro. Parecia ser um lugar bastante frequentado, pois havia umas duas dezenas de pessoas passeando pelas trilhas que cruzavam o adro ou sentadas nos bancos à beira do caminho, aproveitando a paisagem e a brisa do verão.

A vista nos atraiu como um ímã. Caminhamos direto para o mirante, onde encontramos um banco de ferro pintado de verde, bem perto da beira do penhasco. Sentamos. O ponto propiciava uma magnífica vista panorâmica da cidade e do porto lá embaixo, descortinando a super-fície reluzente do mar sem fim, o quebra-mar, dois faróis e as praias extensas que se prolongavam até a baía, onde o promontório se lançava pelo mar adentro. Ao nosso lado, dois artistas trabalhavam em seus cavaletes; atrás, carneiros e ovelhas baliam pelos campos afora. Escutei o tropel de animais percorrendo a estrada pavimentada lá embaixo e o murmúrio da conversa dos transeuntes. Fora isso, tudo estava na mais perfeita paz e serenidade.

— Acho que este recanto é o mais aconchegante de Whitby — declarei.

— Não há como discordar — retrucou Lucy —, e este é o melhor banco que poderíamos encontrar por aqui. Por isso, eu o declaro nosso.

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— Creio — falei com um sorriso de felicidade — que vou voltar muitas vezes aqui, para ler ou escrever.

Se então eu soubesse dos eventos que estavam por ocorrer nesse mesmo recanto, que de forma tão desastrosa alterariam o destino de Lucy e de forma tão drástica e inexorável influenciariam o meu, teria dado meia-volta e insistido para que partíssemos de Whitby imediata-mente. Pelo menos, gosto de pensar que teria coragem para ir embora. Mas como se pode imaginar o inimaginável? Especialmente quando tudo começou de forma tão inocente?

Na primeira noite que passei em Whitby, Lucy começou a sofrer de sonambulismo.

A noite fora bem agradável. Depois do passeio, voltamos para a casa da Royal Crescent, onde desfrutamos de um jantar ainda cedo com a Sra. Westenra. A boa senhora estava de ótimo humor e me deu calorosas boas-vindas. Depois, enquanto Lucy e a mãe trocavam amabilidades com as pessoas que conheceram por ali, escapuli e fui sozinha até o Penhasco do Leste, onde passei uma hora adorável sentada em “nosso banco”, escrevendo no meu diário.

Naquela noite, porém, não muito depois de Lucy e eu termos nos recolhido ao nosso quarto e adormecido, fui despertada por um farfalhar perto de mim. Fazia calor, de forma que tínhamos deixado abertas a janela e a persiana. À medida que fui abrindo os olhos, sonolenta ainda, com a luz do luar iluminando o aposento, pude perceber que Lucy tinha se levantado da cama e estava se vestindo.

— Lucy? Aconteceu alguma coisa? Por que se levantou?Minha amiga não respondeu e continuou abotoando a anágua. Seus

olhos estavam arregalados, estáticos, com um olhar meio vago; em seguida, ela tirou uma saia do armário e começou a vesti-la.

— Lucy! — Levantei-me e, descalça, cruzei o quarto até ela. — Para que está se vestindo? — Mais uma vez, não houve resposta. Lucy não

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dava sinais de sequer estar ciente da minha presença. De repente, me dei conta do que estava acontecendo.

Eu tinha presenciado esse seu comportamento peculiar em algumas ocasiões, anos antes, quando ainda estávamos na escola. Em uma noite de nevasca, ela se levantou da cama e foi lá para fora, de pés descalços e de camisola. Ainda bem que um funcionário da escola a encontrou antes que ela congelasse, levou-a até a lareira para aquecê-la e a trouxe de volta para a cama. De outra feita, Lucy colocou o melhor casaco e o melhor chapéu, desceu até a cozinha, comeu uma imensa fatia de torta de maçã e tomou um copo de leite antes de ser descoberta. Na manhã seguinte, tinha apenas uma vaga lembrança dos incidentes, praticamente nenhuma.

— Lucy, minha querida — falei, colocando as mãos em seus ombros enquanto fitava seu olhar vago —, ainda é noite. Volte para a cama. Vou ajudá-la a tirar a roupa.

