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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MESTRADO EM EDUCAÇÃO LUCYENNE MATOS DA COSTA TRADUÇÕES E MARCAS CULTURAIS DOS SURDOS CAPIXABAS: OS DISCURSOS DESCONSTRUÍDOS QUANDO A RESISTÊNCIA CONTA A HISTÓRIA Vitória 2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

MESTRADO EM EDUCAÇÃO

LUCYENNE MATOS DA COSTA

TRADUÇÕES E MARCAS CULTURAIS DOS SURDOS CAPIXABAS: OS DISCURSOS DESCONSTRUÍDOS QUANDO A

RESISTÊNCIA CONTA A HISTÓRIA

Vitória 2007

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LUCYENNE MATOS DA COSTA

TRADUÇÕES E MARCAS CULTURAIS DOS SURDOS CAPIXABAS: OS DISCURSOS DESCONSTRUÍDOS QUANDO A

RESISTÊNCIA CONTA A HISTÓRIA

Vitória 2007

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro Pedagógico da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção de título de Mestre em Educação, na linha de pesquisa “Educação Especial: Abordagens e Tendências”. Orientadora: Professora Dra. Sonia Lopes Victor

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LUCYENNE MATOS DA COSTA

TRADUÇÕES E MARCAS CULTURAIS DOS SURDOS CAPIXABAS: OS DISCURSOS DESCONSTRUÍDOS QUANDO A

RESISTÊNCIA CONTA A HISTÓRIA

Aprovada em 30 de março de 2007.

Comissão Examinadora

___________________________________

Professora Doutora Sonia Lopes Victor

Universidade Federal do Espírito Santo

________________________________________________

Professora Doutora Maria Aparecida Santos Corrêa Barreto

Universidade Federal do Espírito Santo

_____________________________________

Professora Doutor Carlos Eduardo Ferraço

Universidade Federal do Espírito Santo

_____________________________________

Professora Doutora Gladis Terezinha T. Perlin

Universidade Federal de Santa Catarina

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Educação do Centro Pedagógico da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre em Educação.

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Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)

Costa, Lucyenne Matos da, 1979- C837t Traduções e marcas culturais dos surdos capixabas : os discursos

desconstruídos quando a resistência conta a história / Lucyenne Matos da Costa. – 2007.

186 f. : il. Orientadora: Sonia Lopes Victor. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito Santo,

Centro de Educação. 1. Surdos. 2. Surdos - Educação. 3 Cultura. 4. Traduções. I. Victor,

Sonia Lopes. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Educação. III. Título.

CDU: 37

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A Deus, que sabe o propósito de tudo isso.

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AGRADECIMENTOS

Ao meu maridão, Leonardo, meu grande amor, incentivador, protetor, líder, amigo e

conselheiro nas horas mais inusitadas. Obrigada por compreender minha ausência, e

por me presentear com sua presença. Você diz que sou a mulher de Provérbios 31. Se

a sou, é porque tenho você para quem ser.

A minha família: o começo, meio e fim de tudo o que fiz. Essencialmente a meus pais,

Sandoval e Lucia, os primeiros surdos que eu conheci e por quem fui criada. Sua

cultura e sua língua permearam minha vida desde o berço, e é com esse e com muitos

outros trabalhos que virão que demonstro meu reconhecimento. À minha avó, Donatília,

e à minha tia Lucy. Se sou dada ao amor pela leitura e pesquisa, é pelo exemplo de

vocês.

A Sonia, minha orientadora, amiga, que confiou em mim, me deu uma chance e tem um

carinho todo especial pelo movimento surdo. Você, Sonia, merece todo o meu respeito,

todo o meu carinho e toda minha gratidão pelo que fez por mim nesses dois anos de

mestrado. A sua orientação, suas dicas me ajudaram muito a amadurecer a minha

discussão, o meu texto. Muito obrigada por tudo. Lembre-se de que ainda estamos

juntas nessa caminhada!

A Gládis, minha querida amiga, minha professora e minha incentivadora. Não me

esqueço do nosso início, quando eu era apenas uma fã e você uma grande apoiadora.

Uma luz. Lembro-me de que aprendi muito com você naqueles tempos. Hoje, a minha

maior alegria, foi tê-la encontrado novamente, já em tempos de pesquisa, de

sistematização teórica de nossas lutas. Seu apoio foi fundamental, seu olhar surdo me

deu segurança de que o caminho que estava trilhando era um bom caminho.

Ao professor Carlos Eduardo Ferraço pelo olhar teórico caprichado em minha pesquisa

desde a banca de qualificação. Obrigada pela significativa contribuição dada a este

trabalho.

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À professora Cida que aceitou com muito bom grado participar da minha banca. Mais

do que isso, participou todo o tempo da minha formação acadêmica. Obrigada pelo seu

olhar carinhoso e cuidadoso todo o tempo.

Às minhas amigas de “pesquisa surdas” Patrícia Luiza e Karin Strobel. Incentivadoras,

leitoras ávidas do meu texto. Muito obrigada pelos momentos compartilhados.

À minha grande amiga (e por que não, irmã) Keli. Sonhamos juntas, construímos juntas

os projetos e acreditamos mesmo que tudo vai dar certo. Uma intérprete fabulosa com

um futuro brilhante! Muito obrigada pelas dicas, pelas sugestões e saiba que muito do

meu texto tem você inscrita.

Jefferson, meu grande irmão, que me ajudou a corrigir o texto, me sugeriu narradores,

apontou caminhos; e Regina, minha amiga maluca. São companheiros de batalhas e de

“viagens”. Graças a vocês tenho ido mais longe a cada dia mesmo sem perder o rumo –

já o juízo, esse ficou lá atrás...

À minha “galerinha do mestrado”: Zínia, Renata, Wirlandia e Marcela. Vocês, sim,

sabem o que é perder a cabeça, a paciência, a coragem... Mas juntas também

encontrávamos cada uma dessas coisas, e as colocávamos de volta no lugar.

Choramos juntas, rimos juntas e trocamos muitas figurinhas, lemos nossos textos,

colocamos opiniões, nos apoiamos. Estávamos no mesmo barco e se cheguei até aqui

é porque vocês remaram junto comigo.

À Pollyana e todas que me receberam no sul do Estado. Quando eu menos esperava,

você teve uma participação fundamental neste trabalho: recebeu-me em sua casa e a

transformou na sede improvisada do que eu chamaria de “Encontro com Surdos do Sul-

Capixaba”, com direito a estada e a traslado! Sua ajuda não tem preço.

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E Sara, obrigada por ter cuidado do meu abstract, e meu cunhado Rodolpho, por ter

digitado várias narrativas, ajudando-me quando mais precisei desse tempo livre.

Enfim, a todos os surdos que dialogaram comigo, contando-me suas histórias, narrando

e compartilhando suas experiências de vida. Sei que há muito mais a ser dito, mas não

faltarão oportunidades. A história está só começando, e todos nós fazemos parte dela.

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“Enquanto houver duas pessoas surdas sobre a face da terra e elas se encontrarem, serão usados sinais.”

J. Schuyler Long

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RESUMO

Narrar, traduzir e vivenciar experiências surdas faz parte deste trabalho que traz em seu

conteúdo a busca constante de contar outras histórias esquecidas no cotidiano escolar

desses sujeitos, que até hoje sofrem a negação de sua língua e de suas marcas

culturais em seu processo educativo. Esta pesquisa também traça um pouco da minha

trajetória como filha de surdos e participante/observadora dos movimentos dessa

comunidade. Por meio dos diálogos com as narrativas correntes entre as comunidades

surdas (as narrativas tão anunciadas como fundamentais para as narrativas da

inclusão) e com o registro dessas histórias marginais, fica clara a tentativa de

construção de outro olhar sobre os surdos capixabas como base para mudanças de

representações ouvintistas construídas historicamente. Essa tentativa se constitui na

base teórica dos Estudos Surdos em educação que se aproxima do campo do pós-

colonial, do pós-estruturalismo e dos Estudos Culturais. Como metodologia, a busca por

essas narrativas que estabelecem as redes invisíveis através das histórias que marcam

e traduzem os surdos capixabas, instituindo-os enquanto povo.

Palavras-Chave: Povo surdo. Estudos Surdos. Marcas culturais. Língua de sinais.

Traduções.

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ABSTRACT To narrate, translate and live experiences of the deaf are a part of this work, which

brings in its content the wish to tell other forgotten stories about the everyday school

experiences of subjects who, up to now, have endured the lack of language and cultural

marks in their educational process. This research also speaks of my own trajectory as

the child of deaf parents, as well as a participant/observer of the movements of that

community. Through the dialogues with the narratives which are current in the deaf

community, (the so announced narratives which are fundamental for inclusion), and the

register of these marginal stories, the attempt to construct another look upon the deaf in

our State as a basis for changes in the representations which have been historically built

becomes clear. This attempt supports the theories on Deaf Studies that follow Post -

Colonialism, Post-Structuralism, and Cultural Studies. As a methodological guide, the

search for those narratives that can form the invisible web of stories that mark and

translate the deaf of our State, and which turn them into citizens.

Key-words : Deaf people. Deaf Studies. Cultural marks. Signs language. Translation

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: ENTRE OLHARES E TRADUÇÕES: A ARTE DE TR ADUZIR O INTRADUZÍVEL DE ONDE EU FALO E DE QUEM EU FALO?.........................................................14 1 A CONSTRUÇÃO DO MEU OLHAR: SERÁ QUE ESTÁ PRONTO? O QUE FALTA CONSTRUIR?.............................................................................................19 1.1 A MINHA NARRATIVA: O QUE CONTO AQUI?...............................................20 2 AS TRADUÇÕES E OS TERRITÓRIOS NA DISCUSSÃO SOBRE AS QUESTÕES SURDAS: QUAL MEU COMPROMISSO COM A TEORIA?......... ....36 2.1 A QUESTÃO DA MODERNIDADE ...................................................................37 2.2 OS ESTUDOS SURDOS EM EDUCAÇÃO.......................................................45 2.2.1 O Estudos Surdos no território da Pós-Colonialidade ..............................49 2.2.2 Os Estudos Surdos no território do Pós-Estruturalis mo ..........................53 2.2.3 Os Estudos Surdos no território dos Estudos Cultura is ..........................57

2.3 METODOLOGIA DA PESQUISA REALIZADA..................................................63

2.3.1 Narrativas .......................................................................................................64

3 ALGUMAS HISTÓRIAS SURDAS: O DIÁLOGO QUE CONSTRÓI A DIFERENÇA E DESCONSTRÓI AS VELHAS NARRATIVAS .................. ............70 3.1 NARRATIVAS E NARRATIVIDADES: O ATO DE NARRAR.............................71 3.1.1 Ainda sobre as narrativas: alguns conceitos importa ntes .......................73 3.1.2 A questão da tradução .................................................................................74 3.2 HISTÓRIAS SURDAS: CRIAR UMA LÍNGUA, VIVER NO MUNDO!!...............76 3.3 ATOS INSURGENTES......................................................................................82 3.4 CAFÉ-COM-LEITE............................................................................................85

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3.5 DIALOGANDO COM MIGUEL, COM SEBASTIÃO E COM JOÃO..................88 4 AS NARRATIVAS SURDAS COMO NARRATIVAS DA EDUCAÇÃO: O QUE OS SURDOS TÊM A DIZER SOBRE ISSO?..................... ..........................................97 4.1 AS NARRATIVAS SURDAS..............................................................................98 4.2 TRAJETÓRIA DOS MOVIMENTOS SURDOS CAPIXABAS: ARTEFATOS, NARRATIVAS, TRADUÇÕES E MARCAS DE UMA CULTURA...........................101 4.2.1 Nos manifestamos .....................................................................................104 4.2.2 Continuamos nos manifestamos: nossos movimentos, no ssos sentimentos .........................................................................................................111 4.2.3 Ainda continuamos nos manifestando: as práticas ped agógicas/ clínicas em foco ................................................................................................................114 4.2.3.1 A supressão do uso da língua de sinais ...................................................115 4.2.3.2 As práticas pedagógicas/clínicas na escola: o currículo e as práticas rotineiras ...............................................................................................................122 4.2.3.3 A “escola dos ouvintes”: o movimento atual de inclusão escola em foco........................................................................................................................133 5 AS NARRATIVAS SURDAS: O QUE PENSAMOS SER MELHOR N A NOSSA EDUCAÇÃO?.......................................... ..............................................................150 5.1 AS PROPOSTAS EDUCACIONAIS DOS NARRADORES SURDOS.............151 5.1.2 E, por fim, propomos em nosso manifesto ..............................................151 5.2 PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NAS FALAS DOS NARRADORES...................159 5.2.1 O que é, afinal, a Pedagogia Surda? .........................................................160 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS: AS NARRATIVAS SURDAS E AS N OTÍCIAS DO NOSSO ESTADO .................................................................................................164 6.1 ENCERRAR O ASSUNTO? SERÁ POSSÍVEL?.............................................165 REFERÊNCIAS ............................................................................................................169 ANEXO A ........................................... ...................................................................175 ANEXO B............................................ ...................................................................176

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ENTRE OLHARES E TRADUÇÕES: A ARTE DE TRADUZIR O

INTRADUZÍVEL

Ainda bem que o que eu vou escrever já deve estar na certa de algum modo, escrito em mim...

Clarice Lispector

DE ONDE EU FALO E DE QUEM EU FALO?

Esta expressão está relacionada diretamente com a questão local e pessoal. De onde

falo? Será que existe um lugar para falar? Será que existe esse lugar que privilegia ou

legitima minha pesquisa? Se existe, que lugar é este? Se não, por que explicar este

lugar?

O fato de ser ouvinte, filha de surdos, e ter aprendido a língua de sinais desde quando

não lembro, me legitima a falar sobre quem eu me proponho a falar? Esse lugar pode

me autorizar a falar sobre surdos, que é com quem quero falar?

Por mais que eu tente, não conseguiria escrever nada que me proponho, sem, antes,

considerar os caminhos que percorri e percorro para a construção do meu objeto de

pesquisa. Acredito ser esse um caminho natural, uma vez que estou implicada,

existencialmente, em todas as minhas escolhas teóricas e metodológicas.

Discutir aqui o local da cultura surda capixaba e a sua constituição como resistência é

uma viagem à minha infância e à adolescência de forma tão interessante quanto

comprometida. Confesso que ser filha de surdos, neste momento da minha vida e da

pesquisa, tem sido desafiante, afinal, tenho que lidar com minhas memórias, histórias,

vivências e intimidades e, ao mesmo tempo, ser disciplinada o suficiente para lidar com

a minha relação indissociável com o meu objeto de pesquisa. Essa implicação me

objetiva, também, tornando o meu objeto em sujeito e tornando o que deveria,

potencialmente, ser sujeito (eu, a pesquisadora) em objeto. A objetificação do sujeito

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nesta pesquisa e a “subjetificação” do objeto evidenciam que neste estudo, sujeito e

objeto são indissociáveis.

Não falar desse caminho seria não explicar o lugar de onde falo, as traduções que

justificam a minha opção teórica, que estão relacionadas com a minha história, raízes e

existência. Esse lugar implica responder, de uma certa forma, a um movimento social

representado aqui por um grupo: os surdos.

Procurei, de alguma forma, desenvolver uma pesquisa que não, necessariamente,

falasse sobre os surdos, mas que, minimamente, conversasse e dialogasse com as

narrativas vividas. Eu falo de um lugar que, por muito tempo, participou de suas

queixas, lutas, resistências e movimentos. Será que esse ato me autoriza a falar do que

pretendo? Peço licença ao meu grupo de pesquisados para falar com eles, conversar

com suas questões. Concordar, discordar, problematizar, polemizar. Peço aqui a

autorização devida para anunciar que esta pesquisa é um profundo exercício de

reflexão, escuta e proposições teóricas que podem expor, de algum modo, a nossa

história de lutas, certezas e incertezas. Essa luta me autoriza a falar, a colocar-me em

situação de pesquisadora e também objeto de pesquisa, já que, entre as narrativas

evidenciadas, encontra-se a minha.

Enfim, este trabalho não pretende discutir o corpo surdo e seus defeitos na visão da

modernidade. Mas analisar como as traduções das marcas culturais surdas e dos

movimentos podem desconstruir o discurso colonial produzindo, assim, resistências.

Bhabha (2005) me tocou profundamente, quando afirmou que o posicionamento teórico

escolhido se realiza de acordo com a tradução do objeto. “Cada objetivo é construído

sobre o traço daquela perspectiva que ele rasura; cada objeto político é determinado

em relação ao outro e deslocado no mesmo ato crítico” (p. 53). Logo imaginei que todas

as minhas vivências, experiências e histórias são variáveis determinantes nas minhas

traduções sobre as narrativas surdas, sobre os movimentos surdos e sobre a trama

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histórica imbricada na construção dos discursos da resistência. Eu mesma produzida e

produzindo esse discurso.

Nos caminhos teóricos percorridos como resultado de minhas traduções, quero refletir

sobre os processos de tensão na negociação do meu objeto nas conversas com meus

interlocutores e nas buscas pelas leituras de melhor representatividade das minhas

intenções de diálogo com aqueles surdos os quais procurei; e com os “não procurados”

também.

Falando do texto em si, nesta primeira parte, fiz um exercício de reflexão e auto-

reflexão sobre a minha pesquisa, sobre os diálogos e traduções possíveis deste

trabalho.

No primeiro capítulo, entro na descrição do percurso teórico metodológico que construí

para definir o meu objeto de pesquisa. Utilizo esse momento para narrar minhas

histórias e, ao mesmo tempo, definir a problemática da pesquisa. Conto com as minhas

narrativas para descrever, como testemunha ocular, todo um movimento capixaba pela

luta do reconhecimento dos surdos como sujeitos culturais e não como os deficientes

auditivos da educação especial. De alguma forma, neste capítulo, conto com a

desconstrução de todo o processo de constituição dos discursos coloniais. Essa

desconstrução ocorreu em mim também, após tantas leituras, conversas e desabafos.

No segundo capítulo, faço o exercício acadêmico que não pode faltar nos trabalhos que

são nomeados assim, pois detalho os recortes dos territórios teóricos possíveis nas

análises das narrativas que compõem a pesquisa. Esses territórios são traçados de

acordo com minhas traduções das teorias relevantes para discutir as “questões surdas”

numa perspectiva política, cultural e histórica, dialogando com as narrativas.

Elejo a pós-colonialidade proposta por Bhabha (2005), pois acredito existirem nos

domínios longe da Modernidade, as possibilidades de se pensar as questões surdas

com outro olhar.

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Também me aproprio de algumas questões pós-estruturalistas para discutir a trama

histórica fundamental nos percursos e nas relações de poder existentes nas práticas de

controle e amordaçamento do corpo surdo, constituindo, assim, uma ordem do discurso

perversa que abriga este corpo “anormal”.

E acrescento às teorias propostas a perspectiva dos Estudos Culturais de Stuart Hall

(1998), a fim de dialogar com a forma peculiar da marca cultural dos surdos: a

constituição da comunidade surda e do povo surdo simbólico.

Aproveito para, além de relatar o problema de pesquisa e os objetivos dela, tratar, neste

capítulo, da metodologia, na busca das histórias e utilização das narrativas neste

espaço que se deu de várias maneiras. Tento dar uma certa visibilidade aos sujeitos

que dialogaram comigo, sendo tão amáveis e, ao mesmo tempo, sentindo a

responsabilidade do ato de narrar, o que era, para alguns, histórias íntimas e, para

outros, histórias coletivas, tanto de forma catártica, quanto como ato de bravura e de

denúncia. Narravam os acontecimentos como se esta pesquisa pudesse punir os

responsáveis por atos tão insanos e, ao mesmo tempo, tão naturalizados por seus

feitores. Por fim, uma forma de compartilhar sentimentos, angústias, dores, alegrias,

criatividades.

No terceiro capítulo, registro as histórias contadas em Língua Brasileira de Sinais

(Libras) por três surdos de diferentes lugares. Seleciono as três histórias escolares que

me tocaram profundamente em todo o trabalho. Esses contos selecionados apresentam

em seu conteúdo, diversas formas de tradução sobre a resistência que desconstrói o

discurso colonial sem criar contradições, como: surdo X ouvinte, gestualidade X

oralidade, por exemplo. Vale ressaltar a dificuldade no ato de traduzir as falas dos

surdos, ou seja, a preocupação em tentar ser o mais fiel possível nas interpretações,

pois não é apenas o ato de analisar as falas em si que torna a dimensão do trabalho

interessante. Traduzir as falas de uma língua, visual e espacial, com uma composição

não-linear de suas proposições para uma língua linear, oral e auditiva, não deixa de já

ser uma análise atravessada pela minha tradução teórica de todo o objeto, já que, neste

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momento histórico, ainda não posso “escrever” uma dissertação em Libras por

enquanto.

No quarto capítulo, trato dos movimentos surdos, de sua trajetória na busca de outros

olhares e de outras traduções que não fossem os recorrentes pautados numa ordem

discursiva em que se hospeda a educação especial. Trato dessas questões refletindo

sobre um documento denominado “Manifesto Surdo Capixaba", que serviu de panfleto

num movimento político realizado pelos surdos e por simpatizantes ouvintes pela causa.

Acrescento a essa reflexão as falas dos surdos, suas narrativas e histórias. Essas

histórias levantam pontos-chave na construção de práticas que se propõem inclusivas e

políticas públicas educacionais.

Já no quinto capítulo, apresento a proposta educacional das narrativas surdas,

refletindo sobre as políticas públicas educacionais que são necessárias e devem levar

em conta alguns princípios elencados nas narrativas desses interlocutores. Ressalto as

possibilidades de outras construções políticas, de práticas pedagógicas, deixando em

aberto outras possibilidades de atuações dão base a discussão desta dissertação.

O último capítulo, como de praxe, as considerações finais. Na verdade, a tentativa de

não finalizar os olhares e as discussões fica clara neste capítulo. Faço um apanhado de

tudo que me tocou neste trabalho e uma narrativa quase “jornalística”, noticiando os

últimos acontecimentos do Estado, inserindo, assim, esta pesquisa na trama histórica

local.

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Primeiro capítuloPrimeiro capítuloPrimeiro capítuloPrimeiro capítulo

A construção do meu olhar: será que está

pronto? O que falta construir?

“[...] Ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e levado a bem além de todo começo possível. [...] Mas o que há,

enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos, proliferarem indefinidamente? Onde, afinal, está o perigo?”

Michael Foucault

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1.1 A MINHA NARRATIVA: O QUE CONTO AQUI?

Segundo Benjamim (1996, p.197), “[...] a arte de narrar está em vias de extinção e são

cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente”. Todavia, é justamente

com as narrativas que conto para desvelar UMA1 OUTRA história da educação dos

surdos, sem a pretensão de defini-la como certa ou a melhor. A história que tento

contar nesta dissertação é UMA tradução sobre os movimentos surdos capixabas. Ou

melhor, a MINHA tradução.

Então, por que narrar? Por que contar histórias?

“Quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha

dessa companhia” (BENJAMIM, 1996, p. 213). Meu desejo é contar uma história

partilhando da companhia dos narradores surdos. E também, quando alguém ler as

minhas narrativas, partilhará comigo dessa companhia.

Não tenho a pretensão de me colocar à altura do padrão de narrador “devido” que

Benjamim defende. Todavia tento me utilizar das duas figuras que o autor exalta

quando afirma que sempre têm histórias para contar: o marujo e o camponês. Ou seja,

eu mesma sou ora maruja, ora camponesa.

Maruja porque os viajantes têm muitas histórias para contar; camponesa porque uma

pessoa honesta que ganha a vida e conhece as histórias e tradições de seu povo

também é escutada com prazer (BENJAMIM, 1996).

1 Este “UMA” apresenta na verdade uma possibilidade admitindo a existência de outras possibilidades.

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Talvez eu seja mais camponesa, porém também sou maruja, porque, afinal, tive que ir

longe para confirmar minha pretensão de pesquisa.2 Tive que ir longe para perceber

como queria narrar as minhas histórias.

I

O fato de ser filha de surdos já me rendeu muitas histórias. Era a menininha do grupo

de surdos. Era aquela ouvinte que sabia sinais. Era aquela que podia interpretar

também, já que saber língua de sinais e ser ouvinte era ser uma “ouvinte – quase –

surda”, que poderia ser surda ou ouvinte!

Ir às festas da escola oralista (acho que ia desde os 2 ou 3 anos de idade) era a

oportunidade perfeita para as demonstrações públicas da inteligência desta “ouvinte –

quase – surda”: “Olha, tão pequena e como sabe sinais! E vocês, já velhas, não sabem

nada de sinais. Como pode?”. Era essa a fala de meu pai, orgulhoso da sua pequena

quase surda, mas também ouvinte.

O que era ser surdo para mim? Demorei a compreender essa palavra. Era normal ser

surdo. E o que era ser ouvinte? Não percebia a diferença entre esses dois mundos.

Se bem me recordo, numa visita à escola, me vem uma pergunta incômoda: “Por que

você fala em sinais com seu pai? Ele sabe falar”. Puxa, eu estava lá conversando

tranqüilamente com meu pai em sinais, quando a professora me indagou. Eu respondi

2Jamais poderia deixar de mencionar uma viajem para Porto Alegre e depois para Florianópolis que fez parte da minha pesquisa. Não poderia deixar de narrar essa experiência que foi única e singular. Conheci amigas surdas no orkut em uma comunidade onde discutíamos os temas de nossas pesquisas sobre surdos: Karin Strobel, Patrícia Luiza e Flaviane Reis.. Hoje, quando vejo o rumo da minha pesquisa, fico emocionada por lembrar daqueles tempos de discussões “orkutianas”. Depois, no msn (mensenger), nos aproximamos mais e, assim, tive a chance de ter algo imprescindível e fundamental: o olhar surdo acadêmico sobre a minha pesquisa. A troca, a partilha, as lamúrias faziam parte desse processo. Pois bem, enviei um artigo contendo elementos da minha pesquisa para o 2ª Seminário Brasileiro de Estudos Culturais e Educação, realizado na ULBRA, em Canoas/ RS, em agosto de 2006, e foi aprovado o meu trabalho para apresentação. Sem o apoio de Renatinha (minha irmã de mestrado que financiou minha inscrição) e de Patrícia Luiza (que me arrumou lugar para dormir) jamais teria tido uma experiência como tive: compartilhar minha pretensão de pesquisa com outros pesquisadores surdos que inferiram e compartilharam do meu trabalho.

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na “inocência” dos meus sete anos: “Mas por que você não conversa em sinais com

meu pai? Ele fala tudo errado e tão mal...”

Eu falava muitas palavras erradas na escola. Eu não sabia que meu pai falava errado.

Mas depois fui percebendo que não poderia repetir o que ele falava. Meus coleguinhas

riam de mim. E aí? Perguntei a minha avó: “Vó, por que papai fala errado? Os meninos

riem de mim”. E ela me respondeu: “Porque ele é ‘surdo-mudo,’ minha filha, os surdos-

mudos não sabem falar certo”.

O que era “surdo-mudo”3? Quem era meu pai? Quem era minha mãe? Meus tios? A

minha babá? Eram aqueles que não falavam certo? Será que eu era “surda-muda”? Já

que meu pai e minha mãe eram... “Acho que não”, pensei. “Eu falo certo”. Claro que

percebia a diferença dos meus pais. Mas não sabia que essa diferença era tema de

tantas discussões. O que era isso? Compreendi melhor, quando percebi que não

poderia falar como meu pai falava. Vovó, então, passou a ser aquela que decifrava as

palavras de papai:

– Vó, que palavra é essa?

– Que palavra?

– Essa, com este sinal... eu sei que papai fala errado. Então, como é o certo?

– Fala como ele, fala que vou decifrar para você.

E assim eram todos os dias. Percebi, então, o que era o “surdo-mudo” e que eu não era

“surda-muda” e que o “surdo-mudo” falava errado e precisava que falássemos por ele

para decifrar suas palavras erradas. Eu, na verdade, era aquela que ouvia, aquela que

traduzia, aquela que decifrava, aquela que transmitia. Eu era o orgulho do meu pai, por

ter uma intérprete própria, sem precisar de pegar os filhos de seus amigos para

interpretar. O orgulho do meu pai, segundo ele, por ter uma filha faladeira nas duas

línguas e que sabia exatamente tudo o que eles conversavam. Prestava atenção e,

3 Este termo surdo-mudo utilizado aqui é, na verdade, em referência à história que está sendo contada. Utilizo o termo surdo em todo o trabalho como referência às pessoas surdas.

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quando não entendia um sinal, logo corria para perguntar: “O que significa esse sinal,

pai?”.

Então os surdos são surdos e ouvintes são ouvintes. Descobri que os ouvintes eram

maus, de acordo com a fala do meu tio.4 “Eles mandam na gente e nos discriminam.

Pensam que nós somos burros. Não podemos aceitar!”.

Pois é, ir às reuniões da formação de uma associação de surdos era a diversão do

momento. Brincar, correr, assistir aos debates e às falas. Livres, sem ouvintes. Os

únicos ouvintes eram eu, meu irmão, meus primos e os filhos dos outros surdos que lá

estavam. Corríamos o tempo todo, enquanto os surdos discutiam seu futuro, seu

passado e seu presente. Em momentos determinados, interpretávamos, quando alguns

ouvintes iam lá para assistir a essas reuniões. Que ouvintes chatos que iam lá!

Destoavam de todo o grupo!

Nessas interpretações, eu prestava muita atenção às falas indignadas recorrentes.

Lembro-me bem delas: “Os professores batem nas mãos”, “Eles obrigam a falar”,

“Inimigos dos sinais” etc. E eu perguntava aos meus pais: “Mas como bate nas mãos? É

errado... Pai, por que não pode usar sinais?”

“Claro que pode usar os sinais. Eu sei que é errado o que os ouvintes falam. Eles dizem

que os sinais são dos macacos. Mas não são dos macacos. São dos surdos. Por um

acaso, os surdos são macacos?”

Claro que surdos não são macacos. Nem surdos-mudos, nem mudinhos. Claro que

sinais não são dos macacos. São dos surdos. E meus também, que sou filha de surdos,

e de todos que os aprenderem, mesmo que não sejam filhos de surdos. Mas parecia

quase impossível. Não era, como outrora pensara, uma ouvinte que decifrava o que o

“surdo-mudo” falava “errado”, mas aquela que participava das lutas e que entendia que,

4 Surdo e presidente de uma associação de surdos fundada por ele mesmo.

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quando o surdo fala em Libras, ele fala “certo”. Agora, ouvintes aprenderem sinais?

Nunca vislumbramos momentos como os que vivemos hoje. Nunca imaginamos,

naquela época, que teríamos uma lei! Mas nunca desanimamos. Eles, com suas falas

reclamantes, e eu como intérprete. E ainda pensava: Impossível isso ser certo. Não

podia ser certo bater nas mãos dos surdos. Não podia ser certo obrigar alguém a ser o

que não é. Não podia.

II

Por meio de tantas questões levantadas pelos surdos, com as quais eu concordava, eu

mesma construía uma opinião sobre o que “eu” não achava que era certo. Minhas

perguntas iniciais, no meu primeiro projeto de pesquisa para o mestrado, sempre

estiveram voltadas para a educação dos surdos como usuários de uma língua diferente

da dos ouvintes, o que os constitui como grupo cultural. Afinal, em minhas vivências,

construí uma consciência política sobre

as “questões surdas”, mesmo quando as

questões clínicas eram fortes e

pautavam todo o imaginário social

vigente.

Pela minha participação constante com

o povo5 surdo, percebia que eram

resistentes às práticas denominadas

pedagógicas impostas e, sempre de

alguma forma, construíam suas

estratégias de sobrevivência a um

discurso colonizador, estereotipado e

estigmatizado. Por exemplo, falar em

língua de sinais, a maior transgressão

da época, era e é, de certa forma, o

nosso protesto não tão silencioso assim.

5 Termo utilizado por Perlin 2003, p. 19.

Figura 1: Evolution of ASL Fonte: http://bettigee.purple-swirl.com

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Sou testemunha ocular dessa história e, por isso, farei alguns relatos, lançando mão de

minhas memórias, respaldando-as com as falas de meus interlocutores surdos que

estarão presentes nesta pesquisa. Na verdade, o delineamento desta pesquisa foi feito

a muitas mãos e há muitos anos, desde quando eu participava das primeiras reuniões

administrativas dos surdos nas criações das primeiras associações: participando de

seus anseios, questionamentos, reclamações, reivindicações etc. Vendo-os construir

seu contradiscurso lançando mão da resistência, nunca desistindo de que um dia

seriam vistos, saindo, assim, da assimilação cultural e da invisibilidade a que eram

submetidos e jamais aceitando, passivamente, tudo o que a clínica6 lhes impunha e

impõe até hoje. Foi pensando nesse discurso resistente que delineei este tema para a

pesquisa.

Vale ressaltar aqui que, ao terminar o ensino médio, com habilitação no Curso Técnico

de Magistério, fui trabalhar com crianças ouvintes, como professora de 1ª e 2ª séries.

Meus pais me questionavam sobre o porquê de não ensinar os surdos, uma vez que eu

sabia língua de sinais. Todavia eu mesma afirmava que não seria capaz de tal façanha,

pelo simples fato de não ser oralista. Inclusive, naqueles anos,7 eu não conhecia

qualquer outra forma de trabalhar com surdos sem que fosse numa perspectiva

clínica/oralista e eu não estava com vontade de ensinar os surdos a falar. Afinal, o que

seria de toda a minha participação nos movimentos surdos? Isso seria um ato de

traição e eu jamais poderia traí-los.

Porém, pelo fato de ter Magistério, recebi um convite para trabalhar com duas crianças

surdas numa escola particular e como professora particular. Como se tratava de uma

escola privada, não havia discussões polemizadas por oposições binárias comuns:

surdo x ouvinte, gestualidade x oralidade em torno do que deveria ser ensinado a esses

alunos. Portanto tive carta branca para construir alguma proposta pedagógica possível.

Comecei a gerar algumas práticas e posicionamentos pedagógicos que eu achava estar

6 A clínica aqui está representada pela metodologia oralista que vigorou anos a fio na educação dos surdos como única possibilidade. 7 1996, 1997

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de acordo com o que eu defendia apenas em minha vivência, minha fluência no uso da

língua de sinais e estudos minimamente didáticos adquiridos no Magistério.

Todavia os movimentos de resistência surda pautavam o que eu realmente acreditava.

E por isso, automaticamente, me posicionava contra práticas clínicas, reabilitadoras e

normalizadoras8. Não tinha nenhuma leitura teórica sobre os movimentos políticos dos

surdos. Os livros a que tinha acesso eram centrados numa perspectiva clínica, os quais

não comungavam com as minhas idéias. E mesmo não tendo outra literatura, também

não me rendia aos cursos oralistas.

Nesse mesmo ano,9 tive meu primeiro contato, meio por acaso, com um livro sobre

surdos que havia acabado de ser lançado: “A Surdez: um olhar sobre as diferenças”, de

Carlos Skliar. Ao ler o primeiro capítulo do livro, além de optar, naquele instante, por

fazer Pedagogia e não Psicologia (como pretendia), preferi acreditar e me aprofundar

naquelas questões que o autor me colocava. Ou seja, alguém escrevera de forma

acadêmica tudo aquilo que eu acreditava na minha vivência! Alguém teorizava sobre os

movimentos surdos. Fiquei muito entusiasmada10 a continuar meus percursos e

acreditei mesmo que poderia propagar o que acreditava. A partir daquele ano, uma

guinada na minha vida acadêmica já estava dada. Além de iniciar com esse livro minha

primeira biblioteca particular, fiz minha opção pelos Estudos Surdos e iniciei o Curso de

Pedagogia na Universidade Federal.

Após terminar o meu Curso de Pedagogia, já com experiências de trabalho em escolas

públicas da Prefeitura de Vitória, que tinham a orientação da equipe de educação

especial da Secretaria Municipal de Educação (SEME) para um trabalho numa

8 Essas práticas se referem, neste trabalho, às chamadas práticas oralistas, porque ignoram a Língua de Sinais e os surdos como seres culturais, visando apenas à normalização e à cura do “ouvido doente”. 9 1998 10 Tão entusiasmada, que mandei cartinha escrita em próprio punho para o autor do livro. E virei fã de carteirinha do Carlos Skliar.

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perspectiva inclusiva, ingressei no Curso de Mestrado em Educação oferecido pela

própria Universidade.

A minha primeira proposta de pesquisa, ao ingressar no mestrado, era recheada de

questões pedagógicas que afligiam professores que, como eu, lidavam com os

questionamentos diários da inclusão na educação e um de seus aspectos mais

complicados: a inclusão de alunos surdos na escola regular. Essas questões me

acompanhavam e me acompanham desde o Curso Técnico em Magistério das séries

iniciais e, posteriormente, mais lapidadas, com a graduação em Pedagogia pela

Universidade Federal do Espírito Santo.

Tendo toda uma formação política sobre as questões surdas, muito me angustiava

conciliá-las com as discussões no domínio da educação especial11 e ainda relacioná-las

com meus questionamentos vividos por tantos anos junto aos surdos. Parecia que não

falávamos do mesmo surdo, do mesmo sujeito. Portanto, esse primeiro projeto foi

construído a partir de uma experiência de trabalho, numa perspectiva inclusiva,

realizado em 2003 e 2004, num Centro de Educação Infantil (CMEI) da Prefeitura de

Vitória, quando um aluno surdo freqüentava a sala de alunos ouvintes.

Questionava, no meu projeto, algumas proposições que ficaram sem respostas (como

se fosse possível ter respostas para essas questões) no trabalho realizado: a) as

diversas relações construídas no atendimento ao aluno surdo no laboratório

pedagógico12 e na sala de aula, numa perspectiva da inclusão na educação infantil; b) o

próprio funcionamento desse laboratório (meu local de trabalho), e o meu papel de

professora especialista, como recursos para inclusão e atendimento do aluno surdo; e

11 As discussões políticas sobre as questões surdas não se conciliam com as discussões da educação especial justamente por se ajustarem em diferentes ordens discursivas. A visão dos surdos como grupo que possui marcas culturais, uma língua própria, uma comunidade faz parte de uma política da surdez (WRIGLEY, 1996). A educação especial cria o D.A. (Deficiente Auditivo) e cultiva o bilingüismo tradicional. 12 Laboratório Pedagógico é um ambiente onde os alunos com deficiência têm atendimento pedagógico no contraturno da aula na sala regular. Esse tipo de trabalho é adotado pela educação especial no município de Vitória apesar de hoje as professoras especialistas estarem lotadas nas escolas para atenderem os alunos com necessidades educacionais especiais nas salas de aulas.

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c) a questão da língua dessa criança surda e o seu direito a ela nos documentos

oficiais. Nessa busca, verifico que os documentos norteadores do Ministério da

Educação (MEC) propunham uma forma de bilingüismo. Contudo, por não terem um

posicionamento claro, esses documentos podem ser interpretados de formas diferentes,

por pessoas diferentes.

Ao longo das leituras que vinha fazendo desses documentos e dos referenciais teóricos

que me propus, surgiam mais questionamentos e, portanto, mais lapidada ia ficando a

proposta de pesquisa: como se processava o pensamento de uma criança sem

conhecimento da língua de sinais? O que ela pensava de si mesma? Que identidade

tinha essa criança, uma vez que um dos principais objetivos gerais da educação infantil

era trabalhar a identidade e autonomia de todas as crianças? Seria possível trabalhar

todas as questões inclusivas, estudar e propiciar momentos de aprendizagem, se essa

criança fosse atendida duas vezes por semana no laboratório pedagógico, sem que a

professora especialista tivesse qualquer contato com a sala de aula? Sem saber quais

objetivos essa professora queria atingir com a turma? Conseqüentemente, com esse

aluno, fui percebendo que minhas inquietações pareciam insolúveis, porém comuns.

Ainda me pesava a responsabilidade de dar respostas às professoras, colegas de

trabalho, que compartilhavam do mesmo sentimento comigo.

Usei a base histórico-cultural para tentar responder a essas questões com autores que

tratam desse assunto, nessa perspectiva: Lacerda (2000), Góes (1999), Goldfeld

(2001), Silva (2002). Incluo aqui a utilização dos documentos do MEC – Referencial

Curricular Nacional para a Educação Infantil e “Saberes e Práticas da inclusão:

dificuldades de comunicação e sinalização-surdez” – em busca de respostas. Como

metodologia, nada como um bom estudo de caso do tipo etnográfico. De preferência

nesse CMEI com esse aluno surdo.

Porém existia ainda algo que me instigava, pois estava ligado à minha formação política

em frente à comunidade surda: cada surdo que entrava na escola comum (não importa

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como, quem ou quando), trazia consigo toda uma discussão teórica e política sobre

questões surdas variadas e essas discussões e posicionamentos pautavam toda uma

prática pedagógica a que era submetido.

Sabia que, dependendo da minha posição teórica, eu agiria com uma postura

pedagógica determinada. Não posso negar que a minha formação já era uma

“transgressão”,13 devido ao fato de nunca ter feito o curso para formação de

professores de “deficiência auditiva” (era marcada por isso) pautado no oralismo (único

existente por aqui). Eu estava nesse lugar devido ao meu domínio da língua de sinais e

à minha formação no Curso de Magistério e, posteriormente, da graduação em

Pedagogia.

Como testemunha ocular dos movimentos surdos capixabas ao final dos anos 80 e

início dos anos 90, eu sabia que um

trabalho, como o que estava

realizando naquele CMEI, não seria

possível naquela época.14 Aliás, nem

embasamento teórico havia para

pautar trabalhos com surdos que

admitissem língua de sinais mesmo

que fosse numa perspectiva inclusiva.

Portanto eu via a historicidade disso

tudo e como as mãos ávidas daquela

época, que reivindicavam esse lugar,

estavam sendo honradas!

13 Todo professor especialista na área de surdez, tinha que ter o curso de 200 horas de Oralismo naquela época. 14 Não seria possível pela própria concepção do oralismo, que era muito forte, a ponto de proibir a Língua de Sinais em todas as suas possibilidades de uso.