Para meu alívio, ela não me impediu. Ao ouvir minha voz, ou talvez tenha sido o toque das minhas mãos, sua intenção desapareceu por completo, e ela calmamente se deixou conduzir. Consegui tirar-lhe a roupa, tornei a colocar-lhe a camisola e fiz com que se deitasse outra vez, tudo sem despertá-la.

Durante o desjejum na manhã seguinte, Lucy voltara a ser a mesma de sempre, radiante e tagarela, como se nada fora do comum tivesse acontecido na noite anterior. Com um sorriso, contei a Lucy e a mãe o que tinha acontecido.

— Sonambulismo? — retrucou Lucy surpresa, rindo também en-quanto passava manteiga no pão. — Já faz um tempão que não tenho isso.

A Sra. Westenra não achou a novidade tão engraçada quanto nós.— Minha nossa! — disse ela, franzindo a testa de preocupação

enquanto brincava com as pérolas do colar em seu pescoço. — Sempre me preocupei com esse hábito seu, Lucy. E que hora para voltar, logo aqui neste lugar estranho que pouco conhecemos!

A Sra. Westenra era uma mulher de estatura pequena mas presença marcante nos seus 45 anos. Era fácil ver de quem a filha herdara a be-leza, pois ambas tinham os mesmos traços atraentes, os mesmos olhos,

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azuis e profundos, o cabelo escuro e ondulado, e a pele alva e macia. Dirigindo-se a mim, ela acrescentou:

— Lucy herdou essa tendência do pai. Edward costumava se levantar no meio da noite e se vestir para sair, a menos que eu o despertasse a tempo de impedi-lo. Uma vez, na cidade, um guarda o encontrou pe-rambulando pelas ruas no meio da noite vestido com seu melhor terno. Em outra ocasião, na chácara, pegou seu equipamento e foi para o rio pescar às 2 horas da manhã.

Lucy soltou uma risada.— Dessa eu me lembro. Que bobo, o meu pai! — Em seguida, o

sorriso se esvaneceu e os olhos foram ficando anuviados enquanto ela bebericava o chocolate. — Ah, que saudade que sinto dele!

— Seu pai foi um homem maravilhoso — concordei.A Sra. Westenra balançou a cabeça, entristecida.— Nunca pensei que fosse ficar sozinha deste jeito! Tinha certeza

de que iria primeiro. Ah, meu querido Edward! — Seus olhos subita-mente se encheram de lágrimas e ela esticou a mão por cima da mesa para pegar a de Lucy. — Ainda bem que Lucy ficou em casa comigo nesse último ano e meio! Não sei como vou ficar depois que ela se casar.

Lucy colocou a outra mão em cima da de sua mãe e as duas trocaram um olhar carinhoso.

— Você vai ficar bem, mamãe. Eu e Arthur não vamos morar longe. Vamos visitá-la com tanta frequência que mal vai perceber que saí de casa.

A Sra. Westenra enxugou os olhos delicadamente com o guardanapo.— Assim espero, minha querida. Estou muito feliz por você, Lucy,

e espero que você seja feliz também.Elas ficaram ali paradas por um instante, compartilhando um olhar

carinhoso. Senti-me tomada de afeto por ambas e, ao mesmo tempo, brotou em mim uma pontada de inveja. Um dos meus maiores pesares na vida era não ter conhecido o amor de uma mãe ou de um pai. O obscuro estigma do meu passado sempre foi uma fonte de sofrimento para mim desde que soube dele ainda na tenra infância, e ainda me sinto ruborizar de vergonha toda vez que penso no assunto.

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— Agora vamos falar do casamento — disse a Sra. Westenra, reto-mando o humor enquanto se servia de uma boa garfada de ovos mexidos. — Acho que você e o Arthur devem se casar o mais rápido possível.

— Qual é a pressa, mamãe? Noivados demorados são algo muito comum. Até você e o papai esperaram um ano para se casar, não foi?

— Foi, mas nossas circunstâncias eram muito diferentes. Seu pai estava lutando para abrir um novo empreendimento bancário e queria que tudo estivesse correndo bem antes de nos casarmos. Arthur não tem essas restrições financeiras. Está muito bem de vida. Como filho único, um dia herdará a propriedade de Ring Manor e todos os bens do pai. Não há razão alguma neste mundo para vocês esperarem. — A Sra. Westenra falou com tal urgência que tive a impressão de haver alguma outra razão por trás do desejo de ver a filha casada tão rapidamente; mas ela apenas acrescentou: — De qualquer forma, setembro é um ótimo mês para se realizar um casamento.