Figura 2 : Untitled Fonte: http://bettigee.purple-swirl.com

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No delineamento do meu projeto de qualificação, retomei minhas primeiras “leituras

transgressoras”15 baseada nos Estudos Surdos em Educação e nos estudos culturais. À

medida que fui me envolvendo novamente com autores como Skliar (1998, 1999, 2003),

Perlin (1998, 2000), fui focando o mesmo problema com outro olhar.

Vale ressaltar um autor como Skliar (1998), que sistematizou brilhantemente os estudos

“transgressores” sobre surdos que se aproxima da perspectiva pós-estruturalista,

denominando-os Estudos Surdos em Educação.

[...] a criação de um novo espaço acadêmico e de uma nova territorialidade educacional à qual denominamos: Estudos Surdos em Educação. Os Estudos Surdos se constituem enquanto um programa de pesquisa em educação, onde as identidades, as línguas, os projetos educacionais, a história, a arte, as comunidades e as culturas surdas são focalizados e entendidos a partir da diferença, a partir do seu reconhecimento político (1998, p. 5).

Também iniciei minhas primeiras leituras de Foucault (2005) e fui instigada a pensar as

questões históricas em que surdos e ouvintes estavam imbricados, ou seja, passei a me

perguntar como as questões surdas (e até as questões pedagógicas outrora descritas)

poderiam ser analisadas e resolvidas dentro de uma trama histórica sem nos

remetermos ao indivíduo. E, ainda, como as relações de poder criavam as práticas

resistentes dos surdos.

Para Foucault (2005, p. 8), o poder não é apenas representado como repressão, como

a força da proibição; o poder “[...] permeia, produz coisas, induz ao prazer” para ser

aceito. “Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo corpo

social, muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir”(p. 8). Ou

seja, esses discursos clínicos que permeiam a sociedade produz o contradiscurso ou o

15 Quando uso a expressão “transgressora”, é por se tratar de leituras que não eram pautadas no oralismo, trazendo uma proposta teórica diferente dentro de uma perspectiva dos estudos culturais e pós-estruturalistas. Essas leituras eu já fazia desde a época em que cursava o Magistério.

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discurso da resistência. Pensei muito mais nas redes tecidas nessas relações e muito

menos no indivíduo até chegar ao discurso vigente e ao discurso resistente.

Então, chamei de “discurso vigente” aquele que, historicamente, foi construído pela

sociedade sobre o surdo de forma estereotipada. Assim, lendo autores como Bhabha

(2005), fui refinando meu posicionamento teórico com a construção de conceitos, como

o de discurso colonial (que se aproximava do que eu mesma denominava, num outro

momento, de “vigente”).

Para Bhabha (2005), um aspecto importante do discurso colonial é o caráter

ambivalente na construção ideológica da alteridade.16 Essa ambivalência produz o

estereótipo, que é a sua principal estratégia discursiva. Por isso, é estabelecido nesse

território, um estereótipo do surdo oralizado, narrando-o como simulacro de uma vida

ouvinte. Tal estratégia, por sua vez, incita a resistência surda, expressa de formas

diferentes, por exemplo, suas marcas culturais que são constituídas nessas relações de

poder.

Ao ter acesso a um livro que se propõe a contar parte da história da educação dos

surdos capixabas numa perspectiva ouvintista,17 não tive dúvidas desse percurso que

minha pesquisa estava tomando. Pensei que o meu trabalho poderia dar visibilidade a

uma OUTRA história, já existente nas comunidades surdas, contada de OUTRO jeito e

imbricada nessa trama. Contada de um jeito surdo próprio, mas com miscelâneas das

histórias oficiais. Essa história é contada a partir da resistência que, segundo Perlin

(2004, p. 80),

[...] há belos relatos das formas de resistência do povo surdo diante da violência; esses relatos evocam a dinâmica profunda e gritante dessa violência. É difícil traduzir esses espaços de resistência, mas não é difícil traduzir que aí sobrevive um povo surdo recuperando sua cultura, lutando na construção de um nome.

16 “A condição daquilo que é diferente de mim; a condição de ser outro” (SILVA, 2000 p. 16). 17 Representações ouvintes sobre os surdos (SKLIAR, 1998).

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Continuando a viagem pelas minhas leituras na construção do meu objeto de pesquisa,

cabe, aqui, ressaltar Wrigley (1996) , outro autor que trabalha nessa perspectiva, com o

qual pude refinar mais as minhas questões levantadas. Em seu livro “A Política da

Surdez”, o autor vem desconstruindo a história oficial contada pelos “que ouvem”, por

meio de um estudo etnográfico com a comunidade surda tailandesa. Ele aborda

aspectos políticos da surdez utilizando os estudos pós-coloniais como base teórica.

Para o autor, além de a surdez dizer mais respeito à epistemologia do que à audiologia,

ela (a surdez) ainda nos fala de um corpo vigiado e que esse corpo é tema fundamental

nos estudos sobre alteridade e diferença. Por isso preciso deslocar, segundo o autor,

minha discussão do corpo danificado para uma discussão cultural relacionada com os

direitos legais e com uma vida com dispositivos visuais.

Tomando como base a proposta desse autor e outros que relatei (posteriormente serão

mais aprofundados neste mesmo texto), decidi, nesta pesquisa, sair um pouco do

trabalho colaborativo e pedagógico, não

que seja menos importante, mas por

compreender que é impossível dissociar

qualquer trabalho pedagógico de uma

trama histórica implicada. Por isso,

neste momento, interessei-me mais em

analisar esta trama histórica18 em que o

aluno e tantos outros estão inseridos

não importando onde se encontram.

18 Chamo de trama histórica a rede de relações que envolvem o surdo antes mesmo de ele entrar na escola: as pessoas que se envolvem, a Língua de Sinais, os pares surdos, as oposições binárias, as metanarrativas modernas etc. Estas discussões não são escolhidas pela educação especial como prioridade. Isso é deslocar o objeto do corpo danificado (o deficiente auditivo da educação especial) para o ser cultural (o surdo da comunidade).

Figura 3 : Arte de Chuck Baird Fonte: www.chuckbaird.com

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O objetivo principal desta pesquisa é não buscar “dar voz” aos surdos ou uma “voz”

autêntica à comunidade, mas, sim, desvelar e registrar as narrativas, conversar com

eles. Narrativas tais que já vêm sendo contadas pela “tradição gestual”19 nessa

comunidade.

Com este deslocamento teórico/metodológico, a pergunta que resume o meu problema

de pesquisa é: como as narrativas das resistências surdas se constituem a partir de

poderes/saberes ouvintistas/colonizadores instituídos nas práticas pedagógicas? Ou

seja, continuando a lista de perguntas que não queriam calar junto ao meu problema:

como as práticas resistentes surgem dentro do discurso colonial? Que práticas são

essas e resistem a quê? Essas práticas são estratégias de sobrevivência? Essas

estratégias são construídas a partir de que práticas?

III

Eu tinha nove anos, quando participei de um Curso de Língua de Sinais para

comunidade que aconteceu numa Igreja Evangélica que freqüentávamos. Isso foi, se

não me engano, em 1989, com o intuito de formar intérpretes de língua de sinais para

atuarem nos cultos e na evangelização dos surdos. A história desse curso é até

engraçada. Meio por acaso, meio sem sentido, mas na hora certa.

Estávamos eu,20 minha mãe e minha babá no ponto de ônibus. Vínhamos das compras.

Até que um casal que nos via conversando de forma ágil com as mãos nos perguntou,

em sinais, se éramos surdos.

Minha mãe logo olhou para mim:

19 A tradição gestual a que me refiro, trata-se de uma coletânea de histórias contadas e vivenciadas pelos surdos que se tornam mitos, lendas e até mesmo, se repetem como se fossem do narrador. Geralmente essas histórias são muito parecidas e são contadas por surdos no Estado todo. 20 Deveria ter nesse episódio, uns sete anos de idade, dois anos antes do curso acontecer.

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– Sinais? Vocês sabem sinais? Você os conhece, minha filha?

– Não, mãe.

– Vocês são surdos? – pergunta minha mãe para a moça.

– Não. Nós somos ouvintes, – respondeu a moça em sinais.

Por incrível que pareça, aquilo foi um susto para todas nós que estávamos ali no ponto

de ônibus. Que dia mais estranho! Ouvintes falando em sinais? Como poderia? Isso é

incrível, porque quem sabe sinais são os filhos de surdos...

– Como sabem sinais?

– Somos intérpretes.

Logo pensei: nossa, como assim, intérprete? O que é isso?

– Ah, você não é surda? – pergunta-me a moça.

– Não.

– Você sabe de algum trabalho com surdos em alguma igreja?

– Trabalho com surdos? O que é isso? – perguntei.

– Eu sou de muito longe e de onde venho trabalho com surdos na igreja. Faço

evangelização lá. Em língua de sinais.

– Nunca ouvi falar.

– Vocês têm intérpretes aqui?

– Intérpretes? O que é isso?

Bom, o resto da história, sabe como é: freqüentávamos a igreja e, óbvio, papai e

mamãe não entendiam nada, mas jamais imaginávamos que intérpretes existiam e que

tinha alguma coisa a ver com igreja e com a língua de sinais. Nunca poderia imaginar

que ouvintes, que não eram parentes de surdos (principalmente filhos) poderiam, de

alguma forma, traduzir a língua de sinais. Como poderiam? Eles nem sabem quem são

os surdos! Eles nem vão às associações, pensava eu. Quem eram essas pessoas que

poderiam falar em língua de sinais?

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35

Esse curso aconteceu dois anos mais tarde. O primeiro curso de sinais que tive

notícias. Nunca imaginei que sinais se ensinavam em curso. Sempre pensei que a

gente aprendia com os surdos na associação. Eu já sabia que era proibido. Não

obstante, como diz um dos meus amigos surdos: era isso que tornava mais gostoso

falar em sinais, porque incomodava as pessoas, provocava. Com certeza, chama a

atenção das pessoas ouvintes, estarem ao lado de surdos que conversam avidamente

com as mãos e elas não entendendo nada. E incomoda, mais ainda, saber que estão

falando de algo ou até que estão falando delas. Mas falando o que? Essa era a

pergunta...

Pelo menos aqui em Vitória, o que passou a fazer os surdos irem à igreja era ver um

fenômeno incomum: intérpretes! Sempre atuamos como intérpretes, mas jamais

sabíamos que a nossa atuação era chamada de interpretação. Que “isso” se chamava

interpretação. A professora do Rio, que veio dar o curso aqui (já que isso era tão

incomum: língua de sinais em curso) explicou o nome dessa atividade.

Nossa... como poderia ser isso? Geralmente, nós, os filhos de surdos, éramos seus

intérpretes. Agora os outros ouvintes também poderiam ser seus intérpretes. Naquele

momento, a língua de sinais passou a ser visível, real e a fazer parte de outras vidas.

Não mais confinada às reuniões dos surdos, aos encontros nos bares, aos encontros

nos banheiros, à esperteza de alguém. Agora a língua de sinais era de todos. Essa era

a nossa maior resistência!

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Segundo capítulo:Segundo capítulo:Segundo capítulo:Segundo capítulo:

As traduções e os territórios na discussão

sobre as questões surdas: qual meu

compromisso com a teoria?

“Nós nos lemos nos textos dos autores, acreditando, por vezes, que estamos lendo os autores. Assim sendo, nessas leituras de nós mesmos

produzimos outros textos, que não são só nossos, mas também daqueles com os quais temos dialogado até então”.

Carlos Eduardo Ferraço

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2.1 A QUESTÃO DA MODERNIDADE...

De acordo com Davis,21 a Europa, no século XVIII se tornou surda. Principalmente

porque, nessa época, surgiu uma fascinação em estudar o tema da surdez que não

estava presente nos séculos anteriores. Ou seja, “[...] a pessoa surda se tornou um

ícone para as complexas intersecções entre sujeito, posição de classe e corpo” (DAVIS,

apud SILVA 1997, p. 8).

A surdez tornou-se visível na época do Iluminismo. O programa iluminista, segundo

Veiga-Neto (2002, p. 28):

[...] funda-se, assim, na idéia de que à razão é atribuída a função de iluminar o Homem, para libertá-lo das trevas, das superstições opressoras, dos mitos enganosos etc. O Iluminismo alimentou a esperança de haver uma perspectiva das perspectivas, a partir da qual se explique o mundo e se chegue à Verdade [...] .

A partir desse século, ciências, como a Medicina, a Antropologia, mapearam campos de

pesquisa medindo e dissecando corpos a fim de produzir conhecimentos universais

(LULKIN, 2000).

Filósofos, como Diderot e Condillac, interessados em surdez, buscavam estudos sobre

a origem da linguagem pura e do pensamento. Os filósofos dessa época estavam

obcecados em definir como os seres humanos se caracterizam como humanos. Por

isso, pesquisas com culturas consideradas selvagens, crianças criadas em isolamento,

orangotangos e pessoas surdas estavam na mesma pauta. Eram considerados objetos

de pesquisa valiosos na busca da definição do homem natural.

De acordo com Davis (apud SILVA, 1997), a criança selvagem e a pessoa surda eram

exemplos vivos de seres intocados pela cultura e pela civilização. Ali se poderia estudar

a essência do humano.

21 Lennard Davis, em seu livro: “Enforcing normalcy: disability, deafness and the body” (Nova York ,1995) que foi revisado por Tomaz Tadeu da Silva, em um artigo publicado na revista Espaço, intitulado: “A política e a epistemologia do Corpo Normalizado”.

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A Filosofia Sensualista,22 que defende a evolução da linguagem e da razão a partir de

experiências e sentidos em direção à abstração, acabou por definir que a língua de

sinais, por ser gestual e limitada à language d’action, “[...] não passaria de um nível

inferior da espiral evolucionista” (LULKIN, 2000, p. 59). Afinal, o corpo está na base e a

mente está no topo.

Conclusão: o surdo falante em sinais era considerado inferior, primitivo na língua, no

pensamento e na inteligência. Partindo desses pressupostos, educar passa a ser

corrigir, reabilitar, impor a fala como forma de expressão evoluída.

Sem contar as grandes metanarrativas, a figura do surdo inferior lingüisticamente, a

ascensão do oralismo como forma sistematizada de normalização desse surdo na

promessa da criação de um ser humano completo por causa da fala. Tudo isso na

modernidade que nos prometeu as respostas das perguntas que não queriam calar.

O Congresso de Milão, em 1880, foi a representação máxima, um marco na história da

política institucional, um divisor de águas na educação dos surdos. Provocou,

sobretudo, com 160 contra quatro votos, o afastamento dos professores surdos das

instituições, baniu a língua de sinais em seu uso utilizando atitudes de controle como,

inicialmente, obrigar os alunos a sentarem sobre as mãos e, com o tempo, chegar ao

ponto de retirar as pequenas janelas das portas das salas para evitar a comunicação

sinalizada entre os alunos. Tudo isso aconteceu quando foi definida que a filosofia

adotada seria, enfim, o oralismo em todas as instituições (LULKIN, 1998).

Nas atas finais do referido congresso constam, dentre outras, as seguintes resoluções:

1- O Congresso, considerando a incomparável superioridade da fala sobre os sinais, quando restituir o surdo-mudo à sociedade, e dar-lhes o mais perfeito conhecimento da linguagem. 2- O Congresso, considerando que o uso simultâneo da fala e dos sinais tem a desvantagem de prejudicar a leitura labial e a precisão das idéias, declara que o método oral puro deve, necessariamente ser preferido.

22 Essa filosofia afirma que todo o conhecimento, todas as faculdades do espírito decorrem da sensação, da experiência. É uma forma de empirismo.

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3- [...] Recomenda: os Governos devem providenciar os passos necessários para que todos os surdos-mudos sejam educados. 4- [...] Recomenda que os professores de sistema oral dediquem-se à publicação de livros especiais na área. 5- [...] Recomenda que os alunos mais novos devem ser agrupados em uma única classe, onde as instruções deverão ser dadas através da fala.

Vale ressaltar, com todo o cientificismo na construção sobre a surdez, a verdadeira

caça às bruxas, por meio de experimentos científicos que estavam em pauta nas

pesquisas em busca de sua cura. Segundo Lulkin (1998, p. 36), Dr. Blanchet, quando

assume o posto de médico da instituição de Paris, investe intensamente na reeducação

dos surdos utilizando métodos muito polemizados quando apresentou suas pesquisas

em 1853: “[...] investe na reeducação do ouvido através da emissão de sons em

crescente intensidade e por uma excitação dos ‘nervos da sensibilidade geral’”

(LULKIN, 1998, p. 36).

Essa intensa polêmica é provocada pela ousadia de métodos aplicados, por exemplo,

abertura do crânio e colocação de perfurador, cortes de bisturi no ouvido médio, entre

outros procedimentos empíricos.

E hoje, mesmo com todas as problematizações dessas questões, contamos, ainda, com

uma trajetória, nada agradável, em que vive a criança surda na educação especial

depois de detectada a sua surdez.

Podemos começar pela audiometria, o exame que detecta a “doença/surdez”, e cunha

os primeiros passos do caminho percorrido por essa criança, afinal, após esse exame,

ela é entregue a educadores especiais na minoria dos casos, protetizada e na maioria

dos casos, sem um diagnóstico completo ou até mesmo com a surdez tardiamente

detectada. Entretanto essa criança, outrora saudável, agora se faz doente e rotulada

como deficiente auditiva e isso está escrito em seu laudo com todos os graus e

decibéis.

Geralmente a tarefa desse educador especial não é educar, é encontrar um tratamento

para que a criança desenvolva aquilo que queremos tratar: o seu insucesso em

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aprender a língua portuguesa. Segundo Lane (1992, p. 39), “[...] o insucesso na

educação das crianças surdas, reforçava a necessidade de realização de uma

educação especial, de existência de especialistas na terapia do surdo e na reabilitação

deste”.

A educação especial tem seus olhares pautados na Modernidade, o que reforçou a

forma de representar o surdo pelo do prisma da deficiência.

O oralismo,23 a comunicação total24 e o bilingüismo conservador/liberal, apesar de

terem focos diferentes com relação à educação da pessoa surda, partem da mesma

ordem do discurso em busca de uma atitude positiva, em relação à sua comunicação.

Todas as discussões dessas perspectivas são pautadas no problema da comunicação

e da língua. Ou seja, não abriram o leque para discussões mais amplas nos termos

curriculares e nas questões pedagógicas de fato.

O próprio paradigma da inclusão escolar, quando se apropria do bilingüismo

conservador/liberal como possibilidade na educação dos surdos, assume as

incoerências das práticas lingüísticas sem problematizar, desconstruir e deslocar as

discussões desse campo para o campo pedagógico e político.

Quando o bilingüismo é definido pelo MEC como a abordagem teórico-metodológica da

educação dos surdos, para referendar todo um trabalho da educação especial com

esses alunos, em seus documentos, não se encontram claras as práticas pedagógicas

23 Abordagem teórico-metodológica marcada principalmente pela proibição do uso da língua de sinais pelos surdos na busca pela cura da surdez. “Tem por objetivo, levar a pessoa surda a usar a língua na modalidade oral da maneira o mais semelhantemente possível ao modelo ouvinte” (SÁ, 1999, p. 69), ignorando a subjetividade surda e os aspectos e marcas culturais desse povo. 24 Alguns autores, como Ferreira- Brito (1993), não admitem a comunicação total como abordagem teórico-metodológica, considerando-a uma espécie de "técnica manual do oralismo” (p. 31). Porém há outras definições: “[...] a) posicionamento ‘filosófico’ de aceitação da diferença que existe entre uma pessoa surda e uma ouvinte e de rejeição ao modelo ouvinte decorrente do oralismo. Nesta definição é enfatizada a comunicação como necessidade premente na educação dos surdos. b) Pode se referir à abordagem educacional bimodal” (SÁ, 1999 p.100), o que representa uma das maiores críticas a essa abordagem por não respeitar a gramática das línguas de sinais, limitando-se a colocar sinais em estruturas frasais da língua portuguesa, criando um pidgin, ou o que comumente chamamos: português sinalizado.

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visuais bilíngües. Mas encontram-se discursos numa ordem perversa, em que a

anormalidade surda é produzida por meio de práticas ora normalizadoras, ora

tolerantes com o uso da língua de sinais.

Skliar (1998) desenvolve algumas reflexões acerca do multiculturalismo que envolve o

aprisionamento das discussões da surdez no campo da diversidade e não da

diferença25. Esse multiculturalismo, embasa os bilingüismos como práticas discursivas e

dispositivos pedagógicos e não abandona a ordem do discurso moderno sobre a surdez

como deficiência. A educação bilíngüe, que hoje é tão celebrada, nada tem a ver com

os bilingüismos modernos e suas formas de atuação como agentes da norma.

Caracterizar um projeto pedagógico ‘bilíngüe’ não supõe necessariamente um caráter intrínseco de verdade; é necessário estabelecer com claridade as fronteiras políticas- de neutralidade e opacidade- que determinam a proposta educativa. Desde esta perspectiva, a educação bilíngüe deve assumir a questão da diferença para não reproduzir o essencialismo monocultural, etnocêntrico e logocêntrico (SKLIAR, 1998, p.190).

O multiculturalismo conservador, na educação bilíngüe para surdos, segundo o autor,

conserva a visão colonialista sobre a surdez. Conservam os seus professores que não

mudaram a sua formação, conservam as suas práticas, os seus regulamentos, o seu

currículo, sua clínica etc.

O projeto desse tipo de multiculturalismo, é, na realidade querer construir uma cultura comum, anulando o conceito de “fronteira” e deslegitimando as línguas minoritárias. É um boicote à própria educação bilíngüe, pois rejeita-se a idéia da etnicidade da surdez e coloca-se o “ouvintismo” como uma norma invisível através da qual tudo é medido e julgado (SKLIAR, 1998, p. 190).

25 Para Bhabha (2005, p. 63), “A diversidade cultural é um objeto epistemológico- a cultura como objeto de conhecimento empírico-, enquanto a diferença cultural é o processo da enunciação da cultura como “conhecível”, legítimo, adequado à construção de sistemas de identificação cultural”. Enquanto a diversidade enuncia culturas prontas, separadas por suas origens míticas, identidade única, “[..] a diferença cultural é um processo de significação através do qual afirmações da cultura e sobre a cultura diferenciam, discriminam e autorizam a produção de campos de força, referências, aplicabilidade e capacidade” (Ibid., p.63).

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No Estado do Espírito Santo, é comum chamar de práticas bilíngües o simples fato se

aceitar e hospedar a língua de sinais nas escolas oralistas, sem, ao menos, deslocar

qualquer discussão da “orelha doente” para o sujeito surdo cultural, sem mudanças

pedagógicas profundas, inclusive, incorporando a língua de sinais às práticas

ouvintistas. Alimenta-se um discurso corrente de que a língua de sinais deve ser

ensinada aos surdos a partir dos doze anos de idade, quando já estaria oralizado.

Práticas como essas caracterizam o bilingüismo conservador.

Já o multiculturalismo humanista e liberal, na educação bilíngüe para surdos, conta com

algumas experiências em que há uma igualdade natural entre ouvintes e surdos tanto

na ordem intelectual quanto na equivalência cognitiva. Porém a diferença reside na

privação cultural dos surdos e na limitação de oportunidades sociais e educacionais.

O resultado dessa prática discursiva e deste dispositivo pedagógico pode-se definir como um humanismo etnocêntrico, uma opressão para aqueles que vivem situações de desigualdades históricas e que devem alcançar obrigatoriamente a igualdade (SKLIAR, 1998, p. 190).

A busca por essa suposta igualdade entre surdos e ouvintes ocorre, principalmente, na

forma como as experiências de tentativas de inclusão vêm sendo feitas. Ou seja, muito

mais tem sido proporcionada aos surdos, a “socialização” com os ouvintes, na mesma

sala de aula, onde a aula é toda em Português, acreditando-se que essa socialização,

garante igualdade de oportunidades. Tudo isso pautado naquele discurso do “não

formar guetos” sem problematizar todas as práticas escolares, os conteúdos, os

currículos. Proporcionando, ainda, naquele atendimento de “contraturno”, de duas horas

semanais, a ilusão de que estão sendo oralizados, alfabetizados ou aprendendo algo

para se igualarem aos ouvintes.

O multiculturalismo liberal e progressista, na educação bilíngüe para surdos, já aponta

outro tipo de experiências bilíngües com tendência a enfatizar a diferença cultural que

caracteriza a surdez. Porém, pensa-se a diferença como uma essência e ignora-se a

história e a cultura que lhe dá o sustento político (SKLIAR, 1998).

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Admite-se aí o intérprete na sala de aula pelo fato de compreender a língua do surdo

como parte integrante de sua diferença. Porém o intérprete atua muito mais como

agente da norma do que como parte integrante da educação dos surdos. Há relatos de

intérpretes educacionais que, quando atuando, se vêem compelidos a ensinar

estratégias de interpretação de texto (dos ouvintes que é dado aos surdos também),

estratégias de comportamento com o professor, incentivando a participar das aulas etc.

Ou seja, ensinando formas de esse aluno surdo se igualar ao máximo ao aluno ouvinte

e conseguir sobreviver à inclusão.

Por fim, o multiculturalismo crítico na educação bilíngüe para surdos em que o papel da

língua é fundamental na construção de significados e de identidades surdas. Porém a

maior crítica a esse bilingüismo é justamente ter sido criado por ouvintes para agenciar

e controlar a língua de sinais e não produzir ou alimentar seus artefatos culturais. Os

surdos, nessa prática discursiva e nesse dispositivo pedagógico, são auxiliares,

instrutores e não chegam ao patamar de professores, muito menos de língua

portuguesa, por exemplo, considerado domínio exclusivo dos ouvintes.

De acordo com Perlin (2006, p. 4):

O impulso para as leituras do mundo sob a ótica surda por vezes desprezam, transgridem, mas não é em vista desses objetivos que a política pedagógica surda se desloca. As formas de rebelião, de mobilização, de subversão, de transgressão são mais salientes quando vistas de fora. São rebeliões contra a agência da teoria critica nos meios culturais surdos, devidas aos estranhamentos do enquadramento naquela mesmidade do outro ouvinte com suas tendências de programas educacionais contendo aquilo que Thompson (2005, p. 34) considera uma ambivalência: uma gama de valores e normas que moldam suas estratégias para indicar as habilidades que eles acreditam serem necessárias para os cidadãos consumidores. E que molda embates constantes para a cultura do surdo, reinscrevendo reafirmando, realimentando os discursos narrativos pela diferença.

Não é de se admirar quando Lane (1992, p. 39) afirma que:

[...] a modernidade parece muitas vezes o inimigo do surdo e da sua comunidade. O movimento, nos finais do último século, para acabar com as tradicionais linguagens gestuais das comunidades surdas a favor das línguas nacionais orais foi criado por professores ouvintes

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(que geralmente não conheciam nenhum tipo de linguagem manual) como uma iniciativa moderna.

Essas leituras transgressoras evocadas por Perlin (2006) são feitas no espaço

revisionário do pós. Por isso, Veiga-Neto (2002) nos propõe um exercício de reflexão,

crítica e problematização das questões aqui colocadas. Não refutá-las, mas questioná-

las. Essa condição pós-moderna não é bem um antimodernismo, mas um outro olhar

sobre as velhas questões.

O autor, ao caracterizar a condição pós-moderna, coloca que as imagens, as

impressões que provocam nossos olhares, são vistas com desconfiança pelo

Iluminismo. Porém, numa perspectiva pós-moderna, são exatamente nossos olhares,

nossas traduções que constituem o objeto.

Quando falamos sobre coisas, nós as constituímos. Nós as criamos e as

representamos. Não necessariamente nós falamos o que essas coisas representam.

Não precisamos saber se há uma realidade exterior a nós, ou uma realidade real, mas

como pensamos essa realidade, como a constituímos.

Por isso, a necessidade de localizar o discurso sobre surdos numa ordem pós-moderna,

pós-colonial, pós-estruturalista. A condição pós coloca o além como espaço habitável. E

estar no “além” é habitar um espaço intersticial, fronteiriço.26 De acordo com Bhabha

(2005, p.23), residir no “além” é ser parte de um tempo revisionário: “[...] um retorno ao

presente para descrever nossa contemporaneidade cultural; reinscrever nossa

comunalidade humana, histórica; tocar o futuro em seu lado de cá. Nesse sentido

então, o espaço ‘além’ torna-se um espaço de intervenção no aqui e no agora”.

O termo “pós” não representa aqui o que mais acontece no imaginário: seqüencialidade

ou polaridade; significa localizar as discussões em espaços revisionários. De acordo

com Bhabha (2005, p. 23), a significação mais ampla da condição pós- moderna:

26 No dicionário Houaiss (2003), a palavra além significa entre outras definições: “ [...] lugar fronteiro a outro, mediando entre ambos, algum rio, lago, etc”.

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[...] reside na consciência de que os “limites” epistemológicos daquelas idéias etnocêntricas são também as fronteiras enunciativas de uma gama de outras vozes e histórias dissonantes e até dissidentes- mulheres, colonizados, grupos minoritários, os portadores de sexualidade policiada (2005, p. 23).

É nessa consciência dos limites epistemológicos das teorias celebradas pela

Modernidade como fronteiras enunciativas que justifico a localização das discussões

teóricas deste trabalho no espaço do “pós”. São nesses interstícios, nessas fronteiras

do “além”, que busco dialogar e analisar as narrativas que compartilhamos. Inicio esta

discussão apresentando os “Estudos Surdos em Educação” como um novo campo de

estudo e representação surda.

2.2 OS ESTUDOS SURDOS EM EDUCAÇÃO

Skliar (1998), ao deslocar as questões sobre os surdos e a surdez de uma perspectiva

clínica-terapêutica para outra perspectiva, muito mais cultural e antropológica, constrói

um outro território teórico para abrigar esta discussão.

Os Estudos Surdos em Educação se constitui, nesse momento, como um novo campo

teórico, onde as narrativas surdas vêm sendo desveladas para desconstruir velhas e

estereotipadas narrativas. Esses novos olhares e essa ruptura com velhas narrativas

acerca da surdez e dos surdos têm sido produzidos por esses estudos que, segundo

Skliar (1998, p. 5), são:

[...] a criação de um novo espaço acadêmico e de uma nova territorialidade educacional à qual denominamos: Estudos Surdos em Educação. Os Estudos Surdos se constituem enquanto um programa de pesquisa em educação, onde as identidades, as línguas, os projetos educacionais, a história, a arte, as comunidades e as culturas surdas são focalizados e entendidos a partir da diferença, a partir do seu reconhecimento político.

Os Estudos Surdos em Educação rompem com a educação especial quando se define

como um novo espaço acadêmico e uma nova territorialidade. Ou seja, “A nossa

proposta não era, nem é atualmente, a de constituí-lo como um subproduto ou uma

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sub-área temática da educação especial, nem a de mantê-lo dentro de uma prática e de

um discurso hegemônico da deficiência” (SKLIAR, 1998, p.5).

O que interessa, para este campo de estudo, é construir questões teóricas

fundamentais cristalizadas nas comunidades surdas, nas escolas, com os intérpretes de

língua de sinais, no processo de formação dos professores ouvintes e surdos etc. Ou

seja, os projetos de pesquisa, nessa perspectiva, focam pontos como as identidades

surdas, discursos

hegemônicos sobre a

surdez e os surdos,

práticas discursivas e

dispositivos pedagógicos,

currículo,novos paradigmas

etc.

Os Estudos Surdos em

Educação propõem

duvidar, constantemente,

dos poderes saberes arraigados na prática educacional dos surdos, que ainda

produzem e sustentam o fracasso ao considerá-lo como um mal necessário.

As questões surdas hoje não podem simplesmente ser mapeadas e tão facilmente

delimitadas em “modelos de surdez”. Muito mais se trabalha com concepções e

discursos do que com cronologia seqüencial e descritiva. Ou seja, o fato de que a

discussão em torno da educação de surdos não se atualize pode ser porque há uma

seqüência de significados obrigatórios, como afirma Skliar (1998), para localizar as

questões surdas: surdos- deficientes auditivos- outros deficientes- educação especial-

reeducação- normalização- integração. Essa seqüência de significados transforma os

discursos sobre a educação de surdos dentro do domínio do discurso colonial de

sujeição do sujeito surdo ao discurso do corpo danificado.

Figura 4 : Arte de Betty G. Miller Fonte: http://bettigee.purple-swirl.com

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Os Estudos Surdos vêm denunciando algumas questões, como o lugar da língua de

sinais dentro do discurso da educação de surdos, pois tem se tornado comum muito

mais para resolver o problema da oralidade do surdo do que para construir uma política

de identidades. Por isso, podemos também desconfiar de que determinadas práticas

bilíngües, tais com as já mencionadas, são orientadas para o monolingüismo, uma vez

que partem em busca da língua oral muito mais do que da língua de sinais.27 Por

exemplo, usam a língua de sinais como ferramenta para se alcançar a “língua oficial”

para, logo depois, acabar rapidamente com ela.

Skliar (1998) convoca-nos a pensar as questões surdas num âmbito político e não num

âmbito audiológico. Para rever nossas representações estereotipadas sobre os surdos

e a surdez conduzindo, assim, nossa visão para um campo político.

Por isso, com o deslocamento do olhar sobre as questões surdas, Skliar propõe uma

aproximação com outros campos teóricos da educação, com o objetivo de descentrar

os discursos, as discussões e as práticas.

Os Estudos Surdos em Educação têm construído aproximações com outras linhas de

estudo da educação, por exemplo, os Estudos Culturais, os estudos negros, educação

e gênero, educação de classes populares, linguagem e educação etc., é preciso situar

a análise da educação de surdos dentro de debates mais condizentes com a situação

lingüística, social, comunitária, cultural e das identidades dos sujeitos surdos.

É possível definir o significado que tem a proposta dos Estudos Surdos em Educação

na interface com outras linhas de pesquisa. Segundo o autor (1998, p. 15), esses

estudos devem gerar quatro níveis de reflexão:

� Um nível de reflexão sobre os mecanismos de poder/saber, exercidos pela ideologia dominante na educação de surdos- o oralismo ou, melhor ainda, o ouvintismo- desde suas origens até os dias atuais;

27 Essa prática caracteriza bem o bilingüismo tradicional.

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� Um nível de reflexão sobre a natureza política do fracasso educacional na pedagogia para os surdos, visando uma redefinição do problema; � Um nível de reflexão sobre a possível desconstrução das metanarrativas e dos contrastes binários tradicionais na educação de surdos; � Um nível de reflexão acerca das potencialidades educacionais dos surdos que possa gerar a idéia de um consenso pedagógico.

Por fim, vale ressaltar aqui o conceito de ouvintismo trabalhado por Skliar (1998, p. 15),

que são “[...] as representações dos ouvintes sobre a surdez e sobre os surdos” e o

oralismo- “[...] forma institucionalizada do ouvintismo”.

Trata-se de um conjunto de representações dos ouvintes, a partir do qual o surdo está obrigado a olhar-se e a narrar-se como se fosse ouvinte. Além disso, é nesse olhar-se, e nesse narrar-se que acontecem as percepções do ser deficiente, do não ser ouvinte; percepções que legitimam as práticas terapêuticas habituais (SKLIAR, 1998, p.15).

As representações clínicas e terapêuticas levaram historicamente à transformação do

espaço pedagógico para um espaço hospitalar. Esse deslocamento histórico deve ser

entendido como principal causa da produção do holocausto lingüístico, cognitivo e

cultural que viveram os surdos.

Como ideologia dominante, o ouvintismo contou com a participação e com o aval da

Medicina, da família dos surdos, professores e, inclusive, dos próprios surdos que hoje

são sinônimos do que há de mais moderno na tecnologia, como diz Skliar (1998, p.17),

sarcasticamente: “o surdo que fala, o surdo que escuta”.

Além disso, é muito simplista pensar que o oralismo e o ouvintismo são apenas

representantes de um conjunto de práticas que se propõe a fazer o surdo falar e ouvir.

Há outros pressupostos envolvidos: a) os filosóficos: o oral como abstração e gestual

como obscuridade; b) os religiosos: a confissão oral; e c) os políticos: necessidade de

abolição dos dialetos, já dominantes no século XVIII e XIX.

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Por fim, segundo Skliar (1998, p.30), os Estudos Surdos em Educação podem ser

pensados como um território de investigação que leva muito mais em conta as questões

políticas, identitárias, em um conjunto de concepções lingüísticas e culturais.

Estudos Surdos problematizam justamente aquilo que em geral não é problematizado, nem na educação especial, nem em outras abordagens desta temática . O nosso problema não é a surdez, não são os surdos, não são as identidades surdas, não é a língua de sinais, mas, sim, as representações dominantes, hegemônicas e ‘ouvintistas’ sobre as identidades surdas, as línguas de sinais, a surdez e os surdos.

Entender melhor os Estudos Surdos é aproximá-los de outros territórios teóricos a fim

de pensar as questões surdas, dentro de outras fronteiras.

2.2.1 Os Estudos Surdos no território da Pós-Coloni alidade

De acordo com Bhabha (2005, p. 26), a pós-colonialidade é “[...] um salutar lembrete

das relações ‘neo-coloniais’ remanescentes no interior da ‘nova’ ordem mundial e da

divisão do trabalho multinacional”. Essa abordagem, ainda, dá conta da “[...]

autenticação de histórias de exploração e o desenvolvimento de estratégias” (p. 26).

Por isso, grande desafio é pensar na pós-colonialidade, um campo de intensas

discussões e desconstruções, principalmente no que tange à centralidade da cultura,

porque a primeira tentativa de resistência da comunidade surda é a busca da idéia de

UMA cultura, de UMA identidade pura.

Tais culturas de contra-modernidade pós-colonial podem ser contingentes à modernidade, descontínuas ou em desacordo com ela, resistentes a suas opressivas tecnologias assimilacionistas; porém, elas também põem em campo o hibridismo cultural de suas condições fronteiriças para “traduzir”, portanto reescrever o imaginário social tanto da metrópole como da modernidade (BHABHA, 2005, p. 26, grifo meu).

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É possível conquistar esta pretensão de reescrever/reinventar esse imaginário social,

levando-se em conta as traduções diferentes do objeto em questão, as negociações

necessárias da cultura, o híbrido,28 o estranho?

Vale ressaltar conceitos relevantes nas narrativas surdas como: discurso colonial,

estereótipo e mímica. Bhabha (2005) nos ajuda a desvelar tais concepções.

Para Bhabha (2005), um aspecto importante do discurso colonial, é o caráter

ambivalente na construção ideológica da alteridade. Essa ambivalência produz o

estereótipo de que:

“[...] é a sua principal estratégia discursiva, é uma forma de conhecimento e identificação que vacila entre o que está sempre “no lugar”, já conhecido, e algo que deve ser ansiosamente repetido [...] é esse processo de ambivalência, central para o estereótipo [...] (BHABHA, 2005, p.105).

É decorrente desse discurso colonial ambivalente, criado por meio de um estereótipo do

surdo dominado, oralizado, ou seja, simulacro de uma vida ouvinte, que as resistências

surdas, apresentadas de formas diversas, se constituem.

A força da ambivalência é que, segundo Bhabha (2005, p. 106), dá ao estereótipo sua

validade ratificando o discurso colonial.

[...] ela (a ambivalência) garante sua repetibilidade em conjunturas históricas e discursivas mutantes; embasa suas estratégias de individualização e marginalização; produz aquele efeito de verdade probabilística e predictabilidade que, para o estereótipo, deve sempre estar em excesso do que pode ser provado empiricamente ou explicado logicamente. Todavia a função da ambivalência como uma das estratégias discursivas e psíquicas mais significativas do poder discriminatório [...] está ainda por ser mapeada.

28 “O híbrido para Bhabha não é uma síntese (um mix) que soluciona um conflito entre opostos originais e essenciais misturando-os. O híbrido cultural é superposição (e não simplesmente sincretismo), como uma cópia mal feita, uma dissimulação, uma semelhança (parcial) que não é similitude, uma dupla inscrição, menos que um e o dobro (uma metonímia e uma metáfora). É e por causa dessa duplicidade de partes que ele é uma semelhança e uma ameaça, uma indecibilidade, nem uma coisa nem outra, que desestabiliza essencialismos e subverte o conceito de originalidade da autoridade por meio da negação, variação, repetição e deslocamento [...]o sujeito híbrido, como efeito, como projeto, é um sujeito incalculável, semi-aquiescente, semi-opositor, jamais confiável, que produz um problema insolúvel de diferença cultural para a própria interpelação da autoridade. A potência do híbrido não é ser miscigenado, sincrético ou sintético. É confundir. É ser inclassificável” (SOARES, apud FERRAÇO, 2005, p. 37).

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A questão do discurso colonial, como aparato de poder, perpassa pela produção de

“povos sujeitos” como estratégia de dominação. Esse aparato se apóia no

reconhecimento e no repúdio de diferenças e raciais/culturais/históricas. “O objetivo do

discurso colonial é apresentar o colonizado como uma população de tipos degenerados

com base na origem racial de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de

administração e instrução” (BHABHA, 2005, p.111).

Apesar da existência de um jogo de poder no interior do discurso colonial e na

constituição do estereótipo, o autor se refere a uma espécie de governamentalidade

que, ao delimitar uma “nação sujeita”, apropria-se, domina e dirige suas esferas de

atividades. Com certeza, as questões surdas são assim tratadas pelos burocratas

especialistas que se apropriam de todas as atividades desse povo sem levar em conta

o que é dito pelo grupo e ainda prescreve todos os procedimentos clínicos pertinentes

de acordo com a clínica que ensaiam.

A ambivalência desse discurso da deficiência reside, justamente, no fato de que é um

discurso mascarado pela benevolência. Tem a intenção de ser bom, porque discursos

assim são recorrentes: o “deficiente auditivo” precisa falar, para se socializar. Precisa

estar com os ouvintes para se socializar, para ser incluído... Ora, tais práticas

escondem práticas de controle e normalização do corpo surdo, marcando seu lugar no

discurso da deficiência.

Dentro da anatomia do discurso colonial traçada por Bhabha (2005, p.130), o conceito

de mímica é relevante para pensarmos esta pesquisa ao tratar das questões surdas.

A mímica colonial é o desejo de um Outro reformado, reconhecível como sujeito de uma diferença que é quase a mesma, mas não exatamente. O que vale dizer é que o discurso da mímica é construído em torno de uma ambivalência.

Ou seja, o outro transformado é o outro normalizado, é o surdo que se apresenta como

uma espécie de simulacro ouvinte. De acordo com Bhabha, a mímica é, assim, o signo

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de uma estratégia complexa de reforma, regulação e disciplina. Ela se apropria do outro

ao visualizar o poder. Ela ordena a função estratégica do poder colonial dominante

intensificando a vigilância e colocando uma ameaça constante tanto para os saberes

“normalizadores” quanto para os poderes disciplinares.

O discurso da deficiência no qual as narrativas ouvintes instalaram suas concepções

sobre surdos, para Skliar (2003), não passa de “retórica cultural”. Para esse autor, é

presunção definir deficiência apenas como fator biológico que cria indivíduos iguais,

com características universais, ou seja, “portadores” de uma mesma deficiência.

[...] compreender o discurso da deficiência para logo depois revelar que o objeto desse discurso não é a pessoa que está em uma cadeira de rodas ou aquela que usa prótese auditiva, ou aquela que não aprende segundo o ritmo e a forma como a norma espera, senão os processos históricos, culturais, sociais e econômicos que regulam e controlam a maneira pela qual são pensados e inventados os corpos, as mentes, a linguagem, a sexualidade dos outros (SKLIAR, 2003, p. 158).

Contudo, ao se aproximar de outros campos teóricos, constrói outras possibilidades e

tradução desse grupo, dessa comunidade e possibilidades de outras lutas. É estranho

talvez aproximar os “Estudos Surdos” da pós-colonialidade devido à própria marca

desse campo teórico que é não delimitar, não criar fronteiras, mas creio que pela

própria localização desses estudos, essa possibilidade pode ser pensada.

A surdez, nessa aproximação teórica, é pensada como um território de fronteiras.

Lunardi e Klein (2006) abordam a surdez partindo do deslocamento da idéia de “pureza

cultural” e, essencialidade, de uma cultura surda, para um território híbrido.

A proposta das autoras é o distanciamento da pergunta: “O que é mesmo cultura

surda?”. Com essa questão partem em busca da idéia de “nuances de culturas surdas”.

Ou seja, não, simplesmente, problematizar as metanarrativas, os binarismos, mas

também questionar qualquer tentativa de essencialização da cultura.

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Elas ainda propõem pensar a surdez como um “[...] território de lutas, conflitos de

identidades, onde os elementos culturais circulam pelas fissuras e rachaduras dessa

comunidade, conformando um labirinto de significados” (LUNARDI; KLEIN, 2006, p. 15).

A busca pela essencialidade da cultura surda, de uma identidade surda, surge após

séculos de discursos patologizantes, reabilitadores e de cura para a surdez. Os

movimentos de resistência foram se constituindo em busca dessa cultura ideal e

cristalizada.

Esses movimentos de afirmação de culturas surdas surgem como uma forma de

combate à idéia de patologização. Histórias de origem do povo surdo são freqüentes e

diferentes narrativas são construídas em torno de um ideal de cultura ainda utilizando a

própria língua de sinais como marca “autêntica” da cultura surda.

A não cristalização da surdez com um único recorte cultural possível tem como objetivo

não torná-la mais uma forma “exótica” e “folclórica” de entendimento da surdez.

“Entender as culturas surdas é percebê-las enquanto elementos que se deslocam, se

fragilizam e se hibridizam no contato com o outro, seja ele surdo ou ouvinte; é

interpretá-las a partir da diferença” (LUNARDI; KLEIN, 2006, p. 17).

Além do texto de Lunardi e Klein, outros autores tradicionais dos Estudos Surdos em

Educação, vêm construindo novas possibilidades de pensar a surdez em outros

territórios teóricos, como nos estudos de Lopes e Veiga-Neto (2006) que refletem a

constituição das comunidades surdas por meio dos marcadores culturais que vão para

além da língua de sinais, da arte, do teatro, da poesia surda. A noção de luta, a

necessidade de viver em grupo e a experiência do olhar são, também, de acordo com

os autores, “[...] marcadores que nos permitem falar de identidades surdas fundadas em

uma alteridade e uma forma de ser surdo” (LOPES; VEIGA-NETO, 2006, p. 82).

2.2.2 Os Estudos Surdos no território do Pós-Estrut uralismo

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Alguns conceitos de Foucault (2005) foram muito importantes na construção do objeto

de pesquisa desta dissertação e, por isso, se torna inviável a não discussão desse

recorte teórico. Vale ressaltar que Foucault, nesta pesquisa, foi um pretexto muito

interessante para puxar assunto com os autores que localizam suas pesquisas no

terreno pós-estruturalista: Skliar (1998, 2003), Perlin (1998, 2000, 2003), Lunardi (1998,

2003), Lopes (1998, 2006), Lane (1992) e Wrigley (1996). Inclusive, foram suas

proposições e algumas leituras que fiz de seu texto, que trouxeram possibilidades de

olhares diferentes na construção do meu objeto.

Para pensar o currículo como forma de

operar no corpo por meio das práticas

de normalização, das práticas de

controle das mãos na proibição do uso

da língua de sinais, convidei os autores

acima citados e, principalmente,

algumas porções da teoria de Foucault,

com o objetivo de dialogar. Quando

Foucault apresenta o corpo como “[...]

superfície de inscrição de

acontecimentos” (2005, p. 22), ele

mostra que a genealogia está no ponto

de articulação do corpo com a história.

Ela deve mostrar o corpo marcado de

história e a história arruinando o corpo.

Como ainda as questões surdas têm uma discussão centrada no corpo danificado, e é

relevante relembrar o fato da surdez dizer respeito a um corpo vigiado (WRIGLEY,

1996, p.1), nada mais justo que pensar no corpo surdo como campo de batalhas nos

conflitos sociais. Lane (1992) concorda com Foucault nessa afirmação. O autor

apresenta, como representante máximo do biopoder na vida das pessoas surdas, os

Figura 5 – Arte de Betty G. Miller Fonte: http://bettigee.purple-swirl.com

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exames que medem suas capacidades auditivas, os implantes cocleares e toda

parafernália tecnológica dos aparelhos de amplificação sonora na busca da inserção

desse sujeito anormal à norma.

A assertiva “A surdez diz menos respeito à audiologia do que à epistemologia”

(WRIGLEY, 1996, p. 1) justifica o fato de que os surdos, nesta pesquisa, não terão seus

corpos analisados, mas a trama histórica em que suas resistências são construídas,

onde se localiza as suas narrativas tidas como inferiores às histórias oficiais sobre seus

corpos.

A proposta desta pesquisa é justamente nos termos de Foucault (2005, p. 7):

[...] analisar como estes problemas de constituição podiam ser resolvidos no interior de uma trama histórica, em vez de remetê-los a um sujeito constituinte, isto é, chegar a uma análise que possa dar conta da constituição dos saberes, dos discursos, dos domínios de objeto, etc., sem ter que se referir a um sujeito, seja ele transcendente com relação ao campo de acontecimentos, seja perseguindo sua identidade vazia ao longo da história.

“É preciso se livrar do sujeito constituinte” (FOUCAULT, 2005, p.7), ou seja, pensar a

constituição das narrativas de resistência como um processo coletivo, levando em

consideração a trama histórica que em que se inserem tais histórias e como estas

desconstroem todo o aparato tecnológico do biopoder que reduz o corpo surdo a um

corpo danificado e não a um sujeito produtor de suas próprias narrativas.

De acordo com Wrigley (1996), o corpo é um tema recorrente nos estudos da alteridade

e da diferença. Por isso, é um erro pensar no corpo formado por apenas aspectos

fisiológicos e que escape à história. Ele é formado por “[...] regimes que o constroem;

ele é destroçado por ritmos de trabalho, repouso e festa; ele é intoxicado por venenos-

alimentos ou valores, hábitos alimentares e leis morais simultaneamente; ele cria

resistências” (FOUCAULT, 2005, p.27).

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Perlin (2003) busca uma teoria, em sua tese de doutorado, que a leve ao encontro da

alteridade, que a auxilie na busca de ver o surdo como o outro, longe das deficiências,

das representações estereotipadas e ver o seu corpo como lugar habitável. Para isso,

se utiliza da aproximação teórica com o pós-estruturalismo.

Até bem pouco tempo, os sujeitos da educação especial foram narrados, julgados,

definidos, pensados, produzidos, classificados pelos profissionais que trabalham com

eles como objeto de estudo e práticas de controle. “A deficiência não é um problema

dos deficientes e/ou de suas famílias e/ou dos especialistas. A deficiência está

relacionada com a idéia mesma da normalidade e à sua historicidade” (SKLIAR, 2003,

p. 159).

A aproximação de porções da teoria de Foucault com autores dos Estudos Culturais já

vem sendo feita por pesquisadores experientes. Não há nada de inédito nessa

aventura.

Veiga-Neto (2000) faz a defesa de tal aproximação quando propõe que não nos

desencorajemos em frente às dificuldades decorrentes da dispersão da teoria de

Foucault e dos Estudos Culturais, pois defende que tal dispersão pode ter um lado

produtivo. O que, por um lado, dificulta, por outro pode facilitar. A ausência de um

elemento unificador, uma estrutura fechada, pode facilitar o uso parcial de porções do

pensamento que forem úteis, sem comprometer demais as outras porções.

O uso parcial de porções da teoria de Foucault não significa dar um tratamento menos

rigoroso ao pensamento do filósofo. Segundo ainda Veiga-Neto (2005), têm surgido

várias e promissoras pesquisas, em articulação com os Estudos Culturais, que

examinam representações práticas e artefatos das Pedagogias Culturais em suas

implicações disciplinares, biopolíticas e de governamento. Muitas pesquisas, muitas

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vezes feitas de modo bastante livre, têm trazido ao que Foucault (2005, p. 94) nos

deixou um novo vigor.

Nesse caso, ao se valerem dele, e de certa maneira, ultrapassá-lo, elas fazem aquilo que o próprio Foucault queria que fizessem com sua obra, colocando em prática o que eu costumo chamar de “fidelidade infiel” ao pensamento do filósofo.

E ainda, em uma conversa com Deleuze sobre os intelectuais, Foucault vem afirmando

que as massas não necessitam dos intelectuais para saber. Elas sabem e sabem bem,

até muito melhor do que eles. Porém, mesmo os intelectuais descobrindo isso, ainda

assim existe um poder que barra, proíbe, invalida esse discurso, esse saber. Isso

acontece claramente com as narrativas surdas, que são invalidadas pelo poder e pelo

saber clínico dos especialistas em “deficiência da audiocomunicação”, que, mesmo

conhecendo esse discurso, criam uma barreira com o seu poder do saber.

Parafraseando Foucault (2005): quando os surdos começaram a falar, viu-se que eles

tinham uma teoria sobre a educação, sobre os poderes aos quais eram submetidos.

Essa espécie de discurso contra o poder, esse contradiscurso expresso pelos surdos,

ou por aqueles que são chamados de deficientes auditivos, é fundamental, e não uma

teoria sobre a surdez.

2.2.3 Os Estudos Surdos no território dos Estudos C ulturais

Um dos marcos culturais dos surdos é a necessidade de estarem juntos e, como

conseqüência, a constituição de uma comunidade é eminente, cujo fator aglutinante é a

língua de sinais. Wrigley (1996), em suas pesquisas, afirma que a surdez é um grande

país, porém sem território. Então, para conversar sobre essa marca cultural, convidei

Stuart Hall (1998) para um diálogo sobre as questões da constituição de uma nação.

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Segundo esse autor, as culturas nacionais são como comunidades imaginadas, afinal

as nacionalidades não estão impressas nos genes, mas de forma metafórica nos

discursos, quando afirmamos, por exemplo, ser “jamaicanos”, “ingleses”, “gauleses”,

“indianos”, “brasileiros”.

Todavia, Gellner (apud HALL, 1998) declara que, sem um sentimento de identificação

nacional, o sujeito moderno experimenta uma profunda sensação de perda subjetiva.

Inclusive as identidades nacionais são formadas e transformadas nas representações;

não nascem conosco.

Nação não é apenas uma entidade política, mas produz sentido, ou seja, um sistema de

representação cultural. Uma nação é uma comunidade simbólica.

O povo surdo se constitui como “nação simbólica”, quando apresenta indivíduos que

trazem consigo um senso de pertencimento a esse grupo, não apenas, mas

principalmente pela língua compartilhada. Esse “país sem território”, nos termos de

Wrigley (1996), se constitui como grupo cultural não apenas por compartilhar uma

língua, mas também por compartilhar narrativas, tradições, histórias comuns e outras

estratégias discursivas a fim de manter o sentimento de povo. A nação surda se

constrói com suas representações culturais que são narradas de geração a geração.

Ora, uma cultura nacional é um discurso, ou seja, “[...] um modo de construir sentidos

que influencia e organiza tanto nossas ações quanto à concepção que temos de nós

mesmos” (HALL, 1998, p.50).

Enfim, esses sentidos são construídos pelo povo surdo por meio das histórias que são

contadas sobre esse grupo, memórias que conectam o presente com o passado.

Se a nação é uma metáfora e tem seus sentidos construídos na imaginação, sendo,

assim, uma representação discursiva, como ela é imaginada? Que estratégias

discursivas são construídas a fim de criar o senso de pertencimento de um grupo?

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Diferente do sentido de deficiência que se quer imprimir ao povo surdo, representando-

o por uma história marcada pelo corpo danificado, há uma história contada por esse

povo que traz as marcas do movimento e da resistência a essas representações

estereotipadas.

Para compreender melhor o local onde se concentra o discurso surdo capixaba, vale

ressaltar os aspectos apontados por Hall (1998) sobre como se constrói a narrativa de

uma nação. No primeiro aspecto apontado pelo autor, há uma narrativa dessa nação

que é contada e recontada nas histórias e nas literaturas nacionais, na mídia, na cultura

popular etc. Essas fontes fornecem os símbolos que representam as experiências. Ou

seja, fornecem os contos, imagens, eventos, rituais etc.

A questão surda, nesse aspecto de suas narrativas, encontra um paradoxo em relação

a quem narra suas histórias, pois esse poder tem sido, ainda hoje, exercido pelo

ouvinte por meio de estereótipos construídos pelo discurso colonial. Ou seja, os

discursos médicos sobre o “ouvido defeituoso”, a história das filosofias educacionais

(oralismo, comunicação total, bilingüismo) como sendo a história dos surdos, as

narrativas do ouvinte como salvador dos surdos do “mundo do silêncio” etc. Essas

narrativas tem sido as narrativas oficiais da história do povo surdo.

Sabemos que a resistência constrói estratégias de sobrevivência desse povo,

principalmente quando outras histórias são narradas e construídas. A poesia surda, o

humor surdo, a arte surda são exemplos de construção cultural pertinentes a esse

grupo que representam a resistência surda a esta história de certezas e incertezas.

Carol Padden e Tom Humphires (tradução não publicada) em seu livro “O Surdo na

América: Vozes de Uma Cultura”, colocam as questões culturais surdas num ponto de

vista surdo. Ambos são surdos, porém com histórias de vida diferentes. Carol Padden é

surda, filha de pais surdos, ou seja, tem toda uma imersão nesse mundo. Já Tom,

surdo, filho de ouvintes, só encontrou a comunidade surda já jovem. Esse livro aponta,

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dentre outros aspectos, as narrativas surdas como estratégia discursiva para a

manutenção do sentimento de pertencimento ao grupo de surdos.

Um exemplo de história que nos mostra que se aprende a ser surdo é a história de Sam

Supalla. Ele conta que, em sua infância, teve uma amizade com uma vizinha de porta

que o afligia muito. Sam tinha pais e irmãos surdos, e a única pessoa com quem vinha

tendo contato fora do seu núcleo familiar era a vizinha. Pois bem, sua vizinha era

estranha, agia de forma esquisita. Era até uma boa companheira, porém não conseguia

conversar com ela. Após várias tentativas de se comunicar, sem sucesso, por meio da

sinalização (pois assim se comunicava com seus pais e seus irmãos), desistiu de

conversar com essa estranha vizinha e apenas apontava para mostrar o que queria. Ele

queria saber que estranha aflição tinha sua amiguinha, mas, desde que se adaptou em

sua comunicação com ela, estava contente.

Por fim, um belo dia, ele compreendeu que estranha aflição tinha sua amiga. Eles

estavam brincando na casa dela, quando, por mágica, a mãe dela chegou até eles e,

animadamente começou a abrir e fechar a boca. Mais que depressa, a menina

respondeu a esse movimento “de bocas”. Correndo, Sam foi até em casa perguntar a

seus pais sobre esse ato. E sua mãe lhe explicou que ela era ouvinte e, por causa

disso, não sabia sinais. Ela e sua mãe falam movimentando as bocas. Sam, então,

perguntou se eram apenas as duas daquele jeito. Sua mãe lhe explicou que a sua

própria família, de surdos, era a diferente. Sam compreendeu que era surdo, logo,

entendeu que existe o ouvinte. Sam pensava: como as pessoas ouvintes são curiosas!

Ele entendeu sobre o outro e, conseqüentemente, sobre si mesmo.

A escola também é terreno fértil para muitas histórias. Howard, outro exemplo, conta,

no mesmo livro, que descobriu que era surdo ao entrar na escola. Para uma criança

como Howard, a palavra surdo designava tudo o que havia de mais natural em sua

vida: sua família e amigos. Essa palavra fazia parte de seu vocabulário diário,

representando o grupo a que pertencia.

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A palavra “surdo” para Howard, para Sam, ou até mesmo para a própria Carol Padden,

não estava representando uma pessoa com deficiência audiológica. A consciência

dessa deficiência, segundo Howard, se deu no contato com os não-surdos, quando

percebeu que quando a professora também utilizava esse termo (surdo), a diferença da

representação ficava muito clara, já que se referia ao deficiente auditivo.

Esses pequenos contos (reais ou ficcionais) e outras histórias contadas no cotidiano

das vidas surdas, alimentam a sensação de povo, de pertencimento do grupo, de

cultura e língua compartilhadas.

Nas narrativas surdas capixabas, encontramos histórias interessantíssimas sobre a

escola e sobre como criavam estratégias para contornar situações que colocavam em

risco suas identidades. “A hora da entrada na escola de surdos” quando todos

cantavam o Hino Nacional sem nem saber ou entender do que se tratava, quando todos

os avisos eram dados oralmente e, como diz um dos narradores desse texto: Eu acho

que elas (as professoras) pensavam que seríamos curados ou que será que era

invisível que éramos surdos?”.

Os conteúdos infantilizados, o mito da coordenadora que belisca quando vê o aluno

fazendo sinais, a sineta da escola ser um sininho são símbolos instituídos pelas

narrativas contadas entre os surdos. Incluem-se, também, histórias mirabolantes sobre

como os surdos burlavam as normas para utilizar a língua de sinais.

O segundo aspecto apontado por Hall é a ênfase dada às origens de uma cultura e à

sua continuidade. Esse aspecto aponta a necessidade de se contar histórias sobre as

origens de um povo, sobre o nascimento de uma cultura. O povo surdo também mostra

a necessidade de ter uma história de origens de suas raízes. Apesar de contarmos com

a história oficial do “descobrimento dos surdos” numa perspectiva moderna e linear,

temos as narrativas descontínuas dos movimentos, dos fatos e das construções de

organizações surdas em busca de uma “emancipação”. Por exemplo, para o povo

surdo capixaba, conta muito mais a história das criações das primeiras associações de

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surdos (por volta de 1988 e 1989) do que a criação da escola oralista de surdos. Conta

muito mais a história do primeiro curso de língua de sinais no Estado (um movimento de

igrejas inicialmente) do que a primeira turma de professoras oralistas formadas para

ensiná-los na escola de surdos.

E, ainda, uma terceira estratégia discursiva, de acordo com Hall, é a chamada

“invenção da tradição”. Segundo Hall (1998, p.54):

Tradição inventada significa um conjunto de práticas [...], de natureza ritual ou simbólica, que buscam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, a qual, automaticamente, implica continuidade com um passado histórico adequado.

O povo surdo também constrói suas tradições, seus ritos pelas vivências de seus

grupos. Ao se encontrarem constantemente nas associações, constroem formas de

viver esses momentos que passam a ser somente deles.

Uma quarta estratégia discursiva é o que Hall chama de mito fundacional: uma história

que localiza a origem do povo. Esses mitos fornecem uma narrativa por meio da qual

“[...] uma história alternativa ou uma contranarrativa, que precede às rupturas da

colonização, pode ser construída” (HALL, 1998, p.55). Essa contranarrativa29 é

construída pelo povo surdo na negação da história oficial como sendo a do seu povo.

As contranarrativas surdas são as histórias da resistência, do seu povo e dos seus

movimentos.

Por fim, Hall (1998) aponta a quinta estratégia discursiva que é a idéia simbólica de um

povo puro, original, que identifica uma identidade de grupo. No povo surdo, o nascer

surdo e ou “ficar surdo”, ainda antes de ter uma linguagem, caracteriza bem o puro

componente deste grupo. Por isso, muitas vezes vemos, nas falas deles próprios,

aqueles que não nasceram surdos, afirmar que nasceram, sim, ao serem questionados

acerca de sua surdez. E a própria polarização surdo x ouvinte, o conflito entre surdos

29 Essa contranarrativa a que se refere este trabalho não se trata, necessariamente, de uma narrativa que vai contra alguma outra, mas de uma narrativa que desconstrói aparatos de poder e de saber instituídos.

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oralizados e surdos sinalizados, a luta por uma cultura surda homogênea, quando se

traduzem ações diárias como ações culturais, a desconfiança quando ouvintes

participam das associações e dos movimentos alimentam esse mito da pureza cultural.

Hall (1998) continua seu texto propondo uma desconstrução da idéia de “cultura

nacional”. Porém todas as estratégias discursivas apontadas pelo autor justificam a

possibilidade da existência de uma cultura surda como uma cultura de um povo,

existente simbolicamente, porém sem um território preciso. Não apenas imerso no

discurso da diversidade, mas profundamente comprometido com sua diferença, com o

seu modo de ver o mundo, de experimentá-lo e vivenciá-lo. As negociações com a

alteridade e com a mesmidade é uma estratégia de sobrevivência e uma forma de

experimentar e vivenciar. A cultura é um meio partilhado essencial, uma vez que o que

constitui uma suposta “unidade nacional” da comunidade imaginada são exatamente

“[...] as memórias do passado, o desejo por viver em conjunto; a perpetuação da

herança” (HALL, 1998, p.58).

A língua de sinais, a própria pedagogia, as artes, a história cultural são artefatos que os

surdos criaram, porém impedidos de desenvolver pelo próprio poder do discurso

colonialista da deficiência. Além de se constituírem resistências, pois são geradas nas

relações de poder existentes, são marcas culturais imprescindíveis na constituição do

povo/nação surdo. Por isso, a atividade oralista, desenvolvida há décadas no Estado do

Espírito Santo, dificulta a constituição de outras possibilidades de olhar e construir o

surdo historicamente.

A opção de territorializar a discussão teórica deste trabalho acontece no sentido de

sistematizar os meus recortes para melhor compreensão do leitor e possibilitar uma

leitura didática. Porém é válido lembrar que são teorias com fronteiras muito tênues e a

intenção é justamente trabalhar nessas fronteiras, nos interstícios, nas rachaduras.

2.3 METODOLOGIA DA PESQUISA REALIZADA

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Diante das questões levantadas pelo aporte teórico apontado, a metodologia foi

delineada de acordo com a necessidade da pesquisa e do recorte.

Quando se fala da necessidade de as narrativas da educação incorporarem as

narrativas surdas, a pergunta passa a ser: quais são as narrativas surdas? Que

narrativas surdas? Onde estão as narrativas surdas?

Apesar de o problema de pesquisa não passar por essas questões, necessariamente,

retomo-o aqui com a seguinte pergunta que resume todas as questões levantadas

neste trabalho: como as narrativas das resistências surdas se constituem a partir de

poderes/saberes ouvintistas/colonizadores instituídos nas práticas pedagógicas?

Vale ressaltar que esse problema de pesquisa e os objetivos foram construídos nas

leituras teóricas outrora levantadas e já apontadas por este mesmo texto (Cap. I) e nas

conversas com os surdos no estudo piloto.30 Destaco, para este trabalho, os seguintes

objetivos:

a) desvelar as narrativas da resistência surda e a sua constituição;

b) relacionar essas narrativas em sua trama histórica localizável;

c) analisar as práticas e políticas colonialistas vigentes numa perspectiva surda por

meio das narrativas;

d) ampliar a discussão educacional dos surdos apropriando a este discurso as

narrativas surdas.

2.3.1 Narrativas

Na busca pelas narrativas surdas, pensar em Benjamim (1996) muito mais do que

romântico, é fundamental. Afinal, pensar essas narrativas é um exercício preocupado

30 O projeto piloto foi feito a fim de desenvolver a metodologia e definir o objeto de pesquisa. Além disso, bati papo com alguns surdos que elucidaram profundamente o presente trabalho.

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em desconstruir discursos ouvintistas sobre as questões desse povo. Ou seja, suas

tradições, criadas e constituídas pelas narrativas, sustentam a idéia de nação e o

sentimento de pertencer a um grupo.

As narrativas surdas, além de fazerem parte daquilo que Hall apontou com estratégia

discursiva para a construção da idéia de nação, é um dos fios que compõem a rede

tecida das relações nas comunidades surdas. Ou seja, fios invisíveis que unem os

surdos, constituindo-os como povo com seus contos, suas histórias e suas questões. As

narrativas são experiências que passam de pessoa a pessoa e logo esse intercâmbio

de experiências cria laços simbólicos, quando há grupos de surdos reunidos,

conversando e narrando. Vale ressaltar que, pelo fato de essas narrativas serem feitas

em outra língua, nós, ouvintes, somos fadados a participar com nossas traduções que

podem se aproximar ou não do que de fato é. A língua compartilhada entre os

narradores surdos que não é falada pela maioria, inclusive, que ainda não há forma

difundida de apresentar-se escrita,31 cria a necessidade de se encontrar para

conversar, narrar suas questões e intercambiar experiências.

Segundo Benjamim (1996), a fonte de histórias a que recorrem todos os narradores são

as experiências que passam de pessoa a pessoa. Pela própria construção histórica em

que as narrativas oficiais sobre os surdos estão localizadas nas narrativas ouvintistas,32

as narrativas surdas sempre existiram como forma de subversão ou resistência e como

possibilidade de se contar outra história. Elas existem entre eles e não são vistas pelos

ouvintes por se darem, inclusive, em outra língua. Quando interpretadas por algum

ouvinte/intérprete, também são ignoradas por confrontarem muito do que se faz como

política ou prática pedagógica.

As histórias surdas desconstroem o aparato deficiente constituído nos discursos da

Educação Especial, domínio em que se encontram, hoje, as discussões educacionais

31 Hoje temos a sign writing como possibilidade de língua de sinais escrita. Mas, como disse no texto, não é difundida ainda. 32 Principalmente quando reduzem a história dos movimentos surdos à história das abordagens teórico-metodológicas relativas à educação dos surdos.

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surdas. Inclusive, constituem outra ordem do discurso, baseado na crítica às práticas

pedagógicas ouvintistas, na constituição de práticas culturais, na criação de símbolos e

artefatos que identificam o povo surdo e que os deslocam constantemente nas

fronteiras da normalidade e da anormalidade.

Há casos incontáveis (acho que a grande maioria dos surdos que conheci passa por

esse processo) de surdos que “habitam” na comunidade, trocando, inclusive, sua

família sangüínea pelo fato de não poderem conversar, não poderem compartilhar

experiências. Não aceitam mais participar das festas de família se não tiverem surdos

juntos, porque não dão conta de compartilhar com ouvintes que não sabem língua de

sinais.

Falando das narrativas em si, foram exatamente as conversas com os surdos que me

fizeram entender que eles têm uma teoria sobre a educação, sobre os processos de

normalização a que são submetidos e sobre o que gostariam que acontecesse, como

teria que ser a educação ideal. Por isso, concordo aqui novamente com Foucault

(2005), parafraseando suas palavras, quando coloca que mais vale a teoria que os

surdos têm sobre a educação do que uma teoria sobre a surdez.

As narrativas são soltas, leves e contam histórias. Benjamim (1996) dá pistas de como

elas deveriam ser, apontando algumas características relevantes para o narrador.

Dentre elas, ressalto a necessidade de as narrativas escritas serem o mais parecidas

possível com os relatos orais.

Outra característica é o senso prático que permeia toda a narrativa. Elas trazem, em

seu bojo, uma lição, algo que queira mostrar. A natureza da verdadeira narrativa traz

em si uma dimensão utilitária. “O narrador é um homem que sabe dar conselhos”

(BENJAMIM, 1996, p. 200).

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De acordo com Benjamim (1996), a narrativa é uma forma artesanal de comunicação e

não está interessada em transmitir pura e simplesmente a coisa narrada em si, como

uma informação ou relatório. “Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em

seguida retirá-la dele. Assim, se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão

do oleiro na argila do vaso” (1996, p. 205). Sem esquecer de acrescentar que os

narradores gostam de iniciar suas histórias com uma breve descrição do local e das

circunstâncias onde ocorre o acontecido.

Pensando nessas características das narrativas, as histórias surdas preenchem esses

requisitos pelo fato de não haver uma preocupação com a explicação dos fatos. Mas

são narrados, são contados, como já disse, como denúncia ou como forma de

desabafo. São histórias relatadas de acontecimentos, “causos” ou até mesmo fatos

verídicos, mas refletem as formas de ser/estar sendo surdos no mundo. Nessas formas

de vida, transbordam as narrativas de resistências, de lutas, de quietude, mas sempre

com ponderações relevantes para os discursos da educação especial e da inclusão.

As narrativas dos surdos serão apresentadas aqui de duas formas: ora como contos

apenas narrados e ora como parte da análise dos saberes/poderes que constituem

essas narrativas.

Essa diferença ocorre porque as narrativas foram colhidas basicamente de duas

formas: a “roda de conversa” e o “cafezinho da tarde”. Essas foram as formas

escolhidas de acordo com as circunstâncias, para um bom “bate-papo”.

Surdos, representando as regiões norte, sul e central do Estado, participaram da

pesquisa dessas diferentes formas. Tive encontros com surdos da região central de

municípios como Vitória, Vila Velha, Cariacica, Serra; da região norte, surdos de

Colatina, Águia Branca, Linhares e São Mateus; do sul, Guaçuí, Mimoso do Sul,

Cachoeiro de Itapemirim e Presidente Kennedy.

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No sul, fui a um encontro com os surdos num “cafezinho da tarde” e tivemos o

incômodo da filmadora para registrar as narrativas já que são contadas em língua de

sinais. Apesar do recurso visual ser imprescindível, muitas narrativas foram registradas

por mim, após as filmagens, porque histórias relevantes eram também contadas nas

horas mais tranqüilas sem a filmadora ligada.

A “roda de conversa”, com duração de duas horas de intensos relatos e debates, se

deu basicamente com surdos do norte do Estado que faziam o curso de instrutor de

Libras numa faculdade particular em Vila Velha. Foi maravilhoso me encontrar

especialmente com esses surdos preocupados com suas formação profissional. Já

estavam justamente discutindo ali sobre as questões pertinentes a práticas

pedagógicas no ensino da língua de sinais e, por isso, estavam afiados nas críticas e

nos relatos. As narrativas desses surdos eram recheadas de contos catárticos e

denunciativos. Seria maravilhoso se eu pudesse apresentar essas histórias em sua

língua original, a língua de sinais, pois são mais ricas em detalhes, no que tange aos

recursos visuais, que a língua portuguesa escrita pode dar conta de descrever.

Os surdos da região central foram entrevistados individualmente em minha casa ou na

casa de meu pai, convidados para o tal “cafezinho da tarde”. Era interessante, porque

outros surdos sempre estavam presentes e opinavam, colocavam suas questões,

enriquecendo toda a conversa, fazendo, muitas vezes, o narrador se lembrar de outras

histórias. Foram momentos muito interessantes, de conversas, trocas de experiências,

construindo, assim, narrativas belíssimas sobre si, sobre o mundo e sobre a educação

(que é o recorte do trabalho).

Entrevistei três gerações de surdos: surdos da década de 70, surdos da década de 80 e

da década de 90. Registrei suas histórias, suas lutas e conquistas. E, pasmem, as

histórias são tão parecidas que não dá para contá-las uma a uma.33 Terei que recortá-

33 Mesmo com uma diferença de 20 anos (da década de 70 a década de 90), as práticas são as mesmas.

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las e dialogar com elas. Para representar o grupo todo, escolhi três narrativas para

contar inteiramente no próximo capítulo desta dissertação. As outras estarão inseridas

no decorrer do trabalho. Não é objetivo dessa pesquisa identificá-los, nem identificar de

onde falam. Para isso uso os nomes fictícios e apenas as idades para ser percebido

que as práticas são comuns em todo o Estado e nas diferentes gerações.

Eu me encontrava com o narrador para narrar também as minhas histórias. Eles não

aceitavam que eu não participasse das conversas, ficando de fora, olhando e

escrevendo. Sempre davam um jeito de me perguntar algo, de se direcionar de alguma

forma para mim ou até de contar uma história em que eu estivesse incluída. Então, de

algumas conversas participei ativamente, principalmente na roda. Chegava com

algumas perguntas a fim de direcionar a discussão, mas logo abandonava o roteiro,

porque as narrativas são narrativas e não entrevistas.

A conversa que mais busquei foi com um surdo citado por todos de uma geração que

fizeram parte da pesquisa. Esse surdo era um servidor na escola de surdos na década

de 70 e, por ser do Rio de Janeiro, sabia sinais e pôde ensinar a muitos surdos de

formas mais interessantes. Por ele não morar mais aqui e residir no Rio de Janeiro,

imaginei que talvez não conseguiria entrevistá-lo. Qual não foi a minha surpresa

quando uma amiga, conhecedora da minha pesquisa, me falou sobre sua visita a

Vitória. Logo corri para mandar torpedos, tentando um encontro. E consegui encontrá-lo

na casa do meu pai. Para minha surpresa, foi o lugar onde se hospedou por uma

semana.

Confesso que ele é mais interessante nas narrativas dos outros sobre ele do que nas

dele mesmo. Ele descobriu com a nossa conversa como foi importante para um grupo

de surdos e enriqueceu o meu trabalho ratificando tudo que foi contado. Foi um

encontro fantástico! E detalhe muito importante: havia surdos dessa época, por isso, foi

um verdadeiro encontro de narradores, de velhos amigos, recheados de nostalgia.

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Inclusive a necessidade de denunciar, contar as dores, compartilhar os sentimentos era

evidente naquele cafezinho da tarde onde, na verdade, nos banqueteamos!

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Terceiro Capítulo:Terceiro Capítulo:Terceiro Capítulo:Terceiro Capítulo:

Algumas histórias surdas: o diálogo que

constrói a diferença e desconstrói as velhas

narrativas

“A narrativa histórica é um contíguo regresso do Outro.”

Eugênio Vilela

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3.1 NARRATIVAS E NARRATIVIDADES: O ATO DE NARRAR...

Narrar, contar, viver, experienciar... todos esses verbos estão ligados, unidos,

expressando a essência deste capítulo. Quando Sontag (1980, p.100) afirma: “[...]

pensar e escrever são fundamentalmente questões de resistência”, revela quando “[...]

uma deficiência cardíaca constitui o limite metafórico dos esforços e das paixões de

Benjamin (ele sofria do coração)”. Apesar da resistência aqui ser apontada como

metáfora de um problema físico, a nossa resistência, ao registrar as histórias surdas,

está ligada àquilo que Bhabha celebra como possibilidade de contar uma outra história

e reescrever a nação ocidental a partir da perspectiva da margem. Neste caso, a “nação

surda”.

A nação surda é inspirada e construída nas reuniões à margem, como num mundo

paralelo e metafórico. A idéia de nação surda é construída pelas comunidades e das

“reuniões dos exilados”:

Reuniões de exilados, émigrés e refugiados, reunindo-se às margens de culturas ‘estrangeiras’, reunindo-se nas fronteiras; reuniões nos guetos ou cafés de centros de cidade; reunião na meia –vida, meia-luz de línguas estrangeiras, ou na estranha fluência da língua do outro; reunindo os signos de aprovação e aceitação, títulos discursos, disciplinas; reunindo as memórias de subdesenvolvimento, de outros mundos vividos retroativamente; reunindo o passado num ritual de revivência; reunindo o presente (BHABHA, 2005, p. 198).

“Também a reunião de povos na diáspora: contratados, migrantes, refugiados [...]. Em

meio a essas solitárias reuniões de povos dispersos, de seus mitos, fantasias e

experiências, emerge um fato de importância singular” (BHABHA 2005, p. 198): a

possibilidade de se contar a história dos surdos sob a perspectiva da margem da

história oficial deles contada pelos que ouvem e do exílio dos detentores da norma, ou

seja, sob a perspectiva das narrativas surdas.

As narrativas, para Benjamim (1996), como já mencionei, acontecem com o encontro de

experiências, com a reunião de histórias. Assim, o ato de narrar se torna um ato de

conhecimento, isto é, uma rede tecida de representações diversas, traduções variadas

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sobre o mundo e sobre o objeto da história que cria sonhos, utopias e compartilha

outras realidades (PÉREZ, 2003, p.101).

“Narrar a vida é reinventá-la. É produzir novos sentidos, é reatualizar em novo contexto,

as marcas inscritas em nosso corpo, em nossa história” (PÉREZ 2003, p. 112). Ao

narrar os fragmentos escolhidos por suas memórias das histórias escolares, os surdos

se transformam em objeto de conhecimento para o outro e para si mesmos. Ao

narrarem suas experiências, com o reinventar, acrescentar e colocar suas emoções,

recriam suas histórias, suas perspectivas e seus paradigmas. “Trabalhar com histórias

narradas se mostra como uma tentativa de dar visibilidade a esses sujeitos, afirmando-

os como autores/autoras, também protagonistas em nossos estudos” (FERRAÇO,

2003, p. 171).

O incorporar dessas narrativas na pauta dos projetos educativos dos surdos nos traz

novas possibilidades de criação de novas pedagogias, de novos sentidos àquilo que

denominamos surdez.

A memória – fragmento, de acordo com Pérez (2003, p.103) – refere-se aos retalhos,

pedaços de experiências escolhidos para lembrar. Mesmo que não conscientemente

ocorra a seleção, essas lembranças estão relacionadas com aquilo que significa: sons,

cheiros, gestos, atitudes, sentimentos, imagens “[...] registradas na memória e

reelaboradas na e pela linguagem” (2003, p.103).

O processo de tessitura das lembranças é tramado pela utilização da sensibilidade da memória, através da linguagem e dos sentidos, que cada sujeito atribui aos fatos e acontecimentos vividos em sua trajetória pessoal-social, o que torna a experiência comunicável (PÉREZ, 2003, p. 103)

Contar suas histórias, narrar suas questões fazem desses narradores, autores não só

de si, mas de todos que são parte do coletivo que é o movimento surdo. Colocar-se é

colocar o outro. É fazer parte da trama histórica evocada por Foucault, é produzí-la.

Não há uma trama histórica pronta. Mas, sim, ela é construída por todas as narrativas.

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3.1.1 Ainda sobre as narrativas: alguns conceitos i mportantes

Além das questões das narrativas colocadas de forma tão indelével, vale acrescentar

alguns conceitos trabalhados por Silveira (2005).

Para a autora, que se baseia em Marchusi (2002), o discurso narrativo é entendido

como um discurso imbricado com a invenção, criação e estabilidade de práticas

culturais em geral e escolares em particular, “[...] assim como das identidades e

representações produzidas por essas práticas” (SILVEIRA, 2005, p.198).

Já em relação a discurso, a autora assume com Brooker (1998) o entendimento do

termo como “[...] usado para designar formas de representação, convenções e hábitos

de uso da linguagem que produzem campos específicos de significado cultural e

historicamente situados” (SILVEIRA, 2005, p.198).

Por fim, quando aponta a narrativa, a autora compreende como:

[...] um tipo de discurso que se concretiza em textos nos quais se representa uma sucessão temporal de ações apresentadas como conectadas- de alguma forma- entre si, com determinados personagens ou protagonistas, em que haja uma transformação entre uma situação inicial e final e/ou intermediária (SILVEIRA, 2005, p. 198).

Neste trabalho, quaisquer dos três conceitos se encaixam perfeitamente naquilo que,

desde o início, tenho chamado de narrativa. Aqui, narrativas é sinônimo de histórias de

resistências que ora podem simplesmente contar “causos” diários da escola, ora esses

próprios “causos” podem construir representações e marcas culturais.

O que de fato importa é a idéia de que a cultura “[...] é alimentada, criada, reproduzida,

reforçada e, por vezes, subvertida, largamente, pelas narrativas com protagonistas

pontuais, em circunstâncias e lugares datados (indiferentemente de sua veracidade)”

(SILVEIRA, 2005, p. 199). Por isso, quando a autora aponta um possível temor que as

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histórias contadas colocam em seus ouvintes, logo me remeto ao caso das narrativas

surdas. Afinal de contas, atrelá-las aos movimentos políticos da educação requer um

olhar revisionário, pois elas nos apontam as falhas que a Modernidade imprimiu em

seus corpos, questionando tudo que de fato é posto como sinônimo de educação de

surdos.

3.1.2 A questão da tradução...

Aqui vai uma tradução da história de Miguel. Porém, antes de contar a história, falar

sobre a tradução, ato que permeou todo o processo de pesquisa e que vai permear

todo o processo de análise dos dados e dos relatos de histórias, é fundamental neste

momento.