— Bem, vou esperar para ver o que Arthur diz quando chegar — disse Lucy com doçura.

— E você, Mina? — indagou a Sra. Westenra. — Quando e onde você e Jonathan pretendem se casar? Já combinaram alguma coisa?

Hesitei um pouco antes de dizer com solenidade:— Conversamos sobre nos casarmos em Exeter no fim do verão, uma

cerimônia bem simples, é claro, mas agora não sei. — Contei-lhe sobre a viagem de negócios de Jonathan à Transilvânia, a demora em voltar e o tempo que eu já estava sem notícias. — Há algo em sua última carta que não está me deixando tranquila. A caligrafia é a dele, mas não me parece coisa que ele escreveria.

— Você escreveu para o patrão dele? — perguntou a Sra. Westenra.— Escrevi, sim. O Sr. Hawkins também não recebeu notícia alguma.Lucy e a mãe se esforçaram ao máximo para aplacar meus temores,

mas, dadas as circunstâncias, não havia muito que pudessem dizer. De-pois do desjejum, Lucy propôs outro passeio até o Penhasco do Leste. A mãe, a quem faltou o fôlego só de andar do restaurante até a sala de estar, pediu desculpas por não nos acompanhar. Mas, antes que Lucy

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e eu conseguíssemos sair, ela me puxou para um canto e disse, em voz baixa e ansiosa:

— Mina, não quis dizer nada na frente da Lucy, mas estou muito preocupada com ela.

— Está preocupada com o quê?— Com esse sonambulismo dela. Pode ser perigoso. Não lhe conte

nada disso; mas me prometa que vai ficar de olho nela, e não deixe de trancar a porta do quarto de vocês todas as noites para que ela não possa sair.

Fiz-lhe a promessa com solenidade, acreditando firmemente que seria capaz de proteger Lucy de todos os males. Ah, mas como eu estava errada!

Na tarde daquele mesmo dia, Lucy e eu retornamos ao adro da igrejinha no alto do Penhasco do Leste, onde conversamos com um velho marinheiro chamado Swales, que nos contou ter quase 100 anos. Ele e seus dois acompanhantes, também bastante idosos, ficaram tão encantados com a beleza de Lucy que vieram se sentar bem ao lado dela poucos instantes depois de chegarmos ao nosso banco favorito. Lucy lhes fez algumas perguntas interessantes sobre as aventuras que tinham enfrentado no mar junto à companhia de pesca da Groenlândia e sobre os dias de glória durante a batalha de Waterloo.

Eu me interessava mais pelas lendas locais, mas, quando direcionei a conversa para esse assunto, o velho Sr. Swales insistiu em dizer que todas aquelas histórias sobre a Dama de Branco na janela da abadia eram pura besteira.

— Isso é conversa para entreter visitante — resmungou o velhinho. — Não lhes dê ouvidos, moça. Se gosta de ouvir histórias, vou lhe contar umas boas que são verdadeiras.

E passou a relatar algumas histórias animadas sobre a cidade e o ce-mitério. Lucy ficou perturbada quando ele destacou que a laje de pedra sobre a qual ficava nosso banco favorito era o túmulo de um homem

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que tinha cometido suicídio. O Sr. Swales a tranquilizou dizendo que ele próprio se sentava ali havia mais de vinte anos e nunca tinha sofrido mal algum.

Ao voltarmos para a pousada, nossa anfitriã, Sra. Abernathy, disse que havia uma carta à minha espera. Meu coração deu pulos de ani-mação. Reconheci de imediato a caligrafia: era do patrão de Jonathan, o Sr. Peter Hawkins. Incapaz de esperar até que chegássemos ao nosso quarto, rasguei o envelope de uma vez. Para meu alívio, vi que ele havia enviado uma carta que recebera de Jonathan.

— Está vendo? — exclamou Lucy, esticando-se para espiar a carta anexa enquanto eu a lia. — Eu disse que o Jonathan escreveria. O que ele disse?