Numa perspectiva derridiana, a tradução faz com que o original sobreviva. Segundo

Derrida (1996), o tradutor é devedor do original; mas, na medida em que o original

depende do tradutor para sua sobrevivência (porque, afinal, sem o tradutor, o original

morreria numa só língua), ele contrai, antecipadamente, uma dívida com o tradutor.

Müller (2002), em sua pesquisa de mestrado, também aponta a tradução como um

processo de trabalho árduo de constantes negociações entre uma língua e outra, ao

relatar as histórias surdas. Segundo a autora, há perdas e ganhos nessas negociações

entre as línguas, principalmente, quando me refiro a uma língua visual-espacial, sendo

traduzida para uma língua oral-auditiva, ou seja, línguas de modalidades totalmente

diferentes.

Admitindo o que Skliar e Larrosa (2001) apontam em relação à inexistência de uma

tradutibilidade generalizada entre línguas, afirmo aqui que há um atravessamento da

minha própria tradução do objeto de pesquisa nas traduções das narrativas. O tradutor

não é um mero repetidor em outra língua do texto original. Ele formula, ele recria, ele

produz também todo o conteúdo. A relação entre o tradutor e o texto a ser traduzido é

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indissociável. Ambos fazem parte da rede tecida pela pesquisa, neste caso particular,

toda a base teórica elencada representa o local onde me situo nas traduções dessas

histórias.

Concordo com Larrosa (2004), quando afirma que ler é traduzir, afinal a minha leitura

das narrativas surdas são minhas próprias traduções. E apesar de transitar

tranqüilamente em ambas a línguas, desde pequena, como já contei em minhas

próprias narrativas, na hora da tradução a dificuldade e o efeito das modalidades das

línguas envolvidas ficam especialmente eminentes.

De acordo com Larrosa (2004) a tradução transporta sentidos, um sentido que assume

“[...] outra materialidade lingüística e se entrega ou se dá a entender, em outro contexto

vital. A tradução é um transporte de uma língua a outra língua e de um contexto vital a

outro contexto vital”. E com esse transladar de sentidos, a tradução, se torna um ato

de desconstrução. “O tradutor já não trabalha para borrar a diferença, mas para fazê-la

produzir” (LARROSA, 2004, p. 84).

Ainda posso afirmar que, quando há uma tradução, o sentido se transporta e ao

transportar-se, “[...] conserva-se e ao mesmo tempo, transforma-se, metamorfoseia-se,

modifica-se” (LARROSA, 2004, p. 77).

Miguel34 me conta a sua história num “cafezinho da tarde”, no sul do Espírito Santo,

compartilhando com outros surdos da região suas narrativas. Foi um encontro

nostálgico, alegre, sincero e, sem dúvida, precursor de outros.

Fiquei sabendo de Miguel de uma forma muito interessante. Eu dava aulas sobre os

Estudos Surdos num Curso de Pós-Graduação, quando, um dia, compartilhei sobre o

tema da minha pesquisa, então uma aluna me contou, em resumo, a história de Miguel.

34 Nome fictício da personagem deste conto que, na realidade, é o narrador da história .

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Fiquei fascinada com a história e logo tratei de buscar esse encontro. Minha aluna

combinou tudo com os surdos em sua casa, preparou o café e nos encontramos em

Cachoeiro de Itapemirim, para o diálogo que agora se segue, ora em forma de conto,

ora em forma de conversa. Vamos à história!

3.2 CRIAR UMA LÍNGUA, VIVER NO MUNDO!

Miguel é do interior do Estado. Parte sul do Espírito Santo. Sua história remexe com

algumas questões sobre os surdos colocadas pelos burocratas ouvintes. Sua história é

um exemplo de resistência possível e as formas mais sutis de ela ser desvelada. Vou

deixá-lo contar. É bem mais interessante a sua fala.

“Eu estudava numa escola com ouvintes. Brincava muito sozinho com as crianças o que

me deixava um pouco triste e isolado. A solidão me angustiava profundamente, afinal,

as crianças ouvintes brincavam entre si e só se comunicavam apontando para mim. Eu

deixava para lá. Brincava com meus brinquedos. Na época, eu estava na primeira série.

Mas o que é primeira série? Como assim primeira série? Isso é só um exemplo. Eu não

sabia do que se tratava. Perdido! Totalmente perdido!

Eu entrava na sala de aula, a professora mandava abrir o caderno e lá estava, um

monte de letras e ela apontando para mim. Apontando para lá, para cá, articulando a

boca e eu não compreendendo nada. Só sei que, de alguma forma, meu pai me

mandava ir para escola. Era para lá que tinha que ir. Eu não entendia nada. Levava o

misterioso caderno para casa e lá meu pai também apontava para cá, apontava para lá,

articulando a boca. E eu continuava sem entender nada.

Bom, algo novo estava por acontecer. Imagino que a professora chamou a diretora para

conversar dizendo que eu estava só, que era surdo e estava sozinho. ‘Coitado!’ etc.

Enfim, a diretora aceitou minha condição e, então, iniciou uma salinha de surdos lá na

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minha terra. Apontavam para lá, apontavam para cá, sempre articulando os lábios e lá

estava eu, convencido a ir para essa nova sala.

O grande dia chegou. Todo o material estava lá. Caixas novas embrulhadas, cheirando

a novidade... O que será que tinha nas caixas? Enfim, abertas, fiquei imaginando para

qua serviria tudo aquilo que meus olhos viam. Eram aparelhos de som, fones de ouvido,

microfones. Para que isso? O que é isso? Senti medo... muito medo. Era tudo tão novo,

tão cheiroso... mas tive medo! E aqueles botões?

Hoje sei que aqueles aparelhos trabalhavam o som. Mas som? Que som? Eu sou

surdo! Eu ficava pensando numa lógica, mas aqueles amplificadores de som, não me

davam ainda o contato com as palavras.

Lembro-me de uma atividade que hoje me faz rir: a professora colocava o fone em mim,

tampava a boca com um papel e dizia a palavra. Nossa! O que ela disse? O desespero

já tinha tomado conta de mim...

No quadro-negro, estavam as

palavras do ditado. Era para eu

apontar qual palavra ela tinha dito.

Bom, levantei e fui lá no quadro e

apontei para qualquer uma. Óbvio

que eu sabia apontar bem. Era assim

que as pessoas falavam comigo,

apontando para lá, apontando para

cá e articulando os lábios. Pois bem,

voltando à atividade, apontei para

qualquer palavra e torcia para

acertar. Qual a minha surpresa que

não tinha acertado? Morri de

vergonha. Os meus outros amigos surdos, de medo.

Figura 6 – Arte de Betty G. Miller Fonte: http://bettigee.purple-swirl.com

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Mas o legal nessa sala era isso: os amigos surdos. Eu brincava com eles. Não ficava

mais sozinho. Quanto à atividade, a grande notícia era que não fui o único que errou.

Todos os meus amigos foram ainda piores do que eu...

E quando a professora, ainda na atividade do fone, danava a falar MATO e eu

confundia com PATO? Mas o meu fiel amigo Hélio35 também confundia. Na verdade,

nem ouvíamos para não confundir tanto.

Tem um outro fato muito interessante que me lembro. Eu estava na sala fazendo uma

atividade e pedi com os gestos a borracha pro meu amigo (antes eu tivesse

apontado...). A professora viu o meu “vacilo” e na hora tratou de me corrigir: Fala BOR-

RA- CHA. Eu morri de vergonha. Só que o mais legal é que fiz o que ela sugeriu e o

meu colega não compreendeu nada do que eu queria. Então, na hora, respondi: ‘Viu?

Ele não entendeu nada!’ Quando eu devolvi a borracha, a professora mandou que eu

dissesse outra palavra. Eu não entendi nada da palavra que ela me disse para dizer.

Simplesmente ela escreveu e mandou eu ler. Hoje eu sei que é a palavra “obrigado”. Eu

perguntei o que era, e ela me respondeu apontando para lá, apontando para cá e

articulando os lábios. É tão mais simples fazer o sinal de obrigado... mas ela apontava,

fazia gestos esquisitos e eu não compreendia nada. Isso me incomodava muito.

Eu ficava espantado com a minha vida dupla. Saía da escola com meus amigos e

falávamos em sinais. Olha que nem são os sinais de hoje, porque nem sabíamos que

existiam. Nem sabíamos que se chamavam Libras e tal. Mas falávamos em sinais. E

quando chegávamos na sala de aula, era com as mãos quietas e a boca fechada.

Como assim? Que vida dupla levávamos? As nossas mãos tinham que ficar na mesa.

Eu devia ter uns doze anos de idade nesta época. Até acreditei que a professora

poderia se acostumar, mas não. Ela não aceitou mesmo. O Hélio, meu amigão, estava

lá comigo, nesta mesma empreitada, preocupado com o que estava para acontecer.

Com medo também. Não podíamos conversar. Não posso esquecer também da minha

35 Nome fictício.

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amiga Marina, que não sabia nada, como nós, e que até hoje está na primeira série.

Ela, claro, abandonou a escola na época.

Depois de um tempo na sala da oralização, fomos para a sala de aula regular com os

ouvintes. Nossa, não queríamos ir. Pelo menos eu e o Hélio ficaríamos na mesma sala.

Era o que pensávamos, mas, para nossa surpresa, não ficamos. Quando percebi que

nos separaram, fiquei chocado. Qual não foi a meu susto quando me vi na turma A e o

Hélio na turma B. Tudo isso para não falarmos em sinais, eu sei. Tiveram a brilhante

idéia de nos separar, de nos incluir aos ouvintes! Melhor forma mesmo de nos forçar a

não falar em sinais.

Sinceramente sofremos muito. Mas tínhamos que sobreviver. O Hélio iniciou sua saga

de reprovação na escola. Eu passava, porque dava a sorte de pegar professoras

boazinhas que me davam cola. Mas claro que também já fiquei reprovado. Que surdo

não ficara reprovado? Desconheço este super-humano!

Bom, como eu já disse, se comunicar apontando para lá, apontando para cá e

articulando a boca me incomodava muito. Éramos esquisitos, mexíamos as mãos de

forma desordenada, um bando de crianças bagunçadas! Então eu imaginei o que

poderia fazer para mudar isso, porque, pela primeira vez (afinal, nunca se tinham

mencionado isso para mim), vi na televisão um quadradinho com uma intérprete

fazendo sinais. Pensei: ‘Ela não é tão bagunçada assim. Ela faz tudo direitinho’. Mas

como não sabia os sinais que ela utilizava, deixei para lá. Ignorei. Chamei o Hélio e

juntos começamos a criar. Pegamos as letras do alfabeto em Português e criamos

gestos para todas elas. Tudo isso para nos comunicarmos de forma ordenada.

Chegamos na escola e logo passamos a ensinar todos os outros colegas surdos. Claro,

longe da professora, que nunca teve acesso ao nosso código. Era a nossa forma de

explicar as atividades. Por exemplo, virava para minha amiga e falava as respostas em

sinais: não é ‘A’ não. É ‘E’, por exemplo. Isso, lógico, sempre quando a professora saía

da sala. Ela virava as costas e automaticamente nos ajudávamos.

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Um belo dia, estava eu indo para escola, quando, de repente, aconteceu uma virada

nessa história toda. O nosso alfabeto já tinha dado certo. Já era assimilado e todos

usávamos tranqüilamente. Mas, nesse dia, encontrei na rua um papel velho, meio

rasgado. Parei para ver o que era e não entendi a princípio o que estava escrito. Li a

palavra ‘surdo-mudo’ e fiquei curioso. Porém, quando virei o papel...

Que surpresa! Estava lá, no verso do papel, todo o alfabeto. Aquele que eu tinha criado,

mas, não exatamente o que criei. Outro. Nossa! Andei pelas ruas, só olhando aquilo,

aprendendo aqueles sinais novos que deveriam ser os certos. Tenho quase certeza de

que algumas pessoas falavam comigo enquanto eu caminhava, mas além de eu não

olhar, me aproveitando de minha surdez, não queria saber de mais nada além daquilo.

Eu estava a caminho da escola e levaria aquela novidade a todos os meus amigos

surdos. Existia sim algo oficial. Algo sistematizado. O que a gente criou não era o certo,

mas, apesar disso, nos serviu por muito bom tempo!

O mais legal é que me senti inteligente! Muitas daquelas letras eu havia criado de

acordo com o que vi. Por exemplo: C, I, M, N, O, V. As letras mais icônicas. Mas eu as

havia criado certo, como estava no papel. E daí fui comparando às outras que eu tinha,

enfim... tudo perfeito!

O terrível foi convencer os meus amigos surdos a mudarem o que havíamos criado. Foi

a parte mais chata desse processo. Alguns não aceitaram de jeito nenhum pelo fato de

que já estavam acostumados ao nosso alfabeto. Mas eu insisti, dizendo que

precisávamos aprender o certo, porque era assim em outros lugares. Se existia aquele

papel, existiam outros surdos além de nós.

O mais triste de tudo foi que nosso grupo foi se desintegrando com o tempo. Cada um

foi para seu canto. Cada um foi para uma escola de ouvintes. Aquela grupinho que

andava junto, criava sinais, vivia à margem... cada um para um lado. Só eu e Hélio

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conseguimos continuar os estudos. Separados, mas unidos em outros momentos.

Dávamos um jeito de nos encontrar.

Eu aprendi sinais mesmo com 20 anos. Foi quando minha mãe me obrigou a trabalhar.

Eu nem sabia que eu teria que trabalhar um dia. No meu emprego, encontrei alguns

surdos. Eles falavam tão rápido com as mãos que eu ficava embasbacado. O que é

isso que eles tanto falam? Logo trataram de me enturmar com eles e me ensinar Libras.

Disseram que não podia existir surdo no mundo que não soubesse a língua de sinais. O

abecedário eu sabia. Mas o que eles faziam não era o abecedário. Era mais do que

isso! Eram sinais que nomeavam coisas. Que coisa mais estranha!

O chefe então mandou eles me auxiliarem, porque adivinhe como ele se comunicava

comigo? Apontando para lá, apontando para cá, articulando os lábios... De novo não,

pensei. Mas pelo menos ele teve essa sensibilidade. Então, meus novos amigos me

ensinavam os sinais das coisas. Todos os sinais. Era muito interessante.

Depois encontrei na minha cidade uma mulher que sabia sinais. Aqui! Fiquei maluco

atrás dela. E perguntei como ela tinha aprendido e ela me respondeu que havia

aprendido com o marido dela, que era surdo. Meus olhos arregalaram. O quê? Um

surdo mais velho? Nossa!!! Então comecei a conversar com ele. Claro que tive

dificuldade, porque ele sabia sinais e eu não. Fiquei confuso demais. E pedi para ele

me ensinar. Combinamos, então, aos sábados de nos encontrarmos. E todo sábado eu

ia para casa deles para aprender sinais. E foi assim que aprendi sinais! O marco da

minha vida os 20 anos de idade”.

A história de Miguel é uma das mais belas histórias de resistência que vi. Conversar

com ele, deixá-lo narrar suas histórias escolares e de vida foi uma experiência muito

marcante para mim. Valeu a pena pegar um ônibus e encontrar Miguel no sul. Jamais

poderia deixar ver uma narrativa tão surpreendente.

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Alfabeto manual criado por “Miguel” e amigos

3.3 ATOS INSURGENTES

Sebastião, um amigo de longa data, professor surdo com 70 anos de idade, foi à casa

dos meus pais para encontrar seus amigos e ex-alunos. Quando vi aquele mito da

Libras em nosso Estado, fiquei me perguntando como poderia ter tido tanta sorte, tê-lo

QUADRO 1 – CONFIGURAÇÕES DE MÃO CRIADAS POR UM GRUPO SURDO PARA COMUNICAÇÃO SECRETA NA SALA ESPECIAL Fotos: Lucyenne Matos (2006).

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ali, na minha frente, para uma entrevista e um cafezinho da tarde (sempre um

cafezinho).

A saga pela busca de Sebastião se iniciou quando, em plena pesquisa, na coleta das

narrativas, os surdos entrevistados falaram-me dele. Fiquei intrigada com esse cara que

trazia tanta história contada pelos outros surdos. Eles o admitiam como o grande

transgressor na antiga escola oralista. Viam Sebastião como professor, quando, na

verdade, ele era um servidor público na escola. Porém, por saber Libras, uma língua

marginal, uma língua proibida e ainda por ser de fora (ele era do Rio de Janeiro, na

época, sinônimo de progresso) ele acabou se tornando um professor de Libras!

Sim, Sebastião ensinava sinais. Ele ajudava os surdos a manterem em segredo a vida

paralela que levavam. Escondia e criava estratégias de sobrevivência com os surdos na

escola de surdos.

Segundo um velho amigo surdo, Sebastião era a causa de os surdos dessa geração

serem mais dados ao aprendizado do que os da geração de hoje. De acordo com essa

fonte, “[...] o professor do Rio era bom, pois ajudava a guardar segredos. Eu sei sinais

por causa do professor do Rio. Era por causa dele que falávamos em sinais. Os surdos

ficaram inteligentes por causa desse professor. Os surdos da minha época, os mais

velhos, têm mais facilidade, pois sabem Libras fluentemente. Os mais novos não sabem

Libras fluentemente. Você viu? Falta o professor surdo!”.

Pior que eu vi mesmo. Eu acabei tirando a dúvida que pairava em minha cabeça quanto

a esta situação: por que os surdos da geração do meu pai tinham tanta leitura de

mundo, compreensão da vida, mesmo sendo submetidos a práticas de controle tão

sérias para se tornarem ouvintes? Esses surdos tinham um diferencial. De acordo com

suas narrativas, esse diferencial era ter um Sebastião.

O que representava ter um Sebastião na escola? A figura do professor surdo, a

referência, a motivação, a autoridade. Sebastião era celebridade! Sebastião transitava

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nos dois mundos com facilidade. Estava lá, no lado daquelas que detinham o poder e

ao mesmo tempo, conseguia manter relações com os surdos aos quais motivava a

construção de uma realidade alternativa, uma realidade da qual língua de sinais faz

parte!

Pois bem, nos nossos dias não temos mais “Sebastiões”. Estão extintos. Mas ainda

pensamos neles. Estamos à caça deles. Eles estão se formando nas faculdades e nos

cursos. Esperamos por eles.

Ele ensinava Libras escondido. Ajudava a esconder e a não denunciar o uso da língua

de sinais dentro da escola. Armava com os alunos os sinais indicativos de quando

chegasse alguém, para avisar. Sebastião também contava com a discrição dos alunos

para manter seu posto de trabalho. Um outro velho amigo já dizia:

“Mas à noite, quem dava aulas era o Sebastião. Ele ensinava os sinais das cidades do

Brasil e explicava os significados das palavras também. Sebastião era muito bom.

Quando ele foi embora, Vitória acabou. Tudo foi por água abaixo. Enquanto Sebastião

estava na escola, a escola enchia de gente. Quando ele foi embora, todos os surdos

saíram da escola”.

Pois é, os relatos dos amigos do Sebastião imortalizam sua figura. Ele fez parte dessa

história, ele produziu várias atitudes “subversivas” para a época e ajudou toda uma

geração a se manter por si só, a aprender Libras. Além de saber sinais, ele era de outro

lugar, trazia consigo outra história, outra vivência e por aqui reproduziu seu

conhecimento, ajudando outros surdos a se encontrarem, a conhecerem a língua de

sinais.

Eu conversei com Sebastião. E ele não tem muito para falar sobre si, sem muita

percepção da importância que teve. Sua trajetória era mais marcante nas falas dos

surdos do que nas dele mesmo. Na verdade ele ficou surpreso em saber sobre o

impacto de sua figura para aquela época.

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Nosso café da tarde foi compartilhado com outros narradores. Três daquele tempo

estavam presentes ali. Sebastião muito mais ratificou as narrativas do que compartilhou

suas próprias. Os seus velhos amigos muito mais tinham a dizer do que ele mesmo:

“Eu era um tipo ‘faz tudo’ na escola. Técnico dos aparelhos de amplificação sonora,

servente do lanche dos alunos do noturno, apoio. Meio tudo lá. Quando vi a escola pela

primeira vez, achei os surdos atrasados. Pensei: ‘Nossa, que tristeza. Como isso se dá

dessa forma?’ Inclusive, eu era orientado a falar oralmente sempre e não usar sinais.

Isso era muito fixado, exposto constantemente. Mas não tinha problema porque eu

conversava escondido. Eu falava em sinais e aconselhava os surdos a aprenderem

sinais. E claro, sempre escondido. Discreto. A prática de bater nas mãos e mandar o

surdo falar era normal. Precisa falar com a boca. Não fazer sinais. Era visto como uma

coisa ruim. E olha que eu era costumado a oralizar no Rio de Janeiro. Mas sempre vi o

valor da Libras. Incentivei os surdos a falar em Libras”.

Esse é o Sebastião. Aquele que buscou uma forma de transgressão à ordem imposta.

Não fez aquilo que lhe foi orientado, mas aquilo que sentia que era certo. Mal sabia

(agora ele sabe) que fez muita diferença a um grupo de pessoas tão significativo. Mal

conseguira visualizar que seus atos insurgentes trouxeram a uma época tamanha

revolução.

Claro, uma revolução sempre às margens da sociedade. Ninguém viu tal revolução

silenciosa. Não porque são surdos mas porque não são escutados mesmo. Eram

invisíveis!

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3.4 CAFÉ-COM-LEITE

João36 queria ser muito um aluno exemplar. Um aluno que tivesse total tranqüilidade na

sala de aula, que se misturasse aos outros sem ser notado, fazendo parte do todo sem

constrangimento. Por isso, João sentava no fundo da sala. Nem pensar em ser “CDF”!

Queria mesmo é fazer parte da “turma da bagunça”, e não qualquer um.

Ele não era o melhor aluno. Mas os colegas da turma da bagunça também não eram!

Então, qual o problema? Nenhum. Mas havia um problema, havia uma questão aí. E

João sabia disso, e muito bem.

João era surdo. Isso fazia toda a diferença. Não apenas em relação ao grupo do qual

fazia parte, mas também porque não seria um aluno que potencialmente passaria

despercebido. Ficaria fadado a ser o “mudinho”, o aluno com “necessidades especiais”.

Entretanto, João não via apenas o lado negativo. Ele aproveitou de todas as situações.

Afinal, ele era “café-com-leite”! Quer coisa melhor? Ser café-com-leite...

E o tempo ia passando e João era café-com-leite em tudo: nos jogos, nas aulas, nas

provas, na vida. Tudo era permitido para João. Mas ele, apesar disso, não se conteve

com essa situação. Logo procurou uma forma de sobreviver com dignidade. Não

bastava para ele ser café-com-leite. Ele queria ser um digno café-com-leite.

Então, misteriosamente, contam as “más línguas”, que João entregava tudo pronto.

Todas as atividades, todas as provas, tudo certinho. João tinha toda a matéria na ponta

do lápis, apesar de ser café-com-leite. O caderno completo em todas as disciplinas em

plena 5ª série!

Qual será o mistério de tamanha dedicação? Qual será o mistério de tamanha

superação? Afinal, não se pode esquecer, João era surdo e era café-com-leite.

36 Nome fictício.

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Bem integrado, tinha nas companhias dos colegas a chave para seu sucesso como a

figura do aluno que ele queria construir. O aluno participativo, perfeito, inserido e um

pouco moleque, claro. Não dava para ser “CDF”. Aí já era demais...

As “más línguas” continuaram contando: os colegas faziam tudo para ele. Tudo. Desde

copiar as matérias no caderno, até dar as respostas e fazer as provas. Tudo muito

combinado. Tudo muito mascarado, direitinho. E aí, aquela alegoria do aluno perfeito,

foi sendo desfeita nessas descobertas. E João caindo a cada dia em contradição.

Porém algo muito maior estava para ser descoberto. Percebia-se que os colegas, ao se

despedirem de João, logo lembravam a ele: “Ei, até amanhã, hein... não vai esquecer”.

“Não, claro que não. Amanhã tem mais”. E descobre-se aí que há uma relação mais

complexa do que se esperava. João não recebia todo esse aparato protetor dos amigos

sem dar nada em troca.

Aperta-se aqui, aperta-se ali e descobre-se, então, que João, em troca de suas lições

feitas (o que é parte da sua alegoria de aluno perfeito), paga seus colegas com balas e

bombons. Esse comportamento poderia até ser visto como uma atitude transgressora

engraçada, se não fosse o fato de ele os roubar no supermercado. Isso envolve muito

mais do que sua condição café-com-leite poderia suportar.

Hoje, João está lá, no auge da sua 7ª série. Aluno integrado, conhecedor de todas as

“manhas” para ser o aluno perfeito. Já não se utiliza dessas estratégias. Mas faz parte

desse meio. Sabe muito bem que as frases da pergunta na interpretação do texto,

estão embutidas nas respostas que devem ser dadas. Que quando há um modelo a ser

seguido, é só pegar a essência e seguir. Sabe que, na hora das alternativas, sempre há

uma resposta correta para marcar. Sabe que pode acertar o mínimo que já está bom.

Não precisa de notas boas. Ele é café-com-leite.

Um dia desses, ele disse que não queria estudar mais. Terminar a oitava série estava

bom. Existem surdos que trabalham em supermercado. E João pensava sobre isso.

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Hoje João não está mais na condição de café-com-leite como antes. A intérprete que o

acompanha na sala de aula explica a ele que precisa estudar. Mas João é arteiro, é

moleque e, claro, já arrumou das suas para sobreviver. Ser o aluno que deve ser.

3.5 DIALOGANDO COM MIGUEL, COM SEBASTIÃO E COM JOÃO

A resistência estampada nessas narrativas evoca em nós a necessidade do humano de

construir relações, estabelecer comunicação e constituir uma língua.

A resistência aparece estampada de diversas formas nas narrativas, como uma

possibilidade de construção de estratégias de sobrevivência no mundo ouvinte ou na

escola.

As três histórias trazem a escola como pano de fundo. O tema central que os

narradores apontam é a forma que cada um criou para sobreviver, para fazer o papel

do aluno perfeito.

De acordo com Foucault (2005), o

poder, muito mais do que na análise

comum marxista, ligada às questões

econômicas, pode ser analisado “[...] a

partir das lutas cotidianas e realizadas

na base com aqueles que tinham que

se debater nas malhas mais finas da

rede do poder” (FOUCAULT, 2005, p.

6).

Essas histórias têm em comum

justamente suas ocorrências às

Figura 7 – Arte de Betty G. Miller Fonte: http://bettigee.purple-swirl.com

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margens daquilo que chamamos de história oficial. Toda a insurgência de Sebastião,

toda a criatividade de Miguel e toda a esperteza de João são produtos de resistências

às formas ouvintistas de controle de seus corpos surdos, na esperança de normalizá-

los. A questão da narrativa aqui é a possibilidade clara de analisar estes problemas da

constituição de práticas de controle por meio da análise da trama histórica, em vez de

remeter ao sujeito constituinte. Dialogar com os três é um pretexto muito interessante

para introduzir alguns assuntos de extrema relevância.

A narrativa de Miguel nos mostrou como a necessidade de comunicação e de

informações supera qualquer tipo de falta que a língua possa produzir. Miguel

simplesmente criou um código que fosse minimamente estruturado a fim de se

comunicar. Divulgou esse código entre os amigos e, assim, constituiu uma base

comunicativa mínima nesses relacionamentos.

Isso só foi possível a partir do momento em que estava junto aos surdos. Apesar de a

relação de poder mais comum a ser pensada está ligada ao professor ouvinte e aluno

surdo, entre os alunos surdos, havia, também, pequenas lutas cotidianas que invertiam

essa ordem em alguns instantes.

Quando Bhabha (2005) comenta sobre diferentes atos de resistência dos negros contra

seus senhores, chama-nos a atenção não apenas para os atos insurgentes de embate

direto, mas para aqueles atos que, no dia-a-dia, vão se constituindo como experiências

recorrentes necessárias para a própria sobrevivência daqueles que os praticam.

O poder permeia, provoca, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz

discurso. É um erro achar que o corpo é regido apenas pelas leis da fisiologia, que ele

escapa à história. O corpo é a base onde se forma uma série de regimes que o

constroem, não escapa à história, é marcado pelos hábitos alimentares, trabalho,

festas, valores, leis morais. O corpo cria resistências (FOUCAULT, 2005).

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Cada qual dos três personagens dessas narrativas apresentou formas diferentes de

resistências às práticas relativas a seus corpos que estavam em jogo naqueles

momentos históricos.

A época de Miguel representa uma política do Estado do Espírito Santo relacionada

com as salas de recursos com toda a aparelhagem necessária para oralizar o surdo.

Essa aparelhagem fazia parte do trabalho de educação auditiva e de ensino da fala

para o aluno surdo. As salas de recursos eram atendidas por um professor especialista

em deficiência auditiva que, geralmente, havia feito o curso de oralização dado muitas

vezes pelo próprio Estado que formava esses profissionais. Essa aparelhagem, os

exames auditivos, os aparelhos de amplificação sonora individual (AASI) representavam

o biopoder exercido pelo estado nos corpos dos alunos surdos.

A grande novidade dessa época residia justamente no fato de que os surdos eram

atendidos por todo aparato tecnológico muito caro que o Estado investiu para

montagem das salas de recursos. O fato de uma sala dessas existir era porque lá

estavam as aparelhagens importantes para a educação auditiva. A própria reação de

Miguel, em frente à chegada dessa aparelhagem toda em seu município (que muitas

vezes não tinha metade dos recursos que tinham aquela sala) era de espanto,

misturado com medo, porque não havia uma compreensão do que todo aquele aparato

poderia fazer.

Após anos com essa política praticada pelo Estado, vale ressaltar um ano em especial:

o ano 2000. Nesse ano, aconteceu no Espírito Santo um primeiro curso de Libras37

organizado pela Secretaria de Educação Estadual, de 40 horas, dado durante uma

semana, do qual participaram, dos municípios do interior, professores dessas salas de

recursos para deficientes auditivos.

37 Eu mesma ministrei aula nesse curso numa época em que não existiam instrutores surdos no Estado. O máximo que fiz foi levar alguns surdos comigo para conversar no curso. Foi uma experiência muito interessante e histórica.

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Esse curso foi, na verdade, um choque muito forte de concepções que gerou um

embate num primeiro momento. As professoras que foram fazer o curso não aceitavam,

de forma alguma. A língua de sinais, levando ao curso um ranço muito forte criado pela

própria formação a qual estavam acostumadas. A Libras, quando vista de forma mais

amena, era encarada como muleta dos surdos para não falar. Lane (1992) discorre

sobre isso afirmando que as pessoas que vêm desse tipo de pensamento, já não

acreditam que devam aprender, recusam-se a isso e até desencorajam outros a fazê-lo.

Porém o curso aconteceu e, no decorrer das aulas, houve uma calma nos ânimos. Essa

calma se baseava numa fala utilizada nas negociações na hora de convencê-las a

participar do curso: elas não precisariam mudar suas práticas oralistas para aprender

Libras. A crença do suposto “método de Libras” as fazia temer por seus empregos. Para

as efetivas, temer a estabilidade de suas práticas. Todavia uma ou outra professora foi

realmente tocada pelas falas.

Não existia ainda o instrutor surdo no Estado, pois era uma figura que estava por vir, no

ano seguinte.38 Não obstante novas portas, novos caminhos iam se abrindo nesse

processo de “desbravamento da mata fechada”, que era o gueto das “reabilitadoras de

surdos”.

Miguel estudou mais ou menos nessa época. Na verdade, início dos anos 90.

Caminhando a passos lentos para esse ano de 2000. E Miguel, segundo detalhes de

seu próprio relato, viveu uma época de oralização na sala de recursos. Ainda hoje, no

interior do Espírito Santo, são essas práticas que encontramos: de não cumprimento da

lei, não contratação de intérpretes, não implantação de políticas públicas voltadas para

a educação bilíngüe para o surdo.

Miguel viveu em seu corpo os dispositivos pedagógicos provenientes daquilo que Lane

(1992) chama de narrativa audista. Esses dipositivos, que estavam representados

38 Em 2001, aconteceu uma formação em Brasília ofertada pelo MEC para instrutores surdos. Dois surdos do Espírito Santo participaram, mas um apenas foi aprovado e se tornou instrutor de Libras.

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claramente na descrição da chegada de toda “parafernália” audista, criou, no início,

medo em Miguel, mas, depois, na convivência com todas as técnicas e com seus

amigos surdos, todo o movimento silencioso estava ali iniciado.

De acordo com Lane (1992), o ponto de vista do colonizado, não é apenas um fato

etnográfico, mas uma resistência adversária e contínua às práticas colonizadoras. Aqui,

e em outros lugares, conforme esse autor, os líderes surdos têm resistido ao modelo

alingüístico e acultural, bem como aos métodos ouvintes para estudar os surdos.

O ponto de vista de Miguel traz algumas questões que embaraçam qualquer tentativa

de negação da existência de uma necessidade do encontro surdo-surdo. O que

possibilitou toda a criatividade de Miguel e de seu amigo na criação de códigos

sistematizados foi o fato de os surdos estarem juntos, construindo suas práticas de

resistência com atitudes como essa. Ou seja, leva-se em conta a epifania do ser surdo,

afinal, surgem aí os movimentos de resistência, como malhas invisíveis que os ligam

numa rede complexa composta principalmente por suas narrativas. A criação de uma

língua, a discrição com que cada qual lidava com os seus segredos por meio dos

silêncios de suas ações os uniam e os constituíam como grupo. Ao achar aquele papel

na rua com o alfabeto “correto”, tiveram a certeza de que estavam conectados a algo

maior ainda, a surdos de outros lugares. “Eu já usava aqueles sinais”. Tanto que não

demoraram em substituir seus códigos, naquela tarde mesmo, após a descoberta.

A separação dos alunos entre si faz parte de uma das perspectivas do que é chamado

de movimento de inclusão. Todo esse movimento foi dificultoso, quando eles tiveram

que ir para sala dos ouvintes e lá, além de estarem com outros estranhos, foram

separados, apesar de estarem cursando a mesma série. A teoria de Miguel é que isso

ocorreu para desmantelar o movimento.

Wrigley (1996) afirma que, embora as identidades surdas tenham sido historicamente

negadas, elas têm sido facilitadas com o armazenamento físico dos surdos (WRIGLEY,

1996, p. 54). Numa perspectiva moderna, segundo o autor, a exclusão e o isolamento

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são conseguidos pela dispersão dos surdos. Na prática, o movimento de inclusão tem

contribuído para essa dispersão, essa exclusão dos surdos, quando os priva de

produzir cultura, língua, formas de ser e estar com suas diferenças.

A inclusão por meio da dispersão carrega consigo o discurso mascarado de aceitação

da língua de sinais. Mas aceitar a língua não basta como produto final da revisão de

práticas, numa perspectiva bilíngüe, muito menos na possibilidade de constituição de

uma cultura.

Os atos insurgentes de Sebastião foram levados muito mais adiante pelas suas atitudes

diárias e discretas do que pelos embates polêmicos. Até porque Sebastião era servidor

da escola e sua figura se tornou fundamental no processo de identificação surdo-surdo.

Esses interstícios na escola, esses “entrelugares” de aprendizagem transformavam

Sebastião naquele “cara que ensinava aos surdos”.

O foco da história de Sebastião foi justamente a importância que os da sua geração

davam à presença do surdo na escola, a ponto de se considerarem os mais inteligentes

do que uma geração inteira. A importância da presença do educador surdo na escola, já

na época de Sebastião, mostra que devemos investir hoje em profissionais surdos,

principalmente professores surdos para que haja a identificação do aluno com seu par.

A época do Sebastião (anos 70), foi o período áureo do oralismo na escola de surdos.

Não obstante suas práticas, que eram de controle dos sinais, dos corpos surdos,

acabava gerando os artifícios de sobrevivência, como cultivar uma vida paralela,

marginal.

Por fim, para dialogar com João, eu puxo o assunto da inclusão como política nacional

firmada pelo próprio MEC. Em vários momentos deste trabalho, venho apontando esse

caminho como a forma mais rápida de desmantelamento do movimento surdo,

concordando com Wrigley (1996) sobre o que ele denomina de “Produção e

administração moderna das identidades dos surdos” e pontua como características

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básicas: a separação de seus companheiros, o isolamento (uns dos outros), a negação

por dispersão.

A vivência de João nos fala de política atual. Afinadas com a política maior, as políticas

educacionais dos municípios estão interpretando que a inclusão do surdo se faz na sala

de aula com os ouvintes. Sua condição bilíngüe torna importante o revisitar o conceito

de inclusão para esse aluno.

A exclusão causada pelo movimento que se denomina inclusivo é uma forma violenta

de controle e aprisionamento dos corpos surdos, porque é mascarado com a

benevolência que se constitui na crença de que “algo de bom” tem sido feito já que,

supostamente, está sendo dada igualdade de oportunidades.

Inclusive, nessas políticas, não são levados em conta as constantes negociações que

os surdos vivem (agora sozinhos entre estranhos) para se enquadrarem àquilo que se

denomina “o bom aluno”. As narrativas surdas não são levadas em conta como

possibilidades de ações inclusivas. Para serem, de alguma forma, inclusivas, as

narrativas da educação devem tomar as narrativas surdas para si.

O caso de João mostra as estratégias traçadas em busca de uma auto-organização

para se enquadrar e, mesmo assim, não conseguia sair de sua condição café-com-leite.

A constante negociação com os colegas e a ida á escola oralista em busca das

atividades feitas39 são formas de sobreviver à escola regular.

A língua de sinais é hospedada nessa política, dentro do discurso do respeito à

“diversidade na escola”. Porém a aceitação da língua de sinais não gerou

questionamentos de ordem prática do tipo: como posso trabalhar com essas duas

línguas na sala de aula? Como a língua de sinais pode ser a língua de instrução do

39 Hoje o trabalho das escolas orais e auditivas no Estado é de dar apoio aos surdos nas atividades escolares enviadas pela escola regular. Ainda há alguns atendimentos como de estimulação auditiva, oralidade etc. Porém, o forte tem sido o apoio escolar. Na verdade, no caso de João, a escola oralista era “o grande fazedor de dever de casa”.

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aluno surdo? Nem se cogita essa possibilidade pelo simples fato de ainda não ser vista

como língua, pois ainda reside num patamar inferior ao Português.

Essa língua também é utilizada como aparato de controle. Por meio do movimento

surdo de resistência às práticas de ouvintização, ao longo dos anos, percebe-se que o

fato de suprimir a língua proibindo seu uso torna o movimento mais forte e contundente,

ou seja, construtores de saberes peculiares. A forma mais interessante de tentar

familiarizar o estranho é alimentar o discurso da diversidade, do “aceitar as diferenças”,

porém constituindo aquilo que Bhabha (2005, p. 130) chama de mímica que “[...] é o

desejo do outro reformado, reconhecível.” Essa estratégia do discurso colonial é

endossada pelas políticas educacionais vigentes, em que o hospedar as culturas e as

línguas se torna uma forma de controle desses “estranhos”.

Não obstante, a mímica representa o inapropriado, porém uma diferença ou resistência

e obstinação que ordenam a função estratégica dominante do poder colonial,

intensificam o controle e colocam uma ameaça imanente tanto para os saberes

“normalizadores” quanto para os poderes disciplinares (BHABHA, 2005).

A mímica é uma estratégia do discurso colonial que tem um efeito perturbador sobre a

autoridade desse discurso. Isso porque, na “normalização” do Estado ou do sujeito

colonial, o sonho da civilidade pós-iluminista aliena a sua própria linguagem de

liberdade e produz um outro conhecimento de suas normas. É uma estratégia

discursiva ambivalente na construção daquele aluno surdo que pode ser ouvinte, que

precisa se socializar com o ouvinte, afinal o “simulacro de ouvinte” estará criado: o

surdo que sabe Libras, porém oralizado.

Para encerrar o diálogo com os três narradores, quero pontuar que há outras

possibilidades de inclusão para surdos. Existem novos caminhos de se pensar a

educação desses alunos e até construir os dispositivos pedagógicos, porém faz-se

necessário conhecer o que os surdos têm a dizer sobre determinados dispositivos

pedagógicos.

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Quarto capítulo:Quarto capítulo:Quarto capítulo:Quarto capítulo:

As narrativas surdas como narrativas da

educação. O que os surdos têm a dizer

sobre isso?

“A arte de narrar é uma relação alma, olho e mãos; assim transforma o narrador a sua matéria a vida humana”.

Paul Valery

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4.1 AS NARRATIVAS SURDAS

Pegando o gancho do capítulo anterior, posso afirmar que as narrativas surdas podem

construir novas formas de pensar a inclusão do aluno surdo, que não estão impressas

na política atual. Romper com a ordem do discurso que a educação especial propõe a

esses alunos, colocando-os como deficientes auditivos, constitui-se um desafio às

questões atuais ao se pensar as narrativas surdas neste momento histórico dos

movimentos, pois, como já foi dito, apresentam, em seu bojo, as questões políticas e os

desvelamentos de todas as práticas que, direcionadas a esse povo, se denominavam

educativas.

Ainda mais, essas narrativas, além de romperem com a ordem do discurso impressa,

constituem uma outra ordem, uma outra singularidade, pontuada por críticas,

denúncias, queixas, propostas. Muito tem o surdo a dizer e, por isso, muito temos nós a

saber.

Como já afirmei, a questão da tradução pesa muito neste momento. Bhabha (2005, p.

62) afirma que “[...] o processo de tradução é a abertura de um outro lugar cultural e

político de enfrentamento no cerne da representação colonial”, ou seja, ao traduzir as

narrativas dos surdos, também traduzo uma cultura, uma história, uma forma de

visualizar as questões surdas em outro espaço. No caso desta pesquisa, nos territórios

ocupados pelas discussões pós-colonias, pós-estruturalistas e dos estudos culturais.

Bhabha (2005) nos fala de um “Terceiro Espaço”40 no processo de produção de

sentidos que permeia a enunciação da diferença e a tradução dessa enunciação. Para

o autor, esse terceiro espaço representa tanto as condições gerais da linguagem

quanto a forma específica de como foi dado o enunciado como estratégia performativa,

dos quais o próprio enunciado não teria consciência. “[...] Essa relação inconsciente,

introduz uma ambivalência no ato da interpretação” (BHABHA, 2005, p. 66).

40 Para Bhabha (2005), o pacto da interpretação na enunciação não acontece apenas entre o eu e o você. Mas, para ocorrer uma produção de significados, é necessário que o atravessamento por esses dois lugares seja feito pelo que ele denomina o “Terceiro Espaço”.

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A enunciação da diferença cultural pode trazer um problema com relação à fixidez de

processos claramente históricos e com significados constituídos por meio da tradução.

Além da criação de uma divisão binária do passado e do presente, há também a

possibilidade de que, ao significar o presente, algo precise ser repetido, recolocado e

traduzido em nome da tradição, “[...] sob a aparência de um passado que não é

necessariamente um signo fiel da memória histórica, mas uma estratégia de

representação da autoridade em termos do artifício do arcaico” (BHABHA, 2005, p. 65).

O motivo pelo qual um sistema de significados culturais não pode ser auto-suficiente:

[...] é que no ato da enunciação cultural- o lugar do enunciado- é atravessado pela différrance da escrita. Isto tem menos a ver com o que os antropólogos poderiam descrever como atitudes variáveis diante de sistemas simbólicos no interior de diferentes culturas do que com a estrutura mesma da representação simbólica – não o conteúdo do símbolo ou a sua função social, mas a estrutura da simbolização (BHABHA, 2005, p. 65).

É essa diferença no processo da linguagem que é fundamental na produção de

sentidos sobre as marcas e as traduções culturais do grupo de surdos e ainda

garantindo que os sentidos nunca serão transparentes e miméticos, ou seja, as

narrativas surdas pontuam os símbolos no interior dessa cultura muito mais do que

residem na preocupação de pontuar representações simbólicas.

A intervenção do “Terceiro Espaço”, nesse processo de enunciação/tradução, torna a

estrutura da constituição de signos e símbolos culturais ambivalente. É significativo que

as capacidades produtivas desse “Terceiro Espaço” tenham proveniência colonial ou

pós-colonial.

Tal intervenção vai desafiar a noção de identidade histórica da cultura, como força

homogeneizante, unificadora, autenticada em nome de um passado originário de um

povo mantido vivo numa espécie de tradição nacional (BHABHA, 2005).

É apenas quando compreendemos que todas as afirmações e sistemas culturais são

construídos nesse espaço contraditório e ambivalente da enunciação que começamos a

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compreender por que as reivindicações hierárquicas de originalidade ou “pureza”

inerentes às culturas são insustentáveis, mesmo antes de recorrermos a instâncias

históricas empíricas que demonstram seu hibridismo.

É o “Terceiro Espaço”, que constitui a ordem do discurso da enunciação, garantindo

que o “[...] significado e os símbolos da cultura não tenham unidade ou fixidez

primordial e que até os mesmos signos possam ser apropriados, traduzidos, re-

historizados e lidos de outro modo” (BHABHA, 2005, p. 68), ou seja, as resistências

surdas e o modo de vida visual sejam vistos de outra forma, apropriados com outro

olhar e traduzidos como marcas e traduções culturais dos surdos.

Este “Terceiro Espaço”, que é o espaço da linguagem, das interpretações (espaço

irrepresentável), traz a possibilidade das enunciações dessas marcas culturais como

uma tradução e uma forma de olhar as questões surdas. Afinal, “[...] seus elementos

estão presos no tempo descontínuo da tradução e da negociação, no sentido que

procurei imprimir a essas palavras” (BHABHA, 2005, p. 68).

Para esse fim, deveríamos lembrar que é o ‘inter’- o fio cortante da tradução e da negociação, o entre-lugar- que carrega o fardo do significado da cultura. Ele permite que se comecem a vislumbrar as histórias nacionais, antinacionalistas, do ‘povo”. E, ao explorar esse Terceiro Espaço, temos a possibilidade de evitar a política da polaridade e emergir como os outros de nós mesmos (BHABHA, 2005, p. 68).

Assim, todas as traduções, as negociações lingüísticas pontuais das narrativas, não

estão apenas atravessadas pela relação: “eu e os narradores”; mas há toda uma

questão teórica, toda uma questão do olhar, da performance das narrativas enunciadas,

de como eu traduzi essas performances etc. Principalmente pelo fato de que a língua

de sinais é visual-espacial, por isso, numa língua com uma gramática não-linear, as

negociações são mais contundentes e necessárias. Não importa se há perdas e ganhos

culturais e lingüísticos. Sempre há.

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4.2 TRAJETÓRIA DOS MOVIMENTOS SURDOS CAPIXABAS: ARTEFATOS, NARRATIVAS, TRADUÇÕES E MARCAS DE UMA CULTURA Uma segunda-feira chuvosa, em frente à Prefeitura de Vitória, inicia-se um protesto

surdo em favor de melhores condições educacionais e sociais a fim de garantir sua

inserção na sociedade como um todo.

O dia 26 de setembro de 2005, considerado

Dia Nacional do Surdo, foi a data pretexto

para que a necessidade de expor os

movimentos surdos, geralmente velados,

viesse à tona. Aconteceu em Vitória, capital

do Espírito Santo. Tal protesto, não tão

silencioso assim, reivindicava educação,

saúde, acessibilidade, intérpretes, ou seja,

cumprimento das leis que já existem.

Esse protesto foi marcado pelas lutas que, ao

longo dos anos, vêm sendo travadas pelo

grupo de surdos capixabas. Foi marcado pela

própria união de grupos divergentes dentro

da própria comunidade surda. Grupos estes

que residem nas fronteiras das divergências

de idéias, com seus conflitos na busca pelo poder da comunidade. Nascem, nesses

conflitos, líderes surdos ora um, ora outro, tentando comandar uma associação, ou um

grupo de surdos específicos.

Nessa semana de protestos, aconteceu uma sucessão de eventos: no início da

semana, uma passeata pela cidade, da Prefeitura até o Palácio do Governo. Fomos

recebidos pelo prefeito e por um assessor do governador.

Figura 8 – Arte de Betty G. Miller Fonte: http://bettigee.purple-swirl.com

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Depois ocorreu uma sessão na Assembléia Legislativa, com uma palestra de uma surda

capixaba que mora nos Estados Unidos há anos, trazendo várias experiências sobre

como acontece lá e como podemos melhorar aqui.

Ainda contamos com uma palestra dada por um surdo militante do Rio de Janeiro, ex-

presidente da FENEIS,41 trazendo novidades aos surdos capixabas.

Sem contar com a mídia noticiando todos os movimentos: as rádios, as TVs,

entrevistas, imagens. Todas estavam noticiando a semana do surdo, mostrando os

surdos existentes e suas questões. “Não somos mais invisíveis”, diziam. “A língua de

sinais está aqui” e com certeza, “Não concordamos com as políticas educacionais que

têm sido implementadas. Queremos ser vistos!”

Foi construído, como documento escrito que resume os anseios, as leis e os

sentimentos do grupo de surdos presentes nesse movimento, o Manifesto da

Comunidade Surda Capixaba, que traz em seu o bojo o reconhecimento da diferença

surda. Foram tomados como base outros documentos já construídos como “A

Educação que nós surdos queremos”,42 a Lei n° 10.436, de 24 de abril de 2002, 43 e a lei

da acessibilidade. Cópias do resumo desse manifesto foram distribuídas pela cidade na

passeata, como panfletos. Cópia do manifesto completo foi entregue aos governantes,

como o prefeito e o governador.

Para Bhabha (2005), é sinal de maturidade política a distinção das diferentes formas de

discursos em sua escrita. Não se deve ter uma diferenciação entre o que é denominado

41 Federação Nacional de Educação e Integração do Surdo 42 Documento elaborado pela comunidade surda a partir do pré-congresso ao V Congresso Latino- Americano de Educação Bilíngüe Para Surdos, realizado em Porto Alegre, no salão de atos da reitoria da UFRGS, nos dias 20 a 24 de abril de 1999. 43 O Decreto n° 5.626, de 22 de dezembro de 2005, ain da não havia sido aprovado.

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“ativista” ou “teórico”.44 Isso não significa, por exemplo, que esse manifesto, utilizado

como panfleto, seja menos teórico do que uma teoria dos Estudos Surdos ou teorias

sobre a formação das comunidades surdas. Segundo Bhabha (2005, p. 46), a diferença

está em suas qualidades operacionais:

O panfleto tem um propósito expositório e organizacional específico, temporalmente preso ao acontecimento; a teoria da ideologia dá sua contribuição para as idéias e princípios políticos estabelecidos em que se baseia o direito à greve. [...] Eles existem lado a lado- um tornando o outro possível- como a frente e o verso de uma folha de papel [...]

Ainda me apropriando da teoria pós-colonial para dialogar com esse manifesto, percebo

que, para além de uma denúncia ao discurso colonial das práticas e representações

ouvintistas, esse manifesto aponta a construção de uma polaridade surdo-ouvinte como

se fosse um discurso político de direita ou esquerda, apesar de desconstruir outros

estereótipos e informar sobre outras questões surdas.

Eis o manifesto45:

Manifesto da Comunidade Surda (26/09/2005)

Nos manifestamos hoje: • Pelo direito de sermos surdos. • Pela nossa união e organização como indivíduos participantes de uma comunidade e sujeitos de uma história construída por nós mesmos. • Contra a história oficial de fracassos e incertezas que nos é imposta como única forma de sobrevivência nesta sociedade injusta com tudo que possa vir a ser diferente. • Por sermos Surdos e não surdos-mudos, mudinhos ou outros apelidos pejorativos que são colocados por desconhecerem o que realmente somos: Surdos!

44 Bhabha, 2005, p. 46 45 Uma base para a escrita desse manifesto foi retirada do manifesto antropofágico, do manifesto comunista e do manifesto dos pioneiros. Todos esses manifestos foram lidos e debatidos para pensarmos o que seria um manifesto da comunidade surda capixaba.

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• Os deficientes auditivos tem resquícios de audição que podem ser corrigidos por aparelhos. Já os surdos são visuais e se comunicam através da língua de sinais. • Por uma luta da nossa comunidade que atinja a todos tendo como princípio a igualdade de todos os surdos sem distinção e categorização nenhuma espécie. • Que nosso movimento surja de uma luta igualitária que atenda aos anseios de nossa própria comunidade. • Pela Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) como nossa língua oficial, que nos insere realmente no mundo da linguagem e nos caracteriza como humanos em nossas relações. • Por uma educação que realmente nos inclua na sociedade de forma justa, respeitando o que somos. A sociedade quer que aceitemos uma política que denominam inclusiva, (sem realmente o ser) porém predatória que zela pela manutenção do fracasso escolar a que somos submetidos e nos transforma em simulacros de ouvintes. • Por intérpretes qualificados uma vez que somos usuários de uma língua que não é compartilhada por todos. • Queremos que os mesmos conteúdos que são passados aos ouvintes sejam passados a nós ao mesmo tempo pela via visual através do intérprete. (lei da acessibilidade) • Principalmente que não decidam por nós, sem nós. Porque falar de surdos sem que estejamos presentes? • Por uma escola de surdos que realmente atenda nossas necessidades lingüísticas e educacionais. Queremos acesso a uma escola de qualidade para entrarmos numa faculdade com qualidade. • Historicamente fomos privados da nossa língua num movimento oralista mundial provocados pelos ouvintes que se incomodavam com o nosso modo de viver. Não aceitamos mais que ouvintes opinem aleatoriamente contra a língua de sinais uma vez que temos uma lei que reconhece sua legitimidade. • A concepção clínica sobre a surdez nos coloca numa situação de desvantagem com relação aos ouvintes, nos classificando por graus de decibéis e assim criando rótulos e prescrições médicas travestidas de práticas pedagógicas. Não aceitaremos mais ser categorizados por graus de decibéis muito menos que as práticas pedagógicas sejam construídas nesta direção. Somos pessoas que com diferenças e não deficiências. • Pelo direito de toda criança surda aprender a língua de sinais. • Pelo direito de levar a informação a todos os envolvidos com os surdos, incluindo as famílias. Por um sistema de saúde que possa dar as devidas orientações aos pais pois estes profissionais são os que mais proporcionam percepções erradas aos familiares sobre quem é o surdo.

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• Que a lei seja cumprida pois ela já prevê que os cursos de licenciatura em geral e os ligados à saúde (como o de fonoaudiologia) possam ter em sua grade curricular a LIBRAS. • Que haja uma profissionalização adequada ao surdo uma vez que este deverá ser inserido no mercado de trabalho pois os subempregos são reservados aos surdos pelo desconhecimento de suas capacidades e potencialidades. • Por uma política pública de real reconhecimento de nossa comunidade. • E por fim, contra a opressão ouvinte que quer nos tornar seus subalternos e mandar em nós sem que realmente conheça as nossas necessidades, nos usando e nos subjugando aos seus interesses. À esses, nosso repúdio!

Uma semana antes dos movimentos se iniciarem, cada tópico do manifesto foi discutido

com a comunidade numa grande reunião em que escrevemos e trocamos todas as

informações pertinentes às questões. Os tópicos foram levados ao grupo de 30 surdos

líderes, foram debatidos e depois redigidos.

Faziam parte daquele movimento pelo menos três gerações de surdos que estudaram

em três momentos históricos diferentes da educação de surdos: aqueles que fizeram

parte da escola no momento oralista (final dos anos 70), surdos que fizeram parte da

escola em outro momento oralista46 (anos 80 e 90) e surdos que estão na escola hoje

em fase de transição (dias atuais) e que também estudam na escola dos ouvintes.

Cada grupo de surdos, em cada momento, pedia coisas semelhantes, porém

apresentavam visões diferentes das formas como sobreviveram ou sobrevivem às

práticas ditas pedagógicas, ofensivas à sua alteridade. Tivemos uma semana agitada

com reuniões, palestras e outros movimentos. Poderia, então, afirmar que foi o ponto

alto dos movimentos de resistência? Seria uma resistência? O que é resistência?

A resistência ali vivida e assistida foi um movimento de desconstrução do discurso

colonial que impera hoje nas representações sociais e, conseqüentemente, nas práticas

46 Costumo denominar momento “pós Álpia Couto” (anos 80), pois a fundadora da escola de surdos havia ido embora para o Rio de Janeiro nessa época, deixando a cargo de suas alunas a educação dos surdos.

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pedagógicas vigentes, ou seja, o próprio discurso do ouvintismo tradicional

representado na prática pelo oralismo.

A pós-colonialidade, de acordo com Bhabha (2005, p. 26), é fundamental ao se referir

às relações neocoloniais relacionadas com a “[...] nova ordem mundial e a divisão do

trabalho multinacional. Tal perspectiva permite a autenticação de histórias de

exploração e o desenvolvimento de estratégias de resistência”.

Assim, a genealogia política e teórica da modernidade não reside apenas mas origens da idéia de civilidade, mas nesta história do momento colonial. Ela pode ser encontrada na resistência das populações colonizadas [...]. As transmutações e traduções de tradições nativas em sua oposição à autoridade colonial demonstram como o desejo do significante e a indeterminação da intertextualidade podem estar profundamente empenhados na luta pós-colonial (BHABHA, 2005, p. 61)

Pensando nessa perspectiva de Bhabha, o recorte da trama histórica privilegia neste

trabalho, as narrativas e os movimentos surdos como fonte de análises dos poderes e

saberes que permitem justamente a autenticação das histórias de exploração ouvintista

e a construção por sua vez das estratégias de resistência surda. Tal condição pós-

colonial “[...] põe em campo o hibridismo cultural de suas condições fronteiriças para

‘traduzir’, e portanto, reinscrever o imaginário social tanto da metrópole como da

modernidade” (BHABHA, 2005, p. 26).

Tomando como ponto de partida a proposta de Foucault de analisar o sujeito em sua

trama histórica, proponho agora dialogar com trechos do manifesto como fio condutor

das narrativas surdas, como pretexto para o desvelamento dessa trama histórica em

que este movimento estava situado. Os trechos serão agrupados por assunto e não

dispostos linearmente. Por fim, pode-se perceber que o próprio manifesto traz algumas

questões hoje mesmo já rompidas e outras ainda emergentes ao grupo de surdos

capixabas.

4.2.1 Nos manifestamos...

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• Pelo direito de sermos surdos. • Pela nossa união e organização como indivíduos participantes de uma comunidade e sujeitos de uma história construída por nós mesmos. • Contra a história oficial de fracassos e incertezas que nos é imposta como única forma de sobrevivência nesta sociedade injusta com tudo que possa vir a ser diferente. • Por sermos Surdos e não surdos-mudos, mudinhos ou outros apelidos pejorativos que são colocados por desconhecerem o que realmente somos: Surdos! • Historicamente fomos privados da nossa língua num movimento oralista mundial provocados pelos ouvintes que se incomodavam com o nosso modo de viver. Não aceitamos mais que ouvintes opinem aleatoriamente contra a língua de sinais uma vez que temos uma lei que reconhece sua legitimidade.

Esse primeiro bloco do manifesto desconstrói algumas visões hegemônicas que criam o

estereótipo sobre surdo e a surdez. O estereótipo, como estratégia do discurso colonial,

é um modo de representação complexo, ambivalente e contraditório. “Sua função

estratégica predominante é a criação de um espaço para ‘povos sujeitos’ através da

produção de conhecimento em termos dos quais se exerce vigilância e se estimula uma

forma complexa de prazer/desprazer” (BHABHA, 2005, p. 111).

Ele busca legitimação para suas estratégias através da produção de conhecimentos do colonizador e do colonizado que são estereotipados mas avaliados antiteticamente. O objetivo do discurso colonial é apresentar o colonizado como uma população de tipos degenerados com base na origem racial de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução (BHABHA, 2005, p. 111).

A produção de conhecimento clínico sobre os surdos tem sido a legitimação para o

estabelecimento do estereótipo do surdo-mudo, mudinho e “antitetizar” o ouvinte

colonizador do surdo colonizado. Esse estereótipo estabelece os sistemas de

administração e instrução que os ouvintes constroem para os “deficientes auditivos,

surdos-mudos etc”.

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Inclusive, quando lemos, nesse manifesto, sobre a necessidade do “ser surdo”,47 nos

remetemos a práticas clínicas travestidas de pedagógicas que as narrativas vêm

trazendo no percurso de todo o movimento. Apesar de nos falar de uma busca por uma

identidade única, homogênea entre os surdos, faz parte de uma revolta em relação às

práticas clínicas críticas.

O que endossa essa idéia sobre uma identidade única são as propostas utópicas de

consenso entre as lideranças surdas que vivem nas zonas de conflito. Não é possível

ocorrer esse consenso porque as divergências de idéias e conceitos das lideranças são

relacionadas com visões diferenciadas sobre a própria comunidade.

Algumas representações estereotipadas

hegemônicas constituídas na sociedade,

como as relacionadas com as expressões

mudo, mudinho, surdo-mudo, são

construídas a partir do momento em que

apenas encontro surdos que falem,

“simulacros de ouvintes”. Segundo

Lunardi (2002), as práticas oralistas não

se limitaram apenas à educação, mas seu

discurso ouvintista “entranhou” nas

malhas da sociedade, criando

estereótipos de surdos.

Mesmo antes do congresso de Milão, em

1880, e depois dele, quando se instituiu a

prática do oralismo como prática oficial

para ensinar surdos a falar, a idéia de que

a mudez poderia ser vencida foi bem

47 Esse trecho não estava contemplado na primeira prévia do documento. Foi adicionado após a reunião com as lideranças surdas.

Figura 9: Arte de Betty G. Miller Fonte: http://bettigee.purple-swirl.com

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difundida. Fato que foi associado a avanços tecnológicos e à domesticação do corpo

surdo, considerado “indomável” por causa da “famigerada” língua de sinais nomeada

como gestos ou mímica.48

“Meus pais me obrigavam a falar, além da escola. As professoras contavam para meus

pais e eles brigavam comigo quando eu fazia sinais. Lá tinha muitas atividades de

soprar folha, soprar vela e fazer vocalização como paaaaapa, peeeepe etc.

Precisávamos falar!” (C., 33 anos)

“Eu estudei na escola oralista em 1975, mais ou menos, em Vila Velha. Com surdos,

sempre, porém tendo que aprender a falar: ba / ba / ba / ba. Não havia comunicação

com surdos. Faltava a língua de sinais. Era complicado. Como era proibido, usávamos

pouco. Só escondido. Como éramos crianças, não tínhamos a criatividade dos adultos.

Criança é diferente do adulto. Depois fui para uma escola de ouvintes e continuava com

o tratamento para falar. Isso eu tinha mais ou menos sete anos de idade. Como eu não

entendia nada do que era dito pelo professor, porque não estava ouvindo, eu preferia

pegar o caderno dos meus colegas para copiar o conteúdo. Era a forma mais fácil. E

até hoje é assim.” (F., 34 anos)

“Os sinais na escola eram proibidos. Batiam na mão. Era difícil. Nós os tínhamos como

segredo. Só falávamos em segredo e fazíamos sinais escondido. Ficávamos vigiando e

as professoras não viam. Não podiam ver.” (S., 58 anos)

Corroborando os trechos já citados do documento, quando os surdos se manifestam

“Contra a história oficial de fracassos e incertezas que nos é imposta como única forma

48 O status de língua foi conferido à língua de sinais a partir de estudos realizados por William Stokoe. Segundo Oliver Sacks (1999, p. 88 e 89), “Nenhum lingüista, nenhum cientista deu atenção à Língua de sinais até fins da década de 1950, quando Willian Stokoe, jovem medievalista e lingüista, encontrou seu caminho para o Gallaudet College. Stokoe pensava ter ido ensinar Chaucer aos surdos, mas logo se deu conta de que havia caído, por sorte ou por acaso, num dos ambientes mais extraordinários do mundo. A Língua de sinais, naquela época, não era considerada uma língua propriamente dita, mas uma espécie de pantomima ou código gestual, ou talvez uma espécie de inglês estropiado expresso com as mãos. A genealidade de Stokoe foi perceber, e provar, que não era nada daquilo; que ela satisfazia todos os critérios lingüísticos de uma língua genuína, no léxico, na sintaxe, na capacidade de gerar um número infinito de proposições”.

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de sobrevivência nesta sociedade injusta com tudo que possa vir a ser diferente” e

afirmam serem sujeitos de sua própria história (pela nossa união e organização como

indivíduos participantes de uma comunidade e sujeitos de uma história construída por

nós mesmos), levantam a questão das práticas opressivas e recheadas de tecnologias

assimiladoras às quais são submetidos, nomeadas de práticas pedagógicas por

professores oralistas capacitados para o treino auditivo e oral. Isso tudo para erradicar

a língua de sinais e colocar, como única possibilidade de língua, a língua portuguesa e

a oralidade como única forma de sobrevivência.

Quando os surdos denunciam a história oficial, estão se remetendo à história que é

contada pelos ouvintes sobre eles, inclusive como única possibilidade de educação.

Parafraseando Wrigley (1996), o grande conto da “carochinha” contada pelos que

ouvem sobre os surdos pode ser resumido assim: era uma vez um ouvinte, o grande

salvador dos surdos, que os encontram jogados no mundo do “silêncio” (no lado mais

sombrio da palavra) e os tira da alienação desse mundo, humanizando-os com a prática

do ensino da fala e da leitura de lábios. Inicialmente em instituições separadas e depois

integrados aos “normais” (ouvintes), pois começaram a se agrupar demais e não

poderiam formar guetos. Então, segundo a análise do autor (WRIGLEY, 1996), os

grandes debates dualistas entre manualismo ou gestualismo só alimentaram a busca

pelo mesmo objetivo: criar e produzir surdos mais parecidos possíveis com os que

ouvem, constituindo, assim, desde a época de lÉppe,49duas categoria mais amplas de

produção e administração das identidades dos surdos: a tradicional e a moderna.

Por fim, ao se manifestarem em relação à sua formação comunitária, afirmam,

naturalmente, serem sujeitos de sua própria história, pois, justamente pelo fato de se

organizarem pela identificação da língua como marca cultural, de acordo com Veiga

49 Abbé de l’Epée foi o padre francês que criou um método de ensinar aos surdos por meio de gestos e do alfabeto manual. O mito que alimenta seu chamado para tal “missão” é resumidamente o seguinte: Abbé l’Epée estava caminhando quando resolveu parar para descansar à noite, mas ele não conseguia achar um lugar. Foi quando avistou uma casa com uma luz. Ele avistou a porta entreaberta e, ao entrar, percebeu duas jovens sentadas próximas à lareira cozendo. Ele falou com elas mas não respondiam. Ele se aproximou, falou de novo e elas não respondiam. Ele ficou perplexo e, quando a mãe delas entrou na sala, ele ficou sabendo que as duas eram surdas. Ele, então, compreendeu.

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Neto e Lopes (2006), houve a continuidade da língua, mesmo com toda a opressão em

prol de sua erradicação.

“É muito importante os surdos ficarem juntos. Eu só tenho vontade de conversar em

Libras. E mesmo sabendo falar pouco, fico mais a vontade com o meu grupo.” (E., 25

anos).

“Penso que a escola de surdos é muito melhor, porque os surdos ficam juntos. Mas a

escola de surdos proíbe a língua de sinais. Como pode? Na escola dos ouvintes pode-

se usar sinais. Mas como? Os surdos estão sozinhos! Melhor é que o surdo estude com

o surdo.” (S., 32 anos)

4.2.2 Continuamos nos manifestando: nossos moviment os, nossos sentimentos

• Os deficientes auditivos têm resquícios de audição que podem ser corrigidos por aparelhos. Já os surdos são visuais e se comunicam através da língua de sinais. • Por uma luta da nossa comunidade que atinja a todos tendo como princípio a igualdade de todos os surdos sem distinção e categorização nenhuma espécie. • Que nosso movimento surja de uma luta igualitária que atenda aos anseios de nossa própria comunidade. • Pela Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) como nossa língua oficial, que nos insere realmente no mundo da linguagem e nos caracteriza como humanos em nossas relações. • A concepção clínica sobre a surdez nos coloca numa situação de desvantagem com relação aos ouvintes, nos classificando por graus de decibéis e assim criando rótulos e prescrições médicas travestidas de práticas pedagógicas. Não aceitaremos mais ser categorizados por graus de decibéis muito menos que as práticas pedagógicas sejam construídas nesta direção. Somos pessoas que com diferenças e não deficiências.

Nesse trecho, percebe-se a necessidade de se colocarem como surdos e não como

deficientes auditivos. Há uma diferença que é “medida” pelas audiometrias e,

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historicamente, as práticas oralistas e as práticas denominadas “pedagógicas” são

prescritas de acordo com a perda auditiva indicada por esse exame.

Inclusive, por volta dos anos de 1974 a 1977, as práticas educacionais pautadas na

oralização dividiam a educação prestada ao surdo pela perda auditiva indicada na

audiometria. Nessa época, as alternativas de atendimentos aos alunos surdos eram

divididas pelos graus de perda auditiva: leve, moderada, severa e profunda. Aos alunos

com perda leve, eram facultadas as possibilidades de entrar diretamente na classe

comum, com atendimento especializado individual. Na surdez moderada, alunos surdos

recebem atendimento especializado, individual ou em pequeno grupo e vai para a

classe comum. A tendência é diminuir o atendimento especializado de acordo com a

necessidade.

Já um surdo com surdez severa teria que ir direto para escola especial, continuar com o

atendimento especializado e a classe comum. Por fim, surdos com surdez profunda,

dependendo da gravidade do prognóstico, escola especial e escola comum. Mas jamais

abandonar a escola especial. Uma grande importância era dada à normalização desses

alunos para que pudessem ser enquadrados na escola comum e no mundo dos

ouvintes.50 Jamais foi facultada ao surdo a possibilidade de aprender a língua de sinais.

Até hoje, é difícil se livrar dessa forma de produzir práticas ditas pedagógicas. Skliar

(1999) questiona esse lugar da escola especial e da inclusão na questão política. O

autor reflete sobre como essas práticas eram produzidas afirmando corresponder muito

mais às práticas clínicas do que às práticas pedagógicas. E a escola especial, pelo fato

de ter sido caracterizada como tal, é por que abriga sujeitos deficientes? Então se trata

de um hospital. Os surdos não querem mais serem categorizados em relação a

decibéis sem levar em conta, como afirma Skliar (1998), sua diferença social, cultural,

identitária e lingüística.

50 Fonte: Livro “Cinqüenta anos: uma parte da história da educação de surdos” de Álpia Couto Lenzi. A professora Álpia Couto foi a precursora da educação dos surdos no Estado, orientando-a para uma perspectiva oralista, afinando, assim, suas práticas ao próprio momento histórico vivido. Torna-se um ícone da filosofia oralista em nosso Estado, fundando, por sua vez, a escola “Oral e Auditiva".

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O manifesto não dá margem para negociação com outras traduções sobre seu próprio

movimento, pois parte do pressuposto de que as outras traduções (geralmente feitas

por ouvintes) são feitas por um olhar hegemônico superior, ouvinte, ressaltando a

polaridade surdo/ouvinte, mostrando que o outro do surdo é o ouvinte. Só que o outro

colocado como oposição e não como aquele que alteriza.

Para o reconhecimento de sua identidade e comunidade, são necessárias, no caso do

grupo dos surdos como comunidade auto-identificada, constantes negociações que,

apesar de insatisfatórias, podem ser úteis em curto prazo. Essas negociações são

identificadas na construção de escolas, espaços inclusivos possíveis. A pergunta de

cada indivíduo surdo não é o quanto se parece com os que ouvem, mas como obtêm

ou não sucesso em suas negociações com instituições ou com cada um que ouve

individualmente.

A aceitabilidade das diferentes estratégias e negociações é questionada nas

comunidades surdas. São discutidos o que se perde e o que se ganha nessas

negociações, ou seja, o dualismo da mímica e a ameaça freqüente da estrutura em

cada transação sabendo que há possibilidades de envolvimento cultural em que as

formas de identificação e característica da comunidade acabam sendo hibridizadas.

Sem contar que essas negociações suscitam resistências. E as resistências podem ser

relacionadas com a seguinte dúvida: até que ponto as negociações estão interferindo

nas características da comunidade e na cultura do grupo?

Lopes e Veiga Neto (2006) colocam como fundamental, no avanço das discussões

fronteiriças dos discursos da resistência, a visão de que o outro do surdo seja o próprio

surdo. As lutas dos movimentos surdos são traduzidas pelos próprios surdos, mesmo

que de formas divergentes. Afinal, os surdos não são como um bloco maciço de

pessoas iguais. Os movimentos são compostos por pessoas diferentes, com visões

diferentes e, muitas vezes, polarizados, sempre colocando um versus o outro.

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As fronteiras conflitantes no movimento surdo no Estado se constroem nas relações de

poder estabelecidas entre membros de um grupo determinado. Esse poder pode ser

exercido num momento histórico pontual e de formas distintas.

Pelos relatos de surdos que estudaram nos anos 70 na escola de surdos, os que

exerciam o poder, naquela época, eram aqueles que dominavam a língua de sinais com

fluência, principalmente por ser uma língua marginal e proibida, ou seja, quem a

conhecesse seria aquele surdo respeitado. Ainda hoje, surdos que não usam a língua

de sinais são vistos com desconfiança ou com sentimento de pena pela comunidade

surda em geral. A desconfiança está ligada à possibilidade do surdo oralizado, que se

coloca como superior ao outro surdo por estar mais próximo dos ouvintes, mas também

o fato de não ser ouvinte o faz sofrer e causa pena e consternação.

4.2.3 Ainda continuamos nos manifestando... as prát icas pedagógicas/clínicas em

foco

• Por uma educação que realmente nos inclua na sociedade de forma justa, respeitando o que somos. A sociedade quer que aceitemos uma política que denominam inclusiva, (sem realmente o ser) porém predatória que zela pela manutenção do fracasso escolar a que somos submetidos e nos transforma em simulacros de ouvintes. • Por intérpretes qualificados uma vez que somos usuários de uma língua que não é compartilhada por todos. • Queremos os mesmos conteúdos que são passados aos ouvintes sejam passados a nós ao mesmo tempo pela via visual através do intérprete. (lei da acessibilidade) • Por uma escola de surdos que realmente atenda nossas necessidades lingüísticas e educacionais. Queremos acesso a uma escola de qualidade para entrarmos numa faculdade com qualidade. • Pelo direito de toda criança surda aprender a língua de sinais. • E por fim, contra a opressão ouvinte que quer nos tornar seus subalternos e mandar em nós sem que realmente conheça as nossas necessidades, nos usando e nos subjugando aos seus interesses. À esses, nosso repúdio!

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As maiores denúncias encontradas nas narrativas são relacionadas com as práticas

pedagógicas/clínicas usadas ao longo das décadas na educação dos surdos.

O que caracterizava a educação dos surdos era a disputa entre as metanarrativas

modernas dispostas nas oposições binárias. Língua oral versus língua de sinais é a

mais polêmica dessas oposições.

Hoje, a característica está justamente na possibilidade de construção de uma

pedagogia em que as marcas culturais dos surdos pautam esse processo.

Segundo Lopes e Veiga-Neto (2006), os marcadores culturais dos surdos podem se

constituir na escola. Além da cultura e das identidades surdas, da língua de sinais, da

arte, da literatura, do teatro e da poesia surda, a noção de luta, a necessidade de viver

em grupo e a experiência do olhar são marcadores culturais que nos permitem falar de

identidades surdas fundadas numa alteridade surda. Vale ressaltar que as práticas

ouvintistas colonizadoras visavam justamente à supressão desses marcadores.

4.2.3.1 A supressão do uso da língua de sinais

Skliar (2003) afirma que a surdez, para a maioria dos ouvintes, representa uma perda

de comunicação, um protótipo de auto-exclusão, solidão, silêncio. Em nome dessas

considerações sobre a pessoa surda, continuam sendo praticadas as mais

inconcebíveis práticas de controle:

“[...] a violenta obsessão por fazê-los falar; a localização na oralidade do eixo único e essencial do projeto pedagógico; a tendência a preparar os surdos jovens e adultos como mão-de-obra barata; a formação paramédica e religiosa dos professores; a proibição de utilizar a língua de sinais e sua perseguição e vigilância em todos os lugares; [...], a ausência da língua de sinais na escolaridade comum, o desmembramento, a dissociação, a separação, a fratura comunitária entre crianças e adultos surdos etc.” (SKLIAR, 2003, p.163).

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Tendo em vista as colocações do autor, vale ressaltar as principais denúncias dos

surdos que são relacionadas justamente com a supressão do uso da língua de sinais.

Isso se dava com violência psicológica (até hoje há esse tipo de violência) e, muitas

vezes, com violência física (mais incidentes no passado). Os surdos sempre iniciam

suas narrativas com essas denúncias.

“Eu estudava na APAE e lá, na minha terra, não existia nada para mim lá. Eu estava

totalmente fora da realidade. As pessoas moviam as bocas perto de mim apenas. Não

conhecia os significados das palavras. Por exemplo, CASA é o quê? CARRO?

Absolutamente nada. Só sabia as palavras erradas. Falava os nomes errados. Eu tinha

muita tristeza. Eu só fui aprender sinais com minhas colegas surdas. No dia-a-dia. Eu

via os sinais e pensava: nossa... como é legal. Mas daí, quando eu comecei a aprender

os sinais, na escola era proibido usá-los. As professoras batiam na mão. Falavam que

era coisa de macaco. Mas, nossa, como eu aprendi as palavras, os sentidos, por

exemplo: ÁGUA, CASA, ESCOLA etc. Tudo passou a ter sentido! E eu só aprendi sinais

mesmo com 20 anos! Até essa idade, eu não sabia nada” (S., 32 anos).

“Eu estudava na APAE com todos os deficientes: mentais, físicos, autistas etc. Inclusive

meu pai mesmo dizia que eu tinha que falar. E claro que a professora batia na minha

mão. Eu não compreendia nada do que ela passava. Repetia, repetia tudo que ela

mandava. Eu fico surpreendido de como é possível uma pessoa freqüentar a escola por

tanto tempo, sem entender o motivo. Fazer as coisas sem saber por quê. Por isso que

acho que eu era muito revoltado na escola” (C., 33 anos).

“Eu vi uma situação uma vez que me chocou: a professora mandava a gente comer

banana quando errávamos uma palavra. Não precisava comer a banana se, por acaso,

acertássemos a palavra falada. Mas se errássemos... tinha que comer a banana. Era

como se estivesse nos chamando de macacos. O surdo sofre mesmo. Isso foi na

APAE” (E., 23 anos).

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“Nós tínhamos que falar. A professora tinha um pedaço de pau que batia em nossas

mãos. Eu chorava muito com ela. Eu procurava a diretora da escola e ela dizia que a

professora estava certa, porque era coisa de macaco falar em sinais. As pessoas

ficavam zombando dizendo que eu era macaca porque fazia sinais. Isso era muito ruim!

Nas aulas de treino da fala, eu errava as palavras e a professora me beliscava. Uma

vez chegou a apertar o meu nariz ao ponto de sangrar, porque eu não consegui falar o

“R”. Era uma coisa horrível! Mas nada de Português mesmo. Era um monte de palavras

soltas” (S., 38 anos).

“Eu fico com raiva das professoras antigas. Sofríamos muitas violências. Batiam em

nossas mãos, nos beliscavam. Pior, puxavam orelha. Tinha que falar na escola: ‘Bom

dia! Tudo bem?’. Lembro-me que um dia, eu estava chegando com colegas na escola,

e antes de entrar no portão, conversávamos em sinais. Pois a coordenadora viu e veio

logo chamar nossa atenção. Bateu em nossa mão e mandou a gente ficar de castigo no

canto com o rosto virado para parede. E falou: ‘Não pode falar em sinais. Falem! É

melhor vocês falarem’. Hoje eu encontro professoras dessa época e as cumprimento

friamente.. Eu falo: ‘Lembra? Você me beliscou? Lembra? É.... as coisas mudaram,

agora tem intérprete, melhorou muito. Entendeu? Agora estou até casado e com

segundo grau completo. Tchau para você.’ E elas não falam nada, claro. Sou um

homem feito” (C., 33 anos.)

“Eu vim de Curitiba quando tinha nove anos de idade. Minha mãe logo procurou uma

escola para mim no interior. Na escola que estudei, a professora colocava um fone na

gente e tínhamos que falar. E ela dizia: ‘Fala’. E eu articulava qualquer coisa. E ela na

hora me beliscava. Eu ficava calada. Ela mandava eu falar de novo. E eu e recusava

porque ela havia me beliscado. E então ela me beliscava de novo! E eu não falava. E

quanto mais ela forçava. Menos eu falava. Até que ela me deu um tapa no rosto.

Verdade! Até hoje eu fico pasma quando lembro daquele dia. Ela me bateu no rosto!

Não dá para acreditar. Mas, mesmo assim, eu não falei. E fiquei de castigo ajoelhada

no milho. Mas saí do castigo num momento de descuido da professora. E a diretora,

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quando me viu, me perguntou o que houve. E do meu jeito eu contei o que aconteceu.

Mas a diretora disse que a professora estava certa! Engraçado... essa mulher um dia

encontrou comigo na rua e veio me cumprimentar. Eu falei na cara dela que não quero

conversa com ela. Ela pensa que eu sou burra? Ela bateu na minha cara” (J., 34 anos).

“Na escola, as professoras não batem nas mãos. Mas eu sei que antigamente se batia

nas mãos. Os outros surdos me contam. Mas elas falam que não podemos fazer sinais.

‘É feio!’, elas dizem. Eu fico triste porque eu amo os sinais” (D., 15 anos).

Esse recorte de histórias contadas mostram como as práticas de supressão do uso da

língua de sinais são utilizadas como forma de controle dos corpos surdos na tentativa

de normalização e aproximação dos ouvintes. Por isso, de acordo com Sacks (1999, p.

41), “[...] o oralismo e a supressão da língua de sinais acarretaram uma deterioração

marcante no aproveitamento educacional das crianças surdas e na instrução dos

surdos em geral”.

Pois bem, com a célebre frase, “[...] a surdez diz menos respeito à audiologia do que à

epistemologia” (p. XXI), o autor desloca a discussão sobre os surdos da clínica para

outros espaços, por exemplo, a Antropologia, admitindo, assim, a necessidade de não

sitiar o corpo para discuti-lo, mas trazer à tona aspectos relacionados com a estrutura

social e política, no modo de vida com dispositivos visuais.

Assim como Wrigley (1996, p. 2), neste trabalho, não pretendo gastar maior esforço em

“[...] reproduzir a epistemologia homeboy dos especialistas em reabilitação

educacional.” Geralmente esses discursos estão dentro do discurso homogeneizante da

educação especial. Importa-me muito mais desvelar os discursos da resistência como

estratégias de sobrevivência da comunidade surda ao estereótipo social de invalidez,

perda e incapacidade.

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Wrigley (1996) conceitua o colonialismo que foi exercido sobre o povo surdo em uma

espécie de colonialismo pastoral, ligado à benevolência, que, segundo Harlan Lane

(1992), trata-se de uma máscara para um amordaçamento da comunidade surda. Esse

colonialismo está ligado a um controle e produção de identidades e corpos surdos de tal

forma que fora naturalizado há tanto tempo que caiu no normal e consensual. Por isso,

o binarismo da exploração dos nativos versus os colonizadores não dá conta das

relações complexas de opressão e dominância. Hoje, essa benevolência mascarada é

representada pelas políticas nacionais atuais ligadas ao movimento de inclusão e

também pelo bilingüismo conservador/liberal adotado pelo MEC.

Ainda dialogando com Wrigley (1996), percebo que o autor vem discorrendo sobre os

conceitos dados pelos que ouvem os surdos. O uso homogeneizante desses termos

para definir os surdos constrói um estereótipo que, de acordo com Bhabha, regula as

identidades e controla os corpos por meio dos discursos coloniais.

Em seu percurso genealógico das produções de identidade surda, Wrigley (1996) faz

uma crítica à história dos surdos contada pelos que ouvem. Isso é uma aproximação da

tradução que os colonizadores fazem na época da colonização das culturas dominadas.