O desânimo tomou conta de mim. Era a letra de Jonathan, mas eu estava ansiosa por palavras que me tranquilizassem e uma explicação para o silêncio prolongado. Em vez disso, a carta enviada por intermédio do patrão foi uma grande decepção:

Castelo Drácula — 19 de junho de 1890

Prezado Senhor:

Escrevo para comunicar que concluí satisfatoriamente a missão a mim incumbida e pretendo retornar amanhã, mas provavelmente farei uma parada para descansar em algum lugar no caminho.

Atenciosamente, J. Harker

— Uma linha — disse eu, enquanto passava a carta para Lucy. — Uma linha apenas. Não é do feitio dele!

— Como assim? Ele escreveu para o Sr. Hawkins, não para você; acho-a bastante sucinta, como deve ser uma carta de negócios.

— É exatamente isso. O Sr. Hawkins é muito mais como um pai para o Jonathan do que uma pessoa com quem ele trabalha. Ambos o

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conhecemos desde crianças. Jonathan nunca se dirige ao bom senhor nesse tom de negócios.

— Talvez estivesse com pressa. E veja: diz que pretende parar para descansar no caminho de volta.

— Mesmo que parasse em algum lugar, já deveria ter chegado há muito tempo. E por que escreveu para o Sr. Hawkins e não para mim? Enviei-lhe meu endereço aqui em Whitby. — Um temor súbito me envolveu, arrebatando-me todos os sentidos de tal forma que precisei me sentar na cadeira mais próxima. — Seria possível uma coisa dessas? Que Jonathan tenha conhecido outra mulher na viagem? Que seja essa a razão para o silêncio dele?

— Outra mulher? — exclamou Lucy, espantada. — Jamais! Jonathan é tão fiel quanto você, Mina Murray. Está apaixonadíssimo, e vocês dois são as pessoas mais fiéis que já conheci. Ele jamais olharia uma segunda vez para outra mulher, isso eu posso lhe assegurar.

— Você acha mesmo?— Eu sei. Você vai se casar com o Jonathan, Mina. Tenho certeza de

que existe uma razão simples para o silêncio dele e saberemos quando chegar a hora. Ele vai voltar para casa para ficar com você, posso garantir.

Passaram-se quase quinze dias sem mais notícias do Jonathan, mantendo-me num estado de aflição bastante deplorável. Mas Lucy recebeu notícias do Arthur. Para decepção dela, entretanto, ele precisou adiar a visita, pois o pai adoecera, o que, por sua vez, adiou nosso plano de subir o rio remando, algo pelo qual ansiávamos.

Para aumentar a ansiedade, Lucy continuou sofrendo de sonam-bulismo. A cada um dos episódios, eu era acordada pela agitação dela no quarto, determinada a encontrar uma saída. Passei a dormir com a chave amarrada ao meu pulso. Apesar disso tudo, desfrutamos dos dias que passamos juntas, passeando pela cidade ou em novas visitas ao Penhasco do Leste, ou ainda em caminhadas maiores até os vilarejos das redondezas. Embora tomássemos o cuidado de usar chapéu, a Sra.

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Westenra comentou satisfeita que o rosto de Lucy perdera o tom pálido e assumira uma coloração mais rosada.

No dia seis de agosto, o tempo mudou. O sol se escondeu atrás de nuvens pesadas, as ondas do mar passaram a quebrar com estrondo nas areias brancas da praia e tudo se envolveu em uma densa névoa cinzenta.

— Vamos ter tempestade, mocinha, e das boas! Escute o que estou dizendo — disse o velho Sr. Swales vindo sentar-se ao meu lado no banco do cemitério atrás da igreja. Era um velhinho simpático, mas naquela tarde ficou reclamando o tempo todo, só queria falar de morte. De olhos fixos no mar, disse em tom fatídico: — Talvez seja este vento vindo do mar que está trazendo desastres e prejuízos, e muita mágoa, e tristeza... Olhe! Dá para ouvir, e para ver, e sentir o gosto! E tem cheiro de morte!

Suas palavras me irritaram. Embora soubesse que sua intenção não era ruim, senti-me aliviada quando ele foi embora. Fiquei algum tempo escrevendo no meu diário e olhando os barcos de pesca voltando depressa para a segurança do porto. Um navio em alto-mar atraiu minha atenção. Era uma embarcação de tamanho considerável, rumando para oeste na direção do nosso litoral com todas as velas enfunadas, mas balançava de maneira muito estranha, como se mudasse de direção a cada rajada.