Essa história, contada pelos que ouvem, é uma tradução da cultura surda feita pelos

reabilitadores. Wrigley compara com a época em que Colombo chega à América, tendo

plena convicção que se trata da Ásia e logo tenta apagar todo e qualquer vestígio da

possibilidade de ser diferente daquilo que ele próprio traduziu. “Esta tem sido a prática

padrão do interesse pelos Surdos por ‘Aqueles que Ouvem’ desde Abbé de lÉppé:

busca da ‘verdade’ conhecida anteriormente e desconto das fontes de qualquer

evidência contraditória” (WRIGLEY, 1996, p. 46). Como os índios, os surdos têm sido

rotineiramente descartados como fontes possíveis de informações precisas, além de

serem segregados e excluídos por conveniência administrativa.

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120

Harlan Lane (1992) aborda a

questão do colonialismo como

forma de amordaçamento da

cultura surda, por meio de um

discurso pseudo-inclusivo, como

disfarce dos profissionais clínicos

para a manutenção do controle.

Ressaltando o que esse autor

afirma, a Modernidade é o maior

inimigo dos surdos,

principalmente pelos movimentos

no último século, em direção ao

fim das línguas gestuais da

comunidade surda e a favor das

línguas orais nacionais. Por isso,

ao analisar o colonialismo,

segundo o autor, devemos

substituir as regras da Medicina pela curiosidade etnográfica, propondo novos

paradigmas, ou seja, sair do lugar comum do olhar sobre os surdos como portadores de

uma enfermidade (principal discurso da Modernidade), e apresentar os surdos como

cidadãos de uma cultura peculiar.

Lane (1992) compara a influência ouvinte sobre os sujeitos surdos ao processo de

colonização dos belgas à República do Burundi, na África Central. O autor percebeu

que os ouvintes têm, em relação aos surdos, a mesma visão que o colonizador europeu

tinha em relação aos burundeses. Assim como os colonizadores europeus

apresentavam representações estereotipadas em relação aos africanos, Lane (1992)

percebeu a semelhança das representações construídas pelos ouvintes em relação aos

surdos.

Figura 10 – Arte de Robin Taylor Fonte: www.deafart.org

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121

Analisando o colonialismo, Lane (1992) descreve características que marcam uma

cultura surda e formas de extingui-las também em nome da manutenção da norma.

Temos pontos importantes desvelados nas próprias narrativas dos surdos capixabas

em consonância com o que o autor aponta: a) sua dignidade: como surdos, ou seja, sua

identidade surda. Lamentavelmente, os especialistas consideram essa identidade como

doença e executam reabilitações “heróicas” em crianças surdas com o objetivo de

consertá-las; b) sua linguagem: os educadores a destroem na tentativa de suprimi-la

(“na maior das boas intenções”) ou de transformá-la na língua oral sinalizada; c) sua

história: que é substituída pela história das correntes filosóficas ou pela história da

“colonização oralista” como principal forma de o ouvinte ser o salvador do surdo; d) sua

organização social e seus costumes: que os especialistas clínicos, e até educadores,

declaram inapropriados e obsoletos; e e) sua agenda política: seus poderes continuam

sendo diminuídos pelos ouvintes.

Todos esses fatores são apontados nas narrativas como tentativa de supressão não só

da língua de sinais, mas das marcas culturais que os identificam como povo.

O autor ainda elabora uma lista de características e adjetivos e atribuídos aos surdos

pelas literaturas médicas e compara com a lista de características e adjetivos atribuídos

aos colonizados africanos como produtos de puro preconceito. Podemos encontrar,

dentre outras características, adjetivos, em ambas as listas, como agressivo,

depressivo, imaturo, explosivo etc.

Essas características e suas formas de serem mascaradas pelo paternalismo, por parte

dos especialistas ouvintes que fazem tais atribuições, tornam a comunidade surda

diminuída em relação à comunidade ouvinte, com essas representações colonialistas

construídas. Esse paternalismo e a benevolência ouvintista não passam de máscara

para o amordaçamento da cultura do povo surdo.

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122

Lane (1992) ainda analisa que há questões específicas entre essas colonizações já que

são situadas em tempos e espaços diferentes. As próprias listas refletem isso, ou seja,

a especificidade histórica reveste a forma de opressão que é também definida pelo

grupo oprimido. Porém o princípio da colonização e do paternalismo é o mesmo. O

autor justifica que denominou o grupo de surdos de colonizados usando o termo nos

sentido amplo, assim como Michel Foucault (apud LANE, 1992) quando fala de

“colonização do corpo” pelo Estado, e porque as comunidades surdas sofreram a

opressão da supressão da sua língua, por exemplo, da mesma forma que as outras

culturas foram subjugadas pelas potências imperiais européias, tanto em relação à sua

língua quanto ao seu corpo.

O autor, por fim, cita o crítico literário Edward Said em seus apontamentos sobre a

Antropologia, pois se aplicam com a mesma força ao conjunto de discursos que

constituem o ouvintismo:

[...] o ponto de vista do nativo não é apenas um fato etnográfico, escreveu ele, é uma resistência adversária e contínua à disciplina e ás práticas da própria antropologia (enquanto representativa do poder “exterior”); uma antropologia que se apresenta não como textualidade mas como um freqüente agente direto do domínio político (SAID, apud LANE, 1992, p. 53).

Ou seja, pelo fato de as narrativas dos surdos não serem aceitas e estarem

relacionadas com essas representações estereotipadas construídas pelos ouvintes, os

líderes surdos têm resistido ao modelo alingüítico e acultural bem como os métodos

ouvintistas para normalizar e curar o surdo

4.2.3.2 As práticas pedagógicas/clínicas na escola: o currículo e as práticas rotineiras

As narrativas surdas são fontes muito ricas de análise do currículo praticado até hoje

para os surdos. Inclusive fontes para propostas de novas pedagogias, novas formas de

dar aulas. No meio de muitas críticas e denúncias de como é praticado o ensino nas

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escolas de surdos, há também muitas propostas de novas possibilidades. Afinal, todos

os surdos reivindicaram mudanças nessa situação.

“Eu larguei a escola porque ninguém agüentava as atividades repetidas. Era sempre a

mesma coisa. Todos os dias a mesma coisa, a mesma coisa... Eu me revoltei e não

quis saber mais. A professora sempre ensinava: A-B-C-D e, no dia seguinte, A-B-C-D.

Ai, horrível! As professoras velhas que ensinam a mesma coisa até hoje precisam sair.

É preciso tirá-las de lá. E no lugar devem ficar de professoras que saibam e ensinem

em Libras. Com novos cursos de formação. Quando eu estava lá, nunca mudava.

Sempre era a mesma coisa. O que se ensinava de Português era fraco. Muito fraco. E

de Matemática, era adição e subtração apenas. Só isso que se ensinava. Eu queria que

também ensinassem multiplicação, divisão. Isso elas não davam para mim. Só a

mesma coisa. Conteúdo de bebê. Outra coisa, elas passavam atividade e iam tricotar

na sala de aula. Ou ainda bater papo com outros professores e até fumar no corredor.

Era horrível. Eu achava um absurdo. Nunca concordei. Sempre fiquei muito revoltado.

As aulas eram dadas falando, oralmente. Os surdos não entendem nada. Não ouvem

nada mesmo! Isso numa escola própria para surdos. Elas escreviam no quadro e

perguntavam: ‘Entendeu?’ Bla-bla-bla-bla-bla-bla-bla. Os surdos ficavam sem entender

nada. Elas nos tratavam como ouvintes. Parecíamos ouvintes. Parecíamos iguais aos

ouvintes, mas não ouvíamos. Simplesmente abandonei a escola. Eu larguei a escola

em 1978. Eu aprendi muito mais com a vida. Entrei na política e aprendi muito mais

vivendo por aí questionando e criticando. Não aceito ser tratado como criança. Dentro

da escola era pior. Eu queria aprender Português. Eles colocavam um palito de picolé

na boca da gente e mandava a gente falar A-A-A-A, B-B-B-B, E colocavam o fone: A-A-

A-A, B-B-B-B. Mas o que era A-A-A-A, B-B-B-B? Um dia eu encontrei na rua aquele

alfabeto manual e pensei: ‘Ah, isso sim e´A-A-A-A, B-B-B-B. Puxa, que legal’. Isso foi

dentro de um ônibus, porque, na escola, elas nunca se interessaram e dizer o que era

A-A-A-A, B-B-B-B. Por causa da língua de sinais, eu abandonei a escola. Eu vi a língua

de sinais e aprendi muito. O mundo se abriu. Foi aí que eu aprendi e descobri que a

escola era uma merda” (E., 50 anos).

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“Em 1977, muitos surdos ficaram com raiva da escola e a largaram. Elas só davam as

mesmas coisas. Todos já sabiam os conteúdos dados. Era para aprender mais, mas

professor, mesmo, não tem. Os surdos saíam da escola e iam para escola de ouvintes,

mas não entendiam o que acontecia. Era complicado se misturar aos ouvintes. Então o

caminho era o abandono. Os professores não sabiam língua de sinais. Só oralizavam.

E também na escola de ouvintes era assim, só falar, falar, falar. Horrível! As

professoras não sabiam, mas se nós aprendíamos a falar bem era porque tinham

pessoas que nos ensinavam os sinais escondido. Essas pessoas saíram da escola. E

nós ficamos sem entender nada. Vitória falhou com os surdos, e a culpa é do oralismo

que proibia os sinais. Isso é errado. Vitória é uma porcaria. As atividades eram

infantilizadas. Todas as semanas era a mesma coisa. O professor do Rio (Sebastião)

ensinava muito rápido. Ensinava contas de multiplicar e outras coisas mais difíceis. Mas

as professoras de Vitória só ensinavam as mesmas coisas. E os surdos dispersaram. A

culpa foi do currículo. Você gostaria de estudar todo dia a mesma coisa? É chato. É

infantil. O surdo não é bebê. Só ensinavam Matemática e Português. E depois a parte

oral. Fone no ouvido para aprender a falar. Isso tinha muito. A gente aprendia a falar e

a Libras, na verdade, aprendíamos escondido. Eram todos os dias. Cada dia

marcávamos grupo de estudo nas casas dos surdos. Um dia na minha casa. Um dia na

casa de outro surdo e assim por diante. Isso com um surdo do Rio. Depois fiquei com

raiva. Parei. Larguei a escola. Que pena!” (S., 58 anos)

“Não ensinavam nada de História, Geografia, Biologia. Nada. Sempre a mesma coisa.

Apenas que estudávamos Matemática e Português. Sempre. E só atividade

infantilizada” (L., 48 anos)

“A professora na sala só falava, não fazia sinais nunca. Só batia na mão. Nunca fazia

sinais. Era só matéria fácil. Exemplo: Comunicação era a matéria. Não se chamava

Português. Elas apontavam no quadro e no caderno apenas o que tínhamos que fazer.

Eu não entendia muito. Tinha dúvidas. Muitas dúvidas”(C., 33 anos)

“Meu sonho era aprender Português. Eu sempre quis isso. Os professores nunca me

ensinaram Português. Minha família nunca me ensinou Português. Eu não ficava

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125

parada esperando, não. Eu mesma comecei a aprender sozinha. Pegava as revistas e

ia lendo as palavras. As que entendia, tudo bem. As que não entendia, anotava e

depois, numa oportunidade, perguntava a alguém que pudesse me explicar. Fazia isso

sozinha. As palavras como: RUA, CABELO, CAMISA, eu aprendi sozinha. Por minha

conta. Ficava mesmo atrás da minha mãe, do meu irmão, perguntando o significado das

coisas. Meu sonho é aprender mesmo o Português.Uma vez, eu pedi a uma professora:

‘Por favor, me ensine Português.’ E ela me disse: ‘Eu não sei fazer isso. Eu não sei

ensinar para você. Você é surda.’ Nesse dia, eu chorei muito. Eu fiquei arrasada. O que

eu poderia fazer? Precisava aprender o Português a qualquer custo” (V., 38 anos).

“Eu nunca entendi por que as professoras sempre ficam atrás da gente falando. Não

adianta, não vamos ouvir. Ouvimos, na melhor das hipótese,s os barulhos. Mas as

palavras? Nunca. As professoras colocavam um fone no meu ouvido e ficavam atrás de

mim falando. Primeiro perto do ouvido esquerdo e depois do ouvido direito. Nunca

entendi por que ela fazia isso, porque eu sou surda, não é... muito complicado. E depois

ela vinha com o microfone para falarmos também. Eu tinha a maior dificuldade de

perceber o que estava sendo dito por ela. Mas ela não queria que percebêssemos.

Queria que ouvíssemos! E o ditado para compreendermos leitura labial?! As

professoras falavam e nós tínhamos que apontar a palavra no quadro. Eu chutava

porque nunca entendia nada. E ainda levava beliscão” (J., 34 anos).

“Eu só queria aprender Português, Matemática, História, Geografia, Ciências. Mas

quem iria me ensinar? As aulas têm que ser em Libras e os professores não sabem

Libras” (S., 20 anos).

Outro fato muito recorrente nas narrativas surdas está relacionado com a hora da

entrada na escola de surdos e com o sinal sonoro que marcava a hora da entrada, hora

do recreio e a hora da saída.

“Na hora da entrada, era impossível. Cantavam uma música e os surdos ficavam iguais

a um robô ‘cantando’ junto. Só balançando a cabeça. Os surdos iguais a uns robôs com

uma interrogação na testa. Na-na-na-na-na-na-na-na-na-na-na, e os surdos, nada.

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126

Pareciam ouvintes. Faziam os surdos falarem: A, B. Era só explicar para eles sobre

isso! Parecia que éramos ouvintes. Tratavam-nos como ouvintes. Não éramos

ouvintes. Elas não entendiam isso. Eu não entendia nada. Eu reclamava muito. Não era

levado a sério. As professoras não escutavam isso. Eu fazia revolução mesmo. Então

desisti. Elas falavam para mim que os surdos não sabiam e por isso elas não podiam

dar nada a eles mais substancial. Nós, os surdos, não passávamos de macacos para

elas. Elas nos falavam isso! Falaram para mim: ‘Você é um macaco’. Eu fiquei revoltado

E larguei tudo” (E., 50 anos).

“Os surdos não entendiam nada na hora da entrada. Nós tínhamos que fazer a oração

do ‘Pai nosso’ e só repetíamos sem compreensão. O hino, então, cantávamos sem nem

saber o porquê e para quê. Mandavam a gente ficar em silêncio e com a mão no peito

só. Mais nada” (S., 58 anos).

“É verdade. Cantávamos e não entendíamos nada. As pessoas na hora da entrada só

mandavam a gente ficar quieto e não fazíamos nada. Não explicavam nada. Eu só

entendia o final da oração: Pai, filho, Espírito Santo, amém” (L., 48 anos).

“Nunca entendi por que o sinal da entrada e do recreio era um barulho. Só a professora

ouvia. Nós não compreendíamos. Claro que, quando era bem alto, a gente percebia,

até porque marcava o horário. Mas numa escola de surdos? Deveria ser uma luz, como

é a campainha na minha casa” (E., 50 anos).

As práticas denunciadas pelos surdos são pautadas numa visão do surdo deficiente.

Todos os narradores salientaram a necessidade de estudar os conteúdos da escola,

que sabiam que existiam, porém não estavam ao alcance deles. Não eram ensinados a

esses alunos.

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127

A questão do currículo traz uma

discussão muito séria como

contribuição para este campo

de atuação. Dentro das escolas

oralistas, a perspectiva

curricular é baseada, como

outrora já foi mencionado, nos

graus de surdez. Esse tipo de

diagnóstico mostra uma

contradição: como aplicar

propostas pedagógicas, quando

parto de uma premissa clínica?

São, na realidade, propostas

clínicas travestidas de pedagógicas, como afirma Skliar (1999).

Essas narrativas, muito mais têm a nos dizer sobre quais as propostas de educação

possíveis e necessárias para uma inclusão do surdo do que de denunciar. O que os

narradores surdos querem é aprender tudo que a escola possa ensinar.

Há, no meio acadêmico, toda uma discussão teórica aprimorada sobre questões

relacionadas com o campo curricular. Há inúmeras pesquisas discutindo teorias

diversas do currículo. Porém, como esse tema não é o foco deste trabalho, vou me

limitar a apontar alguns caminhos possíveis para uma análise curricular da educação

dos surdos numa perspectiva dos Estudos Surdos em busca de aproximação com

outros campos teóricos. A necessidade de apontamentos para algumas discussões

sobre currículo se deu pelo fato de que houve uma incidência significativa dessa

temática nas narrativas surdas.

Segundo Lunardi (1998), a idéia de relacionar os conteúdos a serem ensinados aos

alunos com o conceito de currículo é bastante atual. Há, segundo a autora, um

Figura 11: “Crocodile Dundee” de Chuck Baird Fonte: http://www.chuckbaird.com

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128

determinado consenso sobre quais conhecimentos deveriam participar dos currículos

escolares. Porém, essa normalização dos conteúdos, essa rigidez da “grade curricular”

já são rompidas com a problematização de questões como: o que ensinar? Quais

conteúdos deveriam ser ensinados? Quais deveriam fazer parte do currículo? Segundo

Silva (1998, p. 5) :

O conhecimento organizado para ser transmitido nas instituições educacionais passa a ser visto não apenas como implicado na produção de relações assimétricas de poder no interior da escola e da sociedade, mas também como histórica e socialmente contingente. O currículo é uma arena contestada, é uma arena política.

Inclusive, segundo Ferraço (2005, p. 33), é “[...] imprescindível pensar e discutir sobre

currículo e a formação continuada não a partir da perspectiva da prescrição, mas a

partir do que é de fato realizado nas salas de aula”. No caso da educação dos surdos, a

discussão do que de fato se dá na sala de aula deve ser uma problematização da

clínica em detrimento ao pedagógico. Uma discussão sobre o currículo prescrito seria

baseada num questionamento da forma como o currículo é colocado: para sujeitos que

se dividem pelo grau de surdez para o estabelecimento da oralidade. Assim era e é

prescrito o currículo dos surdos.

Por isso, concordo com Ferraço (2005), quando afirma que podemos pensar os

currículos praticados a partir da idéia de mímica. Segundo o autor (FERRAÇO, 2005, p.

130): “[...] mímica não se reduz à mimese, isto é, à imitação, então podemos

estabelecer uma aproximação entre as idéias de mímica e de currículos praticados no

cotidiano das escolas”. De acordo com Bhabha (apud FERRAÇO, 2005), podemos

afirmar como se comporta o currículo ouvintizado/oralista da educação dos surdos

nessa perspectiva do discurso da mímica.

E Ferraço (2005) completa afirmando que, como alternativa de realização da mímica, o

destaque é dado às negociações e performances que se realizam nas redes cotidianas.

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129

Já no campo conceitual dos Estudos Surdos em Educação, outras possibilidades de

tradução teórica sobre a temática em questão – neste caso o currículo na educação

dos surdos – vêm sendo discutidas na tentativa de aproximar a surdez da perspectiva

dos Estudos Culturais.

Lunardi (1998) aponta o ouvintismo no currículo como estratégia de colonização. De

acordo com as narrativas surdas, essa colonização pode ocorrer com práticas escolares

rotineiras tais quais: a) a indiferença à surdez. Um bom exemplo é a hora da entrada,

quando ocorria a invisibilidade da alteridade surda ao obrigar uma escola inteira,

composta por alunos surdos, a “cantar” o Hino Nacional, rezar o “Pai nosso” e dar todas

as ordens, regras e sugestões na língua oral; b) a supressão do uso da língua de sinais

ou outras formas de representação surda no espaço escolar (que já foi comentado no

item anterior); e c) a infantilização do conteúdo.

Há diferentes produções de significados quando me refiro à estratégia do discurso

colonial de ignorar a surdez. Neste primeiro tópico, a invisibilidade é uma dessas

estratégias apontada na fala de um narrador indignado: “Parecíamos ouvintes. Como

pode? Nunca fomos ouvintes e nos tratavam com tais. Por isso eu não entendia nada.

Vim a entender o Hino Nacional quando meu filho me explicou a sua importância. Eu

não era burro. Eu via, que antes do futebol, os jogadores ficavam em pé, com a mão no

peito, mexendo a boca. Relacionei ao que acontecia na escola. Mas não sabia do que

se tratava. Será que as professoras realmente achavam que nós entendíamos alguma

coisa?” (L., 48 anos).

A invisibilidade se dá com a necessidade de apagar as diferenças, quando elas são

gritantes, assim, como já citado, Colombo fazia com relação aos indícios apresentados

pelos povos indígenas que ali não era a Índia, mas sim a América (WRIGLEY, 1996).

Nesse currículo ouvintizado, que fabrica sujeitos modernos, o objetivo principal da

educação dos surdos remete ao ensino da oralidade (a fala e a audição) ignorando

solenemente a língua de sinais como possibilidade educativa. Como afirma Teske

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(1998, p.143): “Muitas escolas que trabalham com pessoas surdas continuam

adestrando ou cultivando os surdos em suas salas de aula sem pensar na educação

destes”. E endossa com a frase de Paulo Freire (apud TESKE, 1998, p. 143): “Animais

são adestrados, plantas são cultivadas, homens e mulheres se educam”.

Outra forma de caracterizar a invisibilidade é aquilo que Lopes (1998) comenta sobre a

produção de significados num símbolo como o da sirene numa escola de surdos, que

marca a entrada, saída, recreio, aulas etc. Além de ser um dispositivo disciplinador,

marca a relação de poder desigual favorável ao ouvinte, centrado na figura do professor

que detém a capacidade de escutá-la e transmiti-la aos “patologicamente

impossibilitados” de fazê-lo.

A desarticulação do desejo das necessidades sócio-educativas e culturais dos surdos pode ser vista através dos múltiplos mecanismos de disciplinamento de corpos e mentes existentes na escola. Basta observarmos o uso, por muitas escolas que ainda não “modernizaram” seus mecanismos de controle, da sirene para marcar o horário da entrada, do lanche, da saída e do recreio (LOPES, 1998, p. 115).

A autora, por fim, afirma que essa imposição cultural, dada por meio da distribuição

desigual de poderes, faz com que as representações sobre os surdos se mantenham

estereotipadas e a certeza de não haver separação de “[...] parâmetros biológicos/

naturais e normais das subjetividades contidas nos discursos produtores de sujeitos

surdos” (LOPES, 1998, p. 115).

As barreiras sociais, políticas e culturais com toda essa relação de poder estabelecida

pelas práticas rotineiras da escola dificultam a organização cultural dos surdos.

Todavia, ainda assim , “[...] estes conseguem resistir às imposições através da sua

organização no grupo. A resistência dos surdos se caracteriza como uma forma de

poder que não aceita, passivamente, a colonização cultural promovida pela escola”

(LOPES, 1998, p. 116). Como exemplificado pelos próprios narradores: “Eu não

entendia nada. Eu reclamava muito. Não era levado a sério. As professoras não

escutavam isso. Eu fazia revolução mesmo. Então desisti. Elas falavam para mim, que

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os surdos não sabiam e por isso elas não podiam dar nada a eles mais substancial.

Nós, os surdos, não passávamos de macacos para elas. Elas nos falavam isso.

Falaram para mim: ‘Você é um macaco’. Eu fiquei revoltado. Eu larguei tudo” (E., 50

anos).

“Era muito gostoso conversar no banheiro escondido. Nós falávamos: ‘Evita sair, vamos

ficar aqui conversando’. E nos perguntavam por que estávamos demorando. Eu apenas

respondia que tinha feito um cocô muito demorado. Mas na verdade eu estava fingindo

não ter conversado com ninguém”. (L. 48 anos)

Como afirma Skliar (1998, p. 17):

O ouvintismo gera diferentes interpretações entre as quais surgem algumas formas de resistência a esse poder. O surgimento das associações de surdos enquanto territórios livres de controle ouvinte sobre a deficiência, os casamentos endogâmicos, a comunicação em língua de sinais nos banheiros das instituições, o humor surdo etc. constituem apenas alguns dos muitos exemplos que denotam uma outra interpretação sobre a ideologia ouvinte.

A educação de surdos/as, por meio de um recorte teórico dos Estudos Surdos,

aproxima suas discussões curriculares a suas relações à cultura, ao poder, à

construção de identidades, “[...] na tentativa de problematizar os efeitos do fracasso

escolar massivo da ideologia escolar dominante” (LUNARDI, 1998, p. 159).

Neste caso específico, a ideologia dominante está relacionada com a abordagem

oralista que ostenta o ensino da oralidade como prática pedagógica para recuperação e

reabilitação. O discurso oralista está pautado em concepções clínicas terapêuticas e,

por isso, inviabiliza discussões de fato pedagógicas na produção de currículos para a

educação dos surdos.

Segundo Lopes (1998, p. 115), a idéia de que há uma necessidade na educação dos

surdos de profissionais especializados e até mesmo de profissionais da saúde atuando

junto aos professores, demonstra que

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[...] a história dos surdos, as trocas sociais entre os mesmos, a comunidade surda, a língua de sinais, os valores, as necessidades políticas, sociais e físicas não intervêm na organização escolar de forma que as identidades que surgem neste meio, podem ser vistas como negociação com esses e outros fatores aqui não mencionados.

Nas escolas oralistas do Estado, a leitura labial e a educação auditiva, por exemplo, se

constituíam como disciplinas da escola, incluídas no histórico escolar dos alunos. Como

nas denúncias dos narradores, essas “disciplinas” eram as mais trabalhadas na escola

e o próprio modelo ouvintista endossava tais práticas homogeneizantes que

colonizavam o surdo.

Skliar (1997) afirma que é necessário que nos aprofundemos, ainda mais a respeito da

ideologia do oralismo mas não nos limitando simplesmente à questão da fala que é

ensinada por meio de mecanismos terapêuticos. Trata-se, como foi no caso deste texto,

de uma análise dos mecanismos de colonização que o oralismo exerceu e exerce nos

currículos nas escolas de surdos. O autor ainda sublinha a presença de várias formas

de dominação gerada pelo oralismo:

- um currículo para deficientes mentais, reproduzindo o estigma que define os surdos e os deficientes mentais como semelhantes, ou afirmando diretamente que os surdos são deficientes mentais. - um currículo para ouvintes, duplicando para os surdos cada ano planificado na escola regular, o que reflete a fórmula estereotipada de que os surdos poderiam ser iguais aos ouvintes, mas dividido por dois. Temos constatado que a duplicação dos anos curriculares não assegura êxito algum nas instituições para surdos. - um currículo para deficientes da linguagem que sugere que o problema da surdez não é tanto o acesso à oralidade, mas que, mais grave ainda, afeta a faculdade mental dos surdos para a linguagem. - um currículo audiológico-audiométrico que se serve de técnicas e recursos não educacionais, para direcionar todos os esforços institucionias para uma possível reconversão do ser surdos em ser ouvinte. - um currículo exclusivamente gramatical da língua oficial (SKLIAR, 1997, p. 47).

Perlin (2000, p. 24) afirma que “[...] o currículo precisa estar envolvido num processo

cultural inerente aos surdos. O contato do sujeito surdo com as manifestações culturais

dos surdos é necessário para a construção de sua identidade”. No caso do oralismo,

sua identificação será dada como sujeito deficiente que precisa ser normalizado.

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133

A autora ainda propõe práticas curriculares possíveis na construção de uma referência

de práticas na educação dos surdos: presença do professor surdo na sala de aula e

professores ouvintes com domínio da língua de sinais, ambos capacitados para o

ensino de língua portuguesa como segunda língua; contato dos surdos com os grupos

de surdos para aprendizagem da língua de sinais e demais identificações culturais.

Retomarei o assunto no quinto capítulo.

4.2.3.3 A “escola dos ouvintes”: o movimento atual de inclusão escolar em foco

Ao tratar de assuntos escolares, os narradores diversificavam seus pontos de

consenso. Apesar de todos contarem histórias muito parecidas (neste trabalho temos

apenas recortes), um dos pontos de consenso é a crítica e a desconfiança das políticas

municipais que, no momento, primam pelo afinamento com o discurso da inclusão como

política educacional. Quero esclarecer que os surdos não são contra a inclusão, mas

desconfiam dessa inclusão que o MEC aponta, que trata de colocá-los na mesma sala

dos ouvintes sem ao menos uma discussão teórica mais relevante sobre os processos

desse tipo de política. Vamos, neste espaço, debater, discutir e apontar questões

teóricas relevantes pelas narrativas surdas em consonância com as pesquisas que têm

sido construídas nesse aspecto.

Eis as narrativas:

“Os surdos que estudam na 5ª série, na escola de ouvintes, têm a vantagem de passar

de série e de aprender conteúdos não aprendidos na escola de surdos. Na escola de

surdos, eles não aprendem porque ficam à mercê das loucuras orais das professoras.

Não tem conteúdo. Inclusive, os surdos ficam sem acompanhamento. Mas tem o outro

surdo. Não sei o que acontece com esta situação. Não sei o que é melhor ou pior. Eles

são aprovados nas séries de 5ª a 8ª, porque, na aula de reforço na escola de surdos, os

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conteúdos são dados para eles copiarem e levar tudo bonito e pronto para outra escola.

Continuam sem aprender” (E., 50 anos).

Saí um dia a escola de surdos depois da 4ª série51 e fiquei só na escola de ouvintes

sempre repetindo a 5ª série. Três vezes. Onde estavam meus amigos surdos? Nós

conversávamos escondido. Agora... não precisava mais. Ninguém me entendia! Então

abandonei a escola dos ouvintes também. Fiquei triste e falei com minha mãe,

reclamando: ‘Ah! Estudar para quê? Sempre reprovo mesmo. Ah! Que saco!’. Meu

irmão ficava me chamando a atenção, brigando comigo. Para mim, era melhor

trabalhar. Dava dinheiro. Era mais gostoso! Então, uns anos depois, comecei a ir à

igreja onde tinha intérpretes. Quando você, em 1999, fez uma palestra para nós, os

surdos, alertando que precisávamos estudar, lembra? Isso me fez pensar que eu

estava na 5ª série. Ou seja, como seria minha vida? Seria mandado embora do

emprego. E você nos ajudou, lembra? A procurar uma escola. Foi quando fui para uma

escola regular de ensino noturno.52 E enfim terminei direito o primeiro grau e depois o

51 Na escola de surdos, só tinha até a 4ª série. Na 5ª os alunos eram integrados aos ouvintes. A idéia era oralizar os surdos até a quarta série para que eles pudessem ser mais integrados da 5ª em diante. A grande questão era que isso não acontecia. A repetência era o que mais acontecia, porque os surdos saíam de um ambiente onde só se aprendia a articular a boca para repetir palavras, para outro onde havia uma outra dinâmica totalmente diferente, com conteúdos que eles não dominavam e com pessoas que não sabiam se comunicar com eles. Essa passagem sempre foi muito traumática para os surdos. Suas narrativas mostram isso. 52 Nesse ano, 1999, reuni os surdos para conversar com eles sobre a possibilidade de eles estudarem. A realidade daqui do Estado era gritante nesta época. A maioria dos surdos da idade desse narrador estavam na mesma situação: haviam cursado até a 4ª série na escola de surdos, eram bem oralizados (alguns parcialmente) porém não dominavam a leitura e a escrita. Este trabalho na igreja que o narrador conta é um trabalho que a igreja fazia (iniciou no relato da segunda história no Capítulo 1 desta dissertação) de interpretações dos cultos. Fiz uma reunião com o grupo de surdos que freqüentavam a igreja e propus uma pesquisa simples: um levantamento do grau de escolaridade desses alunos e a idade deles. Após o levantamento, fiz uns gráficos e mostrei a eles em uma outra reunião. Então, fiz uma proposta de trabalho voluntário com aqueles que se interessassem em estudar novamente. Conversei muito, apresentei todas as vantagens do estudo, mercado de trabalho etc. Um grupo de quatro surdos se interessou e foram procurar uma escola de ensino noturno da Pefeitura de Vitória para eles se matricularem. Comecei um trabalho como intérprete voluntária na escola e todos os dias eu estava lá. Nessa época, fazia Pedagogia pela manhã. Foi bem interessante, porque conversamos com a pedagoga que abriu as portas da escola e logo foi pesquisar sobre surdos e estudar o assunto. E os surdos lá, nessa escola, estavam juntos comigo. E eu interpretando as aulas. Os professores foram muito receptivos e, até hoje, essa escola é um pólo escolhido pelos surdos. Isso caracteriza que muitas vezes um trabalho se auto-organiza sem interferências da política. Já tentaram fechá-la, atingi-la com a idéia de espalhar os surdos pela rede municipal. Mas havia uma coisa que as outras escolas não tinham: outros surdos e intérpretes.

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segundo. Ufa! Que alívio para mim. Foram quatro anos malucos. Mas venci. Casei e

hoje vivo bem. Graças a Deus! (C., 33 anos).

“Numa escola ouvinte, o surdo fica isolado. Só recebendo mensagens faladas sem ter

contato em língua de sinais. Só se aprende com um amigo do lado, porque a gente

copia tudo do amigo. O professor ouvinte é muito chato. Dá muito trabalho. Uma escola,

para mim, tem que ter intérprete em todas as disciplinas, e professores surdos. Os

ouvintes atrapalham. Eu sonho com intérpretes... Nós entenderíamos mais rápido. Esse

é o jeito do surdo. É melhor assim” (C., 32 anos).

“Depois da escola de surdos, fui para uma escola de ouvintes e continuava com o

tratamento para falar. Eu tinha mais ou menos sete anos de idade. Como eu não

entendia nada do que era dito pelo professor, porque eu não ouvia, eu preferia pegar o

caderno dos meus colegas para copiar o conteúdo. Era a forma mais fácil. E até hoje é

assim. Foi assim na faculdade. É mais fácil agir assim. Por exemplo, se não tenho

intérprete, pego o livro na biblioteca para fazer as atividades e ler o conteúdo. É muito

melhor com intérprete. O intérprete é de grande importância. Olha, por exemplo, o

ouvinte tem três canais para aprendizagem: as discussões em sala, as aulas (ouvir) e a

leitura. O surdo tem uma só: a leitura. Isso é muito ruim. O surdo perde com isso. Os

outros canais são fechados para o surdo. A leitura apenas não funciona. A gente lê, lê,

lê e não compreende nada. Eu contava com uma professora particular, mas ela não

sabia língua de sinais. Usava apenas gestos, mímica, para se comunicar. Eu era bom

em Português e Matemática. Só nestas duas disciplinas. Como ela usava gestos, ela

não conseguia passar História e Geografia para mim. Eram só coisas fáceis e

mecânicas. Por exemplo, em Matemática: operações, algoritmos. Matemática era uma

coisa funcional para mim. Como uma engrenagem. E com Português, eram as regras

gramaticais. Eu aprendia as regras, apenas. Ou seja, tudo o que não precisava de um

raciocínio abstrato, mas dependesse exclusivamente de seguir um modelo. Para

entender um texto, por exemplo, teria que ser através de língua de sinais. Eu não

entendia os significados das palavras. Eu fui oralizado como um robô. Eu parecia um

robô. Não conhecia o significado de nada. Somente repetia palavras. Minha mãe

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parecia muito preocupada que eu falasse justamente para ser igual a qualquer pessoa.

Parecia uma obrigação, porque queria que eu fosse como ouvinte. Eu até falava bem,

mas não tinha o significado das coisas. Era um mero repetir. E minha família me

obrigava a falar por ordens médicas. O médico manda a gente falar, mas eu não me

comunicava com minha família. Todos conversavam e eu ficava submetido a eles,

apenas vendo todos falando. No início, eu me atrevia a perguntar à minha mãe o que

estava sendo dito. Porém, ela me corrigia quando falava errado para que eu falasse

certo. Mas eu não era de falar com eles. Parei de falar, simplesmente. Só voltei a

conversar legal quando encontrei os surdos. Aí, sim, conversávamos em Libras. Eu só

fui realmente ter diálogo e comunicação, quando encontrei os surdos na minha vida. No

início, tive que aprender Libras. Depois fui me envolvendo de tal forma que pude

discutir política, histórias, críticas... Qualquer assunto. Isso é ter uma conversa

realmente! Assim como o ouvinte conversa com o ouvinte, o surdo conversa com o

surdo. É assim que se dão bem. Isso é comunicação” (F., 33 anos).

“Eu adoro contar a história de como eu entrei na escola dos ouvintes. Minha mãe, me

vendo ociosa dentro de casa, disse: ‘Você vai para a escola.’ Eu fiquei assustada

porque não queria ir. Mas aceitei. Ao chegar na escola em que minha mãe me

matriculou, fiquei assustada. Ouvintes? Tinha ouvintes lá? Ai... eu não combino com

ouvintes. Na hora eu fiquei incomodada. Olha só... eu cheguei na sala de aula, e entrou

uma professora e estava feliz da vida: bla-bla-bla-bla-bla-bla e escrevendo no quadro, e

bla-bla-bla-bla-bla-bla. E eu lá, na sala de aula. Ou seja, tinha um surdo nessa sala. Eu

fiquei quietinha, cruzei os braços e só de olho, imaginando a reação dela ao saber de

uma surda lá. Tenho certeza que ela achava que todos eram ouvintes. De repente, levo

um susto: a diretora entra na sala e diz: ‘Aqui tem uma surda’ e aponta para mim. Ai...

estragou o meu disfarce. Mas eu fiquei embasbacada com a reação das pessoas. Elas

ficaram com medo de mim. Uma espécie de: ‘O que é isso? Minha nossa... como me

comunico?’ Parecia que eu iria morder as pessoas! E eu lá, sozinha, copiando a

matéria no quadro sem saber o que fazer. Não entendi nada do que ela passava, do

que ela falava. Eu estava sozinha nessa. E lá estava ela, articulando os lábios: bla-bla-

bla-bla-bla-bla. E eu acompanhando, tentando pensar o que eu iria fazer... A reação da

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professora, ao descobrir, de repente, que eu era surda, foi de estupefação: ‘O quê?

Você é surda? Eu não sei o que fazer com você. Ai, eu não sei.’ Eu vi o desespero dela.

É como se ela não pudesse mexer comigo. Com se ninguém pudesse se aproximar de

mim. Daí ela passou a me ignorar. Ajudava a todos e fazia de conta que eu não estava

na sala de aula. E, na realidade, eu só continuei na escola porque os colegas me

ajudavam, me davam cola, me apoiavam, faziam as provas para mim e por isso fui

passando de ano. Ano após ano. Por exemplo: eu não sei Português. Os meus colegas

me passavam tudo. Nunca tive interesse em saber o significado das coisas. Só queria

passar de ano para acabar logo com isso. Inclusive teve uma colega que me cobrou

que eu não dava cola. ‘Mas, gente’, eu dizia, ‘eu não sei nada, como posso dar cola?’.

E essa amiga virou para mim e disse: ‘Você é burra.’ Eu pensei: ‘Devo ser mesmo para

estar nessa situação’. E quantas vezes fui pega de surpresa: ‘Amanhã tem prova’ – a

professora verbalizava. E eu, no outro dia, chegava e tava lá... uma baita prova. ‘Minha

nossa, não decorei nada para essa prova’, pensei. E ela tinha avisado no dia anterior,

mas eu não ouvi. Sou surda. E não tinha intérpretes. Isso era coisa que só existia na

igreja. Eu, por exemplo, aprendi sinais aos 19 anos na igreja. Não tinha noção de nada

até então. Meus amigos surdos me ajudaram muito. Passei a ver coisas que não via e

entender o que não entendia. Mas a escola... eu estava totalmente fora dela. Mas eu

ainda sonho com a faculdade. É muito, cara, mas um dia ainda vou estudar nela. Pena

que é dos ouvintes também. Podia ter faculdades só de surdos. Seria melhor!” (J., 34

anos).

“Sou contra a escola dos ouvintes para os surdos. Lá nós não aprendemos nada. Os

professores falam, falam, falam. E eu fico sem entender nada. É muito difícil porque

falam de intérprete mas não tem intérpretes” (C., 21 anos).

“Este sinal de INCLUSÃO eu não entendo. É muito complicado, porque parece que os

ouvintes estão acima dos surdos. O que é a palavra INCLUSÃO? Eu não entendo o

significado, mas sei que é ruim, porque o surdo não pode ficar com o ouvinte na mesma

escola. Não há intérpretes!” (L., 48 anos).

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“Eu precisei ir para a escola do ouvinte, porque lá tem seriação. Mas, se eu pudesse,

preferiria a escola dos surdos. Uma escola melhor, com sinais. Eu teria muito que

estudar. Teria conteúdo. Eu fico até confuso: a escola do surdo tem surdo mas não

pode fazer sinais. A escola do ouvinte não têm surdos e pode fazer sinais. Mas eu vou

fazer sinais com quem? Então não pode sinais em nenhum dos dois! É muito difícil para

o surdo. É muita confusão. Seria mais fácil escolas para surdos e escolas para

ouvintes. Por que misturar? O Governo não quer é pagar intérpretes” (C., 23 anos).

“A Escola dos ouvintes acaba com a cultura surda. O surdo fica sozinho. Antigamente a

escola batia nas mãos dos surdos, mas nem isso acabou com eles, com o ser surdo. Eu

fiquei triste, quando eu vi muitas crianças que não sabiam sinais na escola dos

ouvintes. O que vai fazer com elas? Como essas crianças serão no futuro? Coitadas,

vão ser ignorantes. Não sabem que são surdas” (E., 22 anos).

“Na escola dos surdos não tem matéria. Mas na escola dos ouvintes tem matéria e não

tem cultura surda. É preciso juntar os dois: matéria e cultura surda” (S., 24 anos).

Por acreditar na clareza das narrativas dispostas sobre a inclusão, pretendo chamar a

atenção para alguns recortes delas e alguns pontos convergentes e divergentes.

As falas dos surdos contam experiências muito interessantes com a inclusão. Alguns

apenas refletiram sem contar de si próprios. Eu, particularmente, iniciei meu trabalho na

educação dos surdos na perspectiva de seu processo educativo ocorrer na sala de aula

do ouvinte.

A tradução literal para o termo “escola regular” da língua de sinais para o português é

bem interessante: “escola do ouvinte”. Todos os surdos utilizam essa expressão em

língua de sinais para designar a escola onde seria o espaço que deveria ocorrer a sua

inclusão.

Bem interessante observar também que os surdos narram suas experiências nas

“escolas dos ouvintes”, sem realmente conhecer o sinal da palavra INCLUSÃO, tão

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comumente utilizada no meio acadêmico e escolar, principalmente. Apesar de a palavra

INCLUSÃO ter um sinal correspondente na língua de sinais, foi traduzida na seguinte

expressão: “surdos misturado com ouvintes nas escolas dos ouvintes”.

O sentimento de pertença a esse grupo da escola dos ouvintes não existe por parte dos

surdos. Muitas desconfianças, muita descrença e a possibilidade de estar só são

fatores muito negativos que os surdos cultivam em relação a esse movimento da

política educacional.

Vale ressaltar que o surdo que já conhecia o sinal da palavra INCLUSÃO se perguntou

sobre os significados dela. E, até hoje, essa palavra tem produzido sentidos quando

entra em ação nas políticas públicas que vêm se construindo ao longo dos anos: surdos

misturados aos ouvintes. Pelo menos uma geração de surdos já tem se perdido em

meio a tanta discussão e pouca realização pedagógica de fato.

Principais documentos, livros sobre inclusão são verdadeiros manuais de dicas para o

professor da sala de aula considerado “despreparado” para atender os alunos surdos

que, porventura, aparecerem por lá e ele aceitar essa criança ou esse adulto com

“deficiência auditiva”.

A discussão sobre a inclusão na educação dos surdos vem acontecendo no território da

educação especial, corroborando a lógica e a ordem do discurso da deficiência auditiva,

da cura para esse problema, causas, etiologia da surdez, diagnósticos, audiometrias

etc.

Inclusive, o livro I da série “Atualidades Pedagógicas – Deficiência Auditiva” (no formato

digital) - define a deficiência auditiva como:

Denomina-se deficiência auditiva a diminuição da capacidade de percepção normal dos sons, sendo considerado surdo o indivíduo cuja audição não é funcional na vida comum, e parcialmente surdo, aquele cuja audição, ainda que deficiente, é funcional com ou sem prótese auditiva. [...] deficiência auditiva pode ser classificada como deficiência de transmissão, quando o problema se localiza no ouvido externo ou médio (nesse caso, o prognóstico costuma ser excelente);

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mista, quando o problema se localiza no ouvido médio e interno, e sensorioneural (neurossensorial), quando se origina no ouvido interno e no nervo auditivo. Infelizmente, esse tipo de surdez em geral é irreversível. A surdez condutiva faz perder o volume sonoro: é como tentar entender alguém que fala muito baixo ou está muito longe. A surdez neurossensorial corta o volume sonoro e também distorce os sons. Essa interpretação descoordenada de sons é um sintoma típico de doenças do ouvido interno

Além de definir, classifica a surdez e coloca algumas de suas conseqüências como

“sintomas de doença típica”.

Um manual não publicado, produzido por um laboratório pedagógico na Rede Municipal

de Educação da Prefeitura de Vitória, tinha como objetivo, orientar professores

desavisados e, geralmente, já desesperados com a possibilidade de ter um surdo em

sua sala de aula. Um aspecto relevante são as orientações quanto à sala de aula, por

exemplo, uma das mais clássicas: “Sentar o aluno na primeira cadeira para que ele

possa ler os lábios da professora e ainda que seu rosto possa permanecer numa parte

da sala mais iluminada par que o aluno surdo possa enxergar os lábios bem.” Essa é

uma de várias prescrições em que a idéia da leitura dos lábios, como possibilidade de

acompanhamento, vem iludindo os professores no dia-a-dia.

Para corroborar tal afirmação, Botelho (1999, p. 154) afirma que:

[...] é a menos consistente das possibilidades de comunicação para pessoas surdas. Somente 30% dos sons da língua inglesa são visíveis nos lábios e 50% são homófonos [...] (Gaulladet College, 1984; tradução da autora). Mas muito freqüentemente suas possibilidades são superestimadas e os limites recusados.

Por isso, as prescrições criam, em torno das relações professor-aluno surdo, alguns

constrangimentos como: a plena certeza do professor de que o aluno está entendendo

tudo que ele diz ou o próprio aluno finge que está entendendo para não causar

transtorno. Por ocasião de uma visita feita a uma escola regular no município em que

atuo, lembro-me bem de um fato: uma professora dizer que estava tudo bem com ela e

com o aluno surdo porque ele compreendia tudo o que ela dizia pela leitura dos lábios.

Ao conversarmos com esse aluno, minha colega de trabalho e eu percebemos que ele

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não compreendia e, perto da pedagoga e da diretora, sutilmente o desmascaramos

quando fizemos uma pergunta: “Qual é a data do seu aniversário?”. A resposta não se

dava com apenas uma balançar de cabeça, como ele fez. A professora ficou uma

semana chocada: “Então significa

que ele nunca me entendeu? E o

conteúdo? Como fica?”

Skliar (2006) corrobora esse

pensamento, quando afirma que

não concorda com o tipo de

formação que prepara a escola ou

o professor para “acolher” o outro

deficiente. Geralmente, essas

formações, segundo o autor,

conservam intactas as mesmas

estratégias, as mesmas

informações e as consideram

invenções, estereótipos, traduções

e fixações da alteridade.

São modos de coloniais que se referem ao outro, seja quem fosse esse outro, impunemente, como outro incompleto, insuficiente, que deve ser corrigido- ao mesmo tempo em que é definido como incorrigível-, pois está mal, está equivocado em ser aquilo que é (SKLIAR, 2006, p. 32).

Lunardi (2003) discorre, em sua tese de doutorado, sobre a produção da anormalidade

surda no discurso da educação especial. A autora parte da premissa de que conceitos

estereotipados sobre a deficiência auditiva são construídos nos discursos da educação

especial.

Segundo a autora, a escola tem na educação especial um terreno fértil como espaço de

escrutínio, de diagnóstico, de observação constante. Inclusive o ritual do exame não é

Figura 12: Arte de Chuck Baird Fonte: http://www.chuckbaird.com

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estranho, porque “[...] como mecanismo disciplinar produziu uma maquinaria de controle

que funcionou como um laboratório de observação e registro de anormalidades” (p. 31).

Diferente da estratégia da invisibilidade, a educação especial traça uma outra

estratégia, tendo em vista que não foi possível extinguir a língua de sinais para os

surdos serem beneficiados. Por isso, aponta a necessidade de colocar esses sujeitos

num estado de visibilidade constante. Diagnósticos, anamneses, “etiologia da surdez”,

níveis da perda de audição, graus e tipos de perdas da audição, tudo isso captura a

impossibilidade do ser, do sujeito surdo, ao limitar suas fichas de acompanhamento a

descrições deficientes sobre si. Esse estado de constante vigilância causa o

estranhamento por parte dos próprios surdos nesse processo.

A escola regular (dos ouvintes) se apropriou desse tipo de descrição (já que faz parte

dos manuais do MEC) e forma de lidar com a “doença surdez”, a fim de construir

possibilidades de vigilância da anormalidade surda e incorporar seu corpo anormal, não

mais na norma (ser ouvinte), mas na ordem do discurso da diversidade, já que não

poderia exterminar a surdez.

O discurso da diversidade busca a minimização da deficiência automaticamente. São

termos relacionados nesta ordem discursiva pautada na oposição binária: inclusão

versus exclusão. Skliar (2006, p. 29) afirma suspeitar do termo “diversidade”. Essa

palavra, segundo o autor, “[...] confere um perfume às reformas educativas e implica

uma rápida e pouco debatida absorção em alguns discursos igualmente reformistas”.

Esse termo, um eufemismo, aparenta, para o autor, uma forma ligeira,

descompromissada de descrever as culturas, as comunidades, as línguas, os corpos,

as sexualidades, as experiências de ser o outro no interior das escolas. Skliar ainda

recorre a Bhabha (1994) para definir que o termo “diversidade” implica uma forma de

remanso, de calma, que mascara as diferenças.

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O termo “diversidade” emerge muito mais com o nosso conceito de solidariedade, de

tolerância ao hospedar o outro em nosso meio. Isso pode trazer um problema, já que

depende da minha aceitação para o outro emergir, entrar.

Skliar (2006) ainda diz que a inclusão, como afirma Foucault (2000), é um mecanismo

de controle populacional e/ou controle individual:

[...] o sistema que exercia o seu poder excluindo, e tem se tornado agora cego àquilo que acontece lá fora- e já não pode controlar com tanta eficácia-, se propõe a fazê-lo por meio da inclusão ou, para melhor dizer, mediante a ficção da promessa integradora (SKLIAR, 2006, p. 28).

Uma das maiores questões apontadas pelos narradores, que os fazia, inclusive, ficar

confusos, era justamente a questão do currículo. Devido ao próprio desejo que os

surdos apontavam em estudar os conteúdos, ter disciplinas “mais difíceis” e não

infantilizadas, a “escola dos ouvintes” acabava se tornando uma boa solução, porém se

deparavam com práticas segregativas dentro da própria escola, por exemplo, separar

surdos de uma mesma sala de aula em nome da inclusão.

Lembro-me bem de um episódio em que uma escola de ensino noturno foi atingida

pelas armas do sistema e da política de inclusão. Há alguns anos, enquanto era tempo

de matrículas, abriram uma nova turma de 5ª série e três ou quatro surdos foram os

primeiros a se matricular no ensino noturno. Ao chegarem à sala, quando os

professores se deram conta de que era uma sala composta pelos três ou quatro surdos,

ficaram desesperados. Logo correram para chamar o intérprete. Inclusive, a fala de um

professor foi: “Como ignorá-los? Mesmo que sejam quatro, mas misturados aos

ouvintes, a gente finge que não vê. Mas só eles ali? O que posso fazer?”.

As professoras especialistas que estavam atuando naquela ocasião tinham uma visão

sobre os surdos muito interessante, pois acreditavam que eles faziam parte de uma

comunidade e por isso a necessidade de estarem juntos era imanente. Não durou muito

tempo, já havia sete surdos nessa turma e apenas alguns ouvintes. Os professores

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começaram a achar interessante essa turma. Isso facilitava o trabalho deles porque

tinha menos intérpretes do que salas de aula para interpretar. Porém, o sistema, em

nome da inclusão, chegou na escola e distribuiu os surdos nas duas 5ª séries: ‘A’ e ‘B’.

A revolta se instalou entre os surdos: “Porque separam os surdos e não separam os

ouvintes? Eles estão distribuídos porque são em número expressivo. Mas nós? Nós

somos poucos”. Esse é um exemplo de uma fala corrente entre os surdos.

Porém, mesmo com todos os percalços inerentes a esse processo, surge um

sentimento de nostalgia, uma “saudade de casa”, um constante retornar à “escola dos

surdos” que nunca foi dos surdos, mas dos terapeutas, dos especialistas. Todavia o

sentimento de pertença a esse lugar é muito mais forte do que à escola dos ouvintes,

apesar das vantagens dela. Daí a confusão que o narrador coloca, ou seja: uma tem

conteúdo, a outra tem vida!

Outra colocação dos narradores é um fato real nas “escolas dos ouvintes”: a construção

de estratégias de sobrevivência nesse espaço.

Essas estratégias nascem da necessidade de compreensão, principalmente lingüística,

num lugar estrangeiro. A posição diaspórica em que se encontra o sujeito surdo no

lugar do outro o torna um estranho diante da normalidade.

J. (34 anos) e F. (33 anos), ao relatarem suas peripécias escolares, contam coisas

parecidas: aprendem o que é concreto e vivem como dá. Copiam tudo do colega a fim

de chamar menos atenção possível. Essas falas representam a realidade dos surdos na

escola dos que ouvem. Copiar a matéria do colega, manter o caderno em dia, para não

serem taxados, ser café-com-leite nas avaliações dos professores. Enfim, o surdo

passa por essas situações para transformar em habitável, o espaço que lhe foi dado.

Os surdos se sentem como que tivessem um visto temporário de passagem por aquele

lugar. E essas situações fazem com que, quanto mais parecidos com o bom aluno, mais

aceitos são.

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A exigência nessa política não é mais a oralidade como obrigação da escola. Quando o

MEC assume o bilingüismo, a oralidade fica a cargo dos atendimentos feitos em sala de

recursos ou até mesmo em outros ambientes, como na fonoaudióloga. Porém a

normalização agora se dá no que tange ao comportamento de bom aluno

excessivamente cobrado para que a ordem seja mantida. Isso faz com que os surdos

busquem alternativas para satisfazerem a norma.

O mais interessante é que, ao entregar as atividades prontas, tem minimamente um

sorriso do professor em troca, mas nunca um questionamento da real aprendizagem

desse aluno surdo. Como se isso já bastasse para ele. E assim ele continua cada vez

mais avançando no ensino fundamental e, quando chega ao ensino médio, não sabe

escrever bem, muito menos ler. Torna-se aí um aluno com “necessidades especiais”,

defasado em relação aos ouvintes (até mesmo na relação idade/série).

Quando as reivindicações dos surdos se tornam realidade e intérpretes são

disponibilizados, outras problemáticas surgem: qual o papel desse intérprete na sala de

aula? Geralmente, pela própria situação aqui colocada, os surdos já estão defasados

no conteúdo e o intérprete. Quando vai interpretar as aulas do professor, geralmente

encontra o surdo problemas em relação ao conteúdo, porque ele não tem base anterior

para entender aquela explicação. Vale lembrar que o papel do intérprete é passar em

Libras aquilo que o professor fala em português.

Porém toda a aula é voltada para os ouvintes. Todos os exemplos fazem parte do

cotidiano do ouvinte. Toda a aula é em língua de fronteira (como afirma Perlin, 2003) e

o intérprete acaba compelido a explicar os exemplos utilizando o próprio surdo como

referência, muitas vezes, intérpretes dando aulas paralelas.

Ainda temos a situação do surdo que não sabe Libras. A escola dos ouvintes não dá

conta da aprendizagem da língua de sinais pelo surdo. E isso é um agravante à

situação de estrangeiro vivenciado pelo surdo na escola, já que sua condição lingüística

é peculiar.

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O surdo, na maioria dos casos, não chega à escola com uma língua constituída, porque

sua família, além de não conhecer a língua de sinais, muitas vezes é até orientada a

não utilizá-la com seus filhos surdos, pelos médicos, que são o primeiro contato dessa

família. Para completar essa avalanche de situações vivenciadas pelo surdo, colocam-

se intérpretes na sala de aula acreditando que a inclusão está completada. O intérprete

é um paliativo muito importante para a construção de políticas que visem a outras

possibilidades de se fazer a inclusão. É um profissional imprescindível nos anos finais

do ensino fundamental, no ensino médio e na educação de jovens e adultos. Mas, para

que essa realidade possa ter uma chance de vir a funcionar, na educação infantil e nos

anos iniciais do ensino fundamental, os surdos precisam ter uma educação bilíngüe de

qualidade com seus pares, a fim de aprender Libras, acompanhar os conteúdos da

escola e não precisar repetir séries, muito menos vivenciar constrangimentos na sala de

aula, como os relatados. Ainda assim, há complicações quando trato da questão do

intérprete de língua de sinais.

Algumas implicações quando ocorre a inclusão dos surdos na “escola dos ouvintes” são

levantadas por Perlin e Quadros (1997). Dentre elas, vou elencar algumas.

a) Implicações lingüísticas e educacionais

Como a escola inclusiva pode garantir a aquisição da língua de sinais de forma

espontânea, natural, pela medicação do outro? Na escola inclusiva (escola dos

ouvintes), os surdos, quando há um trabalho sistematizado, aprendem uma língua de

sinais de uma maneira não espontânea, nas relações. Muitas vezes esse surdo nem se

identifica como surdo por nunca ter visto um outro surdo.

Com todo um currículo de disciplinas e conteúdos passados em língua portuguesa oral

e escrita, como posso garantir o acesso aos alunos surdos à língua portuguesa?

“Ademais, se a escola inclusiva não está conseguindo garantir a aquisição da primeira

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língua, a língua de sinais, como ela poderá garantir o processo de aquisição do

Português que é uma segunda língua para surdos, sem uma primeira língua?” (p. 37).

Como a escola garante profissionais competentes nas duas línguas: língua portuguesa

e língua de sinais?

Sem contar com a minimização dos conteúdos, afinal, como afirmam Perlin e Quadros

(1997), em uma pesquisa, 80% dos professores disseram que simplificam os conteúdos

para os alunos surdos, o que, segundo as autoras, não é uma surpresa, já que o

conhecimento não está sendo veiculado numa língua conhecida. O próprio MEC dá

orientações para as adaptações curriculares:53

Consistem essas adaptações em: a)adequar os objetivos, conteúdos e critérios de avaliação, modificando-os de modo a considerar, na sua consecução, a capacidade do aluno em relação ao proposto para os demais colegas; priorizar determinados objetivos, conteúdos e critérios de avaliação; b)dar ênfase a objetivos concernentes à(s) deficiência(s) do aluno não abandonando os objetivos definidos para o seu grupo, mas acrescentando aqueles relativos às complementações curriculares específicas, para a minimização de suas dificuldades e desenvolvimento do seu potencial; c)mudar a temporalidade dos objetivos, conteúdos e critérios de avaliação de desempenho do aluno em língua portuguesa, na modalidade escrita - considerar que o aluno surdo pode alcançar os objetivos comuns do grupo, em um período mais longo de tempo. Desse modo, deve-lhe ser concedido o tempo necessário para o processo ensino-aprendizagem e para o desenvolvimento das suas habilidades, considerando a deficiência que possui. Por meio dos critérios de avaliação correspondentes, pode-se verificar a consecução dos objetivos propostos ao longo do ano letivo, ou pelo período de duração do curso freqüentado pelo aluno.

Além de orientar que os surdos devem ter conteúdos voltados à sua deficiência,

acrescentam que as seguintes premissas devem ser observadas tanto nas adaptações

curriculares e avaliativas, como nas formas de apoio destinadas ao aluno surdo:

a) partir sempre de uma avaliação médico-psicopedagógica e de um estudo-de-caso do aluno que orientem para um encaminhamento adequado às suas necessidades especiais; b) buscar ao máximo um processo educativo pautado no princípio da normalização, ou seja,

53 BRASIL, MEC/SESSP. Programa de capacitação de recursos humanos do ensino fundamental: a educação dos surdos. Série Atualidades Pedagógicas, Brasília, v. II, n.º 4, V. II, 1997b (aqui no formato digitalizado encontrado no site: www.ines.org.br).

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pautado no currículo regular; c) evitar o afastamento do aluno das situações normais da ação educativa e do seu grupo de colegas, assegurando uma educação mais normalizadora; d) criar um ambiente favorável à aprendizagem do aluno e a sua integração escolar.

Ou seja, partir da posição clínica, produz no processo educativo uma função muito mais

normalizadora. Todas essas orientações voltadas para a regulação das escolas dos

ouvintes que hospedam os surdos criam a anormalidade surda.

b) Implicações sociopolíticas

Uma das implicações sociais está relacionada com a alteridade, isto é, a construção

social do “ser surdo”. Padden (1998) afirma que a referência do ser surdo para as

crianças está no adulto surdo. Ser surdo é uma condição social construída com os

pares. Eu sei quem sou na minha mesmidade, quando me alterizo com o outro, que é

diferente de mim, ou me identifico com quem é meu par. É comum casos de surdos que

não sabem que são surdos. Crianças que vivem como ouvintes, articulando a boca com

sons ininteligíveis, mas crendo que os outros estão compreendendo o que está

dizendo. É assim que todos se comportam, mexendo a boca constantemente. Assim

essa criança faz.

É necessário que as crianças surdas tenham contato com a comunidade surda desde

pequenas. “E então, o que a escola inclusiva prevê nesse sentido? Há participação

ativa da comunidade surda nas atividades da escola?” (PERLIN; QUADROS, 1997, p.

38). Sabe-se que isso não é previsto. A tendência é a criança surda sempre se manter

na fronteira surdo-ouvinte.

Tudo isso sem contar com a desarticulação do grupo social dos surdos, o que já foi bem

discutido nas falas dos narradores e nos diálogos com os autores.

c) Implicações culturais

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A falta de produção cultural da comunidade surda no Brasil está diretamente ligada as

duas implicações anteriores mencionadas. Na escola regular dos ouvintes, não há

espaço para manifestações culturais e artísticas desse grupo. Com isso, acaba-se

homogeneizando as expressões culturais de todos os alunos. “Como a escola pode

garantir a manifestação dessas culturas considerando as formas particulares de

expressão da pessoa surda?” (PERLIN; QUADROS, 1997, p.38).

Após tantas questões, problemáticas, denúncias, no quinto e último capítulo desta

dissertação, encerro a última parte do manifesto e apresento as propostas de uma

educação que os surdos pensam ser melhor, que as narrativas surdas apontam como

possibilidades de outras perspectivas inclusivas, de outras formas de construir políticas

educacionais para os surdos.

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Quinto capítulo:Quinto capítulo:Quinto capítulo:Quinto capítulo:

As narrativas surdas: o que pensamos ser

melhor na nossa educação?

“Nada facilita mais a memorização das narrativas que aquela sóbria concisão que as salva da análise psicológica. Quanto maior a

naturalidade com que o narrador renuncia às sutilezas psicológicas, mais facilmente a história se gravará na memória do ouvinte, mais

completamente ela se assimilará à sua própria experiência e mais irresistivelmente ele cederá à inclinação de recontá-la um dia”.

Walter Benjamim

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5.1 AS PROPOSTAS EDUCACIONAIS DOS NARRADORES SURDOS

Para além das críticas e das denúncias, os narradores apontam caminhos possíveis

para uma outra inclusão desses sujeitos no sistema educacional atual.

No cenário nacional atual, onde

contamos com a Lei n° 10436/02 e o

Decreto n° 5626/05, que dispõem,

oficialmente, sobre a língua de sinais

brasileira, podemos perceber um avanço

nas políticas lingüísticas com a

aceitação da língua de sinais nos

espaços sociais diversos. Essa lei é o

resultado de movimentos surdos em prol

de uma educação bilíngüe de qualidade.

Porém as políticas educacionais

precisam rever seus conceitos em

relação ao que vem sendo construído

como um único conceito de inclusão. As políticas lingüísticas nos falam de outras

possibilidades de se fazer inclusão.

Por isso, aqui encerro um dos meus maiores objetivos: relacionar as narrativas surdas

capixabas à construção de possibilidades diferentes de fazer a educação e de pensar

outras práticas e políticas inclusivas. A escola regular ainda é um espaço possível, mas

são necessárias outras arquiteturas, outros mecanismos, outras políticas.

Figura 13: “White Lily” de Chuck Baird Fonte: http://www.chuckbaird.com

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5.1.2 E por fim propomos em nosso manifesto...

Manifesto da Comunidade Surda (26/09/2005)

• Principalmente que não decidam por nós, sem nós. Porque falar de surdos sem que estejamos presentes? • A concepção clínica sobre a surdez nos coloca numa situação de desvantagem com relação aos ouvintes, nos classificando por graus de decibéis e assim criando rótulos e prescrições médicas travestidas de práticas pedagógicas. Não aceitaremos mais ser categorizados por graus de decibéis muito menos que as práticas pedagógicas sejam construídas nesta direção. Somos pessoas que com diferenças e não deficiências. • Pelo direito de toda criança surda aprender a língua de sinais. • Pelo direito de levar a informação a todos os envolvidos com os surdos, incluindo as famílias. Por um sistema de saúde que possa dar as devidas orientações aos pais pois estes profissionais são os que mais proporcionam percepções erradas aos familiares sobre quem é o surdo. • Que a lei seja cumprida pois ela já prevê que os cursos de licenciatura em geral e os ligados à saúde (como o de fonoaudiologia) possam ter em sua grade curricular a LIBRAS. • Que haja uma profissionalização adequada ao surdo uma vez que este deverá ser inserido no mercado de trabalho pois os subempregos são reservados aos surdos pelo desconhecimento de suas capacidades e potencialidades. • Por uma política pública de real reconhecimento de nossa comunidade.

Na “roda de conversas”, o debate sobre essa educação foi muito revelador. Os surdos

que buscavam formação para dar aulas já se viam ensinando as crianças surdas, já se

colocavam como educadores, professores não apenas de língua de sinais, mas

também dos conteúdos de 1ª a 4ª séries. Inclusive apontavam várias sugestões de

ensino da língua portuguesa e de outros conteúdos nas narrativas:

“Meu sonho é uma escola com professores surdos, com surdos aprendendo tudo em

sinais. Com intérpretes também. As crianças precisam aprender sinais” (C., 32 anos)

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“Aprender o português é tudo que quero. Português é muito importante para fazer

provas, concursos. Eu queria uma escola onde os surdos aprendessem o português

tranqüilamente. Sem problema algum” (M., 38 anos).

“Eu quero ser professora de surdos numa escola boa. Pode ser na escola dos ouvintes,

mas que seja numa sala de surdos. Como posso dar aulas numa sala mista? Por isso

não imagino como os professores ouvintes podem dar aula para surdo numa sala mista

também. Como ensinar português numa sala de surdos com ouvintes? Os surdos

precisam de ter sua sala própria, com professor que sabe Libras” (J., 34 anos).

“Penso que, no futuro, a escola dos surdos deve dar os conteúdos em Libras. Eu sou

apaixonada pela Libras. Hoje dou aula de Libras para professores e para as crianças.

Mas queria trabalhar os conteúdos. Todas as crianças devem aprender Libras. É o que

diz a lei. Eu fico muito feliz. Para que elas não passem pelo que passei para chegar

aqui onde estou. E nada de surdos com ouvintes misturados. É melhor que os surdos

fiquem juntos. Eles também precisam conversar e aprender os conteúdos de forma

profunda. E outra coisa, com os sinais se aprende muito mais o português” (M., 24

anos).

“Libras como L1 e português como L2, isso é que deve ter na escola dos surdos

futuramente. E eu serei professor” (C., 40 anos).

“Eu quero que, na minha cidade, tenha uma educação melhor para as crianças surdas.

Eu fico triste ao vê-las jogadas nas escolas dos ouvintes” (C., 23 anos).

Essas falas apontam propostas diretas sobre como os surdos deveriam ser educados,

de acordo com os narradores. Com a perspectiva de atrelar as narrativas surdas às

narrativas da educação e das políticas para surdos, alguns pontos podemos observar

no conjunto de todas as histórias, para traçar um perfil de uma política possível.

Antes de apresentarmos os pontos convergentes, vale ressaltar uma tentativa muito

interessante de relacionar as narrativas surdas com o movimento educacional, antes

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mesmo de a lei ter sido aprovada. Há uma proposta de educação escrita pela

comunidade surda em face do pré-congresso ao V Congresso Latino-Americano de

Educação Bilíngüe para surdos, realizado em Porto Alegre, nos dias 20 a 24 de abril de

1999, com vistas a uma revisão, pois oito anos se passaram e já é possível notar

algumas mudanças nesse cenário.

Entretanto, nesse documento, encontramos várias solicitações, entre elas, a

necessidade do reconhecimento da cultura surda, da identidade surda nas práticas

educativas e do reconhecimento da língua de sinais. Nessa época, a língua de sinais

era ainda uma língua marginal, foi reconhecida em 24 de abril de 2002, pela Lei n°

10.436, e regulamentada pelo Decreto n° 5.526, de 2 2 de dezembro de 2005 (ambas

em anexo).

No documento, dentre todas as solicitações, os surdos apontam a necessidade de uma

escola de surdos, com uma educação voltada aos princípios culturais, tornando-se um

centro de encontro dos surdos entre si.

Abaixo, alguns pontos do referido documento:

A ESCOLA DE SURDOS

25. Elaborar uma política de educação de surdos com escolas específicas para surdos.

26. Considerar que a escola de surdos é necessária e deve oferecer educação voltada para princípios culturais e humanísticos, promovendo o desenvolvimento de indivíduos cidadãos e sendo um centro de encontro com o semelhante para produção inicial da identidade surda.

27. Enfatizar a urgência da criação de creches e escolas de ensino fundamental e ensino médio para a população de surdos da capital e interior. Devem ser criadas mais escolas de surdos nos municípios e na capital, se possível centralizando estas escolas nos municípios pólo.

28. Articular as várias escolas de surdos, criando espaço de discussão a fim de qualificar a educação de surdos.

29. O ensino dos surdos que precisam de apoio visual para se comunicar não deve ser incluído nas listas de inclusão na educação infantil, ensino

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fundamental, e ensino médio. Eles precisam do suporte que somente a escola de surdos pode dar.

30. Implementar ensino para surdos adultos nas escolas de surdos. Ampliar as escolas de surdos com oferta de escola noturna para surdos. Criar e ampliar o ensino a surdos adultos, visto que há uma população surda analfabeta, com baixo nível escolar ou que abandonou a escola por não conseguir acompanhar conteúdos ou, ainda, por necessitar de uma educação de melhor qualidade.

31. Solicitar informação visual e/ou legendada nas escolas de surdos, como também a instalação de sistema luminoso na campainha.

32. Propor o fim da divisão por etapas nas séries iniciais para surdos: 1ª série 1ª etapa, 1ª série 2ª etapa, etc.

33. Revisar o papel das clínicas junto às escolas de surdos no sentido de que a educação do surdo não seja clínica.

34. Considerar que as escolas de surdos devem ter intérpretes em todos os eventos e para os momentos de diálogo com a família de pais surdos e entre familiares ouvintes e filhos surdos.

AS CLASSES ESPECIAIS PARA SURDOS

Se não houver escolas de surdos no local e for necessário programa de surdos à distância com classes especiais para surdos ou em municípios pólo, a comunidade a comunidade surda recomenda que:

35. Nas classes especiais, que os surdos não sejam tratados como deficientes, mas como pessoas com cultura, língua e comunidade diferente.

36. Seja incentivado, mostrado e estimulado o uso da língua de sinais pelo surdo, indo ao encontro de seu direito de ser e de usar a comunicação visual para estruturar uma língua de sinais coerente.

37. A aquisição da identidade surda seja considerada de máxima importância, tendo em vista que a presença de professor surdo e o contato com a comunidade surda possibilitam ao surdo adquirir sua identidade.

38. Sejam introduzidas palestras sobre cultura surda nas escolas com classe especial para surdos.

39. Garanta-se atendimento adequado nas escolas onde há classe especial de surdos no sentido de acabar com sentimentos de menos-valia e que os surdos recebam ensino adequado.

40. Implantem-se sistemas de alarme luminoso, cabinas de telefone tdd ou fax em escolas com classe especial de surdos.

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41. Promova-se a criação um banco de dados sobre a situação dos direitos dos surdos, bem como sobre sua cultura e história, visando a promoção da identidade surda na escola com classe especial.

42. Apoie-se a definição de ações de valorização da comunidade e cultura surda na escola com classe especial.

43. Trabalhe-se com os surdos e suas famílias no sentido de que a família adquira a língua de sinais.

44. Seja implantado um Programa de pais garantindo o acesso a informação e assessoramento adequados.

Esse documento é um resumo das diversas narrativas dos movimentos surdos da

época. Mostra que as questões surdas são amplamente discutidas pela comunidade

que são resistentes às questões clínicas que permeiam as representações ouvintistas,

porém essa resistência propõe novas formas de incluir os surdos.

Os pontos que resumem as narrativas surdas capixabas, recortadas por ocasião desta

pesquisa, serão dispostos a fim de ser mais bem debatidos posteriormente em

trabalhos futuros. Porém já mostram apontamentos de políticas inclusivas que

acomodam, em seus discursos, as narrativas dos surdos capixabas:

a) A valorização da língua de sinais como a primeira língua do surdo

Este ponto é debatido em todo o trabalho, mas ressalto aqui a existência de uma

política em que a língua de sinais é submetida às práticas oralistas ou até mesmo em

que fica à revelia da língua portuguesa como um subproduto ou, ainda, com afirma

Skliar (1998), em que é usada para alcançar a língua portuguesa e depois ser

descartada.

As políticas devem prever, em sua construção, quando este for o quesito, o perfil dos

profissionais que irão atuar com os surdos. Esses profissionais devem saber língua de

sinais com fluência e, principalmente, pela própria condição da lei, contratar professores

surdos ou instrutores na falta deste. É preciso zelar pela formação desses profissionais

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e de todos os professores nesse sentido. E, ainda, conscientizar-se de que zelar pela

formação não é apenas oferecer cursos de Libras, mas estudos, pesquisas a todos os

profissionais envolvidos, direta ou indiretamente, com os surdos. Os cursos de Libras

são fundamentais; mas não são a solução. Deve haver uma continuação de uma

formação que vise à prática pedagógica do professor na sala de aula com alunos

surdos.

b) A não infantilização do conteúdo: um currículo acessível

Na construção de práticas e de políticas, esse ponto é fundamental. Os surdos estão

cobrando da escola a aprendizagem dos conteúdos que a sociedade demanda para a

inclusão de seus membros. Nas narrativas, essa reivindicação se dá pela revelação

constante da infantilização e adaptações curriculares desnecessárias confundidas com

diminuição dos conteúdos.

Nas escolas dos sonhos dos narradores, eles aprendem os conteúdos como os

ouvintes, ao mesmo tempo e em língua de sinais. Ainda há muito debate na questão

curricular, porém temos que ter bastante cautela no quesito das adaptações

curriculares, devido ao fato de serem pensadas para os surdos como conteúdos

aplicados de forma simplificada. Não pode ser esse o objetivo do trabalho. O que pode

ser construído, quando pensamos nas narrativas surdas, são salas regulares de ensino

fundamental onde a língua de sinais seja a língua de instrução. Não salas especiais,

muito menos escola especial. Salas regulares ou escolas regulares de surdos.

Nós acreditamos que a educação dos surdos, na verdade, deva acontecer em uma escola regular de ensino que apresenta uma peculiaridade: a língua utilizada para difundir conhecimento é a língua de sinais, no caso do Brasil, a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS). Além disso, essa escola estará atendendo a uma comunidade que possui história e cultura e que tem sua própria forma de expressão (PERLIN; QUADROS, 1997, p. 36).

A própria Declaração de Salamanca (1994) aponta esse atendimento específico

necessário ao surdo:

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Políticas educacionais deveriam levar em total consideração as diferenças e situações individuais. A importância da linguagem de signo como meio de comunicação entre os surdos, por exemplo, deveria ser reconhecida e provisão deveria ser feita no sentido de garantir que todas as pessoas surdas tenham acesso a educação em sua língua nacional de signos. Devido às necessidades particulares de comunicação dos surdos e das pessoas surdas/cegas, a educação deles pode ser mais adequadamente provida em escolas especiais ou classes especiais e unidades em escolas regulares.

c) A relação surdo-surdo: a constituição das marcas culturais

Os surdos precisam estar juntos uns com os outros para estabelecer uma relação

lingüística e cultural necessária. Com os surdos juntos, as possibilidades de construção

de políticas educacionais são mais interessantes para o grupo, afinal, visam ao

fortalecimento dos marcadores culturais dos surdos na escola. Percebe-se que a

grande desconfiança dos narradores, em relação à “escola dos ouvintes”, reside na

separação dos surdos entre si, na exclusão que o surdo vivencia nas fronteiras

lingüísticas e culturais com os ouvintes.

A subjetividade surda foi um tema debatido com os narradores. A maior dificuldade das

escolas de ouvintes hoje é pensar políticas que dêem conta de agrupar esses surdos

mesmo em escolas regulares. As escolas de ouvintes não estão preparadas para esse

novo momento, nem os professores. Por isso, faz-se necessário pensar em formação e

trabalho colaborativo.

Trabalhando em prol dessa

subjetividade e na construção de

possibilidades de encontro surdo-

surdo, conserva-se, nesse grupo,

uma identidade de povo, um

sentimento de pertencimento de um

grupo.

Não negamos a possibilidade de o

Figura 13: “Blooming” de Chuck Baird Fonte: http://www.chuckbaird.com

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surdo conviver com o ouvinte e a importância dessa convivência. Porém, para uma

educação que se proponha inclusiva, o aspecto de o surdo estar com o outro surdo é

fundamental para a constituição de suas identidades, de sua identificação com a

comunidade surda, também para valorizar as produções culturais peculiares a esse

grupo.

Uma possibilidade que vem sendo já utilizada como política, em vários Estados do

Brasil, é a construção de escolas-pólo para os surdos onde há salas regulares

bilíngües, em que a língua de instrução é Libras e onde os surdos de 5ª a 8ª séries

utilizam o intérprete na sala de aula. As interações com os ouvintes ocorrem em aulas

específicas. Essa é uma forma que vem sendo aplicada como possibilidade de manter

o surdo na escola regular dos ouvintes, porém na busca de uma perspectiva de

inclusão bilíngüe.

É fundamental pensar nas salas bilíngües para que os surdos tenham acesso ao

conteúdo com a língua de sinais como língua de instrução. Mesmo com o intérprete na

sala de aula, a língua de instrução é a língua portuguesa e o surdo sempre ficará

fadado a conviver com as traduções que, por mais que representem o original, não o é.

d) A busca por uma pedagogia visual e bilíngüe

Neste ponto, para finalizar, vou me remeter ao assunto que Perlin (2006) denomina da

“Pedagogia Surda”, como um campo novo que teoriza as ações e práticas possíveis,

pautadas nas narrativas surdas. As narrativas subseqüentes indicam sugestões de

práticas apontadas pelos narradores surdos para serem trabalhadas com os alunos

surdos. Essas sugestões são fundamentais para compreendermos a natureza das

práticas visuais e bilíngües, que são a base da Pedagogia dos surdos.

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5.2 PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NAS FALAS DOS NARRADORES

Várias sugestões de práticas pedagógicas vêm sendo dadas pelos narradores surdos,

quando apresentaram as suas propostas educativas:

“Eu dou aulas para as crianças surdas na escola oralista. Lembro de um dia, quando

uma professora ouvinte me substituiu. Eu já havia ensinado a eles que deveriam fazer o

sinal de banheiro e não ficar pegando nas partes íntimas para mostrar que queriam ir

ao banheiro. Eles aprenderam rapidinho. No dia seguinte, quando voltei para a sala de

aula, eles estavam de novo pegando nas partes íntimas. Então, expliquei novamente e

eles me disseram que a outra professora (a ouvinte) não compreendia o sinal e por isso

eles tinham que fazer o de antes para conseguirem ir ao banheiro” (M., 24 anos).

“Eu dava aulas particulares para três meninas surdas. Foi muito interessante quando

aceitei o desafio, porque lembro de ter ficado penalizada com o fato delas não saberem

Libras e estarem tão aquém no conteúdo. Comecei a ensinar os sinais das coisas,

mostrar figuras e fazer sinais, montar as palavras no alfabeto datilológico e ligar aos

sinais, fazer bingo com os nomes delas e os sinais, crachás e todas as atividades

voltadas para aprendizagem da língua portuguesa. Que delícia, hoje elas estão bem

melhores” (E., 23 anos).

“Eu penso que Matemática para surdos é muito bom. Mas os surdos precisam saber

sinais para entenderem os raciocínios lógicos. Não se pode só ensinar o concreto.

Espero, sinceramente, que a Matemática somada aos sinais e material concreto seja

parte da escola dos surdos” (F., 33 anos).

“Os surdos precisam aprender História, Geografia e Biologia. Tudo isso em sinais. E

também aprender a história do movimento surdo. Isso é importante para a identidade”

(L.,48 anos).

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5.2.1 Que é, afinal, a Pedagogia Surda?

A construção de uma Pedagogia que vise à diferença surda dentro do processo

educacional já vem tentando ser discutida em estudos, pesquisas e movimentos

surdos. A Pedagogia Surda faz parte do processo de desconstrução de conceitos

arraigados há anos sobre a surdez e a deficiência auditiva.

Essa Pedagogia incorpora em suas práticas e seus discursos, as narrativas surdas.

Diferente das teorias citadas, a Pedagogia Surda é pensada e construída por surdos,

revelando sua total relação com as narrativas e os movimentos surdos, levando em

conta a historicidade desses movimentos. Tem como base uma proposta educacional

bilíngüe em que a língua de instrução é a língua de sinais e a língua portuguesa é

adquirida como segunda língua. Sua diferença do bilingüismo se encontra na base

teórica, onde suas propostas são construídas. Enquanto o bilingüismo é pautado na

Teoria Crítica, a Pedagogia Surda se baseia nos Estudos Surdos em Educação,

ancorados nas discussões de outras bases teóricas, por exemplo, os Estudos Culturais.

Vê o surdo como um estrangeiro e não como um deficiente auditivo (essa é uma

possibilidade do bilingüismo).

De acordo com Perlin (2006), a Pedagogia dos surdos propõe questões relevantes à

maneira de pensar o surdo como sujeito de sua própria história. Essa Pedagogia traz

alguns elementos pedagógicos fundamentais para a discussão de seu lugar na

educação dos surdos. Esses elementos não esgotam a discussão, mas dão o pontapé

inicial: a) enfatizar o fato de “ser surdo”; b) conservar a identidade como povo surdo; c)

exaltar a língua de sinais; d) transmitir valores culturais; e) constituir a interculturalidade.

Quando se enfatiza o fato do “ser surdo”, ou seja, a construção de sua subjetividade,

leva-se em conta a necessidade de os surdos se encontrarem. As narrativas surdas já

justificam esse mecanismo pedagógico.

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“O surdo está sozinho. Isso acaba com a cultura surda. Na escola de surdos, há surdos

juntos, porém, a escola é oralista. Mas, na escola dos ouvintes, o surdo está sozinho.

Isso não pode” (E., 32 anos).

A exaltação da língua de sinais é fundamental, porque é a língua desse grupo. A lei que

é o ponto máximo do movimento surdo em prol de uma educação voltada para a

diferença desse grupo já vem pontuando a necessidade de a língua de sinais ser a

língua de instrução do surdo, e também o direito desse sujeito a uma educação

bilíngüe.