Quando passou com sua luneta em punho, o funcionário da guarda costeira parou para falar comigo, olhando sem parar para a mesma embarcação.

— É russa, pelo que parece — disse —, mas não sabe bem o que quer e se apruma da maneira mais estranha. É como se visse a tempes-tade chegando, mas não conseguisse decidir se toma o rumo do norte ou se vem para cá.

O dia seguinte amanheceu nublado e frio, e a escuna esquisita ain-da estava lá, boiando tranquilamente sobre os vagalhões, com as velas batendo de acordo com o vento. Depois do chá da tarde, Lucy e eu voltamos para o topo do penhasco, onde havia uma pequena multidão de curiosos observando o navio e vendo o pôr do sol — tão lindo com a massa das nuvens tingidas por todos os tons crepusculares, do ver-melho ao roxo, violeta, rosa, verde, amarelo e dourado —, que parecia impossível acreditar na iminência de mau tempo.

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Mas, à noitinha, o ar ficou aterradoramente estático. À meia-noite, quando Lucy e eu já nos encontrávamos na segurança e no aconchego de nossas camas, um estrondo surdo e distante irrompeu do horizonte distante e chegou à terra firme, fazendo desabar subitamente o tem-poral. A chuva caía enfurecida, batendo forte em telhados, janelas e chaminés. Cada estampido de trovão parecia um canhão disparado a distância, fazendo-me tremer. Fiquei atordoada demais para conseguir dormir e, durante mais de uma hora, ouvi Lucy se revirando de um lado para o outro na cama ao lado. Afinal, caí num sono agitado e tive um sonho estranho.

Talvez eu tenha uma imaginação muito fértil; talvez esteja no meu sangue; mas sou propensa a ter sonhos vívidos, e sonho todas as noites, a noite inteira, desde menininha. Em qualquer momento que desperte, lembro-me do sonho que estava tendo com riqueza de detalhes, e sem-pre levo alguns minutos para me convencer de que não era verdade. Às vezes são sonhos bobos, meigos, com emaranhados de fantasias que incorporam passagens do dia anterior; outras vezes são pesadelos, ma-nifestações assombrosas dos meus medos mais obscuros; mas raramente significaram presságios ou sinais do que o futuro me reserva.

Nessa noite, sonhei que estava novamente nos meus aposentos da escola, só que não era a escola que frequentei e onde trabalhei: era um lugar que não reconheci. Na calada da noite, sob um luar resplandecente, eu atravessava um corredor comprido e frio, em busca de alguma coisa, sem saber o que era. Lá fora um vento soprava forte, agitando a copa das árvores, fazendo ranger o madeirame dos telhados e projetando vultos nas paredes. Meus pés descalços pisavam as tábuas frias do soalho e eu estremecia dentro da fina camisola de dormir. Eu queria voltar para o calor e o aconchego da minha cama, mas não conseguia; só conseguia andar para a frente, um passo de cada vez, compelida a seguir adiante por uma força desconhecida.

De repente, uma voz profunda e tranquila soou em meio à escuridão:— Meu amor!Jonathan estava me chamando? Ele estava aqui, afinal?

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— Onde você está, Jonathan? — perguntei, percorrendo às pressas aquele corredor tortuoso e sem fim, passando por inúmeras portas.

— Meu amor! — ouvi de novo.Subitamente, me dei conta de que não era Jonathan, mas uma voz

que nunca tinha ouvido antes. Corri, afobada, por uma curva acentuada e parei prontamente diante de uma porta que se abriu bem à minha frente. Emergiu dela um vulto alto e obscuro. Era homem ou fera? Não conseguia dizer ao certo. No corredor sombrio, não distingui os traços daquele ser; apenas dois olhos reluzentes, vermelhos — uma visão alarmante que me tirou o fôlego.

Ele — ou aquilo — se aproximou e parou diante de mim, proferindo palavras num tom suave que me deu calafrios, palavras que eram ao mesmo tempo cativantes e estranhamente persuasivas:

— Estou indo buscá-la.

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