As falas dos narradores apontam essa necessidade. Apesar de parecer um clichê,

percebe-se, em suas narrativas surdas, o não valor que vem sendo dado, pelas

políticas públicas, ao que a comunidade surda propõe como política lingüística.

Percebemos que, ainda hoje, o profissional intérprete e o professor surdo são figuras

muito pouco conhecidas em nossa realidade, em nossas escolas e nos órgãos públicos.

Transmitir os valores culturais desse povo é levar em conta os artefatos, as produções

lingüísticas surdas, as tradições, os símbolos, as histórias etc. Tudo isso se dá, quando

a Pedagogia Surda leva em conta a historicidade desse grupo, a sua cultura e a sua

língua. Há muita produção cultural da comunidade surda, porém não valorizada pelos

ouvintes.

Por fim, quando se leva em conta a interculturalidade, marca-se a presença da língua

portuguesa como segunda língua, considerando as possibilidades de trocas entre as

diferentes culturas.

No espaço pedagógico, os discursos narrativos dos professores surdos são a favor da diferença cultural. Um exemplo remete na questão, quase sempre no referente à língua, onde interfere a aprendizagem do Português como língua que está ao lado, falada ou escrita entre grupos, nas ruas, nos jornais. A aprendizagem dessa língua sempre foi um fato desejado, porém nada fácil para os surdos (PERLIN, 2006, p. 13).

E a proposta, nesse processo intercultural, é que a língua portuguesa seja aprendida

como segunda língua, tendo a língua de sinais como primeira língua. O grupo de surdo

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é a favor dessa prática e, de fato, apresenta propostas em que há uma busca pela

língua portuguesa, porém sem jamais a língua de sinais sair de cena.

Para finalizar esta pesquisa, podemos perceber que as narrativas surdas apontam

estratégias de trabalho, propostas e possibilidades de políticas educacionais. Suas

falas deveriam ser observadas de maneira sensível, pois nos apontam caminhos

fundamentais para a construção de propostas mais inclusivas.

Não existe apenas uma tradução do movimento de inclusão atual; mas várias

possibilidades de traduções dessa política, ou seja, formas de pessoas diferentes se

inserirem de formas diferentes em diferentes cenários.

Fecho aqui esta pesquisa mostrando as possibilidades teóricas para outras. Muita coisa

acaba ficando para trás devido às nossas escolhas, aos nossos recortes, mas são

caminhos abertos para mais análises e possibilidades de mais estudo da Pedagogia

Surda, que propõem formas de ver os surdos por meio de suas narrativas.

Como maruja ou camponesa, encerro esta minha narrativa acadêmica para abrir uma

nova. Não poderia narrar outra se não terminasse esta história.

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Considerações FinaisConsiderações FinaisConsiderações FinaisConsiderações Finais

“Extra! Extra!” As narrativas surdas e as

notícias de nosso Estado

“Que estranha sociedade é a sociedade normativa. Estranha mesmo! Inclui para depois excluir, classifica para normalizar, ordena para

controlar, opera na normalidade para marcar a anormalidade.”

Márcia Lise Lunardi

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6.1 ENCERRAR O ASSUNTO? SERÁ POSSÍVEL?

Quando penso nas considerações finais, penso em dar uma “sobrevoada” no trabalho,

retomando algumas questões, na tentativa de dar uma “arrematada” final.

Mas quero aproveitar este momento para expor algumas mudanças na educação dos

surdos que já vêm ocorrendo no Estado do Espírito Santo, depois que a Lei n°

10436/02 e o Decreto n° 5626/05 foram sancionados.

Ao abrir a escrita desta pesquisa, nunca imaginava como ela terminaria. Foi um

percurso de descobertas a cada virada de esquina nesta caminhada. A cada narrativa

revista, revisitada, foram novas perspectivas se abrindo. Mesmo que já tivesse com um

mapa na mão, somente quando trilhei o caminho, percebi os atalhos, os obstáculos e

as soluções para que eles fossem transpostos.

A escolha da base teórica já estava bem definida por mim, desde o início de tudo. Já

vinha lendo os autores, como já relatei, desde tempos de Magistério, porém a

construção do objeto de pesquisa se deu com a necessidade que tinha, para a minha

própria construção política, como profissional da área. Eu tinha necessidade de revelar

as minhas conhecidas narrativas surdas para, então, propor políticas públicas no

município onde atuo no momento.54 As políticas já vêm tentando atender àquilo que

chamamos de Pedagogia Surda.

Devido à necessidade de sistematização teórica do trabalho em Vila Velha, as

narrativas surdas foram de extrema relevância para apontar caminhos nesta política

proposta. Reuniões em busca de negociações com as comunidades surdas foram

travadas, quando pudemos achar pontos de consenso e pontos de divergências.

Além disso, percebo que questionamentos e novas situações estão vindo de todos os

lados: cursos de Libras são oferecidos pelas Prefeituras aos professores; necessidades

54 Município de Vila Velha.

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de professores bilíngües no trabalho com surdos, o que acarreta falta desses

professores no mercado; uma diretora que defende a língua de sinais assumindo a

escola oralista da capital, salientando pontos de tensão entre o sistema antigo e as

novas visões; o município de Vila Velha que se propôs a trabalhar com o sistema de

escolas-pólo, criando a primeira sala regular bilíngüe, língua de instrução Libras, do

Estado para alunos surdos de 1ª a 4ª série; outros municípios tentando pensar políticas

educacionais para surdos, esbarrando na falta de profissionais bilíngües e até mesmo

na falta de cursos de formação para eles; e outros que assumiram a inclusão dos

surdos na sala com ouvintes; e ainda pontos de resistência oralista.

Em âmbito nacional, muitas vitórias vêm sendo conquistadas pela comunidade surda

com a lei de Libras e com o decreto já citados. Por exemplo: o curso Letras-Libras,

ofertado pela Universidade Federal de Santa Catarina, na modalidade à distância,

tendo nove pólos em diferentes universidades; primeiro curso de licenciatura plena para

dar aula de Libras, atendendo ao artigo que trata da formação de professores de Libras,

prioritariamente voltado para formação de professores surdos. Ainda não fomos

contemplados, em nossa universidade, mas isso é uma questão de tempo.55 Quero citar

também o PROLIBRAS,56 que aconteceu neste ano de 2007 em todas as

universidades, quando foram avaliados professores de Libras e intérpretes para uma

certificação para interpretação e para dar aulas. Tudo isso de forma que atenda às

exigências do mercado, até que as turmas se formem em Letras-Libras e comecem a

ter professores de Libras e de Português como segunda língua para surdos no Brasil.

E, claro, muitos outros debates e discussões que não cabem aqui devido ao tamanho

do documento.

Ainda contamos hoje com pesquisadores surdos que vêm construindo conhecimento

sobre surdos, sobre uma Pedagogia, sobre Lingüística, ou seja, sobre diversos campos

de estudo. Estamos iniciando esse processo e a tendência é haver mais pesquisas.

55 Fechando a versão final dessa dissertação, acrescento essa nota de rodapé confirmando que a UFES foi contemplada como pólo para abrigar o curso de graduação Letras Libras, com licenciatura (formação de professores surdos) e bacharelado (formação de tradutores/ intérpretes) no projeto de expansão da Universidade Federal de Santa Catarina. 56 Prova de proficiência em Libras ofertada pelo MEC.

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167

Já no âmbito da Universidade Federal do Espírito Santo, estamos com uma nova

construção teórica: a criação do Grupo de Estudos Surdos (GES/UFES) no Núcleo de

Ensino, Pesquisa e Extensão em Educação Especial (NEESP), que, em parceria com o

GES/UFSC, estará pensando, inicialmente, na formação de profissionais pois, como já

dito, a falta desses professores e de formação se tornou uma lacuna da educação dos

surdos no nosso Estado.

Muitas outras ações vêm sendo discutidas, porém quero registrar o momento histórico

pelo qual o Espírito Santo vem passando após anos de lutas, debates e discussões

sobre a situação educacional dos surdos. Penso que vale ressaltar a trama histórica em

que se insere esta pesquisa.

Vale dizer que esta dissertação procurou aproximar, com insistência, as narrativas

surdas e as narrativas educacionais. As narrativas surdas pensadas em outro âmbito,

pensadas como possibilidades de construção de políticas e práticas pedagógicas.

Repito: o objetivo era desvelar as histórias contadas que só quem convivia com os

surdos no meio da comunidade conhecia. Trazer à tona o que eles tanto falam em

sinais nos movimentos, nas associações e que, pelo desconhecimento mútuo das

línguas, continuava preso numa espécie de “caixa de segredos”. Mostrar que têm

sentido suas narrativas e elas desconstroem todo um aparato deficiente construído a

fim de normalizar, vigiar e operar sobre os corpos surdos. E, claro, contar outras

histórias surdas que, quando olhadas com sensibilidade, apontam soluções, muito mais

do que prescrevem. Desconstroem velhas narrativas muito mais do que impõem novas;

deslocam velhas concepções muito mais do que conservam concepções

homogeneizantes.

E foi assim que resolvi contar a minha vida: fazendo das narrativas surdas parte daquilo

que acredito e por isso defendo. Falar dessas narrativas é falar de mim, falar de coisas

que me atingiram. Confesso que me preocupei muito com a desconstrução de velhos

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olhares e de como, no meio desses escombros, novos olhares surgem. Mas não me

preocupei (e não me preocuparia de novo) em prescrever normas e padrões. Não há

repostas prontas, mas constantes diálogos.

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169

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5. BRASIL. Decreto-lei nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Diário Oficial [da]

República Federativa do Brasil , Brasília, 23 de dez. 2005. Seção 1, p. 30.

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8. BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Especial. Saberes e práticas da inclusão : dificuldades de comunicação e sinalização: surdez. 2. ed. rev. Brasília: MEC, SEESP, 2003.

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10. COUTO, Álpia. Cinqüenta anos : uma parte da história da educação de surdos.

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11. BENNINGTON, Geoffrey; DERRIDA, Jacques. Jacques Derrida . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.

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170

12. Documento: A Educação que nós surdos queremos por ocasião do V Congresso Latino Americano de Educação Bilíngüe para surdos, realizado em Porto Alegre nos dias 20 a 24 de abril de 1999.

13. FERRAÇO, Carlos Eduardo (Org.). Cotidiano escolar, formação de

professores (as) e currículo . São Paulo: Cortez, 2005. 14. FERRAÇO, Carlos Eduardo. Eu, caçador de mim. In: GARCIA, Regina Leite

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15. FERREIRA-BRITO, Lucinda. Integração social & educação de surdos . Rio de

Janeiro: Babel, 1993.

16. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder . 21. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2005.

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18. GOLDFELD, Márcia. A criança surda . São Paulo: Plexus, 2001.

19. HALL, Stuart. Identidade cultural na pós- modernidade . 2. ed. Rio de Janeiro:

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20. HOUAISS. Dicionário de língua portuguesa eletrônico. Versão 1.0. Copyright. 2001.

21. LACERDA, C. B. F.; de SOARES, F. M. R. Ser surdo ou ouvinte? Um estudo de caso sobre a construção da identidade de um aluno surdo em escola regular. In: GÓES, Maria Cecília Rafael de; LAPLANE, Adriana Lia Frizman (Org.). Políticas e práticas de educação inclusiva . Campinas: Editora Lovise, 2004. v. 1, p. 147-159.

22. LANE, Harlan. A máscara da benevolência : a comunidade surda amordaçada. Lisboa: Instituto Piaget, 1992.

23. LARROSA, Jorge. Ler é traduzir. In: LARROSA, Jorge. Linguagem e educação

depois de babel . Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

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24. LOPES, Maura Corcini. Relações de poderes no espaço multicultural da escola para surdos. In: SKLIAR, Carlos (Org.). A surdez : um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação, 1998. p. 105-121.

25. LOPES, Maura Corcini; VEIGA-NETO, Alfredo. Marcadores culturais surdos:

quando eles se constituem no espaço escolar. Perspectiva : Revista do Centro de Ciências da Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências da Educação, Florianópolis: Editora da UFSC, v. 1, n.1, 2006.

26. LULKIN, Sérgio Andres. O discurso moderno na educação dos surdos: práticas de controle do corpo e a expressão cultural amordaçada. In: SKLIAR, Carlos A surdez : um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação, 1998. p. 33- 49.

27. LULKIN, Sérgio Andrés. O silêncio disciplinado : a invenção dos surdos a partir

de representações ouvintes. 2000. Dissertação (Mestrado em Educação)- Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2000.

28. LUNARDI, Márcia. A produção da anormalidade surda nos discursos da

educação especial . 2003. Tese (Doutorado em Educação)- Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003.

29. LUNARDI, Márcia. Cartografando os Estudos Surdos: currículo e relações de poder. In: SKLIAR, Carlos (Org.). A surdez : um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação, 1998. p. 157- 168.

30. LUNARDI, Márcia; KLEIN, Madalena. Surdez : um território de fronteiras. ETD-

Educação Temática Digital. Revista Eletrônica da faculdade de Educação da Unicamp, Vol. 8, N° 1. 2006. Disponível em: <http://143.106.58.55/revista/viewarticle.php?id=99&layout=abstract>. Acesso em: 10 de jan. de 2007.

31. MANIFESTO da Comunidade Surda escrito pela comunidade surda capixaba em

26 de setembro de 2005. (não publicado).

32. MÜLLER, Ana Cláudia. Narrativas surdas : entre representações e traduções. 2002. Dissertação (Mestrado em Educação). Programa de Pós-Graduação em educação, Pontifícia Universidade Católica-Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002.

33. PADDEN, Carol e HUMPHRIES, Tom. O surdo na américa : vozes de uma

cultura. (Tradução não publicada)

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172

34. PÉREZ, Carmen, Lúcia Vidal. Cotidiano: história(s), memória e narrativa. Uma experiência de formação continuada de professoresalfabetizadoras. In: GARCIA, Regina Leite (Org.). Método : pesquisa com o cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 97-118.

35. PERLIN, Gladis. Identidade surda e currículo. In: LACERDA, Cristina Broglia Feitosa de; GÓES, Maria Cecília Rafael de (Org.). Surdez : processos educativos e subjetividade. São Paulo: Editora Lovise, 2000. p. 15 – 23.

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38. PERLIN, Gladis. O ser e o estar sendo surdos : alteridade, diferença e

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42. SACKS, Oliver. Vendo vozes : uma viagem ao mundo dos surdos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

43. SILVA, Daniele N. H. Como brincam as crianças surdas? São Paulo: Plexus,

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44. SILVA, Tomaz Tadeu. A política e a epistemologia do corpo normalizado. Revista Espaço, Informativo Técnico-Científico do I NES. Rio de Janeiro, INES, ano IV, nº 8, p. 3- 15, 1997.

45. SILVA, Tomaz Tadeu. Teoria cultural e educação : um vocabulário crítico. Belo

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46. SILVEIRA, Rosa Maria Hessel. Discurso, escola e cultura: breve roteiro para

pensar narrativas que circundam e constituem a educação. In: SILVEIRA, Rosa Maria Hessel (Org.). Cultura, poder e educação : um debate sobre estudos culturais em educação. Canoas: Ed. da ULBRA, 2005. p. 197-209.

47. SKLIAR, Carlos (Org.). A surdez : um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação, 1998.

48. SKLIAR, Carlos. A escola para surdos e as suas metas: repensando o currículo

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49. SKLIAR, Carlos. A inclusão que é “nossa” e a diferença que é do “outro”. In:

RODRIGUES, David (Org.). Inclusão e educação : doze olhares sobre a educação inclusiva. São Paulo: Summus, 2006. p. 15-34.

50. SKLIAR, Carlos. Os estudos surdos em educação: problematizando a normalidade. In: SKLIAR, Carlos (Org.). A surdez : um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação, 1998. p. 7-31.

51. SKLIAR, Carlos. Pedagogia (improvável) da diferença : e se o outro não

estivesse aí? Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

52. SKLIAR, Carlos (Org). Educação & exclusão : abordagem sócio-antropológica

em educação especial. Porto Alegre: Mediação, 1999.

53. SKLIAR, Carlos. Sobre o currículo na educação dos surdos. Revista Espaço ,

Rio de Janeiro, ano IV, n. 8, p. 38-43, 1997.

54. SKLIAR, Carlos. Um olhar sobre o nosso olhar acerca da surdez e das diferenças. In: SKLIAR, Carlos (Org.). A surdez : um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação, 1998.

55. SKLIAR, Carlos; LARROSA, Jorge (Org.). Babilônios somos: a modo de

apresentação. In: SKLIAR, Carlos; LARROSA, Jorge. Habitantes de babel : políticas e poéticas da diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 7- 30.

56. SONTAG, Susan. Sob o signo de saturno . 1980. Arca Literária. (versão

digitalizada-internet).

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57. TESKE, Ottmar. A relação dialógica como pressuposto na aceitação das diferenças: o processo de formação das comunidades surdas. In: SKLIAR, Carlos (org). A surdez : um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação, 1998. p. 139- 156.

58. VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault & a educação . 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica,

2005.

59. VEIGA-NETO, Alfredo. Michel Foucault e estudos culturais : em busca de uma aproximação. In: COSTA, Marisa Vorraber. Estudos culturais em educação. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2000. p. 37- 69.

60. VEIGA-NETO, Alfredo. Olhares... In: COSTA, Marisa Vorraber (Org.). Caminhos

investigativos : novos olhares na pesquisa em educação. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. p. 23- 38.

61. WRIGLEY, Owen. A política da surdez . Tradução não publicada do original:

The politics of deafness. Washington: Gallaudet University Press, 1996.

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ANEXOS

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ANEXO A – LEI Nº 10.436, DE 24 DE ABRIL DE 2002.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1o É reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais - Libras e outros recursos de expressão a ela associados.

Parágrafo único. Entende-se como Língua Brasileira de Sinais - Libras a forma de comunicação e expressão, em que o sistema lingüístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constituem um sistema lingüístico de transmissão de idéias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil.

Art. 2o Deve ser garantido, por parte do poder público em geral e empresas concessionárias de serviços públicos, formas institucionalizadas de apoiar o uso e difusão da Língua Brasileira de Sinais - Libras como meio de comunicação objetiva e de utilização corrente das comunidades surdas do Brasil.

Art. 3o As instituições públicas e empresas concessionárias de serviços públicos de assistência à saúde devem garantir atendimento e tratamento adequado aos portadores de deficiência auditiva, de acordo com as normas legais em vigor.

Art. 4o O sistema educacional federal e os sistemas educacionais estaduais, municipais e do Distrito Federal devem garantir a inclusão nos cursos de formação de Educação Especial, de Fonoaudiologia e de Magistério, em seus níveis médio e superior, do ensino da Língua Brasileira de Sinais - Libras, como parte integrante dos Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs, conforme legislação vigente.

Parágrafo único. A Língua Brasileira de Sinais - Libras não poderá substituir a modalidade escrita da língua portuguesa.

Art. 5o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 24 de abril de 2002; 181o da Independência e 114o da República.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Paulo Renato Souza

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ANEXO B – Decreto 562 de 22 de dezembro de /2005.

Presidência da República Casa Civil

Subchefia para Assuntos Jurídicos

DECRETO Nº 5.626, DE 22 DE DEZEMBRO DE 2005.

Regulamenta a Lei no 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras, e o art. 18 da Lei no 10.098, de 19 de dezembro de 2000.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA , no uso das atribuições que lhe confere o art. 84, inciso IV, da Constituição, e tendo em vista o disposto na Lei no 10.436, de 24 de abril de 2002, e no art. 18 da Lei no 10.098, de 19 de dezembro de 2000,

DECRETA:

CAPÍTULO I

DAS DISPOSIÇÕES PRELIMINARES

Art. 1o Este Decreto regulamenta a Lei no 10.436, de 24 de abril de 2002, e o art. 18 da Lei no 10.098, de 19 de dezembro de 2000.

Art. 2o Para os fins deste Decreto, considera-se pessoa surda aquela que, por ter perda auditiva, compreende e interage com o mundo por meio de experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente pelo uso da Língua Brasileira de Sinais - Libras.

Parágrafo único. Considera-se deficiência auditiva a perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas freqüências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz.

CAPÍTULO II

DA INCLUSÃO DA LIBRAS COMO DISCIPLINA CURRICULAR

Art. 3o A Libras deve ser inserida como disciplina curricular obrigatória nos cursos de formação de professores para o exercício do magistério, em nível médio e superior, e nos cursos de Fonoaudiologia, de instituições de ensino, públicas e privadas, do sistema federal de ensino e dos sistemas de ensino dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

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§ 1o Todos os cursos de licenciatura, nas diferentes áreas do conhecimento, o curso normal de nível médio, o curso normal superior, o curso de Pedagogia e o curso de Educação Especial são considerados cursos de formação de professores e profissionais da educação para o exercício do magistério.

§ 2o A Libras constituir-se-á em disciplina curricular optativa nos demais cursos de educação superior e na educação profissional, a partir de um ano da publicação deste Decreto.

CAPÍTULO III

DA FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE LIBRAS E DO INSTRUTOR DE LIBRAS

Art. 4o A formação de docentes para o ensino de Libras nas séries finais do ensino fundamental, no ensino médio e na educação superior deve ser realizada em nível superior, em curso de graduação de licenciatura plena em Letras: Libras ou em Letras: Libras/Língua Portuguesa como segunda língua.

Parágrafo único. As pessoas surdas terão prioridade nos cursos de formação previstos no caput .

Art. 5o A formação de docentes para o ensino de Libras na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental deve ser realizada em curso de Pedagogia ou curso normal superior, em que Libras e Língua Portuguesa escrita tenham constituído línguas de instrução, viabilizando a formação bilíngüe.

§ 1o Admite-se como formação mínima de docentes para o ensino de Libras na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental, a formação ofertada em nível médio na modalidade normal, que viabilizar a formação bilíngüe, referida no caput .

§ 2o As pessoas surdas terão prioridade nos cursos de formação previstos no caput .

Art. 6o A formação de instrutor de Libras, em nível médio, deve ser realizada por meio de:

I - cursos de educação profissional;

II - cursos de formação continuada promovidos por instituições de ensino superior; e

III - cursos de formação continuada promovidos por instituições credenciadas por secretarias de educação.

§ 1o A formação do instrutor de Libras pode ser realizada também por organizações da sociedade civil representativa da comunidade surda, desde que o certificado seja convalidado por pelo menos uma das instituições referidas nos incisos II e III.

§ 2o As pessoas surdas terão prioridade nos cursos de formação previstos no caput .

Art. 7o Nos próximos dez anos, a partir da publicação deste Decreto, caso não haja docente com título de pós-graduação ou de graduação em Libras para o ensino dessa disciplina em cursos de educação superior, ela poderá ser ministrada por profissionais que apresentem pelo menos um dos seguintes perfis:

I - professor de Libras, usuário dessa língua com curso de pós-graduação ou com formação superior e certificado de proficiência em Libras, obtido por meio de exame promovido pelo Ministério da Educação;

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II - instrutor de Libras, usuário dessa língua com formação de nível médio e com certificado obtido por meio de exame de proficiência em Libras, promovido pelo Ministério da Educação;

III - professor ouvinte bilíngüe: Libras - Língua Portuguesa, com pós-graduação ou formação superior e com certificado obtido por meio de exame de proficiência em Libras, promovido pelo Ministério da Educação.

§ 1o Nos casos previstos nos incisos I e II, as pessoas surdas terão prioridade para ministrar a disciplina de Libras.

§ 2o A partir de um ano da publicação deste Decreto, os sistemas e as instituições de ensino da educação básica e as de educação superior devem incluir o professor de Libras em seu quadro do magistério.

Art. 8o O exame de proficiência em Libras, referido no art. 7o, deve avaliar a fluência no uso, o conhecimento e a competência para o ensino dessa língua.

§ 1o O exame de proficiência em Libras deve ser promovido, anualmente, pelo Ministério da Educação e instituições de educação superior por ele credenciadas para essa finalidade.

§ 2o A certificação de proficiência em Libras habilitará o instrutor ou o professor para a função docente.

§ 3o O exame de proficiência em Libras deve ser realizado por banca examinadora de amplo conhecimento em Libras, constituída por docentes surdos e lingüistas de instituições de educação superior.

Art. 9o A partir da publicação deste Decreto, as instituições de ensino médio que oferecem cursos de formação para o magistério na modalidade normal e as instituições de educação superior que oferecem cursos de Fonoaudiologia ou de formação de professores devem incluir Libras como disciplina curricular, nos seguintes prazos e percentuais mínimos:

I - até três anos, em vinte por cento dos cursos da instituição;

II - até cinco anos, em sessenta por cento dos cursos da instituição;

III - até sete anos, em oitenta por cento dos cursos da instituição; e

IV - dez anos, em cem por cento dos cursos da instituição.

Parágrafo único. O processo de inclusão da Libras como disciplina curricular deve iniciar-se nos cursos de Educação Especial, Fonoaudiologia, Pedagogia e Letras, ampliando-se progressivamente para as demais licenciaturas.

Art. 10. As instituições de educação superior devem incluir a Libras como objeto de ensino, pesquisa e extensão nos cursos de formação de professores para a educação básica, nos cursos de Fonoaudiologia e nos cursos de Tradução e Interpretação de Libras - Língua Portuguesa.

Art. 11. O Ministério da Educação promoverá, a partir da publicação deste Decreto, programas específicos para a criação de cursos de graduação:

I - para formação de professores surdos e ouvintes, para a educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental, que viabilize a educação bilíngüe: Libras - Língua Portuguesa como segunda língua;

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II - de licenciatura em Letras: Libras ou em Letras: Libras/Língua Portuguesa, como segunda língua para surdos;

III - de formação em Tradução e Interpretação de Libras - Língua Portuguesa.

Art. 12. As instituições de educação superior, principalmente as que ofertam cursos de Educação Especial, Pedagogia e Letras, devem viabilizar cursos de pós-graduação para a formação de professores para o ensino de Libras e sua interpretação, a partir de um ano da publicação deste Decreto.

Art. 13. O ensino da modalidade escrita da Língua Portuguesa, como segunda língua para pessoas surdas, deve ser incluído como disciplina curricular nos cursos de formação de professores para a educação infantil e para os anos iniciais do ensino fundamental, de nível médio e superior, bem como nos cursos de licenciatura em Letras com habilitação em Língua Portuguesa.

Parágrafo único. O tema sobre a modalidade escrita da língua portuguesa para surdos deve ser incluído como conteúdo nos cursos de Fonoaudiologia.

CAPÍTULO IV

DO USO E DA DIFUSÃO DA LIBRAS E DA LÍNGUA PORTUGUESA PARA O

ACESSO DAS PESSOAS SURDAS À EDUCAÇÃO

Art. 14. As instituições federais de ensino devem garantir, obrigatoriamente, às pessoas surdas acesso à comunicação, à informação e à educação nos processos seletivos, nas atividades e nos conteúdos curriculares desenvolvidos em todos os níveis, etapas e modalidades de educação, desde a educação infantil até à superior.

§ 1o Para garantir o atendimento educacional especializado e o acesso previsto no caput , as instituições federais de ensino devem:

I - promover cursos de formação de professores para:

a) o ensino e uso da Libras;

b) a tradução e interpretação de Libras - Língua Portuguesa; e

c) o ensino da Língua Portuguesa, como segunda língua para pessoas surdas;

II - ofertar, obrigatoriamente, desde a educação infantil, o ensino da Libras e também da Língua Portuguesa, como segunda língua para alunos surdos;

III - prover as escolas com:

a) professor de Libras ou instrutor de Libras;

b) tradutor e intérprete de Libras - Língua Portuguesa;

c) professor para o ensino de Língua Portuguesa como segunda língua para pessoas surdas; e

d) professor regente de classe com conhecimento acerca da singularidade lingüística manifestada pelos alunos surdos;

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IV - garantir o atendimento às necessidades educacionais especiais de alunos surdos, desde a educação infantil, nas salas de aula e, também, em salas de recursos, em turno contrário ao da escolarização;

V - apoiar, na comunidade escolar, o uso e a difusão de Libras entre professores, alunos, funcionários, direção da escola e familiares, inclusive por meio da oferta de cursos;

VI - adotar mecanismos de avaliação coerentes com aprendizado de segunda língua, na correção das provas escritas, valorizando o aspecto semântico e reconhecendo a singularidade lingüística manifestada no aspecto formal da Língua Portuguesa;

VII - desenvolver e adotar mecanismos alternativos para a avaliação de conhecimentos expressos em Libras, desde que devidamente registrados em vídeo ou em outros meios eletrônicos e tecnológicos;

VIII - disponibilizar equipamentos, acesso às novas tecnologias de informação e comunicação, bem como recursos didáticos para apoiar a educação de alunos surdos ou com deficiência auditiva.

§ 2o O professor da educação básica, bilíngüe, aprovado em exame de proficiência em tradução e interpretação de Libras - Língua Portuguesa, pode exercer a função de tradutor e intérprete de Libras - Língua Portuguesa, cuja função é distinta da função de professor docente.

§ 3o As instituições privadas e as públicas dos sistemas de ensino federal, estadual, municipal e do Distrito Federal buscarão implementar as medidas referidas neste artigo como meio de assegurar atendimento educacional especializado aos alunos surdos ou com deficiência auditiva.

Art. 15. Para complementar o currículo da base nacional comum, o ensino de Libras e o ensino da modalidade escrita da Língua Portuguesa, como segunda língua para alunos surdos, devem ser ministrados em uma perspectiva dialógica, funcional e instrumental, como:

I - atividades ou complementação curricular específica na educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental; e

II - áreas de conhecimento, como disciplinas curriculares, nos anos finais do ensino fundamental, no ensino médio e na educação superior.

Art. 16. A modalidade oral da Língua Portuguesa, na educação básica, deve ser ofertada aos alunos surdos ou com deficiência auditiva, preferencialmente em turno distinto ao da escolarização, por meio de ações integradas entre as áreas da saúde e da educação, resguardado o direito de opção da família ou do próprio aluno por essa modalidade.

Parágrafo único. A definição de espaço para o desenvolvimento da modalidade oral da Língua Portuguesa e a definição dos profissionais de Fonoaudiologia para atuação com alunos da educação básica são de competência dos órgãos que possuam estas atribuições nas unidades federadas.

CAPÍTULO V

DA FORMAÇÃO DO TRADUTOR E INTÉRPRETE DE LIBRAS - LÍNGUA PORTUGUESA

Art. 17. A formação do tradutor e intérprete de Libras - Língua Portuguesa deve efetivar-se por meio de curso superior de Tradução e Interpretação, com habilitação em Libras - Língua Portuguesa.

Art. 18. Nos próximos dez anos, a partir da publicação deste Decreto, a formação de tradutor e intérprete de Libras - Língua Portuguesa, em nível médio, deve ser realizada por meio de:

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I - cursos de educação profissional;

II - cursos de extensão universitária; e

III - cursos de formação continuada promovidos por instituições de ensino superior e instituições credenciadas por secretarias de educação.

Parágrafo único. A formação de tradutor e intérprete de Libras pode ser realizada por organizações da sociedade civil representativas da comunidade surda, desde que o certificado seja convalidado por uma das instituições referidas no inciso III.

Art. 19. Nos próximos dez anos, a partir da publicação deste Decreto, caso não haja pessoas com a titulação exigida para o exercício da tradução e interpretação de Libras - Língua Portuguesa, as instituições federais de ensino devem incluir, em seus quadros, profissionais com o seguinte perfil:

I - profissional ouvinte, de nível superior, com competência e fluência em Libras para realizar a interpretação das duas línguas, de maneira simultânea e consecutiva, e com aprovação em exame de proficiência, promovido pelo Ministério da Educação, para atuação em instituições de ensino médio e de educação superior;

II - profissional ouvinte, de nível médio, com competência e fluência em Libras para realizar a interpretação das duas línguas, de maneira simultânea e consecutiva, e com aprovação em exame de proficiência, promovido pelo Ministério da Educação, para atuação no ensino fundamental;

III - profissional surdo, com competência para realizar a interpretação de línguas de sinais de outros países para a Libras, para atuação em cursos e eventos.

Parágrafo único. As instituições privadas e as públicas dos sistemas de ensino federal, estadual, municipal e do Distrito Federal buscarão implementar as medidas referidas neste artigo como meio de assegurar aos alunos surdos ou com deficiência auditiva o acesso à comunicação, à informação e à educação.

Art. 20. Nos próximos dez anos, a partir da publicação deste Decreto, o Ministério da Educação ou instituições de ensino superior por ele credenciadas para essa finalidade promoverão, anualmente, exame nacional de proficiência em tradução e interpretação de Libras - Língua Portuguesa.

Parágrafo único. O exame de proficiência em tradução e interpretação de Libras - Língua Portuguesa deve ser realizado por banca examinadora de amplo conhecimento dessa função, constituída por docentes surdos, lingüistas e tradutores e intérpretes de Libras de instituições de educação superior.

Art. 21. A partir de um ano da publicação deste Decreto, as instituições federais de ensino da educação básica e da educação superior devem incluir, em seus quadros, em todos os níveis, etapas e modalidades, o tradutor e intérprete de Libras - Língua Portuguesa, para viabilizar o acesso à comunicação, à informação e à educação de alunos surdos.

§ 1o O profissional a que se refere o caput atuará:

I - nos processos seletivos para cursos na instituição de ensino;

II - nas salas de aula para viabilizar o acesso dos alunos aos conhecimentos e conteúdos curriculares, em todas as atividades didático-pedagógicas; e

III - no apoio à acessibilidade aos serviços e às atividades-fim da instituição de ensino.

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§ 2o As instituições privadas e as públicas dos sistemas de ensino federal, estadual, municipal e do Distrito Federal buscarão implementar as medidas referidas neste artigo como meio de assegurar aos alunos surdos ou com deficiência auditiva o acesso à comunicação, à informação e à educação.

CAPÍTULO VI

DA GARANTIA DO DIREITO À EDUCAÇÃO DAS PESSOAS SURDAS OU COM

DEFICIÊNCIA AUDITIVA

Art. 22. As instituições federais de ensino responsáveis pela educação básica devem garantir a inclusão de alunos surdos ou com deficiência auditiva, por meio da organização de:

I - escolas e classes de educação bilíngüe, abertas a alunos surdos e ouvintes, com professores bilíngües, na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental;

II - escolas bilíngües ou escolas comuns da rede regular de ensino, abertas a alunos surdos e ouvintes, para os anos finais do ensino fundamental, ensino médio ou educação profissional, com docentes das diferentes áreas do conhecimento, cientes da singularidade lingüística dos alunos surdos, bem como com a presença de tradutores e intérpretes de Libras - Língua Portuguesa.

§ 1o São denominadas escolas ou classes de educação bilíngüe aquelas em que a Libras e a modalidade escrita da Língua Portuguesa sejam línguas de instrução utilizadas no desenvolvimento de todo o processo educativo.

§ 2o Os alunos têm o direito à escolarização em um turno diferenciado ao do atendimento educacional especializado para o desenvolvimento de complementação curricular, com utilização de equipamentos e tecnologias de informação.

§ 3o As mudanças decorrentes da implementação dos incisos I e II implicam a formalização, pelos pais e pelos próprios alunos, de sua opção ou preferência pela educação sem o uso de Libras.

§ 4o O disposto no § 2o deste artigo deve ser garantido também para os alunos não usuários da Libras.

Art. 23. As instituições federais de ensino, de educação básica e superior, devem proporcionar aos alunos surdos os serviços de tradutor e intérprete de Libras - Língua Portuguesa em sala de aula e em outros espaços educacionais, bem como equipamentos e tecnologias que viabilizem o acesso à comunicação, à informação e à educação.

§ 1o Deve ser proporcionado aos professores acesso à literatura e informações sobre a especificidade lingüística do aluno surdo.

§ 2o As instituições privadas e as públicas dos sistemas de ensino federal, estadual, municipal e do Distrito Federal buscarão implementar as medidas referidas neste artigo como meio de assegurar aos alunos surdos ou com deficiência auditiva o acesso à comunicação, à informação e à educação.

Art. 24. A programação visual dos cursos de nível médio e superior, preferencialmente os de formação de professores, na modalidade de educação a distância, deve dispor de sistemas de acesso à informação como janela com tradutor e intérprete de Libras - Língua Portuguesa e subtitulação por meio

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do sistema de legenda oculta, de modo a reproduzir as mensagens veiculadas às pessoas surdas, conforme prevê o Decreto no 5.296, de 2 de dezembro de 2004.

CAPÍTULO VII

DA GARANTIA DO DIREITO À SAÚDE DAS PESSOAS SURDAS OU COM DEFICIÊNCIA AUDITIVA

Art. 25. A partir de um ano da publicação deste Decreto, o Sistema Único de Saúde - SUS e as empresas que detêm concessão ou permissão de serviços públicos de assistência à saúde, na perspectiva da inclusão plena das pessoas surdas ou com deficiência auditiva em todas as esferas da vida social, devem garantir, prioritariamente aos alunos matriculados nas redes de ensino da educação básica, a atenção integral à sua saúde, nos diversos níveis de complexidade e especialidades médicas, efetivando:

I - ações de prevenção e desenvolvimento de programas de saúde auditiva;

II - tratamento clínico e atendimento especializado, respeitando as especificidades de cada caso;

III - realização de diagnóstico, atendimento precoce e do encaminhamento para a área de educação;

IV - seleção, adaptação e fornecimento de prótese auditiva ou aparelho de amplificação sonora, quando indicado;

V - acompanhamento médico e fonoaudiológico e terapia fonoaudiológica;

VI - atendimento em reabilitação por equipe multiprofissional;

VII - atendimento fonoaudiológico às crianças, adolescentes e jovens matriculados na educação básica, por meio de ações integradas com a área da educação, de acordo com as necessidades terapêuticas do aluno;

VIII - orientações à família sobre as implicações da surdez e sobre a importância para a criança com perda auditiva ter, desde seu nascimento, acesso à Libras e à Língua Portuguesa;

IX - atendimento às pessoas surdas ou com deficiência auditiva na rede de serviços do SUS e das empresas que detêm concessão ou permissão de serviços públicos de assistência à saúde, por profissionais capacitados para o uso de Libras ou para sua tradução e interpretação; e

X - apoio à capacitação e formação de profissionais da rede de serviços do SUS para o uso de Libras e sua tradução e interpretação.

§ 1o O disposto neste artigo deve ser garantido também para os alunos surdos ou com deficiência auditiva não usuários da Libras.

§ 2o O Poder Público, os órgãos da administração pública estadual, municipal, do Distrito Federal e as empresas privadas que detêm autorização, concessão ou permissão de serviços públicos de assistência à saúde buscarão implementar as medidas referidas no art. 3o da Lei no 10.436, de 2002, como meio de assegurar, prioritariamente, aos alunos surdos ou com deficiência auditiva matriculados nas redes de ensino da educação básica, a atenção integral à sua saúde, nos diversos níveis de complexidade e especialidades médicas.

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CAPÍTULO VIII

DO PAPEL DO PODER PÚBLICO E DAS EMPRESAS QUE DETÊM CONCESSÃO OU PERMISSÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS, NO APOIO AO USO E DIFUSÃO DA LIBRAS

Art. 26. A partir de um ano da publicação deste Decreto, o Poder Público, as empresas concessionárias de serviços públicos e os órgãos da administração pública federal, direta e indireta devem garantir às pessoas surdas o tratamento diferenciado, por meio do uso e difusão de Libras e da tradução e interpretação de Libras - Língua Portuguesa, realizados por servidores e empregados capacitados para essa função, bem como o acesso às tecnologias de informação, conforme prevê o Decreto no 5.296, de 2004.

§ 1o As instituições de que trata o caput devem dispor de, pelo menos, cinco por cento de servidores, funcionários e empregados capacitados para o uso e interpretação da Libras.

§ 2o O Poder Público, os órgãos da administração pública estadual, municipal e do Distrito Federal, e as empresas privadas que detêm concessão ou permissão de serviços públicos buscarão implementar as medidas referidas neste artigo como meio de assegurar às pessoas surdas ou com deficiência auditiva o tratamento diferenciado, previsto no caput .

Art. 27. No âmbito da administração pública federal, direta e indireta, bem como das empresas que detêm concessão e permissão de serviços públicos federais, os serviços prestados por servidores e empregados capacitados para utilizar a Libras e realizar a tradução e interpretação de Libras - Língua Portuguesa estão sujeitos a padrões de controle de atendimento e a avaliação da satisfação do usuário dos serviços públicos, sob a coordenação da Secretaria de Gestão do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, em conformidade com o Decreto no 3.507, de 13 de junho de 2000.

Parágrafo único. Caberá à administração pública no âmbito estadual, municipal e do Distrito Federal disciplinar, em regulamento próprio, os padrões de controle do atendimento e avaliação da satisfação do usuário dos serviços públicos, referido no caput .

CAPÍTULO IX

DAS DISPOSIÇÕES FINAIS

Art. 28. Os órgãos da administração pública federal, direta e indireta, devem incluir em seus orçamentos anuais e plurianuais dotações destinadas a viabilizar ações previstas neste Decreto, prioritariamente as relativas à formação, capacitação e qualificação de professores, servidores e empregados para o uso e difusão da Libras e à realização da tradução e interpretação de Libras - Língua Portuguesa, a partir de um ano da publicação deste Decreto.

Art. 29. O Distrito Federal, os Estados e os Municípios, no âmbito de suas competências, definirão os instrumentos para a efetiva implantação e o controle do uso e difusão de Libras e de sua tradução e interpretação, referidos nos dispositivos deste Decreto.

Art. 30. Os órgãos da administração pública estadual, municipal e do Distrito Federal, direta e indireta, viabilizarão as ações previstas neste Decreto com dotações específicas em seus orçamentos anuais e plurianuais, prioritariamente as relativas à formação, capacitação e qualificação de professores, servidores e empregados para o uso e difusão da Libras e à realização da tradução e interpretação de Libras - Língua Portuguesa, a partir de um ano da publicação deste Decreto.

Art. 31. Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.

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Brasília, 22 de dezembro de 2005; 184o da Independência e 117o da República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA Fernando Haddad